anatomia de uma revolta
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ANATOMIA DE UMA REVOLTA: AS JORNADAS DE
JUNHO E O FUTURO DA LUTA DE CLASSE NO BRASIL
Renato Nucci Jr.
Organizao Comunista Arma da Crtica
Um feito popular inesperado
Nem mesmo a anlise mais otimista poderia prognosticar que em 2013 o Brasil
conheceria uma mobilizao popular cuja extenso, participao e forma radicalizada de
luta no encontram paralelo em nossa histria recente. Circunscritas inicialmente a
manifestaes estudantis e populares contra o aumento das tarifas do transporte pblico,
transformaram-se celeremente em mobilizaes reunindo em alguns casos, centenas de
milhares de pessoas. Em poucos dias o enfoque se ampliou para uma crtica ampla e
abrangente das condies gerais de vida e o atual formato da democracia burguesa
realmente existente em nosso pas.
A gota dgua foi a brbara represso policial desatada indiscriminadamente contra a populao paulistana em 13 de junho. Manifestantes, transeuntes, pessoas saindo de
igrejas, casais sentados em mesas de bar e mesmo trabalhadores da imprensa destacados
por seus patres para cobrir o ato, todos foram vtimas da estpida violncia policial.
Utilizando-se de ferramentas alternativas de comunicao, em poucas horas os
manifestantes inundaram o pas com imagens denunciando a selvageria da PM paulista a
mando de Alckmin. O apoio s passeatas convocadas pelo Movimento Passe-Livre, cuja
adeso vinha crescendo a cada protesto, transformou-se em um imenso repdio popular
represso e em solidariedade aos manifestantes. Cansadas do bl-bl-bl da democracia
burguesa e dos protestos pacficos e bem-humorados, sempre com resultados pfios, parcela
da populao chegou a declarar em pesquisa feita ao vivo por programa policial
sensacionalista, seu apoio aos protestos mesmo com estes descambando para a baderna.
Rapidamente se alastrou pelo pas uma revolta nacional contra as condies gerais
de vida. Em junho, o grito entalado na garganta, resignadamente engolido, explodiu
desordenadamente. No foi somente pelos 20 centavos, ou qual tenham sido os
caramingus acrescidos s tarifas de transporte pblico, a causa para as massas aflurem s
ruas. Contida por diques polticos e ideolgicos levantados para apassiv-las, a indignao
e o rancor das massas com as condies de vida indignas e as injustias diariamente
sofridas, encontrou no aumento da tarifa e na represso policial aos manifestantes
paulistanos o seu catalisador. O final de semana logo aps o dia 13 de junho, coincidindo
com a abertura da Copa das Confederaes, foi marcada por manifestaes em Braslia e
Rio de Janeiro, contra os gastos absurdos em estdios luxuosos, enquanto a populao
agoniza em filas de hospitais pblicos por falta de atendimento mdico decente. A resposta
do Estado brasileiro foi a mesma em ambas as cidades: mais represso e violncia contra os
manifestantes. O Ministro da Justia, Jos Eduardo Cardozo, cogitou enviar a Fora
Nacional de Segurana aos estados com dificuldades em conter os protestos.
Diante do apoio nacional aos manifestantes paulistanos, onde a adeso a um novo
protesto marcado para 17 de junho j contava nas redes sociais com centenas de milhares
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de confirmaes, no restou outra sada ao governo Alckmin, seno recuar. A famigerada
tropa de choque foi retirada das ruas permitindo aos manifestantes ocuparem-na
tranquilamente. O direito de se manifestar livremente sem a ameaa da represso policial,
to comum na democracia brasileira, preponderou sobre as posies que julgam qualquer protesto como um estorvo praticado por uma minoria contra o sagrado direito de ir e vir da maioria. E as massas o fizeram. Em So Paulo foram mais de 100 mil. No Rio de Janeiro alguns clculos apontam para cerca de meio milho de manifestantes. Em Braslia,
cerca de 10 mil pessoas chegaram a ocupar parte do Congresso Nacional. Em Porto Alegre
foram 15 mil. Em 20 de junho, alguns clculos chegaram a contabilizar mais de 1 milho de
pessoas se manifestando s no Rio de Janeiro.
A adeso em massa aos protestos, incluindo formas de luta radicalizada e a simpatia
da opinio pblica s mobilizaes, obrigou todos os governos a fazer algum tipo de
concesso. A fora das mobilizaes tambm fez certos atores da cena poltica a mudar
suas posies. Foi o caso da grande imprensa brasileira. Tradicional inimiga dos
movimentos populares, em 13 de junho dois de seus principais rgos, Folha de So Paulo
e Estado, clamavam por dura represso contra os manifestantes. O jornalo da famlia
Mesquita bradava: Chegou a hora do basta. J o dirio da famlia Frias exigia do governo paulista um ponto final nisso. Ambos defendiam uma postura repressiva, cabendo ao governo de Alckmin dar um basta na baderna provocada pelos manifestantes, aplicando-lhes uma bela sova para aprenderem a respeitar a lei e a ordem. O repdio popular
violncia da polcia os fez mudar, sem alarde e qualquer autocrtica, de opinio. Os
manifestantes deixaram de ser vndalos para ganharem status de ativistas. O mais pattico,
porm, foi Arnaldo Jabor. O ex-cineasta que utiliza seu passado esquerdista e sua pinta de
intelectual para garantir legitimidade s suas posies reacionrias, em poucos dias mudou
de opinio sobre os protestos. Em 13 de junho bradou contra os manifestantes os acusando
de arruaceiros, filhos da classe mdia e rebeldes sem causa. Em 17 de junho, diante de
manifestaes que ganhavam corpo por todo o pas, pediu desculpas pblicas e afirmou que
o movimento podia estar trazendo alguma originalidade vida poltica nacional.
No geral, a partir do final de semana seguinte ao massacre de 13 de junho, a grande
imprensa adotou em suas matrias sobre os protestos um tom menos belicoso e at
simptico. Tamanha mudana, todavia, foi causada no somente por medo de perder
leitores ou audincia, mas se orientou por um aguado faro poltico. Em primeiro lugar
reconheceram o bvio: o apoio popular aos protestos se devia no apenas pelo preo e
qualidade do transporte pblico, mas pelo fato do movimento e sua pauta terem se tornado
o catalisador de uma insatisfao geral e difusa. Muitos manifestantes declaravam em seus
cartazes que os protestos no eram movidos apenas pelos 20 centavos. De olho na eleio
de 2014, a grande imprensa brasileira, atuando como principal intelectual orgnico de
fraes das classes dominantes viu nos protestos a chance para dar vazo sua pauta, cujo
objetivo principal o de sangrar o governo Dilma e dar uma mozinha a seus candidatos de
oposio. No se tratou, em momento algum, de preparar um golpe miditico, como
cogitaram os petistas e seus aliados. Em segundo, aproveitando a inexistncia de um vetor
poltico capaz de dirigir e coordenar os protestos, a grande imprensa aproveitou para
convocar as massas s ruas. Obviamente, essa convocatria no foi feita de forma crua e direta, mas sempre matizada, com uma abordagem simptica aos atos, transformando-os de
baguna causada por arruaceiros em livre exerccio da cidadania.
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O resultado dessas convocaes, tanto para o ato do MPL marcado com antecedncia para 17 de junho em So Paulo, como o ato do dia 18, sem ningum saber ao
certo quem o convocou, foi o de trazer s ruas amplas parcelas das massas, poltica e
ideologicamente mais atrasadas, permeveis influncia dos grandes meios de
comunicao, mas nem por isso menos indignada com a situao geral do pas. Entre os
dias 18 e 20 de junho, especialmente no estado de So Paulo, emergiu um senso comum
conservador cujas pautas, se ora reforavam os pedidos por mais investimentos em sade e
educao, tambm exibiam bandeiras normalmente defendidas por parcelas mais
conservadoras, como o fim da corrupo, a diminuio da carga tributria, a reduo da
maioridade penal e a pena de morte. Cartazes pedindo o arquivamento da PEC 37 (Proposta
de Emenda Constitucional), que reduz o poder de investigao do Ministrio Pblico,
ganhavam destaque. Alguns poucos cartazes pediam o Fora Dilma. A entrada em cena
dessa corrente de opinio claramente conservadora chegou ao ponto, em So Paulo, de
setores fascistas, com apoio de parte dos manifestantes, agredirem e obrigarem a esquerda
partidria e social presente nas manifestaes em 20 de junho, a baixar suas bandeiras.
Essa tentativa da grande imprensa de querer se aproveitar do movimento para
influenciar sua pauta ficou clara na entrevista dada por um porta-voz do MPL exibida pelos
telejornais da Rede Globo em 21 de junho. Ao anunciar que o Movimento no convocaria
mais atos, j que o objetivo de suspender o reajuste da tarifa tinha sido atingido, foi
questionado pela reprter sobre as outras pautas do movimento, como o fim da corrupo e a PEC-37
1.
Contudo, a dimenso das mobilizaes, chegando a reunir em todo o pas milhes
de pessoas em um nico dia, somada s formas radicalizadas de luta como ataques a
prdios pblicos que no imaginrio popular simbolizam o poder de Estado e a soberania
popular (prefeituras e sedes dos legislativos), atemorizaram os grandes meios de
comunicao e a burguesia. Mesmo com a grande imprensa sendo capaz de levar s ruas uma corrente de opinio conservadora, as profundas contradies da formao econmico-
social brasileira, f-la aparecer no cenrio poltico como insubmissa a uma pauta puramente
conservadora. Seu conservadorismo no de contedo, mas de forma. Nesse sentido, os
grandes meios de comunicao, ao perceberem que haviam destampado a Caixa de
Pandora, buscaram decretar de canetada a necessidade de se por fim as mobilizaes. O
editorial de 22 de junho de O Globo foi esclarecedor. Afirmava que diante da radicalizao
das formas de luta - leiam-se enfrentamentos com a polcia, trancamento de rodovias e
ataques a prdios pblicos - teriam as manifestaes, ultrapassado limites politicamente
ponderveis. Exps a famlia Marinho atravs de seu jornalo, o temor pela falta de uma
liderana poltica capaz de controlar os protestos em todo o pas.
