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Análise Social, vol. XXXVI (Outono), 2001

Pedro Aires Oliveira, Atribulações deUm Fascista Anglófilo, «ArmindoMonteiro: Uma Biografia Política»,Lisboa, Bertrand Editora, 2000, 340páginas.

No Palácio das Necessidades Ar-mindo Monteiro foi esquecido comoministro e deixou uma lembrançaambígua como embaixador. Por umlado, ao contrário do comum dosdiplomatas, de carreira ou não, tinhaum espírito vivíssimo, experiênciade poder, desembaraço, capacidadede trabalho monumental. Por outrolado, arrogante de mais para aceitarde bom grado a autoridade deSalazar, mas sem coragem bastantepara lha contestar na arena política,quando, durante a guerra, em Lon-dres, a alta sociedade inglesa e osbombardeamentos alemães lhe subi-ram à cabeça, achou a prudência dohomem de Santa Comba provincianae tacanha e namorou a desobediência,se não a traição, ao chefe, em nomedo que entendia ser o interesse dapátria. Faltaram-lhe convicção e ou-sadia para as consumar: limitou-se,como o de Santa Comba cruelmenteanotou à margem da carta pessoalem que Monteiro, pela última vez,pôs em risco o seu lugar de represen-tante de Portugal em Londres, a «es-crever para a história». A resposta deSalazar leva-o à demissão e assimacaba a sua carreira política. Sobrevi-veu-lhe doze anos, ensinando, admi-nistrando empresas e vivendo comgosto — a Quinta do Bom Sucessoera uma das casas mais simpáticas

que conheci em Portugal — até umenfarte do miocárdio o levar em1955. Nascera em 1896. Segundoesta biografia, poderia ter sido ele oministro das Finanças da ditadura, equem sabe o que teria vindo a seguir— mas não o foi, e, alapado à rochado poder, Salazar só despegou quan-do caiu da cadeira.

Há muitos anos perguntei a Sophiade Mello Breyner por que é que elaachava que o Luís Monteiro mentiatanto. «Talvez por ter ouvido mentirtanto em pequeno…», veio a resposta.O autor de Felizmente Há Luar eramitómano, todos os seus amigos o sa-biam, outra gente descobria-o à suaprópria custa. A farpa da Sophia con-fortou na altura o meu ânimoreviralhista ; lembrei-me dela agora aoler este livro sobre o pai do Luís.

Antes de Londres, Armindo Mon-teiro fora ministro dos Negócios Es-trangeiros e, antes ainda, ministrodas Colónias. Eram os anos do triun-fo do fascismo na Europa, primeiroem paz, depois em guerra. Só em1942 a maré começou a mudar euma vitória aliada a parecer possível.Num almoço em Londres em Janeirode 1943 Anthony Eden ouve alguémafirmar que sempre acreditara nessavitória e sorri, comentando a ArmindoMonteiro que o que o fazia sorrir era«o cálculo da muita gente que hojeteve confiança em nós em 1940». Aoespírito fascista do tempo juntavam--se as circunstâncias do Portugal queo Estado Novo apanhara, exausto dosdesmandos e inépcias da I República.A passagem de Armindo Monteiropelas Finanças, como subsecretário de

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Salazar, permite a Aires Oliveira to-car um pouco na tarefa de saneamen-to e recuperação financeiros do paísexecutada no começo do regime.Embora não seja esse um tema cen-tral do livro, pois o biografado vaidedicar-se ao ultramar e às relaçõesexternas, a sua breve abordagemchega para ilustrar uma verdade quea oposição ao Estado Novo raramen-te entendeu: Salazar não foi só causados nossos males; foi sobretudo suaconsequência. Era, assim, naturalque os homens mais chegados a elenesse tempo estivessem respeitavel-mente convictos de uma missão his-tórica de reabilitação nacional. Mui-tas das coisas em que acreditavam,porém, e a maneira de as procuraremimpor estavam longe de ser respeitá-veis e eram, nalguns casos, monstruo-samente falsas. Por querer ser umministro das Colónias inovador e porgostar de escrever, Armindo Montei-ro deixou-nos páginas de doutrina emétodo pensadas pela sua cabeça eredigidas pelo seu punho sobre Áfricae os Africanos. Nestes tempos de cor-recção política algumas passagens po-deriam tê-lo levado ao governo naÁustria ou à cadeia em partes menosamnésicas do velho continente. Quantoà inovação, Aires Oliveira descrevebem a tarefa de centralização em Lis-boa da administração política, econó-mica e financeira do império, preve-nindo e combatendo quaisquerveleidades autonómicas que os colonospudessem albergar. Uma linha que semanteve por muitos anos e foi pesadaem consequências.

