ancient philosophy, ribeiro, l. f. b. história da filosofia i, livro do ead

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Histria da Filosofia I

Histria da Filosofia ILus Felipe Bellintani Ribeiro

Florianpolis, 2008.

Governo Federal

Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva Ministro de Educao Fernando Haddad Secretrio de Ensino a Distncia Carlos Eduardo Bielschowky Coordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil Celso Costa

Coordenao Pedaggica LANTEC/CED Coordenao de Ambiente Virtual LAED/CFM

Projeto Grfico

Universidade Federal de Santa Catarina

Coordenao Prof. Haenz Gutierrez Quintana Equipe Henrique Eduardo Carneiro da Cunha, Juliana Chuan Lu, Las Barbosa, Ricardo Goulart Tredezini Straioto

Reitor Lcio Jos Botelho Vice-reitor Ariovaldo Bolzan Pr-reitor de Oramento, Administrao e Finanas Mrio Kobus Pr-reitor de Desenvolvimento Urbano e Social Luiz Henrique Vieira da Silva Pr-reitora de Assuntos Estudantis Corina Martins Espndola Pr-reitora de Ensino de Graduao Thereza Christina Monteiro de Lima Nogueira Pr-reitora de Cultura e Extenso Eunice Sueli Nodari Pr-reitor de Ps-Graduao Valdir Soldi Pr-reitor de Ensino de Graduao Marcos Laffin Diretora do Departamentos de Ensino de Graduao a Distncia Araci Hack Catapan

Equipe de Desenvolvimento de MateriaisLaboratrio de Novas Tecnologias - LANTEC/ CEDCoordenao Geral Andrea Lapa Coordenao Pedaggica Roseli Zen Cerny Material Impresso e HipermdiaCoordenao Thiago Rocha Oliveira Adaptao do Projeto Grfico Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha Oliveira Diagramao Laura Martins Rodrigues, Paula Reverbel, Guilherme Andr Carrion Tratamento de Imagem Laura Martins Rodrigues Reviso gramatical Gustavo Andrade Nunes Freire, Marcos Eroni Pires

Curso de Licenciatura em Filosofia na Modalidade a Distncia

Design InstrucionalCoordenao Isabella Benfica Barbosa Designer Instrucional Chalin Zanon Severo

Diretora Unidade de Ensino Maria Juracy Filgueiras Toneli Chefe do Departamento Leo Afonso Staudt Coordenador de Curso Marco Antonio Franciotti

Copyright 2008 Licenciaturas a Distncia FILOSOFIA/EAD/UFSC Nenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada sem a prvia autorizao, por escrito, da Universidade Federal de Santa Catarina. R354 Ribeiro, Lus Felipe Bellintani. Histria da filosofia I / Lus Felipe Bellintani Ribeiro . Florianpolis: Filosofia/EaD/UFSC, 2008. 203p. : 28cm. ISBN: 978-85-61484-02-6 1.Histria da filosofia. 2. Filosofia antiga. I. Ttulo. CDD 109

Elaborado por Rodrigo de Sales, supervisionado pelo Setor Tcnico da Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina

SumrioApresentao ....................................................................07 Introduo ........................................................................09 1 A filosofia pr-socrtica............................................331.1 Monistas e pluralistas ............................................................. 56 1.2 O dualismo pitagrico ............................................................ 61 1.3 O mobilismo de Herclito ..................................................... 64 1.4 O imobilismo dos eleatas ....................................................... 68 1.5 O atomismo de Demcrito .................................................... 74 Leitura recomendada .............................................................. 77 Leitura comentada................................................................... 77 Reflita sobre .............................................................................. 79

2 Os sofistas e Scrates...................................................812.1 Os sofistas como pr-socrticos ............................................ 83 2.2 Scrates como sofista.............................................................. 97 Leitura comentada.................................................................111 Reflita sobre ............................................................................113

3 A metafsica clssica..................................................1153.1 Plato ...................................................................................... 117

3.2 Aristteles .............................................................................. 128 Leitura comentada.................................................................137 Reflita sobre ............................................................................138

4 As filosofias do helenismo ........................................1394.1 Estoicismo .............................................................................. 143 4.2 Epicurismo ............................................................................. 155 4.3 Ceticismo ............................................................................... 166 Leitura recomendada ............................................................174 Leitura comentada.................................................................174 Reflita sobre ............................................................................175

5 O neoplatonismo ..........................................................177Leitura recomendada e comentada..................................192 Reflita sobre ............................................................................193

Referncias ......................................................................195 Anexos ...............................................................................199

ApresentaoA disciplina Histria da Filosofia I (FIL 5601) a primeira de uma srie de quatro disciplinas, que correspondem respectivamente, grosso modo, s quatro pocas em que a histria ocidental se subdivide: antiga, medieval, moderna e contempornea. Enquanto a maior parte do currculo est disposta segundo o critrio temtico das grandes reas do corpo filosfico (metafsica, esttica, epistemologia, lgica, poltica, tica...), essas disciplinas de histria seguem o critrio cronolgico, com o objetivo de complementar a viso mais monogrfica daquelas (exigida pela prpria natureza do estudo filosfico) com uma viso mais extensiva e horizontal (embora, obviamente, no exaustiva, mesmo nessa superfcie), de modo a que o aluno saiba identificar os principais filsofos de cada poca, as principais correntes e escolas, os principais temas, querelas e disputas, bem como dissertar minimamente sobre o essencial de cada um. Essa srie naturalmente panormica e, embora extremamente til para fins didticos, deve ser compensada noutra ocasio com uma abordagem mais fina dos detalhes, at porque as pocas se interpenetram num movimento complexo, cheio de rupturas e atavismos, e toda deciso de secion-la aqui ou ali, de eleger esse principal ou aquele essencial permanece filosoficamente questionvel. No caso da Histria da Filosofia I, que , portanto, histria da filosofia antiga (mais precisamente filosofia antiga pag, pois, a rigor, a primeira fase do pensamento cristo um fato antigo), trata-se do perodo em que a filosofia nasce com os gregos, em solo propcio ao questionamento, perscrutao livre e ao debate acerca da realidade, e enquanto perdura certo elemento espiritual e material prprio ao mundo pago grego, seja sob o imprio alexandrino, seja sob o romano, no obstante toda a fase final desse perodo seja marcada

pelo declnio desse elemento em favor da viso de realidade caracterstica do prximo, a qual transforma a herana moribunda e assim a conserva para a posteridade. A pretexto de simples marcao cronolgica, so tomadas duas datas para indicar o incio e o fim desse perodo, respectivamente: 1) a acm (o auge da vida intelectual de um filsofo) de Tales de Mileto, o mais antigo dos filsofos gregos, com a previso de um eclipse em 585 a.C., e 2) o fechamento da escola filosfica de Atenas pelo ento imperador romano, Justiniano, em 529 d.C. Nesse perodo de mais de um milnio, muitos cortes seriam possveis. Um, bastante enxuto para que caiba em um semestre letivo, o aqui proposto em cinco captulos: 1) Pr-socrticos; 2) Os sofistas e Scrates; 3) A metafsica clssica: Plato e Aristteles; 4) As filosofias do helenismo: estoicismo, epicurismo e ceticismo; 5) O neoplatonismo. O estudo da histria da filosofia interessa sobremaneira ao (futuro) professor de filosofia do ensino mdio, pois fornece um fio condutor, o mais tradicional de todos, o cronolgico, para seus prprios cursos nas escolas. Embora tradicional, costuma ser bem sucedido, se bem ministrado. Ser bem ministrado no outra coisa seno aproveitar o ensejo propiciado pelo esquema cronolgico de falar sobre determinado filsofo numa aula especfica e explicar com clareza suas idias principais. As idias filosficas nunca so ultrapassadas totalmente; alguma coisa sempre resta atual. Por isso, a simples explicao do contedo do tpico filosfico j capaz de despertar o aluno para o reconhecimento de sua atualidade. E uma efetiva experincia de questes filosficas costuma ser o mais eficaz em educao, quando se trata de no menos tradicionais valores como ensinar responsabilidade, autonomia, cidadania, senso crtico e transformador, pois atua na raiz de toda transformao, j que ver o ser por outra perspectiva, somente isso, outro modo de ser.

Lus Felipe Bellintani Ribeiro

Introduo 9

IntroduoNormalmente, um curso de histria, seja histria disso ou daquilo, de um povo ou de uma instituio, de um ritual ou de uma palavra, assunto de historiadores. Os historiadores conhecem os mtodos e os critrios dessa cincia, expressa pelo substantivo forte do ttulo: histria. O substantivo fraco, dependente, por sua vez, do adjunto adnominal ligado pela preposio de, o isso ou o aquilo, designa o objeto, o assunto, que o sujeito historiador deve abordar segundo os padres cientficos, e, portanto, rigorosos, da cincia histrica. Tudo isso parece muito bvio. E disso tudo o leigo ou o aprendiz espera apenas que o perito mostre a que veio: que conte a histria do objeto, que diga quando e onde ele surgiu, o que aconteceu primeiro, o que aconteceu depois, e assim na seqncia, e por que razes as situaes anteriores deram lugar s posteriores. Alm disso, quo mais grandioso o objeto, mais grandiosa se espera que seja a sua histria, mais cheia de peripcias grandiosas. Na verdade, o bvio desse raciocnio encerra uma srie de decises problemticas. preciso j ter assumido certa filosofia para supor a investigao (e isso que significa histora, na sua matriz grega) como o debruar-se de um sujeito sobre um objeto. Uma investigao pode ser outras coisas. Ento, como dizer que algo como a histria da filosofia comea desse ou daquele modo, nessa ou naquela data, nesse ou naquele lugar, se a prpria pergunta, filosfica ela mesma, revela que a filosofia j comeou e que, portanto, o investigador j chegou atrasado para o que seria uma abor-

Herdoto (484 - 425 a.C)

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dagem exterior e, portanto, objetiva? Se toda histria da filosofia pressupe uma filosofia da histria, preciso que, no caso da histria da filosofia, o adjunto adnominal, a filosofia, reivindique uma primazia sobre o substantivo em torno do qual orbita, a histria. A pergunta quando nasce a filosofia?, que todo historiador da filosofia precisa ter respondido, exige que se responda a essa outra: o que a filosofia?. Mas a filosofia nasceu como exatamente o exerccio de perguntar o que isso ou aquilo?, o que a essncia de cada coisa. A essncia de cada coisa est em seu nascimento, por que a essncia exatamente aquilo antes do que a coisa no e a partir do que a coisa j . Por isso todo historiador da filosofia j filosofou de alguma maneira, porque j assumiu, implcita ou explicitamente, uma deciso ontolgica, isto , quanto ao ser da coisa em questo. preciso que a pergunta pela origem da filosofia j pertena histria da filosofia, histria disso que exatamente questionamento da origem. A investigao filosfica da histria da filosofia, portanto, nunca ser da mesma ordem daquela cincia que consegue determinar o objeto e apart-lo do sujeito, porque nunca conseguir evitar essa circularidade original: aquilo que se busca j chegou antes como o prprio propiciador da busca. Ademais, a negatividade do no-ser implicado em todo vir-a-ser da origem impede que a investigao seja puramente positiva, isto , relativa aos fatos, ao que se apresenta de modo inconteste, independentemente das interpretaes que admitem coisas que no so manifestas a todos os seres sensatos, se que existem fatos dessa natureza. Outro problema que a histria da filosofia em questo seja histria da filosofia antiga. Nesse caso no apenas j se respondeu questo sobre o ser da filosofia como j se subdividiu o contedo do que seria sua histria. Em todo caso, se a etapa antiga de uma histria sempre a primeira, ento sobre a histria antiga, mais do que sobre a de outra etapa qualquer, pesa a necessidade de determinar a essncia de seu objeto, pois s ela tem atrs de si no apenas outra etapa de um mesmo contnuo, j reconhecido como tal e assegurado, mas o prprio outro, o prprio no-ser de antes do nascimento, desde o qual uma irrupo descontnua. Pelo antigo se segue tambm que h um moderno, que pode se distinguir de um contemporneo propriamente dito, e que pode

