análise e crítica do livro eu sou camille desmoulins

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ANÁLISE E CRÍTICA DO LIVRO “EU SOU CAMILLE DESMOULINS”, de Hermínio C. Miranda e Luciano dos Anjos. por Moizés Montalvão Observação1 : os grifados, sublinhados, negritos, nas citações de textos de outros autores, são de nossa autoria. Textos [entre colchetes] são inserções explicativas, de nossa autoria. Observação2 : algumas citações ilustrativas são relativamente longas. A intenção é mostrar claramente o pensamento do autor, evitando distorções, o que é comum ocorrer com referências curtas. Observação3 : alusões à reencarnação e mediunidade são inevitáveis na presente análise. Conseqüentemente, referências ao espiritismo também serão inevitáveis. Não há qualquer intento em agredir crenças, as quais respeitamos com muita seriedade. Discutimos, sim, idéias, proposições, teorias. OBJETIVO: analisar a alegação de que as recordações experienciadas por Luciano dos Anjos, sob a condução de Hermínio Miranda, demonstram um autêntico caso de reencarnação. COMENTÁRIOS INICIAIS Os protagonistas da obra sob apreciação são Hermínio Correa de Miranda e Luciano dos Anjos. O evento teria ocorrido durante alguns meses, no ano de 1967 e, segundo os autores, foi gravado em fita e das gravações produziu-se o livro. Hermínio e Luciano são pessoas dotadas de elevada cultura. Hermínio domina quatro ou cinco idiomas, escreveu muitos livros, nos quais mostra familiaridade com variados assuntos. Luciano atuou como jornalista por longo tempo e também escreveu diversas obras. Portanto, estamos lidando com pessoas do mais alto gabarito, cuja formação intelectual é inatacável e, ao que tudo indica, são figuras ilibadas, não dadas a dissimulações ou fraudes conscientes. Desse modo, as apreciações que faremos não têm por objetivo denegrir a imagem dos autores, sim avaliar a experiência de

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ANÁLISE E CRÍTICA DO LIVRO “EU SOU CAMILLE DESMOULINS”, de Hermínio C. Miranda e Luciano dos Anjos.

por Moizés Montalvão

Observação1: os grifados, sublinhados, negritos, nas citações de textos de outros autores, são de nossa autoria. Textos [entre colchetes] são inserções explicativas, de nossa autoria.

Observação2: algumas citações ilustrativas são relativamente longas. A intenção é mostrar claramente o pensamento do autor, evitando distorções, o que é comum ocorrer com referências curtas.

Observação3: alusões à reencarnação e mediunidade são inevitáveis na presente análise. Conseqüentemente, referências ao espiritismo também serão inevitáveis. Não há qualquer intento em agredir crenças, as quais respeitamos com muita seriedade. Discutimos, sim, idéias, proposições, teorias.

OBJETIVO: analisar a alegação de que as recordações experienciadas por Luciano dos Anjos, sob a condução de Hermínio Miranda, demonstram um autêntico caso de reencarnação.

COMENTÁRIOS INICIAIS

Os protagonistas da obra sob apreciação são Hermínio Correa de Miranda e Luciano dos Anjos. O evento teria ocorrido durante alguns meses, no ano de 1967 e, segundo os autores, foi gravado em fita e das gravações produziu-se o livro.

Hermínio e Luciano são pessoas dotadas de elevada cultura. Hermínio domina quatro ou cinco idiomas, escreveu muitos livros, nos quais mostra familiaridade com variados assuntos. Luciano atuou como jornalista por longo tempo e também escreveu diversas obras. Portanto, estamos lidando com pessoas do mais alto gabarito, cuja formação intelectual é inatacável e, ao que tudo indica, são figuras ilibadas, não dadas a dissimulações ou fraudes conscientes.

Desse modo, as apreciações que faremos não têm por objetivo denegrir a imagem dos autores, sim avaliar a experiência de regressão que, segundo defendem, atestaria indubitavelmente um evento reencarnacionista. O objetivo deste trabalho é verificar se tal declaração é suficientemente firme para ser acatada sem receios.

Antes de falarmos da experiência propriamente dita, necessário se faz conhecer a metodologia utilizada, bem como a base teórica que ampara a prática regressionista, nos moldes praticados por Hermínio Miranda. Estas estão detalhadas na obra “A Memória e o Tempo”, de autoria de Hermínio, na qual, logo no início, se lê:

Regressão da memória é o processo espontâneo ou provocado, por meio do qual, o espírito encarnado ou desencarnado fica em condições de retornar ao passado, na vida atual ou em existências anteriores, próximas ou remotas. Estou bem certo de que a definição proposta pressupõe aceitação de alguns dos preceitos básicos da

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doutrina espírita, organizada por Allan Kardec na segunda metade do século XIX, na França. (p. 13, 14)

 Aqui deparamos um dificultador: para se aceitar a definição proposta por Hermínio necessário se faz aceitar pressupostos da doutrina espírita. O que constitui um problema e uma limitação. Hermínio Miranda assevera que a melhor maneira (e talvez a única aceitável) de explicar o fenômeno seja por meio da teoria espírita. Como se pode ver no trecho a seguir:

“Os pressupostos implícitos na definição oferecida não são...invenção do espiritismo nem surgiram de revelações transcendentais revestidas de caráter místico ou dogmático, a exigir sustentação da fé cega. São princípios eminentemente lógicos que podemos aceitar sem nenhuma forma de violência à razão e que têm sido exaustivamente pesquisados e confirmados por inúmeros investigadores qualificados. (...)

Sugerimos, portanto, aos mais renitentes e obstinados negadores que os aceitem, provisoriamente, como hipóteses de trabalho e os submetam aos testes e aplicações que julgarem necessários. Ainda que não os aceitem, porém, não há como negar que eles estão implicitamente contidos na visão integrada do fenômeno da regressão da memória. Estão, assim, embutidos na estrutura do fenômeno os seguintes conceitos fundamentais que aqui alinhamos como premissas básicas:

– existência do espírito, ser consciente em evolução.– existência de um corpo energético, organizador biológico, a que chamamos de perispírito.– preexistência do espírito à sua vida na carne.– sobrevivência do espírito à morte do corpo físico.– sua permanência por algum tempo numa dimensão que escapa aos nossos sentidos habituais.– seu retorno em novo corpo físico para nova existência na carne.– sua responsabilidade pessoal pelos atos praticados, no bem ou no mal. (p. 14) Essas “exigências” dificultariam ao investigador não-espírita a averiguação do caso, pelo menos dentro da abordagem realizada pelo autor. Praticantes do regressionismo, não adeptos da doutrina espírita, teriam dificuldades em acatar alguns dos quesitos especificados, notadamente a existência do perispírito. De certo modo, o que Hermínio Miranda determina é mais ou menos o seguinte: analisem a experiência de Luciano dos Anjos e constatem a evidência demonstrada da reencarnação, isso desde que o façam segundo as suposições seguidas pela doutrina espírita.

A afirmação de que os itens relacionados acima integram o fenômeno regressionista seria, em parte, aceitável se fosse acatada aprioristicamente a idéia de que as lembranças são autênticas reminiscências. A investigação que se pretenda ampla deve levar em conta outras hipóteses. Uma delas seria a de que as recordações sejam elaborações mentais do paciente, extraídas de seus próprios conhecimentos, (conhecimentos obtidos na existência atual).

Como forma de melhor compreender o assunto, consideramos conveniente distinguir três modalidades de regressão:

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1. Regressão de memória (que recuperaria lembranças da existência atual);2. Regressão ao útero materno (supostas recordações da vida intra-uterina);3. Regressão a vidas passadas (alegadas lembranças de outras vidas).

Contudo, Hermínio Miranda utiliza a expressão “regressão da memória” indistintamente, isto é, sem diferenciar dentre as modalidades aqui referidas. No presente estudo, estaremos, pois, investigando um episódio de regressão a vidas passadas.

O MÉTODO

A técnica hipnótica de Hermínio, aplicada para obter lembranças de vidas passadas, conjuga passes “magnéticos” com sugestões verbais.

A sugestão, por meio de comandos imperativos, na hipnose é prática consagrada. Há técnicas de indução sem a utilização de instruções verbais – uma das principais, conhecida por letargia −, contudo, o processo hipnótico global não prescinde dos comandos ou induções por meio da voz. E é fácil compreender porque tal se dá: o objetivo de uma sessão de hipnose é obter determinada reação, seja agir de certo modo, ou avivar a memória, ou despertar emoções. Tais objetivos se realizam direcionando a mente hipnotizada com palavras adequadas.

O passe, dito magnético, tem uma função específica. No espiritismo é utilizado como forma de transmitir energia terapêutica de uma pessoa para outra. Alguns teóricos espíritas asseveram que, em realidade, o passe não transfere energia vital do agente ao paciente; em vez disso, promove o reequilíbrio da circulação energética. O processo se daria pela interseção dos campos magnéticos dos envolvidos, conforme se vê na declaração de Paulo Henrique de Figueiredo, na revista Universo Espírita:

“Está equivocado quem imagina a técnica do Magnetismo Animal como sendo a emissão de um fluido das mãos do médico com o poder de curar o doente e envolvê-lo. Não é essa a teoria de Mesmer. Por conseqüência, não é a teoria espírita.” (Universo Espírita, nº 49, p. 37) [Obs. No original consta efetivamente a palavra “médico”, porém temos a impressão de que o autor pretendia grafar “médium”]

Nada obstante, a maioria dos que fazem uso do magnetismo, conforme o molde espírita, o entendem como transferência de energia. Alguns dos escritos de Kardec transmitem a idéia de cessão de energia. E este parece ser, igualmente, o pensamento de Hermínio Miranda, conforme se vê no seguinte trecho de sua autoria.

Magnetismo, a nosso ver, é a técnica de desdobramento provocado por meio de passes e/ou toques, enquanto a hipnose ficaria adstrita aos métodos da sugestão verbal, transmitindo-se as instruções ordenadamente, em cadência e tom de voz adequados. Ainda mais: os dois métodos podem ser combinados, simultâneos, cabendo ao operador transmitir as instruções para o relaxamento ao mesmo tempo em que satura de energias o sensitivo, com passes apropriados.” (A Memória e o Tempo. P. 81)

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Diversas escolas advogam que passes manuais podem promover benefícios variados. Sem pensar muito podemos lembrar o johrei, utilizado na Igreja Messiânica; a prática Reiki; a imposição de mãos em algumas igrejas protestantes; certos exercícios de magia, que atribuem poderes a gestos manuais, etc. Ainda que variem as explicações sobre o que seja o passe, dependendo do grupo religioso que o pratica, todos admitem que o procedimento acarreta benefícios. A Bíblia fala da imposição de mãos, aplicada concomitantemente à oração, como se vê no livro bíblico de Tiago, capítulo 5:

“Está doente algum de vós? Chame os anciãos da igreja, e estes orem sobre ele, ungido-o com óleo em nome do Senhor;”

 Também, no livro de Hebreus, capítulo 6, encontramos:

“Pelo que deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até a perfeição, não lançando de novo o fundamento de arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, e o ensino sobre batismos e imposição de mãos, e sobre ressurreição de mortos e juízo eterno.”

A realidade, contudo, não mostra que os passes sejam dotados de poderes extraordinários, quase mágicos, como alguns supõem. Os adeptos afirmam que a técnica de passes magnéticos é praticada desde o primórdio da civilização, entre egípcios, caldeus, gregos. Contudo, a imposição de mãos na antiguidade não estava atrelada à teoria do “magnetismo animal”. O passe pode ser benéfico em diversas situações, mas os efeitos salutares, inclusive terapêuticos, são resultado da sugestão positiva que o procedimento induz.

As concepções sobre o passe magnético, no caso espírita, constituem herança do médico austríaco Franz Anton Mesmer. Esta figura tem uma história singular. Mesmer contribuiu para erigir um dos pilares do pensamento kardecista, uma vez que a teoria do “magnetismo animal” foi inteiramente acatada por Kardec, na qual baseou expressiva parcela de seus ensinamentos.

Hermínio Miranda, no livro “A Memória e o Tempo”, apresenta ilustrativa exposição sobre o magnetismo e sobre a hipnose, desde Mesmer até a atualidade. A explanação de Hermínio é longa para ser reproduzida nesta apreciação. À medida que nosso comentário evoluir, faremos referências a ela, principalmente dos pontos que consideramos discutíveis. Em linhas gerais, o que Hermínio apresentou está coerente com os melhores estudos do assunto; discordamos do tratamento privilegiado − a nosso ver excessivo e com pouca base −, que dá à teoria do passe magnético. Recomenda-se aos interessados em acompanhar o presente estudo, a leitura dos livros citados (A Memória e o Tempo e Eu sou Camille Desmoulins).

A hipótese do “magnetismo animal” não foi comprovada experimentalmente. Inexistem evidências de que haja, nos corpos vivos, algo como uma “circulação magnética”. Apesar disso, tal conjectura é cultivada por diversos segmentos religiosos. Para o kardecismo, por exemplo, o magnetismo seria a canalização produtiva do “fluido universal”. Fluido este que permanece no campo das conjecturas, uma vez que não foi detectado por experimentos científicos. Hermínio Miranda, por outro lado, tem opinião peculiar a respeito:

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“Embora para muitos autores de renome, como Lewis Spence, magnetismo e hipnose sejam a mesma coisa com nomes diferentes, preferimos aqui manter a distinção para fins didáticos, embora os resultados práticos de ambos sejam idênticos ou muito semelhantes. Magnetismo, a nosso ver, é a técnica de desdobramento provocado por meio de passes e/ou toques, enquanto a hipnose ficaria adstrita aos métodos da sugestão verbal, transmitindo-se as instruções ordenadamente, em cadência e tom de voz adequados. Ainda mais: os dois métodos podem ser combinados, simultâneos, cabendo ao operador transmitir as instruções para o relaxamento ao mesmo tempo em que satura de energias o sensitivo, com passes apropriados.” (A Memória e o Tempo. P. 81)

Para Hermínio Miranda, os passes permitem ao espírito “desdobrar-se”, o que significa isso? Segundo certa teoria, em algumas circunstâncias a alma (juntamente com o perispírito) consegue descolar do “invólucro carnal” e realizar peripécias que normalmente não lhe estariam acessíveis.

