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Janet Malcolm, um dos maiores nomes do jornalismo americano, emprega todo seu talento já comprovado em livros como O jornalista e o assassino para adentrar outra grande história que merece ser contada. O caso parece ser muito simples: tudo leva a crer que a médica Mazoltuv Borukhova, judia ortodoxa da seita bucarana - uma mulher bonita, estranha e enigmática -, mandou matar o marido porque perdeu a guarda da filha na separação do casal, que vivia no Queens, em Nova York. É o que pensam a família da vítima, os jornalistas, a promotoria e a opinião pública. E até mesmo o juiz, que espera uma solução rápida da questão para passar as férias no Caribe. Mas para o olhar agudo e perscrutador da autora, nada é muito claro, nem exatamente o que parece. Para ela, há um paradoxo: por tudo que sabemos, Borukhova não poderia ter cometido o crime e, no entanto, tudo leva a crer que o cometeu. Acompanhamos avidamente as etapas percorridas pela jornalista, que examina com minúcia o talento (e os ardis) dos advogados, o processo de seleção do júri, a disposição do juiz, a confiabilidade das testemunhas, a posição da imprensa. Aos poucos, Malcolm desvela a complexidade dos fatos e das pessoas, aponta para fios que permanecem soltos, sugere motivações obscuras e põe em dúvida o sistema judiciário dos Estados Unidos. Como diz a autora: “Na disputa entre narrativas, quem vence é a história mais consistente, não a verdade”. E a palavra final fica com o leitor perplexo.A edição traz, ainda, uma longa entrevista com Malcolm.

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Coleção Jornalismo Literário — Coordenação deMatinas Suzuki Jr. A sangue frio, Truman CapoteBerlim, Joseph RothChico Mendes: Crime e castigo, Zuenir VenturaDentro da floresta, David RemnickElogiemos os homens ilustres , James Rufus Agee eWalker EvansEsqueleto na lagoa verde, Antonio CalladoFama e anonimato, Gay TaleseA feijoada que derrubou o governo, Joel SilveiraFilme, Lillian RossHiroshima, John HerseyHonra teu pai, Gay TaleseO imperador, Ryszard Kapu sci nskiO jornalista e o assassino, Janet MalcolmO livro das vidas, org. Matinas Suzuki Jr.O livro dos insultos de H. L. Mencken , seleção,tradução e posfácio de Ruy CastroA luta, Norman MailerA milésima segunda noite da avenida Paulista, JoelSilveira

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Na pior em Paris e Londres, George OrwellOperação Massacre, Rodolfo WalshRadical Chique e o Novo Jornalismo, Tom WolfeO rei do mundo, David RemnickO reino e o poder, Gay TaleseO segredo de Joe Gould, Joseph MitchellStasilândia, Anna FunderO super-homem vai ao supermercado , NormanMailerA vida como performance, Kenneth TynanVida de escritor, Gay TaleseA vida secreta da guerra, Peter BeaumontVultos da República, org. Humberto WerneckO xá dos xás, Ryszard KapuścińskiAnatomia de um julgamento, Janet Malcolm

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Para John Dunn

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E este caso de assassinato não é nadadiferente de qualquer outro que jájulguei. Parece que você pensa que eleé muito extraordinário . Não é. A vidade alguém foi tirada, alguém é preso ,eles são indiciados, são processados econdenados. Isso é tudo.

Juiz Robert Hanophy, 21 de abril de2009

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Tudo é ambíguo na vida , exceto notribunal.Possível jurado (não selecionado) naescolha do júri,

29 de janeiro de 2009

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Sumário

Anatomia de um julgamentoEntrevista com Janet Malcolm

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1.

Por volta das três da tarde do dia 3 demarço de 2009, na quinta semana dojulgamento de Mazoltuv Borukhova —uma médica de 35 anos acusada deassassinar o marido —, o juiz voltou-separa o advogado da ré, Stephen Scaring,e fez uma pergunta pro forma: “Há algo

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mais, senhor Scaring?”. O julgamentoestava perdendo força. Duastestemunhas de defesa haviam acabadode afirmar que Borukhova tinha um bomcaráter, e esperava-se que o advogadoencerrasse seus trabalhos com essedepoimento modesto e crível. Scaringrespondeu, sem qualquer ênfaseespecial: “Sim, meritíssimo. Acho que adoutora Borukhova vai testemunhar emdefesa própria”.

Não houve reação imediata na sala dotribunal meio vazia, no terceiro andar daSuprema Corte do Queens, em KewGardens. Somente depois queBorukhova caminhou até o banco das

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testemunhas e fez o juramento foi que seregistrou o choque causado pelo anúnciode Scaring. A boca de um dosespectadores — a do irmão mais novoda vítima — se abriu, como que pararepresentar por mímica o espanto quecorria pela sala.

Borukhova ficara sentada à mesa dadefesa durante o julgamento e asaudiências que o precederam, fazendoanotações em um bloco de papeltamanho ofício, ocasionalmenteerguendo a cabeça para sussurrar algoao ouvido de Scaring ou trocar umrápido olhar com a mãe e as duas irmãs,que sempre sentavam na segunda fileira

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dos bancos para espectadores. Era umamulher baixa e magra, de aparênciapeculiar. Seus traços eram delicados e apele tinha uma palidez cinzenta. Nasaudiências, vestia um paletó pretomasculino e uma saia também preta queia até o chão, e seus longos cabelosescuros e crespos caíam pelas costas,amarrados por um cordão vermelho.Parecia uma estudante revolucionária dos é c u l o xix. Para o julgamentopropriamente dito (talvez por conselhode alguém), ela mudou o visual. Prendeuos cabelos e usou paletós de coresclaras e saias longas estampadas.

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Parecia bonita e encantadora, massubnutrida. Quando subiu ao banco dastestemunhas, vestia um paletó branco.

Scaring, um homem alto e esguio de68 anos, é um conceituado advogadocriminalista de Long Island. É famosopor assumir casos que parecemimpossíveis de ganhar — e vencê-los.Mas o caso Borukhova tinha umadificuldade especial: ela não era a únicano banco dos réus; estava sendo julgadacom Mikhail Mallayev, o homemacusado de matar o marido para ela.Scaring, no entanto, não o representava;um advogado mais jovem chamadoMichael Siff fora nomeado pelo tribunal

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para Mallayev, e Siff não tinha a mesmacapacidade de realizar proezasimpossíveis. Mallayev tinha grandeschances de ser condenado — haviafortes provas materiais e testemunhaiscontra ele — e, nesse caso, Borukhovateria de ser condenada também, poishavia uma conexão irrefutável entre osdois: o exame dos registros dostelefones celulares mostrara que, nastrês semanas anteriores ao assassinato,eles haviam trocado 91 telefonemas.

Outro obstáculo no caminho deScaring para salvar Borukhova daprisão perpétua era o promotorprincipal, Brad Leventhal, que não tem a

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experiência de Scaring — é vinte anosmais novo —, mas é um excelenteadvogado de tribunal. Ele é baixo egordo, usa bigode, caminha com osmovimentos rápidos e dardejantes de umgarnisé e tem uma voz muito aguda,quase feminina, que em momentos deexcitação chega ao falsete de um discotocado na velocidade errada. Usa asmãos quando fala: às vezes esfrega umana outra num gesto de expectativa, àsvezes ergue os braços numa agitaçãoimpotente. Em seu traje de inverno —um sobretudo preto até as panturrilhas eum chapéu de feltro também preto —

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poderia ser confundido com um homemde negócios parisiense ou um psiquiatrabúlgaro. No tribunal, em seu terno cinzacom um alfinete da bandeira americanana lapela, e com seu sotaque do Queens,ele desempenha com perfeição o papelde promotor público assistente dodistrito (ele é também chefe doDepartamento de Homicídios da Políciado Queens). A segunda cadeira da mesada promotoria estava ocupada porDonna Aldea, uma bela e jovempromotora assistente com um sorrisoabrasador e mente de aço, que vem dadivisão de apelação. Leventhal contavacom ela para apresentar argumentos

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jurídicos irrespondíveis perante o juiz.

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2.

Em suas declarações iniciais,Leventhal, diante do júri e falando semconsultar anotações, montou a cena doassassinato — que ocorreu em 28 deoutubro de 2007 — à maneira de umthriller antigo:

Era uma manhã de outono clara, ensolarada,

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revigorante, e naquela manhã revigorante umhomem jovem, um jovem ortodontista queatendia pelo nome de Daniel Malakov,estava caminhando pela rua 64, no bairro deForest Hills do condado de Queens, apoucos quilômetros de onde estamos agora.Com ele estava sua menininha, sua filha dequatro anos, Michelle.

Malakov, continuou Leventhal, haviadeixado seu consultório, cheio depacientes à espera, e fora levar acriança a um playground, a uma quadrade distância, para a visita de um dia damãe, “sua ex-esposa” MazoltuvBorukhova. Então, “enquanto Daniel

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estava do lado de fora do playgroundAnnadale, a pouca distância da entradapara o parque, a poucos metros de ondeestava sua filhinha, este réu, MikhailMallayev, veio como que do nada. Namão, trazia uma pistola carregada epronta para ser usada”. Quandopronunciou as palavras “este réu”,Leventhal estendeu dramaticamente obraço e apontou no outro lado da salapara um homem atarracado na casa doscinquenta anos, com barba grisalha epesadas sobrancelhas escuras, óculos dearos de metal e um solidéu, sentadoimpassivelmente à mesa da defesa.Leventhal passou a descrever como

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Mallayev atirara no peito e nas costasde Malakov, e, enquanto o ortodontista“jazia no chão morrendo, com o sangueque escorria de suas feridas e empapavasua roupa e se infiltrava no cimento, estehomem, o réu, que acabou com a vida deDaniel, calma e friamente pegou a arma,enfiou-a no casaco, deu as costas e subiua rua 64, na direção da rua 102, e fugiudo local”. Com as mãos estendidas eagitadas, Leventhal perguntou ao júri:

Por quê? Por que este réu ficaria à espera deuma vítima desprevenida e inocente? Umhomem, provarei a vocês, que ele nemsequer conhecia pessoalmente. Por que ele

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ficaria à espera, com o mal em seu coração?

Leventhal respondeu à pergunta:

Porque foi contratado para fazê-lo. Foi pagopara fazer isso. Ele é um assassino. Umassassino pago. Um executor. Um assassinode aluguel. A serviço de quem? Quemcontrataria este homem, este réu, para matara sangue-frio uma vítima inocente napresença de sua própria filha? Quem poderiater sentimentos tão intensos em relação aDaniel Malakov que contrataria umassassino para acabar com a vida dele?Quem?

Leventhal caminhou em direção à

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mesa da defesa e, de novo, ergueu obraço e apontou — dessa vez paraBorukhova. “Ela”, Leventhal disse, coma voz chegando ao tom mais agudo. “Aré Mazoltuv Borukhova, ex-esposa deDaniel Malakov. A mulher com quemele esteve envolvido em um processo dedivórcio acalorado, contencioso eamargo durante anos.”

Leventhal falou por mais cinquentaminutos, com o encantamento de suanarrativa ocasionalmente rompido porobjeções dos advogados oponentes, massempre restaurado pelo poder de suaexposição. A maioria das objeções foirejeitada pelo juiz, que disse várias

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vezes ao júri: “O que eles dizem nasdeclarações iniciais não constituiprova”.

O que eles dizem nas declaraçõesiniciais é decisivo, obviamente. Seentendermos que um julgamento é umadisputa entre narrativas concorrentes,podemos perceber a importância daprimeira aparição dos narradores. Aimpressão que causam no júri éindelével. Um advogado que aborrece eirrita o júri durante seu discurso deabertura, não importa as provas quepossa apresentar mais tarde, arriscafatalmente sua defesa.

Leventhal foi seguido por Siff, que

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aborreceu e irritou o júri a tal ponto queum jurado jovem levantou a mão e pediupara ir ao banheiro. Siff, ingenuamente,começou elogiando Leventhal por seudesempenho: “Excelente apresentaçãodo promotor. Excelente advogado deacusação”. E: “O senhor Leventhal fezum trabalho formidável. Estou sentado,olhando para minhas anotações, e fiqueiimpressionado com o fato de ele ter sidocapaz de desfiar tudo aquilo sem umpapel”. Siff continuou com um discursoconfuso e cheio de meandros sobre a“presunção de inocência” em que “meucliente está envolvido”, que só serviu

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para ressaltar a probabilidade de culpade Mallayev. A segunda cadeira dadefesa estava ocupada por MichaelAnastasiou, um advogado afável e demodos corteses na sala de audiências,mas que participou minimamente doprocesso.

A má sorte de Scaring culminou como sorteio de Robert Hanophy para juizdo caso. Não ocorreram muitasabsolvições em julgamentos presididospor Hanophy. Em um artigo de 2005, umrepórter do Daily News chamado BobPort escreveu que Hanophy é conhecidoc o m o Hang ’em [Forca neles] e“acredita-se que ele mandou para a

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prisão mais assassinos que qualqueroutro juiz nos Estados Unidos”. “Nãotenho outra coisa senão homicídios”,disse Hanophy a Port. “Isso é tudo o quejulgo. Gosto do que faço. Adoro fazerisso.” Scaring pedira a Hanophy que seabstivesse do caso porque ele tinha umfilho e uma filha que trabalhavam noescritório da Promotoria, o que oinclinaria a favor da acusação. Eletambém pediu um julgamento separadopara Borukhova. O juiz enforcadorrecusou os dois pedidos.

Hanophy é um homem de 74 anos,corpulento, com uma cabeça pequena e amaneira falsamente cordial que os

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pequenos tiranos americanos cultivam.De seu estrado, ele tem a visão de todoo tribunal e de cada espectador, bemcomo de todos os atores do drama queestá sendo encenado sob sua direção.“Você aí de boné”, ele ergue a voz parafalar com um espectador. “Tire isso.Não é permitido usar boné aqui.” Em1997, Hanophy foi censurado pelaComissão de Conduta Judicial doEstado de Nova York por fazer“observações indignas, descorteses edepreciativas” e ser “mesquinho” e“injurioso” durante uma sentença. Asobservações não se dirigiam à acusada

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— uma patética jovem inglesa chamadaCaroline Beale que dezoito meses anteshavia matado o bebê a que dera à luzsozinha em um quarto de hotel deManhattan —, mas à nação britânica.

Beale estava obviamenteenlouquecida quando enfiou o recém-nascido em um saco plástico e depoistentou tirar o cadáver do país, escondidosob suas roupas. Mas, ao ser presa noaeroporto, ela não foi enviada para umhospital psiquiátrico. Foi acusada deassassinato e mantida na prisão da ilhaRikers durante oito meses. Aintervenção de um advogado irlandês-americano chamado Michael Dowd

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acabou finalmente com o calvário dagarota louca. Dowd negociou um acordopelo qual ela admitiria a culpa ereceberia uma sentença de cinco anosem liberdade condicional, oito meses deprisão (já cumpridos) e um ano detratamento psiquiátrico. Três dias antesda sentença, os pais de Bealemanifestaram indignação quanto aotratamento que a filha mentalmentedoente recebera no país, chamando de“medieval” o sistema americano dejustiça. Seus comentários foramamplamente divulgados pela imprensa.Na sentença, Hanophy contra-atacou —e meio que enlouqueceu. Ele leu uma

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declaração em que caracterizava odireito britânico como “primitivo eincivilizado”, pois “concede umaisenção geral de processo judicial oupunição para as pessoas que matam seusfilhos, quando estes têm menos de umano de idade”. Caracterizava aInglaterra como “um grande país quecondenou um número elevado depessoas com base no falso depoimentode sua polícia, e permitiu que passassemquinze ou dezessete anos na prisão.Fizeram de tudo para que elaspermanecessem lá, mesmo quandosabiam, ou deveriam saber, que o lugar

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delas não era aquele”. Essa declaraçãonotável — que não tinha nada a ver como caso Beale, e veio do fato de Hanophyter visto o filme Em nome do pai, sobrea condenação injusta de três irlandeses euma inglesa por um atentado terrorista— é um exemplo do que os juízes achamque podem fazer em suas salas detribunal. O poder absoluto de que gozamcorrói a falta de confiança em si mesmosde que dependemos para nos mantermais ou menos na linha. Hanophyultrapassou demais os limites (ainda porcima, não resistiu a chamar o pai deBeale de “o sujeito que fala mais do quedeve”), e levou uma reprimenda da

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Comissão de Conduta Judicial. Mas nãohá razão para pensar que as palavrasduras dos comissários tiveram algumefeito sobre o estilo de Hanophy notribunal. Um documento de censura nãotem consequências. O poder de Hanophypermanece inalterado e ele continua aexercê-lo com evidente prazer, e semnenhum sinal de dúvida.

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3.

O comportamento de Scaring notribunal é discreto, polido e tem certotoque de altivez. Ele usa o costumeiroterno listrado dos advogados, mas,quando se levanta para interrogar umatestemunha, não abotoa o paletó comofazem os advogados na televisão (e

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como Siff faz). Scaring se move comfacilidade elegante e fala com uma vozsuave, benigna — até que, durante uminterrogatório, assume o inevitável tomacusatório. Então, permite que sua vozse levante e assuma um tomdesagradável. Em alguns pontos, seuscabelos pretos ficaram grisalhos e seurosto moreno às vezes parece abatido.Tem um sorriso doce. Sua audição não éboa.

Scaring começou seu gentil, quaseterno interrogatório de Borukhova comuma série de perguntas biográficas. Asrespostas estabeleceram que ela nascerano Uzbequistão, na antiga União

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Soviética, e vivera na cidade deSamarcanda, onde frequentara o colégioe depois a faculdade de medicina, daqual recebera um diploma de medicinageral e cirurgia aos 22 anos. Scaring nãoperguntou a Borukhova sobre suareligião. Os advogados são contadoresde histórias que tentam manter suanarrativa em linha reta e limpa. Ahistória da seita judaica bucarana, à qualpertenciam os acusados, a vítima e suasrespectivas famílias, éexasperadoramente complexa e confusa.

A confusão começa com o nome.“Bucarano” refere-se tanto à antigacidade de Bucara como ao emirado de

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Bucara que intermitentemente dominouuma grande região da Ásia Central entreos séculos xvi e xx. Consta que aexpressão “judeus bucaranos” foicunhada por viajantes europeus queestiveram no emirado no século xvi.Ninguém sabe realmente como, por quee quando esses misteriosos judeuschegaram à Ásia Central. Diz a lendaque descendem de uma das tribosperdidas de Israel, que nunca voltou docativeiro babilônico no século vi a.C.As histórias da seita são relatosemaranhados de uma sobrevivênciateimosa por mais de 2 mil anos sob

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domínio persa, mongol, árabe, imperialrusso, e, por fim, russo-soviético. Assimcomo os judeus da Europa Oriental e daEspanha, os bucaranos foram impedidosde se dedicar à agricultura e seacotovelaram no comércio e noartesanato, nos quais se sobressaíram. Alíngua bukhori ou bucárica desenvolveu-se como um dialeto da língua tajik-persae se transformou em uma mistura depersa, hebraico e russo. Na década de1970, um grande número de judeusbucaranos emigrou para Israel e osEstados Unidos, e, depois da dissoluçãoda União Soviética, quase todos osremanescentes na Ásia Central partiram

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para esses países. Hoje, há 100 mildeles em Israel e 60 mil nos EstadosUnidos, onde a maioria mora nos bairrosde Forest Hills e Rego Park, no Queens.

Durante o interrogatório de Scaring,Borukhova contou — em um inglês comsotaque e ligeiramente imperfeito — queviera para os Estados Unidos em 1997,estudara inglês durante um ano e entãofizera os exames de certificação médica;depois de três anos de residência em umhospital no Brooklyn, em 2005 recebeulicença para praticar a medicina e, em2006, tornou-se médica certificada.Scaring voltou-se então para ocasamento de Borukhova com Daniel

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Malakov, em 2002, e perguntou: “Comoera sua relação com seus sogros?”.

“Havia um problema, para começar”,respondeu ela.

“Qual era o problema?”“Eles não queriam que nos

casássemos.”Antes, seu sogro Khaika Malakov

testemunhara para a acusação. Trata-sede um homem alto e vistosamente bonitode sessenta e tantos anos, que tem algoda emotividade indecorosa de umpersonagem de um conto de IsaacBashevis Singer. Scaring, em seupronunciamento de abertura, ao tentar

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desacreditar as acusações da famíliaMalakov contra Borukhova no dia doassassinato, disse: “O pai de Daniel éum ator da comunidade. Vocês sabem oque os atores fazem — inventamcoisas”. Isso é um absurdo, obviamente:os atores simplesmente dizem suas falas,eles não as inventam. Era Scaring queestava inventando coisas. Se existealguma profissão (além da deromancista) que se baseia em inventarcoisas, é a de advogado de tribunal. Nosjulgamentos, a “prova” é o fio a partirdo qual os advogados tecem histórias deculpa ou inocência. Com ointerrogatório de Borukhova, Scaring

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estava oferecendo uma alternativa para ahistória que Leventhal havia contado emsua abertura e depois recontado porintermédio do depoimento de suastestemunhas. Ele tomaria a mesma provaque, na narrativa de Leventhal,demonstrava a culpa de Borukhova e autilizaria para demonstrar sua inocência.

A quarta semana do julgamentoproduzira uma ilustração fascinante damaleabilidade das provas processuais.Durante uma busca policial noapartamento de Borukhova, foiencontrada e apreendida uma fita deáudio. Era uma gravação truncada,fragmentária, quase inaudível, em um

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minicassete, de uma conversa entreBorukhova e Mallayev, falando embucárico e russo. A conversa aconteceraem maio de 2007, cinco meses antes doassassinato. A promotoria pedira que umtradutor do fbi chamado MansurAlyadinov fizesse uma versão para oinglês, e o chamou ao tribunal para lerseu texto enquanto a fita erareproduzida. A conversa fora gravadapor Borukhova dentro de um carro emmovimento — secretamente, deduziuAlyadinov, quando ouviu o som de umpano sendo friccionado, o que significaque o microfone estava escondido sob

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as roupas. Mas o que estava sendodiscutido não era uma trama deassassinato. A fita gravara uma dessasconversas irritantemente banais entreduas pessoas ao celular que ouvimosimpotentes em trens e restaurantes. Osfragmentos do diálogo tedioso que seouvia não tinham nenhuma relevânciapara o caso. Por que, então, Leventhalestava tocando a fita para o júri? Omotivo ficou claro nas duas últimasfrases. O tribunal despertou de repentede seu torpor quando ouviu Mallayevdizer a Borukhova: “Você vai me fazerfeliz?”. E Borukhova respondeu: “Sim”.

Pode-se imaginar a felicidade do

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próprio tradutor quando ouviu essasfrases — e a de Leventhal, quando asleu na transcrição. Duas interpretaçõesse apresentam imediatamente, ambascondenatórias. A primeira é queMallayev estava dormindo comBorukhova e perguntava sobre umencontro futuro. A segunda é queMallayev estava falando sobre dinheiro:ela o faria feliz dando-lhe dinheiro paraassassinar o marido? Em ambos oscasos, o cenário parecia ruim paraBorukhova. No entanto, quando Scaringinterrogou Alyadinov, a coisa começoua parecer melhor. Essa é a ideia e abeleza do interrogatório. Um

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interrogatório bem-sucedido é comouma rodada de roleta que restaura umafortuna perdida. Primeiro, citando umatradução que Borukhova lhe dera,Scaring fez o tradutor do fbi admitir que,entre outros erros, ele omitira de seutexto as palavras em inglês “Dia dasMães”, e que uma discussãodesconcertante sobre uma “casa maluca”era na verdade uma conversa sobre aloucura em que se transformava oaeroporto no dia — Dia das Mães — emque Mallayev viajou de sua casa, emChamblee, Geórgia, para Nova York.Depois, Scaring se concentrou na frase

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“Você vai me fazer feliz?”. Na traduçãode Borukhova, Mallayev dissera “Vocêestá descendo?”. O carro tinha chegadoao seu destino. Ele usara a palavrapadayesh — que significa literalmente“Você está caindo?” — em um sentidoidiomático, para perguntar se ela estavasaindo do carro. Em vez de padayesh, otradutor ouvira obraduesh (“Você vaime fazer feliz?”). O erro eracompreensível: em uma fita muito difícilde ouvir, era fácil entender mal umapalavra. Mas o fato de o erro de audiçãoter favorecido tanto a acusação, de terfeito avançar tão bem a narrativa de umaassociação desagradável, sugere que se

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tratava de um erro de audiçãodeliberado — inconsciente talvez, masmesmo assim deliberado. Passamos avida ouvindo mal, vendo mal eentendendo mal para que as históriasque contamos a nós mesmos façamsentido. Os advogados levam essatendência humana a um nível superior.Eles estão fazendo apostas mais altasque nós quando remendamos arealidade, a fim de transformar ahistória contada por um idiota em umanarrativa ordenada, que sirva aos nossosinteresses.

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4.

Uma semana antes de Scaringsurpreender a todos ao convocarBorukhova para testemunhar, ele parouum jornalista chamado William Gorta nocorredor do lado de fora da sala dotribunal e perguntou: “O que você acha?Devo pô-la no banco das testemunhas?”.

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Gorta respondeu: “Meu Deus, não!”.Scaring lançou-lhe um olharinterrogativo e Gorta disse: “Se vocêchamá-la, Leventhal vai acabar comela”. Gorta, um ex-policial da cidade deNova York que agora cobre os tribunaisdo Queens para o New York Post , eraum dos cinco jornalistas que iamhabitualmente ao julgamento e sentavamna primeira fila dos assentos paraespectadores, que têm uma placadizendo “Somente advogados”, mas quea imprensa também pode ocupar. Osquatro outros jornalistas eram NicoleBode, do Daily News, Anne Bernard, doNew York Times , Ivan Pereira, do

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Forest Hills Ledger, e eu, representandoa New Yorker. Hanophy estava ciente denossa presença, assim como da de todasas outras pessoas e de tudo o queacontece na sala do tribunal, seu feudo.Os outros assentos para o públicoestavam ocupados, em grande parte, pormembros das famílias dos acusados e davítima, sentados em lados opostos docorredor, como se fosse um casamento,com o lado da noiva e o lado do noivo.O lado do noivo — atrás da mesa dapromotoria e da bancada do júri —estava sempre bem cheio. KhaikaMalakov não faltou um único dia, e

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vinha cercado por uma horda deparentes e amigos — a maioria homens—, cuja atmosfera de raiva e agressãofazia com que se quisesse fugir delescomo de um enxame de vespas. Duranteos recessos, essa horda ia para ocorredor e se aglomerava em torno deLeventhal e, no dia de seus depoimentos,das testemunhas da polícia chamadaspelo promotor.

O lado da noiva era maisescassamente preenchido. Suasfrequentadoras habituais eram Istat, amãe de Borukhova, e as irmãs da ré,Sofya e Natella, que traziam livros deorações que liam para si mesmas.

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Enquanto a família Malakov gostava defalar com a imprensa diária, que a citoumuitas vezes, a família Borukhovarecusava todas as aproximações dosjornalistas. Sentavam-se protegidas porum muro de reticências e uma aura dearrogância e desdém. Às vezes,ganhavam a companhia do irmão deBorukhova, Shlomo, e, ocasionalmente,de um menino. As irmãs usavam saiasaté o chão e perucas bufantes de cabeloscrespos. A mãe, magra e cansada, nãotirava um casacão longo de cintomarrom e o chapéu de feltro. Durante oano de audiências que antecedeu ojulgamento houve alguns incidentes, com

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insultos lançados de um lado docorredor para o outro, mas, no momentodo julgamento propriamente dito, asfamílias foram mantidas em um silênciomal-humorado pelas ameaças deHanophy de expulsá-las da sala. Umamoça solitária sentava-se atrás da mãe edas irmãs de Borukhova: a filha deMallayev, Maya.

Scaring fez suas perguntas cautelosase gentis e Borukhova falou sobre suaseparação de Daniel Malakov algunsmeses depois do nascimento deMichelle, em 2003, seguida por duastentativas de reconciliação e por uma

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separação definitiva em abril de 2005.Ele perguntou a ela sobre a “disputapela guarda” com Daniel e sobre a“transferência de custódia” que ocorreraseis dias antes do assassinato.

A disputa em relação à criança dera aLeventhal o motivo para o crime. No dia3 de outubro, três semanas e meia antesdo assassinato, um juiz da SupremaCorte estadual chamado Sidney Straussproferiu uma decisão que, nas palavrasde Leventhal, “sem intenção einadvertidamente resultaria noassassinato de Daniel”. Strauss decidiuque Michelle, de quatro anos — quepassara toda a vida com a mãe —,

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deveria ir morar com o pai. Borukhova,atordoada, apresentou um recurso contraa decisão, que foi rejeitado; dezenovedias mais tarde, aconteceu a“transferência”, dos braços da mãe paraos do pai, de uma criança que gritavahistericamente. “Se o destino de Danielnão tinha sido selado quando o juizStrauss emitiu aquela decisão em 3 deoutubro de 2007, ele foi certamenteselado na noite de 22 de outubro de2007”, disse Leventhal em suasdeclarações iniciais. Sua narrativa tinhaagora uma sustentação mítica. Era tãoinevitável que Borukhova — “ela” — sevingasse de Daniel pela perda de

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Michelle quanto Clitemnestra sevingaria de Agamêmnon pela perda deIfigênia.

Ao pôr Borukhova no banco dastestemunhas, Scaring esperavadesmantelar essa história. Eleconvenceria o júri de que a jovemmédica que respondia às suas perguntascom tamanha modéstia e sinceridade nãopoderia ser uma assassina. Sim, haviaprovas contra ela — as 91 chamadas decelular não podiam ser esquecidas —,mas tudo que se sabia sobre a vida e aspessoas clamava contra a ideia de queaquela mulher gentil e culta fosse a

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mentora de uma conspiração criminosa.Por meio de seu interrogatório, Scaringpropunha transformar a assassinavingadora arquetípica de Leventhal emuma mamãe trabalhadora comum eperseguida. Os telefonemas seriamexplicados. O “julgamento precipitado”da polícia apareceria como o erro queera.

A pedido de Scaring, Borukhovadescreveu sua árdua rotina de médicaplantonista em dois hospitais,Westchester Square e White Plains,onde trabalhava em turnos de 24 horas, ecomo membro do corpo clínico dohospital Forest Hills North Shore. Ela

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contou que às oito horas da noiteanterior ao assassinato começara seuturno de 24 horas no White Plains, que,no entanto, devido a uma circunstânciaespecial, ela conseguira terminar apósdoze horas. A circunstância especial erauma visita a Michelle que Malakov lheconcedera. Depois da noite no hospital,ela o encontraria no playground deAnnadale e ele entregaria Michelle parauma visita de um dia inteiro. Foimontado um plano para atividades comas primas — as filhas das irmãs deBorukhova, Ludmila e Sofya. Mas nãohavia hora marcada para o encontro.“Meu marido não era pessoa de se

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limitar no tempo”, disse Borukhova, ecitou as quatro ou cinco chamadas decelular entre ela e Malakov feitas nahora anterior ao encontro no playground,culminando em um telefonema no qualMalakov diz: “Marina, estou vendovocê”, enquanto ele caminha em direçãoa ela na rua. (Marina era o nome usadopelos membros da família, em vez deMazoltuv.)

Quando chegou a esse ponto danarrativa, Borukhova não aguentou. “Vácom calma, Marina”, disse Scaring.

“Desculpem-me”, disse Borukhova.Ela se recompôs e continuou: “Eu me

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ajoelhei e abri os braços e Michellecomeçou a correr”. Ela continuou:

Eu a peguei e balancei. Fiz dois balanços outalvez três, e quando parei estávamos todosrindo. Estávamos todos tão felizes, e Danieltambém. Ele estava... ele estava muito felizcom seu... com seu... não sei... sorrisoradiante. E ele se aproximou e segurou osquadris e as pernas dela, e eu segurei a partesuperior do corpo dela e os braços e opescoço, e estávamos balançando juntos. [...]E nós estávamos balançando, e Michellegosta do vento. Estávamos soprando o vento,fazendo “uhuu” no rosto dela, todos felizese rindo.

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Scaring perguntou: “O que vocêsestavam dizendo, se é que estavamdizendo alguma coisa, enquanto faziamisso?”.

Borukhova disse: “Não estávamosdizendo nada, nós ríamos e estávamostodos felizes”.

“E então algo aconteceu?”“Depois de muito tempo eu me sentia

como parte de uma família novamente.Nós a balançávamos e ela estava muitofeliz. Estávamos felizes. Estávamostodos rindo. E de repente eu senti umpeso. Senti que não podia segurá-la.”Malakov soltara as pernas e os quadrisde Michelle, disse algumas palavras em

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russo (quando Borukhova começou acitá-las, Leventhal protestou e o juizaceitou) e correu para a rua. “Ele estáolhando para mim e eu olho para ele.Seu rosto está pálido e como quetorturado, contorcido de dor. Eu estavaolhando para ele e ele segurava o peito.[...] Eu vejo o sangue.”

O que é mais notável no relato deBorukhova a respeito do assassinato é aausência de som. Sua primeirapercepção de que algo estava errado nãofoi o som de tiros, mas o peso semsustentação da criança. Seu relato écomo um filme mudo. Isso despertou

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imediatamente a suspeita da polícia.Quando um detetive “me perguntou seouvi alguma coisa ou se vi alguémcorrendo, eu disse que não ouvi nada,não vi ninguém. E ele disse que aspessoas ouviram os tiros a três quadrase você estava bem ali e não escutou.Você tem de inventar uma históriamelhor”. Borukhova nunca mudou suaestranha história. Ela sempre insistiuque nunca ouvira os tiros.

No banco das testemunhas,Borukhova continuou seu relato: “Nãome lembro de todos os meus atos, masme lembro de pegar Michelle e correr,e, enquanto corria, eu ainda estava

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olhando para ele”. Ela viu Malakov cairno chão. Ela se viu em um banco noplayground, perto dos balanços,segurando a criança nos braços. “Euestava gritando e chorando, mas lembroda minha filha, ela segurou minha mão edisse: ‘Mamãe, não chore’.” Borukhovadeixou a criança no playground com umamulher que ela conhecia e correu devolta para a rua a fim de tentar reanimaro homem cuja vida estava fugindo desuas mãos. Ela fez compressõestorácicas e respiração boca a boca.Quando um policial chegou, Borukhovapediu equipamento médico deemergência — um ressuscitador manual

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e equipamentos para entubação — queele não tinha. Ele a ajudou nascompressões torácicas. Quando umaequipe médica de emergência da políciachegou, os socorristas a empurrarampara o lado. Eles tinham o equipamentoadequado, mas o usaramdesajeitadamente. Ela assistiu impotenteenquanto eles lutavam e não conseguiamentubar Malakov. “Deixem-me fazerisso, deixem-me fazer isso. Eu faço issodiariamente”, ela disse. Por fim, elespermitiram que ela realizasse aentubação. Mas Malakov não reagiu, foiposto em uma maca e levado de

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ambulância para o vizinho North ShoreHospital, onde morreu. Borukhovacomeçou a sentir dores no peito enáuseas e foi levada para o North Shoreem outra ambulância. Ela achou queestava tendo um ataque cardíaco. Algunsdos parentes do marido já estavam nohospital. Estavam “gritando e meculpando”. Sua cunhada Nalia “estavame acusando: ‘Você o matou, você omatou, você o matou’”. Borukhova foilevada para outra sala, onde um detetivechamado Ismet Hoxha a interrogou.

“Ele a acusou de matar seu marido?”,perguntou Scaring.

“Sim, ele acusou.”

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“O que ele disse?”Borukhova respondeu que Hoxha

dissera: “Acharam o cara que matou seumarido”, e que “eu deveria meprecaver”. Ela acrescentou: “Hoxhaprometeu que, se eu cooperasse, elefalaria com o promotor e me daria umbom acordo”.

Hoxha estava mentindo. O sujeito quematou o ortodontista e friamente pôs aarma no bolso ainda não havia sidoencontrado. Ele desaparecera, emboranão completamente sem deixar vestígios.Deixara para trás um silenciador feitocom uma garrafa de água sanitária, quefora colado na arma com fita-crepe, mas

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havia caído, expelido pelo primeiro tiro.A polícia comparou as impressões nafita com as digitais de MikhailMallayev, arquivadas na polícia deNova York desde 1994, quando ele foipreso em uma estação de metrô deManhattan por não pagar a passagem.Mas as impressões digitais sóconfirmaram o que a polícia já tinhacontra Mallayev: o registro de seucelular com as chamadas de Borukhova.Através delas, ele foi rastreado até suacasa em Chamblee; foi preso lá eextraditado para o Queens. Paraencerrar a questão, uma testemunha do

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tiroteio o identificou em uma sessão dereconhecimento. Mas demoraria mesespara que esses triunfos da políciaviessem a ocorrer.

Quando escrevi que Hoxha estavamentindo ao dizer que o assassino haviasido encontrado, o fiz na pressuposiçãode que Borukhova estava dizendo averdade quando o citou nesse sentido.Evidentemente, trata-se de umapressuposição que eu não deveria terfeito. Hoxha talvez nunca tenhapronunciado essas palavras —Borukhova pode tê-las inventado. Se astestemunhas respeitassem o juramento de“dizer a verdade, toda a verdade, e nada

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além da verdade”, não haveria ascontradições entre os testemunhos quedão a um julgamento sua trama tensa eao júri a tarefa de decidir em quemacreditar. Quando interrogou Hoxha, queprestou um longo depoimento para aacusação, Scaring disse asperamente,“no hospital, você a acusou de matar omarido, não é?”, e Hoxha disse “não”.Scaring prosseguiu: “Você disse ‘sevocê admitir que matou seu marido, ascoisas ficarão fáceis para você’, nãodisse?”. Hoxha negou novamente. Emquem acreditar, Hoxha ou Borukhova?Padayesh ou obraduesh?

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5.

Durante a escolha dos jurados, parailustrar a problemática do preconceito,Scaring apresentou um exemplo dobeisebol: “Digamos que você torce paraos Yankees ou para os Mets e eles estãojogando na World Series. É o nonoinning e parece que poderia ser um

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home run, mas a bola chega muito pertoda linha de falta. Você pode vê-la comoválida ou pode vê-la como inválida —não porque você quer mentir, masporque é o que você quer”. Supõe-seque os jurados não devem querer algumacoisa. Eles devem acompanhar a partidaentre os advogados em um estado deausência de desejo. Sem torcida na salado tribunal, por favor. Mas torcer estáem nosso sangue: tomamos partido comorespiramos. O processo de escolha dosjurados não é mais que oreconhecimento de que o ideal daneutralidade é inatingível, e de que atendenciosidade é inevitável. É um jogo

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de adivinhação — cada advogado,enquanto questiona um possível jurado,tenta farejar suas inclinações. Um juradoque quer ser escolhido sabe escondê-lasmelhor. Ele foi advertido pelo juiz parater “a mente aberta”, ser “justo” e“objetivo”, e mantém a boca fechadapara não trair que não é nenhuma dessascoisas. Na escolha dos jurados do casoMallayev-Borukhova, os escolhidosforam os mais lacônicos, aqueles quenão disseram quase nada. O primeiroescolhido — que assim se tornou oprimeiro jurado — foi um jovemchamado Christopher Fleming, queacabara de se formar no Siena College,

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com especialização em finanças. Suasrespostas às perguntas do juiz, deLeventhal, de Scaring e de Siff foramexemplares. Ele se comportava como umdiscreto secretário de político,dissimulado mas polido, reservado masrespeitoso. Ambos os lados o aceitaramsem objeção, e ambos, evidentemente,tinham grandes esperanças de contarcom sua predisposição.