Introduo 11

intercalar uma poca mdia, entre a sua poca e a dos antigos. Esses termos so todos relativos, pois os antigos eram para si mesmos contemporneos e seus antigos eram os mais antigos dos antigos. Tambm os medievais no eram para si medievais, mas contemporneos. Daqui a mil anos, ou cem, ou dez mil, o contemporneo ser outro, e a poca atual ser outro termo mdio. Bem como a origem antiga ser interpretada de outra maneira, pois ela no um fato do passado do qual se sabe o ser objetivo, mas a medida da memria que o contemporneo tem, a cada vez, de si mesmo, e que, portanto, muda com as vicissitudes dessa memria. Em todo caso, o que importa que, quando o contemporneo reconhece um antigo, acontece uma experincia histrica original, um reconhecimento de continuidade e descontinuidade, de identidade e diferena, pois os antigos so sempre antigos de algum moderno, e os modernos so sempre modernos de algum antigo, e eles no so, em si mesmos, nem antigos, nem modernos. Antigo no apenas o primitivo numa escala de desenvolvimento, mas o primevo, o que acontece no princpio. Archaos, em grego, arcaico, o que est no princpio (arch), em sua ambivalncia, como incio cronolgico e como princpio ontolgico. O arcaico, como princpio ontolgico, deve continuar vigorando no ser contemporneo, mesmo que, como incio cronolgico, j tenha ficado de h muito para trs. um fato da memria contempornea: os que principiaram a filosofar, e, portanto, os antigos dessa histria, foram os gregos, embora seja um fato dessa mesma memria que qualquer pretenso de reivindicar primazia para os gregos em algum domnio no deva ser hipostasiada, isto , considerada um fato s necessrio, livre do acaso e da contingncia prprios da histria. A necessidade desse fato deve incluir tanto o que pode ser explicado, justificado, quanto o que resta fato, mesmo quando nenhuma explicao possa mais ser alcanada. Em ltima instncia, a razo para o advento da filosofia no pode ser nada alheia prpria filosofia, embora razes de toda ordem, polticas, sociais, econmicas etc. concorram para a efetividade do seu acontecimento. E, em todas as pocas da filosofia, preciso que acontea seu momento arcaico para que a filosofia acontea.

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A localizao privilegiada dos gregos na histria da filosofia uma construo artificial, no se impe por necessidade natural. No h nenhum carter tnico nesse privilgio. Sequer ficou decidido que fazer filosofia um signo de qualquer superioridade. Pode ser at o contrrio, que a filosofia seja apenas um modo restrito de algo muito mais amplo, a ponto de incluir toda humanidade: pensamento, cultura, seja l o que for, e que esse modo determinado de pensar tem suas possibilidades e suas limitaes, que no em si nem um bem, nem um mal, e que, inclusive, se enfatizado seu lado execrvel em detrimento de seu lado elogivel, torna-se execrvel, antes que elogivel. Far-se-ia mais por outras culturas e outros pensamentos que no os gregos nomeando isso que corresponde a sua cultura e seu pensamento com os nomes respectivos de suas lnguas. Mas philosopha um nome grego. possvel que ningum nunca consiga determinar em que consiste a unidade que esse vocbulo pretende evocar. Mas os gregos pela primeira vez nomearam, com nomes de sua lngua comum, uma realizao mpar e inaudita, como se a compreendessem bem. O vocbulo passou para o latim, e depois para todas as lnguas europias. A relao das lnguas posteriores para com ele sempre de outra ordem, como a relao do herdeiro frente ao que lega. E que tende a ficar mais erudita e menos imediata conforme o aumento do fardo da herana, que a essa altura, diga-se de passagem, j est assaz pesado. Ora, se mesmo em grego difcil encontrar a unidade real pretendida pelo nome philosopha, seria exagerado admitir a fortiori uma unidade da Europa e do Ocidente, pelo fato de o nome ter se mantido o mesmo nas lnguas europias e de ter se mantido a conscincia de que sua abordagem comea pela considerao de que ele um nome grego. Mas, do mnimo de unidade que resta, pelo fato da simples pretenso de unidade, possvel alinhavar um mito, por cuja simplificao (tipificao) caracterstica no se deixa passar despercebida uma diferena digna de relevo. A esse propsito, vale citar a seguinte passagem de Herdoto (Histria. Traduo: Mrio da Gama Kury, Braslia: UNB, 1985):

Introduo 13 (1) Os resultados das investigaes de Herdotos de Halicarnassos so apresentados aqui, para que a memria dos acontecimentos no se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que os feitos maravilhosos e admirveis dos helenos e dos brbaros no deixem de ser lembrados, inclusive as razes pelas quais eles se guerrearam. Os doutos dizem que os fencios foram a causa da desavena. Os fencios, segundo afirmam os persas, chegaram ao nosso mar vindos do chamado mar Ertraios e, estabelecendo-se no territrio que agora ocupam, comearam imediatamente a empreender longas viagens. Entre outros lugares at onde levaram mercadorias egpcias e assrias eles chegaram a Argos; naquela poca Argos se destacava em tudo na regio atualmente chamada Hlade. Ento os fencios vieram at Argos e l descarregaram suas mercadorias. No quinto ou sexto dia aps a sua chegada, quando sua carga j estava quase toda vendida, veio orla martima, entre muitas outras mulheres, a prpria filha do rei; de acordo com os relatos tanto dos persas quanto dos helenos, seu nome era Io, a filha de nacos. As mulheres ficaram nas proximidades da popa da nau, e enquanto elas barganhavam os produtos que lhes interessavam, os fencios se animaram uns aos outros para a tentativa, e correram em sua direo com o objetivo de agarr-las. A maior parte das mulheres escapou, mas Io e algumas outras foram alcanadas; os fencios as arrastaram para a nau e partiram no rumo do Egito. (2) E assim Io chegou ao Egito, segundo dizem os persas (mas no os helenos), e esta, em sua opinio, foi a primeira ofensa cometida. Depois disso, de acordo com sua verso, alguns helenos, cujos nomes eles no sabem dizer, desembarcaram em Tiro, na Fencia, e raptaram Europe, a filha do rei (esses helenos deveriam ser cretenses). At esse ponto as ofensas se compensavam, mas depois disso, dizem eles, os helenos foram culpados pela segunda ofensa. Eles navegaram em uma nau longa at Aia, na Colquis, e o rio Fsis; depois de concluir os negcios para os quais tinham vindo eles raptaram Media, a filha do rei. Quando o rei dos colqudios mandou um arauto para pedir reparao pelo rapto e a restituio de sua filha, os helenos responderam que lhes tinha sido negada a reparao pelo rapto da argiva Io, e, portanto, nada concederiam aos colqudios. (3) Ento, dizem eles, na segunda gerao depois desses fatos, Alxandros, filho de Pramos, tendo ouvido essa histria, teve a idia de obter para si mesmo uma esposa na Hlade mediante rapto, inteiramente convencido de que, da mesma forma que os helenos no haviam oferecido reparao, ele tambm no a ofereceria. Assim, ele raptou Helena. Os helenos resolveram primeiro enviar mensageiros para pedir a restituio de Helena e uma reparao pelo rapto; quando, porm, essa proposta foi feita, ouviram

14 Histria da Filosofia I como resposta que Media tinha sido raptada, e lhes foi dito ainda que eles, que agora pediam reparao a outros, no a tinham concedido nem devolvido a mulher raptada, apesar das reclamaes dos ofendidos. (4) At a se tratava apenas de raptos de ambos os lados. Mas depois disso, segundo os persas, os grandes culpados foram os helenos; com efeito, eles invadiram a sia antes de os persas terem atacado a Europa. Raptar mulheres, diziam os persas, uma injustia dos homens, mas querer obstinadamente vingar o rapto insensatez; os homens prudentes no do importncia alguma a mulheres raptadas, pois obviamente elas nunca teriam sido raptadas se no quisessem. Os prprios asiticos, dizem os persas, no se preocupam de modo algum com o rapto de mulheres, mas os helenos, por causa de uma mulher lacedemnia, tinham organizado uma grande expedio, tinham vindo at a sia e haviam destrudo o poderio de Pramos. Depois disso eles passaram a considerar o mundo helnico seu inimigo. De fato, os persas pretendem que a sia inteira e todos os povos brbaros seus habitantes lhes pertenam; a Europa e o mundo helnico so para eles uma regio parte.

A guerra de Tria, fato e mito inaugurais da conscincia histrica dos gregos, porque assunto do primeiro poema em lngua grega, a Ilada, de Homero, trata, segundo a verso relatada, mas no endossada, por Herdoto, de uma oposio de continentes, cheia de precedentes, embora para as medidas hodiernas mais parea uma querela local, intestina, de uma civilizao que floresceu em torno do Mediterrneo. A conscincia da diferena entre grego e brbaro, que est na base da diferena entre Europa e sia, entre o leste da aurora e o oeste do ocaso, encerra uma ambigidade. De um lado, parece expresso de mais um etnocentrismo ingnuo. Mas, na verdade, pode ser tambm a relativizao desse etnocentrismo, pela considerao de si e do outro como exemplares autofundados e parelhos de uma humanidade mais genrica. Vale aqui a afirmao de Hannah Arendt: a imparcialidade veio ao mundo com Homero. E isso precisamente porque os dois exrcitos confrontados recebem cotas idnticas de dignidade. Saber que a viso que se tem do mundo s uma viso parcial condio para que se coloque a pergunta: o que o mundo em si mesmo? Doravante a perspectiva parcial dessa tradio consistir em buscar o em-si universal

Triumphant Achilles in Achilleion. Afresco do fim do sculo XIX

ARENDT, H. Le concept dhistoire in la crise de la culture. Traduo francesa: P. Lvy, Paris: Gallimard, 1972, p. 70)

