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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA ANA MARÍA FERNÁNDEZ EQUIZA ANÁLISE INTERDISCIPLINAR DA VALORAÇÃO DA NATUREZA NOS CONFLITOS AMBIENTAIS FLORIANÓPOLIS 2007

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    ANA MARA FERNNDEZ EQUIZA

    ANLISE INTERDISCIPLINAR DA VALORAO DA NATUREZA

    NOS CONFLITOS AMBIENTAIS

    FLORIANPOLIS

    2007

  • 2

    ANA MARA FERNNDEZ EQUIZA

    ANLISE INTERDISCIPLINAR DA VALORAO DA NATUREZA

    NOS CONFLITOS AMBIENTAIS.

    Tese submetida como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Cincia, apresentado ao Programa de Ps-Graduao Interdisciplinar em Cincias Humanas do Centro de Filosofia e Cincias Humanas Universidade Federal de Santa Catarina.

    Orientador: Prof. Dr. Hctor Leis

    Co-orientador: Prof. Dr. Luis Scheibe

    FLORIANPOLIS

    2007

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    ANA MARA FERNNDEZ EQUIZA

    ANLISE INTERDISCIPLINAR DA VALORAO DA NATUREZA

    NOS CONFLITOS AMBIENTAIS

    Tese de Doutorado apresentada no Programa de Ps-Graduao Interdisciplinar em Cincias Humanas, do centro de Filosofia e Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito obteno do grau de Doutora em Cincias Humanas.

    Aprovado em de 2007

    BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Hctor Ricardo Leis Orientador Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________________________________________________

    Prof. Dr. Henri Acselrad Universidade Federal de Rio de Janeiro

    ________________________________________________________________

    Prof. Dr. Luciano Flix Florit Universidade Regional de Blumenau

    ________________________________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Krischke Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________________________________________________

    Profa. Dra. Ariane Kuhnen Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________________________________________________

    Prof. Dr. Luiz Fernando Scheibe - Co-orientador Universidade Federal de Santa Catarina

  • 4

    A minhas filhas Lucia e Julia, por existir e acompanhar-me nesta experincia. memria de meus pais Ral e Mirta pela infinita semeia de sua breve vida. Ao av Vicente, por seu imenso amor e dedicao. A meus irmos, Gregorio, Federico, Mariana, Pablo e Eugenia, porque somos sempre um e seis. A Aurelia por sua amizade e solidariedade de mulher.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Hctor Leis, por seu compromisso e dedicao ao projeto

    interdisciplinar, por colocar aos colegas e alunos desafios que ajudam a crescer e por sua

    pacincia infinita como diretor.

    Ao Professor Luis Fernando Scheibe porque suas contribuies como co-diretor foram

    sempre extremamente claras e teis. A todos os professores e colegas do Doutorado

    Interdisciplinar por assumir a tarefa de dar corpo a uma experincia inovadora. A Liana

    Bergmann e ngelo La Porta por sua amvel disposio e sua eficincia em tudo o atinente

    aos aspectos administrativos.

    A Universidade Federal de Santa Catarina por abrir-me suas portas e Universidade

    Nacional do Centro da Provncia de Buenos Aires por ter possibilitado a realizao deste

    Doutorado no mbito da educao pblica.

    A Brenda Teresa Porto de Matos por sua hospitalidade.

    A Claudia Lucia Bisaggio Soares que compartilhou comigo sua famlia, sua casa e

    longas e inspiradoras conversas sobre preocupaes comuns em torno do tema da tese.

    Aos colegas do Centro de Investigaes Geogrficas por seu permanente apoio e aos

    docentes da rea de Economia de Cincias Humanas por sua colaborao.

    professora Mabel Manzanal por seu exemplo e a Alain Lipietz porque, ainda que

    no o saiba, acordou a inquietude intelectual que se tentou desenvolver nesta tese.

    A todos os que celebram a maravilha da Natureza e vivem sabendo que h valores que

    no tm preo, porque lhe do maior sentido a este trabalho.

  • 6

    ABSTRACT

    The present work started with a question: whats the role being played by the criterions

    that give value in environmental conflicts?

    The principal hypothesis sustain the following: a) the environmental conflicts show that

    there are multiple criterions to give value to Nature, b) that those criterions in part generate

    the conflicts and c) that the economy is limited in offering solutions because it tends to reduce

    the plurality of existing criterions in order to conform to is own parameters defined by utility

    and measures

    The initial itinerary of this work looks into an approximation of the concept of value, it

    examines the general environmental thoughts and it looks into the economy searching for a

    value of nature. A model of analysis followed this work based on three categories: the use of

    the value of nature, the value of exchange (present and future), and the value of existence

    (intrinsic value).

    Two case studies serve to this analysis. The firs one is the conflict around the

    transference and disposition of the residential refuse (garbage) of the Buenos Aires

    Metropolitan Area into the city of Olavarra (2001-2003).

    The second study focuses the conflict into the mining exploitation in Tandil of the

    small-low mountainous region of Tandil (Buenos Aires Province).

    The first approach pretends to explain the development of conflicts studying them as

    complex systems. The second approach intended to produce an account of the development

    conflicts by using more specific tools and applying the models analysis of the document

    sources.

    The obtained results demonstrate the existence of multiples criterions to give value to

    Nature, including some totally independent of utility and measurement and, therefore, cannot

    be analyzed exclusively from an economic point of view. It is also observed that the criterion

    of value of actual exchange predominates in the actors considered as generators and

    regulators of the environmental conflicts.

    On the contrary, there is great plurality on the side of the initiators and those that are

    receptors of the conflicts, with more significant weight on the criterions that incorporate the

    value of use of nature and the exchange on the future and also the value of existence (the

    intrinsic value of nature).

    Key-words: value nature economy - environmental conflicts

  • 7

    RESUMO

    O trabalho partiu da pergunta: Qual o papel que jogam os critrios de valorao da

    Natureza nos conflitos ambientais?

    As principais hipteses aqui levantadas sustentam que: a) Os conflitos ambientais

    mostram a existncia de mltiplos critrios de valor sobre a Natureza, b) Estes so

    constitutivos dos conflitos e c) A economia se encontra limitada para oferecer solues j que

    tende a reduzir a pluralidade de critrios existentes queles que podem ser abarcados por seus

    parmetros, definidos pela utilidade e medida.

    Por isso foi necessrio realizar um caminho atravs do conceito de valor, indagando o

    pensamento ambientalista e procurando, na economia, uma conceituao que pudesse dar

    conta do valor da Natureza.

    Construiu-se, ento, um modelo de anlise baseado nas categorias de valor de uso

    (atual/ futuro), valor de troca (atual/ futuro) e valor de existncia, que foi utilizado para

    analisar dois estudos de caso.

    O primeiro caso refere-se ao conflito em torno do projeto de transferncia e depsito do

    lixo da rea Metropolitana de Buenos Aires na cidade de Olavarra, Argentina (2001-2003).

    O segundo centra-se no conflito pelo uso das Serras de Tandil, Argentina (1999-2000).

    Numa primeira aproximao os conflitos so estudados como sistemas complexos e

    seguidamente a abordagem aprofundada com o recuso de ferramentas de anlise mais

    especficas, aplicando o modelo s fontes documentais.

    Os resultados obtidos confirmam a existncia de mltiplos critrios de valorao da

    Natureza, incluindo alguns deles independentes da utilidade e medida.

    Tambm se observou que nos atores considerados geradores e reguladores dos conflitos

    predomina o critrio do valor de troca atual.

    Ao contrrio, nos iniciadores e receptores existe uma grande pluralidade com maior

    peso para os critrios que incorporam o valor futuro e o valor de existncia.

    Palavras chave: Valor Natureza Economia Conflitos ambientais

  • 8

    SUMARIO Anlise interdisciplinar da valorao da natureza nos conflitos ambientais ABSTRACT 6 RESUMO 7 SUMARIO 8 LISTAGEM DE ILUSTRAES 10 INTRODUO 11 CAPTULO 1 - ASPECTOS TERICOS - METODOLGICOS 15 1.1 Pergunta de partida, objetivos e hipteses. 15 1.2 Fundamentao 16 1.3 Problemtica 16 1.3.1 O significado do controle da natureza 18 1.3.2 Conflitos de uso e propriedade 19 1.3.3 A cincia: instrumento do servio de o domnio da Natureza 23 1.3.4 Os critrios de valor como orientao da investigao e como objeto de estudo

    24

    1.3.5 Porque estudar os critrios de valorao da natureza num conflito? 27 I.4 Algumas ferramentas conceptuais para caracterizar um conflito ambiental 31 CAPTULO 2 - QUAL O VALOR DA NATUREZA? 38 2.1 Que valor? 39 2.1.1 Valor Objetivo o Subjetivo? 39 2.1.2 A teoria da qualidade estrutural sujeito objeto 42 2.1.3 Os usos da palavra valor 44 2.2. Que valor econmico? 47 2.2.1 O conceito de valor econmico nas teorias clssicas e neoclssicas 47 2.2.2 Os conceitos riqueza e valor. 48 2.2.3 Valor de uso e valor de cmbio 49 2.3 O valor econmico da Natureza 54 2.4 Pode-se medir a Natureza? 59 2.5 Ampliando a noo de valor da Natureza 60 2.6 O valor da natureza no pensamento ambientalista latino americano 61 2.6.1 Contribuies de Guillermo Foladori: Critrios de valor da natureza numa tipologia do pensamento ambientalista

    61

    2.6.2 Contribuies de Eduardo Gudynas sobre valor da natureza e sustentvel 68 CAPTULO 3 - APROXIMAO ANLISE DE CONFLITOS AMBIENTAIS COMO SISTEMAS COMPLEXOS.

    72

    3.1 Inter-relaes dos subsistemas sociais econmicos polticos - jurdicos - ambientais: em procura de uma dimenso explicativa dos conflitos ambientais no contexto da Argentina atual

    73

    3.1.1 Argentina na diviso internacional do trabalho 74 3.1.2 Atrair capitais: como se construiu o dogma 75 3.1.3 Uma aposta paga com ambiente 83 3.1.3.1 A Mineira: a promoo sem fim 83 3.1.3.2 Questionamentos e Resistncia ao Modelo Mineiro. 85 3.1.3.3 Um Balano 86 3.1.4 Os resultados sociais do modelo 87 3.1.5 Os resultados das polticas neoliberais segundo seus prprios parmetros 94 3.2 Introduo aos Casos de estudo 100

  • 9

    3.2.1 Caso I - O conflito pelo projeto de disposio de resduos da rea Metropolitana de Buenos Aires na cidade de Olavarra, Argentina (2001-2003). 3.2.1.1 A crise do sistema de administrao de resduos de Buenos Aires e arredores.