Allan Kardec apresentou amplas considerações a respeito do fluido magnético em várias de suas obras, o tema tinha para ele importância capital, ilustramos com a seguinte declaração, extraída de “A Gênese”.

32. – São extremamente variados os efeitos da ação fluídica sobre os doentes, de acordo com as circunstâncias. Algumas vezes é lenta e reclama tratamento prolongado, como no magnetismo ordinário; doutras vezes é rápida, como uma corrente elétrica. ... Todas as curas desse gênero são variedades do magnetismo e só diferem pela intensidade e pela rapidez da ação. O princípio é sempre o mesmo: o fluido, a desempenhar o papel de agente terapêutico e cujo efeito se acha subordinado à sua qualidade e a circunstâncias especiais.

33. – A ação magnética pode produzir-se de muitas maneiras:

1º pelo próprio fluido do magnetizador; é o magnetismo propriamente dito, ou magnetismo humano, cuja ação se acha adstrita à força e, sobretudo, à qualidade do fluido;2º pelo fluido dos Espíritos, atuando diretamente e sem intermediário sobre um encarnado, seja para o curar ou acalmar um sofrimento, seja para provocar o sono sonambúlico espontâneo, seja para exercer sobre o indivíduo uma influência física ou moral qualquer. É o magnetismo espiritual, cuja qualidade está na razão direta das qualidades do Espírito; 3º pelos fluidos que os Espíritos derramam sobre o magnetizador, que serve de veículo para esse derramamento...

34. – É muito comum a faculdade de curar pela influência fluídica e pode desenvolver-se por meio do exercício; mas, a de curar instantaneamente, pela imposição das mãos, essa é mais rara e o seu grau máximo se deve considerar excepcional...

Em “O Livro dos Médiuns” encontramos outra informação ilustrativa: 131. Esta teoria nos fornece a solução de um fato bem conhecido em magnetismo, mas inexplicado até hoje: o da mudança das propriedades da água, por obra da

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vontade. O Espírito atuante é o do magnetizador, quase sempre assistido por outro Espírito. Ele opera uma transmutação por meio do fluido magnético que, como atrás dissemos, é a substância que mais se aproxima da matéria cósmica, ou elemento universal. Ora, desde que ele pode operar uma modificação nas propriedades da água, pode também produzir um fenômeno análogo com os fluidos do organismo, donde o efeito curativo da ação magnética, convenientemente dirigida.

Sabe-se que papel capital desempenha a vontade em todos os fenômenos do magnetismo. Porém, como se há de explicar a ação material de tão sutil agente? A vontade não é um ser, uma substância qualquer; não é, sequer, uma propriedade da matéria mais etérea que exista. A vontade é atributo essencial do Espírito, isto é, do ser pensante. Com o auxílio dessa alavanca, ele atua sobre a matéria elementar e, por uma ação consecutiva, reage sobre seus compostos, cujas propriedades íntimas vêm assim a ficar transformadas.

Tanto quanto do Espírito errante, a vontade é igualmente atributo do Espírito encarnado; daí o poder do magnetizador, poder que se sabe estar na razão direta da força de vontade. Podendo o Espírito encarnado atuar sobre a matéria elementar, pode do mesmo modo mudar-lhe as propriedades, dentro de certos limites. Assim se explica a faculdade de cura pelo contacto e pela imposição das mãos, faculdade que algumas pessoas possuem em grau mais ou menos elevado...

Para Kardec e, parece-nos, para a maioria dos praticantes do espiritismo, o passe magnético teria efetiva aplicação terapêutica. Hermínio Miranda acrescenta-lhe outra qualidade, conforme dito, o passe teria a peculiaridade de promover o “desdobramento” do perispírito. À página 70 de “A Memória e o Tempo” Hermínio explica sua concepção de desdobramento:

(...)separação temporária e controlada entre o perispírito e o corpo físico, no ser encarnado(...)

Também, à página 92, lemos:

“Seja pelo passe magnético, pela fixação do olhar, pela sugestão verbal ou pelos outros processos de indução, tanto quanto pela anestesia química, o fenômeno psicossomático é o mesmo, ou seja, o desdobramento do ser em seus componentes básicos – desprende-se o espírito com o seu corpo energético, perispiritual ou que outro nome lhe tenha sido aplicado, enquanto o corpo físico permanece em repouso. Como a sensibilidade está no perispírito, e não no corpo físico, este se torna insensível à dor, se o sono magnético for suficientemente profundo para produzir a separação adequada.”

Quem conheça um pouquinho das teorias sobre a hipnose notará que a suposição apresentada por Hermínio Miranda é particularíssima e traz alegações de difícil defesa. A afirmação de que a sensibilidade do corpo está no perispírito é deveras complicada. Seria intrincado obterem-se bons argumentos para amparar tal idéia. Parece que, para Hermínio Miranda, a insensibilidade tátil é conseqüência obrigatória da indução hipnótica e seria demonstração do desdobramento. Nada menos veraz: dependendo da

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forma como for sugestionado, o paciente pode apresentar sensibilidade exacerbada, em vez de analgesia.

Outra idéia confusa é a do “desacoplamento” do espírito, durante a hipnose. Tal suposição é fruto de antigas conjeturas. No passado era comum a crença de que, durante o sono, a alma se desprendia do corpo. Os sonhos seriam a confirmação de que o fenômeno ocorria. Kardec incorporou essa primitiva idéia à doutrina que elaborou. No entanto, os estudos sobre o sonho passam longe de tal opinião. É certo que existem agremiações propondo a capacidade de se viajar no “universo astral”. E parece que essas viagens são gratificantes, porque não poucas pessoas se dedicam a excursões da espécie. Entretanto, é fácil demonstrar que o processo se passa inteiramente na mente do praticante. Alguns testes, relativamente simples, deixam claro o fato. No caso de regressão de Luciano dos Anjos, o desligamento do perispírito foi apresentado por Hermínio como um fato inconteste. Em momento algum ele se propôs a verificar se o espírito do regredido se encontraria efetivamente fora de sua morada carnal. Adiante, quando examinarmos as regressões, falaremos mais do assunto.

A nosso ver, não obstante o brilhante trabalho que o livro “A Memória e o Tempo” representa, encontramos alguns equívocos sérios no pensamento de Hermínio Miranda. À frente resumiremos os pontos principais, no título “ALGUNS PONTOS CONTROVERSOS NO PENSAMENTO DE HERMÍNIO MIRANDA.”

Falemos um pouco a respeito de Franz Anton Mesmer, pois este nome está ligado ao conceito kardecista de magnetismo (conceito este que, conforme foi dito, é mantido ainda na atualidade).

MESMER (1733-1815)

O austríaco Franz Anton Mesmer desde tenra idade revelou pendores intelectuais incomuns. A família esforçou-se para que ele tivesse a melhor educação possível. O resultado do investimento certamente não frustrou os familiares, Mesmer formou-se em filosofia, medicina e direito. Também estudou música e era versado em astrologia. Afora essas especializações, que lhe garantiriam a classificação de sábio segundo os padrões de sua época, Mesmer estava inclinado a descobrir novas formas de praticar a medicina. Ele se interessara pela teoria de Paracelso (1493-1541), e sucessores, que postulara a existência de um fluido universal, por meio do qual seria possível um homem exercer influência sobre outros homens e sobre objetos inanimados. Paracelso conquistara grande respeito em sua época e, após sua morte, diversos pesquisadores deram continuidade às suas idéias.

Também a teoria hipocrática de que a doença era resultante do desequilíbrio dos fluidos orgânicos era simpática ao médico austríaco. Por outro turno, Mesmer acompanhou o trabalho de certo sacerdote exorcista, chamado Gassner. Desse contato resultou a aceleração das cogitações do austríaco e fixou o rumo dos estudos que conduziria a partir de então. Johann Josef Gassner era um clérigo, contemporâneo de Mesmer, famoso pelas curas que obtinha por meio da expulsão de demônios dos corpos doentes. O sacerdote, durante os rituais, trajava-se escalafobeticamente e carregava um enorme crucifixo de metal. Diante de um suposto possesso, Gassner arremetia-se em direção ao infeliz, vociferando palavras em latim e brandindo o crucifixo, como se fora uma espada

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preste a desferir um golpe. Os pacientes ficavam alucinados, a maioria caía desacordada, outros entravam em convulsão.

Alguns estudiosos da história do hipnotismo creditam a Gassner, e não a Mesmer, o pioneirismo da prática hipnótica, uma vez que conseguia com muita freqüência deixar seus pacientes num estado típico dos hipnotizados.

Mesmer analisou o trabalho de Gassner e concluiu que os resultados que obtinham devia-se à influência do crucifixo metálico. Este conduziria o fluido universal e provocaria as curas, que, no entender de Mesmer, seriam erroneamente atribuídas ao ritual de exorcismo.

Contudo, nem todos os pesquisadores concordam que tenha havido um encontro entre Mesmer e Gassner. Há quem diga que Mesmer conhecia o trabalho do sacerdote e dele fizera apreciação positiva, ressalvando a ingenuidade do religioso em atribuir ao sobrenatural o que seria meramente fenômeno magnético. Segundo se conta, ao desmerecer a possibilidade de atuação de forças demoníacas, Mesmer favoreceu a decretação, pelo papa, da censura sobre suas obras.

Seja como for, o que interessa destacar é que a proposta terapêutica formulada pelo médico austríaco foi um sucesso. Diversas curas incontestes se relataram e a fama do médico cresceu admiravelmente. Esse fato despertou a curiosidade e uns e a inveja de outros. Mesmer enfrentou reações contrárias na Austria, onde iniciara os trabalhos de cura e mudou-se para Paris. Nesta cidade a popularidade da cura magnética foi acentuada, levando o médico a criar forma de atender aos pacientes em grupos.

Em síntese, a teoria de Mesmer, conforme foi dito, baseava-se na existência do fluido universal, que seria parte constituinte de todas as coisas existentes no universo. Nos seres vivos, notadamente no homem, a perfeita saúde devia-se ao equilíbrio harmonioso desse fluido. Quando isso não acontecia, instalava-se alguma doença. Era óbvio, portanto, que para voltar ao estado saudável, necessário se fazia rearmonizar a corrente fluídica. Inicialmente, Mesmer trabalhou com imãs, acreditando que esse material conduziria melhor o fluido universal. Depois, concluiu que algumas pessoas privilegiadas, que chamou magnetizadores, teria o dom de obter os resultados almejados e dispensou o uso de instrumentos auxiliares. A doutrina proposta por Mesmer foi explanada em 27 aforismos, publicados em 1779. Vejamos alguns deles:

1. Existe uma influência mútua entre os corpos celestes, a Terra e os corpos animados.

2. O meio desta influência é um fluido universalmente distribuído e contínuo, sem nenhum vazio e de natureza incomparavelmente sutil, e por cuja natureza é capaz de receber, propagar e transmitir todas as impressões de movimento.

3. Esta ação recíproca é subordinada a leis mecânicas que são desconhecidas até agora.

4. Esta ação resulta em efeitos alternados que podem ser considerados como fluxo e refluxo.

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5. Este fluxo e refluxo é mais um menos geral, mais ou menos particular, mais ou menos composto, de acordo com a natureza das causas que o determinam.

6. É por esta operação (a mais universal daquelas apresentadas pela Natureza) que as proporções de atividade são estabelecidas entre os corpos celestes, a terra e as partes eu os compõem.

7. As propriedades da Matéria e dos Corpos Orgânicos dependem desta operação.

8. O corpo animal experimenta os efeitos alternativos desse agente, e é imediatamente afetado pela penetração da substância nos nervos.

9. É particularmente manifesto no corpo humano que o agente tem propriedades similares às do imã; pólos diferentes e opostos podem igualmente ser distinguidos e podem ser mudados, comunicados, anulados e reforçados; até mesmo o fenômeno de oscilação é observado.

10. Esta propriedade do corpo animal, que o deixa sob a influência dos corpos celestes e das ações recíprocas daqueles que o rodeiam, como demonstrado pela sua analogia com o imã, levou-me a denominá-la MAGNETISMO ANIMAL.(...)

23. Se verá a partir dos efeitos, de acordo com as regras práticas que se há de documentar, que este princípio pode curar desordens nervosas diretamente e outras desordens indiretamente.

24. Com essa ajuda, orienta-se o médico no uso de medicamentos; ele aperfeiçoa sua ação, provoca e controla as crises benéficas e tal maneira que as sujeita.

25. Dando a conhecer meu método, demonstrarei, por meio de uma nova teoria das enfermidades, a utilidade universal do princípio que aplico a elas.

26. Com este conhecimento, o médico determinará confiantemente a origem, a natureza e o progresso das doenças, mesmo as mais complexas. Evitará que ganhem força e terá sucesso em curá-las, sem jamais expor o paciente a efeitos perigosos ou conseqüências desastrosas, independentemente da idade, do temperamente e sexo. Até mulheres em trabalho de parto gozarão desses benefícios.

27. Conclusão, esta doutrina permitirá ao médico determinar o estado de saúde de cada indivíduo e salvaguardá-lo de males a que estaria sujeito. A arte curativa alcançará, assim, seu estádio final de perfeição.