Cada lado tem direito a certo númerode impugnações peremptórias, pelasquais pode rejeitar jurados sem darqualquer razão. Há também impugnaçõescom causa. Nesse caso, são dados

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motivos para a rejeição: o jurado empotencial disse que não poderia serneutro, depois de ler sobre o caso nosjornais, ou respondeu sim à pergunta“Você acha que os policiais são maisdignos de crédito do que os cidadãoscomuns?”. Se o juiz concede aimpugnação com causa, o advogadocontestador não utiliza uma de suasimpugnações peremptórias. Em 1986, aprópria impugnação peremptória foiimpugnada, em um caso chamado Batsonvs. Kentucky. Na escolha de juradospara o julgamento de um homem negrochamado James Kirkland Batson,acusado de arrombamento e roubo, o

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promotor usara suas impugnaçõesperemptórias para rejeitar quatrojurados negros; foi escolhido um júri sóde brancos e o réu foi condenado. Ocaso foi levado à Suprema Corte, quedecidiu que a impugnação peremptórianão poderia ser usada se o motivo nãodado fosse manifestamente de raça. Emdecisões posteriores, a regra foiestendida para gênero, etnia e religião.

Na escolha de jurados do casoMallayev-Borukhova, a decisão Batsonfoi invocada três vezes por Scaring eduas por Leventhal. As duas primeirastentativas de Scaring de convencer o juizde que a acusação estava “tentando

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derrubar tantas mulheres quantasconseguisse” foram rejeitadas, mas aterceira teve sucesso. Hanophy admitiuque a impugnação peremptória deLeventhal de uma mulher jovemchamada Laurie Rosen revelava umpadrão de discriminação contra asmulheres, e ela foi admitida no júri, parafúria de Leventhal e satisfação deScaring — que, no entanto, teve vidacurta. Rosen, que era fisioterapeuta decrianças portadoras de deficiência (erespondera, quando lhe pediram paracitar seus hobbies, “esportes, culinária econscientização do autismo”), voltou do

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almoço e implorou chorosamente que adeixassem sair; ela não percebera o queo isolamento significaria para seutrabalho noturno com crianças autistas.Leventhal e Scaring entraram em choquenovamente, e dessa vez Hanophy ficouao lado de Leventhal e liberou Rosen.“Essa seleção de jurados está infernal”,ouviu-se o escrivão dizer a umfuncionário do tribunal.

Era o quinto dia de escolha dejurados e vários assentos da bancada dojúri ainda estavam vagos. Centenas depossíveis jurados haviam entrado notribunal e a maioria foi embora depoisque Hanophy anunciou que se tratava de

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um julgamento de cinco semanas compossível isolamento no final, eperguntou se isso seria uma dificuldadepara alguém. Era uma dificuldade paraquase todos, e Hanophy foi leniente coma maioria deles. Dentre aqueles cujasdesculpas foram consideradas fracasencontrava-se um jovem professor deescola secundária que estavapreparando alunos para um exame denível avançado de história e economiaeuropeias e achava que sua presença naescola era uma necessidade urgente.Como seu apelo direto ao juiz fracassou,o professor recorreu ao subterfúgio deresponder às perguntas dos advogados

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com inteligência e sutileza tão flagrantesque não havia chance de serselecionado. Leventhal impugnou-o eScaring e Siff não se opuseram.

Depois de perder Rosen, Scaring tevede suportar o tormento de ver um sujeitochamado Stein sentado no júri. QuandoScaring usou sua última impugnaçãoperemptória contra Stein, Leventhalreplicou com a decisão Batson: eledisse que o advogado estavasistematicamente eliminando homens.Scaring lutou ferozmente para evitar queStein fizesse parte do júri. Eleargumentou que impugnara Stein — um

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homem branco mais velho e corpulentode Floral Park que trabalhava para oDepartamento de Transportes da Cidadede Nova York — não porque fossehomem, mas porque era o “SenhorJurado da Acusação”. Olhem para ele:“Seu cabelo tem corte perfeito, bigode,vem de um lugar conservador, trabalhapara a cidade de Nova York”. Scaringapontou para outros jurados brancos dosexo masculino (como Fleming) que nãocontestara. Mas o juiz apoiou Leventhal,e Stein ficou como segundo juradosuplente. Na manhã seguinte, naconferência privada com o juiz, Scaringfez uma última tentativa desesperada

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contra Stein. Disse que falara com umaempresa de consultoria de júri

para me aconselhar sobre quais questõespoderiam dizer respeito à escolha do júri,dado o fato de que minha cliente é umaimigrante russa, imigrante judia russa, quese veste de maneira diferente da maioria.Suas roupas, seu vestido. Vestidos longos,que vão até os pés. Ela tem os cabelos —embora presos em um coque agora — muitolongos. Suas irmãs que provavelmente irãotestemunhar usam perucas pois são casadas,e são perucas bem feias. Quer dizer, elaschamam a atenção. Elas também usamvestidos longos. Então, trata-se de umacomunidade judaica singular da Rússia.

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Minha firma de consultoria disse que eudeveria ser muito cauteloso com alemães.

Durante o longo colóquio que seseguiu entre Scaring e Hanophy (comuma discussão sobre se o fato de FloralPark ter uma grande população alemã eum famoso restaurante alemão chamadoKoenig provava que Stein era alemão),o não dito acabou sendo dito. “Fazemosjulgamentos baseados na aparência daspessoas”, disse Scaring. E “a razão pelaqual a ré tem um advogado experiente éporque um profissional qualificado tempercepção no que diz respeito ao tipo dejurado que será mais favorável a ela do

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que à acusação ou o contrário”. Poucosdias antes, Leventhal, referindo-se aBorukhova, perguntara a um painel depossíveis jurados: “Alguém aqui achaque, pelo fato de ela ter um diploma demedicina, por ser uma mulher instruída,porque foi adiante e avançou por simesma em sua formação, alguém aquisente que isso terá impacto sobre suacapacidade de avaliar as provas nestecaso?”. Não houve resposta. Se euestivesse naquele painel, teria, com todaa honestidade, levantado a mão. Mas, seeu tivesse escondido minha inclinação afavor das mulheres, Leventhal, depoisde me olhar e me ouvir falar, teria, não

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obstante, me reconhecido como aSenhora Jurada de Defesa e me chutadopara fora do júri o mais rápido quepudesse.

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6.

Meus colegas jornalistas eram feitosde matéria mais dura. Ivan Pereira, umhomem muito jovem, de compleiçãoleve e fala concisa, era um fervorosotorcedor do time da casa. Havia sido umdos primeiros jornalistas a chegar àcena do crime e escrevera sobre o caso

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n o Ledger durante os 22 mesesseguintes. Ele tinha um sentimentocompreensível de propriedade emrelação ao assassinato. Observara apolícia construir seu processo e nãohavia dúvida em sua cabeça sobre aculpa e o caráter desprezível dos réus.Gorta, um homem de barba, de cinquentae tantos anos, que interpreta o papel dojornalista experiente a quem nada podesurpreender, e que é extremamentegentil, era um fã mais circunspecto daacusação. Durante os procedimentoslegais, mascava chicletes e, quando nãoestava tomando notas, fazia palavrascruzadas. Nicole Bode, uma loira

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esbelta muito bonita, beirando os trintaanos, e também muito gentil, lia Grantaquando não estava tomando notas, etambém era silenciosamente a favor daacusação. Ela e Gorta mandavammatérias sucintas diárias para seusrespectivos tabloides com mancheteslevemente indecorosas (“Broca nodentista: caso de assassinato”). Otribunal era a rotina deles e, às vezes,tinham de sair correndo para umjulgamento digno de noticiário em outroandar.

Anne Barnard, uma morena jovem ebonita, era a rainha da coorte dosrepórteres. Enquanto as matérias de

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Gorta e Bode tinham de ocupar seu lugarmodesto entre as histórias de homicídioa machadadas e escândalo sexual doNews e do Post, e as de Pereira, entre asreportagens sobre mudança dezoneamento para o Ledger, os artigos deBarnard tinham pouca ou nenhumaconcorrência no Times; sua matéria eraquase sempre a única do dia sobrejulgamento de assassinato. O maisinvejável é que concediam a Barnard oespaço que, para a frustração dos outros,lhes faltava para transmitir a sensaçãodos pequenos movimentos que moviam ojulgamento. O Times tinha começado a

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cobrir o caso um ano antes de ele serdesignado a Barnard; a conexão com osjudeus bucaranos distinguia-oevidentemente do assassinato comum esórdido que o Times deixa para ostabloides. “Médica é acusada dehomicídio, e seu povo tem de aguentar avergonha” foi a manchete de umamatéria do Times de 17 de fevereiro de2008. A repórter Cara Buckley fora àcomunidade judaica bucarana eentrevistara pessoas na rua, bem comofamiliares da vítima e da ré. (“Não seidizer por que isso aconteceu. Agora, osbucaranos estão mergulhados navergonha, pela primeira vez.”) Barnard,

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que fala russo, continuou a explorar oveio bucarano em sua primeira matéria,de 9 de fevereiro de 2009 (“Enquantoum deles é julgado por assassinato,bucaranos debatem a perda dos velhoscostumes.”), mas, à medida que ojulgamento avançava, sua atençãocomeçou a mudar das fofocas da rua 108em Forest Hills para os personagens nasala do tribunal. Fosse para refletir agrandeza do Times ou por obediência aum código pessoal, Barnard se vestiadiferente de nós. Ela usava saias evestidos interessantes e bonitos, emcontraste com os jeans, veludos côtelése suéteres que Gorta, Bode, Pereira e eu

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usávamos. Suas matérias aguçadas sobreo julgamento eram tão agradáveis quantosuas roupas elegantes; saber que o juizHanophy ficaria irritado com elas nãoera o menor dos prazeres que elas noscausavam.

Costuma-se pensar que os jornalistassão competitivos e, às vezes, sãomesmo, mas o sentimento principal entreeles é fraternal. Os jornalistas se amamcomo se fossem membros de umafamília — no caso deles, uma espéciede família criminosa. Em Democraciana América, Alexis de Tocquevilledisse que os jornalistas americanos são

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pessoas de “status social baixo, [cuja]educação é apenas superficial, e [cujos]pensamentos muitas vezes se expressamde forma vulgar”. E continuavaobservando que “a marca registrada dojornalista americano é um ataque diretoe grosseiro, sem sutilezas, às paixões deseus leitores; ele desconsideraprincípios para invadir as pessoas,seguindo-as em suas vidas privadas epondo a nu suas fraquezas e seusvícios”. Ao longo do tempo, o statussocial e o nível de educação dosjornalistas aumentaram, e alguns delesescrevem extremamente bem. Mas aprofissão mantém sua transgressividade.

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A fragilidade humana continua a ser amoeda de seu comércio. A malignidadecontinua sendo seu impulso animador.Um julgamento oferece oportunidadesúnicas para a crueldade jornalística.Quando as palavras malignas, muitasvezes caluniosas de advogados em lutasão retiradas do contexto acalorado dojulgamento e impressas em tipos frios,uma tortura nova e mais requintada ésofrida pelo objeto de abuso deles —que fica então exposto ao abuso domundo. Os jornalistas que comparecemjuntos a um longo julgamentodesenvolvem uma camaradagemespecial nascida de um bom humor

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compartilhado: suas matérias estãosendo escritas por si mesmas; elesprecisam apenas colher as frutas maisbaixas das terríveis narrativas dosadvogados. Podem ficar sentados eapreciar o show.

A convite dos simpáticos Gorta eBode, às vezes eu almoçava com eles nasala de imprensa, no primeiro andar dotribunal, de onde eles enviavam suasmatérias; o lugar tinha um simpático arde bagunça — poderia ter servido decenário para uma comédia de 1930sobre repórteres de jornal —, mobiliadocom móveis de escritório velhos e

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desemparelhados e arquivos de metalenferrujados, coberto de jornais, coposde papel e detritos de anos de ocupaçãotransitória. Bode e Gorta comiam lado alado, junto a um par de computadoresanacrônicos, conversando enquantodigitavam, e eu abria espaço para meusanduíche em uma mesa sem uso cobertacom exemplares amarelados do Post edo News. Quando não estavam em seusescritórios fora do tribunal, Barnard ePereira também se reuniam naquela sala.

Mas certa vez, quando chegou a horado almoço, me vi andando na direção deum banco, em um corredor à saída dosaguão do tribunal, onde esperei por

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uma mulher chamada Alla Lupyan-Grafman. Ela era uma falante de russoque ficava à mesa da defesa durante ojulgamento, na qualidade de intérpretenomeada pelo tribunal para os réus.Ambos os réus falavam inglês —Borukhova, em particular, não tinhanecessidade de intérprete —, mas otribunal fizera a nomeação por cautela,para garantir que nenhum problema delinguagem interferisse no suave zumbidodas rodas da justiça. Alla era umamulher esbelta, vestida com elegância,excepcionalmente amistosa, de quarentae tantos anos, com uma juba de cabelosloiros prateados e encaracolados, com

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quem, no final do julgamento, todos osadvogados, funcionários do tribunal,jornalistas e mesmo alguns espectadorestrocavam abraços calorosos. Elatambém era imigrante da ex-UniãoSoviética, mas não bucarana: era judiaasquenaze de Minsk.

Durante o almoço, Alla falou sobre axenofobia dos primeiros imigrantesjudeus russos em relação aos recém-chegados da Ásia Central e citoualgumas das caracterizações maisextravagantemente estereotipadas: osbucaranos eram alienígenas e nãototalmente civilizados — gente

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selvagem, tribal, capaz de violência, atéde assassinato. Eram judeus, mas nãojudeus apropriados, estavam mais paramuçulmanos que para judeus. Tinhamhábitos de vida sujos — as coisasficavam espalhadas em seus jardins. Poroutro lado, alguns deles eram misteriosae sinistramente ricos, e construíammansões vistosas e de mau gosto quenão tinham lugar na despretensiosa eacolhedora Forest Hills.

Alla tinha uma reclamação especialem relação aos bucaranos, de caráterlinguístico. Ela disse que a geração maisvelha nunca aprendera russocorretamente, embora fosse a língua

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oficial no regime soviético. QuandoKhaika Malakov testemunhou — com umintérprete traduzindo simultaneamente—, ela criticou muito seu russo. Masnão censurou o russo de Borukhova — esimpatizava com ela. Ela e euoferecemos uma à outra os sanduíches eas frutas que havíamos trazido de casa, edebatemos o enigma do caso: nãoparecia possível que Borukhova tivessefeito aquilo, mas era provável quetivesse.

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Tribunais são templos de espera.Aqueles de nós que iam diariamente aoteatro do julgamento Mallayev-Borukhova aprenderam que a subida dopano às 9h30 não significava nada, sóanunciava uma espera de pelo menosuma hora. O elenco completo depersonagens — os advogados, os réus,as testemunhas, a estenógrafa dotribunal, o intérprete e o juiz — nunca sereunia na hora designada. Somente osfactótuns da casa — o escrivão, oassistente do juiz e cinco ou seispoliciais armados — chegavam a tempoe ocupavam calmamente o palco; osfuncionários remexiam em papéis

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empilhados em suas mesas e atendiamtelefonemas, e os policiais seencostavam nas paredes, bebiamgarrafas d’água e brincavam uns com osoutros. Os espectadores que ainda nãohaviam aprendido a avaliar a hora quepoderiam chegar sem perder um lugardesejável, e que se arrependiam de suapontualidade, os observavamatentamente, em busca de sinais dealerta.

Um advogado era, às vezes, a causado atraso, mas com mais frequência eraa chegada tardia de um ou de ambos osréus, mantidos em prisões separadas na

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ilha Rikers e levados para o tribunal emvans separadas. Quando a notícia dachegada dos réus era de alguma formacomunicada — nunca fui rápida osuficiente para ver como isso acontecia—, o foco da atenção dos espectadoresvoltava-se para uma porta de madeiratrancada, à esquerda da mesa da defesa.Policiais e advogados entravam e saíampor ela, em um minucioso ritual deabertura e fechamento. Por fim, depoisque os advogados entravam pela últimavez e tomavam seus lugares à mesa dadefesa, e que o juiz subia em seuestrado, os acusados chegavam à sala dotribunal. Havia sempre algo de chocante

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nessa entrada. Nunca me acostumei aela. A porta de madeira se abria derepente e Mallayev e Borukhova,algemados às costas e ladeados porpoliciais armados, que os seguravampelo braço, entravam em fila no tribunal.Parecia que os réus estavam sendoarrastados, embora isso pudesse ser umailusão produzida pelo fato de estaremalgemados. A sensação de brutalidadesó diminuía depois que os policiaisremoviam as algemas e os réus tomavamseus assentos junto à mesa da defesa.Durante a retirada das algemas,Borukhova sempre olhava por cima doombro direito; Mallayev olhava direto

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para a frente. Os policiais retiravam oslivros de oração que ambos os réusseguravam em suas mãos algemadas,abriam e removiam as algemas, e depoisdevolviam os livros para seusproprietários. No breve intervalo entre aremoção das algemas e a devolução dolivro de orações, Borukhova fazia opequeno e econômico gesto de beijar amão para as irmãs e a mãe. Durante ojulgamento, perguntei-me muitas vezessobre as condições nas prisões para asquais Mallayev e Borukhova voltavamdepois dos procedimentos do dia;quando o julgamento terminou, fui à ilha

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Rikers para ver as celas em que haviamvivido — por treze meses, no caso deBorukhova, e dezoito meses, no deMallayev. Minha visita só confirmou ovazio do conceito de presunção deinocência.

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8.

No caminho para me encontrar comAlla, passei pela mãe e as irmãs deBorukhova, que também almoçavamnaquele corredor. Eu as cumprimentei eelas me retribuíram com um aceno decabeça. Haviam recusado meu pedidode entrevista, mas um dia encontrei

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coragem para abordá-las novamente etocar em um assunto que eu sabia quedevia ser caro aos seus corações: ainanição de Borukhova. Desde suaprisão, por causa de suas rigorosasregras alimentares religiosas, elapraticamente parara de comer e perderauma quantidade enorme de peso. Elarecusava a comida da prisão e estavavivendo à base de matzos e manteiga deamendoim da cantina. Durante asaudiências prévias, Scaring pediu aHanophy que o julgamento fosserealizado o quanto antes devido à perdacontínua de peso da ré (o pedido foinegado), e agora ele pedia

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repetidamente que trouxessem para asala do tribunal alimentos que elapudesse comer; trouxeram algumasfrutas, mas Borukhova continuava amorrer de fome. As irmãs responderambrevemente às minhas perguntas,enquanto a mãe, que não fala inglês,observava. As irmãs disseram que,embora alimentos kosher estivessemdisponíveis na ilha Rikers, eles nãotinham um nível suficientemente alto dekashruth para sua irmã comer. Pergunteise elas podiam levar-lhe a comidakosher correta; disseram que queriam,mas não lhes tinham dado permissão.Falaram com relutância e cautela. A

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irmã mais velha, Natella Natanova, tinhamotivos para tomar cuidado com suaspalavras. Um ano antes, havia sido presapor ameaçar Gavriel Malakov, o filhomais novo da família Malakov. Ele aacusou de dizer: “Você sabe, se vocêfalar, será o próximo a ir embora”.Libertada por uma fiança de 75 mildólares, ela foi julgada e, no final,absolvida das acusações de coação eintimidação de testemunha. O julgamentoocorreu em julho de 2008, na SupremaCorte do Queens, e Brad Leventhal era opromotor. As irmãs estavam ansiosaspara encerrar a conversa comigo e eu

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não insisti. A mãe sorriu para mim umavez, e notei que seus dentes da frenteeram de ouro.

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9.

Borukhova ocupou o banco dastestemunhas no meio da tarde, e, depoisde interrogá-la por duas horas e meia,Scaring olhou para Hanophy e disse:“Excelência, seria este um momentoapropriado para um recesso?”.

“Não”, respondeu o juiz.

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Scaring insistiu. “Estou um poucocansado e receio que o júri possa estarum pouco enfastiado também. É umatestemunha importante para mim.”

“Eles estão bem”, disse Hanophy.“Como assim?”“Eles estão bem. Eles costumam

levantar a mão se querem alguma coisa.”“Se levantassem a mão, então

poderíamos sair?”“Não, não. Deixe disso. Vamos

continuar.”Eu estava sentada ao lado de Billy

Gorta e lhe perguntei por que o juiz nãotinha concedido o pedido de Scaring. “Ojuiz está de mau humor”, disse Gorta.

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“Ele achava que os sumários seriamamanhã. Agora isso pode levar dias.” Oritmo do julgamento havia acelerado. Ohorário de almoço e as pausas erammais curtos, a espera no início do diaera menos interminável, e, o que eramais visível e significativo, os pedidosdos advogados para conferênciassidebar [privadas], que haviam sidoconcedidos quase invariavelmente nosprimeiros dias do julgamento, eramagora sempre rejeitados.

“Sidebar” refere-se à área abaixo eao lado do banco do juiz — a maisdistante da bancada do júri, onde os

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advogados de ambos os lados se reúnemdepois que um deles recebe um sim àpergunta: “Posso me aproximar,excelência?”. A conferência sidebar éuma forma de “não na frente dascrianças”. As crianças (os jurados eespectadores) ficam fora do alcance daaudição, para que os adultos (osadvogados e o juiz) possam falar decoisas que seus pupilos não devemouvir. No entanto, as palavraspronunciadas a meia-voz pelosadvogados não se perdem para aposteridade, mas se tornam parte —muitas vezes uma parte muitointeressante — da transcrição do

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julgamento. Na conferência privada, osadvogados saem dos papéis que estavamdesempenhando na audiência pública ese comportam como atores que repassamcom o diretor os detalhes dodesempenho de uma noite, apontando oslapsos uns dos outros, pedindo umamelhor direção e, às vezes, atépropondo que a peça seja suspensa —ou seja, que o julgamento seja anulado.

Em 17 de fevereiro, por exemplo,durante uma longa conversa emparticular, anterior ao testemunho deWilliam Bieniek, o especialista emimpressões digitais da promotoria, Siffreclamou quase em lágrimas do

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tratamento que o juiz lhe dispensaradurante seu interrogatório de umatestemunha de acusação no dia anterior.A transcrição diz:

Sr. Siff: [...] Houve uma série lamentável dediálogos entre mim e o senhor, diante dojúri, que creio que tenha sido extremamenteprejudicial e altamente danosa para a defesa.O júri, como todos vimos, admira e respeitasua excelência. Quando o senhor fala comeles...O Tribunal: E com razão.Sr. Siff: Com certeza. Eles sorriem, sãocomunicativos com o senhor. Vimos seusrostos e suas reações quando o senhor se

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dirige a eles, e então há este perigo agora,que resultou no fato de que o senhor estáme repreendendo em frente do júri.O Tribunal: Eu nunca repreendi você. Eu nãorepreendi você.Sr. Siff: Bem, é por isso...O Tribunal: Se alguém faz objeção a umacoisa e eu a aceito, isso dificilmente érepreensão.Sr. Siff: Acredito que foi mais longe do queisso. Chegou ao ponto em que o senhorScaring teve de pedir uma sidebar.

No entanto, poucos dias depois,quando conversei com Siff — sujeitosimpático de seus quarenta e poucosanos, casado com uma policial

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aposentada de Nova York e que temdois filhos —, ele só tinha elogios paraHanophy. “Embora eu não concorde comtodas as suas decisões, acho que ele éum excelente juiz. Eu o conheço hámuitos e muitos anos. Conheço suafamília há muitos anos. Acho que ele éjusto. É um homem bom. Um cavalheiro,um homem amável, engraçado. A únicacoisa que vejo de errado nele é sertorcedor dos Jets.” Siff me contou queHanophy o escolhera a dedo paradefender Mallayev. Normalmente, osadvogados da Defensoria Pública sãoselecionados por rotação, mas neste

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caso “ele realmente me procurou e mechamou, perguntou-me se eu queria estecaso. Eu disse que tudo bem”.

Enquanto Siff interrogava o perito emimpressões digitais, Scaring pediunovamente uma conferência privada. Ojuiz ainda estava pondo Siff em seulugar. Quando o pedido foi concedido,Scaring disse: “O senhor Siff estáfazendo perguntas repetidas vezes àsquais sua excelência tem mantido asobjeções. O júri está ficando muitoindisposto. Estou observando o júri”.Porém, a preocupação de Scaring nãoera tanto as suscetibilidades de seucolega humilhado quanto a

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probabilidade de que “o júri váconfundir nós dois”. Ele continuou, deforma um pouco incoerente, embora osignificado do que queria dizer estivessebem claro:

Acho difícil, mesmo para mim, levantarquestões em relação a esse testemunho,pois não quero ser confundido com ainsatisfação com que o júri está vendo oadvogado de defesa. [...] Não quero ser vistocomo parte do que parece ser condutaobstrucionista do senhor Siff diante do júri.Gostaria de pedir, excelência,respeitosamente, a anulação do julgamento,para que eu possa tentar expor meus

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argumentos de defesa.

É claro que o pedido de Scaring paraanular o julgamento não deu em nada: ojuiz simplesmente o negou. Nointerrogatório de Bieniek, o desempenhode Siff foi, na verdade, melhor do quehavia sido até então no julgamento.Havia muito em jogo ali. Se o peritoconvencesse o júri de que as impressõesdigitais no silenciador eramindiscutivelmente de Mallayev, entãonão haveria esperança para o cliente deSiff — ou, por extensão, de Scaring. Atarefa de Siff era tentar desacreditarBieniek, e ele trabalhou valentemente

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nesse sentido, contestando suascredenciais, lançando dúvidas sobre suaobjetividade, e, o mais interessante,atacando toda a “ciência” da análise deimpressões digitais. Ele não é o único afazer isso: ao longo da história dessatécnica policial, ocorreram casos deidentificação errada e, à luz delas,houve críticas à sua pretensão deinfalibilidade. Nos últimos anos, depoisdo caso escandaloso de um advogado doOregon chamado Brandon Mayfield, quefoi preso por envolvimento no atentadoterrorista de Madri de 2004 porque suasimpressões digitais pareciam coincidircom as impressões latentes encontradas

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em um saco de detonadores que estavaperto do ataque — e no final nãocoincidiam em nada —, essas críticasaumentaram e foram recentementerecapituladas em um relatório doConselho Nacional de Pesquisa,segundo o qual todas as técnicasforenses (exceto a análise de dna)carecem de rigor científico.

Desse modo, Siff tinha algumas cartasexcelentes para jogar durante ointerrogatório de Bieniek — porém, nãoconseguiu jogá-las. Sempre que fazia aBieniek uma pergunta sobre o casoMayfield ou outros casos registrados deerros de identificação, Leventhal

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objetava e Hanophy sustentava aacusação. Chegou a um ponto em queSiff disse: “Você já ouviu falar sobre ocaso...”, e Leventhal objetou antes que onome do caso fosse citado. Quando Siffprotestou (“Eu nem sequer mencioneinada sobre a questão, excelência”),Hanophy disse: “Vai ser CurtisMayfield, ou como é mesmo o nome docara?”. “Brandon Mayfield”, disse Siff.“Ia ser este o nome?” “Não, não seria”,disse Siff com dignidade, e citou outrocaso de erro de identificação, quetambém não teve autorização paraprosseguir.

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Quando Scaring assumiu ointerrogatório do perito de impressãodigital, foi como a virada em umamaster class, quando o mestre mostracomo deve ser feito. Bieniek estavaacostumado a testemunhar emjulgamentos, e alguém lhe ensinara atécnica de olhar para o júri quandorespondia às perguntas. Ele claramentefizera isso quando interrogado porLeventhal e Siff. Mas, quando chegou avez de Scaring, ele olhou para oadvogado como um rato olha para umacobra. Scaring prendia não somente aatenção das testemunhas, mas tambémdos jurados, que passavam de um olhar

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embotado para a frente a um olhar vivoe interessado. Bieniek (com a ajuda dojuiz) tinha acabado com Siff. Agora, elese curvava à maestria de Scaring. Suatruculência transformou-se emobediência. Ele fez concessão atrás deconcessão. Disse o que Scaring queriaque ele dissesse. “Você concordariaque, quando faz um exame deimpressões digitais latentes, você devefazê-lo sem qualquer noçãopreconcebida a respeito de quem é apessoa que supostamente cometeu ocrime?”, perguntou Scaring. “Sim,claro”, respondeu Bieniek. Scaring

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então o confrontou com uma afirmativaanterior de que ele ouvira conversassobre o caso em seu escritório e sabiaque torres de telefonia celular estavamenvolvidas.

P: Não existe um relatório ou uma anotaçãoque você fez que diga quando você recebeuessa informação, correto?R: Eu nunca recebi a informação, senhor.P: Bem, você acabou de nos dizer querecebeu...R: Eu ouvi a informação por alto.P: Bem, se ouviu por alto, você a recebeu,certo?R: Não.P: Bem, se você a ouviu por alto, estava

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ciente dela, certo? Sim?R: Vagamente.P: E se a informação contaminaria suaidentificação, isso seria importanteobservar, correto? Sim? Sim?R: Não contaminaria meu exame.P: Não contaminaria?R: Não, pois eu não sabia do que se tratava.P: Bem, este caso estava em todos osjornais, não estava?R: Estava nos jornais, sim.P: Quer dizer, você estava trabalhando emum caso que estava na televisão, nos jornais— é verdade, não é? Certo?Sr. Leventhal: Excelência, vou fazer objeçãoa isso.

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Evidentemente, não menoshipnotizado por Scaring que Bieniek,Hanophy não aceitou a objeção.

O Tribunal: Eu vou permitir isso. Vá emfrente. Você pode responder.P: Sim?R: Sinto muito, você poderia...P: Você está trabalhando em um caso queestá na televisão, em todos os jornais, nãoé?R: Isso é verdade.

Quando Brandon Mayfield foi presoem Portland, Oregon, em 6 de maio de2004, todos os jornais noticiaram quesuas impressões digitais correspondiam

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às impressões latentes no saco dedetonadores em Madri e que, alémdisso, ele era um muçulmano convertidoe defendera um terrorista chamadoJeffrey Leon Battle. Mayfield advogaraem defesa de Battle em um caso decustódia, e não no julgamento criminalde 2002, que o levou a ser condenado adezoito anos por sua participação ematividades terroristas — mas essadistinção não parecia importar. Em umdepoimento juramentado de apoio àordem de prisão para Mayfield, umagente federal chamado Richard K.Werder descrevia detalhadamente asconspirações contra a América que

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Battle e seus companheirosconspiradores Patrice Lumumba Ford,Ahmed Bilal, Muhammad Bilal e MaherHawash confessaram no julgamento. Eletambém citava organizações muçulmanasdo Oregon, aparentemente sinistras, comas quais Mayfield estava associado.Tudo isso em cima da “identificação100%” de suas impressões digitaisfeitas por um examinador de digitaissênior do fbi e verificadas por doisoutros examinadores do órgão. Ascoisas não estavam boas para Mayfield.Parecia um caso de trabalho policialrealizado com brilhantismo.

Quando Borukhova foi detida, em 8

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de fevereiro de 2008, parecia umexemplo igualmente satisfatório deknow-how da polícia. Em uma matériapublicada no dia 10 de fevereiro de2008, na seção de cidades do Times, AlBaker celebrava o triunfo doDepartamento de Polícia de Nova York:

Em um mundo onde nenhum caso é moleza— em que os ganhos investigativos sãomedidos pelas chamadas telefônicas feitas,pelas portas em que se bate e pelos passosnecessários para vasculhar bairros — e ondemuitas pistas levam a becos sem saída, asrespostas à morte do doutor Malakov noQueens vieram em ondas de providência

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para a polícia. As migalhas investigativaspareciam se alinhar tão bem que não teriamdado nem mesmo um bom programa de tv.

Baker enumerava todos os detalhesque tinham levado à prisão, primeiro deMallayev e depois de Borukhova, epassava a citar um detetive de políciaaposentado: “Era um castelo de cartas; éo que parece. Tudo o que os detetivesfizeram deu certo. Tudo o que os mausfizeram, deu errado. E, quando a coisacomeçou a andar, caiu do jeito quedeveria cair”.

No caso de Mayfield, ela não caiu dojeito que deveria. A Polícia Nacional

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espanhola, que desde o início foi céticaem relação à identificação de Mayfield,acabou por apresentar as impressõesdigitais de um argelino chamadoOuhnane Daoud, que eram as corretas.Mayfield foi libertado da prisão (ondefora mantido em confinamento solitáriopor duas semanas) com um pedido dedesculpas e, por fim, uma indenizaçãode 2 milhões de dólares por seucalvário. A analogia com o caso deMallayev e Borukhova — para os quaisnão apareceu nenhum deus ex machinade impressões digitais salvadoras —está na questão da contaminação. Emambos os casos, teriam sido fatos

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conhecidos sobre o dono das impressõesdigitais 100% correspondentes queinfluenciaram a decisão doidentificador? Será que os examinadoresd o fbi escolheram as digitais deMayfield em detrimento dos outrosdezenove conjuntos de impressõesapontadas por um computador — aoqual haviam pedido para encontrarimpressões com os padrões de cristasemelhantes aos das impressões latentesno saco de explosivos — porque sabiamque ele era um muçulmano com ligaçõescom terroristas? Quando Bieniek olhoupara as impressões de Mallayev atravésde sua lente de aumento, estaria ele

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pensando nas chamadas de telefonecelular entre Mallayev e Borukhova quehaviam posto Mallayev inicialmente sobsuspeita? A matéria de Al Baker dá aimpressão de que a polícia encontrouMallayev através de suas impressõesdigitais. Mas não foi o caso. Devido àschamadas de telefone celular, Mallayevjá era um suspeito quando as impressõesdigitais surgiram. A polícia tinhadescoberto muita coisa sobre ele — porexemplo, que era parente de Borukhovapor casamento e que talvez tivessecomparecido ao casamento Borukhova-Malakov. Na verdade, a polícia não

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escapara da labuta de ir de porta emporta, da qual Baker acreditava que elafora providencialmente poupada. Eleshaviam (como eu soube depois porintermédio de um membro da famíliaMalakov) pacientemente interrogado osMalakov para saber os nomes de todosos convidados do sexo masculinopresentes ao casamento, e para colherqualquer informação sobre eles.

No entanto, mesmo no momento emque obrigou Bieniek a admitir que, sim,ele sabia sobre as torres de celular e,sim, ele lera sobre o caso e virareportagens na televisão, Scaring deviaestar ciente da contracorrente que

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levava Mallayev para o mar, eBorukhova com ele. Se um perito dizque as impressões digitais combinam,quem ousará dizer que não, ainda que ográfico que mostra supostamente pontosde correspondência entre uma impressãodigital latente e uma com tinta — comoo mostrado ao júri no julgamento deMallayev e Borukhova — não revelenada ao olho não treinado? Acompostura de Bieniek foradesmanchada por Scaring, mas aautoridade de seu testemunho tedioso eincompreensível permaneceu intactaquando ele deixou o banco dastestemunhas e, ao passar pela bancada

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do júri, acenou adeus.

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10.

A aparição, no banco dastestemunhas, de um advogado magro ejovem chamado David Schnall marcouuma virada na narrativa da acusação; atéentão, ela havia girado em torno deMallayev. As testemunhas de Leventhaltinham sido policiais, testemunhas

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oculares do tiroteio e criminologistas,cujos depoimentos estabeleceram aculpa do assassino de aluguel daGeórgia. Agora Leventhal podia cuidarda mulher malvada que contrataraMallayev. Por meio de Schnall, que seidentificou como o tutor nomeado pelaJustiça para Michelle Malakov, elevoltaria à origem do caso — a decisãodo juiz Sidney Strauss que tinha levadoBorukhova a apelar para seu recursoterrível — e daria uma resposta àquestão de por que o juiz tirara a criançada mãe e a dera ao pai. Schnallintroduziria e leria para registro asobservações que Strauss fizera para

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justificar sua decisão.Em uma conferência privada, Scaring

lutou arduamente para impedir que essaleitura acontecesse. Ele disse que ospromotores queriam “mostrar que outrapessoa determinou que ela é uma pessoamá”. Hanophy decidiu contra ele. Mas,quando Schnall leu em voz alta asobservações de Strauss, elas nãofizeram de forma alguma Borukhovaparecer uma pessoa má. Elas fizeram,isto sim, Strauss parecer petulante eirracional. É rotina dos tribunais retirarcrianças de lares em que sãonegligenciadas, maltratadas, malalimentadas, traumatizadas. Não

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conheço nenhum outro caso em que umacriança bem cuidada foi tirada da mãeporque sentava em seu colo durante asvisitas supervisionadas de um paiausente e se recusava a “estabelecervínculos” com ele. Sim! Todo o motivopara a decisão radical de Strauss era suairritação com Borukhova por “impedirMichelle de estabelecer um vínculo efortalecer ainda mais o relacionamentocom o pai” durante as visitas por ordemjudicial em uma agência privadachamada Alternativas de Visitação,dirigida por assistentes sociais. “Previa-se que, através dos bons ofícios da

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Alternativas de Visitação, talvezpudesse ser criada uma atmosfera naqual o senhor Malakov poderia começara passar algum tempo com a filha dequatro anos, sem qualquer interferênciaou prepotência, ou, na falta de umapalavra melhor, asfixia dessa criançapor sua mãe”, disse Strauss, e passou acitar trechos do mais recente relatórioda Alternativas de Visitação sobre comoas visitas estavam acontecendo:

O senhor Malakov saúda constantementeMichelle com tom e voz alegre, um sorriso,e tenta abraçá-la. Michelle não reage àintenção do senhor Malakov de se

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comunicar. Michelle não fala com o senhorMalakov nem faz qualquer contato visualcom ele. Michelle agarra-se à mãe, quesempre carrega a filha para a visitação.Michelle muitas vezes enterra a cabeça noombro da mãe e afasta seu corpo do senhorMalakov quando ele tenta envolvê-la. [...] Elase agarra à mãe no início da visita e todas astentativas de separá-la fracassaram.Michelle chora histericamente junto à mãee se torna incapaz de ser consolada.