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ou em recusar conscientemente sua busca. No rastro desse projeto, surge a filosofia, no como um trao cultural, ao lado de outros tantos, da tradio ocidental, mas como o trao por excelncia que lhe confere a ocidentalidade, um tipo especfico de pensamento, que compreende a totalidade do ser de um modo especfico. O esclarecimento dessa especificidade, por enquanto apenas sugerida, , obviamente, o ponto mais importante de todo o debate. Isso ser feito mais adiante. Se questo de compreenso, a filosofia um acontecimento espiritual, e, como tal, no est atrelada a nenhum momento e a nenhum lugar, mas sua realizao efetiva em qualquer tempo e qualquer lugar. Por uma acepo abrangente de filosofia, o estado de esprito que consiste em problematizar o ser daquilo que , em no simplesmente ser, mas dar-se conta desse ser, deve ser comum a todas as pocas e lugares. Suas razes devem remontar ao paleoltico mais remoto, ao momento do domnio do fogo, ao momento em que uma conscincia do presente pela primeira vez projetou o futuro e ps mos obra em sua execuo. Como fato puro, este permanece no terreno do mito. Mas, do primeiro ato antropide do ltimo pitecantropo completamente selvagem, at a assuno explcita da tarefa de elaborao terica do problema do ser, vai uma histria. O desenvolvimento encerrado nessa histria no garante, por si, que siga qualquer fio condutor previamente dado, nem que o sentido possa ser avaliado como pendor do pior para o melhor ou vice-versa, como progresso ou corrupo da origem. Se h um nexo de necessidade ligando os acontecimentos, ele se d de modo imanente, e nunca se deixa calcular previamente. Cada acontecimento acontece livre de amarras metafsicas. O nexo de necessidade deve incluir a gratuidade do fortuito, quando o jazer do fato se diz necessrio por sua simples efetividade, pois nenhuma contabilidade da graa e da desgraa contida em cada acontecimento chegar a resultado que permita estim-lo ou deplor-lo, e, conseqentemente, deriv-lo de uma teleologia otimista ou pessimista. O avanar da histria da filosofia parece seguir no sentido do abandono paulatino da ingenuidade das primeiras posies em favor de uma autovigilncia crescente. A histria da filosofia j constatou at que a pretenso de autovigilncia contnua de

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uma extrema ingenuidade. Importante notar que toda poca, por mais esclarecida que seja, sempre se enraza em um solo encoberto a ela mesma. Quando os pressupostos velados de uma poca so revelados, o desencantamento produzido pelo distanciamento leva ao irromper de outra poca, fundada certamente no solo de sua ingenuidade prpria. Colocar os gregos na origem da histria da filosofia , portanto, uma deciso potica, isto , de quem prope um mito, que visa produo de imagens exemplares, capazes de assinalar diferenas separveis, as quais, nas coisas, ocorrem mais ou menos misturadas. Esse mito no precisa ser a exaltao do fundador de um grande feito, como tampouco a execrao da obra de um malfeitor. Talvez se assemelhe mais a uma narrativa pica de um enredo trgico, o enredo da passagem da atitude natural da conscincia natural, que se expressa no solo de uma total aderncia dessa conscincia ao seu contedo, com todas as suas conseqncias benfazejas: espontaneidade, boa conscincia frente aos valores da cultura, religiosidade autntica, vigncia da verdade, para outra atitude, nascida do solo de uma ciso, de uma perda, a perda do imediato do sentido, atitude intermediada pela arte, artificial, seguida pelo corolrio de seus perigos: perda da espontaneidade, desconfiana dos valores, desconfiana da religio, desconfiana da verdade. Esse enredo certamente j foi encenado antes e depois da Grcia. Cada indivduo mesmo, que se dedica filosofia, deve encen-lo sua vez. O termo philsophos, amigo do saber, para os pitagricos designa: o aprendiz que no sabe, que s no final do aprendizado ser sbio. Para Plato, a filosofia, na condio de amor sabedoria, tem a condio de todo o amor: no aquilo que ama: ama o belo e o bom precisamente porque no bela nem boa; se j fosse, no precisaria amar. A filosofia surge quando os sbios de ento: poetas, sacerdotes, adivinhos, reis, legisladores, cedem espao para os que se reconheciam no-sbios e assim justificavam que buscassem a sabedoria. A ignorncia o comeo da filosofia, a sabedoria e s o fim, alcanvel e alcanado, ou no. A esse propsito diz Aristteles (Metafsica I, 2 982b 19-20):(...) foi para fugir da ignorncia que eles (os homens) filosofaram (...)

Introduo 17

Tela de Rembrant, 1653: Aristteles e o Busto de Homero. Metropolitan Museum of Arts Nova Iorque.

O mesmo Aristteles, embora apresente o grego Tales como primeiro filsofo, fala do princpio da filosofia como um passo de uma histria que a rigor dada a todos os homens (A Metafsica de Aristteles comea precisamente com a frase todos os homens, por natureza, desejam saber). O mesmo Aristteles, ao caracterizar a contemplao, a theora prpria do estgio mais alto do saber, o da epistme e, mais ainda, o da prte epistme, da cincia e da cincia primeira, se refere ao Egito como o lugar em que primeiro uma casta de sacerdotes pde se dedicar investigao da verdade livre dos aborrecimentos da vida prtica, ao encargo de outros homens (Metafsica, I, 1 981b 20-25):Da que, constitudas todas essas artes, foram descobertas cincias das que no so nem relativas ao prazer nem s necessidades, e primeiro nos lugares em que primeiro os homens dispuseram de tempo livre. Por isso as artes matemticas foram constitudas no Egito, pois l uma casta de sacerdotes desfrutava de tempo livre.

O mesmo Aristteles, quando discute os temas filosficos com seus predecessores desde Tales, tambm considera as opinies dos poetas mais antigos, admitindo que as palavras poticas so dotadas de significado filosfico. O mesmo Aristteles, quando fala do princpio da filosofia, ressalta as identidades, mais do que as diferenas, entre essa forma de saber nascente e aquela que, em tese, lhe antecedeu, a do mito (Metafsica, I, 2 982b 12-19):Porque se espantaram e admiraram, os homens, tanto agora quanto nos primrdios, principiaram a filosofar; no princpio admirando as mais prximas das coisas estranhas, em seguida, prosseguindo pouco a pouco, e se vendo em aporias quanto a coisas maiores, como as fases da lua, do sol e dos astros e quanto gnese do todo. Quem est em aporia e admira, julga ignorar (por isso tambm o amigo dos mitos , de certa maneira, amigo do saber, pois o mito composto a partir de admiraes).

Que as razes da filosofia grega estejam entre os brbaros, que as razes da razo se infiltrem pelo terreno do irracional, mito, poesia, religio, o que for, isso normal. Pode-se dizer que todo acontecimento mpar comeou muito antes de sua irrupo efetiva. O limite para esse antes , no final das contas, claro, o princpio dos tempos. O que importa saber se, a cada vez, o trao de continuidade ou o de ruptura que se quer enfatizar.

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Enfatize-se o fato comum de a filosofia e o mito nascerem de um mesmo estado de esprito, um mesmo pthos, a saber, o que os gregos diziam com a palavra thama/thaumzein, e que se traduz para o portugus por espanto, admirao/espantar-se, admirar. Aquilo com que o espanto se espanta, aquilo que a admirao admira, o fato de as coisas serem como so, vale dizer, assim e no de outro modo, ou o fato de as coisas simplesmente serem, e no antes no serem. A filosofia a elaborao discursiva desse estado de esprito, e a prova de que o mito se move tambm no seu mbito que, como relato do vir-a-ser, do nascimento, de alguma coisa, se coloca numa posio entre o ser e o no-ser da coisa. Vem de Plato tambm a autoridade da posio que v a filosofia como uma atividade, diga-se, pattica, pelo timo grego, apaixonada, pelo timo latino (Dilogos. Teeteto,155 d 2-5):Mais do que de qualquer outro, do filsofo que prpria essa disposio de esprito: o espantar-se e admirar (thaumzein). No h outro princpio da filosofia seno esse. No foi mau genealogista o que disse que ris nasceu de Taumante.

Eis o acontecimento espiritual acima referido. Por um lado, ele pertence a todas as pocas e todos os lugares e nenhuma poca e nenhum lugar o tem previamente garantido, porque precisa acontecer sempre individualmente, por outro lado, ele pertence a uma histria bem determinada, com data e local de nascimento bem determinados, porque o individual de uma poca expresso de uma compreenso coletiva tcita, dada, em ltima instncia, pela unidade da lngua, matriz de todo pensamento. Dessa compreenso pode-se tirar algum elemento pico. Essa histria, por seu turno, tanto uma continuidade que dissolve qualquer eventual diferena entre oriental e ocidental, europeu e no-europeu, grego e brbaro, quanto uma descontinuidade, que ressalta essa diferena. O elemento de continuidade est no fato de as diferentes civilizaes que floresceram s margens do Mediterrneo, tecnicamente localizadas em continentes diferentes, sul Europa, norte da frica, Oriente Prximo, terem compartilhado desde o incio de um mesmo mundo histrico, ligado precisamente pelo mar, tornando-se completamente artificial qualquer repartio nesse domnio. A histria da Grcia, e da hegemonia grega, parte da histria da civili-

Introduo 19

Maler der Grabkammer des Sennudem - Detalhe de pintura mural no tmulo do funcionrio Sennedjem (XIX dinastia), c. 1200 a.C.

zao mediterrnea, qual pertencem tambm perodos de outras hegemonias. O mais antigo dessa histria aponta para uma regio a leste do Mediterrneo, um feixe que, do delta do Nilo, pelo rio Jordo, chega Mesopotmia (nome grego que significa entre rios), entre o Eufrates e o Tigre, conhecida como a regio do crescente frtil, onde primeiro surgiu a escrita (Sumria, depois Egito); e a escrita, sabe-se, o critrio para separar a pr-histria da histria. de se esperar que as conquistas daqueles que primeiro ingressaram no neoltico e depois no calcoltico, logo seduzam aqueles em estgios anteriores, aos quais esto ligados pelo comrcio de mercadorias, pelas trocas espirituais, pelas trocas de todas as ordens. Uns povos conquistam umas coisas, depois outros povos conquistam outras a partir do que herdaram do povo anterior. A rede de trocas caracterstica da poca inviabiliza qualquer tentativa de repartir esse mundo pelo vis tnico. Se h uma diferena digna de considerao, a patenteada por um mito arcaico dessa tradio: aps o dilvio, os filhos de No se dispersaram pelo mundo; Sem estabeleceu-se no Oriente Mdio e a ele se atribui o tronco lingstico semita, Cam foi para o norte da frica e tido como patrono do tronco camita, Jaf seguiu na direo da Europa e a ele est ligado o tronco indoeuropeu. Por um lado, cada tronco corresponde a uma experincia histrica irredutvel s correspondentes aos outros troncos. Por outro lado, a irreconstituvel lngua de No, hiptese em estado bruto, aponta para a unidade de uma mesma origem. Os descendentes de Jaf se dispersaram por outro feixe, da ndia Europa. Quando, na banda ocidental dessa faixa, as primeiras tribos que falavam uma lngua ancestral do grego comearam a chegar Pennsula Balcnica, por volta de 2.200 a.C. (e, vale lembrar, o escrito grego remanescente mais antigo precisamente a Ilada de Homero, de cerca de 800/750 a.C.), os povos da regio do crescente frtil j se constituam em reinos opulentos. J haviam inventado a escrita, registrado as observaes dos cus, condensado as lies das experincias dispersas nos mtodos sistemticos das artes e dos ofcios. Quando, ento, comeou a Grcia histrica, no sculo oitavo, os orientais j eram imprios senis. O que di-