Fontes: http://www.levir.com.br/inst-022.php http://web.archive.org/web/20040710162753/http://www.unbf.ca/psychology/likely/readings/mesmer.htm

Mesmer tinha grande estima pela teoria que elaborou. Para ele, o caminho que conduziria a medicina à excelência estava descortinado com o advento do magnetismo animal. Lamentavelmente, passados mais de duzentos anos de promulgada a hipótese do fluido universal, este permanece tão sutil e evasivo às investigações quanto na época de Mesmer. O médico afirmava que as leis que regiam o fluido universal eram, até então,

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desconhecidas. Tal afirmação pressupunha que, pelo trabalho contínuo de pesquisa, essas leis se tornariam futuramente conhecidas. Contudo, a existência de tais leis permanece nebulosamente hipotética desde que foi elaborada.

Boa parte dos pacientes de Mesmer, durante a aplicação do magnetismo, entrava em convulsão. Esse efeito era desejado e incentivado, pois, segundo o pensamento do médico, a crise acelerava a cura. Contudo, outros não convulsionavam, em vez disso, apresentavam-se como que sonolentos. Mesmer registrou essa reação, para ele diversa da esperada, mas entendeu que a lassidão constituía falha do tratamento, visto que era necessário haver crise para que a doença fosse extirpada. Tempos mais tarde, um discípulo de Mesmer, atuando por conta própria, passou a dar valor ao efeito sonambúlico das magnetizações. Podemos dizer que Mesmer roçou a ponta do que seria futuramente a prática hipnótica, mas não lhe deu a devida atenção.

Franz Mesmer é figura polêmica até os dias de hoje, alguns o qualificam como santo, outros, charlatão. Buscando um meio-termo, entendemos que foi um homem de seu tempo. Tinha uma teoria e buscou pô-la em prática, intentando demonstrar a veracidade do que postulava. Foi um pioneiro e, como tal, cometeu erros e acertos.

Na atualidade, a teoria magnética é defendida em setores mais ligados à religiosidade, que à ciência. A hipótese do fluido universal foi perdendo força, uma vez que nenhum experimento de cunho científico logrou confirmá-la. As teorias modernas que procuram explicar o processo hipnótico – que é o sucedâneo do magnetismo – dispensam, por desnecessária, a conjectura de uma força universal, pretensamente responsável pela ocorrência do fenômeno.

As Experiências

Até o capítulo 5 de “A Memória e o Tempo” Hermínio Miranda discorre sobre o método, a teoria e considerações complementares, que embasam a prática regressionista, conforme as concepções por ele defendidas. No capítulo 6 são apresentadas experiências objetivas de regressão.

Ao falar das experiências que administrou, Hermínio tem o cuidado de esclarecer que o “esquecimento” de outras vidas é a regra. Lembranças somente as que estivessem “autorizadas”. Autorizadas por quem? Caberia a pergunta. A resposta não é dada diretamente, podemos supor que seriam entidades espirituais, das quais se diz que acompanham atentamente o trabalho de regressão, as responsáveis por controlar o que pode ser lembrado ou não. Em outros trechos acena-se com a hipótese de que algum mecanismo interno, de origem desconhecida, libere o permitido e bloqueie o proibido. Leiamos alguns trechos do livro:

“Este livro começou com uma experiência de regressão na qual tivemos o relato de um processo de iniciação no antigo Egito – [a regredida afirmou ter sido sacerdotisa no tempo de Ramsés II e narra o processo de iniciação de um sacerdote, cuja fase final consistia em passar a noite numa tumba, onde conheceria suas vidas passadas]. Como o procedimento normal do mecanismo da memória é esquecer para reduzir a faixa de atrito do ser com a sua realidade íntima... por que então, provocar lembranças que aparentemente estariam mais seguras nos porões da memória, no que chamamos de arquivo morto?

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De fato, a regra geral é essa, sempre respeitada pelos iniciados que manipulavam tais conhecimentos e operavam os delicados controles psíquicos do ser encarnado. Note-se, porém, que a finalidade da pesquisa na memória integral não se propunha à mera satisfação de curiosidade inconseqüente ou malsã. (...)

Isso explica por que a regressão da memória era a última etapa no vestibular da iniciação. Somente aquele que houvesse demonstrado, sem a menor hesitação ou dúvida, que reunia em si as condições mínimas para o aprendizado, era então submetido às técnicas adequadas, a fim de ‘saber tudo o que já fora’. (...)

O conhecimento das vidas anteriores é, pois, um privilégio, por certo, mas uma responsabilidade muito grave e não deve ser buscado senão por motivos relevantes, por operadores competentes e equilibrados, por pessoas que tenham demonstrado inequivocamente as condições mínimas exigidas para suportar os impactos que usualmente causam certas revelações. Do contrário, poderão sobrevir crises emocionais de vulto, capazes de desencadear processos de desequilíbrio mental e desajustes graves de personalidade. Aliás, não poucas perturbações emocionais são provocadas por interferências de memórias anteriores no fluxo das vivências atuais. Disfunções psíquicas de certa gravidade podem resultar de regressões espontâneas a memórias de outras vidas, nas quais o doente se imagina, por exemplo, um general de Napoleão ou uma condessa medieval. Seus gestos e sua postura externa podem, ao olhar desatento e cruel, parecer cômicos, mas e se ele for mesmo um general napoleônico reencarnado ou ela uma condessa poderosa que voltou para resgatar?” (A Memória e o Tempo. P. 59,60)

“Aliás, essa foi sempre uma das tônicas do nosso trabalho: nada forçar, para não provocar roturas, cujas conseqüências poderiam ser imprevisíveis. Se a regra geral em questões atinentes à memória é esquecer; é porque há razões bastante sólidas para isso, como já discutimos alhures, neste livro. Já em outros casos, revelações dessa natureza são recebidas com serenidade e até contribuem para explicar certas incongruências íntimas, mediante nova arrumação de conceitos.” (A Memória e o Tempo. P. 255)

Hermínio exibe prudência e seriedade na prática regressionista. No entanto, uma questão preocupante daqui se depreende: supondo-se que tenha sido descoberto método que permita vasculhar a mente, em busca de memórias de outras vidas, quem controlará o uso da técnica, visto que está disponível para quem queira usá-la? A idéia de que existam entes espirituais monitorando o processo, pode ser satisfatória para alguns, porém, muitos regressionistas induzem recordações em seus pacientes, sem qualquer cogitações relativas a tais entidades, ou referências a restrições espirituais.

Se Hermínio Miranda e outros são criteriosos ao induzir regressões, pode-se supor que existam os que tão-somente a pratiquem por curiosidade ou por motivos menos nobres. Ninguém poderá impedir que essa utilização, digamos, espúria, seja buscada. Alegar que a prática desautorizada acarreta prejuízos é muito vago, uma vez que os regressionistas que não seguem os ditames referidos por Hermínio também afirmam obter resultado positivos.

Lembrar ou não lembrar? 

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 Esta questão permanece polêmica, principalmente, no meio espírita. Mesmo sem adentrarmos, por enquanto, na questão de serem ou não as lembranças autênticas recordações, existe bastante discussão sobre a liberdade de lembrar.

Quem levar ao pé da letra as recomendações de Kardec, fatalmente terá de afastar-se da prática regressionista. O codificador foi taxativo ao declarar que as lembranças estão vedadas, sendo possível conhecê-las somente em circunstâncias muito especiais e, quase sempre, de forma espontânea.

Na época de Kardec, uma das objeções mais incisivas à doutrina da reencarnação era a não-reminiscência das vidas pretéritas. Os oposicionistas argumentavam: se vivemos outras vidas, então deveríamos recordá-las. Esta objeção não foi plenamente resolvida, mas Kardec elaborou esclarecimento logicamente aceitável, afirmava ele: se as lembranças fossem franqueadas, problemas muito graves e de toda a espécie surgiriam, oriundos dessas recordações.

Em termos objetivos, a proposição de Kardec é coerente. Imaginemos a esposa descobrindo que o marido é reencarnação de quem a assassinara em outra existência? E a mãe informada que o filho a estuprara noutra vida? E o pai sabendo que filha fora esposa anteriormente? Enfim, toda a sorte de encrencas afloraria na hipótese de haver liberação geral das lembranças. Assim, o codificador fechou as portas às recordações, só admitidas em situações especialíssimas.

“Esquecimento do passado

11. Em vão se objeta que o esquecimento constitui obstáculo a que se possa aproveitar da experiência de vidas anteriores. Havendo Deus entendido de lançar um véu sobre o passado, é que há nisso vantagem. Com efeito, a lembrança traria gravíssimos inconvenientes. (...) Em todas as circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais. Freqüentemente, o Espírito renasce no mesmo meio em que já viveu, estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que lhes haja feito. Se reconhecesse nelas as a quem odiara, quiçá o ódio se lhe despertaria outra vez no íntimo... Para nos melhorarmos, outorgou-nos Deus, precisamente, o de que necessitamos e nos basta: a voz da consciência e as tendências instintivas. Priva-nos do que nos seria prejudicial. Ao nascer, traz o homem consigo o que adquiriu, nasce qual se fez; em cada existência, tem um novo ponto de partida. Pouco lhe importa saber o que foi antes: se se vê punido, é que praticou o mal. Suas atuais tendências más indicam o que lhe resta a corrigir em si próprio e é nisso que deve concentrar-se toda a sua atenção, porquanto, daquilo de que se haja corrigido completamente, nenhum traço mais conservará.

Aliás, o esquecimento ocorre apenas durante a vida corpórea. Volvendo à vida espiritual, readquire o Espírito a lembrança do passado; nada mais há, portanto, do que uma interrupção temporária, semelhante à que se dá na vida terrestre durante o sono, a qual não obsta a que, no dia seguinte, nos recordemos do que tenhamos feito na véspera e nos dias precedentes.

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E não é somente após a morte que o Espírito recobra a lembrança do passado. Pode dizer-se que jamais a perde, pois que, como a experiência o demonstra, mesmo encarnado, adormecido o corpo, ocasião em que goza de certa liberdade, o Espírito tem consciência de seus atos anteriores; sabe por que sofre e que sofre com justiça. A lembrança unicamente se apaga no curso da vida exterior, da vida de relação. Mas, na falta de uma recordação exata, que lhe poderia ser penosa e prejudicá-lo nas suas relações sociais, forças novas haure ele nesses instantes de emancipação da alma, se os sabe aproveitar.” (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO)___________________________“(...) Gravíssimos inconvenientes teria o nos lembrarmos das nossas individualidades anteriores. (...)

395. Podemos ter algumas revelações a respeito de nossas vidas anteriores?

Nem sempre. Contudo, muitos sabem o que foram e o que faziam. Se se lhes permitisse dizê-lo abertamente, extraordinárias revelações fariam sobre o passado. 396. Algumas pessoas julgam ter vaga recordação de um passado desconhecido, que se lhes apresenta como a imagem fugitiva de um sonho, que em vão se tenta reter. Não há nisso simples ilusão?

Algumas vezes, é uma impressão real; mas também, freqüentemente, não passa de mera ilusão, contra a qual precisa o homem por-se em guarda, porquanto pode ser efeito de superexcitada imaginação.” (O LIVRO DOS ESPÍRITOS) ___________________________“290. Perguntas sobre as existências passadas e futuras

15ª Podem os Espíritos dar-nos a conhecer as nossas existências passadas?

Deus algumas vezes permite que elas vos sejam reveladas, conforme o objetivo. Se for para vossa edificação e instrução, as revelações serão verdadeiras e, nesse caso, feitas quase sempre espontaneamente e de modo inteiramente imprevisto. Ele, porém, não o permite nunca para satisfação de vã curiosidade.

a) Por que é que alguns Espíritos nunca se recusam a fazer esta espécie de revelações?

São Espíritos brincalhões, que se divertem à vossa custa. Em geral, deveis considerar falsas, ou, pelo menos, suspeitas, todas as revelações desta natureza que não tenham um fim eminentemente sério e útil.

b) Assim como não podemos conhecer a nossa individualidade anterior, segue-se que também nada podemos saber do gênero de existência que tivemos, da posição social que ocupamos, das virtudes e dos defeitos que em nós predominaram?

“Não, isso pode ser revelado, porque dessas revelações podeis tirar proveito para vos melhorardes. Aliás, estudando o vosso presente, podeis vós mesmos deduzir o vosso passado.” (O LIVRO DOS MÉDIUNS)

Outros autores também se pronunciam contrários às lembranças, um exemplo:

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“Se reencarnamos para ressarcir dívidas, não seria interessante guardar a lembrança delas? Não haveria maior facilidade em aceitar sofrimentos e dissabores que ensejam o resgate?

O objetivo primordial da existência humana é a evolução. O resgate de dívidas é apenas parte do processo. Quanto ao esquecimento, funciona em nosso benefício. Seria impossível incorporar, sem perturbador embaralhamento, o rico, o pobre, o negro, o índio, o branco, o amarelo, o analfabeto, o letrado e tudo mais que já fomos, em múltiplas encarnações. É ilustrativo que muita gente vai parar em hospitais psiquiátricos simplesmente por sofrer a pressão de pálidas lembranças, envolvendo acontecimentos pretéritos. (Reencarnação: Tudo o que você precisa Saber – Richard Simonetti)

Curiosamente, Kardec afirma que as lembranças “em todas as circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais”; no entanto, para Hermínio, o esquecimento tem a finalidade de “reduzir a faixa de atrito do ser com a sua realidade íntima...”. Parece-nos que são visões distintas e, talvez, difíceis de conciliar.

 ALGUNS PONTOS CONTROVERSOS NO PENSAMENTO DE HERMÍNIO

MIRANDA

A fim de não nos alongarmos nesta exposição inicial, uma vez que o objetivo principal é a avaliação da experiência regressionista de Luciano dos Anjos, apresentaremos a lista de alguns dos pontos controvertidos no discurso de Hermínio. Em seguida iniciaremos o trabalho principal, que é a avaliação da suposta reencarnação de Luciano.