“Se alguma vez houve uma situaçãona mente deste tribunal em particularque clama por uma ação imediata, éesta, e aquela que acabo de descrever”,

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concluiu Strauss. “Portanto, o tribunalhoje, sem uma audiência [...], determinaque a custódia de Michelle seja entregueao seu pai, Daniel Malakov, deimediato, se possível.” Em outraspalavras, a solução para o problema deuma criança que chora histericamentequando ameaçada de ser separada damãe na presença do pai ausente é tirá-lada mãe e mandá-la viver com o pai!Pode-se imaginar o choque deBorukhova diante dessa decisão.Florence Fass, sua advogada —especialista em direito de família —,recorreu imediatamente, mas o tribunalde apelações manteve a decisão de

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Strauss. Borukhova não foi a únicapessoa a ficar chocada com a decisão.Os assistentes sociais haviamrecomendado que Borukhova seausentasse da visita, para que Malakovpudesse “reconstruir sua relação comMichelle”. Eles não haviam proposto atransferência de custódia. TampoucoDaniel ou sua família tinham pedidoisso. Mas em 23 de outubro atransferência ocorreu de fato, no jardimda frente da casa de Khaika Malakov,onde Michelle foi arrancada dos braçosde sua mãe e levada para dentro da casa,chorando.

Como esse pesadelo — o pesadelo de

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qualquer mãe — se tornara realidade?Que fadas malévolas haviam escrito seuroteiro surreal? Em outro procedimentojudicial, Borukhova se identificara como“uma refugiada nos Estados Unidos. Euvim pela liberdade de expressão e dereligião e pelos direitos civis também”.Que erros ela cometera para estar sobum controle estatal tão poderoso earbitrário quanto o do antigo regimesoviético? O que ela entendera malsobre seu novo país? O que a pusera nodesastrado caminho de Strauss e seumalfadado ataque de raiva?

No julgamento criminal, o conturbado

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casamento de Borukhova com DanielMalakov foi esboçado com o mais levedos lápis. Nenhum dos lados seaventurou no campo minado dasacusações que Borukhova fizera contraMalakov, de violência física e abusosexual infantil. Ele não estava emjulgamento — ela estava. Ele estavamorto e ela era acusada de matá-lo.Contudo, a partir de documentos dotribunal, podemos seguir o itinerário daviagem de Borukhova, da confusãomisericordiosa da vida privada para aordem impiedosa do sistema jurídico.

Borukhova e Malakov se casaram emnovembro de 2001, Michelle nasceu em

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fevereiro de 2003 e eles se separaramem novembro, depois que ele disse a ela— como Borukhova relatou em váriosdocumentos judiciais — para sair dacasa ou “limpar o apartamento comminha língua”. Ela pegou a criança e foimorar com a mãe, voltando paraMalakov algumas vezes, mas entãopartiu para sempre depois que viu “odemandante beijar a genitália deMichelle na minha frente em duasocasiões distintas”. Na primeiraocasião, quando ela o enfrentou, “elepediu desculpas, disse que era sua formade demonstrar afeto e prometeu nuncamais fazer aquilo de novo”. Na segunda

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vez, continuava Borukhova, Malakov“tornou-se fisicamente agressivo,socando-me na cabeça e no peito e medizendo que, se eu chamasse a polícia,iria me arrepender e jamais veria denovo nossa filha”. Em seu primeiropasso hesitante num sistema judicial quea engoliria, Borukhova chamou apolícia, mas recuou depois que Malakovfoi preso; como muitas mulheresagredidas, ela não prestou queixaformal. Porém, em 24 de junho de 2005,citando novas agressões, ela solicitou erecebeu uma ordem temporária deproteção da Vara de Família do Queens,

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pela qual Daniel foi obrigado a ficarlonge dela e de Michelle — casocontrário, ele estaria sujeito aprocedimento criminal. Agora, elacruzara a linha entre o privado e opúblico. Ela pedira ajuda ao Estado e oEstado lhe dera, mas, em troca de suaproteção, exigira um controle sobre umaparte de sua vida — a maternidade —que era tão firme quanto a ordem de“ficar longe” para Malakov. A partir deentão, Michelle estaria sob os olhos daJustiça; suas relações com o pai seriammonitoradas pela Justiça. Borukhovarecebeu uma ordem de levar Michellepara visitas a Malakov, supervisionadas

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por assistentes sociais que, por sua vez,eram obrigados a enviar relatórios àVara de Família.

Os documentos da vara não revelam oque realmente aconteceu entreBorukhova e Malakov durante adesintegração de seu casamento. Taisdocumentos são uma alegoria grosseirada má vontade, povoada porpersonagens unidimensionaisdesenhados com espalhafato. Masalguma verdade vaza de cada documentolegal, assim como acontece em tudo queé escrito ou dito. Um documento queconta uma verdade desconcertante sobreBorukhova é sua “reconvenção” ao

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processo de divórcio, baseado emabandono, movido por Malakov emabril de 2005. Nessa reconvenção,Borukhova exige pensão para a criançae manutenção do cônjuge, seguro-saúde,seguro de vida, ocupação do“apartamento marital”, devolução depresentes de casamento e peças demobiliário e pagamento de custasjudiciais. Essas demandas a diminuem,põem sua autonomia em questão. Ela erauma médica profissional. Poderia terfeito o que fazem outras mulherescapazes que se divorciam e desejamevitar o envolvimento com um

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companheiro problemático: vão emborasem levar nada. Mas algo impeliuBorukhova — talvez suas antigasexperiências de autoritarismo — apermanecer no jogo perigoso quepoderia ter optado por não jogar.

Ela fez outra jogada imprudente em2005. Apresentou depoimentosjuramentados à Vara de Família de duaspessoas — uma vizinha chamada JudyHarrypersad e um porteiro de edifíciochamado Damian Montero — quedisseram ter visto Malakov molestarsexualmente Michelle no porão de seuprédio. Nas palavras majestosas do juizda Vara de Família, Charles J.

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Heffernan Jr., em cuja mesa as queixasbaixaram, “ambos os depoimentosjuramentados afirmam que o declaranteviu Daniel Malakov, o réu na matériaacima, realizar ou estar prestes arealizar grave má conduta dirigida àvagina de sua pequena filha”. Malakovnegou as acusações e, em novembro,Heffernan realizou uma audiência —chamada de audiência de integridade —sobre a veracidade delas. Na audiência,ambas as testemunhas desmentiram suasdeclarações e disseram que osdepoimentos juramentados foramescritos pela irmã de Borukhova,Natella Natanova, que as intimidara a

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assiná-los. Sob interrogatório, astestemunhas arrependidas reconheceramque haviam recebido telefonemasameaçadores de homens nãoidentificados. Heffernan concluiu, nofinal de uma carta sobre o assunto, quese sentiu obrigado a escrever aopromotor público do Queens, RichardA. Brown, que “julguei, sem reservas,que a senhora Harrypersad e o senhorMontero foram testemunhas críveis” e,“ao contrário, julguei o testemunho dasenhora Natanova mentiroso”. Brownnão respondeu, mas a conclusão deHeffernan deu um duro golpe na

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credibilidade de Borukhova.A consequência mais infeliz para

Borukhova de seu recurso à Vara deFamília — embora não parecesseameaçador no momento — talvez tenhasido a designação de um tutor paraMichelle. Em 1962, o legislativo doestado de Nova York aprovou uma Leida Vara de Família dando às crianças odireito de ser representadas por umadvogado e, em 2005, era rotina dasvaras de família atribuir tutores aosfilhos de casais em conflito que asprocuravam. O tutor designado paracuidar dos “melhores interesses” deMichelle foi David Schnall — que

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quase imediatamente tomou partidocontra Borukhova e, com efeito, agiucomo um poderoso segundo advogadode Daniel Malakov no processo peranteSidney Strauss (que assumiu o casodepois de Heffernan, na primavera de2006). Schnall alimentou e insuflou afúria de Strauss contra Borukhova.Depois do assassinato, ele se opôsveementemente à tentativa dela derecuperar a custódia de Michelle.

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11.

Quando Schnall testemunhou nojulgamento criminal, eu ainda não estavafamiliarizada com seu papel de nêmesisde Borukhova. Do questionamento deLeventhal, ele emergiu como umrepresentante inteligente e persuasivo deum campo claramente digno da Justiça.

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Durante a longa conferência privada emque Scaring lutou para impedir queSchnall lesse as observações“preconcebidas” de Strauss sobre ocomportamento de Borukhova nasvisitas, a sala do tribunal foi evacuada,e, enquanto eu esperava do lado de foracom meus colegas espectadoresexpulsos, notei Schnall sentado em umadas cadeiras que ladeavam o corredor.Fui até ele e perguntei se o projeto dadécada de 1960 de Anna Freud comprofessores de direito de Yale epsiquiatras infantis relativo aos“melhores interesses da criança” haviatido uma influência em seu trabalho

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como tutor. Ele disse que não conhecia oprojeto, mas tinha interesse em ouvirsobre ele. Eu lhe disse que estavaescrevendo sobre o julgamento eperguntei se ele estaria disponível parauma entrevista.

Os jornalistas pedem entrevistas domesmo modo que os mendigos pedemesmolas, de forma automática e nervosa.Tal como mendigos, os jornalistasdevem estar sempre preparados parauma recusa, e não podem se dar ao luxode deixar o orgulho impedi-los de fazero pedido. Mas não é agradável para umhomem ou uma mulher adulta postar-seno caminho da recusa. Em meus muitos

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anos de jornalismo, nunca me conformeicom essa parte do trabalho. Odeio pedir.Odeio quando dizem não. E adoroquando dizem sim. Schnall disse sim.Falou que havia coisas que podia medizer sobre a atividade de tutor queiriam me surpreender — coisasobscuras, ruins —, e me deu seu númerode telefone. Quando finalmente fomosreadmitidos na sala do tribunal,Leventhal continuou a interrogarSchnall, que agora tinha permissão paraler os comentários de Strauss, e quecontinuava a parecer plausível e neutro.

A seguir, veio o interrogatório de

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Scaring, e Schnall começou a parecermenos plausível e neutro. Scaringrapidamente o confrontou com uma contaque ele enviara a Borukhova cobrandopor sete conferências telefônicas quenunca tinham ocorrido — haviam sidocom Malakov. Ela questionou a conta,mas depois a pagou abjetamente, “poisvocê estava em uma posição muitoimportante em relação ao que ocorriacom a filha dela, não é verdade?”. (A leioriginal de 1962 estipulava que ostutores deveriam ser pagos pelo Estado,mas no início dos anos 1990 foi criadauma categoria paga privada pela qual ostutores, em casos de custódia, seriam

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pagos a preços de mercado por partedos pais que pudessem arcar com seushonorários. Schnall recebera os 75dólares estatutários por hora quando ocaso estava nas mãos de Heffernan;quando passou para Strauss, ganhoupermissão para cobrar honoráriosparticulares de 225 dólares por hora.)Em seguida, Scaring provocou Schnallcom o fato de ele nunca ter falado com acriança cujos interesses deveriarepresentar. Schnall demonstrouembaraço e alegou a pouca idade dela— disse que ela era “não verbal”. “Nãoverbal quando ela está com quatro anosde idade? Não verbal?”, fulminou

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Scaring. Desde então, fiquei sabendoque não falar com seus clientes é quaseuma insígnia de honra entre os tutores.Um estudo feito em 1982 pelaAssociação dos Advogados do Estadode Nova York descobriu que essaprática era onipresente e isso foideplorado, mas permanece vigente atéhoje. Recentemente, em uma decisãorara, um juiz de apelação removeu umtutor de um caso de custódia no condadode Rensselaer ao saber que “ele nãohavia encontrado nem falado com acriança”. Mas os juízes continuamfechando os olhos para o fenômeno que

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o estudo da Associação chamou deadvogado “fantasma”.

Outra revelação veio dointerrogatório de Scaring. Parecia que asessão fatal de 3 de outubro ocorrerasomente porque Schnall tinha insistidoque assim fosse. Tanto o advogado deMalakov, Nathan Pinsakov, como a deBorukhova, Florence Fass, queriam umadiamento. Mas, como Schnalltestemunhou: “Eu disse ao juiz [...] nãovou consentir [com o adiamento], poiseu estava muito perturbado com orelatório da Alternativas de Visitaçãoque descrevia o comportamento dasenhorita Borukhova durante a visita”.

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Scaring apertou:

P: E, apesar de o advogado de DanielMalakov dizer a você o que ele queria —não queria ir ao tribunal, queria adiar —,você insistiu em ir em frente, não é?R: Está certo.

Quando expressei a Florence Fassminha perplexidade diante da decisão deStrauss, ela assentiu com a cabeça edisse: “Talvez tenhamos pegado o juizem um dia ruim”. Eu queria perguntar aStrauss se estava arrependido de suadecisão, mas ele não concordou em medar uma entrevista.

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12.

Ezra Malakov é dois anos mais velhoque seu irmão Khaika, e tem um tipofísico totalmente diferente: é baixo erobusto, com o lábio inferiorprotuberante, o que dá ao seu rosto umaexpressão combativa. Quandotestemunhou para a acusação, Leventhal

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lhe perguntou qual era sua ocupação noUzbequistão e ele respondeu que haviasido dentista por vinte anos e então,depois de vencer um concurso de canto,tornara-se solista empregado peloEstado no rádio e na televisão. “E desdeque chegou aos Estados Unidos daAmérica, o que você faz?”, Leventhalperguntou com sua voz aguda. “Eu souum hazan. Sou cantor em uma sinagoga.Um cantor solista.” Embora Ezraestivesse nos Estados Unidos haviadezoito anos, nunca aprendera inglês,então um intérprete transmitia asperguntas de Leventhal para ele emrusso e depois traduzia suas respostas

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para o inglês. Quando testemunhou, duassemanas antes, Khaika também usara umintérprete, embora fale um inglês, se nãofluente, passável. Respondendo aLeventhal, Khaika relatou uma ameaçafeita por Sofya, irmã de Borukhova, trêsdias antes do assassinato. Ele contouque Sofya dissera a ele e a sua esposa:“Vocês sabem o que fizeram? Vocêstiraram uma criança de uma mãe e vãoter um grande problema. Se nãodevolverem a criança, vocês vão perderseu filho no domingo”.

Ezra foi posto no banco dastestemunhas para falar de uma outraameaça, dessa vez de Borukhova.

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Leventhal esfregava as mãos enquantoarrancava o relato de Ezra: uma manhã,dois ou três dias antes do assassinato,numa rua perto de sua casa, Ezra viuuma perturbada Borukhova que falavaem um telefone celular. Ele seaproximou dela e perguntou o que aestava incomodando, por que ela estavatão ansiosa e nervosa. “O que estáacontecendo? Talvez eu possa ajudarvocê de alguma maneira.” Ela desligouo telefone e disse: “Daniel tirou minhafilha de mim”. “Se ele tirou, vaidevolvê-la a você”, Ezra disse paraacalmá-la. “Não, ele não vai me

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devolver a criança.” “Eu vou ajudar”,disse Ezra. “Eu não preciso de nenhumaajuda”, disse Borukhova. “Os dias deleestão contados. Tudo está decidido.”

Scaring tinha subjugado Khaikadurante o interrogatório, com sua usualrepetição irritante das perguntas. EmEzra, ele encontrou uma nova criaturadesconcertante. Houve um momentoincrível durante a tentativa de Scaringde encurralar Ezra por não terdenunciado a ameaça de Borukhova àpolícia.

P: Então, está bem claro, você nunca relatouessa conversa para a polícia, não é mesmo?

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R: Não, não.P: Você a denunciou à polícia?R: Eu não a denunciei à polícia. Quantasvezes ele pode dizer isso? Eu sou umapessoa. Sou um ser humano, não umacriança. Ele me fez esta pergunta três vezes.Eu não sou uma criança. Ele deveria meperguntar de uma forma inteligente e gentil.

Não se costuma ouvir discursos comoesse num tribunal. As testemunhas estãodispostas, às vezes até ansiosas, a jogaro jogo da esperteza com um adversárioque tem certeza que vai derrotá-los, poisele é um profissional e elas sãoamadoras. A recusa de Ezra em jogar —

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seus protestos contínuos contra serquestionado de uma maneira que não sefaz fora do tribunal — pôs em agudorelevo o caráter artificial e, por que não,desumano da retórica de tribunal.

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13.

Borukhova começou a perder o jogomuito cedo ao ser interrogada porLeventhal. Obviamente, ninguém lhedissera para não discutir com ele.Scaring deveria tê-la alertado paraevitar diálogos como este:

P: Seu marido, o senhor Daniel Malakov,

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entrou com uma ação de divórcio contra asenhora, não foi?R: Ele pediu o divórcio.P: Ele entrou com uma ação de divórcio,correto? Ele entrou com uma ação dedivórcio contra a senhora, correto?R: Ele pediu o divórcio, sim.P: A senhora entendeu minha pergunta?R: Se o senhor está perguntando se elepediu o divórcio, sim, ele pediu.P: Ele abriu um processo de divórcio contraa senhora, correto?R: Correto.P: A senhora não entrou com uma ação dedivórcio contra ele, não é?R: Não.

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P: Daniel entrou com uma ação de divórcioou com um pedido de divórcio — parautilizar seu termo —, depois que sua filhatinha nascido, correto?R: Correto.P: E Daniel pediu o divórcio quando suafilha ainda era um bebê, correto?R: Não.P: Ela não era um bebê?R: Não. Foi em abril de 2005.P: Quantos anos ela tinha?R: Ela estava com quase dois anos e meio.P: Foi quando ele entrou com a ação dedivórcio?R: Foi quando ele pediu o divórcio, sim.

Leventhal foi adiante, deixando

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Borukhova ter a última palavra nodebate sobre “entrar com ação” vs.“pedir” — fazendo com que elaparecesse teimosa e evasiva. Essediálogo poderia ser ensinado em umcurso sobre técnicas de julgamento: eleilustra o modo como um bominterrogador, tal como um bom jogadorde xadrez, combina estratégia de longoprazo com oportunismo de curto prazo.Tal como seus passos rápidos e lépidos,a mente rápida e dardejante deLeventhal percebeu imediatamente omau passo que Borukhova havia dadoquando ela o corrigiu. Ele viu o peão

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vulnerável que seria seu em dois ou trêslances e os executou.

Outro problema com o desempenhode Borukhova no tribunal (durante osinterrogatórios da defesa e da acusação)era sua relação — ou não relação —com o júri. Ela se comportava como seo júri não existisse, falando somentepara seus interlocutores, e os jurados,por sua vez, agiam como se ela nãoexistisse. Observei que eles nãoolhavam para ela. O objetivo de pôr umréu no banco das testemunhas éinfluenciar o júri a seu favor. Nocorredor, durante uma pausa nointerrogatório de Leventhal, um

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espectador disse a Scaring: “Pelo amorde Deus, diga a ela para olhar para ojúri”. Scaring respondeu: “Acho que étão falso quando fazem isso”. Sim,parecia falso quando o perito emimpressões digitais virou-secuidadosamente para o júri a fim deresponder às perguntas de Leventhal,como um ator se dirige ao público porsobre as cabeças de seus colegas atores.A tarefa do réu é se dirigir ao júri porsobre a cabeça de seu interrogador semparecer estar fazendo isso. É uma tarefadifícil, mas pode ser realizada. O réupode demonstrar, de maneiras sutis, queestá ciente da presença do júri e que tem

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respeito por ele. O modelo poderia ser ode alguém em uma festa, rodeado por umgrupo e falando com uma pessoa, mas detal forma que os outros se sintam parteda conversa. Borukhova agia como seninguém estivesse na sala, exceto apessoa que fazia as perguntas.

Leventhal, normalmente uma pessoaagradável, se transformou em alguémprofundamente desagradável aointerrogar Borukhova. Foi agressivo eacusador. Mal conseguia esconder seudesprezo e antipatia. Chamava-a de srta.Borukhova, em vez de dra. Borukhova.Às vezes, ela era muito boa em fazer

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frente a ele. Mas sua inteligência não lhefez nenhum bem. À medida queLeventhal a encurralava sem pena — elea interrogou por dois dias —,Borukhova parecia mais defensiva,rígida, teimosa, obstinada, tortuosa. Opromotor mostrou-se cada vez maisduro. Mal mantinha a civilidade. “Asenhora está inventando essas coisas àmedida que avança?”, permitiu-se dizeruma vez. Scaring objetou e o juizmurmurou uma reprovação, mas eratarde demais: ele já havia falado.Borukhova usava seu casaco branco deinocência e mantinha a cabeça erguida.Tinha uma aparência régia. Parecia uma

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princesa bárbara cativa em um desfiletriunfal romano. E o júri continuava nãoolhando para ela.

A parte mais dolorosa dointerrogatório de Leventhal tinha a vercom eletrocardiogramas apreendidos noconsultório de Borukhova depois dadetenção de Mallayev. Ele explicara àpolícia que as 91 chamadas telefônicasentre ele e Borukhova, entre 3 deoutubro e 26 de outubro de 2007, eramtelefonemas entre médico e paciente.Dissera que Borukhova era sua médicade família e estava tratando váriasdoenças de sua esposa — o que levou opromotor do distrito de Queens, Richard

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A. Brown, a observar: “Eu não telefonopara meu médico noventa vezes nodecorrer de duas semanas antes devisitá-lo”. (Quando a polícia questionouMallayev sobre os telefonemas, constaque ele disse: “Existe algumaquantidade exagerada de chamadas afazer quando se trata de sua saúde?”.)

No interrogatório da defesa, Scaringapresentou fichas médicas de Borukhovasobre o tratamento dos Mallayev, emparticular da sra. Mallayev, que sofriade um problema cardíaco, parademonstrar que os telefonemas eramsobre assuntos médicos, não homicidas.

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Leventhal apressou-se a bloquear essarota de fuga. Durante as perguntas deScaring, Borukhova dissera que as datasdos eletrocardiogramas de Mallayevestavam erradas porque o marcador dehora e data em seu aparelho deeletrocardiograma não estava acionado.A partir desse detalhe aparentementeinsignificante, Leventhal montou uminstrumento hediondo de tortura. Um porum, ele apresentou a Borukhova 36outros eletrocardiogramas de seuspacientes, e em cada caso a obrigou aadmitir que a data e a hora estavamcorretas. Apenas os eletros dosMallayev estavam marcados com a hora

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e a data erradas. A tortura continuou porquase duas horas. “Vou fazer isso o diainteiro”, disse Leventhal a certa altura,como um professor vitorianovergastando uma criança até que elaadmitisse seu erro. “Então vou lhe daruma oportunidade novamente, senhoritaBorukhova: gostaria de mudar seudepoimento no que diz respeito aomarcador de data e hora em seuaparelho de eletrocardiograma nunca tersido ajustado em seu consultório?”.Borukhova se recusou teimosamente aceder. “Nunca foi ajustado por mim”,ela continuou inutilmente a dizer, deforma evasiva. Na sala de imprensa,

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durante uma pausa, ouvi Billy Gorta aotelefone dizendo a seu editor: “Asmentiras estão aumentando. Não houvenocaute. Mas ela foi cortada. Ela estásangrando”.

Durante seu segundo interrogatório,Scaring fez o que pôde para conter osangramento. Havia uma explicaçãopara os eletrocardiogramas suspeitosdos Mallayev. Ao contrário dos outrospacientes de Borukhova, eles não tinhamseguro-saúde, de modo que Borukhovafez ela mesma seus eletrocardiogramas,a fim de evitar a despesa do técnico quefazia os exames dos pacientes

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segurados, e que não se esquecia dedefinir a hora e data. Tudo muitoplausível, mas tarde demais. Ela poderiaestar inventando essas coisas também. Enão era tão interessante como havia sidoa tortura de Leventhal.

Em uma conferência privada duranteseu segundo interrogatório, Scaringperdeu outra batalha para Leventhal. Elequeria perguntar a Borukhova sobre umpsicólogo chamado Igor Davidson, quetratara Michelle durante o ano anteriorao assassinato. Quando Scaringperguntou a Borukhova: “O doutorDavidson estava tratando sua filha dequê?”, Leventhal objetou e, quando

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Hanophy não aceitou a objeção, elepediu e ganhou uma conferência privada.Davidson estava tratando Michelle desintomas associados às visitassupervisionadas. A criança tinha medodo pai, e Davidson atribuía esse medo àlembrança de vê-lo bater em sua mãe.Leventhal não queria que o júri ouvisseisso. “O advogado da defesa estáquerendo apenas inflamar o júri e tentarprejudicar a memória da vítima, tentarpintá-la como uma pessoa má”,argumentou Leventhal. Scaring retrucou:“Ele pintou minha cliente como a vilãnesse casamento durante todo o tempo.[...] Ele a pintou como uma mãe ruim.

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Ela não permitia visitas durante a noite.Havia razões pelas quais ela nãopermitia isso”. Mas Hanophy se decidiupor Leventhal, e o júri nunca ouviu aexplicação de Davidson sobre o motivode Michelle não estabelecer vínculoscom seu pai bonzinho.

O próprio Davidson foi pintado comcores desfavoráveis — na melhor dashipóteses, como um tolo e joguete deBorukhova; na pior, como cúmpliceengenhoso de suas mentiras. Ele não foitestemunha no julgamento criminal, mastestemunhou na audiência da Vara deFamília realizada depois do assassinato

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para determinar se a criança deveriavoltar para Borukhova. Seu depoimentofoi comedido e grave. Ele falou de suacrença na confiabilidade de Borukhova— ele não duvidava de seus relatossobre a agressividade de DanielMalakov — e do progresso que achavaque estava fazendo com a criança parasuperar o medo do pai. Ele era a únicapessoa que realmente conhecia Michellee podia falar do ponto de vista dela, masfoi desconsiderado. Ele é o Kent destatragédia, no sentido de que pode ser seuespírito mais humano, e o espectadormais impotente.

Nunca ficou claro o que aconteceu

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exatamente a Michelle depois doassassinato. Sabemos que Borukhova adeixou com uma mulher no playgroundantes de realizar a ressuscitaçãocardiopulmonar em Malakov, mas nãoouvimos nada sobre ela até a noite,quando termina o interrogatório deBorukhova na delegacia, e ela e suasirmãs tentam desesperadamentelocalizar a criança no prédio. As irmãstinham tomado Michelle da mulher noplayground e a levado para a delegacia— onde foi retirada delas porrepresentantes de uma agência municipalchamada Serviços de Emergência paraCrianças, um braço da Administração de

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Serviços para Crianças, conhecida comoacs. Borukhova e suas irmãs nuncaencontraram a criança e deixaram adelegacia à noite sem conseguir obterinformações sobre seu paradeiro.

Um relatório da acs, escrito por duasassistentes sociais, Martha Martinez eRashedah L. Goodwine, descreve ajornada da criança pesadelo adentro.Michelle foi retirada da delegacia elevada à casa de uma parente paternachamada Tamara Eliasahuilli. No diaseguinte, quando Martinez fez uma visitade “avaliação do lar” a Eliasahuilli, elalhe disse que “não queria ficar com a

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criança”, pois “a presença dela em suacasa representava uma ameaça potencialpara sua segurança, já que não estavadeterminado quem era o responsávelpela morte do pai de Michelle”.Eliasahuilli propôs que Michelle fossepara os avós paternos, Khaika Malakove Malka Mushivea, e a proposta foiaceita. Michelle foi despachada para osavós paternos naquele dia. Em 1o denovembro, Rashedah Goodwine foi àcasa de Malakov-Mushivea para outraavaliação do lar. Quando ela perguntoupor que um carro de polícia estavaestacionado diante da casa, foiinformada de que a família estava com

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medo da “possibilidade de retaliaçãopor parte de desconhecidos”. Outro filhode Malakov, chamado Joseph, queestava em casa, “insinuou que a mãe denascimento da criança, senhoraBorukhova, morava a menos de duasquadras dali e a proximidade erainquietante”. O relatório continua:

A senhora Mushivea começou então acomentar suas pressuposições a respeito decomo seu filho fora assassinado.[Goodwine] alertou a avó paterna sobrefazer comentários depreciativos comMichelle presente e sugeriu que a criançafosse levada para outra área da residência. A

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senhora Mushivea respondeu que estava“tudo bem”, pois Michelle “só falava russo”.(Sabemos de nossas interações comMichelle que ela compreende umaquantidade significativa de inglês.)

Os avós propuseram que uma parentechamada Ludmila Ford ficasse com acriança (“Eles não desejam queMichelle resida com eles por um longoperíodo de tempo”), e Goodwine partiu,dizendo que transmitiria a proposta aseus supervisores. Martinez voltou nodia seguinte e informou que “a avópaterna queria saber se a criançapoderia ser levada para a senhora Ford

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‘esta noite’”. Enquanto isso, aconteciaalgo que resolveria o problema da avó.Michelle havia sido levada a umescritório da acs para uma visita de suamãe. Quando Borukhova lhe perguntousobre uma contusão em sua bochecha, acriança respondeu que “a mãe de Danibateu nela”. Michelle foi então levada auma outra agência para uma “avaliaçãode trauma” e, depois de contar aoassessor de trauma que “não se sentiafeliz onde estava ficando”, foi retiradada casa dos avós e enviada para umorfanato.

Enquanto Michelle passava por essecalvário dickensiano, a audiência da

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Vara de Família de que dependia seudestino estava em sessão. Se Borukhovaprevalecesse — se o juiz considerasseque não havia “risco iminente” caso elafosse devolvida aos cuidados da mãe—, a provação terminaria e Michellevoltaria a dormir em sua cama. Mas,depois de seis dias de depoimento, ajuíza Linda Tally decidiu que haviarisco iminente — que a acusação de“negligência emocional” feita pela acsera fundamentada — e que a criançadeveria permanecer em um orfanato.Borukhova, que chorou durante toda aaudiência, deixou o tribunal de mãosvazias. Se havia mandado matar o

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marido para ter a filha de volta, fora emvão.

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14.

Florence Fass, uma mulher bonita,animada e falante, de sessenta e poucosanos, representou Borukhova naaudiência da juíza Tally. “Eis o que euacho que estava realmenteacontecendo”, ela me disse em seuescritório, em Garden City, poucos dias

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depois do término do julgamentocriminal. “Acho que a polícia suspeitavade Mazoltuv. Eles supuseram que eladesapareceria se fosse a assassina.‘Então, como vamos mantê-la aqui?Vamos pegar a criança. A mãe não vai alugar nenhum. A mãe não vai deixar suafilha.’ E ela não deixou. Isso é o que euacho que aconteceu. Ninguém jamaisserá capaz de provar, mas é exatamenteo que aconteceu. Então, entre outubro efevereiro, enquanto a polícia montava aspeças do caso, a criança ficou em umorfanato.” Ela continuou: “Acho que foiuma tremenda farsa jurídica. Quase fazcom que você veja a profissão de uma

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maneira diferente. Do modo como umlitigante vê. Este caso estava tãoestranho. Tudo o que você fazia eratorcido. A lei nunca se aplicava àsituação concreta. E ainda hoje, comessa última moção contra Schnall. Essamoção, em qualquer outro contexto,ganharia fácil. O juiz nos chamaria ediria, ‘Olhe, David, você sabe que euacho que você deve renunciar’. Isso nãovai acontecer e eu provavelmente vouperder a moção.”

Que moção? Deixei Fass falar demaise saltei adiante na minha história.Voltemos para minha conversa nocorredor com o tutor, que aceitou dar

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uma entrevista. Liguei para Schnallalguns dias mais tarde e ele concordouem se encontrar comigo no domingo, 1ode março, às três da tarde. Mas na sexta-feira, 27 de fevereiro, havia umamensagem dele na minha secretáriaeletrônica dizendo que estavacancelando a entrevista “por enquanto”,porque não se sentia “à vontade parafalar sobre o caso enquanto ele aindaestá no tribunal”. Acrescentou quepoderia estar disposto a falar depois dofinal do julgamento e deixou doisnúmeros de telefone. Tomando acondição e os números de telefone como

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uma porta entreaberta, liguei para umdos números e deixei uma mensagempedindo a ele para me telefonar. Às onzehoras da manhã seguinte, Schnall meligou. Eu disse que entendia suarelutância em falar comigo enquanto ojulgamento estava acontecendo eesperava falar com ele quando tudoacabasse. Schnall disse que a conversamais tarde dependeria do veredicto. SeBorukhova não fosse condenada, ele nãotinha certeza sobre a entrevista.

Eu esperava que a conversaterminasse aí, mas em vez disso Schnalldisparou a falar do caso sobre o qualdissera que não iria falar, e eu comecei

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a tomar notas. Ele disse: “Espero porum veredicto de culpada”, e acrescentouque Leventhal “mencionara que a causadeles é forte”. Falou de outrasaudiências judiciais em que havia visto“o que essa mulher é capaz de fazer”.Falou sobre seu trabalho como tutor —“Eu levo relativamente a sério otrabalho” — e sobre o problema dospagamentos. Explicou que ambos os paisem batalhas de custódia são obrigados apagar o guardião legal, mas que apenasum lado paga efetivamente. “O lado quemenosprezo não paga.” E acrescentouque, no caso de Borukhova, “elestentaram me remover” e fizeram

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“ataques pessoais a mim”. “Mas”,continuou ele, com um novo tom de voz,“minha paixão real não é direito defamília.”

Então ele falou por cerca de umahora, quase sem pausa, sobre o mundocomo um lugar onde o mal se esconde,sob o controle de “um sistema parecidocom o comunista”. “Tudo o que achamosser verdadeiro não é verdade”, disseele. Numa torrente de palavras, elerevelou as verdades sobre as quaishavia ficado a par desde que “comeceiesse caminho alternativo, há sete anos”.Reproduzo abaixo um pouco do que

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anotei de seu monólogo em meucaderno.

Bancos não emprestam dinheiro. Eles nãotêm dinheiro.Todos os bancos são bancos zumbis.Isso tudo é uma enganação.O sistema é gerido por idiotas úteis.Precisamos de inimigos.Haverá austeridade genocida.Não há crise de energia. Há abundância depetróleo.Joseph McCarthy estava certo.Estamos vivendo sob as dez tábuas doManifesto Comunista. Somos um paíscomunista.O pai de Orwell era um grande tecnocrata.

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Os poderes que existem estão numa ondaboa.A agenda falsa do aquecimento global.A natureza da profissão médica. Nenhumaterapia se destina a nos ajudar, foram feitaspara nos prejudicar.Vacina contra a poliomielite não cura apoliomielite.O gene do esperma masculino caiu em 75%.Estamos quase completamente estéreis.Tudo o que eu disse não é opinião, é fato.eles controlam o mundo.Se eu abrisse a boca em público, viriamatrás de mim. Já sinto que meus dias estãocontados. A Receita veio ao meuapartamento com convocações três vezes. O

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problema é que eles têm armas.A mesma coisa com o Onze de Setembro, amesma coisa com o Katrina.

“Sabia-se antes de acontecer?”,interrompi. “É claro”, respondeu ele.“Eu poderia falar sobre isso durantevinte minutos. Eu poderia lhe falar muitomais sobre isso. Supõe-se que a fema[Agência Federal de Gestão deEmergências] foi incompetente. Elesfizeram o que haviam planejado fazer.”

Qual o objetivo da guerra de 1812? Eles nosensinam que perdemos a guerrarevolucionária?Nós financiamos os soviéticos.

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É risível. Depois que você vê, é tãoprevisível.Estou fascinado com a estupidez daspessoas. Poderíamos falar de Freud,Einstein. Há sempre uma história por trás deuma história. Ninguém quer falar sobre isso.Está na hora agora.Sagrados mistérios do Egito.Adoração da Terra. Charlatanismo de AlGore.Há uma grade de controle emfuncionamento. Somos completamentemonitorados. Estamos contribuindo paranosso próprio fim. Porque somos muitoestúpidos.A polícia — um exército particular para uma

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empresa privada chamada Cidade de NovaYork. Isso não é uma hipérbole. Isso é fato.É admirável e brilhantemente feito.

Encerrei o telefonema depois decinquenta minutos — Schnall não haviade modo algum esgotado seusconhecimentos esotéricos, mas eu ouvirao suficiente —, sentei-me e pensei.Então fiz uma coisa que nunca fizeraantes na minha vida de jornalista. Eu meimiscuí na história que estavaescrevendo. Entrei nela como umapersonagem que poderia influenciar suatrama. Peguei o telefone e liguei para oescritório de Stephen Scaring.

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Scaring me ligou de volta uma horadepois (eu deixara uma mensagem comsua secretária dizendo que tinhainformações sobre uma testemunha).Contei-lhe sobre o telefonema deSchnall, e ele me pediu para lhe mandarpor fax minhas anotações. Na segunda-feira seguinte, quando o juiz entrou nasala de audiências, os advogados sereuniram em torno dele, cada umsegurando uma cópia de um documento.O documento era uma moção queScaring havia elaborado depois dereceber meu fax. Ele pedia “para chamarde volta a testemunha da promotoriaDavid Schnall para novo interrogatório,

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e questionar o senhor Schnall emrelação à sua saúde mental e,especialmente, se ele sofre de crençasou percepções paranoicas e/oudelirantes que possam afetar suaconfiabilidade e credibilidade comotestemunha”. A moção mencionavaminhas anotações que registravam ascrenças de Schnall “em várias teorias deconspiração estranhas e sinistras”, ecitava precedentes legais para impugnaro depoimento de testemunhas que sãomalucas. “Fale em voz baixa”, osespectadores ouviram o juiz dizer aLeventhal, que falava exaltadamente

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com sua voz aguda e seus característicosgestos agitados. Leventhal, sabemos apartir da transcrição, ficou fora de sicom a moção. “A moção do senhorScaring é absurda”, disse a Hanophy.“Sugerir que o senhor Schnall — por tercertas opiniões ou crenças relativas àhistória ou ao mundo e seus assuntoscorrentes ou quaisquer das convicçõesque estão ilustradas ou apresentadas namoção do senhor Scaring — deva serchamado novamente para serinterrogado sobre possíveis problemaspsiquiátricos é... é simplesmente... é umabsurdo. É um absurdo.”

Scaring disse: “Estou surpreso que a

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promotoria descarte isso tãorapidamente. Não há dúvida de que,quando se lê, se percebe que o senhorSchnall é delirante. Agora, ninguémacredita que...”. Hanophy interrompeu:“O quê? Que realmente não há escassezde energia, há milhões de galões...”. Aconversa continua:

Sr. Scaring: Que o governo planejou ouestava ciente do Onze de Setembro.O Tribunal: Que tal aquela sobre “não háescassez de energia, há gasolina e hápetróleo”?Sr. Scaring: O senhor acredita, excelência,que exista algum indício que sugira que o

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governo estava ciente do Onze deSetembro?O Tribunal: O senhor acha que há escassezde petróleo neste mundo?Sr. Scaring: Excelência, essa é uma dasdeclarações dele. Existem inúmeras outrasque são claramente delirantes. [...] As coisasque ele diz não fazem sentido. São bizarras,absurdas. E quanto à acusação atribuirrapidamente a palavra absurda para minhamoção — o termo absurdo...O Tribunal: Certo. Sua moção está negada.