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zer, ademais, da seguinte tentativa de datao: a filosofia comea no sculo sexto, dois sculos aps Homero, com Tales? Em que transformao deve consistir a filosofia, frente ao saber milenar acumulado no seio da civilizao mediterrnea, para que se diga que no surgiu antes? Os gregos, certamente, no descobriram ou inventaram a astronomia, a matemtica, e a maior parte dos conhecimentos positivos relativos aos diversos domnios da vida prtica. Muito antes que os gregos, os outros povos orientais elaboraram tambm vises da totalidade, discursos sobre a origem do mundo. A filosofia, se algo realmente mpar para se dizer que comea to tardiamente, deve consistir numa nova postura diante dos mesmos contedos e no um contedo novo. Parece que, para abordar a passagem em que consiste o nascimento da filosofia, melhor que o vis geogrfico, expresso na distino oriente-ocidente, aquele que prope outra distino, no menos problemtica, mas de outros problemas peculiares, a distino entre mito e razo. Nesse caso, pode-se admitir de quebra a hiptese de que os gregos foram os responsveis pela passagem da primeira para a segunda ou pode-se abrir mo dessa hiptese, importa pens-la enquanto tal. Talvez melhor seja dizer que, de um modo geral, os diferentes povos tm, nos primrdios de suas histrias, textos sagrados, religiosos, mticos, inclusive os gregos, e s posteriormente que desenvolvem outro discurso, prosaico, sobre a realidade. Tambm a ndia e a China conheceram uma espcie de histria da filosofia, de um discurso que j se pretendia diferente do mtico, e que se ramificava, pela polmica aberta, em correntes de todos os tipos. Mas isso no aconteceu antes da revoluo jnica (Confcio e Lao-Ts eram contemporneos aos pr-socrticos). Na verdade, deve-se pensar primeiro na diferena entre duas palavras gregas (note-se como esse discurso desde o incio eurocntrico), mthos e lgos, pois, ainda que traduzir a primeira por mito parea bvio, a traduo da segunda por razo, bem sabido, implica uma srie de decises nada bvias. Curioso que a primeira abordagem dessas duas palavras constate uma identidade e no uma diferena. Tanto uma quanto a outra significam palavra. Isso j mostra em que terreno deve ser pensado o nascimento da filosofia: o da linguagem. Trata-se de uma diferena de tipo de palavra. O que se pode dizer sobre isso?

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A palavra do mthos , antes de mais nada, eminentemente oral. Toda tradio escrita sobre ela j lhe alheia. A prpria mito-logia, na condio de registro da tradio oral, j a preparao da morte do mito pelo lgos. A escrita permite que se separe o contedo do discurso do seu proferimento efetivo. Alis, aqui est a chave da distino entre os dois tipos de palavra: separao. Isso porque, a rigor, a palavra mtica no pode ser separada no apenas da circunstncia efetiva de seu ecoar, de sua cerimnia, de seu ritual, mas tambm do canto que a embala, j que a palavra mtica cantada, bem como da dana, dos ps e do ritmo que embalam os que a cantam, pois tambm danada a palavra mtica. A palavra mtica concreta, no admite separaes, suas partes con-crescem, no se justapem, sobretudo a separao fatal entre a palavra significante e a coisa real significada. O advento paulatino do lgos coincide com um processo de paulatina separao, isto , abstrao. Separa-se a dana do canto, e, no canto, a letra da msica, e, na msica, a melodia do ritmo. Separa-se, na letra, seu significado e sua disposio formal em versos. Separa-se o dito do dizer, pela escrita, e separa-se o que se diz ou se escreve da realidade sobre a qual se diz ou se escreve, pela conscincia dessa separao. Assim, a palavra do lgos seria abstrata. No entanto, preciso ser mais cauteloso, pois a etimologia de lgos, antes de remeter para a experincia do discurso, remete para a experincia da reunio. E reunio , aparentemente, o contrrio de separao. Sim, mas de que reunio e de que separao se trata? Ora, para reunir o trigo em um silo, h de separ-lo antes do joio. E para reunir os indivduos de uma espcie, h de separar as espcies umas das outras. E exatamente isso o que a palavra faz: designa uma classe universal de coisas, rene em seu escaninho os exemplares particulares apropriados, e separa a classe como tal das demais classes. A palavra do lgos rene e separa no sentido de garantir a identidade consigo mesma de cada entidade e a sua diferena frente s demais, e por isso se encaminha para o princpio de no-contradio, segundo o qual o mesmo no pode subsistir e no subsistir no mesmo ao mesmo tempo quanto ao mesmo aspecto. J a palavra do mthos distingue as personagens de sua histria para reuni-las no fio da trama: se todos vm uns dos outros, ento todos j esto uns nos

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outros, por isso se encaminha mais para a experincia do que em latim se diz coincidentia oppositorum, coincidncia dos opostos. A palavra do mthos eficaz, isto , seu soar suficiente para que os acontecimentos que narra tenham existncia garantida. Sua autoridade advm de sua antigidade, do fato de que, nos primrdios, foi assim que se fez, e nos primrdios esto sempre as divindades, da se dizer que sua autoridade sempre de cunho religioso, da ser encargo de homens divinos: sacerdotes, poetas, reis. Para o homem da poca do mito, o mito a pura expresso da verdade, no metfora, no alegoria. No se o questiona, porque j se faz a experincia de sua verdade. Quando a ambincia do sagrado comea a se subtrair, comea-se tambm a pr em questo o significado do mito, e o mito comea a morrer em favor dessa crtica nascente. A palavra do lgos, por seu turno, no traz consigo a chave de sua verdade. Precisa conquist-la, precisa convencer, e, para isso, precisa argumentar de modo convincente. Por isso prerrogativa do plebeu bom orador mais do que de um rei que no saiba justificar-se ou de um poeta que s saiba recitar os mesmos versos segundo um mtodo previamente dado. Por no estar encerrada no contexto do ritual de seu proferimento, circula pelas praas pblicas, seculariza-se. Palavra categrica, seu lugar a gora, seu papel , na gora, diante dos olhos de todos, de dedo em riste, dizer na cara de cada coisa aquilo que ela . A verdade passa a ser a meta, e no o ponto de partida. Por si, o discurso no ainda verdadeiro nem falso, e, por isso, pode ser verdadeiro ou falso. Mas o trao mais importante da palavra mtica, que a liga de modo decisivo palavra da filosofia, ser narrao no de uma histria qualquer, mas de uma histria de origem, pela qual se conta como uma coisa, de seu no-ser anterior, passa a ser, o que revela que o ser das coisas incomoda e reclama uma fundamentao. Vale, a essa altura, registrar a tentativa de definio de mito de Mircea Eliade, especialista no assunto, em Mito e Realidade (1986, p.11):Seria difcil encontrar uma definio do mito que fosse aceita por todos os eruditos e, ao mesmo tempo, acessvel aos no-especialistas. Por outro lado, ser realmente possvel encontrar uma nica definio capaz de cobrir todos os tipos e todas as funes dos mitos, em todas as so-

Na palavra categoria est a palavra gora.

Introduo 23 ciedades arcaicas e tradicionais? O mito uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada atravs de perspectivas mltiplas e complementares. A definio que para mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, a seguinte: o mito conta uma histria sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princpio. Em outros termos, o mito narra como, graas s faanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espcie vegetal, um comportamento humano, uma instituio. sempre, portanto, a narrativa de uma criao: ele relata de que modo algo foi produzido ou comou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos so os Entes Sobrenaturais. Eles so conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso do primrdios. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a sobrenaturalidade) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramticas, irrupes do sagrado (ou do sobrenatural) no Mundo. essa irrupo do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que hoje. E mais: em razo das intervenes dos Entes Sobrenaturais que o homem o que hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. Teremos ocasio de ampliar e completar essas poucas indicaes preliminares, mas importante frisar, desde j, um fato que nos parece essencial: o mito considerado uma histria sagrada e, portanto, uma histria verdadeira, porque sempre se refere a realidades. O mito cosmognico verdadeiro porque a existncia do Mundo est a para prov-lo; o mito da origem da morte igualmente verdadeiro porque provado pela mortalidade do homem, e assim por diante.

A relao que h entre contar a histria da origem e definir a essncia (afinal, se nas peripcias da origem de um ser est outro ser, por exemplo, belicoso, ou amoroso, isso significa que aquele ser determinado de alguma maneira por guerra, ou amor, ento a origem mtica, apesar de permanecer atrelada temporalidade, supera o cronolgico e aponta para a essncia que o tempo todo enquanto o ser , e no apenas em seu incio), sobretudo quando a origem da totalidade o que est em questo, o que faz com que se veja muitas vezes a filosofia comear no mito, e o mito se

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prolongar pela histria da filosofia adentro. A Teogonia de Hesodo, por exemplo, ao apresentar a genealogia dos deuses, ao dizer quais nasceram primeiro e quais nasceram de quais na seqncia, no deixa de apresentar uma hierarquia ontolgica das potncias reais mais arquetpicas. Um enredo que comea com Caos, que tem nele, na Terra, no Trtaro, que o abismo ltimo do Hades, e Amor sua ttrade fundamental, e depois nas relaes entre Dia e Noite, entre Terra e Cu, j encerra uma filosofia. Por outro lado, os primeiros filsofos, depois, continuam falando da origem do mundo, do ksmos, isto , da ordem, a partir, portanto, da desordem; continuam falando da oposio entre um princpio amoroso de unio e constituio e um princpio de discrdia e dissoluo; e continuam a usar os nomes da mitologia para dizer isso. Muitos dos primeiros filsofos escrevem em versos. Plato, dois sculos depois de Tales, se vale freqentemente de mitos para expressar seus tpicos filosficos. Plato, alis, viveu no Egito durante um tempo e sempre manteve uma atitude de reverncia frente sabedoria dos brbaros. Durante o Helenismo, perodo posterior a Plato e Aristteles, no rastro do imprio alexandrino, todo voltado ao mundo civilizado de ento, para leste, para o oriente, o que se v um novo processo de assimilao mtua entre uma hipottica cultura dos gregos, e depois dos romanos, e uma hipottica cultura do seu oriental, em toda sua multiplicidade. Zeno de Ccio, fundador do estoicismo, era de ascendncia fencia. Pirro, o primeiro ctico, teria participado da expedio de Anaxarco e convivido com ginosofistas na ndia e com magos na Prsia. A matriz do hedonismo epicurista fora gestada em Cirene, na frica. No mdio helenismo, as cidades a Leste, Rodes, Prgamo, Alexandria, ascendem em detrimento de Atenas. E no helenismo tardio d-se a maior das assimilaes, o ocidente torna-se paulatinamente cristo, isto , o mundo pago, que define a antigidade, torna-se paulatinamente inseparvel de uma tradio oriental, a hebraica. A doravante tradio greco-romanahebraico-crist afirmar sua hegemonia no perodo que, por causa disso, ser distinto e designado de medieval.

Alexandre Magno e seu cavalo Bucfalo na Batalha de Issus Mosaico. Encontrado em Pompeia, na Itlia, hoje est no Museu Arqueolgico Nacional, em Npoles.