1. O conceito de memória defendido por Hermínio Miranda não está de acordo com as boas pesquisas sobre o assunto. Para ele, a memória é “extracerebral”, uma vez que estaria localizada não na estrutura do cérebro, sim no perispírito. Acontece que as investigações atuais sobre essa questão, encaminham-se mais e mais no sentido de comprovar taxativamente que a memória é resultado de complexas interações das conexões neuronais, ou seja, fenômeno indubitavelmente cerebral. Na página 40 de “A Memória e o Tempo” é apresentada a forma esquemática do que Hermínio entende seja o funcionamento da memória. Ele trabalha com a concepção freudiana de inconsciente, a qual amplia ao seu arbítrio, para que agasalhe a suposição de que memórias de vidas passadas estejam armazenadas nesse hipotético segmento da mente. A discussão sobre o pensamento de Hermínio a esse respeito ensejaria trabalho específico. De momento, deixamos registrado que o que ele entende por memória não encontra respaldo seja na psicologia, seja na neurologia. 2. A idéia de instinto apresentada por Hermínio carece de reparos. O escritor segue a definição apresentada em “A Gênese”: “o instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos a atos espontâneos e involuntários, tendo em vista a conservação deles” e acrescenta, “todo ato maquinal é instintivo; o ato que denota reflexão, combinação, deliberação é inteligente. Um é livre, o outro não o é”. (A Memória e o Tempo, p. 42). Essas declarações contêm vários equívocos. Primeiro, o instinto não tem nada de “força oculta”, instinto é um impulso automatizado, que varia de espécie para espécie, cuja principal função é preservar o espécime contra ameaças inesperadas. Também são instintivos os incitamentos biológicos que induzem à perpetuação da espécie. Outra questão é que as declarações, tanto de Kardec, quanto de Hermínio, classificaria como

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instinto coisas que não o são, por exemplo, o hábito é um ato maquinal, mas não é instinto. 3. A possibilidade de conhecer o futuro. Logo ao início do livro “A Memória e o Tempo”, Hermínio defende que seria possível “recordar” o futuro, do mesmo modo que é possível rememorar o passado. Na página 26, encontramos: “Só nos resta uma inevitável conclusão, por mais que ela se choque com os nossos conceitos e preconceitos: se podemos ver hoje algo que acontece mesmo daqui a dois dias, seis meses ou trezentos anos, então é porque esses eventos já existem hoje, lá no futuro...”. Acontece que essa convicção de Hermínio Miranda, além das discussões que pode ensejar, tanto no campo filosófico, quanto científico, entra em conflito com o que declarou Kardec a respeito:

“Alguma coisa nos pode ser revelada sobre as nossas existências futuras?”.

“Não; tudo o que a tal respeito vos disserem alguns Espíritos não passará de gracejo e isso se compreende: a vossa existência futura não pode ser de antemão determinada, pois que será conforme a preparardes pelo vosso proceder na Terra e pelas resoluções que tomardes quando fordes Espíritos. Quanto menos tiverdes que expiar tanto mais ditosa será ela. Saber, porém, onde e como transcorrerá essa existência, repetimo-lo, é impossível(...)”  7ª Podem os Espíritos dar-nos a conhecer o futuro?

Se o homem conhecesse o futuro, descuidar-se-ia do presente. É esse ainda um ponto sobre o qual insistis sempre, no desejo de obter uma resposta precisa. Grande erro há nisso, porquanto a manifestação dos Espíritos não é um meio de adivinhação. Se fizerdes questão absoluta de uma resposta, recebê-la-eis de um Espírito doidivanas, temo-lo dito a todo momento. 8ª Não é certo, entretanto, que, às vezes, alguns acontecimentos futuros são anunciados espontaneamente e com verdade pelos Espíritos?

Pode dar-se que o Espírito preveja coisas que julgue conveniente revelar, ou que ele tem por missão tornar conhecidas; porém, nesse terreno, ainda são mais de temer os Espíritos enganadores, que se divertem em fazer previsões. Só o conjunto das circunstâncias permite se verifique o grau de confiança que elas merecem. 9ª De que gênero são as previsões de que mais se deve desconfiar?

Todas as que não tiverem um fim de utilidade geral. As predições pessoais podem quase sempre ser consideradas apócrifas. (O LIVRO DOS MÉDIUNS) 4. Hermínio Miranda confunde memória com inteligência. Na página 47, lemos: “E, logicamente, quanto maior o volume de dados no banco de memória, mais vasta e brilhante a inteligência”, e, na página 45: “Creio, pois, que se pode admitir, tranqüilamente, que inteligência é informação armazenada, ou, examinando-a sob outro aspecto, a medida do seu vigor é a amplitude da memória integral... Assim como Platão ampliou o conceito de aprendizado, considerando-o função da recordação, a doutrina dos espíritos amplia o conceito bergsoniano da função da

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inteligência, ou seja da memória”. A memória, sem dúvida, é suporte da inteligência, contudo uma não se confunde com a outra. Há casos de pessoas dotadas de excelente memória e de parca inteligência. Um conceito tradicional sobre a inteligência estabelece que seja a interação de três aspectos: memória, imaginação e juízo, portanto, a memória, isoladamente não pode ser tomada pela inteligência. No que tange à Platão, quando o filósofo afirmou que “aprender é recordar”, não estava ampliando o conceito de aprendizado, conforme declara Hermínio, sim atrelando-o a concepção reducionista. Na fase madura de seu pensamento Platão substituiu o “aprender é recordar” pela “ciência dialética”. Agora o filósofo advogava que aprender não mais significaria recordação do que fora visto, sim, o trabalho de esmiuçar as hipóteses, desbastando-as daquilo que teriam de falso, ou desnecessário, num processo contínuo, até que se atingisse o ponto de certeza, ou pelo menos, de convicção mais firme que a existente ao início do debate.  Fiquemos por ora com as presentes objeções. Nos comentários seguintes faremos referências a idéias de Hermínio que nos pareçam passíveis de crítica. 

LUCIANO DOS ANJOS ou CAMILLE DESMOULINS?Considerações iniciais

 Na primeira parte da obra “Eu Sou Camille Desmoulins” encontra-se a narrativa da experiência, acompanhadas de considerações de Hermínio Miranda. A partir da página 301 estão as explanações de Luciano dos Anjos sobre o que vivenciou. (Trabalhamos com a 1ª edição do livro, em outras impressões a numeração de páginas poderá ser diferente)

Do que nos foi dado conhecer da produção escrita de Hermínio Miranda, concluímos que o autor aprecia defender opiniões controversas. Logo ao início do livro ele afirma: (lembramos que os destaques são de nossa autoria)

“...o que temos nos compêndios de história...é uma espécie de imitação da vida, uma interpretação pessoal dos fatos e não os fatos em si mesmos. Vemos múmias humanas, figuras empalhadas e cobertas pela venerável poeira histórica, e ficamos a nos perguntar como seriam realmente aquelas pessoas...Em suma, vemos cópias de cópias de retratos e não temos meios pra checar os originais, conferir e questionar, avaliar para concluir. Ou temos?

A resposta é sim, temos.

A literatura espírita vem apresentando, pelo menos no decorrer do último século, respeitável acervo de depoimentos de personalidades históricas, basicamente por via mediúnica.(...)

Tanto faz a gente crer como não, o fato é que muitos espíritos têm tido a oportunidade de trazer depoimentos póstumos da maior importância. São inúmeros os exemplos e podemos tomar qualquer um deles entre os de indubitável credibilidade, como o famoso caso de Patience Worth... A Sra. Henry H. Rogers, médium americana...manteve, durante vinte e cinco anos, equilibrado e proveitoso intercâmbio com uma entidade desencarnada que se assinava Patience Worth. Este

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espírito, que se identificava com uma jovem puritana que vivera no século XVI, escreveu através da Sra. Curran obra literária de inquestionável valor...

O relacionamento Sra. Curran/Patience Worth manteve-se como verdadeiro mistério para certos cientistas e pesquisadores que estudaram o fenômeno. Contudo, para os que se acham informados da realidade espiritual, e a aceitam, a verdade é simples e clara, como sempre: um espírito desencarnado que veio trazer a contribuição do seu depoimento pessoal. (...)

É possível, portanto, obter dos próprios espíritos depoimentos de suas experiências pessoais e retificar a História...” (Eu Sou Camille Desmoulins – p. 11,12,13)

Admiramos a firmeza com que Hermínio defende tal idéia, entretanto a suposição de que a mediunidade seja capaz de “corrigir” a pesquisa histórica não se confirma. Ainda que alguns médiuns, aquinhoados com talentos incomuns, tragam informações de boa qualidade, as quais atribuem à comunicação interespiritual, estas não substituem, tampouco complementam, a investigação convencional. Se o que Hermínio afirma fosse fato, as questões históricas de difícil elucidação estariam plenamente esclarecidas. Cabe indagar, qual a contribuição da mediunidade no conhecimento da origem e da cultura de povos antigos, de cuja existência se encontraram parcos indícios? Investigadores se esforçam por conhecer civilizações que podem ter sido brilhantes em realizações, das quais pouca coisa restou que possibilite averiguação adequada. Trabalho árduo, que exige dedicação, grande dose de energia e, muitas vezes, miúdos resultados. Lamentavelmente não aparece qualquer mensagem mediúnica que auxilie os sábios nas penosas tarefas a que se dedicam. E o que dizer das línguas faladas por povos passados, das quais existem boa quantidade de escritos, mas que não puderam ser traduzidas, por mais que lingüistas se empenhem? Por que os espíritos não dão uma mãozinha? A mediunidade poderia prestar grande apoio não só à História, também a outras ciências, se possuísse a imaginada capacidade revelativa que lhe atribui Hermínio Miranda. Durante muitos anos, eruditos de diversas nacionalidades se desgastaram na decifração da escrita egípcia antiga, sempre com resultados frustrantes. Não fosse o sacrifício e o grande talento de Champollion em dominar línguas antigas, o qual empenhou-se por inteiro na desafiadora missão, provavelmente, até hoje estaríamos tentando imaginar o que os egípcios haviam registrado nos hieroglifos. A mediunidade se manteve completamente ausente dessa empreitada.

Consideremos o médium tido como o melhor do Brasil, talvez do mundo. Chico Xavier psicografou centenas de livros, a maioria narrativas romanceadas e poéticas, mas, alguns trazem abordagens históricas, outros discorrem sobre temas científicos. Pois nessas produções não se encontram conteúdos que enriqueçam o conhecimento nos campos desses saberes. É indiscutível que Chico possuía singular talento para a escrita, sendo que o aspecto mais forte de sua criatividade seria a poesia. Nas obras de cunho científico a qualidade da produção cai a olhos vistos. Vejamos, como exemplo, o livro “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”, onde o suposto espírito de Humberto Campos apresenta piegas narrativa da história do Brasil. Provavelmente, em vida Humberto Campos jamais assinaria produção tão ingênua, porém, no outro lado se viu constrangido a emprestar seu nome a tal trabalho. Em linhas gerais, “Coração do Mundo” constitui a visão Xicochaveriana do que teria sido a caminhada histórica de nosso país, a qual teria sido realizada por meio de eventos coloridos, realizações dulcíssimas, plena harmonia de propósitos, planos celestiais infalíveis, com direito a

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hostes angelicas passeando pelo cosmo, sucessão de luzes, sorrisos, alegrias infindas... tudo no intuito de defender a tese de que a nação fora vocacionada pelo Alto para propagar a doutrina espiritista. Não se vê nas linhas do livro análise madura dos acontecimentos passados. O melhor médium do mundo, apenas produziu um relato doce do processo histórico nacional; em termos de cooperação efetiva à compreensão dos eventos, nada...

A obra atribuída a Patience Worth − o espírito que supostamente visitava Pearl Curran −, surpreende pela riqueza e qualidade do material originado. Pode-se dizer que é um dos pouquíssimos casos em que o resultado seja rico o suficiente para ensejar pesquisas de maior vulto. Se fosse inconteste ocorrência mediúnica, dada as singularidades e qualidade dos escritos, seria circunstância única, não comparável às multiplas mensagens que pululuam pelo mundo, todas, quase sem exceção, aquém daquilo que seria esperado de contatos espirituais. Como não conhecemos estudo aprofundado a respeito de Pearl Curran, nada de mais significativo podemos dizer. Seja como for, a pessoa de Patience Worth jamais foi identificada, o que leva à suspeita de que tenha sido criação da própria mente de Curran.

Pelo sim, pelo não, o campo está aberto: os espíritos podem ainda se redimir das inumeráveis comunicações pobres de conteúdo e enviar elaborações que façam jus à procedência. Isso, além de prover de fortes argumentos a tese da comunicação entre vivos e mortos, também ajudaria no trabalho de cientistas e pesquisadores. Esperamos que aconteça...

LUCIANO DOS ANJOS

Ao início deste estudo declaramos que votamos tanto a Hermínio Miranda, quanto a Luciano dos Anjos, o maior respeito. Ainda que discordemos das conclusões que apresentam, relativamente às regressões, isso em nada modifica o fato de os termos em alta estima, visto que são pessoas que conduzem com muita seriedade os trabalhos aos quais se dedicam.

No livro, Luciano dos Anjos se encarrega de descrever as qualidades que o habilitaram como figura ideal para uma regressão coalhada de detalhes curiosos. No início da parte que lhe coube escrever Luciano traça sua trajetória profissional, narra peripécias variadas, algumas jocosas, outras arriscadas, redigidas em estilo agradável, temperadas com fino humor e entremeadas com doses de vaidade. Em meio ao relato, identifica reencarnações, não só dele próprio, como de várias pessoas conhecidas. Nessas apreciações, Luciano deixa claro que, mesmo antes do encontro com Hermínio, trazia consigo a convicção de já ter vivido na França, conforme ilustram os trechos a seguir:

“Sempre acreditei, sendo espírita, que houvesse vivido na França, tanto pelo amor que lhe sentia, como, mais tarde, por uma oblíqua insinuação do querido médium Francisco Cândido Xavier. (...)