    103 104

    3.2.1.2 O impacto nos lugares de depsito final 108 3.2.1.3 A ameaa do Trem "sanitrio. 109 3.2.1.4 A mercantilizao do ambiente por parte do Estado. 111 3.2.1.5 Alguns elementos para pensar a gesto de resduos no marco de uma estratgia de desenvolvimento sustentvel.

    112

    3.2.1.6 Sntese preliminar do primeiro caso em estudo 114 3.2.2 Caso II. Os conflitos pelos usos das Serras de Tandil, Argentina, (1990-2006).

    115

    3.2.2.1 Caractersticas gerais das Serras de Tandil 116 3.2.2.2 Caso II (a) Os conflitos pelo uso mineiro das Serras de Tandil 118 3.2.2.2.1 A involuo da atividade mineira 118 3.2.2.2.2 Os intentos de regulamento 121 3.2.2.2.3 Os conflitos principais: usos/localizao/regulao 124 3.2.2.2.4 Critrios de avaliao implcitos nas polticas pblicas implementadas 127 3.2.2.2.5 Os resultados das polticas pblicas implementadas (2000-2006) 129 3.2.2.2.6 Situao atual do conflito 131 3.2.2.3 Caso II (b) O conflito pela construo nas Serras 133 3.2.2.4 Sntese preliminar do segundo caso em estudo. 137 CAPTULO 4. AS CONCEPES DE VALOR DE DA NATUREZA NOS CONFLITOS ESTUDADOS.

    4.1 Ampliando a caracterizao dos conflitos estudados 140 4.2 As posies em conflito 145 4.2.1 As posies no conflito pelo projeto de disposio de resduos da rea Metropolitana de Buenos Aires na cidade de Olavarra, Argentina (2001-2003).

    145

    4.2.2 Posies no conflito pelo uso mineiro das Serras de Tandil. Argentina (1999-2006)

    167

    4.3 Sntese dos critrios de valor da Natureza presentes nos conflitos estudados 277 4.4 Uma avaliao dos resultados. 279 4.5 Em busca de um modelo de interpretao 284 A MANEIRA DE CONCLUSO: DAS (IM) POSIBILIDADES DA ECONMIA.

    292

    REFERENCIAS 295 ANEXO A 303 ANEXO B 307 ANEXO C 310 LISTAGEM DE SIGLAS 319

  • 10

    LISTAGEM DE ILUSTRAES

    Quadro 1 Etapas da evoluo do conflito segundo Downs (1972). 30 Requadro 1 Componentes de um conflito ambiental. 34 Quadro 2 Desenvolvimento Temporal de um Conflito Ambiental. 37 Requadro 2 Teorias sobre valor econmico. 48 Esquema 1 Riqueza e Valor: conceitos diferentes. 49 Figura 1 Relao Natureza, valor de uso e de cambio (s/Autores clssicos e

    neoclssicos). 53

    Quadro 3 Componentes do valor Econmico dos bens ambientais. 56 Esquema 2 Natureza e Valor. Distintos enfoques. 62 Quadro 4 Tipologia de pensamento ambientalista segundo Foladori (2001). 68 Quadro 5 Comparativo das correntes do desenvolvimento sustentvel. 71 Figura 2 Subsistemas e processos inter-relacionados nos usos. 73 Esquema 3 Enfoque de Balano de Pagamentos. 76 Esquema 4 Medidas para atrarem capitais e obter emprstimos. 77 Grfico 1 Fluxo de Inverso Direta Estrangeira. Argentina (1993-2005). 78 Grfico 2 Inverso Direta Estrangeira (em % do PBI) Argentina, (1993-

    2005). 79

    Grfico 3 Composio setorial da Inverso Direta Estrangeira, Argentina, 2006.

    79

    Grfico 4 Pobreza e indigncia por regies, Argentina, 2005. 89 Grfico 5 Distribuio do Ingresso Argentina, 2005. 90 Quadro 6 Evoluo da Cesta Bsica. Argentina (2001-2006). 90 Quadro 7 Evoluo dos Salrios, Argentina, 2001-2005. 91 Grfico 6 Evoluo dos preos dos principais produtos da cesta bsica,

    Argentina, (2001-2005). 91

    Quadro 8 Comparativo de partidas oramentos selecionados, Argentina, 2006.

    92

    Quadro 9 Rentabilidade comparada entre empresas privatizadas o no privatizada, Argentina (1993-2001).

    93

    Quadro 10 Principais ingressos e egressos de divisas, Argentina, 2005. 95 Quadro 11 Composio das exportaes e destino. Argentina, 2004. 96 Figura 3 Divisas ou empregos? 98 Esquema 5 Os casos de estudo no marco da etapa neoliberal, Argentina, 1976-

    2007. 100

    Esquema 6 Um modelo de anlise. 142 Quadro 12 Caractersticas dos conflitos estudados 143 Grfico 7 O valor da Natureza. Resultados de casos I e II. 278

  • 11

    INTRODUO

    Qual o valor da Natureza? Uma pergunta que para muitos seres humanos, em

    diferentes culturas e em diferentes pocas provavelmente poderia parecer bvia,

    desnecessria. No entanto os problemas ambientais atuais enfrentam-nos a ela, nos obrigam a

    pensar de um modo novo. No aos cientistas em particular, a todos os seres humanos, em

    qualquer lugar do planeta em que nos encontremos. uma questo profundamente universal

    ainda que pensemos desde uma experincia local.

    Ainda quando esta pergunta no aparea formulada explicitamente com freqncia,

    indcios de mltiplas e diversas respostas emergem quando a sociedade enfrenta problemas

    ambientais.

    O presente trabalho prope-se indagar que papel jogam nos conflitos ambientais as

    diferentes concepes de valor da natureza, para o qual se tenta uma anlise interdisciplinar

    de dois casos de estudo. O primeiro referido ao conflito gerado pelo projeto de transferncia e

    disposio de resduos slidos urbanos da rea Metropolitana de Buenos Aires cidade de

    Olavarra (2001-2003). O segundo com relao ao conflito pelo uso das Serras de Tandil

    (1999-2006). Ambos os casos so representativos dos dois grandes grupos de problemas

    ambientais (extrao de recursos no renovveis e contaminao) e so relevantes nas

    respectivas localidades, situadas na mesma regio da provncia de Buenos Aires, Argentina.

    No primeiro captulo apresentam-se alguns aspectos tericos metodolgicos. As

    principais hipteses sustentam que existem na sociedade mltiplas critrios de valorao da

    Natureza, incluindo concepes de valor que no se sustentam na utilidade nem na

    mensurabilidade. Estas diferenas poderiam ser partes de uma dimenso constitutiva dos

    conflitos ambientais.

    Portanto, as alternativas de soluo pensadas exclusivamente desde a economia no

    poderiam dar conta da pluralidade de critrios de valorao existentes j que teoricamente

    esto limitadas a categorias de valor definidas por utilidade e medida. Isto constitui o ncleo

    da problemtica, j que, crescentemente, as repostas aos conflitos ambientais parecem se

    procurar no mbito da economia e, portanto, ficam circunscritas a critrios utilitaristas.

    Este utilitarismo, por quanto no implica diretamente mercantilizao, um oramento

    bsico da mesma. No tudo o til tem valor de mercado, mas no existe algo que tenha valor

    de mercado e no tenha alguma utilidade que motive que seja denunciado. Portanto, o

  • 12

    mercado s pode incluir os valores mensurveis e utilitrios. Dito de outro modo: valores no

    utilitrios e incomensurveis no podem ser mercantilizados. Se estes existem e se expressam

    nos conflitos podem se pretender solues que os ignorem?

    O papel da cincia moderna orientada pelo valor de controle da natureza

    determinante no aumento da capacidade de interveno humana sobre a natureza e, como

    sustenta Jonas (1995) no se desenvolveu ao mesmo tempo uma tica conforme as

    responsabilidades que implica. Isto faz parte da problemtica. Os conflitos ambientais

    implicam uma disputa em torno de usos materiais e simblicos e so, ao mesmo tempo, entre

    usos e entre valores. Os usos a sua vez dependem, entre outros fatores, das formas de

    apropriao, das regulamentaes existentes e das capacidades tcnicas.

    Por que escolher um uso e no outro? Ou perguntas como: a que usos da direito

    propriedade? Adquirem maior importncia dado que o aumento das capacidades tcnicas

    implica mudanas na intensidade, caractersticas e conseqncias dos usos. O uso do

    elemento apropriado formalmente, no ao mesmo tempo uso de um ecossistema e, portanto

    uma espcie de cercado de bens comuns e um avano sobre a vida de outros e sobre a

    Natureza em seu conjunto?

    Sem dvidas, a problemtica na qual se inscreve esta tese extremamente ampla e

    aqui s se pretende desenvolver uma anlise de uma relao em particular: a existente entre os

    critrios de valor da natureza e os conflitos ambientais tomados como caso.

    Assim, no primeiro captulo se tenta apresentar e deixar abertas algumas questes que

    fazem problemtica em general e expor algumas das ferramentas conceptuais que guiam o

    desenvolvimento deste trabalho em particular.

    No Captulo 2 analisam-se diferentes aspectos a respeito dos conceitos de valor, valor

    econmico e valor da natureza. Para isso, se faz uma breve resenha de algumas contribuies

    das teorias subjetivistas e objetivistas e, em particular, se expem os principais elementos da

    teoria do valor como qualidade estrutural, elaborada por FRONDIZI (1974).

    Depois de perguntar Que valor? pergunta-se Que valor para a economia?

    Assim, se realiza uma breve reviso das formas de entender o valor nas principais teorias

    clssicas e neoclssicas e se apresentam alguns elementos referidos s formas em que a

    economia tentou dar conta dos problemas ambientais nas ltimas dcadas, atendendo em

    especial s concepes sobre o valor da natureza.

    No Captulo 3 realiza-se uma primeira aproximao aos casos em estudo explorando

    as inter-relaes dos subsistemas sociais, econmicos, polticos, jurdicos, ambientais que

    podem contribuir a explicar e apresentando uma primeira descrio do desenvolvimento dos

  • 13

    mesmos. Conforme a um conceito do valor que considera aos fatores situaes como uma

    dimenso constitutiva do mesmo, o Captulo 3 contribui aos explicar. Neste sentido

    importante advertir que este captulo faz referncia a processos econmicos globais e

    regionais de certa complexidade, mas cujo entendimento imprescindvel para afundar numa

    dimenso explicativa dos conflitos ambientais em general e os estudados em particular.

    O ltimo captulo, o mais extenso e especfico, comea incorporando algumas

    contribuies conceptuais para uma caracterizao mais profunda dos conflitos ambientais

    tomados como casos. Sobre a base das aproximaes tericas realizadas nos captulos

    anteriores, os relevamentos de campo e as entrevistas exploratrias, definem-se um modelo de

    anlise.