O júri foi trazido e Leventhalapresentou mais algumas testemunhas,entre elas o especialista em línguas dofbi que traduziu a expressão padayesh

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por “Você vai me fazer feliz?”. No finalda tarde, depois que um patologistaforense testemunhou sobre seu examepós-morte de Daniel Malakov, enquantoLeventhal mostrava as fotos horríveis docadáver ao júri, o juiz voltou-seesperançosamente para ele e Leventhaldisse: “A promotoria terminou”. No diaseguinte, Scaring trouxe quatrotestemunhas de defesa, e, no meio datarde, fez seu anúncio chocante de queBorukhova iria depor. Ele a interrogoupelo resto do dia. Os dois diasseguintes, quarta e quinta-feira, foramocupados pelo interrogatório brutal de

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Leventhal. Quando ele acabou, o júri foidispensado e o juiz fez um anúncio tãochocante quanto o de Scaring. Ele disse:“Devemos ser capazes de ter doissumários amanhã”.

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15.

É hora de introduzir um temaconhecido como “As férias do juiz”. Ocomentário de Billy Gorta de que o juizestava mal-humorado porque Scaringtinha chamado Borukhova paratestemunhar era parte de um assunto como qual nossa turma de jornalistas se

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entretera durante várias semanas.Conversamos muito sobre umacolocação feita pelo juiz durante oexame das testemunhas no sentido deque o julgamento teria de terminar até oDia de São Patrício (17 de março), poisera quando ele sairia de férias. Quandofevereiro se transformou em março, asférias começaram a pairar sobre oprocesso. O rumor de que elas seriam noCaribe foi confirmado. Scaring selembrava de o juiz ter dito: “Estejulgamento tem de terminar até 17 demarço, porque depois vou bebericarpiña colada na praia de St. Martin”.Essa perspectiva agradável estava,

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evidentemente, na cabeça de Hanophyquando ele secamente negavaconferências privadas, censurava osadvogados por atrasos que antespassavam despercebidos e mantinha otribunal em sessão muito além dacostumeira hora de encerramento, àscinco da tarde.

Os sumários estavam previstos paracomeçar na segunda-feira, 9 de março, oque deixava oito dias até as férias. Masem 5 de março o juiz ordenou queScaring e Siff fizessem seus sumários nodia seguinte, uma sexta-feira. (A ordemdas declarações iniciais havia sidoLeventhal, Siff e Scaring; a ordem dos

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sumários era Scaring, Siff e Leventhal.)“Estamos com um cronograma muitoapertado”, disse Hanophy duas vezes.Em virtude de Borukhova e Mallayevserem judeus ortodoxos, que não podemviajar depois do pôr do sol da sexta-feira, nunca houve sessão do julgamentonesse dia da semana. Era inverno, e osol se punha mais cedo. No entanto,agora que o tempo era essencial, sexta-feira, 6 de março, tornou-se dia dejulgamento; os sumários da defesacomeçariam às nove da manhã eterminariam a tempo de os réus voltaremà luz do dia para a ilha Rikers. A

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promotoria faria seu sumário nasegunda-feira. Scaring manifestou suaindignação. Disse que não poderiapreparar seu sumário nas poucas horasda noite que sobravam depois de umalonga viagem de volta para casa, emHuntington, Long Island. “Há belascasas por lá”, disse o juiz. “Não tenhocomo fazer isso”, disse Scaring. “Nãome sinto fisicamente capaz de fazer osumário deste longo caso agora. Nãovou sair antes das cinco daqui. Não éjusto com minha cliente. Não possofazer um bom trabalho até amanhã demanhã.” “Claro que pode”, disse o juiz.“Não posso.” “Ora, vamos, você está

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neste negócio há trinta anos, vocêconsegue.”

Scaring implorou a Hanophy. Pediuque houvesse sessão do julgamento nodomingo. O juiz negou. Então propôsque, “se a deliberação do júri for alémdo tempo em que sua excelência estiveraqui, que outro juiz presida o final dojulgamento”. Mas Hanophy não queriabeber piña colada enquanto outro juizocupava seu assento e o júri dava overedicto. Ele estava decidido que ossumários começariam no dia seguinte.Scaring então argumentou que, se ele eSiff tinham de sumariar na sexta-feira,Leventhal também deveria fazê-lo: seria

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o máximo da injustiça dar a Leventhaltodo o fim de semana para se preparar,enquanto ele e Siff tinham apenasalgumas horas. Mas para que Leventhalapresentasse seu sumário na sexta-feiraera preciso persuadir Mallayev eBorukhova a violar suas leis religiosas epermanecer na sala de audiências depoisdo pôr do sol. De início, Borukhovahesitou, dizendo que ficaria somente sepudesse passar a noite de sexta-feira notribunal. Quando o juiz disse que issoera impossível, ela concordou em ficarse pudesse estar de volta na ilha Rikersaté a meia-noite. Mallayev concordou

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com o mesmo arranjo. O juiz pediu aambos que dissessem em voz alta o queseus advogados haviam dito a eles, eeles fizeram isso. “Tudo bem, então”,disse ele, “todo mundo pode apresentarsumários amanhã.” No entanto, nemtodos sumariaram na sexta-feira. Namanhã desse dia, Hanophy murmuroualgo sobre ser “muito cauteloso”, pois“questões de apelação” poderiam surgirse os réus rompessem o shabbat, esomente Scaring e Siff apresentaramsumários naquele dia. Leventhal teve ofim de semana para se preparar.

Durante a tensa conversa de quinta-feira, os espectadores que

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permaneceram na sala do tribunal viramalgo inédito na mesa de defesa. Pelaprimeira vez em todo o decorrer dojulgamento, Borukhova e Mallayev sefalaram. Nenhum dos dois havia dado omenor sinal de notar a presença dooutro. Agora eles estavam discutindocalorosamente (embora de formainaudível). Alla Lupyan-Grafman medisse mais tarde que Borukhova tinhacortado “a própria garganta e a de seuadvogado” no drama que se desenvolveunos bastidores enquanto Scaring eHanophy digladiavam no palco. O juizoferecera uma saída a Scaring e Siff. SeBorukhova e Mallayev concordassem

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em infringir o shabbat na sexta-feira eno sábado seguintes, caso o júri aindanão tivesse chegado a um veredicto, eleadiaria os sumários da defesa atésegunda-feira, dia 9. “Mallayevconcordou imediatamente”, disse Alla.

Mas Borukhova não. Ela disse, “prefiromorrer”. Ela disse a Mallayev, “Misha, vocênão entende que isso é um teste?”.Querendo dizer que Deus os estava testando.E então eu disse — sei que não era hora deme envolver, mas eu disse: “Marina, se essanão é uma situação de vida ou morte, entãoo que é?”. E Steve lhe disse: “Preciso detempo, não posso fechar amanhã, não terá a

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qualidade que preciso para apresentar, e nema qualidade que você espera de mim. Nósestamos terminando tarde hoje. Tenhoapenas uma noite, não há como. E apromotoria fechará na segunda-feira. Elesganham essa vantagem”. Assim, ele pôstodas as cartas diante de Borukhova. E eladisse: “Não, prefiro morrer”. Então, derepente, ela concorda em ficar até maistarde no dia seguinte. Era tão ilógico. Elafoi tão irracional. Por que você concordariaem romper efetivamente o shabbat quandoo fim de semana seguinte era hipotético —com 99% de chances de que isso nãoacontecesse? E pôr seu advogado em umaposição tão terrível, basicamente assinando

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sua sentença de morte?

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16.

Quando Alla contou isso, tive umasensação de déjà-vu. Reconheci um tomque ouvira nas vozes dos terapeutas,policiais, assistentes sociais, advogadose familiares que testemunharam contraBorukhova. Era um tom em que semisturavam descrença e desaprovação.

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Como ela pode ser assim? Ela nãodeveria ser assim. A estranheza deBorukhova era sua característicadefinidora. Com exceção de IgorDavidson, na audiência da Vara deFamília, e dois colegas do hospital,todos que foram questionados sobreBorukhova durante o julgamentocriminal expressaram uma inquietaçãoprimordial que muitas vezes não tinhapara onde ir, exceto para a hostilidade.Sidney Strauss não estava sozinho emsua ira e impaciência sobrenaturais.David Schnall parecia temê-la e odiá-ladesde que fora nomeado tutor deMichelle. Quando Jolie Rothschild, uma

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assistente social que se tornouproprietária da Alternativas deVisitação em maio de 2007, testemunhouna audiência da Vara de Família, nãoconseguiu disfarçar sua antipatia. Omodo como Borukhova irritava aspessoas e desencadeava reaçõesalérgicas graves foi ilustrado comparticular intensidade pelo testemunho,também na audiência da Vara deFamília, de um psicólogo clíniconomeado pela vara chamado PaulHymowitz. O espírito malévolo queditava o destino de Borukhova trouxeesse poderoso antagonista para sua vida,não através da intervenção do Estado,

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mas pela interferência benevolente desua própria advogada, Florence Fass,que assim me contou:

Quando Mazoltuv veio a mim, em julho de2007, percebi que se tratava de um casototalmente fora de controle. Fazemos ascoisas de maneira diferente aqui no condadode Nassau. Tomamos situações como esta eentramos com profissionais da saúde mental— é como uma triagem. Envolvemosimediatamente assistentes sociais, bemcomo tutores e coordenadores de pais.Assim, quando entrei no caso, nãoconseguia entender de forma nenhuma porque não haviam pedido avaliação psicológica

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das partes e da criança. No primeiro dia queme vi diante do juiz Strauss, fiz o pedido.Por que alguém — o tutor legal, alguém —não pedira a avaliação? Strauss mandou fazê-la imediatamente, com o doutor Hymowitz,que é amplamente utilizado no Queens.

O depoimento de Hymowitz, talvezmais que o de qualquer outratestemunha, reforçou a acusação da acsde “negligência emocional”, caso emque uma criança pode ser retirada damãe pelo Estado. Ele começou suaavaliação psicológica da mãe, do pai eda filha em agosto de 2007, vendoBorukhova e Malakov separadamente,

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em sessões alternadas, e depois vendoMichelle e Borukhova juntas. Suaprimeira entrevista com Borukhova odeixou imediatamente suspeitoso dela.As coisas que ela lhe disse “eram meiodifíceis de acreditar”, ele testemunhouao ser interrogado por Eric Perlmutter,advogado da acs. Borukhova disse aHymowitz que Daniel batia nela emolestava sexualmente Michelle, e, oque foi o mais difícil de acreditar, “elalembrou de ideias estranhas que[Malakov] tinha, como quando elaestava tentando amamentar e depois darmamadeira para a criança, no primeiroano de vida do bebê, e ele insistia em

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retardar a alimentação por oito a dezhoras para treinar a criança”. O relatode Borukhova sobre “a quantidade dehoras que ele passava sem quereralimentar a criança parecia desafiar alógica”, disse Hymowitz, e acrescentou:“A descrição do abuso sexual da criançaera repugnante, também parecia meioesquisita”.

A entrevista com Malakov foi melhor.Hymowitz caracterizou-o como “um paigentil e sensível que parecia estar muitoaflito e genuinamente preocupado com aperda de contato livre com a criança”.Segundo Hymowitz, Malakov descreviaBorukhova como “uma mulher muito

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irracional, instável, inclinada àviolência”. Quando Perlmutter perguntoua Hymowitz se ele falara com Malakovsobre “as preocupações levantadas pelamãe ré na ação de divórcio”, Hymowitzrespondeu que “ele desdenhava muitodessas preocupações”, e lhe disse quedepois da investigação de uma agênciaestatal “os resultados mostraram que nãohavia fundamento”.

Em meados de outubro, quandoBorukhova levou Michelle aoconsultório de Hymowitz, o encontro oindispôs ainda mais contra a mãe. Acriança de quatro anos e meio não

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queria papo com o bom médico:

A criança mal me olhava, sem reação verbala qualquer coisa que eu dissesse. Elasussurrava para a mãe, a maior parte dacomunicação em russo, e estava sentadarigidamente na sala, sem se aproximar dosbrinquedos ou atividades. [...] Quandosugerimos que a mãe saísse da sala, acriança começou a gemer, agarrou-se à mãe,e simplesmente não parecia que fosse darcerto. [...] Não consigo pensar em outrocaso em que eu não tenha conseguido que acriança ficasse sozinha comigo noconsultório.

A partir do comportamento de

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Michelle, Hymowitz concluiu que elaera “imatura e um pouco regressiva”.Em resposta à pergunta de Perlmutter —“A que você atribui o comportamento dacriança?” —, o psicólogo não culpouimediatamente Borukhova. Ele admitiuque ela tentara incentivar a criança ainteragir com ele. “Ela estava dizendo efazendo as coisas certas.” No entanto,“ela não insistiu muito com a criançapara sair. Ela não estabeleceu outroslimites à criança, agora que estoulembrando. Por exemplo, a criança ficoude pé sobre meu sofá, de sapatos. Tivede pedir à mãe para impedi-la de fazerisso”.

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Schnall, que apareceu na audiênciacomo tutor, evidentemente não achavaque Perlmutter pressionara Hymowitz osuficiente para mostrar a inadequação deBorukhova como mãe. Quando chegousua vez de questionar o psicólogo, eleficou quase alegre em sua acrimônia.“Seria justo dizer”, perguntou aHymowitz, “que ela exibia qualidades etraços de sociopata?” Hymowitzrespondeu que, de início, não tinhacerteza “se estamos falando de alguémque estava delirante, ou seja, fora decontato com a realidade, pelo menos emáreas selecionadas relativas à criança eao pai, ou se era uma sociopata e,

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portanto, uma pessoa mais premeditadae manipuladora”. Depois de umapressão mais acentuada de Schnall,Hymowitz disse: “Tendo me encontradocom ela, agora bem no final de outubro,comecei a achar que era mais provávelque o comportamento fossepremeditado, manipulador e comdesprezo insensível não só pelosdireitos do pai, como pelo bem-estar dacriança. [...] Começou a parecer maispremeditada, mais coerente em seutecido e menos delirante”. Schnallqueria mais ainda. “Então, basicamente,a mãe estava mentindo sem

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consciência?”, disse ele. Depois de umasaraivada de objeções de Fass ereformulações de Schnall, o juizpermitiu esta troca de palavras:

Schnall: Então seria justo dizer que a mãeestava mentindo sem consciência no que dizrespeito às repercussões para o pai e seurelacionamento com a criança?Dr. Hymowitz: Sim.

Fass fez o que pôde para conter ofogo que ela inocentemente atearaquando trouxe para o caso aquelepsicólogo inflamável. “Ora, o senhorafirmou que o pai parecia ser umapessoa gentil?”, perguntou.

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Dr. Hymowitz: Sim.Sra. Fass: Certo. Isso influenciou suaopinião de que as alegações da mãe deagressão física eram difíceis de acreditar?Dr. Hymowitz: Sim.Sra. Fass: Alguma vez o senhor avalioualguém em um caso de violência doméstica?Dr. Hymowitz: Bem, sim. A violênciadoméstica é levantada com frequência nasavaliações de custódia.Sra. Fass: E, em alguma dessas avaliações, osuposto agressor parecia ser uma pessoagentil?Dr. Hymowitz: Acho que sim.

Mais tarde, naquele mesmo dia, ao

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interrogar Borukhova, Fass voltou àquestão. “Agora, doutora Borukhova, asenhora ouviu o doutor Hymowitzdescrever Daniel como um homemgentil. A senhora lembra dessedepoimento?”

Dra. Borukhova: Isso é o que todo mundodizia. Que ele era gentil e, a senhora sabe,quer dizer, ele era encantador e ajudavapacientes. Ele não recebia dinheiro depacientes. [...] Mas, quando chegava em casa,ele era uma pessoa totalmente diferente,ninguém acreditaria que alguém pudessemudar tanto.

“Daniel parecia ser uma pessoa

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maravilhosa na comunidade — eclaramente era”, Fass disse-me em seuescritório. “E, quando chegava em casa,não era. Era como o Médico e oMonstro.”

A outra única testemunha de Fass naaudiência da Vara de Família foi IgorDavidson, cujo testemunho Schnall lutouferozmente para desacreditar. Davidsonintroduziu um elemento totalmente novona audiência: a ambiguidade. Ele foi oúnico dos participantes que falou comose estivesse em contato com a vida talcomo ela é fora do tribunal, onde tudonem sempre é isso ou aquilo, mas podeser ambas as coisas. Quando Fass

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perguntou-lhe se ele aprovava a entregade Michelle aos avós paternos depoisdo assassinato, ele disse: “Não creioque tenha sido a melhor coisa para acriança. Não”. E continuou:

Era realmente um momento em que elaprecisava de pessoas e lugares que lhefossem familiares e em quem ela pudesseconfiar, que ela houvesse buscado nopassado para conforto e segurança. E euestava preocupado que essas coisas nãoestivessem disponíveis para ela.

Meu coração se partiu pela famíliaMalakov quando eu soube o que tinhaacontecido. Percebi que eles estavam

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sofrendo, que estavam de luto, mas quanto àMichelle, eu não sabia quantos recursoseles poderiam disponibilizar para nutri-la oumimá-la, proporcionar toda a atenção e todoo cuidado de que ela precisava em ummomento como aquele.

A compaixão de Davidson pelos paisde Malakov, ao lado de suacompreensão imaginativa dossentimentos conflitantes deles emrelação a Michelle, foi um momentonotável em um processo dominado pordedos apontados e culpabilização, epontuado por discussões irritantes sobrequestões processuais. Outra

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demonstração de espírito fino deDavidson ocorreu quando Schnall oconfrontou com seu depoimento de abrilde 2007, que recomendava a cessaçãotemporária das visitas de Michelle aopai, depois de um incidente em que amenina foi retirada à força dos braçosda mãe por Malakov e um assistentesocial da Alternativas de Visitação elevada à casa de Malakov para umavisita supervisionada. Ela chorouhistericamente durante vinte minutos,mas acabou se acalmando, brincou como pai e parecia feliz de estar com ele.Schnall citou triunfante o relatório daAlternativas de Visitação: “Michelle e o

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pai estavam sorrindo e se divertindo.Michelle conversou com o pai. Elesbrincaram com diversos brinquedos.Quando o senhor Malakov foi à cozinha,Michelle foi atrás dele. Ela segurou amão dele. Deu-lhe um abraço”. (Schnallinventou o abraço, mas, fora isso, citoucom exatidão o relatório da Alternativasde Visitação.) Davidson comentou:“Vinte minutos de birra me pareceramexcessivos”. Schnall disse: “Não pareceestranho que ela tivesse uma birra comoessa e depois se envolvesse com o paicomo se nunca tivessem perdidotempo?”. Davidson respondeu: “Nãoparece estranho. Não. Não”. Como,

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então, Schnall zombou, Davidsonexplicaria a disparidade entre o“desconforto inicial dela” e os risos e asbrincadeiras?. Ele respondeu: “Não é deforma alguma uma disparidade. Achoque a gente pode se acostumar comqualquer situação. Não significanecessariamente que seja uma situaçãosaudável e boa para você”.

Schnall deixou o tema de lado. Emseu depoimento, Davidson disse aindaque, quando Borukhova lhe contou queDaniel a agredira fisicamente e abusarasexualmente de Michelle, ele acreditounela, mas fez uma distinção importante:

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ele não estava tratando a criança pormotivo de abuso sexual, mas pelotrauma de testemunhar a violênciadoméstica. Ele agiu na suposição de quea criança temia seu pai porque o virabater na mãe. Por isso ela fugia deledurante as visitas e apresentavasintomas (tais como urinar na cama e omedo de sair de casa) relacionados àsvisitas. Davidson disse que estavatrabalhando com a criança, usandotécnicas comportamentais para dissiparo medo dela e tornar possível umarelação com o pai.

Nesse ponto, chegamos a outra dasquestões em torno de Borukhova que

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borram seu retrato e lhe dão um toqueestranho. Por que ela insistia em baterna tecla do abuso sexual? Se o“comportamento grave [de Daniel]direcionado para a vagina de sua jovemfilha” (ou o que Fass chamou de “toqueinadequado”) realmente ocorreu,certamente não foi a causa do medo quea criança sentia dele. Depois queHeffernan considerou falsos osdepoimentos de Judy Harrypersad eDamian Montero e escreveu a carta aopromotor, teria sido melhor queBorukhova se afastasse desse assuntoinquietante. Mesmo que o “estimadoortodontista” (como Daniel foi chamado

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pela imprensa) fosse de fato umpervertido enrustido, não era político daparte dela continuar a insistir nisso. Suatentativa de provar o abuso por meio detestemunhas não só fracassou, comoprejudicou a própria alegação. Teriasido melhor para ela, mais racional elógico, conectar o comportamentotemeroso de Michelle e o apego da filhaa ela durante as visitas a cenasassustadoras de violência doméstica. SeBorukhova tivesse tornado essas cenasvívidas para os assistentes sociais e ojuiz, eles talvez não tivessem sido tãorápidos em culpá-la pelo fracasso das

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visitas. Se a imaginação de Strausstivesse sido provocada pela imagem deuma mulher sendo espancada enquantouma criança assustada observa, eletalvez tivesse encontrado outraexplicação além do “sufoco” maternalpara o comportamento de Michelledurante as visitas.

Esse é apenas um dos muitos “e se”que marcam essa tragédia. Outro tem aver com a chegada de Jolie Rothschild aAlternativas de Visitação. E se essaassistente social imperiosa e dura nãotivesse entrado na história? O relatórioda Alternativas de Visitação que tantoinflamou Sidney Strauss foi escrito

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depois de uma discussão entreBorukhova e Rothschild, em queBorukhova ameaçou processá-la, eestava cheio de fúria e aversão. E seuma carta conciliatória para Rothschildque Borukhova escreveu depois dadiscussão, enviada por fax para aAlternativas de Visitação, não tivesse seperdido, como a carta que se extraviafatalmente em Tess of theD’Urbervilles? Ninguém que lesse essacarta — Fass mostrou-me uma cópiadela — poderia achar que Borukhovaestava sabotando os esforços dosassistentes sociais. Com efeito, elamesma parece uma assistente social

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quando propõe uma reunião com afinalidade de “discutir um plano paratornar menos estressante nossaseparação durante as visitas” e “pararecriar a atmosfera positiva quetínhamos desenvolvido há apenasalgumas semanas”. Ela destaca: “Fui eutambém quem sugeriu que todossentássemos no chão e brincássemosjuntos”, e “isso parecia estarfuncionando, e eu estava muito otimistaporque Michelle estava ficando maisconfortável com as visitas”. A cartatermina: “Obrigada e espero quepossamos continuar a avançar”.

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Rothschild disse que nunca recebeu acarta, e ela nunca foi aceita como prova.

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17.

Na manhã de sexta-feira, depois deuma noite quase sem dormir, Scaringcomeçou bravamente seu sumário, maslogo mostrou cansaço. Ele se atrapalhoue não conseguia encontrar documentos.Perdeu o fio da meada de seu argumento.A transcrição registra os efeitos cruéis

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da privação de sono.

Ela diz que — uma questão — desculpem-me. Agora, indo para a ressuscitaçãocardiopulmonar. Ela diz que vê a doutoraBorukhova — eu sei que é longo, mas euvou demorar um pouco, então aguentemcomigo. Sabem, eu não me importo sevocês cochilarem, mas não durante a coisatoda, certo? Perdi o fio — esqueci o que euestava falando. Acho que estava falandosobre Ortiz. De qualquer modo — ah, a rcp.Muito obrigado. Não dormi muitoultimamente.

Scaring despertou a si mesmo e a salado tribunal quando bateu forte na mesa e

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disse: “Vocês conseguem ouvir isso?”.E bateu uma, duas vezes mais e repetiu:“Vocês conseguem ouvir isso?”. Eleestava imitando uma encenação queLeventhal fizera quando interrogouBorukhova, para enfatizar o carátersuspeito da declaração dela de que nãoouvira os tiros que mataram Daniel.Scaring passou a argumentar que essadeclaração (comparável em suaestranheza à acusação, feita porBorukhova, de que Malakov não adeixava dar leite para a criança) eraverdadeira, precisamente por ser tãoincrível. “Se ela fosse culpada, por quediria isso?”, perguntou Scaring. “Ela

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teria de ser burra, e ela não é burra. Porque eu quero parecer suspeita se souculpada dessa conspiração? Sei que elevai ser alvejado. [...] É realmente a maisforte prova de sua veracidade, pois, sefosse uma mentirosa, ela diria algumacoisa que fizesse mais sentido. Querdizer, isso não faz sentido.”

Mas a exaustão de Scaring não paravade interferir em sua tentativa depersuadir o júri a absolver a ré. “Perdio fio disso.” “Sinto muito. Organizaçãonão é meu maior talento.” “Desculpem-me, vou chupar uma dessas por umminuto.” “Estou perdendo a voz tão cedoque vou me sentar.” Seu sumário foi uma

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coisa curta, esfarrapada, triste. Depoisveio Siff com um discurso muito longo.Ele não parecia estar em sua pior formapara uma noite em claro — é vinte anosmais jovem que Scaring —, mas seusumário foi tão ineficaz quanto suasdeclarações iniciais. Alguns argumentosconvincentes que apresentou — que ocaso contra Mallayev começou com osregistros de telefone celular e não comas impressões digitais, por exemplo —afundaram no pântano de sua longaloquacidade.

Na manhã de segunda-feira, os bancosdo lado Malakov do corredor

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transbordavam de membros do clã, quetinham vindo para ouvir o sumário deseu bem descansado cavaleiro branco.Leventhal e Aldea, ambos de ternosescuros, sentaram-se lado a lado à mesa,como um par de corvos olhandoimperturbáveis para a carniça. Pilhasorganizadas de transcrições e quatrogarrafas de água estavam precisamentealinhadas diante deles. O sumário deLeventhal teve duas horas de duração efoi ainda mais engenhoso que suaexposição de abertura. Ele começoucom as palavras: “Ele pegou minhafilha. Já está decidido. Seus dias estãocontados”. Depois de uma pausa de

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efeito, repetiu as palavras de EzraMalakov. O sumário foi uma repriseempolgante de sua argumentação duranteo julgamento, como o desfile de animaise artistas no final da sessão do circo.Leventhal exibiu suas testemunhas contraMallayev, entre elas “a corajosa, alerta,consciente e focada” Cheryl Springstein,que vira os disparos e identificaraMallayev em uma fila de suspeitos dapolícia; Marisol Ortiz, que estivera noconsultório odontológico de Malakovcom a filha e o vira caminhar na direçãodo playground com Michelle; RafaelMusheyev, um açougueiro deSamarcanda, em cujo apartamento em

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Flushing Mallayev aparecerainesperadamente com o filho Boris, trêsdias antes do assassinato (Leventhalencenou: “Ei, você se importa se Boris eeu ficarmos por aqui?”), e de onde osdois desapareceram no dia do crime;Bieniek, o especialista em impressõesdigitais; o detetive Edward Wilkowski,do esquadrão de homicídios do Queens,que prendeu Mallayev na Geórgia, epara quem ele mentiu sobre onde estavaem 28 de outubro, até ser confrontadocom os registros da torre de celularmostrando que estava no Queens. “Asprovas contra Mikhail Mallayev são

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esmagadoras”, disse Leventhal.Mas Mallayev não interessava a

Leventhal. Ele largou de suasmandíbulas o homem pouco apetitoso ecorreu em direção à sua presa maisdeliciosa:

Sozinho, ele não tem motivo para assassinarDaniel Malakov. Mas, senhoras e senhores,ele não está sozinho, ele está com ela, amulher que misteriosamente grava oencontro deles em maio de 2007, a mulherque a cada vez, senhoras e senhores, eu digoa vocês que provamos que eles estão juntosem maio e de novo em novembro, logodepois que se encontraram, este réu Mikhail

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Mallayev deposita quase 20 mil dólares emdinheiro em várias contas bancárias.

A sintaxe vacilante de Leventhalreflete a instabilidade do pilar sobre oqual repousa esse elemento de suaargumentação contra Borukhova. Ele nãotinha provas de que o depósito de 20 mildólares viera dela; não existia prova datransferência de dinheiro entreBorukhova e Mallayev. Tudo o quehavia para sugerir que o “assassinopago” fora pago por ela, no caso dodepósito em maio, era a fita misteriosa,e, no caso do depósito em novembro,era o nome de Mallayev em um

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calendário que a polícia apreendera noconsultório médico de Borukhova.Claro, as 91 chamadas de telefonecelular, aliadas ao motivo, eramsuficientes para condenar Borukhova.Mas Leventhal não estava perdendonenhuma chance de reforçar sua causa.Ele sabia que os jurados querem maisdo que provas para condenar: elesquerem ter certeza de que a pessoa queestão mandando para a prisão ou para ooutro mundo, além de malfeitora, é umacriatura do mal. Assim, Leventhaltrabalhou para denegrir a imagem deBorukhova até um ponto em que o júripudesse se sentir bem com a

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condenação. Ele repetiu as palavrasraivosas do juiz Strauss — “se algumavez houve uma situação na mente destetribunal em particular que clama poruma ação imediata é esta e o que acabode descrever” —, e passou a desenhareste retrato dela:

Uma mulher que ameaçou processar osassistentes sociais da Alternativas deVisitação. Uma mulher que tinha problemascom David Schnall. Uma mulher, digo avocês, que tinha problemas com quem querque não visse as coisas à maneira dela. Umamulher que tinha problemas com quem nãoconcordava com ela. Mas eu lhes digo,

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senhoras e senhores, que David Schnall a viucomo quem ela era, a mesma pessoa...

Nesse momento, Scaring objetou e foiapoiado pelo juiz. Mas sobrava aindamuita munição. Leventhal passou azombar dos eletrocardiogramassuspeitos. Ele não teve escrúpulos emcitar (várias vezes) a versão “Você vaime fazer feliz?” da palavra padayesh.Obteve um delicioso triunfo quandomostrou (com registros da DeltaAirlines) que Mallayev estava em Israelquando Borukhova disse que ele e suaesposa tinham ido ao seu consultório, noverão de 2007. “Se ela mente sobre

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isso, sobre o que mais está mentindo?”,disse Leventhal. Ele voltou à tarde,dezenove dias antes, em que o tribunalespantado vira uma fita de vídeo quedocumentava a transferência da custódiade Michelle da mãe para o pai.

O filme começava no apartamento deBorukhova e a mostrava com Michelle,jogando uma bola ao ar e lendo para amenina. Então Borukhova dizia “Agoravamos ver Daniel”, e a criançacomeçava a chorar. Borukhovacontinuava: “Ninguém vai machucarvocê. Ninguém vai fazer nada com você.Vamos. Vamos lá”. O choro da criançaaumentava. “Você vai ficar lá alguns

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dias e depois vai voltar, Michelle.” Acriança começava a gritar. Por quaseuma hora, ouvimos o grito da criança atéque ela fica rouca, enquanto é levadapor várias quadras de uma rua e, porfim, tirada dos braços da mãe porDaniel e levada para a casa de KhaikaMalakov.

O filme era horrível. Lágrimas vieramaos olhos de muitos ali presentes.Alguns dos jurados se encolheram.Borukhova o encomendara depois de tervisto um consultor de relações públicase lhe apresentado suas ideias paraprotestar contra a decisão de Strauss —ela escreveria para Hillary Clinton, por

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exemplo, ou iria a Washington comMichelle e sentaria no gramado da CasaBranca. O consultor não levou muito emconta esses planos mirabolantes, masaprovou a ideia de documentar atransferência e passou-lhe o nome de umcineasta. Borukhova disse que queriamostrar que “havia muita discrepânciaentre o que a Alternativas de Visitaçãoestá escrevendo e as coisas reais queestão acontecendo”. O filme mostrava,com uma força implacável, o sofrimentode uma criança que é tirada de sua mãecontra a vontade. Deveria ser o ás namanga de Borukhova para ganhar a

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simpatia do júri. Mas, por incrível quepareça, Leventhal foi capaz de voltar ofilme contra ela. Ele fez parecer que acriança tinha ficado traumatizada nãopela transferência em si, mas pelafilmagem insensível encomendada porsua mãe. A dor que os jurados sentiramenquanto assistiam ao filme — e eu vi aaparência aflita deles, brincando com oscabelos ou com olhar distante — voltou-se contra Borukhova, e não contra o juizque causara aquilo. Ela teria feitomelhor se tivesse escrito para Hillary esentado no gramado da Casa Branca.

Leventhal guardou para o fim umaengenhosa guinada na trama. Ele voltou

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à insistência de Borukhova de que nãoescutara os tiros. “O senhor Scaringperguntou-lhes por que ela mentiriasobre não ouvir aqueles tiros. Por queela mentiria sobre isso? [...] Senhoras esenhores, ela não ouviu os tiros porquenão estava lá.”

De acordo com a teoria de Leventhal,Borukhova estava atrasada para oencontro no playground, pois estava àsvoltas com uma câmera espiã de botãoque comprara no dia anterior (paradocumentar o assassinato e usar o filmecontra Mallayev “caso ele a traísse”),tentando seguir as instruções para fazê-la funcionar, mas sem consegui-lo; por

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fim, abandonou a câmera e correu para oplayground — onde descobriu queMalakov já havia sido baleado. E eis olance mais esperto de Leventhal: “Eladisse que não ouviu os tiros porque nãoesperava ouvir qualquer tiro. Direi denovo. Ela disse que não ouviu nenhumtiro porque não esperava ouvir tiros,porque sabia que ele ia usar umsilenciador”.

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18.

O júri começou a deliberar na tardedo dia em que Leventhal apresentou osumário. Os jurados ficaram isoladosdurante a noite e voltaram com umveredicto no dia seguinte, depois doalmoço. Durante as seis horas em queestiveram reunidos, os jurados enviaram

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seis ou sete recados pedindodocumentos (e café em um caso). Otribunal estava lotado. Nosso pequenocontingente da imprensa havia sidoexpulso da primeira fila para dar lugar adetetives da polícia e funcionários dapromotoria. O lado dos Malakov estavalotado de parentes e amigos. No lado deBorukhova, para o qual alguns dosMalakov tinham sido obrigados apassar, a mãe e as irmãs liam seus livrosde orações em sussurros fervorosos; afilha de Mallayev rezava. A notícia deque o júri tinha um veredicto já chegara,mas o juiz não mandou buscar osjurados. Ele sentou-se serenamente e

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observou a cena. Estava esperando pelopai. Por fim, Hanophy disse: “Diga-lheque eu o quero aqui agora”. KhaikaMalakov entrou e o júri foi convocado.

O primeiro jurado anunciou umveredicto de culpado para ambos osréus em todas as acusações dehomicídio doloso. Os réus ouviramimpassíveis. Borukhova disse algumacoisa para Scaring. Os radiantesMalakov saíram da sala do tribunal. Nocorredor, abraçaram Leventhal e ospoliciais. “Deus abençoe a América” e“Obrigado, América”, disseram eles nasescadarias do tribunal. Khaika disse arepórteres de jornais e televisão:

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“Antes, eu achava que o sistema dejustiça não era tão bom. Agora euentendo que o sistema é de altacategoria”. O júri fora retirado àsescondidas do tribunal, mas osrepórteres conseguiram encontrar algunsdeles em suas casas, os quais fizeramdeclarações que apareceram no Post eno Daily News do dia seguinte. “Ela nãomostrou nenhuma emoção”, disse umajurada de 25 anos chamada OscarinaAguirre a Nicole Bode e a um colegaseu, Dave Goldiner. “Esse é o tipo decoisa que acabou com ela.” Uma juradaque não quis ser identificada disse a

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Gorta: “Não havia nada em que sepudesse acreditar no que ela disse.Simplesmente não fazia sentido”. Nãohouvera, evidentemente, discordânciaentre os jurados. “Todos nós achamosque ela era culpada, todos nós sabíamosdisso”, disse Aguirre. “Não acho quealguém tenha pensado que eles nãofizeram aquilo”, disse a jurada anônima.

Na primeira rodada de votação, noentanto, uma jurada escrevera“indecisa” em seu voto. Eu soube dissovários meses depois do veredicto, pordois jurados jovens que consentiram emfalar comigo, sob condição deanonimato. (Cinco outros jurados se

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recusaram a me dar entrevistas sobquaisquer condições.) Encontrei-me comos dois separadamente — vou chamá-los de Tim Smith e Karen Jones —, masseus relatos foram bastante semelhantes.Ambos contaram que a jurada indecisatinha “uma razão pessoal” para suarelutância: ela era mãe e não conseguiamandar outra mãe para a prisão esepará-la de sua filha. Mas, como disseSmith, “nós falamos com ela” e elamudou de ideia. Smith acreditava que,se Borukhova não tivesse testemunhado,a jurada indecisa, que ele chamou de “asenhora espanhola”, poderia terresistido por mais tempo, se não até o

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fim. Ele achou que a subida deBorukhova ao banco das testemunhas“pôs o prego no caixão”. Jonesconcordou: “Ela não era confiável.Teria sido melhor que nãotestemunhasse”. Obviamente, nãoimporta que Borukhova tenhatestemunhado. Quando ela sentou nobanco das testemunhas, a poderosanarrativa de Leventhal, delineada em seudiscurso de abertura e desenvolvida porsuas testemunhas, já fizera seu trabalho.Era tarde demais para suspender adescrença dos jurados. Quando Scaringanunciou que Borukhova iria

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testemunhar, “vi Brad e Donna dandorisadinhas”, lembrou Smith.

Ambos os jurados consideraram“boa” a decisão de Strauss de mudar acustódia. Suas palavras contundentes —que Scaring havia lutado tanto parasuprimir e Leventhal igualmente paraque fossem aceitas — pareciaminteiramente razoáveis a eles. “Por queum juiz tomaria uma medida tão drásticase não houvesse uma boa razão paraisso?”, disse Jones. “Por que tanta genteestaria contra ela?”, disse Smith.“Aquele advogado da assistência àcriança que pintou um retrato dela comoarrogante. Por que ele mentiria?”