Quando, cerca de dois anos depois, eu mesmo estive com o Chico aqui no Rio e em São Paulo, durante a célebre campanha jornalística em defesa das memoráveis materializações de Uberaba, através da médium Otília Diogo, discretamente tentei obter dele o nome da personagem. Ele apenas confirmou, sorrindo, que estive lá −[na França], naquela época...

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...o confrade Ismael Nunes Tavares...me trouxera convite da D. Chiquita...espírita encantadora, médium de muitos recursos... vi-me pela primeira vez frente com D. Chiquita... ela me olhava espantada, denotando violentíssimo impacto. (...)

− Eu conheço o senhor. Estivemos juntos, na época da Revolução Francesa. Assim que o senhor entrou eu o vi, senti isso... (Eu Sou Camille Desmoulins. P. 341, 342)

Diante desse quadro, uma coisa é patente: Luciano possuía a bagagem necessária para revivenciar existência na França, no período da Revolução. A dúvida, neste ponto, é se a idéia de que fora Camille Desmoulins, mesmo antes de iniciar as regressões com Hermínio Miranda, já estaria em sua mente, ainda que de forma semi-consciente. Deixemos que o próprio Luciano diga o que pensa sobre isso:

“Jamais, jamais me passou pela cabeça ser Camille Desmoulins. Mas, curiosamente, eu sentia inexplicável sabor (o termo é esse mesmo: sabor) nas raríssimas vezes em que pronunciava esse nome. Afora isso, pouco me preocupava, como já disse, com a personalidade passada que eu tinha vivido. Nunca parei para pensar muito nisso.” (Eu Sou Camille Desmoulins. P. 369)  Sem querer pôr em xeque o testemunho de Luciano, é possível supor que, ao menos no subconsciente, sua ligação com Desmoulins estivesse rascunhada. Ele declara que não pensava muito no assunto, ou seja, não manifestava maior interesse em descobrir qual teria sido sua personalidade passada, entretanto, a própria narrativa que nos apresenta mostra que havia nele viva curiosidade por identificar tal personagem. No trecho que citamos anteriormente, vimos que pedira a Chico Xavier que o informasse, entretanto, o médium fugiu ao assunto. Mais tarde, D. Chiquita revela tê-lo conhecido durante a Revolução. Luciano também relata encontro que teve com o médium Homero Lopes Fogaça, o qual garantiu que o jornalista vivera na corte francesa e autorizara a “morte de algumas pessoas”. E Luciano arremata: “Tudo isso me intrigou sobremaneira”. Ora, como jornalista − por vocação inquiridor e curioso −, era de esperar que partisse para a pesquisa meticulosa de sua identidade pregressa. Luciano dos Anjos, hábil reconhecedor de personalidades pretéritas – mais adiante falaremos desse talento do jornalista −, que descobriu a identidade de André Luiz (conforme declara com muita firmeza), ao se ver perante a notícia de que fora figura ativa na época da Revolução, quedou-se despreocupado em descobrir quem seria esse alguém... assertiva que nos soa dúbia, por isso, acreditamos ser factível desconfiar que estivesse presente na mente do homem de imprensa, ainda que de forma não clarificada, sua identificação com Camille Desmoulins.

Não vamos, porém, exaurir a dúvida a ponto de desqualificar a declaração de Luciano de que não sabia, anteriormente ao encontro com Hermínio, de sua suposta identidade pregressa. Vamos lhe conceder voto de confiança sobre o que declarou, ou seja, que até realizar a experiência com Hermínio não sabia ter sido Camille Desmoulins.

O que nos interessa deixar claro, por ora, é que Luciano dos Anjos estava previamente preparado, e bem preparado, para lucubrar criativa recordação de vivência no período da Revolução Francesa.

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É importante destacar que o vivenciado pelo jornalista pode ser qualificado como “regressão” de boa qualidade. Mesmo se comparadas com as melhores de que temos conhecimento. Se a cotejássemos com o “caso Bridey Murphy” diríamos que as lembranças de Luciano “dão de dez a zero” nas obtidas por Virginia Tighe, a protagonista do caso. Apesar de Bridey Murphy ter obtido repercussão muito mais ampla que o caso Camille Desmoulins, em tudo é inferior a este.

Morey Bernstein, que conduziu as sessões hipnóticas com Virgínia, antes desse feito, costumava praticar a hipnose para divertir-se com os amigos, como atividade efetiva dedicava-se ao comércio na cidade de Pueblo, nos Estados Unidos. Gradativamente, porém, conforme relata, passou a buscar mais conhecimentos. Chegou a entrevistar Joseph Rhine e acompanhar o trabalho que o pesquisador conduzia, na Universidade de Duke. Rhine lhe passou diversas sugestões, as quais impressionaram o curioso homem de comércio. No entanto, parece que o professor não mitigou o anseio místico que Bernstein trazia consigo e que o fez enveredar por outro rumo, até topar com a herança ocultista de Edgar Cayce.

Cayce, por quem Hermínio demonstra grande admiração − dele faz diversas referências alvissareiras em “A Memória e o Tempo” −, era um sujeito meio esquisito, especializado em “leituras mediúnicas”, por meio das quais revelava vidas passadas, os talentos e, ainda, falava da saúde dos interessados. Caía em sono dito profético e falava muitas coisas. Após o despertamente garantia nada recordar do que dissera durante o transe. Obviamente, alguém tinha de anotar as declarações do profeta. Uma das tônicas dos vaticínios de Cayce, alcunhado “profeta dorminhoco”, era desvelar experiências de seus consulentes na lendária Atlântida. Praticamente todos os que o buscavam recebiam informes de existências passadas no continente perdido. Escusado dizer que o discurso de Cayce não casava com o explanado por Platão sobre a Atlântida; tampouco harmonizava com afirmações de outros alegados “conhecedores” dos imaginados segredos da ilha-continente.

Na atualidade, os seguidores de Edgar Cayce dão prosseguimento ao seu trabalho, realizando o que chamam “astrologia cármica”, que conjuga a configuração astral do consulente na data do nascimento, com perfis anteriormente estabelecidos pelo profeta. Essa “fórmula”, afirmam, mostra as potencialidades do interessado e lhe revelam aspectos de existências anteriores. Por curiosidade, encomendei um desses estudos, ao preço de R$48,00. Então, descobri muitas coisas a respeito de minhas “vidas passadas” e também sobre minhas capacidades atuais.

Neste trabalho, “Cayce”, além de revelações genéricas, aplicáveis indistintamente a quem quer que seja, tipo: “você demonstra ser um indivíduo dotado de mente elevada”, assegurou que me darei bem como escritor, que tenho facilidades com idiomas e, devido à minha existência mercuriana, possuo pendores para exercer cargos de autoridade. Diz, ainda, que minha mente é clarividente, mas não informa se se trata de capacidade paranormal, ou de clarividência no sentido comum de “ver com clareza”. Assevera que tenho dificuldade em distinguir o que é fato e o que é ficção e muito mais.

O caso é que se eu possuísse tais qualidades (e algumas ele parece ter acertado, mas não se animem, quem atira em todas as direções acaba atingindo alguma coisa), pois então, se eu possuísse os dons que Cayce me atribuiu de pouco me valeria a “revelação”, uma vez que as qualidade já seriam de meu conhecimento. Desse modo, o “trabalho” que

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poderia ser reputado profícuo realizado pelo “profeta” é o que tange às vidas passadas. Nesse segmento descobri coisas muito interessantes.

Conforme informou Cayce, vivi no planeta Mercúrio. Também estive no planeta Saturno. Em minhas entrevidas morei em Urano. E, não poderia faltar, tive uma existência como atlante, na qual fiquei em meio às disputas dos adeptos de Belial contra os asseclas da Lei do Um. Apesar de não ter informação a respeito dessas agremiações, suponho que deva considerar a experiência de alta relevância, para o quê não sei...

Pensam que acabou? Nada. Acompanhei Alexandre, o grande, em suas conquistas (logo eu que detesto guerras). Também devo ter sido um viking (ele não deu certeza quanto a isso), participei da construção da pirâmide inca, vivi no Egito antigo e provavelmente habitei nas terras que hoje constituem a Austrália. Ufa, isso é que é excursão cármica!

Eram coisas semelhantes a essas que Edgar Cayce transmitia aos incautos que o procuravam! E este foi um dos gurus que levou Morey Bernstein ao mundo mágico das vidas passadas. Ressaltamos, Hermínio Miranda considera Cayce um grande médium...

Outro caso de regressão, este mais recente, cujo relato em livro vendeu milhões de exemplares, é o apresentado por Brian Weiss, intitulado “Muitas Vidas, Muitos Mestres”. Semelhantemente à Bridey Murphy, as regressões feitas por Brian Weiss em Catherine, são em muito inferiores à aventura de Luciano dos Anjos.

Brian Weiss era conceituado psiquiatra quando vivenciou inusitada experiência com paciente refratária ao tratamento convencional. Segundo assevera o médico, o encontro com Catherine o levou a descobrir autêntica panacéia. O Dr. Brian foi muito criticado por ter deixado de lado esmerada formação, a fim de abraçar teorias de fraca fundamentação. Ele deve ter tido motivo$$ para isso, o que respeitamos. Mas, não se pode deixar de constatar que no regressionismo Brian Weiss tem proferidos discursos que beiram o ridículo. Conforme se depreende da afirmação seguinte:

“Avaliei o propósito terapêutico da exploração das vidas passadas de Catherine... Há nesse campo algum poder curativo muito forte, um poder que parece muito mais eficiente do que a terapia convencional ou a medicina moderna...” (Muitas Vidas, Muitos Mestres)

Qualificar a terapia de vidas passadas como terapeuticamente superior à medicina moderna só mesmo na cabeça de Brian Weiss: será que se o Dr. Brian sofresse um infarto agudo do miocárdio buscaria socorro na TVP?

Podemos afirmar que a avaliação da experiência de Luciano dos Anjos significa aferir um dentre os melhores relatos regressionistas. O aspecto mais destacado na história dessa regressão é a proclamada fidedignidade dos relatos históricos, notadamente a citação de detalhes da vida de Desmoulins, que nem mesmo estudiosos versados conheciam. Desse assunto, Hermínio dá sua apreciação.

“Fui bom aluno de história nos bancos escolares e continuei a ler história por prazer e curiosidade, nas quatro ou cinco línguas em que posso fazê-lo. No entanto, naquela primeira sessão de 19 de maio de 1967, se alguém me perguntasse minutos

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antes de seu início qual o nome completo de Camille Desmoulins, onde ele nascera e em que dia, eu só poderia responder com um honesto e bem sonante Não sei...

...conferimos os informes principais logo após a primeira sessão-surpresa. Realmente, tal como dissera Luciano, o homem chamava-se Lucie Simplice Benoist Camille Desmoulins, nascera em Guise, no Aisne, em 2 de março de 1760.

...mesmo César Burnier, autoridade em história – especialmente a da Revolução −, confessou posteriormente que também ele ignorava que Camille tivesse aqueles outros nomes...” (Curiosa a declaração de Hermínio, “nas quatro ou cinco línguas em que posso fazê-lo”. Será que ele não sabe ao certo em quantas línguas é capaz de ler?)

Grande destaque é dado à capacidade mnemônica de Luciano, que recordava minudências da vida de Desmoulins, as quais talvez a maioria dos estudiosos não lembrasse, conforme sucedeu com a citação do nome completo de Camille Desmoulins. O próprio César Burnier, apresentado como especialista na Revolução, confessou que desconhecia o informe. Entretanto, saber do nome inteiro de Desmoulins não tem grande significado. Certo que é de estranhar que Burnier não o soubesse, visto que se apresentava como perito na matéria. Ainda que não recordasse, deveria ao menos saber que Desmoulins tinha vários nomes. Podemos comparar isso ao caso de estudioso da história do Brasil que não lembre todos os nomes pelos quais D. Pedro II foi registrado, de qualquer modo, deverá saber que o imperador possuía outros epítetos além de Pedro de Alcântara. (Para quem se interessar, a titulação completa do imperador era, Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga – ganha um doce quem o disser de um fôlego só).

Modernamente, o conhecimento de minúcias das vidas de personagens históricos é tido por secundário no aprendizado. Este tipo de informação, quando muito, demonstra a capacidade memorativa do estudioso. O mais importante é a compreensão das circunstâncias que envolvem os fatos históricos. Por exemplo, em vez de simplesmente decorar as datas de nascimento e o nome completo de todos os personagens da Revolução, o bom estudante esforçar-se-á por entender o porquê dos acontecimentos que ocasionaram o levante e as decorrências deles advindas.

Entretanto, a dúvida permanece: a citação do nome completo de Desmoulins, bem como da data de aniversário e o local de nascimento, podem ser consideradas relevantes para classificar a lembrança como autêntica recordação de vida passada?

Para alguns, a resposta seria sim, e o raciocínio que ampara tal suposição pode ser dessa forma: se uma pessoa, que não é especializada em história, de repente passa a revelar muitos detalhes da vida de algum personagem do passado, sem tê-los pesquisado, e se, além das lembranças, essa pessoa demonstrar emoções que mostram laços indeléveis com a tal figura, então temos indícios seguros de que se trata de legítimo caso de reencarnação!

Não é preciso refletir muito para perceber que esse pensamento, em termos de investigação científica, é de frágil sustentabilidade. Ele pode ser válido para uso em

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âmbito religioso, pois a fé acrescenta força aos pontos débeis da inferência, mas seria muito difícil levar adiante pesquisa baseada em ditames científicos partindo de tal proposta. Por isso, é preciso saber se além das boas lembranças existe algo mais a ser oferecido.

Contudo, é necessário considerar que as lembranças de Luciano dos Anjos não se restringiram a acertos relativos à idade, nome, endereço e questões correlatas. O jornalista também se referiu, e corretamente, a assuntos específicos daquela época: sabia o preço de jornais; como a moeda estava dividida (neste caso, sabia mais ou menos, pois cometeu erros); o salário do trabalhador e outros. Como, então, explicar isso, sem considerar a hipótese de legítima lembrança de vida passada? Pois é o que tentaremos apreciar nas linhas seguintes. Começaremos a analisar as reuniões, que aconteceram durante o ano de 1967, buscando nelas elementos que nos auxiliem a entender melhor o caso.