    O mesmo est orientado pela pergunta de partida e baseado nas categorias de valor de

    uso (presente e futuro), valor de mudana (presente e futuro) e valor de existncia. Este marco

    aplica-se s fontes documentais disponveis para cada caso.

    A anlise complementa-se tomando como referncia as tipologias de pensamentos

    ambientalistas de FOLADORI (2001) e GUDYNAS (2003). Cabem algumas advertncias aos

    leitores. Em primeiro lugar, o carter interdisciplinar da anlise proposta no implica uma

    pretenso de exaustividade.

    Pelo contrrio trata-se de uma mirada entre muitas possveis. uma mirada particular

    que relaciona algumas contribuies de vrias disciplinas e trata de fazer uma anlise que

    contribuies ao entendimento dos critrios de valorao da natureza nos conflitos

    ambientais.

    Parte-se de admitir a impossibilidade de dar conta de todas as dimenses possveis de

    uma anlise interdisciplinar e ao mesmo tempo, da convico de que possvel e pertinente

    aprofundar uma dimenso definida a partir de uma construo terica que necessariamente

    implica eleies e com elas, incluses e excluses de teorias, conceitos e metodologias. O que

    aqui se apresenta um caminho para realizar a anlise, por suposto discutvel, mas que foi

    traado com honestidade intelectual em funo dos recursos e capacidades disponveis.

    Como destacam alguns dos autores nos que se apiam este trabalho (GARCA, 2000,

    SANTOS, 1997) a abordagem do objeto de estudo depende da construo terica prvia.

    Neste sentido, vale uma segunda advertncia: de alguma maneira os resultados esto presentes

    desde o incio.

    Isto se deve tanto forma em que se desenvolveu o processo da investigao como ao

    modo de elaborar o texto. A proposta do trabalho transita desde o princpio focalizando a

    anlise sucessivamente em aspectos como os critrios de valor, os conflitos ambientais (sua

  • 14

    natureza, a busca de uma dimenso explicativa dos mesmos como expresso de sistemas

    complexos, a histria de sua produo) e o papel dos critrios de valor nos conflitos

    estudados. Mas cada uma das partes, ainda que tenha certa autonomia, est fortemente

    orientada em torno das hipteses.

    Os resultados obtidos permitem afirmar que nos dois conflitos estudados existe

    pluralidade de critrios de valorao. Em ambos se observam uma forte associao entre os

    atores denominados geradores e reguladores com o critrio de valor de mudana atual e entre

    os receptores com a pluralidade de valoraes, incluindo critrios de valor de existncia da

    Natureza para o caso de Tandil. A anlise das respostas ao conflito apresentado no Caso 2

    mostra que as mesmas estiveram centradas no critrio de valor de mudana atual. Esta soluo

    apresenta-se como o resultado da aplicao de tcnicas de construo de consensos e se baseia

    em critrios economicistas de ajuste ao marco orientado pela desregulamentao da economia

    em general e as polticas de promoo mineira em particular. No incorpora nem no processo

    de construo nem na proposta resultante a pluralidade de critrios de valorao dos atores em

    conflito. Portanto e tendo em conta a persistncia e o aumento da intensidade do conflito,

    indicaria que por agora no se pode descartar a terceira hiptese.

    Finalmente, tomando em considerao os resultados expostos, comentam-se algumas

    idias em procura de um modelo de interpretao. Para isso se consideram trs eixos: os

    conflitos como expresso de sistemas complexos, como disputa em torno da apropriao

    material ou simblica da natureza e como momentos no avano do ambientalismo. Com

    respeito a isto ltimo se consideram as contribuies do multisetorialismo complexo (VIOLA

    E LEIS, 1995), de teorias que destacam a dinmica questionamento/construo de

    legitimidades (ACSELRAD, 2004) e/ou racionalidades (LEFF, 1995) bem como contribua-los

    tericos que tendem a ver os conflitos como emergentes da luta gerada pela escassez. Isto

    leva, a modo de concluso, a uma reflexo sobre as (in) possibilidades da economia para

    explicar conflitos ambientais que envolvem critrios de valor que no podem ser considerados

    dentro dos paradigmas.

  • 15

    CAPITULO 1

    ___________________________________________________________________________

    ASPECTOS TERICO-METODOLGICOS

    1.1 Pergunta de partida, objetivos e hipteses.

    Que funes desempenham num conflito ambiental as diferentes formas de valorizao

    da natureza?

    Partindo desta pergunta, tenta-se uma aproximao do assunto, sobre a base da anlise

    dos seguintes casos:

    I O conflito pelo projeto de disposio de resduos da rea metropolitana de Buenos

    Aires, na cidade de Olavarra, na Argentina (2001-2003).

    II Os conflitos pelos usos das serras de Tandil, na Argentina (1990-2006).

    Os objetivos propostos so:

    - Proporcionar o conhecimento sobre os critrios valorativos da natureza existentes na

    sociedade e sua relao com os conflitos ambientais estudados.

    - Avaliar a capacidade das principais teorias econmicas para dar conta da pluralidade

    de valoraes que se apresentam nos conflitos.

    Para isto prope-se aprofundar o estudo de dois conflitos ambientais, tentando:

    - Identificar os diferentes critrios de valorao da natureza explcitos e implcitos nos

    atos sociais envolvidos.

    - Investigar sua relao com a constituio e durao do conflito.

    - Analisar criticamente as formas de interpretao e as alternativas de soluo

    propostas, procurando estabelecer o nvel de adequao entre as mesmas e o problema

    colocado.

    O trabalho norteado pelas seguintes hipteses:

    a) Hiptese geral 1: Os conflitos ambientais pem em evidncia critrios de valorao

    da natureza diversos e contraditrios.

  • 16

    - Hiptese secundria 1.1: Existem critrios de valorao da natureza ligados

    utilidade.

    - Hiptese secundria 1.2: Existem critrios de valorao no suscetveis de medida, e

    dizer que segundo os mesmos, o valor da natureza no mensurvel.

    b) Hiptese geral 2: As contradies entre as diferentes formas de valorao da

    natureza so um dos elementos constitutivos e causais de conflitos ambientais.

    c) Hiptese geral 3: As propostas de soluo para conflitos ambientais que subordinam

    o conjunto das polticas possveis dimenso econmica, reduzem a pluralidade de critrios

    de valorao existentes na sociedade; porque a economia; dentro dos paradigmas vigentes,

    no pode considerar critrios de valorao no utilitrios ou incomensurveis.

    1.2 Fundamentao

    A valorao da natureza, dentro dos complexos de valores individuais, institucionais e

    sociais dos atos envolvidos num conflito ambiental, uma dimenso do mesmo,

    insuficientemente conhecida e estudada. Pesquisar e analisar esta dimenso valorativa poderia

    ajudar a entender e a explicar a ocorrncia de conflitos, assim como alguns fatores da sua

    permanncia ou resoluo.

    Dado que se trata de identificar e estudar uma dimenso do conflito scio-ambiental

    (aquela definida pelas implicncias das diferentes formas de valorao da natureza) que parte

    de caracterizar-se como insuficientemente reconhecida e explicitada, considera-se til para

    diferenciar esta de outras dimenses de anlise, o conhecimento prvio dos conflitos e

    inclusive, a reviso crtica da prpria abordagem anterior. Por isto tomaram-se dois casos de

    estudos com bastante informao sobre os mesmos. Ambos so representativos de dois

    grandes grupos de problemas ambientais: depredao e contaminao, e esto localizados em

    cidades intermediarias da mesma regio da provncia de Buenos Aires.

    1.3 Problemtica

    Podem ser entendidos os conflitos ambientais reduzindo a pluralidade de formas de

    valorao da natureza existente quelas susceptveis de definir-se por utilidade e medida?

  • 17

    A pluralidade de valoraes da natureza possveis e presentes nos atos sociais

    constituram uma dimenso dos conflitos ambientais insuficientemente reconhecidos,

    explicitados e estudados. Tanto a abordagem cientifica como as respostas polticas reduzem

    essa pluralidade.

    A cincia moderna de costume confessa um excessivo otimismo sobre as

    possibilidades de encontrar solues exclusivamente tcnicas para os problemas ambientais.

    No mesmo tempo as respostas polticas aos conflitos, que muito freqentemente se

    apresentam disfaradas como solues tcnicas, esto enquadradas na subordinao da

    poltica economia e da economia ao mercado, no entanto propendem a reduzir a diversidade

    valorativa existente ao valor econmico em geral e ao valor de mudana em particular.

    O no reconhecimento da dimenso valorativa e particularmente da discusso sobre o

    valor da natureza, impede um entendimento completo (LACEY, 1998) dos conflitos

    ambientais. O recorte de alguns aspectos do mesmo e seu estudo dentro dos parmetros da

    cincia orientada pelo valor de controle da natureza e particularmente pela economia, impede

    de considerar a pluralidade de valoraes existentes, por tanto limita os alcances explicativos

    do entendimento terico.

    Se efetivamente os desacordos sobre o valor da natureza so uma das dimenses

    constitutivas e por tanto explicativas dos conflitos ambientais, no poderiam ser ignoradas no

    estudo cientifico dos mesmos. Querendo dizer, uma cincia que omita a discusso sobre o

    valor da natureza e suas implicncias na constituio, desenvolvimento e resoluo de

    conflitos, no os poderia estudar como fenmenos complexos.

    Isto no uma concluso menor, devido a que muito freqentemente, verifica-se uma

    tendncia a colocar a cincia como rbitro desses conflitos. A resposta cientifica ou tcnica,

    colocada num lugar de neutralidade e de superioridade a respeito de outros saberes,

    esgrimida como fonte de soluo. Bem, isto pode ser respondido. Em primeiro lugar, existem

    grandes questionamentos a esta concepo que lhe d carter neutral e superior cincia, um

    valor social paradoxal baseado na suposta neutralidade valorativa. Em segundo lugar, se uma

    dimenso causal1 explicativa, est dada por variveis que deliberadamente so excludas na

    estratgia usada para produzir conhecimento. Ele pode considerar-se como cientifico? Ou

    ainda sendo ele em referncia aos aspectos estudados, pode extrapolar-se ao conflito como

    totalidade?

    1 Causalidade no num sentido lineal, mecnico, j que se esta considerando um sistema complexo.

  • 18

    Se o recorde produzido permitisse um entendimento incompleto mais extensivo sobre

    um aspecto do conflito, cumprindo num alto grau com os valores cognitivos, poderia

    considerar-se dentro de padres cientficos (LACEY, 1998). No entanto: legitimo o uso

    legitimador desse saber como entendimento superior? O saber sobre uma parte coloca-se no

    lugar do saber sobre o todo. Neste, sentido o questionamento a este modelo de entendimento

    no pelo que revela seno pelo o que oculta. Recorta-se para estudar, mas generaliza-se mais

    alm dos aspectos inicialmente recortados.