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No sculo II depois de Cristo, o doxgrafo Digenes Larcio deixou uma pequena compilao de opinies acerca do nascimento da filosofia. Seu testemunho no vale, do ponto de vista cientfico, como verdade primria, pois se aproxima mais de um relato mtico em tom cientfico, com estimativas fantasiosas, do que de uma descrio de fatos. Vale, entretanto, para ver, a cada vez que se diz que a filosofia comea aqui e no ali, o que se considera, a cada vez, filosofar. Sua posio, embora etnocntrica em favor dos gregos, se baseia na apresentao de Linos e Museu, bem antes de Tales, como iniciadores da filosofia, e d como prova o fato de filosofia ser uma palavra grega (DIGENES LARTIOS, 1988, I 1-4.):(1) Segundo alguns autores o estudo da filosofia comeou entre os brbaros. Esses autores sustentam que os persas tiveram seus Magos, os babilnios ou assrios seus Caldeus, e os indianos seus Ginosofistas; alm disso, entre os celtas e glatas encontram-se os chamados Druidas ou Venerveis, de acordo com o testemunho de Aristteles em sua obra O Mgico e de Soton no livro XXIII de sua obra Sucesses dos Filsofos. As mesmas autoridades dizem que Mocos era fencio, Zmolxis era trcio e Atlas era lbio. Para os egpcios, Hfaistos era filho do Nilo, e com ele comeou a filosofia, sendo os sacerdotes e profetas seus principais expoentes. Hfaistos teria vivido 48.863 anos antes de Alexandre, o Macednio; (2) Nesse intervalo ocorreram 373 eclipses do sol e 832 eclipses da lua. Quanto aos Magos, sua atividade teve incio com Zoroastros, o Persa, 5.000 anos antes da queda de Tria, de conformidade com o platnico Hermdoros em sua obra Da Matemtica; entretanto o ldio Xantos calcula o decurso de 6.000 anos entre a poca de Zoroastros e a expedio de Xerxes, e aps Zoroastros ele enumera uma longa sucesso de Magos, cujos nomes seriam Ostanas, Astrmpsicos, Gobrias e Pasatas, at a conquista da Prsia por Alexandre, o Grande. (3) Esses autores ignoram que os feitos atribudos aos brbaros pertencem aos helenos, com os quais no somente a filosofia, mas a prpria raa humana comeou por exemplo, os atenienses reivindicam para a sua cidade a condio de ptria de Musaios, e os tebanos fazem o mesmo em relao a Linos. Dizia-se que Musaios, filho de umolpos, foi o primeiro a compor uma Teogonia e uma Esfera, e sustentou que todas as coisas procediam da unidade e revertiam a ela. Musaios teria morrido em Fleron, e seu epitfio era o seguinte:

Falero um bairro de Atenas.

26 Histria da Filosofia I Aqui no cho de Fleron jaz o cadver de Musaios, filho querido de umolpos. Os Eumlpidas de Atenas tiraram o seu nome do pai de Musaios. (4) Dizia-se que Linos era filho de Hermes e da Musa Urania e que teria composto um poema sobre a cosmogonia, o curso do sol e da lua e a gnese dos animais e das plantas; o incio desse poema o seguinte: Houve um tempo em que todas as coisas cresciam juntas. Anaxagoras aproveitou essa idia quando disse que todas as coisas eram originariamente indistintas, at que veio o Esprito e as organizou. Linos morreu em uboia, atingido por uma flecha de Apolo, e seu epitfio o seguinte: Este cho recebeu o tebano Lino morto, filho da Musa Urania belamente coroada. Assim comeou a filosofia com os helenos, e seu prprio nome nada tem a ver com a maneira brbara de expressar-se.

Apesar de essa mixrdia tnica, em que se constitui a categoria gregos, sequer poder ser dita autctone para poder pretender ser precursora da humanidade, o etnocentrismo no est nesse equvoco. Est em que, mesmo para expressar o que seria o outro, o no-grego, com os quais, pela autoridade de certas verses, a filosofia tambm poderia ter comeado, usa-se palavras gregas e no das lnguas dos outros: mago/magia, ginosofistas (sbios nus), Hefesto... E o mais curioso: se algum quisesse proceder ento a uma pesquisa objetiva, criteriosa, rigorosa, cientfica dos orientais, munindo-se de todas as ferramentas, inclusive o conhecimento terico das lnguas implicadas, a ento que estaria sendo maximamente ocidental e eurocntrico, pela afirmao do ideal de objetividade, que, em si, no deixa de ser uma crena subjetiva, precisamente a crena do Ocidente. O importante do relato de Digenes Larcio o seguinte: algum que comps uma Teogonia e uma Esfera j pode ser considerado filsofo. Compor uma Teogonia, como Hesodo fez de fato por volta de 700 a.C., significa organizar uma hierarquia das principais

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potncias do ser pelo vis temporal, sugerindo uma rede mltipla ligada pelo nexo causal j que um ente gerar outro ente equivale a ser sua causa a partir da unidade. Compor uma Esfera, por sua vez, significa organizar o universo espacialmente, dispondo num todo harmnico as diferentes esferas particulares: das estrelas fixas, de cada planeta, a esfera da terra parada ao centro/fundo. Em ambos os casos, o ponto principal a unidade, a origem como organizao de multiplicidade em totalidade harmnica. Por isso tambm j pode ser considerado filsofo aquele que diz houve um tempo em que todas as coisas cresciam juntas, ainda que seu enunciado permanea na forma clssica do mito: era uma vez.... E, como os sacerdotes, os magos, os drudas, os ginosofistas, de algum modo, se relacionam com a origem, a unidade, a totalidade e a ordem dessa totalidade, tambm se diz que a filosofia comeou com eles. As descries resumidas que Digenes apresenta desses sbios orientais, ainda que muitas vezes permitam classific-los como religiosos antes que filsofos, trazem j traos marcantes dos filsofos que se seguiro na Grcia: o ascetismo, a crena na imortalidade da alma e na metempsicose, o dualismo, o animismo... Pode-se at estabelecer um paralelo entre os tipos representados pelos primeiros filsofos gregos e aqueles encarnados pelas principais tradies orientais. Pitgoras, ao postular, aqum da oposio entre a mnada mpar e a dade par, uma mnada que mpar e par ao mesmo tempo, perfila-se como sbio chins. Parmnides, ao afirmar a unidade absoluta e negar o movimento, o vir-a-ser e a multiplicidade, comporta-se como um indiano que renuncia aparncia do vu de Maia dos fenmenos sensveis e dizveis, em favor de uma experincia da unidade inefvel. Herclito, ao conceber o ser como devir, e este como combate de foras opostas, parece seguir o dualismo dos persas. A doutrina dos quatro elementos materiais e dos dois princpios eficientes, o de unio e gerao e o de repulsa e morte, liga Empdocles aos egpcios. Anaxgoras, ao conceber que uma nica coisa estava separada da mistura original, o Intelecto, e que ela causa da ordem que sobreveio, se aproxima dos judeus. Os primeiros filsofos gregos, os primeiros ocidentais do Oriente, permanecem, para o olhar dos psteros, os orientais do Ocidente. A razo que propugnam, vale dizer, o lgos, no ainda

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como o lgos que comea com Scrates, Plato e Aristteles por isso os primeiros filsofos so chamados de pr-socrticos, de prplatnicos, de pr-aristotlicos , este sim pensvel a partir da raiz da traduo latina de lgos, ratio, que significa primeiramente conta, clculo, aquilo que se faz na ao de contar, de retirar os palitos de fsforo da caixa e enfileir-los um a um sobre a mesa. A razo dos primeiros filsofos, chamados na prpria antigidade de fsicos ou fisilogos, porque pretendiam falar, antes de tudo, da phsis, da natureza, aponta mais para a coincidentia oppositorum do mito, que para o princpio de no-contradio da filosofia socrtico-platnico-aristotlica. Isso porque sua preocupao maior com a origem comum de todas as coisas, instncia em que todas so a mesma coisa, e no com o princpio que separa e distingue cada coisa das demais. claro que a instncia da ordem, da diferena, to fundamental para os pr-socrticos quanto outra, mas a essncia inexorvel, qual, ocorra o que ocorrer, todas as coisas devero fatalmente retornar a sua fonte, que no uma coisa ao lado de outras coisas, no um indivduo ao lado de outros indivduos. Mas a histria prossegue, e, enquanto se estiver sob a vigncia do princpio espiritual desse mundo pago, em que a filosofia uma necessidade, se diz estar na Antigidade. claro que o mundo cristo que emergir na seqncia, causa e efeito do declnio do mundo pago, ter sua filosofia prpria e ser mesmo o guardio da tradio que ajudou a matar. Mas isso mais porque o germe do cristianismo frutificou em solo helenstico e se viu na obrigao de prestar contas desde o incio razo. Enfim, para efeitos puramente didticos, escolhe-se duas datas emblemticas daquilo que na verdade so processos muito lentos, cujas razes comeam muito antes e cujas conseqncias se estendem at muito depois, para balizar a histria da filosofia antiga, para determin-la como um perodo com comeo e fim. Essas datas so: o ano de 585 a.C., quando ocorreu um eclipse previsto por Tales de Mileto, o primeiro filsofo, e o ano de 529 d.C., quando, aps um longo perodo de expanso paulatina do cristianismo e outras seitas orientais e do correlato declnio da civilizao helenstica, sustentada quela altura pelo imprio romano, o ensino da filosofia pag, que ainda ocorria em Atenas, proibido pelo prprio imperador (da parte oriental), Justiniano.