O sinal de alerta foi para eles tocado ao se verificarem nas mobilizaes, ainda de
acordo com o jornal, a existncia de uma agenda ultrarradical para alm do passe livre, como a proposta de reforma urbana, fachada de um programa luntico de desapropriao de propriedades privadas nas cidades. Temendo a aproximao dos manifestantes da perniciosa democracia direta chavista, em que as instituies
1 Confira a entrevista aqui: http://www.youtube.com/watch?v=dcZHhoRslOw.
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republicanas so subordinadas a um Executivo cesarista, senhor de todas as decises,
manipulador-mor das massas, mantidas coesas por programas populistas assistenciais
economicamente insustentveis, O Globo condenou a possibilidade reclamada pelos manifestantes de se pensar democracia, para alm da podrido do jogo partidrio, do bl-
bl-bl legislativo e do cretinismo parlamentares, atualmente dominantes em todas as
democracias burguesas, onde os interesses populares sucumbem ao poder das oligarquias
financeiras. Esquecendo a pauta popular, que reclamava por melhores servios pblicos e
condies de vida mais dignas, O Globo fecha seu editorial resumindo o teor das
mobilizaes a temas mais convenientes aos seus interesses, quais sejam, no impunidade, corrupo, a partidos de aluguel, a um sistema partidrio ineficiente etc.. E por fim, decretou que as manifestaes nas ruas haviam se esgotado devendo as
reivindicaes ser orientadas para os canais institucionais2.
Mas j era tarde. O povo tomou gosto de sair s ruas para protestar e um dos
aspectos mais surpreendentes e magnficos das jornadas de junho que mais atemorizaram a
burguesia e seus polticos, foi o fato delas se alastrarem por todo o pas. Da grande
megalpole paulistana aos grotes mais remotos, nenhum pedacinho do territrio nacional
escapou inclume a onda de protestos. Sem comando central, sem ordem expressa de
ningum, milhes de pessoas se manifestaram de alguma forma. E quem no se manifestou
apoiou os que se manifestavam. Foi marcante a identidade das pautas levantadas em todo o
pas: as massas exigem presena mais ativa do Estado no tocante a garantir servios
pblicos de qualidade e condies de vida mais dignas. Os cartazes que se generalizavam
pelas ruas e praas do pas reclamando por hospitais de padro FIFA, ou escolas de padro FIFA, revelam as aspiraes da maioria da populao por servios pblicos com o mesmo grau de excelncia dos estdios construdos ou reformados para a Copa do Mundo.
Em 19 de junho, o que parecia inicialmente impondervel aconteceu: Alckmin e
Haddad, tucanos e petistas, juntos, ambos desenxabidos, anunciavam a suspenso no
aumento da tarifa. O que j havia ocorrido em Porto Alegre, Goinia e Teresina, aps
grandes manifestaes estudantis e populares, deu-se em So Paulo, maior metrpole
brasileira. At o comeo de julho j chegava a quase uma centena as cidades, entre capitais
e metrpoles regionais, cujos prefeitos por causa dos protestos anunciaram a reduo da
tarifa. Em algumas, como Campinas/SP, antes mesmo de acontecer o primeiro protesto a
prefeitura anunciava reduo na tarifa de R$ 3,30 para R$ 3,00. Os anncios das redues,
ainda que em muitos casos compensado por nova bateria de isenes fiscais ou subsdios
concedidos pelos estados e prefeituras aos capitalistas que exploram sob o regime de
concesso o transporte coletivo, deixou importante lio na conscincia popular: possvel
pela luta e mobilizao derrotar os governos.
As manifestaes de junho inauguraram, portanto, um novo ciclo de lutas populares
no Brasil. Ainda cedo para saber onde tudo isso nos levar. Mas no existe dvida de que
as mobilizaes resgataram conscincia popular, a crena em sua fora como principal
demiurgo da histria. Uma fora capaz de impor, como h muito no se via, profundas
derrotas aos governos. Estes, cuja prtica corriqueira a de desdenhar e ignorar as
2 Confira aqui a ntegra do editorial: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/06/22/ultrapassou-os-
limites-editorial-500846.asp.
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reivindicaes populares, recorrendo fora policial contra os movimentos mais
impertinentes visando derrot-los e desmobiliz-los, acuados, cedeu presso das ruas. O
simples recurso fora policial parece no surtir mais o efeito esperado. Basta lembrar que
as jornadas de junho ganharam essa dimenso a partir da reao brbara represso policial
desatada contra os manifestantes paulistanos em 13 de junho. Quanto mais a polcia de
Alckmin reprimia, mais crescia a adeso aos protestos. As massas trabalhadoras, ao
perderem a pacincia com o desmando, autoritarismo e desrespeito dos lderes polticos
burgueses com suas aflies dirias, no s impuseram uma derrota aos governos, como
fizeram despencar a popularidade de todos eles, no importando seu verniz ideolgico.
Ningum foi poupado da ira popular, tornando impossvel para qualquer sigla tirar para
objetivos eleitorais algum proveito das mobilizaes. A generalizada descrena nos
partidos, aos olhos do senso comum expresso institucional da soberania popular, fez surgir
nos protestos nova forma de mobilizao popular: o ataque ou ocupao de prdios
pblicos que representam essa soberania popular e teriam em tese o papel de defend-la e
proteg-la. Desse modo, paos municipais, cmaras de vereadores, assemblias legislativas
e at o Congresso Nacional foram alvo das manifestaes.
O novo patamar da acumulao capitalista no Brasil
Se um novo ciclo de lutas populares realmente est se iniciando em nosso pas,
surge uma pergunta fundamental a ser respondida: por que no Brasil? Por que o pas
considerado o queridinho dos BRICs, com uma presidente com altssimos ndices de aprovao, onde um governo classificado pelos padres usuais como de esquerda est no
comando da presidncia da Repblica, conhece manifestaes de uma dimenso h muito
no vista? Por que um pas onde o lucro do capital, os empregos formais, o consumo, as
exportaes etc., cresce a olhos vistos, assiste uma revolta popular tpica dos pases
europeus cuja economia atravessa uma profunda recesso? Responder a essas perguntas
fundamental para compreendermos os motivos dos protestos pelo pas. Em uma cenrio
onde aparentemente reinava a paz social, garantida pela cooptao das classes dominadas
combinada a um atendimento dos interesses da fraes hegemnicas da burguesia, parecia
impossvel imaginar que algo semelhante como as jornadas de junho pudessem ocorrer no
Brasil. Mas ocorreram. Cabe-nos, por esse motivo, compreender as razes dessa onda de
revolta refutando as teses de golpismo e outras assemelhadas, bem como aquelas que
atribuem aos protestos expresso de uma classe mdia conservadora. Buscaremos
demonstrar nesse texto que as razes para a revolta de junho esto na irresoluo mesmo
parcial das contradies de nossa formao econmico-social. Desse modo poderemos
entender os caminhos recentemente assumidos pela luta de classe no Brasil, visando
intervir no novo cenrio que se abre para buscar influenci-lo.
O Brasil conhece desde o comeo do novo sculo um novo ciclo de expanso e
acumulao capitalista. Aproveitando uma conjuntura internacional favorvel, marcada
pela retomada do crescimento econmico dos Estados Unidos e vigorosa expanso chinesa,
inserimo-nos no fluxo mundial de comrcio como grandes exportadores de artigos agrcolas
e minerais. Com isso, dispararam internacionalmente os preos desses produtos, causado
no apenas pela grande demanda chinesa, cuja vertiginosa expanso requer grande
fornecimento de gros e ferro, mas pela intensa especulao financeira. Documento da
AEB (Associao de Comrcio Exterior do Brasil) aponta para uma evoluo significativa
dos preos mdios de produtos agrcolas e minerais. A tonelada da soja em gro pulou de
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216 dlares em 2003 para 430 dlares em 2012. O acar refinado saltou de 173 dlares a
tonelada em 2003 para 590 em 2012. J a carne de frango foi de 889 dlares a tonelada em
2003 para 1.950 em 2012. O minrio foi de 20 dlares em 2003 para 105 dlares em 2012.
A evoluo das receitas da exportao tambm foi significativa. A soja saltou de 4,290
bilhes de dlares em 2003 para 13,980 bilhes em 2012. O acar bruto de 1,350 bilhes
em 2003 para 10,600 bilhes em 2012. A carne de frango de 1,710 bilhes em 2003 para
6,830 bilhes em 2012. J os minrios pularam de 3,039 bilhes em 2003 para 33,600
bilhes em 2012. Por fim, no caso das receitas do petrleo, estes saltaram de 2,122 bilhes
em 2003 para 20,700 bilhes em 20123.
A insero no mercado mundial como produtor de matrias-primas agrcolas e
minerais, reforou as posies em torno de uma especializao regressiva da economia
brasileira. Os dados da AEB permitem ver que se em 2003 as exportaes de
manufaturados representavam 54,32% de nossa pauta de comrcio e os produtos bsicos e
semimanufaturados 43,89%, em 2012 essa relao inverte-se. A exportao de
manufaturados cai para 38,38%, a de semimanufaturados fica em 13,93% e a de produtos
bsicos pula para 45,45%. Todavia, essa especializao regressiva da pauta de exportao
no significou uma reprimarizao absoluta da economia brasileira. A indstria ainda
mantm um peso relativamente importante, dado o tamanho do mercado consumidor
interno, mas tambm por sua funo de abastecedora do mercado latino-americano. Se os
principais produtos de exportao do Brasil para a China, nosso principal parceiro
comercial, so as commodities, para a Amrica Latina vendemos produtos manufaturados.
Em 2011, a participao destes no total de artigos exportados era de 95,6% para a Bolvia,
92,3% para o Paraguai, 89,9% para a Argentina, 86,7% para o Uruguai, 86,3% para a
Colmbia, 83,7% para o Mxico e 81,9% para o Peru. Dos 27 principais pases de destino
das exportaes brasileiras de manufaturados, pases latino-americanos, africanos e dos
Brics, como Rssia, China e ndia, representavam 17,46% do total das exportaes. Para pases como Holanda, Blgica, Estados Unidos, Japo, Frana, Itlia, Coria do Sul, essas
exportaes totalizavam 11,13%.
A produo de artigos agrcolas e minerais, por um lado, e a produo
manufatureira para atender o mercado interno e os mercados latino-americanos, por outro,
acentuaram o movimento de interiorizao, tanto territorial como social, das relaes
capitalistas no pas. No que as relaes capitalistas antes no enredassem todo o pas em
sua teia, mas o processo se aprofundou. Assistimos atualmente no Brasil o que a professora
Virgnia Fontes denomina como uma expanso das relaes sociais capitalistas (p. 90)4. Somaram-se s grandes metrpoles litorneas, novos polos regionais de acumulao, cuja
diversificao abrange atividades agrcolas voltadas exportao, atividades de minerao
tambm destinadas ao mercado externo, explorao petrolfera, produo industrial e
atividades de logstica. A edio n 1006 da Revista Exame, de 14/12/2001, intitulado A
Marcha da Economia Brasileira, publicou matria elaborada a partir de pesquisa feita por
empresa de consultoria, demonstrando o despontar de novos polos regionais de acumulao
capitalista5.