    A fragmentao, que poderia ser um recurso til para conhecer uma parte da realidade,

    converte-se em problema cientifico quando o conhecimento assim produzido extrapola-se ao

    todo, ou nega a existncia do previamente separado hora de constituir o objeto de estudo.

    Esse conhecimento, por mais que ele permite controlar os processos que tem a ver

    com o estudado e possibilite desenvolvimentos tecnolgicos que aplicam esse conhecimento

    ao controle da natureza no deixa de ser incompleto e fragmentrio. Todo o que excluiu existe

    e a interveno no que no conhecido.

    Assim como se orienta a produo de conhecimento a aqueles aspectos que se

    pretende controlar, do mesmo modo parecera ser que os efeitos sistmicos s so

    reconhecidos na medida em que reverte negativamente sobre o controle, tanto tcnica como

    politicamente.

    O efeito no desejado da aplicao num desenvolvimento tecnolgico ao prprio

    processo produtivo ou as conseqncias ambientais e sociais convertidas em conflitos coloca

    em transparncia o que antes estava no obscuro. Isto no s um problema cientifico, e como

    a cincia produzida socialmente.

    1.3.1 O significado do controle da natureza

    A relao da sociedade e a natureza so partes de cada cultura, e est produzida

    material e historicamente. Esta relao sociedade-natureza no necessariamente deve ser

    procura do controle. Se bem que esta foi uma das marcas da modernidade e esta no ncleo da

    racionalidade ocidental, da dinmica econmica e da cincia modernas mutuamente

    alimentadas, no uma lei natural.

    Muitas culturas marginais aos processos hegemnicos, mas de existncia concreta e

    estendida, concebem outras formas de relao sociedade-natureza, orientadas no pelo valor

    de domnio ou controle, seno pelo equilbrio ou harmonizao. Povos originrios de Amrica

  • 19

    Andina, os povos cias e mapuches, entre outros, entende-se a se prprios como natureza,

    Parte da vida, de tudo que existe e tentam conhecer para viver no mesmo sentido que o

    conjunto da natureza. 2

    Sem deidades extra-humanas, reconhece a funo dos elementos da natureza e as

    relaes de todo o existente. Esta cultura dono uma palavra sem sentido, salvo quando

    historicamente o adquire como ameaa ou como resistncia.

    A relao com a natureza orientada pelo valor do controle, no exclusiva do

    capitalismo, nem dos pases centrais. Quase todas as experincias do socialismo real, assim

    como as de desenvolvimentos em pases perifricos no se diferenciam do capitalismo, neste

    grande ncleo associado idealizao do produtivismo. Teoricamente funda-se em conceitos

    que definem o valor em termos de utilidade e medida. Praticamente, no fogem da ideologia

    do progresso e da fascinao pelo crescimento quantitativo.

    Embora estes pontos em comum no mundo, em escala global, imperam as regras do

    jogo do capitalismo, e sua dinmica a que imprime os traos principais dos processos

    produtivos predominantes em escala planetria.

    1.3.2 Conflitos de uso e propriedade

    A propriedade privada e o controle da natureza so constitudos do capitalismo. E

    neste sentido, a cincia orientada pelo valor do controle da natureza d para a propriedade um

    alcance cada vez maior, no s porque ajuda a gerar condies que facilitam um processo de

    mercantilizao crescente, porque seno estende as possibilidades de uso dos bens. O

    processo de mercantilizao da natureza e a extenso da propriedade privada sobre o ambiente

    operam como um processo permanente de cerceamento da natureza.

    Diz-se que assim como houve uma primeira aproximao dos campos comunais, a

    tcnica atual funciona gerando novos cerceamentos, igual algumas das polticas seguidas para

    dar conta dos problemas ambientais.

    Fazer um mercado de quotas de emisso de carbono de algum modo cercar e dividir

    o campo da emisso total admissvel.

    2 Entrevista de Tayta Ullpu (Carmelo Sardinas), professor de lngua e cultura Cia.

  • 20

    Registrar o conhecimento sobre a gentica de alguns vegetais ou animais uma forma

    de cerceamento e apropriao privada. Ao mesmo tempo, e embora no esteja explicitamente

    mercantilizado, o uso dos ecossistemas est crescentemente privatizado. Isto acontece na

    medida em que a propriedade sobre alguns elementos, no quadro dos regulamentos existentes

    concretamente e com tcnicas efetivamente utilizadas, supe um uso cada vez mais estendido

    do elemento apropriado.

    O uso da terra no o mesmo no sculo XX que no XXI, nem o mesmo da frica

    que na Austrlia ou na Amrica Latina. Bem, com a globalizao partes dos territrios se

    aproximam de acordo com sua insero cada vez mais internacionalizada, outras partes, ases

    vezes justapostos, ficam fora ou so excludas desse processo e formam parte de outras

    dinmicas, heterogneas e diversas.

    Hoje, a apropriao dos recursos est cada vez mais na apropriao de ecossistemas e

    neste sentido a fronteira da propriedade privada se estende sobre o tangvel e intangvel em

    muitos nveis. Veja: A propriedade da terra no mudou, desde o modo de ver jurdico, entre

    um campons e seu av, ou entre o primeiro e um pool ou uma grande empresa. A diferena

    no esta s no tamanho da explorao.

    O produtor que vive na sua terra, nasceu nela e pensa que algum da famlia seguir

    trabalhando essa terra, tem uma relao que no a circunscreve ao preo do mercado e a

    rentabilidade. Para um pool a produo agropecuria uma atividade econmica cuja

    rentabilidade est suficientemente alta para ser escolhida como negcio entre outros possveis.

    Faz uma avaliao privada custo-benefcio de curto ou mdio prazo.

    Nos dois casos, seguramente com grau de diferente importncia, se foi avanando na

    utilizao de insumos, com objetivo de melhorar a produtividade por unidade de superfcie. O

    pool alm, se esfora em diminuir a intensidade da utilizao da mo de obra. A mesma

    propriedade em termos jurdicos, a mesma localizao, mas os efeitos econmicos sociais e

    ambientais so diferentes.

    Enquanto o av do produtor familiar usava a terra de um modo, seu neto usava a terra

    com uma maior intensidade, assim como tambm o ar e gua. Pega mais energia proveniente

    de outras fontes (maiores insumos) e gera mais resduo. Para usar a terra usa tambm

    capacidade de carga de outros lugares (alta mecanizao), emite mais gases na atmosfera

    (combusto por mecanizao e tambm pecuria intensiva), pega mais gua (rega) e

    devolvem maiores resduos (uso de agro-qumicos). A menor ocupao desloca a populao

    rural para as cidades (pressionado por trabalho, moradia, sade, educao, etc.) e o pessoal

  • 21

    que ocupa, requer maiores estudos (aprovisionados em grande parte pelo investimento do

    Estado e outras famlias).

    O pool, contudo, trabalha em grande escala, com maiores possibilidades de

    financiamento e procurando altas rentabilidades em curto prazo.

    V a natureza como capital, no como patrimnio, e no pem em produo terras das

    margens, que podem produzir em curto tempo, porm a longo tempo perdem a fertilidade.

    Este o caso do avano do cultivo da soja em rea de matas e florestas.

    Mais alm de que as terras sejam compradas ou alugadas, a gesto nas mos do pool

    tem um alcance diferente sobre os ecossistemas, que acontece do uso para o qual se destinam

    as terras e das formas de produo; e que tambm dependem das dinmicas econmicas,

    polticas e sociais nas quais se desenvolvem.

    Poder-se-ia dizer que o mesmo regime de propriedade, no mesmo pas, na mesma

    poca, sobre a mesma terra, pode dar espao a uma apropriao diferente da natureza com

    impactos ambientais e sociais muito diferentes.

    A tcnica no responsvel se no um instrumento de dominao e controle da

    natureza, cada vez mais poderoso nas mos de sujeitos decisres (empresrios e governantes).

    Mas controla o processo produtivo no em sua totalidade, se no no que de interesse para

    quem a demanda (o mercado ou eventualmente o Estado). Para isto o processo produtivo

    tambm deve fragmentar-se e deixar dentro do negcio as etapas que no o ponham em risco

    como tal. Fica de fora o que a economia ambiental chamaria de externalidades e a respeito das

    quais propem uma soluo que as internalize.

    Isto possvel na sua totalidade, j que muito dos efeitos colaterais so

    incomensurveis. Mas, alm disso, internalizar todas as externalidades entraria em

    contradio com o regime atual de propriedade; j que colocaria em evidncia que o uso

    privado de alguns recursos se realiza de tal forma; que avana sobre outros que so de

    propriedade de outras pessoas, so pblicos ou so comuns e ainda mais, no s dos vizinhos

    imediatos seno de outros mais longe. A contaminao do ar por uma explorao produtiva,

    na prtica um avano na propriedade de alguns sobre a propriedade de todos. Um

    cerramento do ambiente. Mais sutil, porm mais profundo que o cerramento de arame.

    Poderamos ento imaginar um cenrio no demasiado longe, no tempo onde j no

    fosse necessrio para os capitalistas ter a propriedade da terra, se conseguir ser os

  • 22

    proprietrios das sementes e controlar os mercados. Afinal, as novas capacidades da tcnica

    do um sentimento novo propriedade.

    At onde o direito de propriedade d o direito de dispor? Ou, quais so seus limites?

    Alguns so timidamente declamados, da apelao funo social; doutrina sustentada

    pela igreja, at regulamentaes internacionais e nacionais. O direito d as ferramentas, desde

    a denncia por danos e prejuzos de particulares, at as denuncias ambiental e algumas formas

    de implementao do direito de precauo. Mas as evidncias mostram que os processos

    produtivos, que produzem os problemas ambientais levam um ritmo extremamente rpido

    comparado com o ritmo das regulamentaes.

    Corresponde perguntar se essa grande disparidade, entre as possibilidades e ritmos das

    regulamentaes, uma fenda insalvvel, pode ser diminuda ou, pelo contrrio, as segundas

    existem para processar os conflitos e legitimar os modelos de desenvolvimentos existentes.

    Na raiz dos problemas ambientais tem uma apropriao de capacidade de carga por

    cima dos ritmos da natureza, e isso acontece na medida em que a disposio que se faz da

    mesma, supera os limites ecolgicos e a capacidade de resilincia. O uso o determinante e,

    dentro do capitalismo a propriedade privada e as regulamentaes institucionais delimitam o

    alcance desse uso.