Na metrópole, a visão política doregime queria também um Estado for-te e uma população submissa. A de-mocracia era a mãe de todos os vícios.Os modelos de organização política esocial a seguir ou a adaptar eram fas-cistas, em vigor na Itália e na Alema-nha, e aproveitados por direitas euro-peias várias, a leste e a oeste. Frutoda época, dir-se-á, mas não é desculpaque valha. Havia, pelo menos, maisduas visões coevas por onde escolher,a comunista e a liberal, e, embora ostotalitarismos de esquerda e de direitativessem obtido grandes vitórias, a de-mocracia parlamentar vingou nalgunslugares e mesmo em Portugal tinha osseus partidários, perseguidos quandoprocuravam promovê-la. Foi o EstadoNovo quem triunfou aqui, porém, como cortejo de mentiras que o Luís ouvi-ra em pequeno.

Ministro dos Negócios Estrangei-ros, Armindo Monteiro entra em rotade colisão com Salazar, de entradasobretudo por razões de temperamen-to e pendor pessoal. Eram personali-dades muito diferentes: ArmindoMonteiro vai às colónias quando mi-nistro das Colónias, vai ao estrangeiroquando ministro dos Negócios Es-trangeiros; Salazar governa Portugalsem sair de São Bento. ArmindoMonteiro é mundano; Salazar, misan-tropo. Armindo Monteiro é lido, cultoe curioso do que se passa; Salazar —a julgar pela biografia de FrancoNogueira — recebe uma formaçãolimitada e é estreito de vistas e deinteresses. Mas, à partida, não há en-tre os dois divergências ideológicasou tácticas. A pouco e pouco estascomeçam a aparecer e agudizam-se

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quanto à maneira de lidar com a Es-panha, em guerra civil, sem alienar osIngleses. Por fim, mandar Monteiropara Londres é uma maneira elegantee útil de o afastar do poder. As ten-sões entre os dois homens mantêm-seem banho-maria até ao estalar daguerra. Anglófilo, o nosso embaixa-dor na corte de São Tiago troca aneutralidade assumida do regime porum entusiasmo pró-aliado a que pro-cura, sem sucesso, converter Salazar.O resto foi o que se viu.

Aires Oliveira dedica algumas pá-ginas à contradição aparente entre aanglofilia de Armindo Monteiro e asua filosofia política de base. Fá-locom inteligência e bom senso, mos-trando que as duas coisas são compa-tíveis. Aceito a demonstração, masjulgo que nesses casos há um mal--entendido profundo de parte a parteque quase nunca, de resto, prejudica oconvívio. Lembro-me de F. W. deKlerk não entender por que é queMargaret Thatcher condenava o IRAe tolerava o ANC, que punham am-bos bombas, até ela lho ter explicado:«Porque os do ANC não podem vo-tar.» Na Londres da segunda guerramundial os problemas eram outros eo governo de Churchill acolhia comagrado um embaixador portuguêsque, mesmo sem impolutas credenciaisdemocráticas, os estimava muito maisdo que o governo de Lisboa.

O livro chama-se Uma BiografiaPolítica e aquilo de que trata tratabem, com investigação de fontes origi-nais, análise lúcida e narrativa fluida.Os anexos são fascinantes: ArmindoMonteiro tinha talento literário e dei-

xou-nos excelentes apontamentos depessoas: o rei Eduardo VII, Churchill,Laval, entre outros. Alguns pequenosreparos: a mulher do inglês Hornungda Sena Sugar não se chamava LauraPaiva de Raposo, mas sim Laura dePaiva Raposo, família lisboeta ilustrecuja notoriedade começa com a amiza-de do rei D. Miguel; o oposicionistaMoreira de Campos era comandante, enão capitão — marinheiro de gema,teria detestado passar por oficial doexército; é pena que a carta de Londresde Armindo Monteiro e as anotações àmargem de Salazar, embora já publi-cadas, não tenham sido impressas aqui.A falta de um índice remissivo não sejustifica. E é pena, por fim, que aparte «não política» do homem de tãopouca menção seja objecto. Já não oconheci, mas tudo indica que haja sidomais interessante e simpático do que opolítico propriamente dito.

JOSÉ CUTILEIRO

José Pacheco Pereira, ÁlvaroCunhal: Uma Biografia Política;«Daniel», o Jovem Revolucionário,vol. I, Lisboa, Temas & Debates,1999, 477 páginas.

Tendo em conta a recusa de Ál-varo Cunhal a escrever as suas me-