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Ambos aceitaram a versão do tradutord o fbi da frase controversa do diálogogravado de Borukhova com Mallayev —“Você vai me fazer feliz?”. “Por que eleestaria trabalhando para o fbi se nãosoubesse o que estava fazendo? Ele nãotinha razão para dizer uma coisa que nãofosse verdade”, disse Jones, que foiadiante e fez a inferência que Leventhalpretendia que fizesse: “Ela levaraMallayev a acreditar que haveria umaoutra recompensa, além de dinheiro. Elalhe dera esperanças”. O fato de aconversa gravada ter ocorrido em maio— cinco meses antes do assassinato —não abalou a convicção de Jones de que

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estava ligada ao crime. “Ela estavapercebendo que haveria necessidade dese livrar de Daniel”, disse ela. A versãoda defesa — “Você está descendo?” —parecia indigna de consideração: “Elesestavam se agarrando em qualquercoisa”, disse Jones. A imaginação deSmith também tinha sido insuflada pelaideia de sexo entre Mallayev eBorukhova. “Ele não arriscaria sua vidapor 20 mil dólares. Deve ter havido algomais. Um homem gordinho e mais velhogostaria de ter um relacionamento comela, uma mulher magra e mais jovem.”(Perguntei ao jovem e magro Smith se

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achava Borukhova bonita e ele melançou um olhar incrédulo. Depois dissecom um sorriso: “Ligeiramente abaixoda média para mim”.)

O comportamento contido deBorukhova, estilo Cordélia,* na mesa dadefesa funcionou contra ela. Nada veiodo nada. “Ela não tinha nenhumaemoção”, disse Jones. “Ela não pareciaabalada. Não estava com medo. Se vocêé inocente e está sendo julgado porassassinato, estaria abalada. Vestiram-na de branco para subliminarmentesinalizar sua inocência. Quem se vestede branco todos os dias?” Smith usou aspalavras “fria”, “desligada”, “distante”,

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“rígida” e “indiferente” para descreverBorukhova. Jones achou-a também“irracional”, “não natural” e“obcecada”.

Para Jones, o filme da transferênciatraumática de custódia era uma provaconclusiva da monstruosidade deBorukhova:

Ela foi fria e indiferente. Ela não tentouconfortar a filha. Você não ia querer que acriança ficasse calma? Mas ela só queriamostrar na fita como a filha estavatranstornada. Não sei qual poderia ter sidosua motivação, a não ser egoísta. A criançaadormeceu. Então ela teve a coragem de

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acordá-la. Vi que ela estava disposta asacrificar o bem-estar de sua filha paraobter o que queria. Isso me fez acreditar queela mataria o marido para manter a filha.

Nenhum dos jurados tinha muito adizer sobre Mallayev. Confiante de queo peso das provas era suficiente paracondená-lo, Leventhal não se preocupouem fazer o retrato do assassinogordinho, deixando que ele aparecessecomo o instrumento opaco da vontade deBorukhova. Ambos os jurados tinhamcerteza da culpa de Mallayev, emboraSmith tenha notado — e julgado injusto— o impedimento imposto por Hanophy

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quando Siff tentou contestar o campo daimpressão digital. Jones pensava ocontrário. “Ele estava tentando dizer queas impressões digitais não têm basecientífica. Isso é ridículo. Foi umargumento muito louco, uma coisa muitodesesperada de se fazer. Eles usamimpressões digitais há tantos anos. Porque as usariam se não fossem exatas?”

Os dois jurados também diferiam emsuas avaliações dos advogados e dojuiz. Smith preferia Scaring a Leventhal.“Scaring foi convincente desde o início.Ele tinha uma presença. Sua altura.Ficamos muito bem impressionados comele”, enquanto o baixo Leventhal “não

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impressiona de imediato”. Jonespreferia Leventhal e criticou a técnicade interrogatório de Scaring. “Ele eraóbvio. A gente podia perceber o que elequeria que a pessoa interrogadadissesse.” Smith disse que achava que ojuiz “estava ligeiramente inclinado afavor da acusação. Achei que Leventhalsafou-se com teatralidade. Notei que ojuiz não o reprimia”. Jones disse:“Achei que o juiz foi imparcial”. Eacrescentou: “Gostei muito dele. Pareciareal, com os pés no chão e sério emrelação ao seu trabalho. E engraçado.Ele tinha um bom senso de humor”.

Smith descreveu seus colegas jurados

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como “muito passivos. Nenhumapersonalidade alfa. Todos estavamrelaxados”. Ele disse que alguns juradosdesconsideraram a ordem do juiz de nãofalar sobre o caso durante o almoço, eque alguns haviam visto o caso nonoticiário. Um dos jurados que serecusou a me dar uma entrevistaescrevera em um e-mail: “Acho que eunão poderia dar a entrevista sem ficarmuito abalada com isso. Ainda é recentedemais para eu falar sobre o assunto”.Imagino que se tratava da senhoraespanhola em cujo fio de sentimentomaternal o destino de Borukhova esteve

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brevemente pendurado.

* Cordélia: personagem da peça Rei Lear deShakespeare. (N. T.)

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19.

O Supremo Tribunal do Queens foiconstruído em 1960 e é um exemplo daarquitetura cívica do período, cujafeiura sem sentido o tempo não consegueapagar e cujo saguão de entrada setornou uma completa catástrofe estéticapelos equipamentos de segurança

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grosseiramente instalados em toda a sualargura depois do Onze de Setembro.Havia várias semanas que eufrequentava o prédio quando notei omosaico que cobre o espaço sobre aentrada que conduz aos elevadores e asparedes adjacentes. O mosaico é umavisão assombrosa, mas, como aspessoas passam com pressa pelabarreira de segurança em direção aoselevadores, não o percebem. Eu o noteisomente porque um dia, durante umrecesso longo, caminhei pelo tribunal àprocura de coisas para observar.

É um trabalho da mais extremacomplexidade e estranheza. Seu criador

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foi o artista e escultor Eugene FrancisSavage (1883--1978), que fez muraispara o wpa* e para as universidades deYale, Columbia e Purdue, e projetou aFonte Bailey na Grand Army Plaza doBrooklyn. A obra é uma espécie dealegoria maluca que ilustra conceitos —explicitados por legendas sob cadasegmento — relacionados a um tribunalde justiça: Punição, Isenção,Reabilitação, Segurança, Contestação,Inquérito, Prova, Erro e Transgressão,junto com os pecados capitais daVaidade, Inveja, Ira, Luxúria, Preguiça,Soberba e Avareza. Acima de “Punição”vê-se um homem sinistro, com um raio

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saindo de um punho; a “Avareza” érepresentada por uma mulher velha efeia com um vestido azul e colar depérolas, inclinada sobre uma caixa dedinheiro e joias. Perto do homemsinistro, um sujeito de aparênciamalvada se agacha diante da entrada deum túnel de onde sai engatinhando outrapessoa desagradável, carregandoferramentas. Uma figura encapuzada comos braços estendidos que segura uma fitamétrica de ouro, um sujeito nu com umarco e flecha, um homem de peito nuajoelhado perto de uma pilha de livrosem cima da qual há uma foice e um

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martelo, uma mulher com seios bonitos eum homem negro que faz uma caretahorrível são algumas das outras figuras,situadas numa paisagem sinistra cheia derodas-d’água, montanhas, estradas, arco-íris e tigelas azuis cheias de ouro. Oolho não sabe onde descansar. Umabalança da justiça vertiginosamentepontuda paira sobre a alegoria, com umde seus pratos de ouro equilibrado bemno alto e o outro balançando perto dochão. Estranhamente, sobre o pratosuspenso no alto encontra-se um livrocom a palavra lei em sua capa, enquantoo prato perto do chão não tem nada,exceto uma espécie de caroço de

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pêssego. Seria um comentário sobre aausência de gravidade da lei? Ou éapenas Savage exercendo suaimaginação artística desafiadora dagravidade — com a certeza de que odestino da arte pública é ser invisívelpara o público que nunca aencomendou?

* wpa: Works Progress Administration, órgão dogoverno federal americano encarregado de promover oemprego mediante obras públicas na época do New

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Deal. Encerrou suas atividades em 1943. (N. T.)

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20.

Depois dos elevadores, há uma portade vidro que dá para uma área em que opúblico não pode entrar, exceto comcredenciais especiais: ali estão osescritórios da promotoria. No dia 18 demarço, fui admitida nesse santuáriointerno para uma entrevista com Brad

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Leventhal. Kevin Ryan, o assessor deimprensa da promotoria que arranjaratudo, permaneceu na sala deconferências em que ocorreu aentrevista. Leventhal contou-me suahistória: “Nasci no Brooklyn. Meu paiera peleteiro e caixeiro-viajante, esoldado condecorado na SegundaGuerra Mundial. Minha mãe era dona decasa. Sou filho único”. Quando eleestava com dezesseis anos, seus pais semudaram para Long Island, onde elefrequentou colégio, faculdade (NassauCommunity College e C. W. Post LongIsland University) e escola de direito(Hofstra). Depois de se formar,

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trabalhou como advogado de defesapara a Legal Aid Society e, em seguida,entrou para um escritório de advocaciaespecializado em homicídios. Depois deoito anos, deixou a defesa criminal etornou-se assistente da promotoria. “Eusimplesmente não gostava mais dotrabalho. Não me sentia bem com o queestava fazendo. Não me satisfazia.” Nãoadmira: Leventhal tinha acabado dedefender um médico chamado DavidBenjamin, que havia perpetrado umaborto malfeito e deixado que a pacientesangrasse até a morte sobre uma mesa desua clínica improvisada. “Depoisdaquele julgamento, eu não estava mais

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interessado — estava pensando em saircompletamente do direito”, continuouLeventhal. “Mas sempre quis serpromotor, e tinha desenvolvido um bomrelacionamento com o assistente dapromotoria, que fez a acusação naquelecaso; então liguei para ele e perguntei sehavia vagas no escritório da promotoria,e cerca de três ou quatro meses depoiseu estava empregado aqui.”

Quando questionei Leventhal sobre ojulgamento que acabara de ganhar, ficouclaro que sua aversão e seu desprezopor Borukhova não tinham sido fingidos.“Ela tomou a decisão de mentir quando

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se sentou no banco das testemunhas”,disse ele severamente. “Aquilo foiescolha dela. Ninguém a obrigou a darqualquer tipo particular de testemunho.”Ele continuou:

Há consequências quando você não conta averdade. Por exemplo, que mentira enormeela contou quando disse que, em 1o deagosto de 2007, o senhor e a senhoraMallayev foram ao seu consultório pediruma receita para a hipertensãodescontrolada que ela alegou que a mulhersofria. E não a confrontei com isso nointerrogatório. Eu sabia que ela iria inventaralgum tipo de mentira. Então não falei disso.

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Mas no sumário pude mostrar, através dedocumentação que estava em evidênciaantes que ela testemunhasse, que Mallayevestava fora do país em 1o de agosto de2007.

Cumprimentei Leventhal por suahabilidade. Eu disse que tinha meperguntado na ocasião por que elechamara uma funcionária da DeltaAirlines para testemunhar e estabelecerque Mallayev voara para Israel em 29de julho e regressara a Atlanta em 20 deagosto. “Agora sei o que você estavapreparando...”

“Não, não”, Leventhal me

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interrompeu. “Eu não estava. Quando eutrouxe aquela prova, não tinha ideia deque ela iria testemunhar.”

“Então, por que a trouxe?”Leventhal explicou que estava dando

conta de uma lacuna nos registros docelular de Mallayev; ele estavasimplesmente estabelecendo que,durante sua estada em Israel, o telefonecelular de Mallayev estava fora de uso.“Mal sabia eu que ela ocuparia o bancodas testemunhas e mentiria.”

“Ela não havia prestado atenção aodepoimento da funcionária dacompanhia aérea.”

“Ou tinha esquecido. Meu pai sempre

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me disse: ‘É fácil dizer a verdade. Vocênão precisa ter uma boa memória paracontar a verdade. Você tem de ter umamemória muito boa se vai mentir’.” Eacrescentou: “Um dos primeiros bilhetesdo júri foi para pedir os registros devoo da Delta”.

Eu disse: “Talvez a memória delatenha sido afetada pela desnutrição.Você viu suas fotos anteriores e com queaparência ela estava no julgamento”.

“Achei que ela parecia bem”, disseLeventhal friamente. “O senhorMallayev emagreceu também. Pareciabem.”

“Sim, ele parecia bem. Mas achei que

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ela parecia bem pouco saudável. Vocênão acha?”

“Eu não penso assim. Achei que elaparecia estar muito bem. Ela me pareciabem saudável. Estava em bom estado.Estava bem vestida. Estava com as mãosfeitas. E o pessoal do tribunal seesforçou para tentar obter refeiçõeskosher e frutas frescas para ela, eBorukhova recusou. Então, acho que éum problema criado por ela.”

Mencionei novamente as imagens deuma Borukhova saudável e de rostoredondo que apareceram nos jornais naépoca de sua prisão e a Borukhova

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definhada do julgamento.“Ela não me parece tão diferente do

momento que a conheci depois de tersido presa”, insistiu Leventhal, eacrescentou: “Ela não está em um spa”.

No final da entrevista, Leventhalofereceu a mim e ao seu guarda-costasuma ária händeliana sobre as delícias dese trabalhar no escritório da promotoria.

Desde o dia em que comecei, até hoje,nunca houve um dia — e isso é uma coisaincrível —, nunca houve um dia em que eutenha me arrependido de minha decisão, outenha dito “e se”. Nenhum dia. Adoro virtrabalhar. Adoro fazer este trabalho. As

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pessoas que trabalham comigo aqui sãomaravilhosas. Não preciso me preocupar emrepresentar um cliente ou com os interessesde um cliente em particular. Não tenho deme preocupar em ganhar dinheiro e serpago. Não se faz isso por dinheiro, comcerteza. Tudo com que você tem de sepreocupar, tudo em que você tem de seconcentrar, é tentar fazer justiça. E euacredito que a justiça certamente foi feitaneste caso.

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21.

Algumas semanas mais tarde, quandofalei com Scaring e mencionei a ciladaarmada por Leventhal a Borukhova emseu testemunho sobre a visita deMallayev no dia 1o de agosto, ele nãodeu importância:

O que ela disse em seu depoimento? Ela

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disse que os viu em 1o de agosto. Ela olhaem seu arquivo e vê que a mulher estava lá eusa o plural em vez do singular. Foi umlapso de língua. Ou ela lembrou errado.Aquilo foi um ano e meio atrás. Não faziadiferença se ele estava lá ou não. Nada tinhaa ver com nada. E Leventhal sabia disso, masconseguiu transformar isso em um eventosignificativo. E isso me incomoda emrelação ao júri. Trata-se de um caso deassassinato. E você condenar alguém,porque eles disseram “eles”?

Eles disseram eles. Scaring estavarepetindo exatamente o mesmo “lapso delíngua” que atribuiu a Borukhova — um

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erro que insiste em penetrar nalinguagem. Houve uma troca de palavrasno julgamento em que esse solecismopopular figurou comicamente. MichaelAnastasiou interrogava uma testemunhachamada Alex Kryjanovskiy, que estavana rua 64 no momento do assassinato eviu um homem correndo pela rua.Depois de descrever os trajes dohomem, Kryjanovskiy disse: “Ah, haviamais uma coisa. Eles também tinham umpedaço de pano branco, eu acredito, nolado direito de seu corpo, que estavamsegurando junto ao corpo enquantocorriam”. O diálogo continua:

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P: Você se lembra da idade aproximadadesse indivíduo?R: Eu me lembro de ter contado ao detetiveque achava que era alguém na casa dos trinta.Essa é a impressão que eles causaram emmim. Eu acho que eles... eu disse que eraalguém na casa dos trinta.

O próprio Anastasiou pegou ainfecção do “eles”: “E em que direçãoeles estavam indo?” e “O que você osobservou fazer depois que subiram aquadra?”, perguntou ele. “Eles estavamcorrendo pela rua”, respondeuKryzhanovskiy. O diálogo assumiu umaspecto farsesco:

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Tribunal: Você está dizendo “eles”?Testemunha: A pessoa. A pessoa, desculpe-me. A pessoa estava correndo pela rua [...] edepois eles atravessaram para o outro ladoda rua — quando eles chegaram perto docruzamento na rua 102, parece que fizeramuma curva à direita. Lembro-me de dizerque, tanto quanto eu pude ver, eles entraramà direita na 102.Tribunal: Você continua dizendo “eles”.Você quer dizer...Testemunha: A pessoa, o homem.Tribunal: A pessoa.Testemunha: Desculpe-me.

No início do julgamento, quandoentrevistei Scaring, ele estava tão — ou

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quase — otimista quanto Leventhal.Disse que os promotores tinham uma“causa péssima” contra Borukhova e quetudo o que podiam esperar era queMallayev, contra quem eles tinhamargumentos mais fortes, talvez aafundasse junto com ele. “Eles tinhamescutas telefônicas e não foram capazesde obter qualquer prova incriminatória”,disse Scaring. “Eles tinham mandadosde busca para todos os lugares e nãoforam capazes de obter nenhuma provaincriminatória. Interrogaram Mallayevpor horas, tentando levá-lo a implicarBorukhova, e ele nunca fez isso”,

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prosseguiu ele. “Nós vamos argumentarque as circunstâncias não sãoconvincentes e que está claro que Danieltinha outros inimigos. Quem são eles eque motivo podem ter tido, isso ninguémprocurou saber. O promotor olhousomente para a doutora Borukhova.”Mas Scaring nunca apresentou o roteiroalternativo com outros inimigos queteria livrado Borukhova, e agora eleestava contrariado e amargo, um leãoferido, que já não se importa se umjornalista ouve sua choradeira.

“Você sabe, defender um clienteinocente é a coisa mais difícil para umadvogado de defesa. Eu não assumi o

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caso até ter falado bastante com ela, eacreditei que ela era inocente desde oinício.”

“Mas quem fez aquilo, se não foramos dois? Para livrar o inocente vocêprecisa encontrar o culpado.”

“Deveria ser o contrário. Deve-sepresumir a inocência.”

“A presunção de inocência é umaespécie de farsa, não é?”, disse eu, paraver o que Scaring diria.

“A promotoria tem uma vantagemesmagadora”, disse ele. “O júri entra eimagina que o réu não estaria lá se nãofosse culpado. Eles não confiam noadvogado de defesa. E, se há qualquer

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viés do juiz, se houver qualquerlinguagem corporal do juiz que apoieesse viés, torna-se quase impossívelsuperar.” Scaring falou do viés deHanophy pela linguagem corporal:“Durante o sumário da acusação,Hanophy estava sentado atrás de suamesa ouvindo atentamente. Durante ossumários da defesa, ele andou para lá epara cá parecendo entediado”.

Scaring, como muitos advogadoscriminalistas, começou sua carreiracomo promotor. Na primeira entrevista,ele falou longamente sobre umjulgamento de que participara quando

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era um jovem assistente da promotoriano condado de Nassau — “o caso maisemocionante que já processei” — contraum certo dr. Charles Friedgood, que deuà sua mulher uma injeção letal e cortou ocorpo dela em pedaços. Depois que eleobteve a condenação de Friedgood, a“rotina” de casos de assassinatoentediou Scaring e o impeliu para aadvocacia de defesa, que ele tempraticado desde então. Scaring iniciara ainvestigação de Friedgood e estavatotalmente convencido de sua culpa.Perguntei-lhe se, sabendo o que sabia,ele teria assumido o caso comoadvogado de defesa. “Claro”,

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respondeu. “Com certeza. Poderia atéter vencido.” Quando perguntei como éganhar uma absolvição para alguém quevocê sabe que é culpado, ele falou sobreoutra coisa. Então o pressioneinovamente sobre o assunto, e de novoele se esquivou. “O que mantém ospromotores e os detetives da políciaalertas é saber que vão enfrentaradvogados qualificados. Isso faz osistema funcionar melhor. E deixarei ascoisas assim.”

Perguntei-lhe se ele teria feito algumacoisa diferente em sua defesa deBorukhova.

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O que teria acontecido se eu não a tivesseposto no banco das testemunhas? Acho queeles a teriam condenado em um piscar deolhos. Não, não tenho nenhumarrependimento. Não havia nada que eupudesse fazer em relação ao meu sumário.Eu tinha de fazê-lo. Teria sido bom se eupudesse me levantar na manhã de sexta-feirae dizer ao juiz: “Eu não posso apresentar osumário porque não estou preparado”. Mas,como advogado, não tenho esse tipo deindependência, tenho que seguir asdiretrizes do tribunal. Se eu tivesse dito:“Não posso fazer o sumário”, ele poderia terreplicado: “Se você não o fizer, estarárenunciando a ele”. Sou uma pessoa

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honrada. Eu não alegaria estar doentequando não estou. Não havia opção, a nãoser ir em frente despreparado. Então foinegado a ela o direito constitucionalmentegarantido de assistência jurídica efetiva.

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22.

Em uma tarde de domingo, algunsdias depois do veredicto, Alla Lupyan-Grafman me levou em excursão pelaregião dos bucaranos em Forest Hills,um bairro de casas agradáveis em ruaslaterais que ladeiam uma avenida(chamada rua 108) onde se enfileiram

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prédios de apartamentos bemconservados, de tijolos vermelhos.Depois de cerca de oito quadras, aavenida fica em pior estado (aparecempoucas sinagogas) e então se transformaem uma Main Street, um trecho de ruacomercial, com mercados de alimentos epequenas lojas de roupas e produtoseletrônicos, bem como escritórios juntoà calçada, entre eles o consultóriomédico onde Borukhova atendia. Antesde chegarmos ao playground Annadale,na rua 64, próximo da Main Street —nosso destino final —, Alla conduziu-mepelas ruas laterais onde as mansões deque ela me falara tinham sido erguidas e

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continuavam a ser construídas. Elascompunham uma visão espantosa. Masnão foi só o tamanho que me fez olharcom assombro. Com suas colunas depedra ornamentada, balaustradasdouradas de ferro batido, varandas ejanelas de dois andares, não pareciamcasas particulares, mas embaixadas.Podiam-se imaginar bailes e recepçõesacontecendo em seus salões; não seimaginariam famílias sentadas parajantar ou assistindo tv. Muitas dessasconstruções estavam quase prontas, eoperários entravam e saíam delas.Perguntei a Alla quem eram osimigrantes bucaranos que podiam pagar

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por aquelas residências e de onde vinhaseu dinheiro. Ela deu de ombros e disse“máfia”, mas não conseguiu entrar emdetalhes. A palavra “máfia”, tal como apalavra “natureza”, muitas vezes ocupao lugar do que não pode ser entendido.Uma manhã, a sala do tribunal deHanophy ficara petrificada diante dotestemunho de uma funcionária de umbanco da Geórgia que confirmara que ainstituição havia incrivelmenteemprestado milhões de dólares aMallayev para a construção de umconjunto habitacional nos arredores deAtlanta, mesmo sabendo que ele devia

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centenas de milhares de dólares paraempresas de cartão de crédito, entreoutros credores. Nenhuma explicaçãofoi dada para a generosidade semsentido do banco. As forças quegovernam — e periodicamente dizimam— a economia não estão ao alcance danossa compreensão.

Alla e eu chegamos à zona comerciale viramos na rua 64. O playgroundAnnadale estava a uma quadra e meia dedistância. No julgamento, quando apromotoria mostrou gráficos nos quaisas testemunhas oculares do tiroteiofizeram marcas para indicar ondeestavam quando viram o que viram, tive

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dificuldades para imaginar a cena e,agora que estava no local, as coisas nãoficaram muito mais claras. O lugar eraapenas mais uma das concessõesrelutantes da cidade às reivindicaçõesdo prazer infantil inócuo. Não havianenhum vestígio de violência entre seusbalanços e escorregadores banais. Mas,a uma quadra de distância, restava umvestígio da vítima. Quando Alla e eupassamos por um prédio deapartamentos de tijolo, na rua 64, elaapontou para um toldo vermelho sobreuma porta branca na qual as palavras“Ortodontista/Fisioterapeuta” estavamimpressas. “Este era o consultório de

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Daniel”, disse ela.Desconcertantemente, o nome do homemque morrera havia dezessete mesesainda estava em uma placa penduradaem um poste de metal ao lado da porta:“Daniel Malakov, Ortodontista D.D.S.P.C.”, com uma tradução em russoabaixo dela, seguida por “GavrielMalakov, P.T. Fisioterapeuta”, tambémcom o texto em cirílico abaixo. Gavriel,irmão mais novo de Daniel,compartilhara o consultório com ele eevidentemente ainda atendia lá.

No domingo seguinte, voltei a ForestHills, impelida por um impulso

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inexplicável de refazer os passos que eudera com Alla. Quando parei na frentede uma das enormes casas para fazer umesboço dela, um operário saiu e meconvidou a entrar. Ele falava inglês comsotaque russo e me mostrou com orgulhoas requintadas molduras e os papéis deparede em relevo que estavam sendoaplicados às paredes das salas grandespara dar-lhes a requisitada aparêncialigeiramente brega de esplendorimperial russo. Na rua 64, peguei minhacaderneta de anotações novamente paraescrever as palavras que estavam naplaca em frente ao consultório dentáriode Daniel. Enquanto eu escrevia, um

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homem alto e idoso de quipá apareceude repente, e reconheci imediatamenteKhaika Malakov. Ele olhou para mimsem surpresa ou mesmo interesse, comofazem personagens em sonhos. Eutambém não senti nenhuma surpresa.Apresentei-me como jornalista — talvezele se lembrasse de me ver na sala dotribunal? — e perguntei se poderíamosconversar. Khaika pegou em silênciouma chave e abriu a porta branca. Segui-o até uma sala de espera em que tudo erapreto: o balcão alto da recepcionista, opiso de linóleo, as cadeiras encostadasao longo de uma parede. Khaika fezsinal para que eu sentasse em uma das

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cadeiras e se acomodou na seguinte.“Todo mundo me congratula”, disse ele.

Você ganha causa. Justiça é feita. Mas nestecaso ninguém ganha. EspecialmenteMichelle. Perdi meu filho. Meu adorável,adorável filho. Ele tinha educação superior.Todo mundo precisa dele. Especialista demuita alta classe, muito importante. Minhafamília o perdeu. Todo mundo perdeu.Ninguém vencer. Todas as famílias sofrem.Família dos assassinos sofre agora. Estecaso não é esporte, não é transaçãocomercial. É caso muito estúpido. Muitagente me felicita. Eu não sei o que dizer.

Khaika começou a falar com grande

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angústia e amargura da morte de suafilha, Stella, a mais velha de seus quatrofilhos, que ocorrera um ano antes doassassinato de Daniel. Ela fora tratadade leucemia no hospital Sloan-Ketteringcom um medicamento experimentalcujos efeitos colaterais, Khaikaacreditava, a tinham matado. Ele tentaraintervir — disse que sabia que a drogairia fatalmente enfraquecer seu sistemaimunológico —, mas o médico grosseiroque a administrou não lhe deu ouvidos.Stella morreu de pneumonia, comoKhaika previra que aconteceria, aosquarenta anos. Ele odeia o médico.

Ele falou da “família que matou meu

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Daniel” e de sua certeza de que a mãe,as irmãs e o irmão de Borukhovaparticiparam da trama; disse quegostaria de vê-los processados. Propôsque pusessem um eletrodo no cérebro deBorukhova, para que “cada vez quetocasse na cabeça, ela lembrasse do quefez”. E continuou: “O sistema carcerárioamericano não é como o sistema russo.Eles têm tv, não trabalham, podem ir àescola. Podem fazer exercício. Fácildemais. Na prisão russa é muito difícil”.

Eu disse — entrando no estiloassociativo da conversa de Khaika —que em Crime e castigo Raskólnikovganhou apenas oito anos de Sibéria.

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“Oito anos na Sibéria é como oitentaanos aqui”, disse Khaika. “É muito friona Sibéria. Eles trabalham em minassubterrâneas. Depois de três anos, todomundo está doente.” Ele voltou para afamília Borukhova. “Marina mentiu portrês dias. Toda a família tem umapersonalidade ruim.” Ele disse queNatella tivera cinco filhos e nuncapermitiu que os pais do marido fossem àcasa dela.

Eu soubera que Ezra Malakov era umilustre divulgador e intérprete de Shashmaqam, um gênero musical clássico daÁsia Central, e gravara vários cds.

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Perguntei a Khaika onde poderia obterum deles. Ele disse que tinha umacoleção de gravações de Ezra em casa eme convidou para ir até lá e pegar umcd. Enquanto caminhávamos para suacasa, passamos por um prédio deapartamentos que Khaika identificoucomo sendo o lugar em que a mãe e asirmãs de Borukhova moravam. Na rua108, passamos pelo consultório deBorukhova e vi que sua placa, tal comoa de Daniel, ainda estava lá. A casa deKhaika, a poucas quadras de distância,em uma rua lateral, não é uma dasmansões pretensiosas; é uma pequenacasa de alvenaria de aspecto agradável,

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indistinto. A sala tinha uma ordemartificial. Havia uma grande mesa polidano meio cercada por cadeiras grandes,um aparador enorme com porcelanas ecristais, jogos de chá e bibelôs atrás desuas portas de vidro, uma grande pinturaemoldurada em ouro do Muro dasLamentações, em Jerusalém, um pianovertical preto, tapetes persas, sofás decouro e, na janela, um vaso de gladíolose hortênsias.

Junto com o cd, Khaika me deu umlivro que escrevera sobre Stellaintitulado Lenda de uma filha amada.Metade do texto, ilustrado comfotografias em cores, está em russo,

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seguida por uma tradução malfeita parao inglês. Apesar de frases como “Elanunca saiu no escuro com um sujeito”,tem-se a imagem de uma mulher deexcepcional beleza física, intelectual emoral. Stella parecia não ter defeitos.Era modesta, generosa, espirituosa,adorável, brilhante, inteligente eexcepcionalmente bonita. Era umaprofessora de matemática do ensinomédio capaz de levar a compreensão atémesmo aos alunos que tinham tropeçadoirremediavelmente pelo caminho nosanos anteriores; ela só descansavadepois que eles entendiam. “Ao ler este

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livro”, escreveu Khaika,

a gente vai pensar, “Aí está, uma pessoafaleceu e, a fim de lembrar essa pessoa,tentam descrever um ser humano irreal”.não, caro leitor, ela realmente era real, umser extraordinário. [...] Deus enviou umacriação dizendo: Aqui, gente, olhem paraminha criação! Olhem para o que possocriar e, se puderem, aprendam com ela!Deus a manteve na terra tempo suficientepara que ela deixasse sua marca nos outros,e depois a levou de volta.

As canções nas gravações de Ezraeram diferentes de tudo o que eu jáouvira. Sobre uma instrumentação que,

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em seus ritmos circulares, provocativose zunidos vibrantes, evocava dançarinasde harém, as palavras baruch atahadonai se destacavam na voz vigorosa eáspera de Ezra. Depois que toquei o cdalgumas vezes, comecei a gostar.

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23.

A audiência da sentença, em 21 deabril, teve a atmosfera de uma execuçãopública. A bancada do júri estava cheiade cinegrafistas, que ocupavam umafileira e apontavam suas câmeraspesadas, como se fossem fuzis. Todos osassentos estavam tomados. A primeira

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fila foi novamente reservada paradetetives da polícia e funcionários dapromotoria, e a horda dos Malakovparecia ainda maior do que a que vierapara ouvir o veredicto. O juiz Hanophychegou vestido com um elegante ternocinza; ele enfiou a toga somente no finaldo período obrigatório de espera.Trouxeram Borukhova e Mallayev, maseles não foram libertados imediatamentede suas algemas; Scaring teve de pedir aHanophy para que isso fosse feito.Borukhova usava um turbante de tecidocor de marfim estampado, uma saialonga preta e branca e seu casacobranco. Mallayev estava de terno

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escuro. Durante toda a audiência,Borukhova escreveu num bloco amarelode anotações. Scaring e Siff haviamapresentado moções “para anular acondenação”, e Donna Aldea selevantou para apresentar os argumentosda acusação contra eles. Enquanto eladerrubava claramente as alegações deScaring e Siff de injustiça eparcialidade, pensei na caracterizaçãoque Billy Gorta fizera dela comorepresentante dos alunos em uma escolabritânica.

Depois que Scaring e Siff haviamrespondido e o juiz dissera “moçõesnegadas”, a audiência de sentença

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propriamente dita começou com umasérie de declarações de “perdas davítima”. A primeira declaração foi lidaem voz alta por Khaika Malakov, emrusso, com Alla traduzindo. Ele falousobre os méritos profissionais e asvirtudes pessoais de Daniel. Expressousua gratidão à polícia e à promotoria.“Sabemos como seria difícil encontrar oassassino e como é difícil,especialmente sob o sistemademocrático, provar a culpa.” Elogiou o“profissionalismo” de Hanophy, fazendouma pausa para observar que, no iníciodo julgamento, “achei que o juiz se

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inclinava para os réus, para oscriminosos. Ele me pareceu ser cruel.Ele não me deixou gritar ou chorar nasala do tribunal, então choramos emsilêncio, estávamos gritando por dentronesta sala do tribunal e sofrendo emsilêncio”. Repetiu sua observação sobreo vazio das congratulações que recebeudepois do veredicto: “Não hávencedores aqui”. E concluiu dizendo:“Como diz o velho livro, olho por olho,morte por morte, mas felizmente para osassassinos que cometem tal crime nãoexiste essa pena nos Estados Unidos dehoje”. Ele pediu prisão perpétua semliberdade condicional.

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Gavriel fez uma breve declaração(em inglês) e solicitou a mesmasentença. Em seguida, Leventhal leu ascartas da mãe de Daniel e de umsobrinho e uma sobrinha — os filhos deStella, Yuri Normatov e LyudmilaNormatova. A mãe lembrou donascimento de Daniel na ambulância quea levava para o hospital. “Eu o dei à luzrápida, suave e facilmente. Daniel veioa este mundo dessa maneira e viveu suavida da mesma forma.” Yuri escreveuque seu tio era “um indivíduo que queriatirar o máximo proveito da vida. Elequeria aprender sobre arte e moda,literatura, poesia e música. Seu objetivo

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era ser um homem cosmopolita”. Eledizia que os “últimos dias de respiração[de Daniel] foram os mais felizes de suavida”, e continuava:

Posso dizer isso com absoluta certeza.Lembro-me de entrar em seu consultórioalguns dias depois que Michelle estavamorando com ele. Lembro-me de tudoperfeitamente. Michelle estava jogando coma secretária dele. Daniel estava fazendo umapausa. Estava sentado na outra sala comendouma romã. Ele me disse: “Quando vejoMichelle brincando na escola, penso notempo passado em que não estive com ela echoro”.

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É óbvio que estava comendo umaromã. Os personagens da literatura russaestão sempre comendo (ou oferecendo)frutas em momentos significativos(Gurov, em A dama do cachorrinho,come uma fatia de melancia depois queele e Anna dormiram juntos pelaprimeira vez; Oblonsky, em AnnaKariênina, está trazendo uma peragrande para Dolly quando ela oconfronta com a infidelidade dele). Estáno sangue da narrativa russa chamar aatenção para as frutas. A imagem daromã de Daniel tremeluziu por uminstante nas mentes das pessoas sentadasna sala do tribunal do Queens e

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desapareceu até que, muitos mesesdepois, saltou para fora da transcriçãodo julgamento que uma das espectadorasestava lendo.

A sobrinha escreveu que Daniel“sempre soube que as mentiras e falsasalegações de sua esposa eram óbvias”, eque “todo mundo sempre perguntou a ele‘por que você está deixando Mazoltuvtorturá-lo dessa maneira sem fazernada?’. Todos sabiam que seu objetivoprincipal era tornar a vida de Danieldesgraçada, como vingança por ele terse divorciado dela”.

Em seguida, Leventhal fez suadeclaração. O trabalho que ele tanto

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amava exigia que ficasse emotivo eirado. Com a voz aguda em ascensão egestos febris das mãos, ele chamouMallayev de predador, maquinador ecúmplice do mal. Criticou comestridência Borukhova por sua“arrogância absoluta” ao acreditar quepoderia se safar do crime e por suaviolação do juramento de Hipócrates(embora continuasse a chamá-lainsultuosamente de “senhorita”, em vezde “doutora” — tal como o juiz),“quando contratou um assassino paramatar a sangue-frio o homem que outroracompartilhara sua cama”. Borukhova

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ouviu impassivelmente e continuou aescrever em seu bloco. Leventhalcaracterizou o crime como “um dosassassinatos mais desalmados einsensíveis que já tive a oportunidade deinvestigar e processar”. (Com certeza, ocaso mais desalmado e insensível queele processara [também peranteHanophy] era o assassinato cruel e semsentido, em fevereiro de 2004, de umentregador chinês de dezoito anos portrês adolescentes que o espancaram eesfaquearam até a morte quando elechegou com a comida que haviamencomendado do restaurante de seu pai,com a intenção de roubá-lo para que

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pudessem comprar o tênis da moda.) Eledisse: “Esses réus são um verdadeiroperigo para a sociedade”, e pediu a penamáxima. “São somente tais sentenças,excelência, que irão proteger asociedade de criminosos como esses.”

Siff pediu a pena mínima paraMallayev. (Do mesmo modo como, trezeanos antes, Leventhal apelara em favordo aborteiro — “Excelência, ele não énenhuma ameaça. Este homem nãorepresenta nenhum perigo para asociedade. Trata-se de um homem quetentou fazer seu trabalho”, é o que,segundo o Times, ele teria dito —fa ze nd o seu trabalho no dia da

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sentença.) Depois Hanophy perguntou aMallayev se ele tinha algo a declararantes de ser sentenciado. O homem queficara em silêncio durante todo ojulgamento levantou então e faloulongamente. Falou em um inglêshesitante, mas razoavelmentecompreensível, de forma errante,confusa, totalmente inconvincente, masestranhamente digna sobre como haviasido atropelado. “Eu nunca mateininguém em minha vida”, disse ele, econtinuou:

Não posso culpar o júri pelo veredicto, poiseles ouvem o que têm de ouvir e o que eles

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supõem que ouvem para sustentar essejulgamento porque o senhor promotor faztudo para que isso aconteça. Para dominar amídia, o canal de notícias, todos osanúncios, e mais e mais com declaraçõesmentirosas nos jornais, incitar a mídia. Étipo, ei, nós pegamos o assassino, este é oassassino, e fazer acreditar no que ele estáfalando sem nenhuma prova.

E:

O que eles buscam é satisfazer o povo deNova York, ei, pegamos o assassino. Não sepreocupe. Você pode ir ao playground. Nadavai acontecer.

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Mallayev lembrou a declaração quefizera depois que foi extraditado:“Desde o primeiro dia do tribunal,quando menciono que vivo pelos DezMandamentos, o senhor promotor, einclusive o juiz, riem disso”. Econtinuou: “Mas a verdade é que mesinto tranquilo comigo mesmo e estoulimpo diante de mim mesmo e de Deus,e ninguém pode me fazer matar alguém”.

Scaring então se levantou paraargumentar em favor de uma sentençabranda para Borukhova. Ele disse, talcomo dissera aos jornalistas muitasvezes antes, que o caso contra ela sebaseava em “suposições e

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especulações”. Disse que ela, tal comoDaniel, era respeitada na comunidadepor ser uma boa médica e uma boapessoa. “É fácil para a acusaçãolevantar-se, acenar as mãos e dizer queeste é o pior caso que já viu, mas elenem sequer a conhece. Ela é uma boapessoa. Estou pedindo a sua excelênciaque não imponha uma sentença tãodraconiana a essa pessoa boa.”