    Melhorar a qualidade das regulamentaes e priorizar a precauo, tratando de

    substituir polticas ex-post por ex-ante poderiam regular os usos com maior eficcia, mas

    supem uma redefinio do conceito fortemente arraigado de propriedade como direito

    irrestrito sobe um objeto tangvel. Nesse sentido, alguns autores visualizam formas

    alternativas de desenvolvimento guiado por formas diferentes de apropriao. Neste sentido

    Leff diz:

    El movimiento ambiental no slo transmite los costos ecolgicos hacia el sistema econmico como una resistencia a la capitalizacin de la naturaleza, a travs de una lucha social para mejorar las condiciones de sustentabilidad y la calidad de vida, sino que conlleva un proceso de reapropiacin de la naturaleza por la sociedad. Este movimiento social no solamente incrementa los costos ecolgicos del capital, sino que tambin reduce la parte de la naturaleza que podra ser apropiada por el capital. (LEFF, E., 1995, p. 65)

  • 23

    1.3.3 A Cincia como instrumento ao servio do domnio da Natureza.

    Hans Jonas adverte que: deveramos manter-nos abertos idia de que as cincias

    naturais no dizem toda a verdade sobre a natureza. (JONAS, 1995, p. 35).

    O saber extensivo, caracterstico da cincia moderna, no no-cientfico, ou

    obscurecedor de si prprio, seno enquanto pega o espao de um entendimento completo,

    ignorando as variveis e a relaes excludas do recorte inicial e produzindo uma interveno

    no s no desenvolvimento tecnolgico o qual pode dar lugar, seno na reduo do campo

    terico a uma parte do objeto. O que no se v, ou que se descarta deliberadamente, existe e

    essa existncia se faz visvel quando os resultados desse entendimento extensivo e suas

    aplicaes tecnolgicas nos sistemas sociais e s ecolgicos mostram os no desejados.

    A legitimidade do valor do controle da natureza em parte se sustenta em recortar os

    sucessos no controle, dos efeitos negativos estes so maiores na medida em que aumenta a

    fenda entre os ritmos da interveno e os ritmos da natureza.

    A tcnica passou de ser um cuidar e preparar para um desafiar a natureza

    (HEIDEGGER, p. 57), ou, como diria Jonas de um:

    dosificado tributo pagado a la necesidad, un medio con un grado finito de adecuacin a fines prximos bien definidos, a ser: un infinito impulso hacia delante que en el continuo progresar intenta ver la misin de la humanidad (...). As el xito del homo faber no es slo sobre el objeto externo que intenta dominar sino al interior del homo sapiens. (JONAS, 1995, p. 36)

    J Weber (1996) indica a perda do sentido que significa a desdivinizao da sociedade

    e a natureza e a racionalizao da cultura, a economia e a sociedade.

    Enquanto a religio implica uma cosmoviso do mundo que confere sentido

    realidade, a cincia no pode ocupar esse espao porque instrumental. A substituio de

    uma racionalidade dos fins por uma racionalidade dos meios, significa uma perda do sentido;

    porm serve procura dos bens materiais, pode converter-se numa perda da liberdade. O

    poder do controle sobre a natureza libera os homens das foras naturais e divinas, mas a

    racionalidade instrumental os transforma em escravos da sua prpria criao. (SELL, 2001, p.

    127-130).

    Os graves problemas ambientais atuais mostram o sentido limitado dessa liberao

    das foras naturais. A racionalidade que coloca o controle e domnio sobre a natureza como

  • 24

    eixo, permitiu antes um impensado desenvolvimento tecnolgico e o efetivo domnio de

    alguns processos, no libertou humanidade das foras da natureza.

    Por um lado, ainda que, por exemplo, facilitou o aumento da produtividade e a

    produo de bens e servios que permitiriam a satisfao da necessidade. Uma evidncia disto

    fome de parte da populao de pases exportadores de alimentos.

    Por outro lado, ainda que tenham contribudo, para proteger o homem de algumas

    ameaas da natureza, as evidncias mostram que a mesma civilizao tecnolgica que

    conseguiu um aparente e fragmentrio domnio sobre a mesma, produz novas e mais graves

    ameaas.

    El movimiento del saber humano en forma de ciencia natural que ha puesto a nuestra disposicin esas fuerzas cuya utilizacin tiene ahora que ser regulada por normas es el mismo movimiento que, por una forzosa complementariedad, ha desterrado los fundamentos de los cuales podran derivarse normas (JONAS, 1995, p. 58).

    Assim o mencionado autor, questiona a capacidade da cincia baseada exclusivamente

    na racionalidade instrumental para colaborar com a resoluo dos problemas ambientais.

    O aumento da capacidade de interveno humana sobre a natureza, requer uma tica

    que no pode fundar-se numa racionalidade meramente instrumental, numa cincia orientada

    pelo valor de domnio da natureza.

    1.3.4 Os critrios de valor como orientao de investigao e como objeto de estudo.

    Lacey (1998) analisa a relao entre valores sociais e atividade cientfica, mostrando

    como a forma hegemnica de relacionamento com a natureza, o domnio ou controle,

    assumida como valor social, orienta a cincia moderna. Desempenha um papel central na

    eleio das teorias cientficas e se autolegitima pelos resultados aplicados na tecnologia.

    Para a cincia instrumental O objetivo da cincia e representar (em teorias

    racionalmente aceitveis) as estruturas, processos e leis subjacentes aos fenmenos e, a

    partir disso, descobrir novos fenmenos. (LACEY, 1998, p. 69).

    Considerando esse objetivo, a eleio de teorias cientficas circunscreve-se no que

    Lacey chama de estratgias materialistas, pode-se dizer, as teorias cientficas que representam

  • 25

    objetos s em termos de estruturas e componentes, que interagem entre si em funo das leis

    formuladas em termos matemticos abstrados de contextos sociais e ecolgicos. So

    estratgias de restrio/seleo que usam exclusivamente categorias materialistas e

    selecionam s dados que podem ser medidos. Deste modo o poder explicativo destas teorias

    limita-se a alguns processos.

    Lacey se pergunta:

    Por que tentamos entender os objetos naturais mediante prticas cognitivas que os abstraem dos contextos das prticas humanas em geral e de seus papeis na experincia ordenaria e, assim, das possibilidades que lhe so abertas nesses contextos? (LACEY, 1998, p.70).

    O autor nega que esse caminho permite alcanar um suposto conhecimento da

    realidade para si. Utilizando o exemplo de uma flecha, sustenta que dentro de estratgias

    materialistas poderia explicar-se a fora, direo, velocidade etc., mas nos outros aspectos que

    acontecem de sua condio de objeto cultural num contexto humano, por ex: por que foi

    atirada contra certo alvo. (LACEY, 1998, p.70)

    Este tipo de estratgia de restrio e seleo que se chama estratgia materialista

    orienta-se pela supremacia de um valor que no somente cognitivo seno social: o valor do

    controle da natureza.

    Lacey analisa criticamente as propriedades com as quais supostamente legitima-se o

    conhecimento cientfico como algo essencialmente livre de valores: imparcialidade,

    neutralidade e autonomia. Reconhece a imparcialidade como uma caracterstica necessria e

    possvel para qualquer entendimento cientfico, mas nega a neutralidade.

    Bem so os valores cognitivos os que definem que uma teoria possa ser considerada

    cientfica, mas nega a existncia e o peso dos valores sociais no momento da eleio de

    estratgias.

    Enquanto as estratgias materialistas esto basicamente originadas na supremacia do

    valor de controle, do lugar a um conhecimento e extensivo que de forma geral a base de

    desenvolvimentos tecnolgicos, outro modelo de estratgias de restrio e seleo possvel e

    necessrio; no quadro de eleies de teorias cientficas orientadas por outros valores que no

    excluem o social e ecolgico e desejam um entendimento completo.

    Lacey prope uma definio mais ampla do objetivo da cincia, que contm a

    anterior:

  • 26

    O objetivo da cincia sintetizar (confiavelmente, em teorias racionalmente aceitveis) as possibilidades de um domnio de objetos e descobrir meios para a realizao de algumas das possibilidades at agora no realizadas (LACEY, 1998, p. 71).

    Assim, poderia estudar um objeto que s pode ser descrito quando no lhe abstramos

    de seu contexto, humano, social, ecolgico.

    O autor entende que o carter cientfico de uma teoria, o que faz que seja

    racionalmente aceitvel, no a observncia de regras seno o grau em que manifestam

    valores cognitivos (independentes de outros valores). Lacey, resumindo a colaborao de

    vrios autores (MC MULLIN, 1983; 1984; 1996; KHUM, 1977), menciona: adequao

    emprica, consistncia, simplicidade, fecundidade, poder explicativo e certeza (LACEY, 1988

    p. 62-64). Estes valores cognitivos, iguais a outros valores, aparecem-nos diferentes graus e

    hierarquias podendo variar a relevncia de uns ou outros em relao ao objeto de estudo.

    Entre outros valores, a adequao emprica, querendo dizer, o ajuste entre os dados

    empricos e a teoria, desafia-nos a pensar sobre o que consideramos dados empricos ou

    observaes.

    Entretanto a cincia moderna tende a considerar como tal, o que pode ser replicado

    num experimento, (pode-se dizer, em certas condies fechadas diferentes da experincia

    ordinria) e medido:

    () tais constataes so abstradas do grande nmero de descries diferentes que poderiam ser dadas para os mesmos fenmenos, se eles fossem direta e explicitamente vinculados s prticas humanas, bem como ao seu lugar s suas conseqncias em sistemas sociais e ecolgicos embora se pode facilmente relatar constataes observacionais intersubjetivamente confirmveis que no abstraem os fenmenos de tais vnculos (LACEY: 1998 p.67).

    Neste sentido, e dado o propsito de estudar o papel dos critrios de valorao da

    natureza num conflito ambiental, cabe fazer algumas precises. Poderamos distinguir trs

    planos, o da eleio do tema orientado pelos valores de quem escreve o dos valores em

    relao com a atividade cientfica, e o dos valores como objeto de estudo.

    No primeiro nvel, cabe dizer que a eleio do tema deve-se convico de que tem

    mxima relevncia tica: o valor da natureza um tema central para construir como indica

    Hans Jonas (1995), uma tica de responsabilidade, apropriada s novas capacidades de

    interveno humana merc tica.

  • 27

    Num segundo nvel, a eleio de uma estratgia de restrio/seleo de teorias de

    dados a observar respectivamente, no se orienta pelo valor de controle da natureza e pelo

    contrrio, pretende um entendimento completo do fenmeno estudado, inserido nas prticas

    humanas. Por tanto assume como valor o equilbrio com a natureza.

    No terceiro nvel, os critrios de valorao da natureza na sua relao com o conflito

    ambiental constituem o objeto de estudo.