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Esse milnio de histria, por sua vez, deve ser tambm subdividido para efeitos didticos e com as mesmas ressalvas. O seu primeiro perodo o chamado pr-socrtico, que vai de Tales a Demcrito, que, alis, era mais jovem que Scrates, mas pensava como os de antes. Para os filsofos desse perodo, trata-se acima de tudo de falar sobre a phsis, traduzida, na medida do possvel, por natureza: a obra-prima de cada um deles se intitula Per Phseos, Acerca da Natureza. O segundo perodo, obviamente, como o prprio nome do anterior indica, deve comear com Scrates. Scrates, no entanto, deve ser pensado como figura possvel somente no bojo do movimento sofstico, o qual, por sua vez, uma reao ao pensamento pr-socrtico, que ora o nega, ora o radicaliza at as conseqncias mais paradoxais. Os sofistas inauguram um perodo antropolgico, por oposio ao fsico anterior, um perodo em que pesava exatamente a diferena entre phsis e nmos, natureza e lei (conveno), a irredutibilidade da segunda que o que importa em se tratando de fazer poltica primeira, de quem os primeiros filsofos esperavam que emanassem as leis. Scrates consiste numa guinada descontnua sobre o fio de continuidade da sofstica, assim como a filosofia platnica o em relao a Scrates, e a aristotlica, frente a Plato, pois a sofstica continuou para alm de Scrates, e o socratismo, para alm de Plato (h vrias outras escolas socrticas, contemporneas da Academia, ditas, em funo da preferncia por Plato e Aristteles, socrticas-menores, germes de todas as escolas do perodo helenstico imediatamente posterior a Aristteles), e o platonismo continuou para alm de Aristteles (a Academia continua existindo paralelamente ao Liceu de Aristteles por sculos, e determinou boa parte do pensamento antigo em sua fase final). Pode-se ento reunir os sofistas, Scrates, Plato e Aristteles num nico perodo, que a rigor deve ser subdivido em quatro para resguardar todas as diferenas, como os pr-socrticos tambm se subdividem em os do sculo sexto e os do quinto, e os da Jnia e os da Itlia. Um terceiro perodo, que compreende toda a filosofia aps Aristteles at o final da Antigidade, o helenstico. Helenismo tambm um termo que fala por si: o -ismo do heleno, que s pode ocorrer num momento maduro e senil da civilizao gre-

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ga. No rastro do imprio de Alexandre, Grcia se torna o nome de uma vasta regio do ento mundo civilizado. Esses tempos so bem diferentes daqueles da cidade-estado clssica, e lhes correspondem as filosofias prprias. O helenismo deve ser subdividido imediatamente em perodo alexandrino e perodo romano, este a partir da conquista romana das regies do imprio alexandrino, que foi paulatina (Corinto cai em 146, o Egito em 59 a.C.). O primeiro helenismo, ainda criado em Atenas, herdeiro das escolas socrticas menores, que corriam paralelamente a Plato e Aristteles, estes, presumivelmente pela nomenclatura, socrticos maiores. Zeno de Ccio, fundador do estoicismo, fora discpulo do cnico Crates, e dos cnicos a tese mestra da tica estica: a virtude o sumo bem que garante a felicidade; Epicuro liga-se escola cirenaica pela tica hedonista; o ctico Pirro, aos megricos, suas antteses e refutaes. Mas no s o socratismo de esticos, epicuristas e cticos era diferente do socratismo de Plato e Aristteles. Suas fsicas, em oposio quelas que viriam a se chamar metafsicas, eram tributrias dos velhos pr-socrticos: Epicuro abraa o atomismo de Demcrito via Nausfanes; os esticos reinterpretam o fogo e o lgos de Herclito; os cticos, que no tm fsica, levam s ltimas conseqncias as aporias da dialtica desde os eleatas. As cinco escolas, ou melhor, tradies (os cticos no formam uma escola) de ento: a acadmica e a peripattica, fundadas por Plato e Aristteles ainda no perodo clssico, mais a epicurista, a estica e a ctica, fundadas no helenismo (porque marcos dele), e que a rigor duraro at o final da Antigidade devidamente metamorfoseados, e para alm delas at os dias de hoje tanto que se est falando delas agora conhecero um perodo mdio, marcado pela ascenso de outros centros a Leste em detrimento de Atenas: Rodes, Prgamo, Alexandria. Muitos dos principais representantes das cinco tradies floresceram em algumas dessas cidades. Finalmente, todas conhecero um perodo romano e a filosofia falar latim atravs de representantes de alguma dessas tradies ou da fuso delas. Com a crise do imprio romano e a ascenso do cristianismo e outras seitas orientais, as posies materialistas do primeiro helenismo cedem lugar a uma preocupao com as questes abertas pelo esprito religioso da poca. Mesmo os filsofos no-cristos

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so de um paganismo religioso ou mstico. compreensvel que se visse agora de novo no platonismo, e no nas filosofias que se afirmaram ao exatamente se opor a ele, a chave para uma sempre desejada explicao racional para os dogmas revelados ento estimados. Afinal, em Plato se encontra a separao de corpo e alma, a idia de que o mundo produto da providncia divina, de que o fundamento supremo o bem, o princpio de no-contradio... Aristteles, pelas mesmas razes, poderia cumprir esse papel, mas, nos movimentos pendulares da histria, prevalecer sobre Plato s na fase medieval da histria da filosofia crist. Por isso, no final da antigidade, a distino entre os filsofos se dava pelo carter, cristo ou pago, grego ou latino, de seu (neo)platonismo. E, se a Escolstica medieval levantou seu Aristteles contra o Plato da Patrstica antiga, o Renascimento tambm sacar seu Plato matemtico contra o Aristteles cristianizado dos anteriores. E as outras tradies pags retornaro lia, no bojo da secularizao moderna, e a memria dessa tradio grega-europia-ocidental conserva-se e transforma-se, melhor, conserva-se nessa transformao. Assim, seria um bom esquema de curso de histria da filosofia antiga o seguinte: 1. a filosofia pr-socrtica; 2. os sofistas e Scrates; 3. a metafsica clssica (socrticos maiores: Plato e Aristteles); 4. as filosofias do helenismo (estoicismo, epicurismo, ceticismo); 5. o neoplatonismo.

Captulo 1 A filosofia pr-socrticaNeste primeiro captulo, voc ser capaz de caracterizar filosoficamente o prvio do perodo pr-socrtico, como anterioridade axiolgica frente medida de um socrtico em filosofia, e no como simples anterioridade cronolgica em relao ao indivduo Scrates, sem que esta anterioridade signifique de sada necessariamente progresso ou declnio, por poder ser visto, conforme o enfoque a cada vez da interpretao, como uma coisa ou outra. A voc, ser apresentado um resumo de cada um dos principais representantes da filosofia pr-socrtica (filsofo ou escola), segundo um critrio conceitual ou doutrinrio: Tales e Anaximandro (monistas) por oposio ao dualismo dos pitagricos e aos pluralistas Empdocles e Anaxgoras; os eleatas Parmnides e Zeno sob a gide da doutrina imobilista, por oposio ao mobilismo de Herclito; o atomismo mecanicista de Demcrito frente ao vitalismo dos demais fisilogos.

A filosofia pr-socrtica 35

1 A filosofia pr-socrticaA primeira coisa a se dizer sobre os pr-socrticos em que, afinal, se diferenciam de Scrates, a ponto de essa diferena ser um marco divisor de pocas e vir estampada no prprio nome da coisa. Em que consiste a anterioridade do pr-? No se trata, certamente, de incipincia qualitativa nem, somente, de anterioridade cronolgica. Alis, s muito tarde na histria os filsofos em questo passaram a ser designados como os anteriores de outros filsofos, tomados como medida. O ttulo pr-socrticos surgiu h pouco mais de um sculo, com Diels. Antes dele, Nietzsche chamara-os de pr-platnicos, incluindo Scrates, e, antes ainda, Hegel, de pr-aristotlicos, incluindo Plato. Esses ttulos falam mais de quanto que Scrates, Plato e Aristteles so paradigmticos para a conscincia histrica do homem do sculo XIX do que sobre os filsofos em questo. A diferena, porm, era apontada pelos prprios antigos com veemncia e designada positivamente: Plato falava daqueles que se ocupavam com a histora ts phseos, investigao da natureza , Aristteles falava dos fsicos ou fisilogos, em sentido grego, como os que discursam sobre a phsis, a natureza. Como ilustrao da conscincia dessa diferena, vale tomar o depoimento do Scrates platnico do Fdon sobre os filsofos a ele anteriores (96e-99d. Traduo: Jorge Paleikat e Joo Cruz Costa, So Paulo: Abril, 1972):

36 Histria da Filosofia I A esta altura fez Scrates uma longa pausa, absorto em alguma reflexo. Depois disse No coisa sem importncia, Cebes, o que procuras. A causa da gerao e corrupo de todas as coisas, tal a questo que devemos examinar com cuidado. Se o desejares, poderei relatar-te detalhadamente as minhas experincias a esse respeito. E, se vires que uma ou outra coisa do que eu disser til, aproveita-a para reforar tua tese. Sim, disse Cebes, justamente o que eu quero. Escuta, ento, o que vou contar: em minha mocidade senti-me apaixonado por esse gnero de estudos a que do o nome de exame da natureza; parecia-me admirvel, com efeito, conhecer as causas de tudo, saber por que tudo vem existncia, por que perece, por que existe. Muitas vezes detive-me seriamente a examinar questes como essa: se, como alguns pretendem, os seres vivos se originam de uma putrefao em que tomam parte o frio e o calor; se o sangue que nos faz pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim o prprio crebro, que nos d as sensaes de ouvir, ver e cheirar, das quais resultariam por sua vez a memria e a opinio, ao passo que destas, quando adquirem estabilidade, nasceria o conhecimento. Examinei, inversamente, a maneira como tudo isso se corrompe, e, tambm os fenmenos que se passam na abbada celeste e na terra. E acabei por me convencer de que em face dessas pesquisas eu era duma inaptido notvel! Vou contar-te uma ocorrncia que bem esclarece minha situao naquele tempo. Havia coisas acerca das quais eu antes possua um conhecimento certo, ao menos na minha opinio, e na dos outros. Pois bem, essa espcie de estudo chegou a produzir em mim uma tal cegueira que desaprendi at aquelas coisas que antes eu imaginava saber, como, por exemplo, o conhecimento que eu julgava ter das causas que determinam o crescimento do homem! Outrora eu acreditava, como claro para todos, que isso acontece em funo do comer e do beber: adicionando, pelos alimentos, carne a carne, ossos a ossos, e em geral substncia semelhante a substncia semelhante, acontece que o volume, antes pequeno, aumenta, e, assim, o homem pequeno se torna grande. Desse modo, pensava eu naquela poca. No achas tu que isso era razovel? Pelo que me parece, sim, respondeu Cebes. Mas repara no seguinte: naquele tempo eu tambm achava razovel pensar que quando um homem grande visto ao lado de um pequeno, ele de uma cabea maior do que o pequeno, e, da mesma forma, um cavalo maior do que outro. E o que mais evidente: o nmero dez me parecia maior do que o nmero oito, precisamente por causa do acrscimo de dois, e o tamanho de dois cvados me parecia ser maior do que o de um cvado por este ser a metade daquele. E agora, perguntou Cebes, qual tua opinio a esse respeito? Por Zeus, atualmente

A filosofia pr-socrtica 37 estou muito longe de saber a causa de qualquer dessas coisas! No sei resolver nem sequer se quando se adiciona uma unidade a outra, a unidade qual foi acrescentada a primeira torna-se duas, ou se a acrescentada e a outra que assim se tornam duas pelo ato de adio. Fico admirado! Quando as duas unidades estavam separadas uma da outra, esse encontro tornou-se a causa da formao do dois. Tambm no entendo por que motivo, quando algum divide uma unidade, esse ato de diviso faz com que esta coisa que era uma se transforme pela separao em duas! Essa coisa que produz duas unidades contrria outra: antes se acrescentou uma coisa outra, agora se afasta e separa-se uma da outra. Nem sequer sei por que um um! Enfim, e para dizer tudo, no sei absolutamente como qualquer coisa tem origem, desaparece ou existe, segundo este procedimento metodolgico. Escolhi ento outro mtodo, pois, de qualquer modo, este no me serve. Ora, certo dia ouvi algum que lia um livro de Anaxgoras. Dizia este que o esprito (o nos: o intelecto, a inteligncia) o ordenador e a causa de todas as coisas. Isso me causou alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto, vantagem em considerar o esprito como causa universal. Se assim , pensei eu, a inteligncia ou esprito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor forma. Desse modo se algum desejar encontrar a causa de cada coisa, segundo a qual nasce, perece ou existe, deve encontrar, a respeito, qual a melhor maneira seja de ela existir, seja de sofrer ou produzir qualquer ao. E pareceu-me ainda que a nica coisa que o homem deve procurar aquilo que melhor e mais perfeito, porque desde que ele tenha encontrado isso, necessariamente ter encontrado o que o pior, visto que so objetos da mesma cincia. Pensando desta forma, exultei acreditando haver encontrado em Anaxgoras o explicador da causa, inteligvel para mim, de tudo que existe. Esperava que ele iria dizer-me, primeiro, se a terra plana ou redonda, e, depois de o ter dito, que explicao acrescentasse a causa e a necessidade desse fato, mostrando-me ainda assim como ela a melhor. Esperava tambm que ele, dizendo-me que a terra se encontra no centro do universo, ajuntasse que, se assim , porque melhor para ela estar no centro. Se me explicasse tudo isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer desejaria tomar conhecimento de outra espcie de causas. Naturalmente, a propsito do sol eu estava pronto tambm a receber a mesma espcie de explicao, e da mesma forma para a lua e os outros astros, assim como tambm a respeito de suas velocidades relativas como de suas revolues e de outros movimentos que lhes so prprios. Nunca supus que, depois de ele haver dito que o Esprito os havia ordenado, ele pudesse dar-me outra causa alm dessa que a melhor e que a que serve a cada uma