O juiz falou: “Senhorita Borukhova,quer dizer alguma coisa antes de eusentenciá-la?”.

Borukhova fez a mais breve dasdeclarações: “Eu apenas me repetiria

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mais uma vez, como mencionei na épocaem que meu marido foi morto: não tivenada a ver com esse assassinato. Nãomatei ninguém. Não tenho nada a vercom isso. Isso é tudo, excelência”.

Hanophy deu a ambos os réus a penamáxima de prisão perpétua semliberdade condicional. Ele citou doisexemplos das “provas esmagadorasneste caso”. Um deles eram asimpressões digitais no silenciador e ooutro era o incidente de 1o de agosto.“A ré Borukhova estava tratando dele,ou seja, o réu, o réu, senhor Mallayev,por alguma doença no mesmo dia emque ele estava em Israel. Isso é

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realmente um trabalho de longadistância. Trabalho de longa distância.”Ele condenou os réus um de cada vez:

Senhor Mallayev, o senhor aceitou os 20mil para matar o doutor Malakov. O senhordiz que é um homem religioso. Há umhomem no Novo Testamento que diz: “Queaproveita ao homem ganhar a riqueza domundo e sofrer a perda de sua almaimortal?”. A ganância o levou a essa queda eo senhor vai pagar caro.

Que o homem do Novo Testamentonão figurasse na religião de Mallayev,isso evidentemente não preocupava ojuiz, que estava em seu elemento

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enquanto fazia sua homilia. Ele voltou-se então para Borukhova e disse:

Senhorita Borukhova, a senhorita partiu emuma jornada de vingança, porque um juizteve a ousadia de dar a custódia de sua filhapara seu ex-marido. Outra citação, Confúciodesta vez, diz: “Uma pessoa que toma ocaminho da vingança deve primeiro cavarduas sepulturas”. Seu marido jaz em seutúmulo natural e a senhorita está prestes aentrar em seu internamento acima do solode dois e meio por dois e meio, ondepassará o resto de sua vida natural.

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24.

A Secretaria de AdministraçãoPenitenciária da Cidade de Nova Yorkfaz as coisas em grande estilo. Quandoliguei para lá e disse que queria visitar ailha Rikers para ver as celas em queMallayev e Borukhova tinham ficado,Stephen Morello, comissário adjunto de

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Relações Públicas e Comunicação,enviou um carro para me buscar. Foipoucas semanas depois da condenação,e Borukhova e Mallayev já não estavammais na ilha — haviam sido levadospara suas respectivas prisõespermanentes —, mas Morelloprontamente assentiu ao meu pedido deinspecionar seus antigos alojamentos.No caminho, o motorista, Sean Jones,um jovem simpático, com o título deoficial prisional adjunto, conversou comdesenvoltura sobre a ilha que pertenceraa uma família chamada Ryker e foravendida para a cidade em 1884, por 180mil dólares. Ele me contou que entre

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82% e 85% dos presos aguardavamjulgamento, e que o resto recebera penasde menos de um ano. Disse queBorukhova e Mallayev foram mantidosem “regime fechado” — com isolamentode outros prisioneiros — porque o casodeles era de “alto perfil”. Mencionouque estavam tomando medidas deredução de custos na prisão; porexemplo, as doze fatias de pão que ospresos costumavam receber diariamentetinham sido reduzidas para oito. Na ilha,Morello, homem de meia-idade,agradável e cortês, nos esperava diantede uma das prisões masculinas. Ele meconduziu para dentro do prédio e,

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acompanhado por um guarda, levou-mea um corredor de dez ou mais celasimundas. A maioria estava desocupada etive permissão para entrar em umadelas, que o guarda identificou comosendo a de Mallayev. Nela havia umestrado de cama de metal, um colchãode plástico, duas caixas de borracha, umbalde de lavagem de borracha, um vasosanitário e uma pia. A tinta branca dasparedes de ladrilho estava descascando;metade do piso estava coberta commanchas de linóleo e a outra metade,com a sujeira preta que se encontraembaixo do linóleo. Havia um

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aquecedor sob uma janela suja. Em umadas celas ocupadas, vislumbrei umhomem deitado na cama, com umcobertor cinza puxado sobre o corpo e acabeça. Ele poderia ter aparecido emuma das alegorias de Savage, como aDesesperança. Outra cela oferecia umavisão mais estranha ainda: uma mulhercom longos cabelos ruivos. “É umamulher transgênero”, disse Morello. “Setêm genitália masculina, estão aqui.” Oalmoço chegou e foi entregue por umafenda na porta da cela. Era mortadela,purê de batatas, vegetais misturados,leite desnatado e quatro fatias de pão detrigo integral.

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Mostraram-me um banheiro soturno,com um assoalho de ladrilho rachado, edepois me levaram para a sala do dia.Era um grande espaço com piso deconcreto cinzento, vazio, exceto por umacabine envidraçada, dividida em seiscompartimentos, e uma pequenatelevisão fixada perto do teto e a umagrande distância da cabine. O lugarparecia uma instalação em uma galeriade vanguarda do Chelsea, mas, naverdade, era onde os presos em regimefechado podiam ver televisão, trancadosem um dos compartimentos, durante umahora de cada vez. Havia um prisioneirojovem em uma das divisões, sentado

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tranquilamente em uma cadeira deplástico e olhando para a tela àdistância, que mostrava propagandas.Parei e fiquei assistindo com ele, àespera do fim dos anúncios e do reiníciodo programa de tv propriamente dito.Mas isso não aconteceu. Inspecionei asfechaduras enferrujadas nas portas doscompartimentos; um deles continha umvaso sanitário cheio de urina. (Gostariade saber como os presos usavam obanheiro se estavam trancados em seuscompartimentos.) Olhei para trás, para oaparelho de televisão, que continuavamostrando anúncios, e o jovem ainda

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estava sentado em silêncio olhando paraeles.

A prisão de Borukhova, no edifícioRose M. Singer, era menos brutal e sujaque a dos homens. Rose M. Singer foiuma pioneira da reforma do sistemaprisional, e o lugar refletia seu espíritobenigno. As celas tinham a mesma nudezpunitiva — havia igualmente apenas umleito, um colchão, caixas de borracha,pia e vaso sanitário —, mas estavamlimpas, e cada uma delas era equipadacom um televisor pequeno. O chuveiroera decente. Uma atmosfera de algumaforma feminina se fazia presente noedifício. Perguntei-me se as prisões

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femininas em geral eram menosasquerosas que as masculinas. Lembrei-me do testemunho de uma detetivepolicial chamada Claudia Bartolomei,que estivera presente durante ointerrogatório policial de Borukhova nodia do assassinato, e que por duas vezesfez questão de dizer (uma vez em umaaudiência prévia ao julgamento e depoisno julgamento propriamente dito):“Levei-a ao meu banheiro que tinhaartigos de toalete” — ao contrário dobanheiro “muito mais sujo” utilizadopelos visitantes involuntários comuns da112a Delegacia. “Ela era uma médica”,acrescentou Bartolomei. Mulher madura

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e bonita de 33 anos, com longos cabelosloiros com reflexos e maquiagemcuidadosa, Bartolomei é a comandantedessa delegacia. Quando poupouBorukhova do banheiro sujo e trouxe-apara o lugar de belos produtos dehigiene, ela estaria sinalizando suasolidariedade para com uma irmã que,como ela, galgara degraus em umaprofissão dominada por homens?Evidentemente, ao chamar a atençãopara o status de médica de Borukhova,Bartolomei estava rompendo com apromotoria. Quando condenados porcrimes, os médicos perdem a licença

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para exercer sua profissão; a estratégiade Leventhal era agir como se isso játivesse acontecido: ele despojouBorukhova de seu estatuto profissionalantecipadamente. Em sua narrativa, elaera uma simples assassina que fica emcasa. Bartolomei falou de seu gestogentil em resposta à acusação de Scaringde que o interrogatório de Borukhovafora impróprio — de que ela não forainformada de seus direitos e que, pormuitas horas, um advogado que haviasido enviado para a delegacia por umade suas irmãs tinha sidodeliberadamente mantido fora da sala deinterrogatório. A posição da polícia era

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que Borukhova fora interrogada comotestemunha e não como suspeita e,portanto, nenhum aviso sobre seusdireitos (ou advogado) era necessário.O gesto de Bartolomei foi apresentadopara reforçar essa posição, parademonstrar seu respeito pelos direitosde Borukhova, mas o que ele realmentedemonstrava era sua empatia com omelindre de Borukhova. O gesto nãotinha nada a ver com o fato deBorukhova ser médica (o que um médicoiria querer com artigos de toucador?) etudo a ver com o fato de ela ser mulher.O melindre das mulheres é uma ideiaque tem raízes profundas em nosso

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inconsciente coletivo. Na ilha Rikers, ainfluência desse conceito — e de seucorolário de que os homens são “muitomais sujos” — pode ser estudada eponderada.

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25.

No sábado, 10 de maio, às seis datarde, toquei a campainha da casa deKhaika Malakov, na avenida 66. Ele meatendeu vestido com uma camisa branca,calça de moletom azul-marinho esandálias, e parecia que esquecera ocompromisso que tínhamos marcado

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alguns dias antes. Mas fez um gesto paraque eu me sentasse em uma cadeira devime que estava num canto do jardim edepois entrou de volta na casa. O jardimera um pequeno quadrado de lajes,cercado por canteiros de plantas, nocentro do qual havia uma longa mesa deplástico branco. Khaika reapareceu comum pano branco dobrado. Observei-oretirar um maço de hortelãs murchas damesa, regá-lo e incliná-lo para que aágua escorresse. Então desenrolouparcialmente o pano e o estendeu emuma das extremidades da mesa molhada.Fez sinal para que eu puxasse minhacadeira e pusesse o gravador sobre o

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pano. Sentou-se à minha frente, e,quando começamos a conversar, EzraMalakov chegou. Estava vestido demodo formal (bem diferente de quandotestemunhou no tribunal), com um ternocinza, camisa azul, gravata de sedabranca com um desenho de volutaspretas e um chapéu porkpie que tirou,para revelar um topete de cabelosgrisalhos e um quipá. Sentou-se à mesa,e eu pedi a Khaika para lhe dizer quehavia admirado sua gravação. Ezraassentiu com a cabeça e pegou o jornalbucarano que trouxera. Khaika traduziude forma intermitente nossa conversapara ele. Ele estava preocupado com um

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novo desdobramento: ouvira falar queAlan Dershowitz e seu irmão Nathantinham assumido a apelação da sentençacondenatória de Borukhova. “Elesconvidam advogados de alta classe.Pode fazer alguma coisa? Você acha?”Eu disse que era difícil revertercondenações. “É claro. EspecialmenteRobert Hanophy. Ele não é estúpido. Émuito profissional. Eles queremencontrar algum erro dele, mas ele nãopodia cometer erros.”

Ezra falou algo em bucárico paraKhaika, o qual disse que Ezra estava seoferecendo para escrever um relato da

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vida e do casamento de Daniel paramim. Ele o enviaria e eu poderia mandartraduzi-lo. Fiz uma contraproposta: porque ele não fazia seu relato para meugravador? Ezra concordou e é isso queele disse (na tradução de Alla):

O problema entre Marina e Daniel começouquando a menina nasceu. Ambos estavamtrabalhando e alguém tinha de criar a filha.Daniel queria contratar uma babá, masMarina disse: “Não, minha mãe vai cuidar dacriança”. E Dani disse: “Mas por quê, nóstemos o dinheiro, temos a possibilidade,então por que dar trabalho para a mamãe, porque fazê-la sofrer quando podemos

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contratar uma babá?”. Mas Marina disse:“Não, o bebê vai ficar somente com minhamãe. Confio somente em minha mãe”. E amãe tinha uns princípios estúpidos. Elacomeçou a brigar com Daniel: “Não façaisso. Não faça aquilo. Não dê isso. Ela nãodeve ter aquilo”.

O bebê ficou doente. Teve pneumonia.Daniel levou a filha a uma médica. A médicaera bucarana e, quando olhou para a criança,disse que deveriam dar água a ela. Você nãodeve lhe dar leite. Então Dani voltou paracasa e disse à sogra: “A menina está doente,não lhe dê leite, dê apenas água”. E aquelamulher, mãe de Marina, disse: “Seudesgraçado, você sabe como criar filhos? Eu

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criei cinco crianças. Eu sei como criá-las.Como você sabe o que tem de fazer?”.Então, Marina chegou em casa e viu quehavia um escândalo entre Daniel e Istat, enaquela noite ele foi preso.

Depois, Dani não aguentou mais e pediu odivórcio, mas ela não queria ter um divórcionormal, em bons termos. Ela não queria sedivorciar. Queria permanecer no controle,como as irmãs. As irmãs não respeitam seusmaridos. Os maridos são como cães paraelas. Os maridos têm medo delas. Ela queriamantê-lo sob seu controle e fazer o que bementendesse. Assim, quando Daniel pediu odivórcio, elas inventaram novas mentiras, euma delas era que ele tinha estuprado a filha.

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Ele foi torturado. Ele nunca nos disse o queestava acontecendo em sua família, eramuito fechado sobre isso. E perdeu muitopeso. Ele se tornou um esqueleto. Esqueceutudo no mundo. Foi completamenteempurrado contra a parede.

Havia uma ordem restritiva e ele nãodeveria ver a menina. Mas por fim ficouprovado que não era verdade, e que erachantagem e era tudo obra dela, e a custódiatemporária foi entregue a Daniel. E ela e suamãe e irmãs, e o irmão, não podiam aceitaro que aconteceu. Pensaram que Daniel enossa família haviam subornado o juiz e astestemunhas. Nunca admitiram a própriaculpa e, quando não conseguiram o que

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queriam, escolheram pegar essa estradaterrível. Decidiram matá-lo e acharam queisso resolveria o problema. A meninavoltaria para Marina e o dinheiro de Danieliria para ela. Isso era absolutamenteestúpido. Elas eram muito míopes e duranteo julgamento tudo foi descoberto.

Ezra acrescentou um arremate aorelato:

O irmão da mãe de Marina matou sua sogracom um machado. Foi há cerca de quarentaanos. Istat, a mãe de Marina, é uma pessoaterrível. Todo mundo em Samarcanda sabiacomo ela fez seu marido sofrer. Ela otorturava constantemente. Seu nome era

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Mirel. Ele era gerente de um supermercadoem Samarcanda, uma pessoa muitorespeitável. Todo mundo gostava dele. Elemorreu há trinta anos. [Na verdade, morreuem 1995.] Ela era muito ruim. Antes demorrer, ele disse às pessoas na rua: “Prefiromorrer aqui na rua do que com minhaesposa”.

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26.

Perto do final do monólogo de Ezra,um homem, duas mulheres e três meninasvieram para o jardim. Eram JosephMalakov, o mais velho dos filhossobreviventes de Khaika; sua esposaNalia; suas filhas Sharona e Julie; e acunhada de Nalia, Roza Younatanova,

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com sua filha Adina. Os adultossentaram-se à mesa e as criançasadejavam pelo jardim. Joseph éfarmacêutico. Seu nome aparece em umdos depoimentos judiciais deBorukhova, em um parágrafo em queacusa Daniel de envenená-la commedicamentos — obtidos com Joseph —que aumentaram perigosamente seu nívelde hormônios da tireoide. Leventhalapresentou essa acusação como talvez amais bizarra das mentiras de Borukhova.Joseph é um homem moreno e bonito, decompleição sólida, de quarenta e poucosanos. Achei-o o mais simpático dosMalakov. É o mais assimilado. Seu

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inglês quase perfeito é coloquial, e seusmodos são agradáveis e naturais. Elecomeçou a falar sobre um obscurosentimento de culpa que tinha emrelação à morte de Daniel e, em seguida,me pediu para não gravar nossaconversa porque era shabbat.

Nalia, uma morena esguia de 41 anos,falou sobre o assassinato sem inibição.“Eu a vi no hospital e a ataquei. Sabiacom absoluta certeza que era ela. Eudisse: ‘Garota estúpida, estúpida, o quevocê fez? Você nunca mais veráMichelle’.” Nalia, que administra umaloja de noivas no Queens Boulevard,usava uma saia longa, mas parecia uma

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mulher americana que optara por usaruma saia longa, em vez de uma bucaranaem seu traje religioso obrigatório.Enquanto ela falava, percebi — comouma pessoa se torna consciente dopipilar de pardais — vozes infantissuaves. As meninas estavam adejandoao redor de minha cadeira, e uma delas,Sharona, de sete anos, falava de outracriança: “Ela é tão alegre. Está semprebrincando”. Minha audição pela metadetornou-se plena quando percebi que elaestava falando de Michelle e queria queeu ouvisse o que dizia. Michelle moravaagora com Gavriel Malakov e ia muitas

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vezes à casa de Joseph. Perguntei aSharona: “Como assim, ela está semprebrincando?”. A criança explicou queMichelle continuava com jogos muitotempo depois que as outras criançastinham se cansado deles. Ela eraincansável. E “tão alegre”, repetiaSharona, uma criança rija e vivaz, comolhos escuros inquietos. Ela era umamensageira do mundo das crianças queestava confiando em mim — umaestranha do mundo distante dos adultos— para decodificar a mensagem da“alegria” de sua prima órfã.

Despedi-me e saí do jardim deKhaika. Enquanto caminhava em direção

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à rua 108, encontrei Gavriel, um homemjovem e magricela cujas roupas de coresclaras tinham um ar de fantasia,empurrando um carrinho com um meninodentro, e sua esposa, Zlata, uma mulhermagra e de aparência muito jovem comóculos de aros de ouro, segurando umbebê. Vinham precedidos de umacriança em um triciclo, pedalandovigorosamente e rindo de uma formaforçada e exagerada. Era Michelle.Gavriel me reconheceu da sala dotribunal e parou para trocar algumaspalavras. Caminhando para o metrô,amaldiçoei a mim mesma. Se tivesseficado no jardim de Khaika por mais um

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minuto, teria tido a oportunidade deobservar Michelle no coração da temidafamília de seu pai. Mas talvez a visãorápida de seu rosto distorcido por umriso sem alegria fosse o suficiente parameu objetivo jornalístico. Acho querecebi a mensagem.

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27.

Oito dias depois, num fim de tarde dedomingo, fui visitar Joseph e Nalia emsua grande, mas não exagerada, casa detijolos, na arborizada rua 68.Conversamos sentados à mesa daespaçosa e moderna cozinha, com vistapara um jardim no meio do qual havia

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uma grande piscina azul, enquanto seusquatro filhos — Sharona, Julie, de seisanos, Simona, de quinze, e Ariel, dedezessete — entravam e saíam dacozinha, desaparecendo depois no andarde cima. O casal ofereceu frutas e cháem copos pequenos, e cenas docasamento de Daniel e Marina. Josephdisse: “Quando eles se casaram,caminhavam pela rua 108 de mãosdadas. Meus amigos diziam: ‘O que hácom eles? Não são crianças pequenas.Por que andam de mãos dadas?’. Eurespondia: ‘Escute, eles estão felizes,quem se importa?’”.

“Nós não demonstramos afeto na

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rua”, disse Nalia. “Nós o mostramosdentro de casa. Não é costume mostrá-lona rua.” E continuou: “Ele era muitoromântico. Depois de casamentos,fazemos sheva brachot para as moças,fazemos festas em que as pessoas rezampor você e lhe desejam felicidade. Etodas as noites Daniel fazia um discursosobre como ele a amava e como ela eraa mulher de seus sonhos. E não eraapropriado. Nós não falamos sobreamor. Mas ele dizia o que lhe vinha àcabeça, sem pensar no que as pessoasiriam dizer. Se eu fizesse um discurso,sempre teria a consideração que tenhode dizer algo apropriado para a

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sociedade”.Joseph e Nalia com certeza não viam

nenhuma impropriedade em falar deforma imprudente a uma jornalista. Ohomicídio viola o contrato social ezomba da privacidade. Haviamavidamente cooperado com apromotoria e, do mesmo modo, mecontaram avidamente suas histórias —como as vinham contando para outrosjornalistas — na crença talvez não tãoabsurda de que os jornalistas fazemparte do sistema de justiça criminal:pequenos, mas necessários dentes daengrenagem de seu mecanismo de

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punição. Como os advogados de defesaperdedores estão acostumados a fazer,Scaring falara amargamente do papel daimprensa em sua derrota. Disse que osréus haviam sido julgados e condenadospela imprensa, e é verdade que aimprensa se apropriou da narrativa daacusação. O jornalismo é umempreendimento de tranquilização. Nãotorcemos nossas mãos e rasgamosnossas roupas diante dos crimes edesastres sem sentido que nosproporcionam nossa matéria. Nósexplicamos e culpamos. Somosconhecedores da certeza. “Ei, nóspegamos o assassino. Não se preocupe.

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Você pode ir ao playground. Nada vaiacontecer.”

Joseph disse então: “Minha sobrinha,filha de Stella, perguntou certa vez aomeu irmão sobre maridos e esposas. ‘Oque significa ser marido e mulher?’Daniel pegou uma maçã e disse: ‘Estávendo? Isso é marido e mulher — umacoisa. Sem começo nem fim’”. Enquantoele contava essa história (achei que já aescutara antes — Khalil Gibran?), opróprio Joseph pegou uma maçãpequena e bonita de uma compoteira queestava sobre a mesa e a girou em suamão erguida. Ele continuou: “Antes donascimento da criança, quando Daniel e

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Marina se casaram, ele se entregoutotalmente. Quando ela fazia residênciano Brooklyn, ele estava em seuconsultório no Queens atendendopacientes, e de repente ela telefona ediz: ‘Daniel, estou com fome, você podeme trazer alguma coisa?’. Eu estava láuma vez quando isso aconteceu. Oconsultório estava cheio de pacientes.Mas ele sai, pega uma refeição kosher,dirige todo o caminho até o Brooklyn,dá-lhe a comida e faz todo o caminho devolta. Os pacientes esperaram por duashoras. Eu disse: ‘Dani, isso não estácerto’. Ele retrucou: ‘Escute, não é da

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sua conta. A vida é minha, eu faço isso’.Ele nunca estabelecia um limite e dizia‘pare, você está me pedindo demais’. Oque ela quisesse, era feito. Se erarazoável ou não, àquela altura tudo eralindo. Depois, Michelle nasceu e osproblemas começaram”.

Joseph contou outra versão dahistória sobre a retirada do leite dobebê.

O bebê está chorando e Daniel diz que eleso estão alimentando de forma inadequada.Mas ele não é um pediatra, não assume aresponsabilidade. Ele diz, vamos ao médico.Então, eles vão ao médico, o médico

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examina o bebê e lhes dá orientações sobreo que têm de fazer: eliminar a comida queestão dando e dar água conforme um horáriodeterminado. Então ele está lá, a esposa estálá, a sogra está lá. Todo mundo ouve quaissão as recomendações do médico. Eleschegam em casa e elas voltam a fazer ascoisas da mesma maneira que faziam antes.Então Daniel vira e diz: “Gente. Nósacabamos de ir ao médico. Tudo bem, vocêsnão aceitaram minha palavra. Mas o médicodeu instruções específicas”. Então, elasdizem: “Sabe o que mais, você cale a boca”.Eu não sei as palavras exatas, mas elasdesconsideravam o que ele dizia. Então, elecomeçou a acordar. Ele começou a ver que

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as exigências não eram razoáveis.

O celular de Joseph tocou e eledeixou a mesa para atender.

Perguntei a Nalia sobre sua relaçãocom Borukhova. “Nunca convivemoscomo cunhadas”, respondeu. Elarelembrou uma visita desagradável aoapartamento de Marina e Daniel logodepois do nascimento de Michelle. “Fuicom as crianças para ver o bebê, e asogra não nos deixou vê-lo. Ela nãopermitia que meus filhos chegassemperto do bebê. Ela era do tipo ‘caiamfora’ com meus filhos. Eu era do tipo ‘sevocê não quer meus filhos perto do seu

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bebê, não vou mandá-los’. Então, nuncative nenhum contato depois dessa vez.”

Joseph voltou para a mesa e falousobre a extraordinária tranquilidade comque Daniel avançou na vida. “Eleemigrou depois de mim e morouconosco de início. Eu já sabia o quedeveria ser feito, mas, mesmo assim,muitas vezes as coisas não funcionam.Com ele, tudo era simplesmente fácil etranquilo. Ele foi, conseguiu toda apapelada, deu tudo certo. Ele foi para oYork College, depois para aUniversidade de Nova York eColumbia, para fazer ortodontia. Ele sedeu bem em todos os lugares.”

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Nalia disse: “Nunca senti que ele meatrapalhava. Eu estava grávida do meufilho. Disse a ele: ‘Não posso limpardepois que todo mundo comeu. Se vocêvai comer, limpe depois você mesmo’.Ele dizia: ‘Sim, chefe’. E limpavadepois. Ele lavava a roupa”.

Joseph lembrou de uma viagem aLondres com Daniel, Nalia e Stella.Eles chegaram ao Globe Theatre paraver Muito barulho por nada, mas estavaesgotado. Daniel desapareceu por algunsminutos e voltou com ingressos que tinhade alguma forma adquirido. O telefonede Joseph tocou novamente. Depois quedesligou, disse que tinha de sair — ia

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pegar um remédio em sua farmácia paraum parente doente.

Nalia encheu de novo meu copo edisse:

Fizemos uma festa de aniversário para meumarido quando ele completou 35 anos.Daniel e Marina vieram, e, quando a dançacomeçou, todo mundo ficou olhando paraeles. Ela tinha cabelos longos e estavadançando de forma provocativa. Punha umaperna sobre a dele, torcia a cabeça e seucabelo estava todo em cima dele, e ele adobrava e ela fazia todos aquelesmovimentos de mão. Não era uma dança quevocê faria na frente das pessoas. Você

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poderia fazê-la em um quarto ou em umaboate em Manhattan. Você simplesmentenão dança daquele jeito aqui. Não eraadequado. Se eu lhe mostrasse o vídeo — eutenho uma cópia —, você ficaria chocada.

Ela disse que procuraria o vídeo.Ariel, que reaparecera e estava

ouvindo a conversa da porta, lembrouNalia de outra das indecências deBorukhova: “Na festa de aniversário,meu filho está andando e pedindo àspessoas que façam discursos para meumarido. Quando ele pede a Marina, elasó fica olhando para ele. Ela nãorespeita meu filho. Ela não diz não, eu

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não posso fazer isso agora, farei maistarde. Ela simplesmente o ignora e dá ascostas”.

Ariel disse da porta: “No casamentodela, estava com um batom roxoescuro”.

“Sim, e estava de sutiã preto porbaixo do vestido branco”, disse Nalia.Ela fez uma pausa e acrescentou: “Alémdisso, estava menstruada. Não lembro sefoi Stella ou Joseph que me disse queeles não iam ficar juntos naquela noite.Pensei, como se pode ser tão estúpida?Você jamais deveria estar menstruadano dia do chupá. Você vai ao médico etoma comprimidos para não começar seu

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período. Você está pura. Você estálimpa. Eu pensei, como é estúpida essagarota. Quer dizer, ela é uma moçareligiosa. E quando ela usou o sutiãpreto...”

“Essa moça é estranha”, disse Ariel.“Por três dólares você pode comprar

um sutiã”, disse Nalia.Convidei Ariel a se juntar a nós na

mesa, ele veio e sentou-se no lugar deseu pai. Ariel falou com admiração dacasa que Daniel comprou depois quesaiu do apartamento que compartilhavacom Borukhova. “Ele tinha um grandequintal, grama e árvores por toda parte.E dentro — não era como a casa de um

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bilionário. Ele a fez muito simples,elegante, humilde, agradável. Um belosofá, um piano legal, uma guitarraencostada lá, belas cortinas. Ele sabiacomo se vestir. Tipo seu closet.Estávamos na casa dele depois doenterro. Entramos em seu closet. Quandoele estava perto de nós no bairro,sempre se vestia com simplicidade, comroupas tipo Marshall ou Sears. Mas,quando você entrava no seu closet, viaque ele tinha Prada, Armani, Hugo Boss,todas essas marcas. Imagino que elecostumava usar isso em encontrosamorosos e coisas assim.” Eu pensei,

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Dr. Jekyll em suas calças de brim cáquida Sears e Mr. Hyde em seu Armani? E,como é que esse menino de um larreligioso e uma comunidade fechada deimigrantes sabe de Prada e Hugo Boss?

“Daniel podia conseguir um encontrocom facilidade”, disse Nalia. “Quandoestávamos na Europa, ele saía cadanoite com uma mulher diferente.”

A mãe e o filho começaram a falarsobre a preocupação de Daniel comdieta e nutrição. Quando morava comBorukhova, começara a sentir dores deestômago para as quais não se descobriunenhuma causa, mas que o impediam decomer normalmente e resultaram em uma

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grande perda de peso. “Quando ele seseparou de Marina, as dores foramembora”, disse Nalia. Mas ele mantevesua dieta especial e permaneceuesquelético. “A única coisa que eu o viacomer era aveia ou arroz orgânico”,disse Ariel. Nalia descreveu umarefeição em sua casa na noite do sábadoanterior ao assassinato. “Daniel trouxeMichelle aqui para comer. Fiz uma sopacom macarrão e trigo-sarraceno. Danielnão deixou a menina comer o macarrão.Ele estava obcecado pelo peso dela. Elaera uma criança gordinha, e ele era dotipo ‘não lhe dê nada que engorde’. Eusou do tipo ‘ela é uma criança. Deixe-a

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comer. Ela vai gastá-las’. Ele disse:‘Não. Engorda’. Então, ele continuou atirar o macarrão. ‘Certo, deixe-a comero trigo-sarraceno. É saudável.’ Ele eramuito cuidadoso com nutrição e saúde.Arroz integral, nada de arroz branco,nada de farinha branca. Ele não deixavasua mãe cozinhar nada para ele. Jamaiscomia na minha casa. Ele cuidava doque comia. Estava muito magro. Corriano parque todos os dias. E naquela noitede sábado, quando sua filha estava aquie eu lhe dei sopa, ele não parou de tiraro macarrão.”

Joseph voltou de sua missão de

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misericórdia e retomou seu lugar à mesaenquanto Ariel escapulia. Nalia fez umjantar com as sobras do shabbat: umacaçarola de peixe, um prato deberinjela, beterrabas, salada, queijos,pães. Enquanto comíamos, ela falousobre sua ansiedade depois da decisãode Strauss. “Eu liguei para Daniel edisse: ‘Você tem de dar o bebê a ela.Você sabe que ela não é uma pessoanormal. Ela é muito obsessiva emrelação à criança. Quando estou longedos meus filhos por dois dias — e eusou uma pessoa normal — fico louca.Telefono para eles todos os dias. Elanão é uma pessoa normal. Você tem de

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dar o bebê a ela’. Ele disse: ‘Claro queeu vou lhe dar o bebê. Eu nunca quistirá-lo dela. Eu não sabia que eles iamme dar a criança. Vou lhe dar a criança.Eu só quero vê-la uma ou duas vezes porsemana. É isso. Eu não preciso decustódia’.”

Nalia voltou à dança transgressiva nafesta de aniversário. “Se eu lhe mostrara dança que eles fizeram, era como se osdois estivessem sozinhos na sala. Comose pusessem um perímetro em tornodeles, os dois sozinhos dançando essadança exótica. Stella disse: ‘Se eladança assim, ela o entende. Eles sãofeitos um para o outro’. Stella tentou

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fazer com que eles voltassem. No início,eu também pensei que eles combinavambem. Falavam sobre Dostoiévski,Nabokov e todos esses autores russos.Ela costumava citar um livro que ambosestavam lendo. Uma vez eu cheguei e osdois estavam discutindo um livro.” Elase virou para Joseph: “Quem elesestavam lendo quando fomos à casadeles?”.

“Púchkin?”, disse Joseph.“Púchkin não. Tolstói. Eles estavam

lendo Anna Kariênina.”“Anna Kariênina?”, perguntei.“Sim. Ela estava lendo isso.”

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“Você já leu esse livro?”“Não. Não gosto de nada com

dramas, guerras, casos, maridostraidores. Eu gosto de finais felizes.”Perguntei o que ela gostava de ler, e eladisse que os romances de Nora Roberts.

“Há drama em Nora Roberts, mas éleve”, disse Joseph. Ele admitiu, comum toque de ironia, que porrecomendação de Nalia havia lido umromance de Roberts.

“Sim, é leve”, disse Nalia.Ao me acompanhar até o metrô,

Joseph e Nalia fizeram um pequenodesvio para mostrar a casa de Daniel,uma construção de alvenaria alta,

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imponente, agora alugada. Pensei nelemorando sozinho ali, como Rochester.*Nalia lembrou que na sexta-feiraanterior ao assassinato Daniel telefonarapara pedir-lhe que fosse dar um banhoem Michelle.

Eu não podia vir porque tinha de cozinharpara minha família. Então, ele conseguiu queZlata viesse. Michelle esteve conosco poralguns dias depois do assassinato, e eutentei lhe dar um banho, mas ela não deixou.Ela não entrava na água. Choravahistericamente, como se fôssemos baternela. Ela era do tipo “não, não, não, não vouentrar no chuveiro, de jeito nenhum”. Zlata

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disse que era uma tortura dar banho nela.Minha teoria é que Marina lhe disse “nuncatire a roupa”. Você sabe que ela o acusou demolestar sexualmente a criança.

“E você acha que ele não poderia terfeito isso de jeito nenhum?”

“Ele costumava cuidar de meusfilhos. Eu confiava totalmente nele”,disse Nalia.

Chegamos ao metrô e eu perguntei aNalia se ela me mandaria o vídeo dadança pelo correio quando oencontrasse. Ela prometeu que fariaisso.

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* Rochester: personagem do romance Jane Eyre deCharlotte Brontë. (N. T.)

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28.

“Se eu pudesse lhe perguntar primeiro— como faço para aprender a gostar deler?” Gavriel Malakov me fez essapergunta olhando, mas sem pegar, umlivro sobre Tchékhov que eu estavaoferecendo a ele. Estávamos sentados nasala de espera do consultório na rua 64,

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onde eu tinha ido entrevistá-lo.“Você não é um leitor?”, perguntei.“Infelizmente não. Gostaria que você

me ensinasse a gostar de ler.”“E que tal ler em seu próprio

idioma?” Ele balançou a cabeça. “Vocêtambém não gosta de ler em seu próprioidioma?”

“Tchékhov! Ele significa muito paramim e, no entanto, nunca abri nenhum deseus livros.”

“A escola foi difícil para você?”“Foi um campo de tortura.”Ele falou sobre o casamento de

Marina e Daniel do mesmo modo comoos outros Malakov haviam falado —

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sobre a felicidade do casal antes donascimento da filha e a infelicidade queveio depois. Contou algumas dasmesmas histórias, mas também comvariações. Por exemplo, em sua versãoda história do almoço, Marina ia decarro do Brooklyn para levar a Danielseu almoço tantas vezes quanto ele ia aoBrooklyn para levar o dela. O quesignificava isso? Que ritual eróticoDaniel e Marina estavam realizandoenquanto aceleravam pela via expressaBrooklyn-Queens levando o almoçokosher de seu ente amado? Eu gostariade perguntar a Borukhova, mas nãoposso. Nathan Dershowitz, responsável

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pela apelação, não quer que ela fale aosjornalistas antes que haja uma decisão.Ela está na prisão feminina de segurançamáxima de Bedford Hills e “seadaptando bem”, diz Dershowitz.Michelle (que continua a morar comGavriel) a visita uma vez por mês.

Em 16 de setembro, Borukhova foilevada a uma audiência na Vara deFamília presidida por Linda Tally, que acaracterizou como uma “mãe agressiva”e concedeu o pedido de David Schnallpara que as visitas de Michelle aos seusparentes maternos fossem reduzidas detrês para duas por mês. Sofya e Istat,

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bem como Khaika e Gavriel, estavampresentes. Schnall, que deixara cresceruma barba rala, disse que visitaraMichelle duas vezes e descobrira que“ela se adaptou fabulosamente”. Porém,segundo ele, depois de visitar suas tiasmaternas e a avó, ela “faz cenas” e“expressa confusão sobre onde é suacasa e onde ela vai estar”. Por isso,argumentou ele, deveria haver menosvisitas. Florence Fass protestou comveemência, mas Schnall prevaleceu.

Em nosso encontro em abril, Fassdescrevera as visitas de Michelle às tiasmaternas e aos primos em detalhescomoventes: “A menina não quer ir

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embora. Ela os abraça e beija. ‘Levem-me para casa’, diz Michelle. Ela usadesculpas para voltar. ‘Esqueci ocasaco, esqueci meu livro, esqueci isso,esqueci aquilo’”. E acrescentou: “Minhamissão é reunir Michelle com a famíliade sua mãe — a família com que elacresceu”. Mas agora Fass dizia à juízaque seu contrato com Borukhova estavano fim — o dinheiro dela acabara — eela pedia um advogado indicado pelotribunal para sua cliente.

Para meu espanto, Schnall protestou.Seu rancor em relação a Borukhova nãoconhece limites. Ele disse que elapossuía uma propriedade e, portanto,

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não tinha direito a um advogado à custados contribuintes. Tally virou-se paraBorukhova, que usava seu turbante eparecia magra e cinzenta, e perguntou seela possuía propriedades. Borukhovadisse que não. Gavriel e Khaikadisseram algo a Schnall, quetriunfalmente anunciou que Borukhovaera dona de um apartamento em umconjunto habitacional. A juízaquestionou novamente Borukhova e elaconfirmou em lágrimas. A juízaperguntou a Schnall se ele queria umaaudiência sobre o assunto, mas Schnalldisse que não. A juíza pegou um telefone

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e, em poucos minutos, um homemcorpulento, de cabelos grisalhos, comuma expressão irritada no rosto, searrastou para dentro da sala, carregandouma maleta de advogado. Tally nomeou-o advogado de Borukhova e definiu umadata para a audiência seguinte, na qual oprocesso de retirar permanentemente deBorukhova a custódia de Michellealcançaria sua próxima etapa.

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29.