A EXPERIÊNCIA DE LUCIANO: NOSSA INTERPRETAÇÃO 

A fim de facilitar o entendimento do que será exposto no decorrer deste estudo, anteciparemos nosso entendimento do que foi a experiência regressionista do jornalista. A presente apreciação, acreditamos, ficará demonstrada pelos comentários que seguirão. De antemão, é importante que os leitores conheçam a linha argumentativa que seguiremos.

Entre Hermínio Miranda e Luciano dos Anjos foi firmado acordo tácito, no sentido de garimparem personalidade da qual muitos detalhes historicamente corretos pudessem ser revelados. Não dizemos que tenham articulado ostensivamente o plano, se assim fosse não seria acordo tácito; afirmamos, sim, que ambos buscavam experiência cujos resultados fossem superiores ao que normalmente se obtêm nos exercícios regressionistas. Em outras palavras, nas cogitações de cada um estava patente que poderiam explorar criativamente as perspectivas alvissareiras que o trabalho conjunto prometia.

Explicando, ainda, de outro modo: Hermínio Miranda intuía que Luciano dos Anjos fosse capaz de recuperar lembranças comparáveis às melhores já formuladas. Ambos estavam igualmente motivados nessa busca, as perspectivas eram em tudo promissoras. Por outro turno, Luciano precisava de alguém com quem pudesse atuar em plena harmonia, a fim de descobrir o personagem que acreditava ter sido, de cuja identidade talvez ainda não tivesse clara consciência. A convicção, presente em cada um, de que haviam encontrado a “pessoa certa” deve ter tomado forma após o primeiro encontro − apesar de não ser possível estabelecer com certeza quando de fato ocorreu esse primeiro encontro, conforme veremos adiante.

Em suma, Luciano estava intimamente persuadido de ter vivido na França revolucionária; Hermínio, certo de que era possível recuperar tais recordações. Em momento algum, qualquer dos dois aventou a hipótese de que lembranças da espécie pudessem ser explicadas por outros mecanismos, em outras palavras: partiu-se do pressuposto de que lembrança de vidas passadas é fato. O intento da dupla, assim nos parece, era obter demonstração cabal da reencarnação, pelo reconhecimento inequívoco de um vivo de identidade que assumira em existência pregressa. Por isso, neste

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comentário não abordaremos em profundidade as inconsistências da hipótese de que existam legítimas lembranças de outras existências.

A suposição que ora apresentamos não significa que enquadremos como fraudulenta a aventura de Luciano, nada disso, a aventura, cremos, foi real. A interpretação é que pede reparo. Nosso intento é deixar antevisto ao leitor o panorama que a história descortina. No decorrer dos comentários esse quadro ficará clarificado e devidamente ilustrado com declarações dos próprios envolvidos constantes do livro.

As sessões conduzidas por Hermínio Miranda com Luciano foram em número de dez, incluído aí o primeiro encontro, que pode ser reputado como reunião preliminar. As estas se somam mais duas, havidas após o término dos trabalhos, as quais intitularemos “especiais”. No total, foram doze encontros. Comentaremos os acontecimentos por nós julgados de maior interesse. 

REUNIÃO PRIMEIRA e as dúvidas dela decorrentes 

UMA NOITE DE MAIO DE 1967 (p. 19-22) Deste encontro não há muito o que dizer. Teria sido a primeira vez que Luciano dos Anjos se submetia a uma sessão de hipnose com Hermínio Miranda. O resultado deixou Hermínio positivamente surpreso, pois o paciente se revelou facilmente hipnotizável. Rapidamente, atingiu transe profundo, o que, na visão de Hermínio, favorece boas regressões. Destacamos a expressão “na visão de Hermínio” em virtude de haver regressionistas afirmando dispensar o transe hipnótico, estes tão-somente induziriam os candidados ao estado de relaxamento, − o que poderia ser classificado de “pré-hipnose” −, o que é por eles considerado mais adequado para que as lembranças fluam.

O registro curioso desse evento aconteceu após o despertamento. Vejamos o que sucedeu, de acordo com relato de Hermínio Miranda.

“Despertou faminto, devorou rapidamente uma generosa porção de bolo e pediu mais, sem a mínima cerimônia. Em seguida levantou-se, deu um passo incerto e desabou no tapete macio, como se não tivesse pernas. Na excitação do momento, havíamos sido imprudentes e precipitados – era necessário esperar alguns minutos em repouso até que seu espírito reassumisse totalmente os controles do corpo físico antes de empreender qualquer movimentação maior. Assim como o desprendimento se realiza por etapas, também a reintegração no corpo tem seu ritmo próprio e suas fases bem definidas...” (Eu Sou Camille Desmoulins. P. 21, 22)

Registrem, por favor, a seqüência dos eventos: 1º) despertou; 2º) devorou porção de bolo; 3º) levantou-se; 4º) desmoronou no tapete. Mais adiante destacaremos incompatibilidade entre esta narrativa e o que Luciano fala sobre tal encontro.

A explicação dada por Hermínio para o episódio está concorde com a idéia que defende, de acoplamento e desacoplamento do perispírito como conseqüência do processo hipnótico, e que nos parece concepção muito vaga para ser admitida; mesmo levando-se em conta as parcas explicações dadas por Hermínio, a conjetura nos parece incerta. Outros praticantes do hipnotismo não teorizam nada parecido com tal suposição. No entanto, o motivo do tombo tem elucidação trivial e passa distante da suposição de que a

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hipnose promova o desgrudamento do espírito: tendo em conta que Luciano atingiu o relaxamento profundo e assim esteve por bom tempo, a musculatura ficou completamente descontraída. É compreensível, portanto, que as pernas não reagissem de pronto. Era necessário que aguardasse alguns minutos, não para que o “espírito reassumisse o comando”, sim para que os músculos recuperassem a tonicidade. Por que buscar explicação complicada, quando se pode esclarecer o caso de forma simples e satisfatória?

Conforme foi dito, o livro “Eu Sou Camille Desmoulins” foi escrito conjuntamente por Hermínio Miranda e Luciano dos Anjos. Parece-nos claro que cada qual teve a liberdade de narrar os fatos da forma como entendeu e sentiu. Isso, a princípio, mostra que não houve “acerto”, para que contassem exatamente a mesma história. Em tese, trata-se de aspecto positivo, pois demonstra que o trabalho foi executado de forma espontânea, sem arranjos destinados a elidir pontos que jogassem dúvidas sobre a interpretação que os autores apresentam. O que dissemos a respeito de um “acordo tácito” entre Hermínio e Luciano, linhas atrás, não se aplica aqui.

Pois bem, Hermínio declara que a primeira experiência hipnótica a que Luciano se submeteu, sob seu auspício, ocorreu nesta reunião de maio de 1967, na qual pouca informação útil se obteve. Neste encontro, Hermínio Miranda informa que Luciano mostrava-se cético quanto à possibilidade de ser hipnotizado. Isso porque tentara outras vezes, com diversos operadores, sem resultados produtivos. Estava quase convicto de que não era candidato adequado para se submeter a investigações por esse processo, mas decidiu realizar nova tentativa. Qual não foi a surpresa de ambos, Luciano rapidamente entrou num sono hipnótico de excelente qualidade, conforme narra Hermínio Miranda (adiante veremos que Luciano diz coisa diferente a respeito desse estado hipnótico). Entretanto, a “facilidade” que Luciano encontrou para ser hipnotizado por Hermínio nos leva à seguinte indagação: por que Luciano, que mostrava-se resistente à hipnose, em diversas experiências, sob a direção de técnicos variados, com Hermínio obteve sucesso?

A resposta que nos parece mais adequada, reforça a suposição que apresentamos anteriormente, sobre Hermínio e Luciano terem encontrado um no outro a condição de levar à frente o projeto reencarnacionista que acalentavam. Luciano dos Anjos não se deu bem com os demais operadores porque na ocasião inexistia motivo que o estimulasse a cooperar. Os praticantes da hipnose, em geral, informam que toda hipnose, em verdade é uma auto-hipnose, ou seja, se o indivíduo não se sujeitar ao processo dificilmente poderá ser hipnotizado. Diante de Hermínio Miranda, Luciano dos Anjos se entregou à indução, tendo em vista o forte clima de confiança entre os dois e o interesse mútuo pelas regressões.

Precisamos, agora, nos atermos aos pontos controversos nos relatos. Em primeira leitura, esses pontos tendem a passar despercebidos, mas se cotejamos os testemunhos elaborados pelos protagonistas, logo as divergências saltam à vista. Comecemos pelo discurso de Hermínio Miranda.

“Um grupo do qual eu participava empenhava-se em algumas experiências exploratórias nos abismos da memória integral. Naquela noite de maio de 1967 estávamos reunidos num apartamento amplo e confortável em Copacabana. (...) 

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À reunião daquela noite compareceu Luciano dos Anjos, desejoso que estava de observar nossas experiências e debater nossos “achados”. Estávamos já habituados a receber, seletivamente, alguns amigos que manifestavam interesse em observar nossos trabalhos. A certa altura Luciano aquiesceu em submeter-se aos testes de suscetibilidade... Luciano, que contava então 34 anos de idade, acomodou-se confortavelmente num sofá... sem ser negativa, sua atitude era de moderado ceticismo, não ante o fenômeno em si da regressão ou, mais amplamente, quanto à reencarnação... Sua dúvida era quanto à sua própria suscetibilidade às induções hipnóticas ou magnéticas. Em várias tentativas anteriores, com diferentes operadores, não conseguira atingir nem mesmo os estados superficiais do transe anímico. Não custava, porém, tentar mais uma vez...

Após as instruções preparatórias e os esclarecimentos de praxe, ele fechou os olhos, relaxou o corpo... enquanto os passes eram aplicados lentamente, sem tocá-lo. Diria que a indução foi fulminante. Em escassos minutos percebia-se que ele mergulhara fundo no transe. (...)

Despertou faminto, devorou rapidamente uma generosa porção de bolo e pediu mais, sem a mínima cerimônia. Em seguida levantou-se, deu um passo incerto e desabou no tapete macio, como se não tivesse pernas. Na excitação do momento, havíamos sido imprudentes e precipitados – era necessário esperar alguns minutos em repouso até que seu espírito reassumisse totalmente os controles do corpo físico antes de empreender qualquer movimentação maior. Assim como o desprendimento se realiza por etapas, também a reintegração no corpo tem seu ritmo próprio e suas fases bem definidas, embora variáveis de pessoa para pessoa. Usualmente os primeiros músculos a se movimentarem são os das pálpebras; em seguida, os dedos das mãos ou dos pés, braços, pernas, até que todo o corpo esteja novamente sob controle da vontade. É freqüente observar nos sensitivos em despertamento a concentração da consciência na área específica da cabeça – nenhuma outra sensação física, nem mesmo senso de orientação quanto ao posicionamento do corpo. É como se todo o ser estivesse na cabeça, fosse apenas a cabeça. (Eu Sou Camille Desmoulins. P. 19-22)

Neste trecho, quem relata é Hermínio Miranda. Nota-se que o autor privilegia o passe, chamado “magnético”, como principal ferramenta indutora do transe, referência alguma faz a comandos verbais, os quais constituem o procedimento comum em hipnose. Agora, vejamos o que Luciano dos Anjos tem a nos dizer de seu primeiro encontro hipnótico com Hermínio.

“Quando começamos, eu e Hermínio, nossas sessões, em casa de E.V., em Copacabana, não me passara jamais pela cabeça que pudesse chegar a conclusões tão surpreendentes... Ouvindo-o falar, rapidamente, desse trabalho, sobre o qual me refiro com mais detalhes no Capítulo 3 da Segunda Parte deste livro, é que me entusiasmei e resolvi vê-lo de perto. O Hermínio contou-me as muitas pesquisas já realizadas nesse setor, algumas surpresas, diversos casos especiais, as variadas manifestações e os excelentes benefícios muitas vezes conseguidos. Disse-me, por alto, que empregava o método do Coronel De Rochas... Falamos dos métodos

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clássicos de regressão de memória e das diferentes hipóteses que inclusive no espiritismo são levantadas para explicar a fenomenologia do processo.

Recordamos o que nossos mentores espirituais nos têm ensinado nesse matéria e, por fim, marcamos o início das sessões. Confessei-lhe, com absoluta consciência da razão por que o confessava, que, lamentavelmente, não haveríamos a meu respeito, de chegar a nenhum resultado positivo, pois outras vezes eu tentara ser hipnotizado e nada conseguira. Cerca de dez anos antes, em casa do Dr. Aloísio Gonçalves, no Jardim Botânico, eu me entregara a várias sessões e não cheguei a ser hipnotizado. O máximo que se conseguiu foram alguns movimentos automáticos de braço, mas muito pouco significativos. O Dr. Aloísio Gonçalves, meu velho amigo, é autoridade indiscutível na matéria, capaz de conduzir seus clientes, em frações de segundo, ao mais profundo sono hipnótico. Mas comigo nem bastaram a água açucarada, a música, o disco visual... E o Dr. Aloísio me explicava esperançoso, que ás vezes são precisas até setecentas (!) tentativas para se conseguir inibir o córtex de uma pessoa. (...)

Uma tarde, eu e o Hermínio conversávamos em seu gabinete de trabalho... Dizia-me estar fazendo interessantes sessões de regressão da memória e me contava os casos mais significativos. Também eu lhe dizia dos meus sucessos e fracassos, narrando-lhe exemplos maravilhosos de materializações ou fraudes grosseiríssimas, que eu flagrava através do aparelho ótico, emissor de raios infravermelhos, de propriedade do cientista norte-americano Dr. Andrija Puharich... Ficou devendo o Hermínio uma visita, à minha sessão, e ele, em retribuição, estudaria uma oportunidade de eu também conhecer a dele. Mas o tempo corria e nunca cumpríamos nossos compromissos recíprocos. (...)