3 Acesse o estudo da AEB aqui: www.aeb.org.br.
4 O Brasil e o Capital-Imperialismo, editora UFRJ, 2010.
5 Ver a matria da Exame aqui: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1006/.
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Um dos impactos do aproveitamento dessa conjuntura internacional favorvel foi o
crescimento da economia em seu conjunto. Uma medida importante que corrobora nossa
afirmao em torno da interiorizao das relaes capitalistas o crescimento dos
empregos formais. Dados do IBGE indicam que entre 2003 e 2011 um crescimento de
51,68% de trabalhadores com carteira de trabalho assinada. Porm, algumas regies
consideradas relativamente mais atrasadas apresentaram para o mesmo perodo crescimento
superiores a mdia nacional. Na regio Centro-Oeste o crescimento foi de 72,55%. No
Nordeste de 55,92%. E no Norte de 90,03%. J nas regies mais desenvolvidas, o
crescimento ficou abaixo da mdia nacional: foi de 47,28% na regio Sudeste e de 45,44%
no Sul. A Nota Tcnica n 116 do Dieese, O Mercado de Trabalho Formal Brasileiro Resultados da Rais 2011 corrobora nossa concluso, ao demonstrar maior gerao de
empregos formais nos municpios menores. Em 2011, enquanto em todo o pas a gerao de
emprego foi de 5,1% na mdia, nos municpios com at 50 mil habitantes foi de 6,2%. Para
aqueles entre 50 a 100 mil foi de 6,3%. Para os que tinham entre 100 mil a 500 mil a
variao foi de 5,7%. J os municpios com mais de 500 mil habitantes ficaram abaixo da
mdia nacional. A variao foi de 4,1% para os que tm entre 500 mil e 1 milho de
habitantes, e de 4,0% para os que tem mais de um milho6. O crescimento do emprego
formal, associado s polticas compensatrias como o Bolsa Famlia e conseqente
aumento da renda familiar, facilitou o acesso ao consumo via ampliao do crdito
destinado pessoa fsica e ao crdito consignado.
Importante frisar que o ciclo de crescimento observado na economia brasileira,
inclusive a poltica de exportao destinada a trazer dlares capazes de abastecer nossas
reservas cambiais para fazer frente s necessidades de financiamento e garantir a livre sada
de capitais internacionais, j se desenhava no final do segundo mandato de FHC. Porm,
coincide com o incio do mandato Lula o impulso a essa poltica de exportao, muito
favorecida pelo crescimento da demanda internacional por artigos bsicos. Obteve-se,
assim, duplo resultado positivo. Primeiramente, a macia entrada de dlares alcanada
pelos supervits comerciais, aumentando as divisas, garantiu o atendimento dos interesses
da burguesia associada, aquela cujas relaes com o imperialismo so carnais, principalmente a de sua frao financeira. Em segundo, a burguesia interna, aquela cujo
espao de acumulao est fortemente vinculado ao territrio nacional e que por isso
mantm pontos de atrito com o imperialismo, cujas fraes internas so as grandes
burguesias agrria, comercial e industrial, viu-se beneficiada pelo crescimento das
exportaes e do mercado interno7. Mesmo fraes da burguesia associada, como a grande
6 Ver estudo do Dieese aqui: http://www.dieese.org.br/notatecnica/2012/notaTec116rais.pdf
7 O conceito de burguesia interna, aqui utilizado, aquele apresentado por Nicos Poulantzas (As Classes
Sociais no Capitalismo de Hoje, Zahar, 1975). Trata-se de uma frao burguesa com uma base de acumulao
prpria, que apesar de coexistir com setores propriamente compradores, no possui mais, em graus certamente desiguais nas diversas formaes imperialistas, as caractersticas estruturais da burguesia
nacional. Em razo da reproduo do capital americano no prprio seio dessas formaes, ela por um lado
imbricada por mltiplos elos de dependncia aos processos de diviso internacional do trabalho e de
concentrao internacional do capital sob a dominao do capital americano: o que pode at tomar a forma
de uma transferncia de uma parte da mais-valia para o lucro desse capital; por outro lado, alm disso, em
razo da reproduo induzida das condies polticas e ideolgicas desta dependncia, ela afetada por
efeitos de dissoluo de sua autonomia poltico-ideolgica em face do capital americano (p. 77).
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indstria multinacional, tambm foram beneficiadas por esse ciclo de crescimento. Isso fez
com que grandes empresas capitalistas, diante da crise econmica enfrentada nos principais
pases da cadeia imperialista, vissem nos chamados pases em desenvolvimento espaos de
investimentos para extrair mais-valia e manter pulsando o processo de acumulao
capitalista. Dados da Sobeet (Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais
e Globalizao Econmica) demonstram que as chamadas economias em desenvolvimento
superaram em 2012 as economias desenvolvidas como receptoras de IDE (Investimento
Direto Estrangeiro). A pesquisa, World Investiment Report 2013, demonstra que dentre os
20 maiores receptores de IDE em 2012, o Brasil ocupou a 4 posio, com 65 bilhes de
dlares de investimentos, atrs de Estados Unidos, China e Hong Kong. O estudo tambm
demonstra que as taxas de retorno dos investimentos em pases classificados como em
desenvolvimento so maiores do que nas economias desenvolvidas: em 2011, 8,4% nas
primeiras e 4,8% nas segundas8.
Politicamente, a conjuntura internacional permitiu a realizao de um aparente
milagre. Por um lado, anulou as resistncias ao governo petista dos dois grandes blocos da burguesia, a associada e a interna. A burguesia associada, em particular o capital
portador de juros, pde dormir tranqila, pois a poltica econmica baseada em supervits
primrios, altas taxas de juros, cmbio flutuante e abertura comercial foi mantida, graas
entrada de dlares, garantidas pelas exportaes. Estas beneficiaram, por sua vez, a
burguesia interna, relegada pelos mandatos de FHC, mas apoiadas pelos mandatos petistas
atravs do estmulo s exportaes e ao aquecimento do mercado interno. O Estado pde
dar-se ao luxo, pelo crescimento das reservas internacionais, de afrouxar um pouco mais as regras impostas pelo FMI, ampliando os emprstimos do BNDES para estimular o
surgimento de grandes multinacionais brasileiras. Abriu o caixa, tambm, para ampliar o
financiamento de obras de infraestrutura, to reclamadas pela burguesia como forma de
ampliar a competitividade dos produtos nacionais. Por fim, os trabalhadores foram
contemplados com migalhas que atenuaram sua insatisfao e sofrimento: empregos
formais precrios pagando baixos salrios, emprstimos fartos para ampliar o consumo,
maior valorizao do salrio mnimo e polticas compensatrias. Parecamos, apesar dos
problemas econmicos e sociais ainda existentes, estarmos em um mundo perfeito,
tornando-se possvel garantir os altos lucros do capital monopolista, presentes nos dois
grandes blocos burgueses, e ainda por cima atender os interesses dos trabalhadores.
O resultado de todo esse processo representou uma mudana no patamar da
acumulao capitalista no Brasil, atingindo o capitalismo a condio monopolista. A
burguesia domina o Estado e aprofunda horizontal e verticalmente as relaes capitalistas
de produo. Nesse contexto ocorre a vitria do Partido dos Trabalhadores na eleio
presidencial de 2002. Se por um lado ela expressa a insatisfao popular com a aplicao a
partir da dcada de 1990 das polticas neoliberais, por outro, foi alcanada por uma aliana
com fraes da burguesia interna, cuja viabilidade fez a cpula petista aprofundar o
processo de atenuao programtica refletida em dois pontos: incluso de Jos Alencar,
senador e mega capitalista industrial como vice de Lula e o lanamento da Carta aos
Brasileiros, sinalizando burguesia em seu conjunto, principalmente burguesia associada
e sua frao financeira, que respeitaria os acordos internacionais. Porm, buscaria assegurar
8 Ver o estudo da Sobeet aqui: http://sobeet.org.br/carta/WIR13.pdf
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os interesses das fraes funcionantes do capital, incorporando-as ao bloco de poder
dominante para lanar o pas em um novo ciclo de crescimento econmico. Assumiu por
completo o Partido dos Trabalhadores, desde ento, a condio de partido da ordem,
convertendo-se em competente administrador do Estado capitalista. Passou a executar, ao
comandar o Estado brasileiro, aquilo que a burguesia espera do seu Estado: administr-lo
visando manter o processo de acumulao e reproduo no interesse das fraes burguesas
hegemnicas, ao mesmo tempo em que se mostra capaz de apassivar poltica e
ideologicamente as classes subalternas, por uma mescla de concesso econmica e coero,
onde a conjuntura concreta determina a proporo em que cada meio ser empregado. A
construo do apassivamento demonstra o papel do Estado capitalista em buscar a
conciliao de classe, seja por meio do consenso, da concesso ou da coero. Seu fim ser,
sempre, o de garantir estabilidade poltica e legitimidade social, ambas necessrias para a
burguesia manter sua dominao poltica e a explorao econmica das classes
subalternizadas.
Enquanto a conjuntura econmica internacional foi favorvel, a acomodao de
interesses dos dois grandes blocos burgueses e suas fraes internas, bem como a atenuao
dos conflitos de classe do lado dos trabalhadores, tornou-se relativamente possvel. Porm,
essa acomodao se viu abalada ao chegarem ao Brasil os primeiros efeitos da crise
econmica mundial. Em um momento inicial a crise foi atenuada com medidas mais
incisivas de incentivo ao consumo. Porm, persistindo os seus efeitos, como o baixo
crescimento econmico, acirrou-se a disputa entre os dois grandes blocos da burguesia e
suas fraes internas em torno da apropriao da mais-valia. Fortaleceu-se em seu interior a
exigncia para se reduzir as taxa de juros, para se aumentar as alquotas de entrada dos
produtos importados, em se exigir maior ndice de nacionalizao de peas para os artigos
industriais fabricados no Brasil (caso da indstria automobilstica e naval), em se ter uma
poltica comercial externa mais agressiva e manter o real desvalorizado frente ao dlar. J a
burguesia associada exigiu justamente o contrrio. Acenando com o retorno do fantasma da
inflao, apelou para novos aumentos das taxas bsicas de juros, maior abertura comercial,
valorizao do real frente ao dlar e maior restrio dos gastos pblicos. Acirraram-se as
lutas entre ambas as fraes em torno da repartio da mais-valia global. E desde sua posse,
em 2011, o governo Dilma aplica uma poltica cujo enfoque visa atenuar os efeitos da crise
para o grande capital presente nos dois blocos burgueses, fazendo os trabalhadores pagarem
o preo.