Quando o outono se transformou eminverno, Borukhova deixou decomparecer às audiências da Vara deFamília, mas participou do processo pormeio de teleconferências entre prisão etribunal. Ela aparecia na sala do tribunalem um monitor, uma pequena figura

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sentada a uma mesa, vestindo blusabranca, saia preta e uma toca vermelha.Linda Tally podia falar com ela epodíamos ouvir suas respostas pelomonitor. Tally é uma juíza jovem, decabelos castanhos com corte elegante,que fala com uma voz sem modulação etem um modo de se comportarimpaciente e irritado, como se seutempo estivesse sendo perpetuamentedesperdiçado. Nada parece surpreendê-la ou mesmo interessá-la. Em umaaudiência realizada em 12 de janeiro de2010, John W. Casey, o advogado deBorukhova nomeado pelo tribunal,introduziu o que poderia parecer um

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tema surpreendente: “Foi trazido àatenção da minha cliente o fato de quehavia marcas de beliscões no rosto dacriança. Ficamos muito contentes desaber que o pai adotivo concorda agoraem não fazer mais isso”. Tallyrespondeu em tom inexpressivo: “Issofoi abordado no relatório escrito.Afirmou-se que, basicamente, o tio, opai adotivo, estava beliscando asbochechas da criança, mas ele alega quefaz o mesmo com seus outros filhos,como uma forma de afeto. Foi-lhe ditopara parar com isso e ele concordou”.Para Gavriel, sentado em uma fileirados fundos, ela disse: “Obviamente,

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senhor, não é uma boa ideia, pois osenhor vê o que vai acontecer, então vaiparar com isso, eu suponho”.

Quando ouvi as palavras “forma deafeto” e “ele disse que iria parar comisso”, algo ressoou em minha memória(pode ter ressoado na do leitor também):lembrei-me do documento legal em queBorukhova, queixando-se do abusosexual de Michelle por Daniel Malakov,escreveu que “ele me disse que era suaforma de demonstrar afeto, e prometeununca mais fazer isso de novo”. Oexcesso de entusiasmo em expressarafeto é um ponto fraco da família

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Malakov?Depois, Casey falou de outra lesão de

Michelle: “Há uma contusão muitoaparente no pescoço da criança, egostaríamos de saber algo a esserespeito”. O advogado da acs, que agorasupervisiona a tutela estatal deMichelle, apressou-se a explicar que acontusão era consequência de uma quedana escola. Casey disse: “Essas marcasnão parecem ter sido provocadas poruma queda”. Na audiência seguinte, em9 de março, Casey voltou à contusão edisse que sua cliente “achava que issoestava sendo feito sob os cuidados dopai adotivo”, e que “estamos

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preocupadíssimos, acreditamos que estacriança está em perigo e em uma casanegligente”. Schnall replicou:“Excelência, a mãe continua a fazeracusações que são infundadas,escandalosas e prejudiciais”. Elechamou a atenção de Tally para umrelatório da escola. Segundo odocumento, Michelle machucara opescoço ao cair sobre a mesa doprofessor, quando estava balançando suacadeira para a frente e para trás. Tallyaceitou a explicação da escola e disse aCasey: “Se o senhor tem alguma provaem contrário, sinta-se à vontade paraapresentá-la à Justiça”. Schnall mais

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uma vez protestou contra Borukhova ter“um advogado designado às expensaspúblicas, não obstante o fato de manterconstituído Alan Dershowitz. Não creioque ele trabalhe de graça”. Tally reagiucom expressão cansada: “SenhorSchnall, se acha que o senhor Caseydeve ser removido da representação damãe, e devemos trazê-la e ter umrelatório de conselho e passar por todoo processo de ter suas finançasexaminadas e atrasar este procedimentoa fim de ver se ela se qualifica para umadvogado dativo ou se ela deveconstituir um advogado, o senhor pode

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entrar com uma moção pedindo isso”.No corredor, depois da audiência,

Khaika, Gavriel e Joseph trocaramabraços com Schnall como haviam feitocom Leventhal no julgamento criminal;Natella, Sofya e Istat estavam sentadasem um banco, fechadas em umcaracterístico retraimento rígido. Mas,para minha surpresa, quando eu ascumprimentei, elas não assentiram com acabeça ou desviaram friamente o olhar.Acenaram para que eu me aproximasse eme pediram para tornar público seutemor de que Michelle estivesse sendoagredida por Gavriel. Mostraram-metrês fotografias coloridas de Michelle,

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com uma lesão vermelha inflamada nopescoço. Sofya me disse que as fotoshaviam sido tiradas durante uma visita àgarota. “Michelle contou o queaconteceu?”, perguntei. Com lágrimasnos olhos, Natella respondeu: “Não.Não temos permissão para lhe fazerperguntas”. “O que você quer dizer comnão ter permissão para fazer perguntas?”Natella explicou que as visitas sãosupervisionadas pela acs e que elasestão proibidas de questionar a criança.Ela me entregou as fotografias. A mãebalançou a cabeça e disse algo embucárico para as filhas. “Ela não querque você fique com as fotos”, disse

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Sofya. Eu ia devolvê-las, mas as filhasignoraram a mãe e me disseram paraficar com as fotos. Natella disse que osMalakov falam com Michelle sobre oassassinato — dizem-lhe que a mãematou o pai. Contou que, durante suasvisitas a Michelle, ela se enfia sob suassaias longas e pergunta se pode ir paracasa com elas. Ela me deu cartas de umadvogado e de um médico que contestamo relatório da escola sobre uma queda,dizendo que o ferimento não pode tersido causado por uma queda contra umamesa com bordas arredondadas.

Em casa, olhei as fotografias

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novamente. O ferimento de Michelle erade um vermelho vivo e grave. Assuspeitas das irmãs seriam verdadeiras?Tinham sido causadas por alguém? Elaestava em perigo na casa de Gavriel?Liguei para o acs e disse à diretora decomunicações, Sharman Stein, que euvira imagens perturbadoras de lesão nopescoço de Michelle Malakov. Aagência as havia visto? Stein disse queela ouvira falar sobre beliscões nabochecha, mas não sabia sobre a lesãono pescoço. Ela disse que iria“verificar” e me telefonaria, observandoque “isso parece coisa de parentesmaternos irados”. Ela não telefonou.

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Sofya enviou um e-mail em quereiterava emotivamente seus medos, emandava em anexo as transcrições dasaudiências da Vara de Família em queas acusações foram apresentadas. Masentão ela parou de responder aos meuse-mails e mensagens telefônicas. Asirmãs haviam evidentemente searrependido do impulso de confiar emuma jornalista e tinham recuado para suafortaleza de reticência glacial.

Quando liguei para Joseph Malakov epedi para me encontrar com ele, seuirmão e seu pai, ele concordou com suadisponibilidade habitual. Em uma noitequente de abril, depois de uma semana,

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por causa da Páscoa, cheguei à casa darua 68. Somente Nalia e as criançasestavam em casa. Enquanto punha pratosde apetitosas batatas fritas na mesa dacozinha para Sharona e Julie, ela disseem tom pensativo (e um pouco artificial,pensei comigo): “Penso com frequênciaem Marina. Se não tivesse cometido oassassinato, ela teria estado conosco noSêder”.* Isso levou ao tema das visitasmensais de Michelle à sua mãe naprisão, que claramente deixavam acriança sempre doente. Depois da visitamais recente, a escola a mandara paracasa com febre e ela não estava bem o

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suficiente para sentar-se à mesa doSêder; permaneceu deitada em um sofá,em uma sala adjacente. As meninasjuntaram-se animadamente à conversa,saboreando a narrativa da criança quevolta de uma visita à sua mãe na prisão,vomita e fica febril. Elas gostaram dedizer “na prisão”.

Khaika e sua esposa Malka chegaram,depois chegou Joseph e, finalmente,Gavriel. Khaika sentou-se ao meu lado àmesa e Malka, à minha frente. Gavrielestava do meu outro lado, e Joseph ficouna outra extremidade da mesa, comNalia no meio; as meninas rondavamminha cadeira. Em minha primeira visita

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a essa casa, Joseph, Nalia e Arielhaviam dirigido seus comentários amim, um de cada vez, mas agora osmembros da família conversaram entresi, em russo e bucárico, discutindo,interrompendo, cientes da minhapresença, querendo falar comigo, masincapazes de se livrar de seuscostumeiros papéis no psicodramafamiliar. Olhei para Malka, uma mulherredonda de cabelos grisalhos e umaexpressão bem-humorada, e perguntei seela falava inglês. Ela disse que sim eacrescentou, apontando para Khaika:“Ele fala. Este é meu problema”.

Khaika estava dizendo,

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incoerentemente: “Precisamos de umartigo em jornal ou revista sobre afamília Borukhova, apenas Marina nacadeia. O restante da família indo,rindo, mentindo, e continua a vida. Paramim e para minha família é muito,muito” — nesse ponto ele voltou aorusso e Nalia traduziu: “Ele está dizendoque quer saber se você pode fazer umartigo em que Natella e Sofya sejamresponsabilizadas pelo assassinato deDaniel. Somente Marina está na prisão.Por que elas estão andando livres? Asoutras duas a estimularam a fazer isso.Elas têm de ser punidas pelo que

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fizeram”.Eu falei: “Vocês precisam de provas

disso”.“Nós temos!”, disse Khaika. Ele

apontou para a inferência na declaraçãofinal de Leventhal de que a irmã estavano parque no momento do assassinato.

Eu disse que não seria capaz deescrever o artigo.

Nalia mandou as meninas irem para acama no andar de cima, mas, quandoelas estavam saindo, Gavriel protestou:“Deixe-as ficar. Deixe-as ver aexcelência jornalística em ação. Emborasejam pequenas e devam ir dormir, issoé uma experiência que não devem

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perder”. O que eu tomei por umarebuscada ironia eslava de Gavriel,Nalia ouviu como um conselho sério epermitiu que as meninas ficassem.

Eu fui direto ao ponto. “Sobre essasacusações”, falei.

“Que acusação?”, perguntou Khaika.“A contusão no pescoço de

Michelle.” Eu tinha as fotografiasprovocadoras na bolsa, mas não as tirei.

Joseph disse: “Ela caiu na escola. Elafrequenta uma escola particular judaicayeshivá.** Os professores descreveramexatamente o que aconteceu”.

Eu disse: “As irmãs dizem que elanão caiu. Estão com medo de que ela

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não esteja segura na casa de Gavriel”.“Elas temiam que Daniel fosse um

pedófilo”, criticou Joseph. “Elas temiamque minha mãe batesse na criança. Issoficou provado uma centena de vezes queestava errado e errado e errado. É umadeclaração absolutamente ridícula,certo? Não há nenhuma base emqualquer lugar. Não somos molestadoresde crianças. Não temos de provar nadapara ninguém.”

“A criança estava nadando em nossapiscina...”, Nalia começou.

“Isso foi um acidente inocente”,Joseph interrompeu. “Michelle estava

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nadando e outra criança a agarrou. Eelas fizeram um grande alarde de que elaquase se afogou aqui.”

“Que nós tentamos afogá-la”, disseNalia.

“Mas, Joseph, você pulou e asalvou”, eu disse, lembrando do relatode Joseph sobre o quase afogamento emminha visita anterior.

“É devastadoramente doloroso ouvircomo pessoas que são assassinascondenadas ainda têm a coragem defazer acusações”, disse Joseph.

Julie, agora com sete anos, estavaencostada em minha cadeira, e quandoeu pus meu braço em torno dela, ela se

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acomodou confortavelmente junto amim. Julie era uma criança fofa eplácida, um tipo diferente da magra eansiosa Sharona, mas agora menostímida que um ano antes. As criançasagradáveis de Joseph e Nalia refletiam afirmeza amável deles; a casa tinha um arde tranquilidade, bem como de ordem eprosperidade. A ideia de que Josephfosse um molestador de crianças pareciarealmente ridícula. Mas, embora Josepha tomasse como uma acusação contratoda a família Malakov, a acusação deviolência era dirigida a seu irmão.Voltei-me para Gavriel e lhe pergunteisobre os beliscões na bochecha.

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Ele respondeu: “Mazoltuv examina acriança em cada visita para tentarencontrar qualquer coisa e tudo peloqual ela pode nos culpar. Então, quandoviu que não havia nada, ela disse, ‘vousó dizer que eles beliscaram asbochechas’. Porque, quando eu descobripessoalmente as acusações, perguntei aorepresentante da ohel, ‘Você viu algumacoisa na bochecha?’, e eles disseram,‘Não, mas a mãe alegou que havia algorosado’” (ohel é uma agência deserviços sociais à qual a acs designa asfamílias judias ortodoxas sob suajurisdição).

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Eu disse: “Na Vara de Família, o juizleu um relatório que dizia que vocêbeliscava as bochechas por afeto eprometeu que não faria mais isso”.

“Eu sempre faço assim”, disseGavriel, e fez o gesto de beijar seu dedoindicador e tocar levemente minhabochecha com ele. “É uma tradição. Nãotem consequências físicas.”

“Por que você disse que não fariamais isso?”

“Porque a ohel disse que ‘De agoraem diante não queremos que vocêmostre sua afeição pela criança dessamaneira’. Eu disse, ‘Tudo bem. Será damaneira que vocês quiserem’.”

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Joseph disse irado: “Em tudo o quevocê faz, o outro lado tenta achar algode ruim. Não é abuso de crianças, Deusme livre. Ele disse: ‘Sim, eu fiz isso porafeto’. Não é uma questão complicada”.

Perguntei a Gavriel sobre outra dasacusações de Casey na Vara de Família:que ele deixara de levar Michelle àterapia que a vara tinha ordenado.

“Sim, nós não a levamosconsistentemente à terapia. O terapeutaera bastante agressivo. Disse-lhe que amãe dela tinha matado seu pai.”

“O terapeuta disse isso a ela?”“Ele usava essa abordagem. Tivemos

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dificuldade em concordar.”Nalia disse: “Nós nunca conversamos

sobre isso. Ela descobriu com oterapeuta”.

Gavriel disse: “Ele ligava seus mausmodos e seu comportamento, digamos,de oposição ao fato de que existememoções escondidas. Há um monte decoisas em Michelle que faz com que elafique perturbada e apreensiva. A fim deeliminar essa preocupação, ele queriaconfrontá-la com a realidade para queela pudesse conseguir sair disso einiciar o caminho para a recuperação”.

“Quem era esse terapeuta?”,perguntei, como se isso importasse.

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“Fica aqui na Main Street. RichardMeisel. Ele é assistente social.”

Na audiência de 9 de março na Varade Família, Sofya, por intermédio de umadvogado contratado pessoalmente,apresentara um pedido de custódia deMichelle. Os Malakov expressaram suaindignação diante da ideia de Michelleficar com a “família da assassina”.

“Mas esta é a família que Michelleconheceu durante toda a sua vida. Elanão conhecia a família de vocês”, eudisse.

“Isso porque Marina não a deixavavir até nós.”

Joseph disse: “É muito simples. É

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natural. É a filha de nosso irmão. Achoque qualquer ser humano normalgostaria de ter o que lhe pertence. Porque haveria alguma dúvida? É a filha denosso irmão”.

“Isso em primeiro lugar”, disseKhaika. “E, em segundo lugar, ela temde crescer normal, não anormal. Ela temde crescer em uma família normal,razoável. A família Borukhova não énormal. É anormal. Destruíram tudo. Porque ela tem de ir para lá de novo?” Eacrescentou: “Natella tem cinco filhos enunca nenhum deles foi visitar a avópaterna. É normal? O que você acha?”.

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“E a própria Michelle? O que elaquer?”, perguntei.

A família me olhou perplexa. Depoiscomeçaram a falar em russo.

Eu me virei para as meninas. “O quevocês acham que Michelle quer?”

Sharona pensou por um momento.“Ela realmente ama meu pai”, disse ela.

Perguntei a Gavriel sobre a contusãono pescoço de Michelle.

“A contusão foi ruim. A queda foimuito ruim”, disse ele. “Ela arranhoubastante o pescoço. Aconteceu em umaaula. Eles estavam indo da aula dehebraico para a aula de inglês. Ela subiuna cadeira. Alguém estava passando, ela

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tropeçou e, do jeito que caiu, bateu como pescoço na cadeira.”

Se estivéssemos em um julgamento, opromotor iria atacar a inconsistênciaentre o relato de Gavriel e o relatório daVara de Família em que a criançabalançava para a frente e para trás emsua cadeira. A “credibilidade” deGavriel seria posta em dúvida peladisparidade. Mas não estávamos em umjulgamento e eu não achei que Gavrielestivesse mentindo. Na vida, nenhumahistória é contada duas vezes exatamenteda mesma forma. À medida que o barroúmido da realidade passa de mão em

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mão, assume diferentes formasengenhosas. Esperamos que issoaconteça. Somente em julgamentos o fatode fazer isso é equiparado a inventar.

Nalia disse: “Preciso lhe dizer umacoisa. Recentemente, eu estava nasinagoga, vi Sofya lá e disse: ‘O quevocê está fazendo na sinagoga? Por quevocê vem às orações aqui? Você nãodeveria estar mostrando sua cara poraqui. Vá para outra sinagoga’. E sabe oque ela me disse? Ela disse: ‘Você querser a próxima?’”.

Quando eu estava saindo, Nalia pediudesculpas por não me mandar o vídeo dadança escandalosa de Borukhova. Ela

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explicou que Brad Leventhal lhe pedirapara não fazê-lo, por causa do recursopendente.

* Sêder: jantar cerimonial na primeira noite da Páscoajudaica. (N. T.)** Yeshivá: instituição geralmente ortodoxa para oestudo da Torá e do Talmude. (N. T.)

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30.

No outono de 1992, um professor dedireito da Universidade de Nova Yorkchamado Martin Guggenheim foicontatado por um menino de onze anos,objeto de uma batalha de custódia, aoqual fora designado um tutor que eledesprezava. Em um artigo intitulado

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“Um tutor com outro nome: uma críticado relatório da Comissão Matrimonial”(2007), Guggenheim contou: “A criançame disse que, embora achasse que seuadvogado seria alguém que lutaria poraquilo que ela queria, passou aconsiderá-lo seu inimigo, pois o tutorsempre buscava coisas que ela nãoqueria. A criança pediu-me pararepresentá-la”. Guggenheim assumiu ocaso e conseguiu livrar o garoto do tutorque detestava. O caso foi noticiado noTimes — “Menino de onze anos embatalha de custódia quer trocar deadvogado” e “Menino em processo dedivórcio ganha direito de escolher seu

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advogado” — e levou outras criançasprejudicadas a bater na porta deGuggenheim. O professor escreve:

Todas elas me disseram que queriam umadvogado que lutasse por elas. Depois queeu explicava que o tutor não é obrigado abuscar o resultado que a criança quer, ascrianças deixavam claro que, se não podiamter um advogado que defenderia o que elasqueriam, preferiam não ter advogado algum.[...] As crianças, ao menos aquelas queconheci, não gostam sobretudo dahipocrisia. Elas podem aceitarconfortavelmente o fato de não lhesatribuírem um advogado. Mas se ressentem

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profundamente quando lhes designamalguém que se chama de advogado e depoisse comporta de forma inconsistente com osignificado central da advocacia.

Guggenheim é uma autoridade em umcampo no qual entrara na década de1970 — a nova especialidadebeneficente de direitos das crianças —,que ele gradualmente passou aconsiderar uma espécie de paródia de simesma. Em seu livro What’s wrong withchildren’s rights [O que há de erradocom os direitos das crianças] (2005),ele argumenta que o conceito de direitosdas crianças é, na verdade, um disfarce

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para desejos de adultos, “um mantrainvocado por adultos para ajudá-los emsuas lutas com outros adultos”. Econsidera o tutor uma consequênciaparticularmente nociva da doutrina dos“melhores interesses da criança”, pormeio da qual os interesses dos adultosem choque são defendidos nos tribunais.Em “Um guardião mesmo com outronome”, Guggenheim relata que, depoisdo caso do menino de onze anos, nuncamais conseguiu persuadir um juiz aremover um tutor cujo cliente-criança sesentia traído. Ele passou a perceber “ograu em que os juízes consideram ostutores assessores do tribunal, não

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advogados das crianças”. Um juiz lhefalou: “Eu pensava que o único clienteque o tutor tinha era eu”, e prosseguiuexplicando que “o tutor serve à vontadedo Tribunal, não à vontade da[criança]”. Uma juíza disse que “queriaque um tutor a ajudasse a decidir o caso.Ela estava muito contente com odesempenho do tutor. Os sentimentosdas crianças em relação ao assunto eramsimplesmente irrelevantes”.

Quando falei com Guggenheim sobrea decisão de Sidney Strauss, elesuspirou e disse: “Essa história é tãofamiliar para mim”. Sobre Schnall, eledeu de ombros e disse: “Não lhe foi

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confiada nenhuma tarefa, exceto fazer oque ele queria”. Os advogados decrianças, ele continuou, “não conhecemlimites, porque não há limites”. Aocontrário de um advogado de adulto, queé obrigado a pôr os desejos de seucliente acima dos dele, o advogado demenores não sofre nenhuma restriçãodesse tipo. Sob o disfarce da doutrinado “melhor interesse da criança”, suaspróprias inclinações predominam. EmWhat’s wrong with children ’s rights,Guggenheim relata:

Repetidamente vi advogados escolhendopara si qual resultado defender em nome de

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seus clientes infantis e obtendo a vantagemno caso por nenhuma outra razão senão ofato de que se tornaram a voz reconhecidaem defesa dos interesses das crianças.Mesmo quando o juiz sabe muito bem que aposição que o advogado das crianças estáassumindo não passa de um produto doponto de vista pessoal do advogado, osjuízes dão peso considerável a essa posição.

E continua:

Envolvi-me em inúmeros casos em quecrianças pequenas eram representadas porum advogado. A constante em todos essescasos é a necessidade crucial para oadvogado dos pais de ganhar o apoio do

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advogado da criança para maximizar suaschances de sucesso. Isso não significa que oponto de vista do advogado da criançasempre vença. Mas é de vital importância,porque muitas vezes pode ser devastadorpara as esperanças de sucesso de uma partese o advogado da criança se revela ser uminimigo.

Em 1o de março de 2010, Caseyapresentou uma moção na Vara deFamília, em nome de Borukhova,pedindo a desqualificação de Schnall esua remoção da guarda legal deMichelle, alegando que ele era umatestemunha no julgamento criminal, e

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que era tendencioso; mas, na audiênciade 9 de março, em uma decisão coerentecom a experiência de Guggenheim, Tallyrecusou-se rudemente a abrir mão de seuassessor de tribunal. Ela não tinhailusões a respeito de Schnall: noprocesso de 2007 na Vara de Família,ela o repreendeu muitas vezes. “SenhorSchnall, como isso pode ser engraçado?Eu não acho nada disso engraçado.Realmente não”, disse ela quando ele riuenquanto o advogado da acs relatava oincidente “a mãe de Dani me bateu”.Algumas páginas adiante, este diálogoaparece na transcrição do julgamento:

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Juíza Tally: Senhor Schnall, não sei comopode tirar uma conclusão. Já viu seu cliente?Sr. Schnall: Não. Mas, eu estou...Juíza Tally: Então o senhor pode tirarconclusões antes que tenha sequer visto seucliente ou tenha qualquer conhecimento emprimeira mão do que ocorreu?Sr. Schnall: Bem...Juíza Tally: Como isso é possível?

Mas, ao longo dos anos, Tallyevidentemente se acostumara comSchnall e é possível que até tenharelutantemente passado a gostar dele. Naaudiência de 9 de março, Tally leu emvoz alta sua decisão de negar a moção

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de Casey: “Embora um advogado dacriança deva abordar inicialmente seupapel de uma forma imparcial, não seespera que os tutores sejam autômatosneutros. É inteiramente adequado eesperado que ao longo do tempo umtutor forme uma opinião sobre qualação, se for o caso, defenderá melhor ointeresse de seu cliente”. E Tallycontinuou:

Parece óbvio em uma circunstância como ado caso em questão que a neutralidadeinicial do tutor foi substituída por umaopinião adversa à mãe ré com base em suavisão do que é o melhor interesse de

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Michelle. Seu papel como guardião legal,designado para representar uma criançajovem demais para fazer julgamentosponderados, é o de ser um defensor domelhor interesse da criança, não da mãe ré.

E acrescentou:

O senhor Schnall e Michelle desenvolveramum relacionamento ao longo do tempo, umavez que este caso remonta a vários anos,portanto, causaria uma dificuldadesubstancial para Michelle se, de repente, seututor fosse substituído por alguém novo emfolha que não está familiarizado com aextensa história deste caso.

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Quando, mais adiante na audiência,Casey voltou à questão da remoção deSchnall, Tally reagiu irritada:

O Tribunal está preocupado aqui com osmelhores interesses de Michelle, não comos melhores interesses de sua cliente. Osmelhores interesses de Michelle. Ela teveesse advogado por provavelmente quasequatro anos a esta altura, senão mais; porque a criança deveria ser penalizada tendo derecomeçar com um advogado novo a estaaltura? Sim, ele tem algum interesse nisso, esim, ele tem opiniões sobre isso, mas euacho que você seria um autômato neutro senão tivesse qualquer tipo de emoção ou

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sentimento depois de estar tanto tempoenvolvido nesse processo que começouapenas como uma questão devisitação/custódia.

Observe-se como Tally passa dosinteresses de Michelle para os deSchnall. Por que ele deveria serpenalizado por ter opiniões esentimentos? E observe-se também queTally não repete a palavra“relacionamento” para descrever arelação entre Schnall e Michelle, masrepete a expressão “autômato neutro”,como que para justificar sua própriavisão “adversa” da assassina

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condenada.Quando Scaring interrogou Schnall no

julgamento criminal, ele repetidamente oquestionou sobre sua insistência paraque a audiência de 3 de outubro peranteSidney Strauss fosse mantida, embora osadvogados de Malakov e Borukhovapedissem um adiamento. “Eles nãoqueriam ir à audiência na data que vocêprogramou, não é verdade?”, disseScaring.

Schnall concordou. “Ambos osadvogados não queriam ir naquele dia.Eles não queriam ir.”

“Mas você insistiu em ir naquele dia,correto?”, Scaring disse.

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“Eu insisti.”E assim se abriu a cortina para a

tragédia de Daniel Malakov, MichelleMalakov e Mazoltuv Borukhova.

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Entrevista

A arte da não ficçãono 4*

No decorrer desta entrevistaincomum, subirei três vezes de elevadoraté o imponente apartamento de Janet

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Malcolm, com vista para o GramercyPark, mas a substância da nossaconversa se dará por e-mail ao longo detrês meses e meio.

A razão disso é que Janet Malcolmestá mais para quem descreve do quepara quem é descrita. É quaseimpossível imaginar a magistralentrevistadora conversandoimprudentemente diante de um gravadore, de fato, ela prefere não imaginar.Malcolm concordou em dar a entrevista,mas somente por e-mail: desse modo,recusou polidamente o papel depersonagem e voltou ao papel maisconfortável de escritora. Ela escreverá

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suas respostas — e, para ser honesta,alterará levemente o fraseado dealgumas de minhas perguntas.

Assim, o verdadeiro cenário daentrevista não são as paredes forradasde livros de sua sala, onde nos sentamostomando chá de hortelã, mas as telas: ade 21 polegadas e meia do Mac deMalcolm, com seu teclado branco gasto;a do meu MacBook cor de prata dedezessete polegadas, ou meu iPad, àsvezes. A desvantagem do e-mail é queele parece gerar um tipo de formalidade,mas a vantagem é a familiaridade deestar em contato com alguém ao longodo tempo. Para nós, esse estilo

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particular de comunicação tinha aqualidade antiquada e reconfortante dacorrespondência pensada; é como aprópria Malcolm — cuidadosa,meticulosa, um pouco evasiva.

Malcolm nasceu em Praga, em 1934,e imigrou para os Estados Unidosquando estava com cinco anos. Suafamília morou durante um ano comparentes em Flatbush, Brooklyn,enquanto seu pai, psiquiatra eneurologista, estudava para o exame decertificação médica; depois mudou-separa Yorkville, em Manhattan. Malcolmfrequentou o Colégio de Música e Artes

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e depois foi para a Universidade deMichigan, onde começou a escreverpara o jornal da escola, The MichiganDaily, e para a revista de humor TheGargoyle, que mais tarde editaria.Depois da faculdade, mudou-se paraWashington com seu marido, DonaldMalcolm, e escreveu algumas resenhasde livros para The New Republic.

Ela e o marido mudaram-se paraNova York e, em 1963, tiveram umafilha, Anne. Naquele mesmo ano,Malcolm publicou pela primeira vez umartigo na New Yorker , na qual Donald,que morreu em 1975, era o crítico depeças off-Broadway. Ela começou a

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escrever dentro daquilo que era entãoconsiderado esfera feminina: artigosanuais sobre as compras de Natal esobre livros infantis, e uma colunamensal sobre design, chamada “Aoredor da casa”.

Mais tarde, Malcolm se casou comseu editor na New Yorker , GardnerBotsford. Ela começou a produzir ostextos densos e idiossincráticos pelosquais é agora conhecida quando paroude fumar, em 1978: não conseguiaescrever sem cigarros, então começouuma longa reportagem para a NewYorker sobre terapia familiar, intitulada“O espelho de mão única”. Foi para

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Filadélfia com um gravador — do tipoantigo, com fitas, que usa até hoje — ecadernos com pauta de capa duramarmorizada. Quando terminou o longoperíodo de reportagem, descobriu quepoderia finalmente escrever sem fumar,e também descobriu sua forma deescrever.

Seus dez livros provocativos, entree l e s O jornalista e o assassino,Psychoanalysis: the impossibleprofession, A mulher calada: SylviaPlath e Ted Hughes, Nos arquivos deFreud, e Two lives: Gertrude and Alice,são ao mesmo tempo amados, exigentes,

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acadêmicos, cintilantes, cuidadosos,ousados, intelectualizados econtroversos. Muitas pessoas têmapontado que seu texto, muitas vezeschamado de jornalismo, é, na verdade,uma forma de arte totalmente diferente eoriginal, uma mistura singular dereportagem, biografia, crítica literária,psicanálise e romance do século xix,tanto inglês como russo. Em um dosepisódios mais pitorescos de sua longacarreira, ela foi ré de um processo pordifamação, aberto em 1984 por um deseus entrevistados, Jeffrey Masson; ostribunais se pronunciaram finalmente aseu favor, em 1994, mas as acusações

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toldaram sua vida por muitos anos, etanto durante como depois do julgamentoa comunidade jornalística não lhe deutanto apoio quanto se poderia esperar.

Em parte, isso pode ter acontecidoporque Malcolm já se havia distanciadodeles. “Qualquer jornalista que não sejademasiado obtuso ou cheio de si paraperceber o que está acontecendo sabeque o que ele faz é moralmenteindefensável”, ela escreveu nas agorafamosas frases de abertura de Ojornalista e o assassino; e em grandeparte de sua obra, Malcolm investiga oque ela chama de “problema moral” dojornalismo. Um dos elementos mais

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desafiadores ou controvertidos de suaobra é a análise persistente ehipnotizante da relação entre o escritor esua personagem. (“A escrita não podeser feita em um estado de ausência dedesejo”, ela diz em A mulher calada; edenuncia, cada vez mais, ospreconceitos e defeitos do escritor,inclusive os próprios.) Quando foipublicado em 1990, O jornalista e oassassino causou um alvoroço no mundoliterário; em outras palavras, o livroprovocou a hostilidade exatamentedaquelas pessoas que pretendiahostilizar. Mas agora faz parte da

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bibliografia de quase todos os cursos degraduação em jornalismo, e oscomentários cáusticos de Malcolm sobrea relação entre o jornalista e seupersonagem foram assimilados tãocompletamente, num contexto culturalmais amplo, que se tornaram um truísmo.A obra de Malcolm, portanto, ocupaaquele estranho território resplandecenteentre a controvérsia e o establishment:ela é, ao mesmo tempo, uma grandedama do jornalismo, e, de algum modo,sua enfant terrible.

Malcolm é admirada pela ferocidadede sua sátira, pela elegância de suaescrita, pelas inovações de sua forma.

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Ela escreve, em “Uma garota doZeitgeist”, um ensaio sobre o mundo daarte de Nova York:

Talvez até mais forte do que a aura da sala,de originalidade imponente, é o seu sentidode ausências, sua evocação de todas ascoisas que foram excluídas, que foraminsuficientes, que não conseguiram captar ointeresse de Rosalind Krauss — que são amaioria das coisas do mundo, as coisas de“bom gosto”, da moda e do consumismo, ascoisas que vemos nas lojas e nas casas unsdos outros. Ninguém pode sair desteapartamento sem se sentir um poucorepreendido: a nossa própria casa, de

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repente, parece abarrotada, rudimentar,banal.

Nenhum escritor vivo narrou o dramade transformar o mundo confuso e semsentido em palavras de forma tãobrilhante, precisa e analítica como JanetMalcolm. Esteja ela escrevendo sobreuma biografia, ou um julgamento, ou apsicanálise, ou Gertrude Stein, suahistória é a construção da história, e suainfluência é tão grande que a maior partedo mundo literário começou a pensarnos termos carregados e analíticos deum trecho de Janet Malcolm. Eladesmonta a linha oficial, a história

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aceita, a transcrição do tribunal comoum mecânico desmonta um motor decarro e nos mostra como ele funciona;ela narra como as histórias quecontamos a nós mesmos são feitas devaidades, ciúmes e fraquezas dospersonagens. Essa é sua obsessão, eninguém pode fazê-lo no mesmo nível.

Pessoalmente, porém, ela não exibenada da resplandecência de sua prosa.Ao longo da entrevista, Malcolm parececarecer inteiramente do exibicionismonatural do escritor, do desejo do escritorde falar interminavelmente sobre simesmo. Se for possível, ela desvia comelegância a conversa de seu jornalismo

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para o jornalismo em geral; comfrequência, ela cita, escapa, desvia deminha pergunta, preferindo responder aalgo que se sinta confortávelrespondendo. Não surpreende que elaseja o tipo de pessoa que pensa atravésde suas revelações, às quais ela dáforma e lustra, de tal modo que aquiloque é revelado de si mesma é tãogracioso e polido quanto um de seustextos.

Malcolm é pequena, com óculos eintensos olhos castanhos, algo parecidacom a Pequena Espiã, se essapersonagem tivesse chegado à venerávelidade de 76 anos e o mundo a tivesse

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coberto com o sucesso que merecia. Suaatmosfera é controlada, contida,vigilante. Por mais que tente, você nãoserá capaz de medir o efeito de suaspalavras sobre ela, e você jamais serácapaz de saber, mesmo queremotamente, como ela está reagindo aalguma coisa que você diz. Ao seuredor, é difícil não se sentir grande,espalhafatoso, desarrumado, teatral,imprudente. Embora eu estejaclaramente entrevistando-a, ainda estounervosa quanto à impressão que estoucausando nela, ainda absorta econsumida pela ideia das três sentenças

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penetrantes que ela poderia fazer sobremim. Se assim o desejasse.

Mais tarde, ela me escreverá:

Antes de tentar responder à sua pergunta,quero falar sobre aquele momento em nossoencontro no meu apartamento, na semanapassada, quando saí da sala para procurar umlivro e sugeri que enquanto eu estivesse foravocê talvez quisesse tomar notas sobre asala de estar, para a abertura descritiva destaentrevista. Anteriormente, você havia feito adistinção entre escritores para quem omundo físico é importante e escritores paraquem ele quase não existe, que vivem nomundo das ideias. Você pertence claramentea essa última categoria. Você pegou

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obedientemente um caderno de anotações eme lançou um olhar um pouco aflito, comose eu tivesse lhe pedido para fazer umacoisa levemente constrangedora.

Abri o caderno e peguei uma caneta,mas já sei que uma grande parte do queestá acontecendo na sala entre ajornalista, digamos, e o assassino, nãovai entrar no livro.

Notei muitas vezes como funcionamas descrições físicas em sua obra,como elas nos fazem sentir queconhecemos e entendemos as pessoasantes que elas comecem a falar, e como

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você impõe sua interpretação muitosingular com tanta autoridade que elaparece orgânica, como se alguém queentrasse numa sala não pudesse evitarde vê-la exatamente como você a vê.Então, como você descreveria o seuapartamento se você fosse a jornalistaque entra em sua sala de estar?

Minha sala tem um piso de madeirade carvalho, tapetes persas, estantes delivros do chão ao teto, um grande fícus euma grande samambaia, uma lareira comum grupo de fotografias e desenhossobre ela, uma mesa de centro com

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tampo de vidro sobre a qual há umatigela de romãs secas, e sofás e cadeirascobertos com pano de linho encardido.Se eu fosse uma jornalista entrando nasala, começaria imediatamente a comporum retrato satírico do apartamento doescritor em Nova York, com seusobjetos padronizados de bom gosto(gato incluído) e ar geral de inexorávelcultura.

Interessante, tendo em vista minhacegueira para os detalhes visuais. Euteria mencionado o gato e, talvez, ospratos decorativos franceses, a vista do

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parque, mas não teria me encaminhadopara a sátira. Imagino que, se fossefazer uma leitura atenta da sala, teriaescrito “ordenada e precisa,cuidadosamente despretensiosa, dealguma forma perfeita e confortável”.Tive a impressão de uma sala onde nãoocorrem cenas incivilizadas(revelando, creio eu, mais sobre mimdo que sobre a sala).

Você subestima seu poder dedescrição. Admiro o “cuidadosamentedespretensioso”. Esse “cuidadosamente”tem uma mordacidade simpática. Não

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tenho certeza de que é inteiramentemerecido. O gato merece parte domérito pela aparência chique-surrado —os pedaços de estofamento que saem dossofás e poltronas são inteiramente obrasua. Você notou o lugar em que eu pusum remendo num dos pontos maisviolentamente arranhados? Mas, falandosério, suas palavras generosas eapreciativas apenas confirmam minhapercepção da dificuldade da escritaautobiográfica. Se eu tivesse dito essascoisas sobre a minha sala de estar (“dealguma forma perfeita e confortável”),teria passado a impressão de vaidade ecomplacência. O autobiógrafo trabalha

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num terreno traiçoeiro. O jornalista temum trabalho muito mais seguro.

Parece-me que, para uma jornalista,você usa a si mesma, ou a persona de“Janet Malcolm” pelo menos, mais doque a maioria dos jornalistas. Você usae analisa sua própria reação a muitosde seus entrevistados, bem como orelacionamento com eles, e muitasvezes insere-se no drama. Como isso é“mais seguro” do que um retrato maisdireto ou autobiográfico de si mesma?

Eis um tema sobre o qual pensei

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muito e, na verdade, efetivamenteescrevi certa vez sobre ele, no posfáciode O jornalista e o assassino. Eis o queeu disse:

[...] no jornalismo, a personagem “eu” équase pura invenção. Ao contrário do “eu”da autobiografia, que tem o propósito de servisto como uma representação do escritor,o “eu” do jornalismo está ligado ao escritorde maneira apenas vaga — a mesma que,digamos, liga o Super-Homem a Clark Kent.O “eu” jornalístico é um narrador de toda aconfiança, um funcionário ao qual foramconfiadas as tarefas cruciais da narração, doroteiro e do tom, uma criação ad hoc, comoo coro de uma tragédia grega. Ele é uma

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figura emblemática, uma encarnação daideia do observador imparcial da vida.