Assim... resolvi efetivar, afinal, nosso encontro. Estávamos em setembro ou outubro do ano de 1966. Marcamos a primeira sessão para uma segunda-feira, quando Hermínio me apresentaria à Sra. E.V., em cuja casa se realizariam os trabalhos... Quando os trabalhos com uma sensitiva terminaram, o Hermínio perguntou se eu não queria ser testado. Concordei e me deitei no sofá. Deixamos o ambiente em penumbra, e o Hermínio iniciou seu trabalho... ligava o gravador, sentava-se ao lado do paciente, na poltrona, e procurava induzir-nos ao sono, enquanto fazia a imposição das mãos, segundo o método de De Rochas. Eu − conforme já disse − não tinha nenhuma esperança e me mantinha estirado, de músculos completamente relaxados, menos por conhecimento prático do exercício do que por total descrédito quanto aos efeitos. Ouvia-lhe a voz monótona... Tudo conforme a boa técnica, mas já tão usado antes comigo sem qualquer resultado positivo. Foi nessas cogitações interiores − ou quem sabe, por causa delas! − que, depois de muitos minutos (a paciência de Hermínio é chinesa), aconteceu o inesperado: perdi a consciência! O Hermínio conseguira! (...)

Assim, ao lado da alegria, uma espécie de decepção me tocou: e eu? Contudo, pelo menos alguma coisa nova acabava de acontecer comigo. Restava prosseguir para vermos até onde chegaríamos. Aguardei mais uma semana e, na segunda-feira seguinte, voltamos ao apartamento da Sra. E.V. (Eu Sou Camille Desmoulins. P. 305, 306 e 352-354)

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O relato de Hermínio começa com o encontro propriamente dito; Luciano faz referência a contatos preliminares. Luciano estava curioso quanto ao trabalho que seu amigo conduzia e decidira acompanhar uma dessas reuniões. Só que as narrativas contêm discordâncias graves. Se fosse apenas questão de estilo redativo, ou mesmo a observação de certos acontecimentos sob óticas diversas, nada de sério poderíamos objetar. No entanto, as discrepâncias vão muito além. Primeiramente, as datas não batem: vários meses separam a primeira reunião informada por Luciano, do que seria o mesmo encontro, relatado por Hermínio (Luciano fala em outubro de 1966; Hermínio em maio de 1967). Segundo declara Hermínio Miranda, Luciano entrou em estado hipnótico quase automaticamente; entretanto Luciano afirma que Hermínio necessitou de muita paciência, até obter resultado. Luciano não faz menção ao cômico tombo que sofreu. A queda é comentada em outro encontro, o qual não coincide com o que Hermínio dele descreve. Ou ocorreram reuniões não noticiadas no texto de Hermínio, ou os autores estão falando de coisas diferentes.Vamos tabelar as informações, para facilitar a compreensão.

 OS FATOS Por HERMÍNIO

MIRANDAPor LUCIANO DOS ANJOS

OBSERVAÇÃO

Data do 1º encontro Maio de 1967, [provavelmente sexta-feira](p.19)

Setembro, ou outubro, de 1966, em uma segunda-feira (p.353)

Divergência. As datas não conferem

 Local do encontro

 Amplo e confortável apartamento, em Cobacabana, (não informa o nome do proprietário) (p.19)

 Imenso apartamento, da Sra. E.V., no 6º andar do prédio, de frente para o mar, (não informa o bairro) (p. 353)

 Parece ser o mesmo endereço

 Dificuldade ou facilidade pré-existente para vivenciar o transe hipnótico

 Realizara várias tentativas sem sucesso (p.20)

 Idem (p. 354)

 Relatos coincidentes

 Método utilizado por Hermínio para obter o transe

 Passe magnético. Somente depois do transe atingido é que aplicou comando de voz (p. 20)

 Passe magnético, concomitantemente com comandos verbais (p. 354)

 Divergência. Hermínio privilegia excessivamente o passe. Luciano noticia o uso concomitante do passe e do comando verbal

 Resultado da tentativa inicial de atingir o estado hipnótico

 Os passes obtiveram resultado imediato, classificado pelo operador como “indução fulminante” (p.20)

 Somente após muita insistência, por meio de comandos verbais, finalmente atingiu-se o estado hipnótico (p. 354)

 Divergência. Na opinião de um, a indução foi rápida; o outro afiança que demorou bastante. Hermínio atribui aos passes o resultado positivo; Luciano parece conferir maior valor ao comando de voz

 Atitude do

 Mostrava-se em pânico.

 Muita agitação e pouca

 Divergência. O

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hipnotizado durante o processo

Respondia monossilabicamente. Citou Necker, ministro de finanças de Luiz XVI (p.21)

informação. Citou um nome francês, que não ficou claro na gravação (p. 354)

relato perde a coerência ante a não referência ao nome de Necker por Luciano, que teria sido a única informação consistente conforme afirma Hermínio

 Após despertar

 Sentiu-se faminto, comeu bolo, tentou levantar-se e desabou no tapete.

 O tombo no tapete, para Luciano, ocorreu em outra reunião.

 Divergência.

  Pode ser que os autores estejam a falar de eventos diversos. Talvez cada qual tenha classificado como “primeiro encontro” acontecimentos não coincidentes. Seria discrepância muito grande as variações de datas, caso estivessem falando dos mesmos episódios. Se entendermos que se tratam de casos distintos, outro problema surge: significa que ocorreram encontros entre Luciano e Hermínio, que este não relatou. Nesta hipótese, fica prejudicada toda a narrativa concernente à inexperiência de Luciano no que tange às regressões e, em decorrência, toda sorte de suposições podem ser levantadas. Outro ponto que deve estar bem destacado é o resultado da indução: desde a sessão inicial que Hermínio garante ter Luciano entrado em estado hipnótico quase que imediatamente. Por outro turno, Luciano assegura de resistiu bastante até ceder. Não só nesta reunião ocorreu dificuldade para atingir o estado hipnótico, na que seria a segunda sessão, conforme o cronograma de Luciano − que não bate com o de Hermínio −, ele diz que levou entre “dez e quinze minutos” para ser vencido.

Mais adiante, apresentaremos os relatos por inteiro, para que possam ser comparados.

RESUMO DAS REUNIÕES, NAS NARRATIVAS DE HERMÍNIO E DE LUCIANO

 A fim de tentarmos entender como foi que cada protagonista vislumbrou os episódios regressionistas, faremos nova tabulação, especificando as datas de todos os encontros, e as coincidências e discrepâncias. Talvez assim tenhamos possibilidade de compreender os motivos que ocasionaram os desacordos narrativos. Hermínio nomeou o primeiro encontro como reunião de testes e começou a numerar as sessões a partir da 2ª, quando os encontros passaram a ser realizados na residência do autor. No quadro, numeramos linearmente, nominando “1ª sessão” a acontecida em maio de 1967 (no cronograma herminiano), portanto, o que está na tabela a seguir, registrado sob o título “1ª sessão” corresponde à “sessão de testes”; a 2ª sessão corresponde à primeira de Hermínio. Assim foi feito como tentativa de parametrizar os relatos, dada a não convergências das informações fornecidas por um e por outro. EVENTOS PRINCIPAIS Data e localSESSÕES Conforme

HERMÍNIOConforme LUCIANO

Conforme HERMÍNIO

Conforme LUCIANO

1ª sessão É hipnotizado rapidamente. Pouca informação útil; citou o nome de Necker (2); sente

Demora a ser hipnotizado. Pouca informação útil; falou nome francês não identificado;

Maio/1967 – (sexta-feira) (3) – apart. em Copacabana (p.19)

Setembro/outubro/1966 -(segunda-feira)(3) – apart. da Sra. E.V. (p.353)

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EVENTOS PRINCIPAIS Data e localSESSÕES Conforme

HERMÍNIOConforme LUCIANO

Conforme HERMÍNIO

Conforme LUCIANO

muita fome e come bolo, em seguida, tenta erguer-se e cai no tapete. (1)

Nenhuma referência ao Edson (4)

não fala da queda. Presença do Edson.(4)

 2ª sessão

 Foi rapidamente ao transe (P. 23). Revela que seu nome é Lucie Simplice Benoist Camille Desmoulins.Nenhuma referência ao Edson (4)

 Entra em transe após 10 ou 15 minutos (p.355). Ao despertar tenta ficar de pé e cai no tapete, depois sente muita fome e come bolo. (p.360) (1)

Presença do Edson (4)

 19/5/1967 (sexta-feira) – apart. de Hermínio (p.23)

 Segunda-feira seguinte à reunião acima – apart. da Sra. E.V. (p.354) 

 3ª sessão

 Revela que a esposa de Desmoulins é atualmente sua filha! (p. 47)

 Afirma que Necker fará besteira (2)

(p.362)

 26/5/1967 (sexta-feira) – não informa mudança no local da reunião, supõe-se que continuasse no apart. de Hermínio.

 Segunda-feira seguinte à reunião acima – não fala de mudança no local da reunião, supõe-se que continuasse no apart. da Sra. E.V. (p. 361)

4ª sessão Não faz referência à perda da gravação, narrada por Luciano, ao contrário, afirma que o “tape” existe (p. 65). Não relata suspensão dos trabalhos. (5)

A gravação desse evento se perdeu (Hermínio gravou outra sessão por cima) (p.365). Trabalhos suspensos (p.367). (5) Para Luciano, esta seria a penúltima reunião, depois fala do último encontro em 1/9/1967, o qual, pelo cronograma de Hermínio, é o penúltimo.

9/6/1967 (sexta-feira) – não informa mudança no local da reunião, supõe-se que continuasse no apart. de Hermínio.

Ocorreu na “semana seguinte” (p.365), na segunda-feira (p.367) – não fala de mudança no local da reunião, teria continuado no apart. da Sra. E.V.

5ª sessão Só existe relato de Hermínio desse encontro

Sem registro. 16/6/1967 (sexta-feira). Apart. de Hermínio.

Sem registro.

6ª sessão Só existe relato de Hermínio desse encontro

Sem registro. 23/6/1967 (sexta-feira) Apart. de Hermínio.

Sem registro.

7ª sessão Só existe relato de Hermínio desse encontro

Sem registro. 7/7/1967 (sexta-feira) Apart. de Hermínio.

Sem registro.

8ª sessão Só existe relato de Hermínio desse encontro

Sem registro. 14/7/1967 (sexta-feira) Apart. de Hermínio.

Sem registro.

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EVENTOS PRINCIPAIS Data e localSESSÕES Conforme

HERMÍNIOConforme LUCIANO

Conforme HERMÍNIO

Conforme LUCIANO

9ª sessão Só existe relato de Hermínio desse encontro

Sem registro 21/7/1967 (sexta-feira) Apart. de Hermínio.

Sem registro.

10ª sessão

Final das sessões de regressão

Sem registro 4/8/1967 (sexta-feira) Apart. de Hermínio.

Sem registro.

11ª sessão

1ª Sessão “especial” (p.248)

Último encontro (Hermínio informa ter havido mais outra reunião).

1/9/1967 (sexta-feira) Apart. de Hermínio.

1/9/1967Apart. de Hermínio.

12ª sessão

2ª Sessão “especial” (p.233)

Sem registro 8/9/1967 (sexta-feira) Apart. de Hermínio.

Sem registro.

 Observações: 1) Na queda de Luciano a seqüência dos acontecimentos está divergente: Hermínio diz que Luciano comeu o bolo e depois tombou sobre o tapete; Luciano declara que caiu no tapete e depois devorou o bolo. Além disso, a queda teria ocorrido em datas distintas, nas versões de cada um! Pode ser considerado confusão banal, que não afeta o essencial do caso. Vamos admitir que seja assim, de qualquer modo, isso demonstra que os participantes não observaram corretamente alguns dos acontecimentos, o que pode levantar suspeitas sobre a existência de outras discrepâncias que não foram anotadas.

2) Segundo Hermínio, no 1º encontro Luciano referira-se vagamente ao nome de Necker; contudo, no relato de Luciano a citação a esse personagem é mais ampla e aparece no 3º encontro.

3) As reuniões conduzidas por Hermínio, todas elas, são noticiadas às sextas-feiras; Luciano afirma que foram às segundas-feiras!

4) O “misterioso Edson”. Segundo Luciano o referido teria participado de pelo menos dois encontros, nos quais deu sugestões e aplicou passes. Hermínio, em momento algum, faz menção a esta pessoa, tampouco confirma que precisava de ajuda na aplicação dos passes magnéticos!

5) Ao final da 4ª sessão, no cronograma de Luciano, ele informa ter havido suspensão dos trabalhos, fato não relatado por Hermínio. O jornalista declara que precisava reavaliar se seria adequada a continuidade do experimento. Então, consultou o “alto”, recebeu mensagem mediúnica que o estimulava a seguir adiante e, a partir de então, as sessões reiniciaram. Contudo, ele não descreve o que houve nas sessões seguintes, nem diz por quanto tempo perdurou a suspensão.

Luciano assevera que expõe literalmente o que consta na fita (“vamos acompanhar cada passo, cada momento, cada gesto” – p.352). Vimos que o primeiro encontro de um e de outro estão completamente diferentes. Se desconsiderássemos a 1ª reunião informada por Luciano e a comparássemos os encontros seguintes, alguns pontos encaixam, porém

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outras contradições permanecem e surgem novas. A verdade nua e crua é que os relatos são desarmoniosos e repletos de pontos contraditórios entre si.

Se o prezado leitor sentir dificuldades em acompanhar a descrição desses desencontros, fique tranqüilo, nós também ficamos perdidinhos, e ainda não nos achamos por inteiro. O que estamos fazendo é uma tentativa de dar coerência ao que foi dito pelos envolvidos. Caso alguém, que tenha acesso à obra, puder ajudar a esclarecer essas dúvidas, por gentileza, que o faça, pois do jeito que a coisa está a validade do relato fica ameaçada.