Persistem e se aprofundam as contradies sociais
Contudo, se no cenrio da crise econmica mundial retornou a um primeiro plano as
contradies entre os dois grandes blocos burgueses, em um aspecto ambos tm uma
posio em comum: manter as privatizaes e atacar os direitos sociais, trabalhistas e
previdencirios. Desde a feitura e promulgao da atual Constituio, em 1988, a burguesia
em seu conjunto sempre atuou no sentido de desmontar os aspectos mais progressistas de
nossa Lei Magna, especialmente no que tange s garantias sociais e outras que pretendam
melhorar as condies de vida da classe trabalhadora brasileira. A partir da dcada de 1990,
nos mandatos de FHC, com clara hegemonia da burguesia associada, mas recebendo apoio
de fraes da burguesia interna, os direitos conquistados pelos trabalhadores tem sido
objeto de permanente ataque. Destruir a legislao trabalhista tem sido o principal deles,
mas aqui tambm se incluem o desmonte da previdncia social, a irrealizao da Reforma
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Agrria e o sucateamento da sade e educao. As promessas de justia social inscritas na
Carta Constitucional de 1988 tm sido rotundamente ignoradas diante de uma prevalncia
dos interesses do conjunto da burguesia, que construiu mecanismos capazes de submeter
todos os ramos do aparelho de Estado aos seus interesses, blindando-o quando se trata de
garantir plenamente os direitos das classes subalternas. Percebe-se claramente uma ao da
burguesia no interior de todos os aparelhos de Estado, no sentido de remover obstculos
que obstruam o atual ciclo de acumulao capitalista. O prprio Lula, no incio de seu
segundo mandato em 2007, ao anunciar o PAC (Plano de Acelerao do Crescimento),
apontou para a necessidade de se destravar o capitalismo no Brasil.
Administra-se o Estado para atender fundamentalmente os interesses do grande
capital, ao custo de no se resolver mesmo parcialmente os problemas sociais mais
angustiantes vividos pelas classes subalternas. Manteve-se intacto, desde 2003 com a posse
de Lua, o cerne das polticas de ajuste neoliberal aplicadas desde a dcada de 1990, cuja
frmula consiste em garantir um Estado mnimo s massas trabalhadoras, mas um Estado
mximo para o grande capital. Atendem-se primeiramente os interesses da acumulao
capitalista para depois, sobrando alguma quirela, reparti-los entre o restante da populao.
Nesse quadro, a cultura de direitos universais a serem garantidos pelo Estado foi substituda
pela cultura da focalizao, com o Estado criando clientelas preferenciais, ou seja, atender com polticas assistenciais e compensatrias os mais pobres entre os pobres. O
desmonte da poltica baseada na ampliao e garantia de direitos universais aos
trabalhadores no foi alterada pelos mandatos petistas. Ao contrrio, foi aprofundada.
A maior delas, a reforma trabalhista, chegou a ser anunciada no primeiro mandato
de Lula, mas no foi adiante por causa do escndalo do mensalo, em 2005. Tornava-se
politicamente arriscado apresentar a proposta num momento de desgaste do governo. Mas o
assunto volta pauta com o projeto do ACE (Acordo Coletivo Especfico), que sob a
justificativa de ampliar a representao nos locais de trabalho, garante s comisses
sindicais de empresa negociar acordos com clusulas que podem rebaixar os direitos
garantidos em lei. O PL 4330/2007, de autoria do deputado Sandro Mabel (PMDB/GO),
quer permitir a terceirizao inclusive nas atividades-fim, atualmente restrita s atividades
meio (refeitrio, segurana patrimonial, portaria etc.). Nesse caso o governo, ao invs de se
posicionar contrariamente lei, anunciando o veto presidencial caso aprovada pelo
Congresso, busca um texto de comum acordo, mantendo intacta a permisso para a
terceirizao das atividades-fim. No caso da previdncia o governo mantm inalterado o
fator previdencirio, cuja frmula reduz em at 50% o valor das aposentadorias. Sem contar
que no incio de seu mandato, Lula fez aprovar uma reforma da previdncia dos
trabalhadores do servio pblico, a pedido do capital financeiro, atacando direitos
histricos do funcionalismo pblico. O sistema pblico de sade continua subfinanciado e,
portanto, sucateado. O investimento pblico em sade no Brasil no atinge nem metade de
todos os gastos feitos para o setor, quando o necessrio para atingirmos um padro de
excelncia seria o de 90%. Quem supre as necessidades mdicas e ainda muito
precariamente so as empresas privadas de sade, cujos valores pagos por alguns planos
no cobrem certos procedimentos e limitam o nmero de consulta. No caso da educao, ao
invs de investir na ampliao de universidades pblicas, o governo destinou recursos s
universidades privadas, diminuindo a inadimplncia e elevando os seus lucros ao garantir o
pagamento integral ou parcial de mensalidades. Isso fez o nmero de estudantes em
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faculdades privadas pularem de 69,8% do total para mais de 80%, entre 2002 a 2012. Como
a maioria das mensalidades nessas universidades privadas so garantidas mediante sistema
de financiamento pblico, caso do Fies e do Prouni, os capitalistas que exploram uma
mercadoria chamada educao, conseguem com uma mozinha do Estado, assegurar altos lucros para o seu negcio. A receita lquida dessas empresas em 2012 foi de R$ 28,2
bilhes9.
Diante do papel cada vez mais importante adquirido pelos grandes fazendeiros no
interior do bloco no poder, em grande medida devido as enormes somas de divisas trazidas
por suas exportaes, a poltica de Reforma Agrria foi completamente abandonada. O
crescimento vertiginoso da demanda internacional por matrias-primas agrcolas e a
procura crescente por terras para atend-la, disparou a concentrao fundiria. Dados do
Incra revelam que entre 2003 e 2010 a concentrao fundiria em grandes propriedades
saltou de 51,3% da rea total para 55,8%. A rea improdutiva em mos de latifundirios
cresceu no mesmo perodo de 31,9% para 40% do total10
. O meio alcanado para essa
concentrao foi desatar um novo processo de expropriao primria de trabalhadores
agrcolas, comunidades quilombolas e indgenas. O governo, por seu lado, absorve a pauta
do agronegcio, chegando ao ponto da ministra da Casa Civil, Gleise Hoffmann, propor
que a demarcao de terras indgenas contenha, alm dos laudos antropolgicos da Funai,
laudos da Embrapa. Caminham tambm no Congresso dois projetos cuja finalidade a de
legalizar esse processo de expropriao. O primeiro o PL 227/2012, de autoria do
deputado Homero Pereira (PSD/MT), que permite ao Estado desapropriar terras indgenas
em caso de relevante interesse pblico da Unio. Outro projeto, a PEC (Projeto de Emenda Constitucional) 215, quer transferir a poltica de demarcao de terra do executivo
para o Congresso.
O reacionarismo da burguesia interna, uma das mais beneficiadas com o atual ciclo
de expanso capitalista, manifesta-se tambm em assuntos de ordem moral. Parlamentares
formam no Congresso uma bancada evanglica, que entre outras coisas defendem na
Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados o projeto como o da cura gay, de Marcos Feliciano (PSC/SP). Outro o Estatuto do Nascituro, cujas garantias absolutas
dadas ao feto, eliminam o direito da mulher em realizar o aborto mesmo em caso de ameaa
de risco sua vida e de estupro. Caso o feto seja gerado por estupro, o estuprador se
localizado teria de pagar penso alimentcia. Caso no seja localizado, caberia ao Estado
pagar um benefcio previdencirio mulher violentada. No toa o projeto foi jocosamente
batizado de bolsa estupro. O relator do projeto o deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), evanglico e lder na Cmara dos Deputados do PMDB, principal partido da base aliada.
Mas diante do quadro traado acima, como os mandatos petistas na presidncia da
Repblica lograram at as jornadas de junho, manter alto ndice de aprovao e
popularidade? Como conseguiram ao mesmo tempo em que garantiram o processo de
9 Faturamento de faculdades privadas cresce 30% em 2 anos, afirma estudo, http://g1.globo.com/educacao/noticia/2013/08/faturamento-de-faculdades-privadas-cresce-30-em-2-anos-
estima-estudo.html 10
Terras esto mais concentradas e improdutivas no Brasil, por Igor Felippe Santos, http://www.mst.org.br/Terras-estao-mais-concentradas-e-improdutivas-no-Brasil
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acumulao e reproduo capitalista, manter o apassivamento das classes subalternas?
Primeiramente, no confrontaram os interesses que unificam o conjunto da burguesia. Os
mandatos petistas mantiveram, aproveitando-se de uma legitimidade poltica ausente do
currculo tucano, o processo de ataque e desmonte dos direitos sociais e trabalhistas.
Eliminou-se, com isso, um grande foco de tenso poltica, construindo uma situao que
lhes assegurou a governabilidade, mesmo com todas as tentativas do PSDB, seu principal
oponente institucional, em aproveitar certas situaes conjunturais como denncias de
corrupo, para sangr-lo. Optando por no mexer em um pilar do neoliberalismo, o
desmonte dos direitos sociais e trabalhistas, bem como a universalizao e melhorias dos
servios pblicos, restou aos mandatos petistas substiturem a cidadania de direitos pela
cidadania de consumo. A ampliao de direitos como sade e educao, buscando
universaliz-los e dot-los de padro FIFA, assim como garantir e ampliar os direitos trabalhistas e previdencirios, exigiria uma confrontao poltica com a burguesia para a
qual o PT no est disposto a encarar. Restou como sada o consumo como mvel das
polticas pblicas no Brasil, sendo a cidadania de direitos com seu princpio igualitrio
enxotado para fora da agenda do governo. E aqui temos o outro aspecto do processo de
interiorizao do capitalismo brasileiro: aprofundou-se a mercantilizao das necessidades
sociais, atravs de apropriao feita pelo capital privado de uma gama de servios cujo
atendimento deveria ser provido pelo Estado. Assiste-se a uma privatizao ainda maior
dos espaos sociais, do acesso arte, cultura e lazer.