Ocorre-me agora que a presençadessa figura idealizada na narrativa sóaumenta a desigualdade entre escritor epersonagem, que é o problema moral dojornalismo tal como eu o vejo. Emcomparação com essa pessoa sábia eboa, as outras personagens da história— até mesmo as “boas” —empalidecem. A persona radiante deJoseph Mitchell, o grande mestre do“eu” jornalístico, brilha em suas obras,como talvez nenhum outro jornalistaconsiga. Nos velhos tempos da New

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Yorker, todos os escritores de nãoficção tentavam escrever como ele, e, éclaro, nenhum de nós chegou nem pertode consegui-lo. Todo esse assunto podeser muito mais complicado do que eu fizparecer no posfácio. Quando mais nãoseja, porque o Super-Homem estáconectado a Clark Kent de uma maneirabastante fundamental, ainda que curiosa.

Acho essa citação adorável econvincente, mas me pergunto se esse“eu” como narrador de toda confiançaé verdadeiro no que diz respeito ao seujornalismo, ou ao jornalismo em geral.

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Parece-me que você deliberadamentese apresenta como algo diferente do“observador imparcial”. Comfrequência, você atribui a si mesma (ouà personagem Janet Malcolm em seutrabalho) defeitos e vaidades, equestiona seus próprios motivos ereações de forma tão implacávelquanto você interroga outras pessoas.Não faço evidentemente nenhumasuposição sobre quão próxima de vocêé Janet Malcolm em seu trabalho —que invejava Anne Stevenson1 nafaculdade, que está decepcionada comIngrid Sischy.2 Mas parece-me que o“eu” em sua obra é deliberadamente

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muito mais Clark Kent do que Super-Homem.

Você está certa ao dizer que“observador imparcial” não caracterizacorretamente a personagem que assumoquando escrevo não ficção — emespecial, nos textos dos últimos anos.Quando comecei a escrever longosartigos sobre fatos, como eramchamados na New Yorker , tomei pormodelo para meu “eu” o “eu” trivial,civilizado e figura humana da NewYorker, mas à medida que prossegui,comecei a mexer com ela e fazer

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mudanças em sua personalidade. Sim,dei-lhe defeitos e vaidades e, talvezmais significativamente, opiniões fortes.Fiz com que ela tomasse partido. Fuiinfluenciada por essa coisa que estavano ar chamada desconstrução. A ideiaque tirei dela foi exatamente a de quenão existe um observador imparcial, quetoda narrativa é modulada pelo viés donarrador. O orientalismo, de EdwardSaid, causou um grande impacto emmim. E sim, provavelmente isso aumentaa autoridade da personagem.

É possível que sua construção de um

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“eu”, bem como seu método em geral,também seja influenciada pelapsicanálise? Você escolheu apsicanálise para tema de vários de seuslivros. Como ela influenciou sua voz esua abordagem geral?

Embora tenha influenciado minhapessoa, a psicanálise teve curiosamentepouca influência em minha obra. Issotalvez aconteça porque os escritoresaprendem com outros escritores, nãocom teorias. Mas há paralelos entrejornalismo e psicanálise clínica. Ojornalista e o psicanalista são

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connoisseurs dos pequenos movimentosdesprezados da vida. Ambos garimpama superfície — sim, a superfície — embusca do ouro do insight. A metáfora daprofundidade — como na psicologiaprofunda — está errada, como opsicanalista Roy Schafer apontou. Oinconsciente está ali na superfície, comoe m A carta roubada, de Poe. Ojornalismo, com sua obrigação denoticiar as pequenas coisas, sempre foiapropriado para mim. É provável que eutambém tivesse gostado de ser analista.Mas eu jamais teria entrado nafaculdade de medicina, porque não eraboa em matemática, por isso não era

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uma opção. Tampouco fui para afaculdade de jornalismo. Quandocomecei a trabalhar como jornalista, nãose considerava necessário um diplomade jornalismo. Na verdade, eraconsiderado um pouco cafona.

Interessante. Porém, pergunto-me sea psicanálise poderia estar de algummodo envolvida em seu desnudamentodas agressões ocultas envolvidas noprocesso de escrita. Um dos elementosmais marcantes de seu trabalho é apreocupação com a relação entre oescritor e seu personagem. Em um

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artigo recente da New Yorker , você dizdo jornalismo que “a malícia continuasendo seu impulso animador”. Essetipo de busca do motivo parece-meestar de algum modo ligado aoshábitos mentais que associamos àpsicanálise.

Acho que você está me perguntando,da maneira mais delicada possível, arespeito de minha própria agressão emalícia. O que posso fazer, senão medeclarar culpada? Não sei se osjornalistas são mais agressivos emaliciosos do que as pessoas de outras

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profissões. Nós certamente não temosuma “profissão de ajuda”. Se ajudamosa alguém, é a nós mesmos, algo que osnossos personagens não percebem queestamos fazendo. Não sou de formaalguma a primeira escritora a ter notadoa falta de escrúpulo dos jornalistas.Tocqueville escreveu sobre a vileza dosjornalistas americanos em A democraciana América. Na novela satírica deHenry James The Reverberator, apareceum maravilhoso jornalista velhacochamado George M. Flack. Eu souapenas um dos muitos contribuintes paraessa crítica. Tampouco sou a única. TomWolfe e Joan Didion, por exemplo,

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escreveram sobre o tema. É óbvio queter consciência da própria velhacarianão é desculpa para ela.

Gostaria de saber se você estásutilmente se separando da massa dejornalistas que não examinam ourefletem sobre a questão, como Didionfaz com a frase que sugere queconversar com jornalistas vai deencontro aos interesses da pessoa.Quando você admite sua velhacaria,isso certamente cria a impressão deque você está sendo honesta de umaforma que os leitores não estão

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acostumados a encontrar emjornalistas e críticos.

Quando escrevi O jornalista e oassassino, acho que estava (de formanada sutil) me separando da massa dosjornalistas, e muitos deles ficaram comraiva de mim por romper fileiras. Haviaalgo de profundamente irritante naquelamulher que se colocava como sendomais honesta e clarividente que o resto.Minha análise da traição jornalística foivista como uma traição ao própriojornalismo, bem como um exemplo deinsolência aristocrática. Hoje, minha

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crítica parece óbvia, até mesmo banal.Ninguém a discute, e, sim, ela sedegenerou — como acontece com ascríticas — em uma espécie de desculpaesfarrapada.

Grande parte de sua obra dizrespeito a casos judiciais ejulgamentos. Você pode explicar o quehá num processo judicial que lheinteressa, e de que forma em particulareles se prestam para o seu tipo deobra?

Julgamentos oferecem oportunidades

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excepcionais para o exercício dacrueldade jornalística. Os antagonistasnos julgamentos prestam-se a um tipo deescrutínio frio que poucas pessoaspodem suportar. As transcrições dejulgamento são documentos cruéis. Aestenógrafa do tribunal registradevidamente tudo o que ouve, e o queaparece no papel assemelha-se muitasvezes a algo saído do teatro do absurdo.As cenas de tribunal de O jornalista e oassassino e de The crime of SheilaMcGough são inteiramente baseadas emtranscrições. Escrevi sobre osjulgamentos depois que eles tinhamacabado. Foi somente em meu último

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l i vro, Anatomia de um julgamento:Ifigênia em Forest Hills, que escrevisobre um julgamento ao qual euefetivamente compareci. Mas tambémme baseei fortemente na transcrição.Uma das partes mais interessantes de umjulgamento são as conferências sidebar[em particular] sotto voce, em que osadvogados e o juiz tiram as máscarasque puseram para o júri e osespectadores. Essas conferências sãoregistradas pela estenógrafa do tribunale aparecem na transcrição, para a qualcontribuem muitas vezes com uma notade pura comédia.

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Você já leu livros de suspense?Dramas de tribunal? Histórias demistérios?

Sua pergunta me lembra o ensaio deEdmund Wilson com o títulomaravilhoso de “Quem se importa comquem matou Roger Ackroyd?”, queacabo de reler. Está na coletâneaClassics and Commercials. Wilsondesprezava a ficção policial. Ele jáhavia escrito uma crítica mordaz dogênero chamada “Por que as pessoasleem romances policiais?” que “metrouxe cartas de protesto em uma

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quantidade e de uma sinceridadeapaixonada que nunca tinha sidoprovocada até mesmo por minhascríticas ocasionais à União Soviética”(Wilson estava escrevendo em 1945).Os autores das cartas de protesto diziamque ele não lera os romances policiaiscertos, então ele foi ler Dorothy Sayers,Margery Allingham, Raymond Chandlere outros — que o entediaram e lhecausaram repulsa mais ainda do que RexStout e Agatha Christie. “A leitura deromances policiais é simplesmente umaespécie de vício que, por sua tolice enocividade menor, se classifica emalgum lugar entre o tabagismo e as

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palavras cruzadas”, escreveu ele. LiWilson pela primeira vez nos anos 1950e levei seus pronunciamentos muito asério, como muitos outros candidatos aescritor da minha geração. Ele era (econtinua sendo) um escritor de tremendaautoridade. Depois de ler “Quem seimporta com quem matou RogerAckroyd?”, demorou anos para meocorrer determinar a resposta por mimmesma. Acabei gostando de algunsescritores que ele odiava, embora suareprovação de Dorothy Sayers sesustente.

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Estou curiosa a respeito dosescritores de que você passou a gostare que ele odiava. Muitos críticoscomentaram sobre o ritmo de históriade suspense ou de romance policial doseu jornalismo. Você consegue infundiruma espécie de energia que obriga avirar a página em assuntos quepoderiam ser áridos ou acadêmicos,como os arquivos Freud ou a escritabiográfica. Há algo que você tenhaconscientemente tomado de históriasde mistério ou suspense, em termos deritmo, ou há alguma outra maneira deexplicar essa característica de suaobra? Existe algum outro tipo de ficção

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que influencia seu jornalismo? Queromances você gosta de ler?

Estou quebrando a cabeça pararesponder à sua pergunta. Não consigopensar em nada que eu tenhaconscientemente tomado de romances demistério e suspense, mas talvez tenhasido influenciada inconscientemente. Osescritores que Wilson odiava que eu vima gostar foram Margery Allingham,Ngaio Marsh e Agatha Christie. Queromances gosto de ler? Adoro osgrandes romances e contos ingleses,americanos e russos do século xix. Jane

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Austen, George Eliot, Trollope,Dickens, James, Hawthorne, Melville,Tolstói e Tchékhov estão entre os meusfavoritos. Entre os romancistas econtistas do século xx, há Proust,Dreiser, Fitzgerald, Nabokov, Updike,Roth e Alice Munro. Não consigoimaginar um escritor de não ficção quenão tenha sido influenciado pela ficçãoque tenha lido. Mas o “ritmo desuspense” que você encontra em minhaobra talvez venha mais do meu próprioritmo do que de romances de suspense.Eu caminho rápido e sou impaciente.Fico entediada facilmente — não menoscom minhas próprias ideias do que com

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as dos outros. Escrever para mim é umprocesso de constante jogar fora coisasque não parecem suficientementeinteressantes. Cresci em uma família degrandes interruptores.

Seu jornalismo tem as ricasdescrições e caracterizações queassociamos à ficção, especialmente aficção do século XIX, bem como asqualidades narrativas de um romance.No seu maravilhoso artigo sobreVanessa Bell,3 na New Yorker, você dizque esqueceu convenientemente quenão está escrevendo um romance. Você

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já escreveu ficção?

Tentei escrever ficção no colégio e nafaculdade, do jeito que a garotadalivresca costumava fazer e talvez aindafaça. Na faculdade — na Universidadede Michigan — fiz um curso de escritacriativa com o escritor Allan Seager,que me deu uma nota C no final. Foihumilhante, mas provavelmente útil.Nunca mais tentei escrever ficção. Umprofessor mais gentil talvez tivessepermitido que eu me iludisse sobreminhas habilidades de contista. Afranqueza brutal de Seager poupou-me

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provavelmente de muito esforçodesesperado. Sou capaz de relatar, masnão de inventar. O que os escritores denão ficção tiram de romancistas econtistas (assim como de outrosescritores de não ficção) são osesquemas de narração. Históriasinventadas e verdadeiras são narradasda mesma forma. Há uma arte específicanisso. Mas não sou tão consciente doque estou fazendo enquanto escrevo. Seiapenas que alguma coisa tem de ser feitapara transformar minhas anotações emum texto legível. Esse algo é o que vocêensina, não é?

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Isso é o que eu ensino, e por issoestou um pouco chocada com a históriasobre o curso de ficção. Mas estouinteressada no seu uso da expressão“franqueza brutal” para esse professorprovavelmente equivocado. Parece-meque você usa essa frase com admiraçãoe que admira uma espécie de franquezaque também percebe como brutal.Estou certa? Pode explicar sua relaçãocom esse modo particular depercepção?

Essa é uma observação muitointeressante. Nunca me ocorreu que

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“franqueza brutal” fosse uma expressãotão carregada. Claro que é. Mas épreciso alguém de sua geração paraolhá-la com desconfiança. No momentodo c de Allan Seager — início dos anos1950 — um professor machista comoele (tinha clara preferência peloshomens da classe) não era nadaincomum. Eu cheguei tarde nofeminismo. Mulheres que se tornaramadultas na minha época desenvolviamformas agressivas para chamar a atençãodos machos superiores. O hábito dereceber atenção fica com você. Essa éapenas uma tentativa de responder à suapergunta, mas faz sentido, talvez? Eis

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uma outra coisa: durante meus quatroanos de faculdade, não tive um únicoprofessor do sexo feminino. Não havianenhuma, tanto quanto sei.

Fale-me mais sobre esse hábito deobter atenção. Não está cem por centoclaro para mim o que você quer dizer.

Não está cem por cento claro paramim também. Naquele artigo sobreVanessa Bell que você mencionou antes,cito a jovem Virginia Woolf sobre aquestão de seus amigos gays. O que elachamava de “a sociedade dos

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enrabadores” tem “muitas vantagens, sevocê é uma mulher”, escreveu em umlivro de memórias chamado OldBloomsbury. “Ela é simples, é honesta,nos faz sentir [...] em alguns aspectos, àvontade.” Mas “tem esta desvantagem— com enrabadores não podemos, comodizem as amas, nos exibir. Algo ésempre reprimido, suprimido. Noentanto, esse exibicionismo, que não énecessariamente copular, nem estartotalmente apaixonado, é um dos grandesencantos, uma das principaisnecessidades da vida”. Exibir-se parahomens heterossexuais continuava a serum prazer e uma necessidade para as

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mulheres da minha geração. Aquelas denós que escreviam, o faziam para oshomens e se exibiam para eles. Nossaescrita tinha um certo tom. Não tenhocerteza se posso descrevê-lo, mas possoouvi-lo. Você nos levou para águasprofundas. Trata-se de um temacomplexo e turvo. Talvez possamosatravessar a névoa juntas.

Eu me pergunto se parte desse tomde que você fala não é uma espécie deagudeza deslumbrante. GeorgeBernard Shaw escreveu que RebeccaWest empunhava uma caneta de forma

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tão brilhante quanto ele e “de formamuito mais selvagem”, e H. G. Wellsdisse que ela “escrevia como Deus”.Nessa mesma linha, ElizabethHardwick afirma que Mary McCarthynão é limitada pela “delicadeza”feminina. Será que essa ferocidade,tanto em West como em McCarthy, etambém, digamos, em Susan Sontag, fazparte do que você quer dizer comaquele “exibicionismo” e esse “certotom”? Há alguma coisa em serescritora num campo muito masculinoque leva a um tipo de agressividadebrilhante no texto?

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A agressividade está acoplada comflerte. Desse modo, você consegue queos caras digam que você escreve comoDeus. Talvez devêssemos passar paraum novo assunto.

Que tal a edição? Você já teveeditores com quem gostou detrabalhar? Você pode me falar sobrecomo edita seu trabalho, e sobre otrabalho de edição bem-vindo ou nãodo mundo exterior?

Fico muito feliz que você tenha feitoesta pergunta, porque me permite

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corrigir uma omissão. Quando respondià sua pergunta sobre o ritmo da minhaescrita, deveria ter mencionado umapessoa com uma atenção ainda maiscurta do que a minha, ou seja, meumarido, o falecido Gardner Botsford,que foi meu editor na New Yorker . Atítulo de responder à sua pergunta sobreedição, quero citar algumas coisas queeu disse sobre Gardner em seu funeral,em 2005:

Ele odiava quando as pessoas não sabiamparar. Muito de seu trabalho como editorestava dedicado à eliminação de palavrassupérfluas — com frequência, de parágrafos

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supérfluos —, às vezes, até de páginassupérfluas...

Ele fazia muitas outras coisas também;seu gosto, seu ouvido para a linguagem, suapaixão pela clareza, eram evidentes em cadauma de suas intervenções editoriais.Lembro-me da primeira vez em que fuieditada por ele. Eu li a prova de página,resultado de muitas marcas a lápis que elehavia feito em meu manuscrito, e senti otipo de prazer que se sente diante de umapintura maravilhosa ou ao ouvir uma áriamagnífica. Com habilidade deslumbrante,sem alterar de modo nenhum o sentido,Gardner tinha transformado a escritaacidentada em prosa polida. Ao longo dos

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anos, tornei-me mais blasé em relação à suaedição, como fazemos com a água encanada,mas eu valorizo a memória do meu primeiroencontro com sua delicadeza e sua potênciaquase sobrenaturais. A. J. Lieblingexpressou isso sem rodeios e da melhormaneira quando disse a Gardner — a cujotrabalho de edição ele havia teimosamenteresistido no início e, por fim, aceitado comgratidão — “Você faz com que eu pareça umescritor de verdade”.

Preservaram-se manuscritos com asmarcações de Gardner e, à primeira vista,parece como se alguém tivesse dadomachadadas num artigo indefeso. Mas numexame mais minucioso, vê-se o tato com

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que cada intervenção foi feita. Gardner diziasempre que a primeira obrigação de umeditor era para com o leitor, mas ele tinhauma sensibilidade notável para as formas deexpressão de cada escritor, de modo quesuas alterações em nome do leitor semprepareciam ter sido feitas pelo escritor, emvez de por algum intruso grosseiro. SeGardner estivesse aqui, não creio quediscordaria do que eu disse, mas é provávelque estivesse olhando para o relógio.

Acho que essa é a descrição maisromântica e adorável do trabalho deedição que já encontrei. É difícilescrever sem ele? Às vezes penso o que

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alguns dos meus grandes editoresdiriam enquanto eu estou escrevendo.Você tem essa relação com o trabalhode edição dele?

Sim, tenho. Quando Gardner estavavivo, eu escrevia de forma maisdesleixada do que hoje; eu sabia que eleestaria lá para limpar as coisas. Agora,tento limpar a sujeira enquanto escrevo.Mas não estou sem alguém que meajude. Tenho uma editora brilhante naNew Yorker , Ann Goldstein, que tem oouvido para a linguagem e o lápisdelicado que Gardner tinha. Dependo

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dela para o que eu dependia de Gardner:ela põe o mesmo brilho nas frases. OndeGardner é insubstituível — onde Ann eeu só podemos tentar igualá-lo — é emseus cortes e rearranjos destemidos. Umescritor da New Yorker , que eraapaixonado demais por todas aspalavras que escrevia para entender otrabalho de edição de Gardner, ochamava de “o Estripador”. Na maioriadas vezes, eu entendia os motivos deGardner, embora aqui e ali — com ousem razão — eu discordasse dele, masnão com muita frequência.

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Você poderia falar um pouco sobre amecânica do seu processo de escrita?Você trabalha horas regulares ou emataques de inspiração? Você mesmoedita o texto? Você encara a escritacomo um operário? Você é umamarceneira que faz um armário, ou hámais drama ou tormento?

Estou definitivamente mais paramarceneira do que para artistaatormentada. Não que a escrita venhafácil. Não sei sobre os marceneiros, masmuitas vezes fico empatada. Então me dásono e tenho de deitar-me. Ou me obrigo

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a sair de casa — caminhar, às vezes,produz uma solução. O problema égeralmente de lógica ou ponto de vista.Trabalho normalmente pela manhã. Aprimeira hora é a mais produtiva. Asduas ou três seguintes são menos —podem até mesmo ser completamenteinúteis. Às vezes, trabalho na parte datarde também, mas a manhã é o tempo detrabalho obrigatório. Quanto à“mecânica” da composição, tudo o queposso dizer é que a máquina funcionalenta e erraticamente, e estou sempre umpouco nervosa em relação a isso,embora, a essa altura, já esteja bemacostumada. Acho que confio mais nela.

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Quanto a fazer a edição: quandoentrego um artigo, espero que hajasugestões de mudanças, e não sou ruimem usar essas sugestões para melhorar otexto. Mas preciso da dica de que algonão está certo.

Há algum de seus livros que vocêachou mais difícil de escrever do queos outros?

Achei o mundo de The crime ofSheila McGough mais difícil depenetrar que o de qualquer outro demeus livros. Era o mundo da fraude

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empresarial. Foi uma grande luta paramim entender os meandros da fraudesobre a qual eu estava escrevendo. Eume ressentia de estudar um assunto tãoestúpido. Senti que poderia teraprendido alemão ou dançar flamencono tempo que gastei tentando entender osnegócios corruptos de um vigaristachamado Bob Bailes. Sheila McGoughera sua advogada e sua vítima, nosentido de que foi acusada e condenadapor ser sua cúmplice. Na verdade, elaera apenas uma defensora estranhamentededicada em excesso. Era uma moçacatólica inocente que morava com ospais idosos e não tinha um pingo de

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desonestidade no corpo. Mas umpromotor habilidoso conseguiupersuadir o júri de sua culpa. Foi o meulivro menos bem-sucedido. Tenhocaixas cheias dele em meu porão.Acontece que gosto muito dele — talvezdo jeito que se gosta do nanico de umaninhada. Mas talvez os leitores tambémnão quisessem estar naquele mundo.Talvez eu não tenha conseguido tirar otédio dele. Por outro lado, eu talveztenha conseguido.

Qual dos seus livros, ao contrário,veio mais naturalmente?

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Não me lembro de ter nenhumproblema especial com meu livro maisrecente, Anatomia de um julgamento:Ifigênia em Forest Hills. Mas — paracitar o título do novo livro de NoraEphron — não me lembro de nada.

Em Anatomia de um julgamento:Ifigênia em Forest Hills, parece que alógica do enredo está conduzindo àideia de que o julgamento de MazoltuvBorukhova foi injusto e que ela talvezfosse inocente; contudo, no final,parece que você pensa que ela éculpada. Em algum momento você

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achou que ela fosse inocente, ou queriaque ela fosse inocente? Ela é umapersonagem totalmente fascinante, nocentro do livro. Pode falar um poucosobre como se sentiu em relação a elaenquanto estava escrevendo?

Em algum lugar do livro eu disse que“a estranheza de Borukhova era suacaracterística definidora”. À medida queeu acompanhava o julgamento, sentiaque a compreendia cada vez menos. Elaparecia mais e mais estranha, bem comosuas irmãs e sua mãe. Eu tinha esperançade entrevistá-la, mas nunca consegui.

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Ela era como um animal selvagem quenão podia ser atraída para a armadilhado “tenha-um-coração”. Tanto oadvogado de defesa como seu advogadode apelação ofereceram a possibilidadede uma entrevista, mas isso nuncaaconteceu. Então, há uma espécie deburaco no centro do livro. Ela se tornaaquela que você imagina que ela é. Opromotor levou os jurados a imaginá-lacomo uma pessoa totalmente má. Oadvogado de defesa não teve sucesso emsubstituir isso por uma caracterizaçãodiferente. O fato de ter sido chamada adepor serviu apenas para que opromotor desse corpo ao retrato dela

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como uma mentirosa perversa. Foi umaarmadilha impiedosa e letal.

Eu percebo o que você pretende aodizer que ela é uma cifra que se tornaquem quer que você imagine que elaseja (não muito diferente de SylviaPlath em A mulher calada ). Maslevando-se em conta a linguagem quevocê usa aqui, parece que você temalguma simpatia por ela. Minhapergunta é: o que você teria feito seestivesse no júri? E você sentiu algumasimpatia pela estranheza dela, por elaser, como você diz — e isso

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transparece definitivamente no livro—, um animal em uma armadilha?

Senti grande simpatia por ela comomãe. Mas fiquei intrigada com suadisposição de aceitar a sentença terríveldo juiz determinando que sua filha fossemorar com o pai que ela temia. Nasituação dela, eu teria desafiado aordem. Eu levaria minha filha paramorar em outro estado ou país, sobnome falso. Eu imagino que teria feitoisso. Nenhum de nós sabe ao certo doque somos capazes, como noscomportaremos quando testados.

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O que eu teria feito se estivesse nojúri? Acho que teria votado pelaabsolvição. Os noventa telefonemasligavam Borukhova a Mallayev — queparece ter cometido o crime —, mas nãoprovavam conclusivamente que ela ohavia contratado para matar seu marido.Parecia que ela havia feito isso, mas é osuficiente? O promotor evidentementepensava que não era, que para obter asua condenação precisava denegrir seucaráter. Não se chega a um veredicto emestado de indiferença. Minhasentrevistas com dois dos juradosmostraram o quanto o veredicto delesfoi determinado pela antipatia por ela e

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pelo desejo de julgá-la culpada.

No livro, você atribui ao menos umpouco da misteriosa “estranheza” deBorukhova ao fato de ela fazer parte deuma comunidade imigrante e ser novano sistema, por assim dizer.Obviamente, você é de um mundo muitodiferente, mas pergunto-me se ter vindopara este país quando criança lhe deualgum sentimento de estranheza, ou sevocê acha que aquela experiência, deter de viver em um novo sistema, afetoude alguma forma sua identidade comoescritora.

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Eu vim para os Estados Unidos comcinco anos de idade e não sabia inglês.Muitas das lembranças que tenhodaquela época são de minhas confusõese equívocos em um jardim de infânciano Brooklyn, ao qual meus pais mehaviam enviado por acaso e,provavelmente, por imprudência. Porexemplo, houve uma viagem de turma daqual fui excluída porque não compreendia tempo que deveria trazer dinheiro decasa para participar dela. Outralembrança é da professora do jardimdizendo “adeus, crianças” no fim do dia,e minha inveja da menina cujo nome eusupunha ser Crianças. Minha esperança

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secreta era que um dia a professoradissesse: “Adeus, Janet”. Eu nuncaliguei essas batalhas patéticas com umalíngua que eu não conhecia a lutasposteriores com a língua com que tenteie tento não cair em desgraça comoescritora profissional, mas, no fim dascontas, pode haver uma conexão. Suapergunta me dá muito o que pensar.

Para voltar, por um momento, aoque você disse sobre Borukhova comomãe: você achou que ter uma filhaentrava em conflito com sua obra? Issopode revelar que estou fazendo uma

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lista, mas notei que todas as escritorasque mais admiro não tiveram filhos, ou,no máximo, apenas um. Gostaria desaber se você já se sentiu um estirãoentre a ambição e a criança, se aimpiedade da escritora esteve algumavez em conflito com os instintosmaternais?

Eu realmente senti a atração opostaentre a impiedade da escritora e osinstintos maternais. Mas isso pode seruma questão profunda demais para umatroca de e-mails sobre a arte da nãoficção. O lugar para discutir nossas

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batalhas com a arte de ser mãe éprovavelmente um bar escuro.

É provável que você tenha razão. Eunoto em suas respostas às minhasperguntas uma espécie de elemento decolagem. Com frequência, você colacitações longas, e isso também éverdade sobre sua obra de não ficção ecrítica. Você pode explicar sua atraçãopor essa técnica?

Bem, a atração mais evidente dacitação é que lhe dá um pouco de fériasde escrever — outra pessoa está fazendo

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o trabalho. Tudo que você precisa fazeré digitar. Mas há uma razão além dapreguiça para o meu gosto de citarlongamente. A citação permite que semostre a coisa em si, em vez dosimulacro pálido, e nunca bem correto,que é a paráfrase. Por essa razão, euprefiro livros de cartas a biografias. Soutentada a citar-me sobre esse assunto —escrevi sobre isso no artigo sobreVanessa Bell de que falamosanteriormente —, mas você fez eu mesentir constrangida, talvez até um poucoculpada, em relação a essa prática, porisso vou resistir ao impulso.

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Você pode me falar sobre seu estilode entrevistar? Como você extrai ashistórias de seus entrevistados, e o queobservou ao longo dos anos sobre aentrevista em geral, e sobre como aspessoas respondem às perguntas dosjornalistas?

Escrevi sobre isto em O jornalista eo assassino. Um repórter do Newsdaychamado Bob Keeler tinha me dado umlivro contendo as transcrições de suasentrevistas com Joe McGinniss e JeffreyMacDonald, prefaciado por listas deperguntas que ele planejava fazer.

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Quando cheguei em casa, folheei o livro edeixei-o de lado. Não tinha pedido por ele, esentia que havia alguma coisa de quaseilícito em estar de posse dele. Ler asentrevistas de Keeler seria como ficarbisbilhotando em conversa alheia, e usarqualquer coisa delas seria como estarroubando. Acima de tudo — algo que iamuito mais fundo do que qualquerpreocupação com bisbilhotice ou roubos —estava a afronta ao meu orgulho. Afinal decontas, uma entrevista é tão boa quanto ojornalista que a conduz, e eu achava —falando francamente — que Keeler, com assuas perguntas preparadas e as suas maneirasdiretas de repórter de notícias, não

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conseguiria de seus entrevistados o tipo deresposta autêntica que tento extrair dosmeus com uma técnica mais japonesa.Quando por fim li as transcrições dele,porém, tive uma surpresa e uma iluminação.MacDonald e McGinniss haviam dito aKeeler, com toda sua falta de sutileza,exatamente as mesmas coisas que tinhamdito para mim. Não fizera a menor diferençaque Keeler tivesse lido uma lista deperguntas preparadas e eu tivesse agidocomo se estivesse fazendo na hora. Com olivro azul de Keeler, eu aprendi sobre aspersonagens a mesma verdade que osanalistas aprendem sobre os pacientes: elescontam a história deles para qualquer um

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que se disponha a escutar, e a história não éafetada pelo comportamento ou pelapersonalidade de quem escuta; assim comoos analistas (“bons o bastante”) sãointercambiáveis, os jornalistas também são.

Você deve estar pensando: estareivoltando ao hábito de me citar e, talvez,sancionando a “verdade” do trecho? Puso ponto de interrogação porque, derepente, não tenho mais nenhuma certezasobre tudo isso. Depois que meu livrosaiu, vários leitores escreveram eperguntaram: “Qual é a técnicajaponesa?”. Talvez eu tenhasubestimado o seu poder. Alguma parte

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de sua persona está certamente pairandosobre esta entrevista e influenciando, senão moldando, minhas respostas.

Deixe-me fazer uma pergunta quevocê talvez pense que não estárelacionada com isso. Eu adoro otrecho de Butterfield 8 em que JohnO’Hara escreve que a personalidadeadulta extrovertida e borboleteante deGloria é uma compensação por ter sidouma criança tímida. Você foi umacriança tímida?

Sim, fui. Mas você me conheceu.

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Você acha realmente que souextrovertida e borboleteante?

Bem, não. Mas a agressividadesocial formalizada da repórter parece,à sua maneira, uma manifestação de“extroversão”. Eu também mepergunto: você leva o seu exameminucioso e seus hábitos de jornalistapara a vida social normal, digamos, emuma festa ou num almoço, ou eles estãoconfinados à situação de entrevista?

Acho que sou quase a mesma o tempotodo. Não falo muito e passo a

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impressão de que estou interessada noque as pessoas estão dizendo. Claro,nem sempre é o caso. Gosto de usar umgravador quando entrevisto,principalmente para captar os hábitos defala característicos do entrevistado, mastambém porque ele me permite deixarminha mente vagar e, depois, recuperaras coisas interessantes que ele ou elapode ter dito. Em almoços e festas nãohá segunda chance para quem sonhaacordado.

Você escreve em A mulher caladaque o entrevistado e o entrevistador

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“estão sempre sendo distraídos eseduzidos pela semelhança externa doencontro com uma reunião amigávelcomum”. Você sente essa distração esedução quando entrevista, ou vocêavançou para além disso?

Um dia do ano passado, durante aPáscoa, passei muito tempo na lojaWhole Foods tentando decidir qual dospacotes de biscoitos kosher eu deverialevar para a casa da família judaicabucarana que ia entrevistar naquelanoite. Queria levar uma coisa legal enenhum dos biscoitos parecia excelente,

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mas não havia nenhuma outra coisaadequada. Quando cheguei em casa,examinei os pacotes de biscoito e penseiem voltar e trocar os com cobertura dechocolate, que pareciam particularmentepouco apetitosos, por mais macarons.Depois pensei que talvez fosse melhor— mais “profissional” — não levarnada. Consultei um amigo, que disse deforma decisiva: “Você não pode visitaruma família judia e não levar algumacoisa”. Então, levei os biscoitos para aentrevista. Durante toda a noite fiqueidistraída com a questão de saber se adona da casa iria abrir os pacotes eoferecer os biscoitos.

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Acho que a gente nunca se afastacompletamente da atração do pessoal emqualquer encontro humano. Mas pensoque quando os jornalistas se lembramque a entrevista é um tipo especial deencontro e refreiam um pouco de suaafabilidade natural, não perdem nadacom isso. O entrevistado não percebe.Ele quer contar sua história. E quandoreconta a história de uma forma que oentrevistado não pode prever, ojornalista não se sente como umtremendo traidor.

Você pode analisar um pouco a

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reação do mundo dos escritores ejornalistas ao processo por difamaçãoaberto contra você e a New Yorker porJeffrey Masson? Parece-mesurpreendente que a comunidade maisampla não tenha se mobilizado paraapoiá-la de uma forma mais enfática.Você escreveu depois que achou em suacasa de campo o caderno de anotaçõesque continha a versão manuscrita dealgumas das citações que ele alegouque você fabricou, quando sua netaestava brincando perto de uma estante.Eu ainda ouço às vezes pessoasdizendo que não acreditam que vocêencontrou o caderno, ou que acreditam

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que não houve difamação, mas têm avaga sensação de que houve algumastuto malfeito jornalístico. Por quevocê acha que as pessoas,especialmente os jornalistas, reagiramdaquela forma?

Quando escrevi O jornalista e oassassino, eu o fiz na, como se provou,crença tola de que a ação judicial deJeffrey Masson contra mim e a NewYorker — que havia sido rejeitada porum tribunal da Califórnia — estavadefinitivamente encerrada. Eu deveriasaber, tendo escrito seu perfil, que

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Masson não desistiria tão facilmente.Ele recorreu, e logo depois que o artigoem duas partes da New Yorker saiu emlivro, ele conseguiu derrubar a decisão evencer no tribunal. A comunidadejornalística, que (como observeianteriormente) estava irritada comigopor minhas observações sobre ojornalismo, ficou naturalmente muitosatisfeita com o rumo dosacontecimentos. Quem poderia culpá-la?Quem já não sentiu prazer na queda dealguém que se diz poderoso? O fato deser uma escritora da New Yorker queestava sendo arrastada pela lama sóaumentava a alegria perversa. Naquela

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época, a revista ainda estava envoltanum casulo de superioridade moral querealmente incomodava as pessoas quetrabalhavam em outras publicações. Eunão me ajudei ao me comportar damaneira como os escritores da NewYorker pensavam que deveriam secomportar quando abordados pelaimprensa: como pequenas imitações deWilliam Shawn e sua fobia pelapublicidade. Então, em vez de medefender contra as falsas acusaçõesfeitas por Masson em entrevista apósentrevista, mantive meu silêncioridículo. Por fim, consegui convencerum júri de que eu estava dizendo a

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verdade e não havia inventado nada.Mas ao me recusar a contar o meu ladoda história para a imprensa, ao agircomo se eu não tivesse de contar o meulado da história, pois quem poderiaduvidar de sua verdade?, perdi notribunal da opinião pública.

Outro erro que cometi foi o de levar asério a lição de Jarndyce vs. Jarndyce4 edar a mínima atenção possível à açãojudicial de Masson; eu pensava: que osadvogados cuidem disso e vou viverminha vida, fazer meu trabalho e nãoacabar como aqueles infelizesobcecados pelos tribunais de A casa

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abandonada. Mas era a lição errada.Anos mais tarde, percebi que osadvogados tinham conduzido mal o caso.Eles conseguiram seu encerramento,através de um mecanismo legal chamadojulgamento sumário, por razões que eununca teria consentido que alegassem seestivesse prestando atenção. O juizaceitou a alegação do meu advogado deque as três citações em questão (dasquais eu havia perdido as minhasanotações manuscritas) eram tãosimilares às citações que estavam emuma fita que, mesmo que tivessem sidoinventadas, Masson ainda assim nãotinha razão. Isso está completamente

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errado! (Como a Suprema Corte viuacertadamente.) Similar não é igual. Naimprensa, o “mesmo que” foi traduzidopor “mesmo tendo sido” — por umaadmissão de culpa. Não me surpreendesaber que há pessoas que ainda pensamque fiz algo errado.

Um pensamento final sobre a açãojudicial. Não foi agradável serprocessada e foi doloroso serridicularizada por meus colegasjornalistas, mas foi uma experiência queeu não gostaria de ter perdido. Não erauma ameaça à vida, e foi muitointeressante. Tirou-me de um lugarprotegido e me jogou na água

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estimulantemente gelada. O que maispoderia querer um escritor?

* Entrevista concedida a Katie Roiphe, professora dodepartamento de jornalismo da Universidade de NovaYork (nyu), e publicada originalmente em The ParisRewiew, no 196, primavera de 2011.1 Anne Stevenson (1933-): escritora americana quevive na Inglaterra, autora de muitos livros de poesia eensaios. (N. T.)2 Ingrid Sischy: ex-editora-chefe da Interview eeditora internacional das edições europeias da VanityFair. (N. T.)3 Vanessa Bell (1879-1961): pintora inglesa, irmã de

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Virginia Woolf. (N. T.)4 Obscuro processo judicial de herança em torno doqual giram os personagens do romance Bleak House[A casa abandonada], de Charles Dickens. (N. T.)

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Copyright © 2011 by Janet MalcolmEntrevista com Janet Malcolm (The Art of Nonfictionno 4) publicada originalmente em The Paris Review ©2011 by The Paris Review Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009. Título originalIphigenia in Forest Hills: anatomy of a murder trial CapaJoão Baptista da Costa Aguiar PreparaçãoSilvia Massimini Felix RevisãoCarmen T. S. CostaJane Pessoa ISBN 978-85-8086-297-3

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Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 – São Paulo – spTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

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SumárioColeção JornalismoLiterário 2

Rosto 4Sumário 81. 92. 183. 344. 495. 726. 877. 102

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8. 1089. 11310. 14211. 16212. 17113. 17814. 20315. 22216. 23417. 26218. 28119. 29820. 305

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21. 31622. 32923. 34724. 36625. 37926. 38927. 39628. 42329. 43130. 462Entrevista 479Créditos 576