    Parte-se de reconhecer a existncia uma pluralidade de valores possveis, diversas

    formas de relacionamento sociedade-natureza e, por enquanto, a estratgia desta pesquisa no

    poderia adequar-se a estratgias materialistas que se reduzem a de domnio. No se deseja um

    entendimento extensivo, por que no daria conta do objeto.

    Pelo contrrio, pretende-se contribuir para um entendimento completo, pode-se dizer,

    a um conhecimento que longe de obstruir o fenmeno estudado das praticas sociais e os

    sistemas ecolgicos e sociais no que est includo, tente compreender-lhe dentro dos mesmos.

    A pluralidade de valorao da natureza no um valor social prvio e orientador da

    eleio da estratgia. Alm disso, neste caso, faz parte do objeto de estudo, entretanto propor-

    se a explorar o real dos critrios de valorao da natureza num conflito ambiental.

    Pode-se dizer, em tanto valor social prvio influncia a eleio da estratgia de

    restrio e seleo, e fundamenta a investigao.

    Num segundo momento, no desenvolvimento da investigao, os critrios da

    valorao da natureza so partes do objeto de estudo.

    1.3.5. Por que estudar os critrios de valorao da natureza num conflito?

    Porque um conflito os revela, desoculta, pe em discusso e traz para a luz as

    diferentes valoraes da natureza. Agora, s expressa a existncia dessa pluralidade ou a

    mesma parte, constitutiva do conflito? Quais so as relaes entre os critrios de valorao

    da natureza e o conflito?

    Tentando achar alguma resposta a esta pergunta, em primeiro lugar procura-se uma

    forma de abordagem terica que permita dar conta das mltiplas relaes envolvidas no

    conflito a estudar, e sua relao com os critrios de valorao da natureza.

    Neste sentido se trabalhar a partir da perspectiva que aborda problemticas

    ambientais como sistemas complexos. Tomando como referncia Rolando Garca (1994,

  • 28

    2000). Para que as problemticas complexas, nas quais esto envolvidos o mdio fsico-

    biolgico, a produo, a tecnologia, a organizao social, a economia:

    se caracterizan por la confluencia de mltiples procesos cuyas interrelaciones constituyen una estructura de un sistema que funciona como una totalidad organizada a la cual llamamos sistema complejo (GARCA, 1994, p. 85).

    O princpio bsico que toda alterao num setor propaga-se de diferentes modos

    atravs do conjunto de relaes que definem a estrutura do sistema e, em situaes crticas

    (baixa resilincia), gera uma reorganizao total. As novas relaes (e a nova estrutura que

    emerge dali) implicam tanto modificaes dos elementos como do funcionamento do sistema

    total. Pode-se dizer; a caracterstica determinante de um sistema complexo a

    interdefinibilidade e mtua dependncia das funes que cumprem ditos elementos dentro do

    sistema total (GARCIA, 1994, p. 86).

    O autor, desde uma posio antiempirista, (no antiemprica j que pretende um

    conhecimento que seja constatvel empiricamente), relembrando a Russel Hanson (1958)

    enquanto toda experincia est cardada de teoria apoiado na psicologia gentica de Piaget,

    nega a existncia de observveis puros e sustenta que: todo observable, an aquellos que

    parecen provenir de la percepcin directa de las propiedades elementales de los objetos,

    suponen una previa construccin de relaciones por parte del sujeto (GARCA, 2000, p.

    384).

    Deste modo, o sistema complexo, que como se diz, no est dado, constri-se. A teoria

    a que faz inteligveis os fatos e permite organiz-los e explic-los.

    Assim:

    El punto de vista segn el cual las relaciones causales se establecen en el nivel terico (aunque puedan ser sugeridas por la experiencia) tiene fundamental importancia para la prctica de la investigacin cientfica. Significa reconocer que las relaciones entre observables (o entre hechos) no surgen de la simple evidencia emprica. (GARCA, 2000, p. 388-9).

    O investigador no est com um sistema dado para analisar. Uma parte fundamental

    do esforo de investigao e a construo do sistema, como recorte mais ou menos arbitrrios

    de uma realidade que no se apresenta com limites nem definies precisas.

  • 29

    Para Garcia, esta construo do sistema no outra coisa que a construo de

    sucessivos modelos que representam realidade que se pretende estudar. Um processo de

    aproximaes sucessivas. O teste para saber se chegou a uma definio satisfatria s pode

    basear-se na sua capacidade explicativa:

    Un sistema estar definido solamente cuando se haya identificado un nmero suficiente de relaciones entre cierto conjunto de elementos, que permitan vincularlos con referencia al funcionamiento del conjunto como totalidad (GARCA, 1994, p. 100)

    A anlise das inter-relaes que acontecem num sistema complexo entre os processos

    que determinam seu funcionamento requer de uma abordagem interdisciplinar orientado pelo

    objetivo de chegar a uma interpretao sistemtica da problemtica original que apresenta o

    objeto de estudo.

    Esta abordagem supe tambm o reconhecimento da existncia de processos de

    diferentes nveis. Os bsicos ou os de primeiro nvel (em geral os efeitos no meio fsico e

    sociedade na esfera local), os de segundo nvel ou meta-processos (que influenciam sobre o

    primeiro nvel); ao mesmo tempo, influenciados pelos processos do terceiro nvel (nacionais e

    globais). Estes nveis de processos requerem no mesmo tempo, nveis de anlises

    correspondentes. (GARCIA, 2000, p. 397-8).

    Os sistemas complexos:

    Se comportan como totalidades compuestas de subsistemas (...) Llamaremos funcionamiento del sistema al conjunto de actividades del sistema como un todo y funcin a la contribucin de cada elemento o subsistema al funcionamiento del sistema. (GARCIA, 1994, p. 99)

    No presente trabalho, nos casos estudados pode-se distinguir subsistemas: fsico,

    econmico, tcnico, sociocultural, jurdico, poltico. Mais alm, se explorar o rol dos critrios

    de valorizao da natureza no conflito ambiental. Nesse sentido procura-se no s analisar o

    rol destes critrios de valorizao em cada sistema, seno a mesma possibilidade de

    identificar e delimitar um subsistema de valores.

    Tenta-se alm, explicar a relao com a conformao de espao, entendido como um

    conjunto indissocivel de sistemas de objetos e sistemas de aes (SANTOS, 1997, p.18).

  • 30

    Relembrando com este autor que Toda situao uma construo real que admite

    uma construo lgica, cujo entendimento passa pela historia de sua produo (SANTOS,

    1997, p. 40) faz especial insistncia na histria dos conflitos estudados.

    Neste sentido, tambm se levam em conta s informaes de Downs (1972) para

    analisar a ateno pblica na relao sobre os conflitos estudados, resumidos muito

    esquematicamente no quadro seguinte.

    Quadro No 1. Etapas da Evoluo do Conflito. (Downs, 1972)

    Ateno do pblico

    Cenrio anterior ao

    conflito

    Alarmado descobrimento e confiana na

    soluo

    Dar se conta do custo de

    solucionar o conflito

    Declnio gradual da

    intensidade do interes pblico

    Etapa posterior ao auge do

    conflito

    O problema existe y no

    tem captado o interes do

    pblico

    Empiora

    Toma de conscincia sobre sua

    importncia Confiana na capacidade de resolver lho

    Contradies entre grupos,

    com padres de comportamento

    e com condies

    estruturais da economia

    Generaliza-se a compreenso

    das dificuldades e os custos: Desalento, Ameaas,

    Aborrecimento

    Cai a ateno pblica

    pero ficam os avances,

    institucionais programas, etc.,

    gerados em relao ao conflito.

    Fonte: elaborao prpria com base em Downs (1972)

    Compreendendo que a coerncia interna da construo terica depende do grau de

    representatividade dos elementos analticos perante o objetivo estudado (SANTOS, 1997,

    p. 20), considera-se importante para este trabalho construo de uma tipologia de critrios

    de valorizao da natureza que possa ser operacionalizada no estudo dos casos. A mesma ser

    exposta no Capitulo 4.

    Evoluo do conflito na ateno pblica

  • 31

    1.4 Algumas ferramentas conceituais para caracterizar um conflito ambiental.

    Henri Acselrad define os conflitos ambientais da seguinte forma:

    So aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriao, uso e significao do territrio, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriao do meio que desenvolvem ameaada por impactos indesejveis -transmitidos pelo solo, gua, ar o sistemas vivos- decorrentes do exerccio das praticas de outros grupos. (ACSELRAD, 2004, p. 26).

    Para o autor a disputa pela mesma base material de atividade ou bases diferentes, mas

    interligadas nos ecossistemas originam os conflitos. Estes tm quatro dimenses constitutivas,

    a prpria permite aprender dinmica conflituosa inerente aos diferentes modelos de

    desenvolvimento.

    Para Acselrad, o modelo progressista e o fordismo perifrico aplicado no Brasil

    tiveram altos impactos nos ecossistemas; os quais aconteceram como conflitos ambientais

    depois da ditadura, com a denncia da degradao da base material de produo, a perda de

    produtividade e a acentuao do padro de desigualdade de poder sobre os recursos

    ambientais. Isto se d junto com a tendncia especializao de pores de territrio includa

    no mercado mundializado, no qual se completam das concepes de natureza, uma para

    conservar (como estoque de recursos genticos) e outra exposta a atividade econmica

    segundo valores como eficincia e capacidade competitiva. (ACSELRAD, 2004, p. 28)

    A descrio de Acselrad em relao concepo da conservao da natureza como

    uma forma de especializao e insero internacional de parte doa territrios da periferia,

    poderia acrescentar-se que no se trata s de preservar um estoque de recursos genticos,

    seno de servios ambientais em geral e tambm de guardar recursos para a demanda futura

    (Ex: gua / energia).

    Mais que o valor de existncia, a conservao do valor de uso direto e indireto e o

    valor de opo parecem predominar em vises que poderiam disfarar na defesa da

    sustentabilidade, diferentes estratgias de longo prazo de conotaes econmicas e

    geopolticas que seria importante elucidarem.

    Enquanto a natureza como base de atividades econmicas desenvolvida sob os valores

    de eficincia e competitividade, poderia dizer em primeiro lugar que esta tendncia dos anos

    noventa no realmente nova seno uma re-elaborao da clssica teoria ricardiana das

    vantagens comparativas. Este remake encontra amplo sustento poltico em alguns setores

  • 32

    econmicos e polticos dos pases da regio formados ideologicamente ao calor dos benefcios

    econmicos obtidos nas etapas primrias exportadoras e pelo amparo do protecionismo

    frvolo (FAJNSYLBER, 1984) da etapa seguinte que contriburam a consolidar uma lgica

    mais rentvel que produtiva.