Desprovida de qualquer contedo crtico, indutora da passividade e da resignao, a
cidadania de consumo logrou apassivar parcelas importantes do proletariado. A elevao do
nvel formal de emprego, causada pelo novo ciclo de acumulao capitalista, ampliou a
massa salarial familiar, realizando o sonho de consumo de parcelas do proletariado para quem, antes, era inacessvel o acesso a certos bens considerados de luxo. Adquirindo
produtos eletroeletrnicos e automveis novos e seminovos em dezenas de prestaes,
apresentados pelo aparato de propaganda miditico como smbolos de distino social,
serviram para atenuar parcialmente as contradies sociais. Ao mesmo tempo, as polticas
compensatrias como o Bolsa Famlia permitiram atenuar os efeitos mais degradantes da
pobreza e misria extrema. O grande inconveniente da cidadania de consumo, como
poltica de apassivamento da classe trabalhadora, a dependncia dos altos e baixos da
economia. Outro problema da derivado o de que ao colocar uma gama de servios
pblicos prestados pelo Estado nas mos de empresas privadas, a qualidade destes servios
depende do salrio do trabalhador ou da renda familiar, criando uma segmentao social
ainda mais profunda em uma sociedade j marcada secularmente pela desigualdade. Essa
opo pela cidadania de consumo a de apagar da experincia dos trabalhadores qualquer
vestgio de uma conscincia igualitarista. O enquadramento de famlias com baixssima
renda em uma suposta nova classe mdia a tentativa poltica e ideolgica de colocar suas
necessidades no circuito da acumulao capitalista. Um exemplo foi a tentativa ensaiada
pelo governo Dilma no incio de 2013, de reduzir impostos e dar subsdios para planos de
sade privados venderem pacotes onde incluam planos bsicos cuja oferta de servios
ficava aqum do SUS. O objetivo, sempre, o de restringir a ao social do Estado s
camadas mais pauprrimas do proletariado, criando clientelas sociais e dando s polticas
pblicas um carter meramente assistencialista.
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Conseqncia dessa opo petista pela cidadania de consumo que ela no
produziu maior politizao da sociedade, visto no ter se empenhado em garantir e ampliar
direitos sociais, para o qual requeria enfrentar os interesses do conjunto da burguesia.
Preferiu ceder cada vez mais aos interesses do capital em nome da governabilidade,
justificada muitas vezes por causa de uma correlao de fora ainda insuficiente para fazer
avanar uma agenda de reformas democrticas e populares. Para Tales AbSber11, o produto dessa opo a de que A cultura do governo Lula foi a da universalizao do consumo, com a criao profunda de seu novo sujeito ps-moderno, sujeito do consumo, de
agentes econmicos liberados para o vnculo com a mercadoria em seu primeiro nvel de
acesso, e no com a cidadania plena, e no abstrata, ou com o conhecimento livre ou
crtico. Uma dimenso da subjetividade passou a ser a da transmisso direta do eu ao
sonho e ao desejo de mercado (p. 62). A cidadania de consumo incentivou, antes de qualquer coisa, uma cultura do descomprometimento, despolitizada, individualista, onde
vale apenas o aqui e agora de um governo neopopulista de mercado (p. 20). Foi esse caldo de cultura gerado pelas prticas de governos petistas, especialmente o de Lula, que
saiu s ruas em junho. No podem, portanto, parcelas da militncia petista reclamar do
perfil e carter supostamente conservador dos manifestantes. Trata-se da criatura social
gerada por seu criador, cujas partes foram costuradas juntando-se pedaos da poltica
econmica conservadora, das alianas fisiolgicas em nome da governabilidade, da adeso
nunca declarada ao iderio neoliberal, levando ao fim e ao cabo ao enterro de um programa
democrtico-radical de reformas sociais.
A cidadania de consumo foi a maneira pela qual a socialdemocracia petista cumpriu,
no governo, uma das funes de qualquer partido que se proponha a administrar o Estado
capitalista: garantir o apassivamento das classes subalternas. Porm, como afirmamos
algumas linhas acima, essa forma de apassivamento ao no tocar nas contradies sociais
mais excruciantes de nossa formao social, torna-se instvel e precria. Funciona
momentaneamente, entorpece as conscincias por um tempo, mas ao se deparar com uma
conjuntura de crise, por ela profundamente afetada. Torna-se impossvel tapar as fendas
dos diques que contm a insatisfao popular, por onde vazam as contradies sociais.
Servios pblicos so cada vez mais entregues sob a forma de concesso explorao
privada, cuja finalidade primeira o lucro. Acentuou-se uma lgica privatista na ocupao
e uso do espao pblico, levando a um aumento da segregao urbana. Imps-se em muitas
cidades uma poltica de higienizao social, que excluiu de vrios espaos s camadas mais
pobres do proletariado. A ocupao do solo urbano contemplou os interesses da
especulao imobiliria e das grandes construtoras. Inexiste poltica habitacional, cujas
necessidades de moradia das classes populares tm sido contempladas por mecanismos de
mercado como o programa Minha Casa Minha Vida.
Essa lgica privatista e individualista se manifesta na poltica de mobilidade urbana.
Atendendo os interesses do cartel das grandes montadoras, o governo federal facilitou
atravs do crdito farto a aquisio de automveis novos e semi novos. Privilegiando a
locomoo individual em detrimento do transporte pblico de massa, as grandes e mdias
cidades tiveram seus sistemas virios ainda mais saturados, aumentando o caos urbano. O
sistema de transporte pblico, entregue sob a forma de concesso a verdadeiras mfias,
11
Lulismo: Carisma Pop e Cultura Anticrtica, Hedra, 2011.
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caro e ineficiente. Nas cidades onde ocorrero os grandes eventos esportivos (Copa do
Mundo e Olimpadas), e naquelas que esto na mira de grandes obras de infraestrutura,
ocorre uma poltica violenta de remoes de famlias. No campo prossegue o assassinato de
lideranas de sem terra e o genocdio de populaes indgenas, cujo caso mais emblemtico
e trgico a perseguio e morte dos guaranis-kaiows, no estado do Mato Grosso do Sul.
Continuamos assistindo, sob os mandatos petistas, mas atenuados pelo crescimento
do emprego e do consumo, um processo caracterizado como de regresso social, cujos
traos centrais so: o rebaixamento do valor e preo da fora de trabalho; o retrocesso na
universalizao e acesso aos servios pblicos, com sua privatizao e sucateamento;
aplicao macia de capitais na esfera da pura especulao financeira; e manuteno,
retomada e aprofundamento de formas pr-capitalistas de explorao dos trabalhadores.
Torna-se essencial compreender que a persistncia e o aprofundamento dessas
contradies, longe de significarem a persistncia do atrasado ou de uma modernizao
conservadora, representam condio para a expanso e interiorizao das relaes
capitalistas em nosso pas. Como bem aponta a professora Fontes, em obra aqui citada, essa
expanso do capitalismo requer um movimento por ela caracterizado como de
expropriao. Trata-se, em sua opinio, da imposio mais ou menos violenta de uma lgica da vida social pautada pela supresso de meios de existncia ao lado da
mercantilizao crescente dos elementos necessrios vida, dentre os quais figura
centralmente a nova necessidade, sentida objetiva e subjetivamente, de venda da fora de
trabalho (p. 88). Para tanto, necessrio lanar permanentemente a populao em condies crticas, de intensa e exasperada disponibilidade ao mercado (p. 47). A primeira forma de expropriao repousa sobre uma expropriao originria dos trabalhadores (p. 46), retirando-lhes os meios necessrios sobrevivncia, sendo a terra a principal, obrigando populaes inteiras a vender sua fora de trabalho como meio de
satisfazer no mercado suas necessidades. A segunda forma de expropriao, crismada pela
autora de secundria ou contempornea, est incidindo sobre direitos conquistados para eliminar um anteparo historicamente posto plena disponibilidade de trabalhadores (p. 57).
Submetida a essa lgica de expanso-interiorizao das relaes capitalistas, a
dinmica poltica e institucional tragada pelos interesses dos dois grandes blocos
burgueses, burguesia associada e burguesia interna, e sua fraes intestinas. Ambas
estendem seu domnio sobre todos os ramos do aparelho de Estado. Aproveitando-se das
atuais debilidades polticas, organizativas e ideolgicas do movimento operrio e popular, o
grande capital exerce avassaladora hegemonia poltica, ideolgica e cultural. Um exemplo
dessa blindagem do Estado feita pelas oligarquias financeiras pode ser observada na
entrevista de Jamie Dimon, presidente do JP Morgan Chase, maior banco dos Estados
Unidos, Revista Exame. Inquirido pela reprter se estava otimista com a economia
brasileira, respondeu que O Brasil est indo muito bem. Os presidentes mudam, mas as polticas so mantidas12.
No caso brasileiro essa regresso assume formas especficas em um contexto onde a
desigualdade social e a violncia poltica do Estado e das classes dominantes contra as
12
Revista Exame, n 23, 30/11/2011.
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classes dominadas sempre foi uma norma. A imensa desigualdade social brasileira por
demais conhecidas. De acordo com Pochmann13
, 5 mil famlias concentram 45% de toda a
renda e riqueza nacional, enquanto as 51 milhes de famlias restantes lutam entre si pela
partilha do que sobra. Considerando o PIB pela tica da renda, a parcela do trabalho caiu de
53,4% em 1990 para 48,9% em 2007. J a renda advinda da propriedade saltou no mesmo
perodo de 46,5% para 51,1%. Os nveis de desigualdade e explorao de certas camadas de
trabalhadores so ainda maiores. Quando se observa a situao das mulheres, negros,
jovens e mulheres negras, os nveis de desigualdade se acentuam. Estas se desdobram em
prticas discriminatrias de natureza social, tnica, de gnero, regional e geracional. Ao
mesmo tempo servem para alimentar e justificar a explorao que recai sobre esses setores,
desembocando em formas de violncia praticadas tanto no mbito privado (nesse caso
ganha destaque a violncia contra a mulher, onde ostentamos o ttulo inglrio de quarto
pas mais violento do mundo), como aquela feita pelos aparelhos repressivos do Estado. A
violncia desatada contra a juventude negra e pobre nas periferias , neste caso, o exemplo
principal.