38 Histria da Filosofia I em particular assim como em conjunto. Grandes eram minhas esperanas! Pus-me logo a ler, com muita ateno e entusiasmo os seus livros. Lia o mais depressa que podia a fim de conhecer o que era o melhor e o pior. Mas, meu grande amigo, bem depressa essa maravilhosa esperana se afastava de mim! medida que avanava e ia estudando mais e mais, notava que esse homem no fazia nenhum uso do esprito nem lhe atribua papel algum como causa na ordem do universo, indo buscar tal causalidade no ter, no ar, na gua, em muitas outras coisas absurdas! Parecia-me que ele se portava como um homem que dissesse que Scrates faz tudo o que faz porque age com seu esprito; mas que, em seguida, ao tentar descobrir as causas de tudo o que fao, dissesse que me acho sentado aqui porque meu corpo formado de ossos e tendes, e os ossos so slidos e separados uns dos outros por articulaes, e os tendes contraem e distendem os membros, e os msculos circundam os ossos com as carnes, e a pele a tudo envolve! Articulando-se os ossos em suas articulaes, e estendendo-se e contraindo-se, sou capaz de flexionar os meus membros, e por esse motivo que estou sentado aqui, com os membros dobrados. Tal homem diria coisas mais ou menos semelhantes a propsito de nossa conversa, e assim que consideraria como causas dela a voz, o ar, o ouvido e muitas outras coisas, mas, em realidade, jamais diria quais so as verdadeiras causas disso tudo: estou aqui porque os atenienses julgaram melhor condenar-me morte, e por isso pareceu-me melhor ficar aqui, e mais justo aceitar a punio por eles decretada. Pelo Co. Estou convencido de que estes tendes e estes ossos j poderiam h muito tempo se encontrar perto de Mgara ou entre os becios, para onde os teria levado uma certa concepo do melhor, se no me tivesse parecido mais justo e mais belo preferir a fuga e a evaso aceitao, devida cidade, da pena que ela me prescreveu! Dar o nome de causas a tais coisas seria ridculo. Que se diga que sem ossos, sem msculos e outras coisas eu no poderia fazer o que me parece, isso certo. Mas dizer que por causa disso que realizo as minhas aes e no pela escolha que fao do melhor e com inteligncia, essa uma afirmao absurda. Isso importaria, nada mais nada menos, em no distinguir duas coisas bem distintas, e em no ver que uma coisa a verdadeira causa e outra aquilo sem o que a causa nunca seria causa. Todavia, a isso que aqueles que erram nas trevas, segundo me parece, do o nome de causa, usando impropriamente o termo. O resultado que um deles, tendo envolvido a terra num turbilho, pretende que seja o cu que a mantm em equilbrio, ao passo que para outro ela no passa duma espcie de gamela, qual o ar serve de base e de suporte. Mas quanto fora, que a disps para que essa fosse a

A filosofia pr-socrtica 39 melhor posio, essa fora ningum a procura; e nem pensam que ela deva ser uma potncia divina. Acreditam, ao contrrio, haver descoberto um Atlas mais forte, mais imortal e mais garantidor da existncia do universo do que esse esprito; recusam-se a aceitar que efetivamente o bom e o conveniente (t den: o devido, o dever) formem e conservem todas as coisas. Ardentemente desejaria eu encontrar algum que me ensinasse o que tal causa! No me foi possvel, porm, adquirir esse conhecimento ento, pois nem eu mesmo o encontrei, nem o recebi de pessoa alguma.

Atlas: deus da mitologia que sustentou o mundo nos ombros.

Esse relato, que, segundo alguns intrpretes, seria uma descrio da prpria experincia do jovem Plato colocada na boca de Scrates, dentre outros motivos por concluir com um reconhecimento de ignorncia, , em todo caso, legitimamente socrtico. O que a personagem Scrates continua a dizer no Fdon, pela carga dogmtica, deve j ser o Plato maduro falando sozinho. Mas esse dogma ser abordado na parte relativa a Plato. Por ora, interessa falar dos socrticos somente para entender por que os outros so seu pr-. A esse ttulo, vale registrar que o procedimento reclamado no Fdon para quem pretenda responder questo sobre a causa da gerao e corrupo de todas as coisas ser posto em prtica pelo Plato velho, menos dogmtico e mais pr-socrtico do que nunca, no Timeu, que, embora seja uma sntese da viso cosmolgica dos antigos coligida desde os pr-socrticos, quase todos referidos veladamente, mostra como at na velhice Plato permaneceu ligado ao ponto doutrinal que exatamente lhe valia como o distintivo de sua doutrina. As pginas seguintes so clebres (Timeu, 1988, 27e-34b):TIMEU: A meu parecer, ser preciso, de incio, distinguir o seguinte. Em que consiste o que sempre existiu e nunca teve princpio? E em que consiste o que devm e nunca ? O primeiro apreendido com o entendimento com a ajuda da razo, por ser sempre igual a si mesmo, enquanto o outro o pela opinio, secundada pela sensao carecente de razo, porque a todo instante nasce e perece, sem nunca ser verdadeiramente. E agora: tudo o que nasce ou devm procede necessariamente de uma causa, porque nada pode originar-se sem causa. Quando o artista trabalha em sua obra, a vista dirigida para o que sempre se conserva igual a si mesmo, e lhe transmite a forma e a virtude desse modelo, natural que seja belo tudo o que ele realiza. Porm, se ele se fixa no que devm e toma como modelo algo sujeito ao nascimento, nada belo poder criar.

40 Histria da Filosofia I Quanto ao cu em universal ou mundo ou, se preferirem outro nome mais apropriado, confiramos-lhe esse mesmo no que lhe diz respeito, antes de mais nada devemos considerar o que importa levar em conta no incio de qualquer estudo: se sempre existiu e nunca teve princpio de nascimento, ou nasceu nalgum momento e teve comeo? Nasceu, pois visvel, tocvel e dotado de corpo, coisas sensveis todas elas. Ora, conforme j vimos, tudo o que sensvel e pode ser apreendido pela opinio com ajuda da sensao est sujeito ao devir e ao nascimento. Afirmamos, ainda, que tudo o que devm s nasce por efeito de alguma causa. Mas quanto ao autor e pai deste universo tarefa difcil encontrlo e, uma vez encontrado, impossvel indicar o que seja. Outro ponto que precisamos deixar claro saber qual dos dois modelos tinha em vista o arquiteto quando o construiu: o imutvel e sempre igual a si mesmo ou o que est sujeito ao nascimento? Ora, se este mundo belo e for bom o seu construtor, sem dvida nenhuma este fixara a vista no modelo eterno; e se for o que nem se poder mencionar, no modelo sujeito ao nascimento. Mas, para todos ns, mais do que claro que ele tinha em mira o paradigma eterno; entre as coisas nascidas no h o que seja mais belo do que o mundo, sendo seu autor a melhor das causas. Logo, se foi produzido dessa maneira, ter de ser apreendido pela razo e inteligncia e segundo o modelo sempre idntico a si mesmo. Nessas condies, necessariamente o mundo ter de ser a imagem de alguma coisa. Em tudo o mais importante partir de um comeo natural. Por isso, em se tratando de uma imagem e seu modelo antes de mais nada precisamos distinguir o seguinte: as palavras so da mesma ordem das coisas que elas exprimem; quando expressam o que estvel e fixo e visvel com a ajuda da inteligncia, elas tambm sero fixas e inalterveis, tanto quanto possvel e o permite sua natureza serem irrefutveis e inabalveis, nem mais nem menos. Mas, se apenas exprimem o que foi copiado do modelo, ou seja, uma simples imagem, tero de ser to somente parecidas, para ficarem em proporo com o objeto; o que a essncia para o devir, a verdade para a crena. Por esse motivo, Scrates, se sob vrios aspectos, acerca de muitas questes os deuses e a gnese do mundo no nos for possvel formular uma explicao exata em todas as mincias e coerente consigo mesma, sem a mnima discrepncia, no tens que admirar-te. Dar-nos-emos por satisfeitos se a nossa no for menos plausvel do que as demais, sem nos esquecermos de que tanto eu, o expositor, como vs outros, meus juzes, participamos da natureza humana, razo de sobra para aceitarmos, em semelhante assunto, o mito mais verossmil, sem pretendermos ultrapassar seus limites.

A filosofia pr-socrtica 41 SCRATES: timo, meu caro Timeu; faremos exatamente como sugeriste. Ouvimos teu preldio com a maior admirao; agora prossegue no mesmo tom e pe remate em tua cano. TIMEU: Ento, digamos por que razo o que formou o universo e tudo o que devm o formou. Ele era bom; ora, no que bom jamais poder entrar inveja seja do que for. Estreme, assim, de inveja, quis que, na medida do possvel, todas as coisas fossem semelhantes a ele. Podemos admitir com a maior segurana a opinio dos homens sensatos de que esse o princpio mais eficiente do devir e da ordem do mundo. Desejando a divindade que tudo fosse bom e, tanto quanto possvel, estreme de defeitos, tomou o conjunto das coisas visveis nunca em repouso, mas movimentando-se discordante e desordenadamente e f-lo passar da desordem para a ordem, por estar convencido de que esta em tudo superior quela. No era nem nunca foi possvel que o melhor pudesse fazer uma coisa que no fosse a mais bela de todas. Depois de madura reflexo, concluiu que das coisas visveis por natureza jamais poderia sair um todo privado de inteligncia mais belo do que um todo inteligente, e tambm: que em nenhum ser pode haver inteligncia sem alma. Com base nesse raciocnio, ps a inteligncia na alma e a alma no corpo, e construiu o universo segundo tal critrio, com o propsito de levar a cabo uma obra que fosse, por natureza, a mais bela e perfeita que se poderia imaginar. Desse princpio de verossimilhana pode-se concluir que o mundo, esse animal dotado de alma e de razo, foi formado pela providncia divina. Assentado esse ponto, precisaremos determinar, ainda, semelhana de que ser vivo seu coordenador o fez. No atribuamos to grande privilgio a nada que for naturalmente composto de partes; jamais ser belo o que se parece com um ser incompleto. O que abrange todos os animais individualmente considerados ou por gneros: com isso, podemos afirmar, que o mundo, acima de tudo, se parece, pois compreende e inclui em si mesmo os animais inteligveis, da mesma forma que esse mundo contm a todos ns e a todas as criaturas formadas como coisas visveis. Porque a divindade, desejando emprestar ao mundo a mais completa semelhana com o ser inteligvel, mais belo e mais perfeito em tudo, formou-o maneira de um s animal visvel que em si prprio encerre todos os seres vivos aparentados por natureza. Mais, estaramos certos, quando nos referimos a um cu, apenas, ou ser mais de acordo com a verdade falar de muitos cus, e at mesmo de um nmero infinito? S haver um, se ele foi construdo de acordo com o seu modelo, pois o que abrange todos os seres inteligveis, jamais poder coexistir tendo um segundo ao seu lado; de outra