    A utilizao da renda diferencial e a extrao de recursos naturais tm alicerado o

    poder dos grupos dominadores desde os princpios dos estados latino-americanos e ainda

    durante o processo de industrializao substitutiva e na etapa neoliberal, quando as atividades

    mais dinmicas respectivamente so as indstrias, as atividades financeiras e servios. Esta

    estabilidade das atividades ligadas exportao de recursos naturais acontece no de sua

    contribuio ao produto bruto (declinante), seno da sua condio de principais fornecedores

    de divisas.

    A prioridade das exportaes retro alimenta a prioridade da economia, j que a

    necessidade de divisas leva supervalorizao da importncia das atividades primrias no

    modelo de desenvolvimento.

    Pode-se dizer como destaca Acselrad, se a natureza incorporada na tendncia

    especializao de pores de territrio includas no mercado globalizado, mediante atividades

    econmicas orientadas por valores como eficincia e capacidade competitiva; no interessa

    tanto para os paises, o que e como querem produzir, desde suas prprias possibilidades e

    condies, seno de todo o que poderiam produzir o que poderiam vender no mercado

    externo.

    O conceito de eficincia fica reduzido e subsumido capacidade competitiva.

    O que podem fazer to eficientemente para poder competir no mercado externo?

    Existem outros parmetros de eficincia, tantos como objetivos puderam estabelecer-se. Por

    exemplo, a procura de sustentabilidade, supor outros critrios de eficincia como minimizar

    impactos ambientais, aumentar a capacidade de incluso social, etc.

    O neoliberalismo soube impor e naturalizar alguns discursos. Um deles

    precisamente a identificao da eficincia com a capacidade de vender no mercado externo e

    outro, tambm de grande peso na construo de um imaginrio, a associao entre atrao

    de capitais externos e desenvolvimento. Veremos no captulo 3 quanto destes discursos tm a

    ver com a breve evoluo das crises dos anos 70, das idias monetaristas e particularmente

    nos pases perifricos, do enfoque monetrio da balana de pagamentos.

    As polticas neoliberais concentram-se em produzir reformas estruturais, gerar

    confiana e aumentar a capacidade de cada pas na luta pela atrao de capitais estrangeiros.

  • 33

    Isto, como vem, d lugar a um processo de desregulamento (ou de outros modelos de

    regulamentaes) geral e setorial, e a flexibilizao laboral e ambiental como precondies

    para fazer mais atrativo o pas para os investidores.

    Assim, segundo Acselrad, nos anos 90 a flexibilizao de normas ambientais e a

    fragilizao das instituies de aplicao e controle contribui para uma crescente emergncia

    de conflitos:

    Tais conflitos, tm sido constrangidos pelo estreitamento dos espaos para sua politizao () Sob o argumento da necessidade de produzir divisas a qualquer custo e de privilegiar os consensos, elemento essencial das polticas de atrao dos investimentos internacionais. Neste modelo as diferenas de projetos so ofuscadas em aras da unidade na competio pelos capitais e os conflitos como os evidenciados pelas populaes atingidas pela extenso da monocultura para exportao, apresentada como restries ao desenvolvimento. Mais os conflitos ambientais por ds-regulao ganham espao na cena publica, pressionam ao Estado a limitar a colonizao do ambiente e resistem os modelos de desenvolvimento baseados na exportao de recursos naturais. (ACSLERAD, 2004, p. 28-29, Resenhado por FERNNDEZ EQUIZA, 2006).

    Santandreu e Gudynas (1998) entendem por conflito ambiental a um modelo particular

    de conflito social expressado como ambiental pelos prprios atores. Os autores partem de

    repassar diferentes formas de entender os conflitos, os quais concordam em reconhec-los

    como formas de interao social, que supem enfrentamentos, mas os explicam de modo

    diferente. Como contribuies de classe, desde perspectivas marxistas; disputa por recursos

    escassos; disputa por vantagens individuais, que levada adiante por um grupo numeroso pode

    apresentar-se como luta pelo bem comum, parte das mudanas estruturais prprias de

    processos de modernizao; parte integral da prpria dinmica social ou ao coletiva

    contenciosa (SANTANDREU E GUDYNAS, 1998, p.30-31).

    Entre os aspectos principais, os autores destacam que o conflito um processo. No

    esttico e possui um desenvolvimento temporrio com modificaes e mudanas. Este

    processo desenvolve-se no mbito pblico e envolve aes coletivas. Assim, o conflito

    ambiental resulta de posturas opostas, como se percebe o ambiente, nos valores que se atribui

    ao entorno e as relaes do ser humano com este, e nos significados que revestem as aes

    sobre o meio. Alude a uma dinmica de oposio e controvrsia, disputa ou protesto entre

    atores que se reconhecem em oposio, mais alm de que considerem legtimos ou atendveis

    as reclamaes. (SANTANDREU E GUDYNAS, 1998, p. 32-33).

  • 34

    Assim, podemos sintetiz-lo da seguinte forma:

    Requadro No 1: Componentes de um conflito ambiental

    Dimenso temporal

    mbito pblico

    Aes coletivas

    Diferentes valores, percepes ou significados de aes ou circunstncias que afetam, ou

    podem afetar o meio ambiente.

    Dinmica de oposio

    Reconhecimento dos atores em oposio

    FONTE: Elaborao prpria com base em Santandreu e Gudynas (1998).

    Existem processos que no chegam a ser conflitos por que faltam algumas

    destas caractersticas.

    Os motivos da disputa neste modelo de conflitos so os impactos ambientais, pode-se

    dizer que so as modificaes sobre os componentes fsicos e biolgicos do ambiente e a

    valorizao social que se faz deles. Pode ocorrer que alguns autores mencionem a sua

    gravidade e outros o minimizem e/ou reconheam os impactos, existindo diferentes opinies a

    respeito de como enfrent-los.

    O reconhecimento da existncia ou a magnitude dos impactos uma questo no

    somente tcnica seno tambm cultural e poltica. Existe um poltico do conflito3, pode-se

    dizer um mximo tolervel para cada impacto por debaixo do qual possvel continuar a

    atividade e por cima do mesmo se faz uma valorizao negativa e se fala de dano ambiental.

    Mas as valorizaes so diferentes segundo os atores. (SANTANDREU E GUDYNAS, 1998,

    p. 34).

    Existem diferentes modelos de conflitos ambientais: manifestos (expresso concreta da

    disputa e posio no presente) ou latentes (alguns dos autores no se expressam ainda que

    tenha impacto); de fato (a atividade geradora de dano est em pleno desenvolvimento) ou

    espreita (a atividade geradora no se acha presente, s anncio ou possibilidade); simtricos

    ou assimtricos (acesso similar ou no de todos os atores a provas tcnicas, mecanismos

    jurdicos e legais a meios massivos de comunicaes, etc.). (SANTANDREU E GUDYNAS,

    1998, p. 34).

    3 Em cursiva no original

  • 35

    Os autores usam quatro categorias de atores do conflito, trs pegadas de Padilha e San

    Martin (1996): receptor (conjunto de pessoas fsicas e jurdicas afetadas direta ou

    indiretamente por um impacto ambiental), o gerador (grupo cuja ao ou omisso ameaa ou

    ocasiona um impacto ambiental) e regulador (grupo ou pessoa jurdica que tem por encargo

    regular a gesto dos bens ambientais). A estas lhe somam a categoria de iniciador (conjunto

    de pessoas fsicas ou jurdicas que informadas do impacto ambiental iniciam e desenvolvem o

    conflito). Pode coincidir ou no com o receptor. (SANTANDREU E GUDYNAS, 1998, p.

    46).

    Tendo definido como um processo, pode analisar-se seu desenvolvimento temporal em

    trs momentos: incio, desenvolvimento e finalizao. (Ver Quadro N 2 no final deste

    captulo)

    A partir da anlise de um cmulo de conflitos ambientais no Uruguai, os autores

    sustentam que o estado mais que tentar a soluo dos mesmos em suas razes, tende a

    conseguir sua resoluo no processo e controle das reclamaes. Os autores, como fator

    explicativo destaca a tendncia dos estados a no tomar novas reas sob sua gesto direta,

    seno incluindo de reduzir-se em seu acionar, com transferncia aos prprios indivduos ou

    suas organizaes na espera pblica no estadual (SANTANDREU e GUDYNAS, 1998,

    p.89).

    A ao do governo perante os conflitos descrita com denominao de Estado

    Tampo que engloba diferentes variantes como o encaminhamento administrativo (baseado

    em condicionamentos formais, por exemplo: requisito de pessoa jurdica, registros de ONG,

    etc.), exigncia de prova tcnica (o estado pede fundamentao tcnica de reclamao, s

    vezes custoso para quem reclama, e se consegue declarar empate entre duas formas de

    abordar o problema, reconhecidas igualmente como vlidas4, partes da biblioteca). Tambm a

    contaminao partidria (argumentar que a reclamao encobre um ataque do partido

    contrrio) ou a legitimao condicionada (reconhecer os movimentos sociais, mas

    deslegitimar as seus porta-vozes).

    Segundo os autores, os meios de comunicao tm um papel importante no processo

    de controle e encaminhamento dos conflitos, porque eles mesmos sofrem esses processos e

    por interesse das prprias empresas. Isto no se faz explicitamente e tambm no explica

    todas as deficincias da informao j que tambm influencia na existncia de valorao dos

    temas ambientais como no prioritrios, o conhecimento insuficiente ou inadequado sobre os

    4 freqente que esta situao descreva-se como a metade da biblioteca avalia uma posio e a outra metade uma posio diferente.

  • 36

    mesmos e um manejo diferencial que tende a dar maior presena s posies oficiais.

    (SANTANDREU E GUDYNAS, 1998, p. 92-94).

    Neste sentido, vale citar que o papel dos meios diferente em diferentes pases. No

    caso da Argentina, bem certo que a descrio anterior lhe vale a uma parte importante dos

    meios de comunicao, existem no somente meios alternativos seno programas dentro

    daqueles de maior alcance com forte presena de temas ambientais e um tom crtico.

    (Exemplo: La Liga) uma importante audincia sustenta a existncia de vrios espaos para a

    periodicidade da investigao em geral, dentro dos quais, os conflitos ambientais tm vindo

    adquirir crescente centralidade.

    Com respeito cincia e os modelos de desenvolvimento existem concepes muito

    arraigadas tingidas por uma viso fortemente instrumental que pensam natureza quase

    exclusivamente como fonte de recursos naturais, a serem aproveitados em virtude do

    progresso material, minimizando os impactos ambientais e/ou crendo que a cincia e a tcnica

    podero remedi-los.