Todas essas contradies no foram resolvidas e nem sequer atenuadas em um
sentido reformista clssico. Elas ainda se mantm vivas e se tornam condio indispensvel
para impulsionar o atual ciclo de expanso capitalista. Este se baseia em uma gerao de
empregos formais pagando salrios baixssimos. Dados coletados por Pochmann14
indicam
que mais de 90% dos empregos gerados no Brasil na primeira dcada do novo sculo,
pagam at 1,5 salrios mnimos. Ainda de acordo com o autor, esses empregos foram os
que mais cresceram quando se compara com a dcada de 1970, quando tiveram elevao
3,2%. J os empregos com salrio entre 1,5 a 3 salrios mnimos cresceram a uma taxa
anual de 10% na dcada de 1970 e de 3,1% na dcada de 2000. O mesmo com os empregos
acima de 5 mnimos, cujo crescimento na dcada de 1970 foi de uma taxa anual mdia de
13,2% e na dcada de 2000 de -3,3%. A maioria desses empregos esteve ligada s
atividades de comrcio e servios.
Mesmo com uma poltica de valorizao do salrio mnimo, constata-se um grande
achatamento dos salrios, normalmente pagos em torno do piso nacional. Clculo do IBGE
aponta que o salrio mdio do trabalhador brasileiro em 2012 era de R$ 1.792,61. Todavia,
esse salrio mdio, oculta uma situao muito comum no Brasil. Dada a formao de um
mercado de trabalho com oferta relativamente abundante de fora de trabalho, os salrios
sempre estiveram abaixo do valor necessrio para a reproduo do trabalhador e sua
famlia. Pesquisa feita pelo Ipea15
, demonstra que 58,7% dos trabalhadores brasileiros em
2007, eram empregados em ocupaes que pagavam at 1,5 salrios mnimos. Outros
24,9% recebiam entre 1,5 e 3 salrios mnimos e 16,4% ganhava acima de 3 mnimos.
Pochmann tambm demonstra que na base dessa pirmide se encontram as parcelas mais
vulnerveis e exploradas da classe trabalhadora brasileira: mulheres, jovens, negros e
negras. Dados levantados no site do IBGE apontam que dentre os empregados com
rendimentos no trabalho principal existia a seguinte evoluo entre 2003 e 2011: o total de
13
Atlas da Excluso Social Brasileira: Os Ricos no Brasil, Campus, 2004. 14
Nova Classe Mdia?, Boitempo, 2012. 15
Distribuio Funcional da Renda no Brasil: Situao Recente, Comunicado da Presidncia n 14, 2008,
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/comunicado/081111_comunicadoipea14.pdf
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quem ganhava de 1 a 3 mnimos pulou de 34,70% para 42,49%; quem ganhava de 2 a 3
mnimos totalizou respectivamente no referido perodo 16,98% e 16,91%; e quem ganhava
entre 3 e 5 mnimos caiu de 12,64% para 9,36%.
Cabe destacar aqui, que se a estrutura ocupacional se baseia em salrios baixos em
relao necessidade de reproduo da fora de trabalho, a renda familiar cresceu pela
entrada macia de mulheres no mercado de trabalho na ltima dcada. Conforme dados do
IBGE, desde 2003 ocorreu um crescimento de 51,68% dos empregos com carteira assinada.
O nmero de homens com a CTPS assinada saltou no perodo de 15,4 milhes em 2003
para 22,5 milhes em 2011, crescimento relativo de 46,34%. J o nmero de mulheres com
CTPS assinada pulou de 8,4 milhes em 2003 para 13,6 milhes em 2011, crescimento
relativo de 61,37%. Quando se analisa a Populao Economicamente Ativa em 2003, esta
representava 60,46% da populao total, saltando para 62,10% em 2009. Nesse mesmo
perodo, enquanto a presena masculina caiu relativamente de 35,15% em 2001 para
34,83% em 2009, a presena feminina saltou no mesmo perodo de 25,31% para 27,27%. O
crescimento parece pequeno. Todavia, entre 2001 e 2009, a populao brasileira pulou de
174 milhes para 191,5 milhes de pessoas. Crescendo no mesmo perodo a populao
economicamente ativa, como demonstramos, o mercado de trabalho brasileiro ganhou em
2009 mais 13,4 milhes de trabalhadores, incremento de 12,7%. O crescimento da
participao feminina entre 2001 e 2009 em quase 2 pontos percentuais, representou em
nmeros absolutos a entrada de mais de 8 milhes de mulheres no mercado de trabalho,
crescimento relativo de 18,2%, maior do que a presena masculina, cuja contribuio para a
PEA foi de 5,3 milhes, acrscimo relativo de 8,7%.
Aumentando a presena de mulheres no mercado de trabalho, obviamente se
robustece a renda familiar e por conseguinte o consumo. Dados do IBGE apontam para um
crescimento da renda mdia familiar per capita de 42,6% entre 2003 e 2012. Todavia, esse
processo reflete tanto a voracidade do capital por fora de trabalho em seu atual ciclo de
expanso, como a necessidade das famlias fazerem frente ao aumento de suas
necessidades, cada vez mais mercantilizadas pelo processo de interiorizao capitalista,
bem como a um aumento no custo de vida especialmente nos preos administrados pelo
Estado, cujo crescimento supera o da inflao dos produtos com preos livres. Assim, o
salrio mnimo necessrio calculado pelo Dieese, capaz de garantir uma vida minimamente
digna para uma famlia trabalhadora, s atingido pela ampliao da venda da fora de
trabalho de todos os membros aptos da famlia.
O desmonte dos servios pblicos a partir da dcada de 1990, inseridos no
movimento de regresso social, fez aumentar a busca de muitas famlias de trabalhadores
por servios privados nas reas de sade e educao. A precariedade do transporte pblico,
aliada aos incentivos governamentais indstria automobilstica e as facilidades na
aquisio de veculos novos e semi novos, serviu de incentivo para uma viso de
mobilidade urbana baseada no transporte individual e no coletivo, acentuando o caos
urbano. O consumo familiar foi incentivado pelo crdito farto e barato, elevando o seu
endividamento. Do volume total de crdito do Sistema Financeiro Nacional, a carteira de
pessoa fsica pulou de 38% em 2004 para 45,9% em 2011. Os salrios esto fortemente
comprometidos com o pagamento de dvidas. Ou seja, as melhorias observadas na ltima dcada, giram em torno de uma ampliao do consumo, que obriga os trabalhadores a se
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submeterem ainda mais ao capital, e no pela ampliao de direitos. Estes, vistos como
meios de restringir a explorao desbragada do capitalismo continuam sendo alvo de
ataques. E o acesso ao consumo, principalmente de servios cuja prestao deveria ser feita
pelo Estado, est limitada pela renda familiar, ampliando-se a segmentao social. Quem
ganha um pouco mais paga por servios privados menos precrios e quem ganha menos
paga por servios privados mais precrios. Ao mesmo tempo, no caso dos planos de sade
privados, alm de caros se mostram ineficientes e piores do que o SUS, pois a depender do
plano feito, o nmero de consultas limitado, assim como certos exames laboratoriais e
procedimentos mdicos.
O estmulo feito pela burguesia e pelo governo para que os trabalhadores busquem
no mercado a satisfao de suas necessidades em torno de servios cuja prestao deveria
ser feita pelo Estado, deve-se ao pacto que garante a governabilidade aos mandatos petistas,
cuja marca central a de no mexer em aspectos centrais da poltica econmica em curso
desde o segundo mandato de FHC. Seu principal pilar o de no atender as demandas
populares por servios pblicos de qualidade, visto que o interesse principal o de garantir
a meta de supervits primrios, gastos que o Estado deixa de fazer em suas trs esferas -
Unio, estados e municpios -, para encher os bolsos dos detentores de ttulos da dvida
pblica, cujo impacto a contnua precarizao dos servios pblicos. De 2003 a 2012, a
poupana feita pelo governo foi R$ 954 bilhes! As isenes fiscais concedidas pelo Estado ao capital monopolista, principalmente do IPI (Imposto sobre Produtos
Industrializados) e do IR (Imposto de Renda), atingiram duramente municpios pequenos
que dependem para sobreviver e prestar algum tipo de assistncia mesmo mnima sua
populao, do FPM (Fundo de Participao dos Municpios), cujas receitas principais vm
justamente do IPI e do IR. A Confederao Nacional de Municpios calcula uma renncia
de 7,1 bilhes de reais em impostos, por causa das isenes, s no ano de 2012. Como
23,5% do IPI vo para o FPM, essa renncia significou uma perda de 1,6 bilhes de
receitas para os municpios.
Do lado dos trabalhadores, o endividamento familiar atingia 63% das famlias em
junho de 2013, ndice 7 pontos percentuais acima quando comparado a abril de 2012. A
inadimplncia foi a maior registrada, atingindo 22,4% das famlias em julho desse ano.
Sentindo os efeitos desse endividamento, os trabalhadores responderam fazendo greves. Em
2012 o pas conheceu o maior nmero de paralisaes em 16 anos. Foram 873 ocorrncias
de movimentos paredistas registrados pelo Dieese, crescimento de 58% em relao a 2011.
As principais reivindicaes foram reajuste salarial presente em 40,7% das reivindicaes,
alimentao presentes em 26,9%, plano de cargos e salrios em 23% e participao nos
lucros e resultado em 23%. Questo importante a ser salientada o quanto se intensificou
nos locais de trabalho a explorao dos trabalhadores. O ritmo infernal da produo,
causado pela concorrncia capitalista, aumentou absurdamente o nmero de acidentes de
trabalho. Em consulta feita ao Anurio Estatstico do Trabalhador, no site da Previdncia
Social, pode-se observar um aumento significativo nas notificaes de acidentes de
trabalho, compreendendo os acidentes tpicos, de trajeto e doenas relacionadas atividade
profissional. Em 2003 foram notificados 399.077 acidentes, em 2004 foram 465.700, em
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2005 491.711, em 2006 512.232, em 2007 659.523, em 2008 755.980, em 2009 733.365,
em 2010 709.474 e em 2011 foram 711.16416
.
nesse caldeiro que fervilha em fogo brando o caldo de insatisfao social exposto
em junho pelas manifestaes. A cidadania de consumo com a qual se tenta apassivar a
classe trabalhadora tem uma base muito precria. Tudo vai bem enquanto a economia
cresce amparada pela demanda internacional e os empregos so gerados. As massas podem
ser apassivadas pelo estmulo ao consumo e as diferentes fraes da burguesia, mesmo sem
anular suas contradies, se satisfazem com altos lucros. No entanto, bastou os primeiros
efeitos da crise econmica desembarcar no Brasil, para bagunar todo o arranjo poltico e
institucional que trazia relativa paz ao cenrio poltico. As frices entre os dois grandes
blocos burgueses reapareceram. Enquanto a burguesia interna reivindica a reduo da taxa
de juros e polticas capazes de proteg-la da concorrncia internacional, a burguesia
associada pressiona por um controle da inflao atravs do aumento da taxa de juros, pelo
rigor fiscal, por maior abertura comercial e pela ampliao da poltica de privatizao.