42 Histria da Filosofia I forma, fora preciso admitir mais outro ser vivo que abrangesse os dois e do qual eles seriam partes, no sendo lcito, ento, dizer que nosso mundo fora feito semelhana daqueles, mas com muito mais visos de verdade a deste outro, que os abrange. Logo, para que o mundo, na sua unicidade, se assemelhasse ao ser vivo perfeito, seu autor no fez nem dois nem um nmero infinito de mundos; este cu um s e nico; assim foi feito e assim sempre ser. Ora, tudo o que foi feito ter de ser corporal, visvel e tangvel; porm sem fogo nada seria visvel, nem tangvel sem alguma coisa slida, e nem slida se carecer de terra. Por isso mesmo, quando a divindade principiou a formar o corpo do universo, recorreu primeiro ao fogo e terra. Mas no possvel ligar bem duas coisas sem o auxlio de uma terceira, pois sempre ter de haver entre elas um lao de unio. Porm, de todos os laos o melhor o que por si mesmo e com os elementos conectados constitui uma unidade no sentido amplo da expresso, sendo que faz parte da natureza da proporo geomtrica progressiva conseguir esse resultado de maneira perfeita. Sempre que de trs nmeros, slidos ou quadrados, o primeiro est para o mediano como o mediano para o ltimo; ou o inverso: o ltimo est para o mediano como o mediano est para o primeiro, de tal forma que o mediano se torne, alternadamente, primeiro ou ltimo, e o primeiro e o ltimo, por sua vez, fiquem medianos, segue-se, de necessidade, que todos os termos sero os mesmos, e sendo os mesmos em suas relaes recprocas, formaro, em conjunto, uma unidade. Ora, se um corpo do universo apresentasse apenas uma superfcie plana, sem profundidade, bastaria um meio para ligar seus dois termos com ele mesmo; mas, como o mundo tinha de ser slido, e como os slidos so ligados sempre por duas mediedades, no por uma, a divindade ps a gua e o ar entre o fogo e a terra, deixando-os, tanto quanto possvel, reciprocamente proporcionais, de tal maneira que o que o fogo para o ar, o ar fosse para a gua, e o que o ar para a gua, a gua fosse para a terra, com o que ligou e comps a estrutura do cu visvel e tangvel. A esse modo, e com tais elementos, em nmero de quatro, foi formado o corpo do mundo e harmonizado pela proporo, da qual recebeu a amizade, de tal maneira que adquiriu unidade consigo mesmo, tornando-se, assim, incapaz de ser dissolvido, a no ser por seu prprio construtor. A estrutura do mundo absorveu tudo o que havia desses quatro elementos; seu autor incluiu nele todo fogo e toda a gua e todo ar e toda terra, sem deixar de fora nenhuma poro da fora de qualquer desses elementos, por haver determinado, primeiro, formar um animal de conjunto to perfeito quanto possvel e construdo de partes perfeitas, e tambm que fosse uno, porque nada sobrara para dar nascimento a outro mundo; e, por

A filosofia pr-socrtica 43 ltimo, isento de velhice e de doenas. Sabia perfeitamente que, quando algum corpo composto atacado do exterior e a destempo, pelo calor ou pelo frio ou por tudo que for dotado de grande fora, esses fatores provocam sua dissoluo ou sua morte, por doena ou velhice. Por essa razo e assim considerando, construiu, com aqueles todos, este todo nico e perfeito e no sujeito doena e velhice. Quanto forma, concedeu-lhe a mais conveniente e natural. Ora, a forma mais conveniente ao animal que deveria conter em si mesmo todos os seres vivos, s poderia ser a que abrangesse todas as formas existentes. Por isso, ele torneou o mundo em forma de esfera, por estarem todas as suas extremidades a igual distncia do centro, a mais perfeita das formas e mais semelhante a si mesma, por acreditar que o semelhante mil vezes mais belo que o dessemelhante. Ademais, por vrios motivos, deixou lisa sua superfcie exterior. De olhos no necessitava, pois do lado de fora nada ficou visvel; nem de ouvidos, porque fora dele, tambm, nada havia para ser percebido. Do mesmo modo, ar respirvel tambm no o envolvia, no necessitando ele, igualmente de nenhum rgo, ou fosse para receber alimentos, ou para expeli-los, depois de lhes haver absorvido o suco, pois nada entrava nele por nenhuma parte nem dele saa, visto nada haver alm dele. Com tal arte fora concebido, que se alimentava com seu prprio desgaste, e tudo que ele fazia ou sofria, nele, apenas, e por ele mesmo se processava, por achar seu autor que seria prefervel para ele bastar-se a si mesmo a necessitar de alguma coisa. Quanto a mos, tambm, visto no precisar o mundo nem de apreender algo nem de repelir fosse o que fosse, considerou desnecessrio acrescentar-lhe esses apndices, nem ps ou outro aparelho de locomoo. Conferiu-lhe o movimento mais indicado para sua forma esfrica: dos sete, aquele que melhor condiz com a mente e a inteligncia. Por essa razo, f-lo girar uniformemente em torno de si mesmo, impondo-lhe o movimento circular e privando-o dos outros seis, para que no lhes sofresse as influncias. E como no havia necessidade de apndices para executar essas revolues, f-lo desprovido de pernas e de ps. Por essas razes, a divindade eterna, tendo em mente a divindade que viria algum dia a existir, deixou-a lisa e uniforme, com todas as partes eqidistantes do centro, completa e perfeita e composta s de corpos perfeitos. No centro colocou a alma, fazendo que se difundisse por todo corpo e completasse seu envoltrio, depois do que formou o cu circular com movimento tambm circular, cu nico e solitrio, porm capaz, em virtude de sua prpria excelncia, de fazer companhia a si mesmo, sem necessitar de ningum, nem de conhecimentos nem de amigos, mas bastando-se a si mesmo. Com todas essas qualidades, engendrou uma divindade feliz.

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Outra passagem, dessa vez do Scrates xenofontiano, em que aparece em relevo o mesmo ponto, teleologia versus mecanicismo, dessa vez como fundamento da oposio em moral entre diligncia piedosa e hedonismo ateu ou agnstico, o dilogo com Aristodemo. Essa oposio serve tanto para opor Scrates ao que seria uma apropriao moral de sofista de fsica pr-socrtica, quanto para opor Scrates ao pensamento helenstico posterior, que opera essa sntese entre tica hedonista e fsica mecanicista em Epicuro. Diz Xenofonte (Ditos e feitos memorveis de Scrates, 1972, I 4):Se, como por conjectura muitos escrevem e dizem, cr algum possusse Scrates o maior talento para convidar os homens a ingressarem na senda da virtude, porm fosse incapaz de os fazer trilh-la, que examine no s as questes por que confundia, guisa de correo, os que pretendiam tudo saber, como tambm as prticas que diariamente entretinha com seus discpulos, e ento, julgue se era ou no capaz de tornar melhores os que com ele tratavam. Referirei, de comeo, a conversa que lhe ouvi acerca da divindade com Aristodemo, por alcunha o Pequeno. Soubera ele que Aristodemo no oferecia aos deuses sacrifcios nem preces, que no se socorria da adivinhao e at chufeava dos que observavam tais prticas. Dize-me, Aristodemo, interpelou-o, haver homens que admires pelo talento? Por certo. Nomeia-os. Na poesia pica admiro sobretudo Homero, no ditirambo Melanpedes, na tragdia Sfocles, na estaturia Policleto, na pintura Zuxis. Quais so, a teus olhos, mais dignos de admirao: os artistas que fazem imagens sem razo e sem movimento ou os artistas que criam seres inteligentes e animados? Por Jpiter, os que criam seres animados, desde que tais seres no sejam obra do acaso, mas uma inteligncia. Das obras sem destinao manifesta e daquelas cuja utilidade incontestvel, quais consideras como produto do acaso ou de uma inteligncia? Justo perfilhar a uma inteligncia as obras que tenham fim de utilidade. No te parece ento que aquele que, desde que o mundo mundo, criou os homens lhes haja dado, para que lhes fossem teis, cada um dos rgos por intermdio dos quais experimentam sensaes, olhos para ver o que visvel e ouvidos para ouvir os sons? De que nos serviriam os olores se no tivssemos narculas? Que idia teramos do doce, do amargo, de tudo o que agrada ao paladar, se no existisse a lngua para os discernir? Ao demais, no achas dever olhar-se como ato de previdncia que sendo a vista um rgo frgil, seja munida de plpebras, que se abrem quando preciso e se fecham durante o sono; que para proteger a vista contra o vento, estas plpebras sejam providas de um crivo de clios;

A filosofia pr-socrtica 45 que os superclios formem uma goteira por cima dos olhos, de sorte que o suor que escorra da testa no lhes possa fazer mal; que o ouvido receba todos os sons sem jamais encher-se; que em todos os animais os dentes da frente sejam cortantes e os molares aptos a triturar os alimentos que daqueles recebem; que a boca, destinada a receber o que excita o apetite, esteja localizada perto dos olhos e das narculas, de passo que as dejees, que nos repugnam, tm seus canais afastados o mais possvel dos rgos dos sentidos? Trepidas em atribuir a uma inteligncia ou ao acaso todas essas obras de to alta previdncia? No, por Jpiter, respondeu Aristodemo. Parece, sem dvida, tratar-se da obra de algum artfice sbio e amigo dos seres que respiram. E o desejo inspirado s criaturas de se reproduzirem, e o desejo inspirado s mes de alimentarem o prprio fruto, e neste fruto o maior amor vida e o mais profundo temor da morte? Evidentemente tudo isso so obras de um ente que decidira existissem animais. Crs-te um ser dotado de certa inteligncia e negas existir algo inteligente fora de ti, quando sabes no teres em teu corpo seno uma parcela da vasta extenso da terra, uma gota da massa das guas, e que to-somente uma parte nfima da imensa quantidade dos elementos, entra na organizao do teu corpo? Pensas haver aambarcado uma inteligncia que conseguintemente inexistiria em qualquer outra parte, e que esses seres infinitos em relao a ti em nmero e grandeza sejam mantidos em ordem por fora ininteligente? Sim, por Jpiter, pois no lhes vejo os autores como vejo os artfices das nossas