    Santandreu e Gudynas sustentam a existncia de racionalidades cruzadas e de dois

    mbitos delimitados em relao ao conflito ambiental, um estatal e outro em mbito poltico

    no institucionalizado, alternativo ao estatal gerado pela sociedade civil. Existe uma clara

    assimetria entre os dois, j que o primeiro quem outorga um quadro de legitimao e

    legalidade, no entanto os movimentos sociais conseguem incluir temas na agenda e influir nas

    decises. A importncia alcanada pelas ONGS pode motivar que o estado e os partidos

    polticos tentam criar organizaes no governamentais a sua imagem e semelhana como

    mecanismos para facilitar a marginalizao de alguns movimentos sociais. (SANTANDREU

    e GUDYNAS, 1998, p. 96-97).

    Aqui, na hora de denominar racionalidades diferentes vale incorporar uma preciso

    realizada pelo Engenheiro Oscar Nigro (entrevista, 2006), racional o processo, portanto a

    diferena no uma questo de grau. Pode e de fato existem, processos igualmente racionais

    que chegam a diferentes concluses porque partem de uma eleio e recorte de variveis

    orientadas por objetivos e motivaes diferentes.

  • 37

    Quadro N. 2 Desenvolvimento Temporal de um Conflito Ambiental

    Incio

    Ato voluntrio que realiza um dos atores pelo qual manifesta sua oposio no terreno pblico realizao, ou anncio de realizao, de uma atividade que a sua opinio ocasiona ou pode ocasionar um impacto ambiental negativo. Pelo geral os afetados ou o estado (SANTANDREU e GUDYNAS, p. 36).

    Desenvolvimento

    Fugaz: (no dura por que o impacto ocorre em curto tempo, rpida ao de regulador, ou dificuldades para organizao vicinal). Dilatado: (tende a durar. Pode dever-se a ausncia de normativa ambiental precisa, debilidade do regulador, energia dos grupos cidados). Intermitente: (intervalos de ausncia de ao, variam durao e intensidade). Recorrente: Intermitncia em forma regular. (Associado a atividades de zafra). Endmico: Dinmica cclica onde pelo menos um dos atores procura manter o conflito para si prprio j que esto desenvolvendo estratgias de acumulao favorecidas pela existncia do conflito. (PADILLA e SAN MARTIN, 1996).

    Finalizao

    Soluo: Quando a causa est erradicada, ou os danos reparados e a atividade questionada deixam de ter lugar.

    Negociada Por alterao do projeto Por estabelecimento de prazos Por via Administrativa Por via Judicial Forada

    Resoluo de conflitos: Finalizao pelo acordo entre os atores deixando de lado a disputa, mas onde no se anule a ao causadora do suposto dano ambiental e/ou no se repara o dano ambiental. (PADILLA e SAN MARTIN, 1996).

    Por entrega de compensaes: entrega aos receptores por parte do ator gerador, de uma compensao material com o objetivo de pr fim s hostilidades. Pode ser produto de acordo de partes ou interveno de poderes pblicos (legislativo ou judicirio).

    Por alterao do projeto Por estabelecimento de prazos Por via Administrativa

    Desvanecimento: Um dos atores (pelo geral o receptor) deixa de atuar no espao pblico e para suas aes ainda que os impactos que o motivaram persistam. (SANTANDREU e GUDYNAS; 1998. p. 46).

    Fonte: Elaborao prpria em base a Santandreu e Gudynas (1998)

  • 38

    CAPTULO 2

    ________________________________________________________________

    QUAL O VALOR DA NATUREZA?

    Qual o valor de um rio, de uma vida, de espcies em extino ou no? O vo de um

    pssaro que para nada nos serve: valioso? As feias baratas e as temveis cobras no so

    valiosas? E mais: Qual o valor do que ainda no conhecemos? A complexidade destas

    perguntas desafia a superar os limites de nossas formas de conhecimento em geral e a

    cientfica em particular.

    Como H. Jonas (1995) o indica, as possibilidades abertas ao humana pelo

    desenvolvimento da cincia e a tecnologia para intervir na Natureza, ampliam o mbito de

    nossa responsabilidade e desafiam a construo de uma nova tica. Neste sentido, as

    discusses sobre o valor da Natureza constituem uma questo central cuja relevncia no

    suficientemente reconhecida e pelo geral encontra-se focada por uma abordagem de reduo

    no econmico.

    Nas ltimas dcadas a ecloso de inumerveis problemas ambientais e as evidncias

    dos limites dos estilos de desenvolvimento predominantes colocou as questes ambientais na

    agenda social em escala planetria.

    Mas, a amplitude do diagnstico, contrasta com a estranheza das respostas. Em geral,

    estas se caracterizam por dois traos bsicos. Por uma parte, esto marcadas pelo otimismo

    tcnico que oferece a cincia como sucednea da poltica e como fornecedora de solues

    para os efeitos no desejados de um suposto progresso inexplicvel.

    Por outra, enfrentam os problemas derivados da mercantilizao da natureza, com

    mais mercantilizao. Podem-se dizer, pensando a Natureza em termos de utilidade, custos,

    preos, valores de uso e fundamentalmente, de cmbio.

    Deste modo outras formas de valorao so negadas ou reduzidas e a extenso deste

    discurso naturaliza concepes de valor limitadas, utilitaristas e econmicas.

    Analisar criticamente e discutir estas concepes forma parte da tarefa de reflexo

    para um conhecimento mais verdadeiro da Natureza e o exerccio de uma tica do

    reconhecimento amplo das responsabilidades humanas sobre a mesma.

    Tentando abordar essa reflexo, no presente captulo explora-se o conceito de valor, as

    diferentes concepes, prope-se uma reviso comparativa das noes bsicas sobre o valor

  • 39

    dos economistas clssicos e neoclssicos; e recordando algumas vises criticas sobre a

    possibilidade de mensura da natureza, se esboa alguns elementos a considerar na procura de

    um conceito de valor da natureza no geral e plural.

    2. 1. - O que o valor?

    O valor cria-se ou descobre-se? Est ali, fora dos sujeitos, absoluto, imutvel, nas

    coisas e nas aes, suscetvel de ser descoberto por seres humanos atravs da razo, a intuio

    os sentimentos? uma criao humana, social, cultural? Uma olhada, uma construo

    intelectual, algo que os sujeitos armazenam, objetos e fatos iluminados pelo gosto, o interesse,

    o desejo? Por que algo valioso? Por que algo valioso para algumas pessoas e grupos, no

    para outras/os? Um ou vrios? Podem-se comparar os diferentes motivos pelos quais algo se

    considera valioso? Trata-se de diferentes valores ou diferentes motivos de um mesmo valor

    suscetveis comparao e equivalncias? Inumerveis perguntas poder-se-

    iam resenhar em torno da questo do valor. Aqui se tentar resumir esquematicamente

    algumas posies, advertindo ao leitor que no se prope uma cronologia nem uma narrativa

    exaustiva, seno, apenas, a meno de autores aos efeitos de exemplificar a diversidade

    existente no longo e aberto debate sobre os valores.

    2.1.1 Valor. Objetivo ou Subjetivo?

    As teorias objetivas consideram que o valor existe com independncia dos sujeitos. Os

    valores so prioridades, invariantes e imutveis, absolutos. Precedem ao valorar.

    Segundo Max Scheler (1941) tem o carter de objetos ideais que se captam, mas no

    de um modo racional como pensava Kant, seno atravs da intuio emocional.

    A hierarquia dos valores se constitui como evidncia intuitiva, sendo a relatividade

    dos mesmos o produto das limitaes de cada ser humano para captar-los.

    Os valores existem mais alm de que sejam captados ou no. Max Scheler

    (1941) discute a concepo segundo a qual o valor nasce de participao de uma propriedade

    superior e absoluta, que perante o esprito humano s deveria descobrir o que realmente vale.

    Que no fundo idntico do que realmente . Esta assimilao de valor coloca-se interrogaes

    como o que valioso e no ?

  • 40

    Tambm questiona as teorias nominalistas em que o valor s relativo ao homem,

    baseia-se na sua subjetividade, seu gosto, desejo, atrao (ou na sua ausncia ou contradio),

    o qual supe subordinar valores que considera superiores aos inferiores. Bem estas teorias

    expressam uma compreensvel reao s concepes absolutistas que poderiam reduzir aos

    sujeitos a meios para a realizao de valores, poderiam acontecer em um excessivo

    utilitarismo.

    N. Hartman (1962) tambm considerou os valores como objetivos independentes do

    sujeito que os pode descobrir, mas no inventar. Percebe-se mediante uma espcie de

    sentimento de valor, a capacidade que no inata, seno adquirida. Bem os valores ficam

    sentidos de forma diversa, dando lugar a concepes morais diferentes.

    Para Hartman (1962) a eleio humana no se rege s pela hierarquia dos valores

    seno tambm pela intensidade ou grau de atrao, assim valores de maior categoria podem

    ser mais fracos (ou exercer menos atrao) que os de menor categoria, e a intensidade

    medem-se mais pela vulnerabilidade que pelo cumprimento do valor.

    Desde o modo de ver da corrente existencialista, a liberdade criadora, a deciso e a

    eleio do sujeito o ponto de incio, e o valor est projetado pelo mesmo ato da existncia

    humana, negando assim toda conexo entre valores e fatos dados previamente.

    Tambm os economistas e em particular A.Smith (1958, 1 ed.1776) deram ao tema do

    valor um lugar central em suas teorias, ainda que restrito a esfera da economia poltica.

    Um aporte sistemtico a uma teoria subjetiva de valor foi obra de Alexius Meinong

    com suas investigaes tico-psicolgicas para uma teoria de valor. Foi discpulo de

    Francisco Brentano, quem sustentava o carter evidente e absoluto dos juzos axiolgicos.

    Pelo contrrio, para Meinong5 uma coisa tem valor enquanto possui a capacidade de

    subministrar uma base afetiva para um sentimento de valor (MEINONG: 1894, apud

    FRONDIZI, 1974).

    Lembrando a Ehrenfel, Frondizi destaca que se fosse valioso o que capaz de

    produzir-nos agrado seriam valiosas s s coisas existentes. Devido que valoramos tambm o

    que no existe, o fundamento de valor o desejo. Ao valorar o inexistente, queremos afirmar

    que se existisse, nos agradaria. Pode-se dizer que poderia falar de um valor atual e outro em

    potencial.

    5 MEINONG, Alexis, Psychologisch-ethische Untersuchungen zur Werttheorie Graz, Leuschner u. Lubensky, 1894, apud Frondizi 1974, pp. 51-57.

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    Desde outra perspectiva que foca nos valores como orientadores de ao se destacam:

    Parsons (1978) e Kluckhohn (1951), ambos os autores compartilham a tendncia de entender

    os valores de modo universal, considerando que as diferenas individuais e coletivas no

    sistema de valores no expressam valores diferentes seno diferenas no grau de preferncia.

    A ordem hierrquica de um sistema de valores no se determina de um modo racional -

    apriorstico, seno em