Unem-se, todavia, para exigir a reforma trabalhista e a retirada de direitos dos
trabalhadores.
A poltica do governo, nesse cenrio, reduz-se a administrar o Estado para garantir o
processo de acumulao capitalista. Demandas populares por mais e melhores servios
pblicos so rotundamente ignoradas. As polticas sociais se resumem s polticas
compensatrias, refutando a ampliao e universalizao de direitos, pois contrria ao pacto
de governabilidade feito entre a socialdemocracia petista e os dois grandes blocos da
burguesia. Todos os ramos do aparelho de Estado foram capturados pela grande burguesia,
que os submete s suas imposies e os blinda s presses populares. Inadmite-se a
interposio de qualquer barreira institucional que possa significar um freio a voracidade da
acumulao capitalista. Os obstculos devem ser removidos, como indicou Lula ao apontar
no lanamento do PAC em 2007 para a necessidade de se destravar o capitalismo no Brasil.
O protesto social s conseqncias perniciosas dessa nova fase de acumulao, crismadas
pelos apoiadores do governo de neodesenvolvimentista, respondido em todo o pas com a represso policial e a criminalizao das lutas. A questo social, como nunca desde a
ltima redemocratizao, volta a ser tratada como mero caso de polcia. Que o digam no
apenas os manifestantes que tem enfrentado a polcia em inmeras cidades brasileiras, mas
os operrios das grandes usinas hidreltricas, cujos canteiros de obra tem sido objeto de
militarizao para dificultar o surgimento de greves e protestos contra os baixos salrios e
as pssimas condies de trabalho.
A constituio de uma base parlamentar ampla, refletindo a aliana da social
democracia petista com a burguesia interna, leva a formao de um gabinete com 39
ministrios, como forma de acomodar os distintos interesses em jogo. Nesse amplo leque
partidrio cabem latifundirios, como a senadora Ktia Abreu (PSD-GO), os representantes
do grande capital e uma bancada formada por lderes evanglicos, cujo fundamentalismo
religioso pressiona o Congresso a aprovar projetos de natureza conservadora, como j
apontamos acima. nesse cenrio marcado por inmeras contradies que a revolta de
junho surge. No se trata de um raio em cu azul, mas de um acmulo de contradies,
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Confira os dados aqui: http://www.mpas.gov.br/conteudoDinamico.php?id=1209.
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indignaes, pequenas e grandes injustias engolidas secamente, resignadamente
ruminadas, vividas como um sofrimento solitrio, que encontraram na pauta do transporte
pblico um veculo de expresso.
Compreende-se porque as manifestaes tiveram um carter socialmente amplo e
um conjunto de pautas aparentemente desconexas. Diante do avassalador processo de
expanso-interiorizao capitalista no Brasil, afianado poltica e ideologicamente por
aquele que foi o principal partido da esquerda brasileira nos ltimos trinta anos, as jornadas
de junho foram a reao desordenada e difusa ao processo de expropriao movido pela
burguesia brasileira contra a maioria da populao. Manifestou-se nas ruas brasileiras em
junho um sentimento difuso em torno de mais justia, ainda que revestido em algumas
situaes de formas conservadoras. Captando a mensagem o governo Dilma, o Congresso e
os aparelhos de Estado buscaram e ainda buscam responder ao clamor das ruas. Em
centenas de cidades, mesmo naquelas onde no ocorreram manifestaes, o reajuste das
tarifas foi cancelado. O Congresso rapidamente engavetou o projeto da cura gay. Prometendo ampliar as receitas destinadas educao, a lei que destina recursos dos
royalties do petrleo para o setor foi aprovada no Congresso. Na rea da sade o governo
lanou o programa Mais Mdicos, destinado a atender a demanda em regies pobres e
distantes dos grandes centros, normalmente descartada pelos mdicos brasileiros. Por fim,
no caso do transporte, a CAE (Comisso de Assuntos Econmicos) do Senado, aprovou
projeto em carter terminativo que visa diminuir a tarifa por meio de isenes fiscais
concedidas s empresas privadas que operam sob o regime de concesso. Todas as medidas
so cosmticas e superficiais, pois no mexe no aspecto fundamental, qual sejam, os
interesses burgueses organizados em torno desses servios e uma estrutura de gastos
pblicos na qual se destina parte importante dos recursos do Estado aos credores da dvida
pblica brasileira. Em outras palavras, no ampliam direitos sociais.
Entende-se, tambm, a partir dos elementos aqui aportados, o porqu da
impossibilidade de qualquer partido ou organizao se apresentar como um vetor poltico
capaz de condensar toda a insatisfao social manifestada nas ruas. E quem tentou faz-lo,
na maioria dos casos partidos de esquerda e organizaes populares com longa e
reconhecida trajetria de luta, foi em alguns casos escorraado das manifestaes. Cansadas
de tanta enganao, de serem ludibriadas, de se verem obrigadas a votar a cada dois anos
sem que nada mude substancialmente, as massas encontraram nas mobilizaes de junho
um meio de fazer poltica com as prprias mos. Rechaaram os vestgios de presena institucional ou de algum tipo de particularismo para se apresentarem como povo. Os
trabalhadores se fizeram presentes nas mobilizaes no como classe, mas como povo.
Viram diludos nas manifestaes os seus laos classistas, expressando o atual quadro de
fragmentao da classe trabalhadora brasileira. A causa est nas formas igualmente
dispersas e fragmentadas pelas quais a classe trabalhadora na atualidade produzida e
reproduzida. Isso ficou claro nas manifestaes de junho, onde se apresentou uma
multiplicidade de pautas, unificadas, todavia, em torno principalmente do desmonte dos
servios pblicos. Outra constatao que o movimento de expropriao e regresso fez os
trabalhadores incorporarem novas demandas sociais, servindo para expor a formao de
distintos estratos e camadas no interior do prprio proletariado, ampliando sua
fragmentao e criando alguns obstculos sua unidade poltica e ideolgica.
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O grito contra os partidos, observado nas manifestaes, deve ser entendido tambm
como um repdio a atual formatao da democracia burguesa realmente existente no Brasil,
cujos partidos no passam de meros enfeites de um processo poltico onde o grande capital
domina a cena a partir dos bastidores. Exps-se generalizadamente nas manifestaes a
profunda insatisfao com a democracia realmente existente. Foi com a percepo dos riscos envolvidos na crtica democracia representativa e na reclamao por alguma forma
de democracia direta, que o editorial de O Globo, como resta demonstrado acima, exigiu o
fim dos protestos, acusando-as de terem ultrapassado os limites. No mesmo sentido, a
tnica do pronunciamento da presidente Dilma Roussef, em cadeia de rdio e tev no dia 21
de junho, foi a de propor uma reforma poltica.
Procuramos demonstrar que a revolta popular assistida em junho reflete as
contradies presentes no interior da formao econmico-social brasileira. Contradies
historicamente existentes, mas que diante de novo ciclo de acumulao capitalista,
acentuam-se. As jornadas de junho refletem, portanto, o alto grau de desenvolvimento da
relao de produo capitalista em nosso pas. O chamado neodesenvolvimentismo observado no mandato Dilma acentuou, em meio ao cenrio da crise mundial, essas
contradies atravs de um movimento de expropriaes que resultou na regresso social
atualmente em curso. No o atraso em nosso desenvolvimento econmico e o
conseqente baixo desenvolvimento do capitalismo o responsvel por nossas contradies
sociais, mas justamente ao contrrio. Por termos um capitalismo completo que atinge sua
forma monopolista, a ampliao de seu movimento de acumulao exige a permanncia de
contradies excruciantes que tanto infelicitam a vida da massa trabalhadora em nosso pas.
Coloca-se a luta socialista, mediada por reivindicaes e lutas concretas que ampliem o
universo de direitos da classe trabalhadora e faam retroceder o movimento de regresso
social e de expropriaes, em primeiro plano na estratgia dos trabalhadores brasileiros.
O carter social das manifestaes: subproletariado x classes mdias
A definio sobre o carter social das jornadas de junho, identificando quais as
classes e fraes de classe que saiu s ruas, fundamental para compreender a conjuntura
aberta pelas manifestaes. Predominou entre os setores polticos e intelectuais prximos
ao governo, a leitura de que teria as mobilizaes um peso significativo da classe mdia,
considerada como uma base social da direita brasileira, insatisfeita com a ascenso social
dos pobres realizada pelos governos petistas. O acesso popular a um mercado de consumo
antes restritos, como eletroeletrnicos e vos areos, antes usados por essa mesma classe
mdia como smbolo de distino social, agora estaria acessvel a todos. Permevel ao
discurso moralista e conservador que tem no combate corrupo o seu tema preferencial,
teria sido ela facilmente influenciada e mobilizada nos protestos de junho pelos grandes
meios de comunicao.
Indicando a existncia de contradies sociais, cuja irresoluo se deve sua
funcionalidade para o processo mais geral de acumulao capitalista, defende-se nesse texto
a presena nos protestos de um espectro social relativamente amplo. Porm, demonstrar-se-
o predomnio nas mobilizaes de um proletariado urbano jovem, empregado em
atividades de comrcio e servio, mais escolarizado, desorganizado sindicalmente e cujas
mediaes polticas no passam pelo canal partido-sindicato, tradicionalmente ocupado
pela esquerda, mas por meios menos tradicionais.
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A concluso de que nas manifestaes de junho teria preponderado a classe mdia,
baseia-se em critrios como nvel de escolaridade, estratificao profissional e renda.
Porm, no teria sido qualquer classe mdia a ter sado s ruas, mas uma classe mdia
tradicional. Essa dicotomia se baseia no fato de algumas pesquisas apontarem para o
surgimento a partir dos mandatos petistas, de duas classes mdias. Uma nova, a classe C,
fruto do crescimento econmico observado nos ltimos anos, e uma tradicional, formada
por setores que temem a ascenso dos emergentes. Apresentada assim grosseiramente, essa
tese adquire sofisticao intelectual com Andr Singer17
, que busca demonstrar ter ocorrido
no Brasil na eleio de 2006 um realinhamento eleitoral. O que ele chama de
subproletariado, tambm identificado como a nova classe C, antes refratrio s candidaturas
de esquerda, votou maciamente em Lula, levando a classe mdia tradicional, nas eleies
anteriores fieis eleitoras do ex-lder sindical, a votar em Alckmin.
Cabe, primeiramente, entender como Singer conceitua as duas classes fundamentais
no processo de realinhamento eleitoral: o subproletariado e a classe mdia tradicional. No
caso da primeira, aproveita a definio dado por Paul Singer, para quem os subproletrios so aqueles que oferecem a sua fora de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preo que assegure sua reproduo em condies normais (p. 77). Em ambos os casos se utiliza o critrio de renda para definir o que se considera
como as classes sociais fundamentais na conjuntura brasileira atual. Define-se o
subproletariado no pela relao formal de emprego, mas por ser incapaz de vender sua
fora de trabalho por um preo capaz de reproduzi-la. J o conceito de classe mdia carece
na obra de Singer, de uma formulao mais exata. Ela aparece implicitamente classificada
como uma parcela que recebe salrios mais altos.
O realinhamento eleitoral dessas classes, de acordo com a tese de Singer, teve como
causa bsica a poltica de transferncia de renda e a manuteno de uma poltica econmica
conservadora por parte do mandato petista, que aumentou o consumo e melhorou as
condies de vida desse subproletariado, tornando-o um bloco de poder novo, com projeto prprio (p. 45). Essa frao de classe no contra a igualdade social, muito pelo contrrio. Ela nutre a expectativa de um Estado suficientemente forte para diminuir a desigualdade sem ameaa a ordem estabelecida (p. 52). Assim, os eleitores mais pobres buscariam a reduo da desigualdade, da qual teriam conscincia, por meio de
interveno direta do Estado, evitando movimentos sociais que pudesse desestabilizar a
ordem social (p. 58). Ao possuir dificuldades estruturais para se organizar (p. 59), o subproletariado espera solues pelo alto, capazes de realizar seus anseios de classe. Lula
teria encarnado as expectativas desse subproletariado. A combinao de poltica econmica
conservadora, ao mesmo tempo em que a conjuntura econmica internacional favorecia as
commodities brasileiras, com a promoo de um pacto social onde o PT abandonaria sua
estratgia baseada naquilo que Singer define como reformismo forte, causador de possveis
tenses sociais, e a adoo de polticas compensatrias como o Bolsa Famlia, o incremento
do salrio mnimo e o crdito consignado, teriam em seu conjunto levado ao realinhamento
eleitoral e a incorporao do subproletariado como principal sujeito de um novo bloco de
poder. Para ele, O pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia
17
Os Sentidos do Lulismo, Civilizao Brasileira, 2012.
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econmica, construir substantiva poltica de promoo do mercado interno voltado aos
menos favorecidos, a qual, somada manuteno da estabilidade, corresponde a nada
mais nada menos que a realizao de um completo programa de classe (ou frao de
classe, para ser exato) (p. 76).
Um dos resultados dessa opo pelos (mais) pobres teria levado a outro
realinhamento eleitoral, o das classes mdias, formando um bloco poltico e eleitoral anti-
lulista e anti-petista, liderado pelo PSDB. Diante da opo petista de substituir o
reformismo forte, marcado por aceleradas mudanas sociais ao preo de relativo grau de tenso social e poltica com as classes dominantes, por um reformismo fraco, com mudanas lentas e quase imperceptveis, onde no se atia o conflito de classe e se busca
um pacto de governabilidade com as classes dominantes, o lulismo se caracterizaria por
operar dentro de uma margem de manobra possvel em uma correlao de foras dada. Na
conjuntura econmica mundial aberta no incio do novo sculo, coincidindo com o primeiro
mandato de Lula, mas especialmente a partir do segundo em 2007, os grandes supervits
comerciais e a retomada do crescimento econmico teriam ampliado essa margem de
manobra para o governo afrouxar as regras impostas pelo capital financeiro, tornando-o
capaz de realizar um verdadeiro milagre: atender bem todas as fraes burguesas e ainda
por cima contemplar o subproletariado, neste caso, tudo sem radicalismo (p. 155). Lula teria realizado um governo de coalizo de classe, cuja base do sucesso o de ele aparecer
permanentemente como um rbitro dos conflitos de interesse. Tornar-se-ia impossvel, por
esse motivo, enquadr-lo como sendo um governo ora neoliberal ora desenvolvimentista.
Ele tudo ao mesmo tempo, mas sem ser uma coisa ou outra.
As classes sociais e as camadas do proletariado para o marxismo
Encetar uma crtica s teses de Singer para compreender o carter social das
manifestaes, exige, antes de tudo, caracterizar com preciso o conceito de classes sociais,
subproletariado e classes mdias. O que so as classes sociais? Renda e status profissional
so suficientes para definir as classes? Existiria uma classe ou frao de classe cuja
caracterstica determinante seria a de vender sua fora de trabalho abaixo de seu valor de
reproduo?
Primeiramente, preciso compreender como o marxismo conceitua as classes
sociais. A premissa bsica a de defini-las a partir da forma como ocorre o
relacionamento do trabalhador com as condies objetivas de seu trabalho (p. 65)18. Isso torna a existncia das classes sociais como um dado objetivo, tratando-se de condio
bsica a determinar as caractersticas essenciais de um modo de produo em sua
totalidade. As classes, como grupo social, definem-se em relao a outros grupos a partir de
um antagonismo onde se opem os exploradores, grupos sociais que controlam os meios de
produo e comandam a poltica e o Estado, e os explorados, grupos sociais que no so
proprietrios dos meios de produo e cuja sobrevivncia depende apenas de seu trabalho.
No caso do capitalismo como modo de produo, seu ponto de partida a separao entre
os meios de trabalho e o resultado do trabalho do prprio produtor. Marx aponta como
pressupostos fundamentais do capitalismo, a existncia de trabalhadores livres separados
18
MARX, Karl, Formaes Econmicas Pr-Capitalistas, 2 edio, 1977, Paz e Terra.
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das condies objetivas de trabalho, cuja sobrevivncia depende da venda de sua fora de
trabalho em troca de um salrio ao capitalista, proprietrio privado dos meios de produo.
O desenvolvimento de novos ramos de trabalho, resultado do avano das foras
produtivas, produz uma diversificao do proletariado, fazendo surgir novas profisses com
outros nveis de exigncia tcnica e de qualificao. A produo capitalista, em suma,
desloca fora de trabalho e capital para ramos adjacentes, acessrios e de suporte ao ramo
principal. Vejamos: A multiplicao dos meios de produo e de subsistncia com decrscimo relativo do nmero de trabalhadores leva expanso do trabalho em ramos da
indstria cujos produtos, como canais, docas, tneis, pontes etc., s trazem frutos em
futuro mais distante. Constituem-se, diretamente com base na maquinaria ou, ento, na
revoluo industrial geral que lhe corresponde, ramos totalmente novos da produo e,
portanto, novos campos de trabalho (p. 59). Importa reter, nessa passagem de Marx em O Capital, o princpio de que o capitalismo um modo de produo extremamente dinmico,
cuja condio de sobrevivncia apontada no Manifesto Comunista, o de desenvolver
permanentemente as foras produtivas, levando ao surgimento de novos ramos produtivos
que podem atuar como suporte da produo principal. O deslocamento de fora de trabalho
para esses novos setores se faz sob a condio de trabalhadores assalariados. Em suma,
diversifica-se a condio e o perfil do proletariado, sem que este perca a sua condio de
trabalhador assalariado.
Marx identifica, portanto, como duas as classes sociais fundamentais no
capitalismo: a burguesia, detentora dos meios de produo, e o proletariado, desprovido dos
meios de produo e cuja sobrevivncia exige a venda de sua fora de trabalho em troca de
um salrio19
. Entre ambas h uma relao de explorao econmica, onde a mais-valia,
gerada pelo trabalhador no processo de trabalho, forma o excedente do valor do produto sobre o valor dos constituintes consumidos do produto, isto , dos meios de produo e da
fora de trabalho (p. 171). A produo capitalista no visa outro fim, seno essencialmente produzir e se apropriar de mais-valia. Mas se a mais-valia surge no processo
de produo, sua realizao acontece no mercado, com a venda da mercadoria e sua sada
do processo de circulao. E a mais-valia produzida, quando volta s mos do capitalista,
aplicada em um novo ciclo de produo, em escala mais ampliada do que o ciclo anterior.
Marx chama esse movimento de reproduo ampliada do capital.
O capital arranca esse excedente do trabalhador, em uma primeira fase de seu
desenvolvimento, ampliando a jornada de trabalho, avanando sobre o fundo de trabalho
necessrio ao fundo de vida do trabalhador. Esse movimento definido por Marx como o
da mais-valia absoluta, onde o excedente obtido pelo prolongamento da jornada de
trabalho. Para escapar da mera subtrao desse fundo do trabalhador e premido pela
concorrncia, o capitalista desenvolve as foras produtivas para reduzir o valor da fora de trabalho, e assim encurtar parte da jornada de trabalho necessria para a reproduo
de seu valor (p. 251). Nesse segundo movimento do capital tm-se a mais-valia relativa, que decorre da reduo do tempo de trabalho pago, no pelo simples avano do capital
sobre o fundo de vida do trabalhador, como na mais-valia absoluta, mas por um aumento na
proporo de tempo de trabalho no-pago, em relao ao tempo de trabalho pago. O
19
O Capital, Abril Cultural, 1987.
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objetivo do capital apenas reduzir o tempo de trabalho necessrio para a produo de determinada mercadoria (p. 254). A mais-valia relativa filha direta do sistema de mquinas, momento em que o capital atinge sua forma mais completa.
Importante salientar que ao ter em vista como seu maior objetivo a extrao de
mais-valia, quando o capitalismo atinge a fase da mais-valia relativa, no perpassa qualquer
inteno humana em melhorar as condies de vida do operrio. Marx demonstra que a
mais-valia relativa no representa por si s um maior grau de civilidade na explorao do trabalho pelo capital. Como a maquinaria reduz o tempo de trabalho pago ao reduzir o valor
das mercadorias que compe a cesta de produtos necessrios reproduo da fora de
trabalho, torna-se possvel ampli-la, sem com isso torn-la uma forma de explorao
menos predatria e violenta. O desen