A seguir, apresentaremos alguns dos diálogos por inteiro, bem assim as avaliações que cada um dos protagonistas realizou. Apesar de os textos serem longos, vale ser lido por quem estiver interessado em investigar o assunto. Intercalamos alguns comentários de nossa autoria, entre [colchetes], em cor vermelha, a fim de facilitar a visualização dos pontos controversos.

Luciano dos Anjos descreve quatro sessões e mais uma reunião em 1/9/1967. Seguiremos a ordem por ele estabelecida e tentaremos encaixar as descrições de Hermínio de forma que harmonize. Desse modo, o que Luciano diz ter sido o 1º encontro no registro de Hermínio corresponderia à sessão preliminar, constante do capítulo 2, da primeira parte, intitulado “O Sempre e o Agora” − ao menos, assim nos parece, pois a esta altura já não temos mais convicção de coisal alguma!

Alinharemos os textos de Hermínio e de Luciano lado a lado, esperando facilitar a leitura comparativa. Em algumas partes dos escritos a distância entre os parágrafos é aumentada, o que pode parecer equívoco de formatação. Contudo, assim foi feito na tentativa de pôr em linha os poucos pontos similares encontrados. Quando não é possível qualquer identificação comum, os textos seguem paralelos.

Lembramos que os escritos entre [colchetes e em cor vermelha] são comentários de nossa autoria.  

RELATO DA 1ª REUNIÃOHERMÍNIO MIRANDA LUCIANO DOS ANJOS2. O SEMPRE E O AGORA 

Um grupo do qual eu participava empenhava-se em algumas experiências exploratórias nos abismos da memória integral. Naquela noite de maio de 1967 estávamos reunidos num apartamento amplo e confortável em Copacabana.

[esta 1ª sessão é a única onde Hermínio não especifica data, as demais, todas, cairam às sextas-feiras, podemos inferir que também tenha sido o caso desta, apesar de Luciano declarar que ocorreu em outro dia]

Já não me lembro quantos seríamos – não mais que doze pessoas –, homens e mulheres, jovens, adultos e idosos. Diria que o nível intelectual e cultural estaria situado razoavelmente acima da média. A

p.353...

Assim, estupefato diante da sua própria história, resolvi efetivar, afinal, nosso encontro. [seria este, pois, o primeiro encontro] Estávamos em setembro ou outubro do ano de 1966. Marcamos a primeira sessão para uma segunda-feira, quando o Hermínio me apresentaria à Sra. E.V., em cuja casa se realizariam os trabalhos.

 [Todos os encontros relatados por Luciano teriam ocorrido às segundas-feiras; as datas noticiadas por Hermínio caem todas às sextas. Observe, ainda, a enorme discrepância entre as datas: Hermínio informa que ocorreu em maio de 1967, Luciano diz que foi em outubro de 1966!].

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conversa era inteligente, a curiosidade sadia, o clima emocional de moderada excitação ante as eternas atrações do desconhecido, do mistério, do ignorado. Para alguns de nós o fenômeno da regressão da memória mantinha sua aura de mistério, mas não era teoricamente desconhecido ou ignorado, dado que, mesmo antes da explosão publicitária que projetara, em 1956, o livro de Morey Bernstein nas manchetes (The Search for Bridey Murphy), estávamos familiarizados com as famosas e inexplicavelmente esquecidas pesquisas do eminente coronel, engenheiro e Conde Albert de Rochas d’Aiglun, na França, aí pela primeira década do século XX.

Além do mais, o núcleo central do grupo era composto de pessoas que estudavam com assiduidade o espiritismo e o praticavam, procurando utilizar seus conceitos básicos como princípios ordenadores da vida. De há muito a prática mediúnica confirmara para nós postulados essenciais do espiritismo, tais como a sobrevivência do ser a doutrina das vidas sucessivas, ou reencarnação.

[conclui-se que não havia ânimo entre os participantes para analisar criticamente questões atinentes a essas matérias, a intenção era buscar eventos demonstrativos das crenças acalentadas pelo grupo]

À reunião daquela noite compareceu Luciano. dos Anjos, desejoso que estava de observar nossas experiências e debater nossos “achados”. Estávamos já habituados a receber, seletivamente, alguns amigos que manifestavam interesse em observar nossos trabalhos. A certa altura Luciano aquiesceu em submeter-se aos testes de suscetibilidade, como sujet, ou sensitivo. Duas técnicas predominavam nesse grupo: a da sugestão verbal, caracterizada especificamente como hipnose, e a magnetização por meio de passes longitudinais, empregada pelo coronel de Rochas. Era comum a utilização combinada dessas duas técnicas, ou da preferência de uma à outra, segundo a natureza do sensitivo.

[nos comentários iniciais deste estudo falamos sobre as fragilidades desta concepção de Hermínio a respeito da hipnose]

Como este assunto é estudado em outros escritos de minha autoria (ver, por exemplo, A Memória e o Tempo), escuso-me de repetir aqui considerações que nos tomariam muito tempo e espaço.

Luciano, que contava então 34 anos de idade, acomodou-se confortavelmente num sofá, após livrar-se dos sapatos e afrouxar o cinto e o colarinho. Sem ser negativa, sua atitude era de moderado ceticismo, não ante o fenômeno em si da regressão ou, mais amplamente, quanto à reencarnação, de vez que era (e é) profundo conhecedor da doutrina dos espíritos e

Ali chegando conheci, também um médium chamado Edson , que vai, depois, ter seu pequeno papel no desenrolar das nossas reuniões. Ele era médium já desenvolvido, experimentado, aparentando certa tranqüilidade muito útil.

[este Edson, apesar de, para Luciano, ter uma certa importância nesta e na reunião seguinte, não é citado em momento algum por Hermínio.]

Quando os trabalhos com uma sensitiva terminaram, o Hermínio perguntou se eu não queria ser testado. Concordei e me deitei no sofá. Deixamos o ambiente em penumbra, e o Hermínio iniciou seu trabalho. O apartamento era imenso. A sala onde estávamos tinha bem uns cinqüenta metros quadrados. O Principal ornamento era um retrato, em tamanho gigante, do falecido marido da Sra. E.V. Uma varanda grande contornava o apartamento, que ocupava todo o sexto andar de onde se observava uma vista maravilhosa da praia. Havia, sempre, uma aragem muito fresca entrando pelas janelas. E por todas as paredes viam-se quadros, enfeites, cortinas, etc., um mundo de recordações e de relíquias da longa vida da Sra. E.V.

Não se ouvia ninguém, não se escutava nada, senão os ruídos que vinham lá de baixo da rua, ou do vento soprando de leve. O Hermínio ligava o gravador, sentava-se ao lado do paciente, na poltrona, e procurava induzir-nos ao sono, enquanto fazia a imposição das mãos, segundo o método de De Rochas.

[note que a imposição de mãos é aplicada concomitantemente ao comando de voz. No relato de Hermínio ele prefere destacar os passes, como se fossem estes os que levaram o paciente ao sono hipnótico]       Eu – conforme já disse – não tinha nenhuma esperança e me mantinha estirado, de músculos completamente relaxados, menos por conhecimento prático do exercício do que por total descrédito quanto aos efeitos. Ouvia-lhe a voz monótona... Tudo conforme a boa técnica, mas já tão usado antes comigo sem nenhum resultado positivo.     

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participava ativamente do movimento espírita, principalmente como escritor, aproveitando-se da sua experiência como jornalista profissional. Sua dúvida era quanto à sua própria suscetibilidade às induções hipnóticas ou magnéticas. Em várias tentativas anteriores, com diferentes operadores, não conseguira atingir nem mesmo os estados superficiais do transe anímico. Não custava, porém, tentar mais uma vez ...

[no que se refere à dificuldade em atingir o transe hipnótico, as narrativas coincidem plenamente. Infelizmente, é uma das poucas partes em que encontramos harmonia entre os relatos]

Após as instruções preparatórias e os esclarecimentos de praxe, ele fechou os olhos, relaxou o corpo e passou a respirar regularmente, enquanto os passes eram aplicados lentamente, sem tocá-lo. Diria que a indução foi fulminante. Em escassos minutos percebia-se que ele mergulhara fundo no transe. Pouco depois, vencendo as inibições e dificuldades típicas de quase todos os sensitivos nas suas experiências iniciais começou a responder às primeiras perguntas do magnetizador. Estava literalmente em pânico, desconfiava de tudo e de todos, como que acuado, temendo alguma tragédia iminente e pessoal. As respostas eram sumárias, quase monossilábicas, revelando extrema agitação íntima. Vivia, obviamente. um momento de grande tensão emocional e sob pressões insuportáveis, cujas origens e motivações recusava-se obstinadamente a revelar. Tornou-se, por conseguinte, muito difícil, senão impraticável, formular um juízo avaliador sobre aquele amontoado um tanto incoerente de frases soltas. Um só elemento identificador emergiu, afinal, daquele confuso estado de espírito: a referência a Necker. Luciano em transe falava no famoso ministro das Finanças de Luís XVI não como uma personagem embalsamada nas páginas de um texto histórico, mas como alguém vivo e atuante, cujas decisões estavam influindo ali, naquele momento, no fluxo de relevantes acontecimentos políticos.

Esse importante elemento informativo nos levava ao contexto da Revolução Francesa, identificava um período histórico, mas era muito pouco para se manter sobre ele uma hipótese plausível. Era, contudo, uma indicação preliminar suscetível de ser prudentemente explorada. Pelo menos esta especulação era válida: estaria Luciano revivendo cenas ou situações que testemunhara no período da Revolução de 1789? Era cedo para tirarmos conclusões, mas, preliminarmente, a hipótese servia para entender seu agitadíssimo estado emocional. Estávamos todos bem conscientes, contudo, de que a fragmentária experiência suscitava mais perguntas do que as que tentara responder.

Para não prolongar indevidamente sua agitação, ele foi logo despertado com palavras

   Foi nessas excogitações interiores – ou, quem sabe, por causa delas! – que, depois de muitos minutos (a paciência do Hermínio é chinesa), aconteceu o inesperado: perdi a consciência! O Hermínio conseguira! O ciclo do processo parecia ter-se completado!

[Note a grande discrepância entre as narrações! Um diz que a indução foi fulminante; o outro afirma que o operador precisou de muita paciência para obter o resultado!]

Do que houve, só vim a saber mais tarde, quando o gravador foi religado e pude ouvir meu primeiro diálogo com o Hermínio. Havia mais agitação do que qualquer outra coisa. A certa altura, eu disse:

– Você me abandonou.

Não sei que sentido isso tinha e muito pouco mais foi possível ser entendido. O Hermínio ficou em dúvida e pediu a opinião do Edson, ali ao lado. Este admitiu que se tratasse não do meu espírito, mas de simples manifestação mediúnica, o que, em princípio, o próprio Hermínio também aceitou.

Embora sem segurança, concluímos, porém, que a manifestação tinha ligação com a Sra. Isabel, que me precedera na poltrona, cujo marido, um inglês, desencarnara em desastre de aviação e, na espiritualidade, estava supondo que ela o abandonara, por casar-se em segundas núpcias. Ele apresentou um nome francês, que não conseguimos apurar bem na gravação. Reclamava de qualquer pressão na altura dos rins. Os dados pareciam encaixar-se bem e devo dize que nunca havia visto antes aquela senhora, nem lhe conhecia a história, que só mais tarde o Hermínio me contaria.

[Neste ponto, as narrativas tomam rumos diversos. Hermínio informa que houve referência a Necker, o que levaria a pesquisa ao contexto da Revolução Francesa; Luciano declara ter proferido uma frase solta, que teria ligação com o problema de uma pessoa presente ao encontro, nada sobre a Revolução!] 

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tranqüilizadoras. Lembro-me muito bem que ao regressar do sempre para o agora ficou ainda por alguns segundos entre uma situação e outra, já de olhos abertos, olhando-me fixamente, ainda assustado, como se buscasse decidir, com toda a rapidez possível, se eu era amigo ou inimigo, se estava ali para ajudá-lo em alguma coisa, olhá-lo com indiferença ou arrastá-lo sumariamente para alguma masmorra infecta, onde faria o vestibular da guilhotina. Logo, porém, me identificou corretamente: eu era um sujeito pacífico, seu amigo pessoal, não lhe apontava nenhuma arma ameaçadora. Graças a Deus, deve ter pensado com seus botões...

 [no relato de Luciano, relativo à sessão seguinte, neste ponto o Edson teria interferido, aplicando passes revigorantes. Hermínio parece desconhecer a existência dessa pessoa...]

Despertou faminto, devorou rapidamente uma generosa porção de bolo e pediu mais, sem a mínima cerimônia. Em seguida levantou-se, deu um passo incerto e desabou no tapete macio, como se não tivesse pernas. Na excitação do momento, havíamos sido imprudentes e precipitados – era necessário esperar alguns minutos em repouso até que seu espírito reassumisse totalmente os controles do corpo físico antes de empreender qualquer movimentação maior. Assim como o desprendimento se realiza por etapas, também a reintegração no corpo tem seu ritmo próprio e suas fases bem definidas, embora variáveis de pessoa para pessoa. Usualmente os primeiros músculos a se movimentarem são os das pálpebras; em seguida, os dedos das mãos ou dos pés, braços, pernas, até que todo o corpo esteja novamente sob controle da vontade. É freqüente observar nos sensitivos em despertamento a concentração da consciência na área específica da cabeça – nenhuma outra sensação física, nem mesmo senso de orientação quanto ao posicionamento do corpo. É como se todo o ser estivesse na cabeça, fosse apenas a cabeça.

               

[este episódio do tombo no tapete Luciano o situa no encontro seguinte, não neste.] 

 Conclusão imediata: Há nítido contraste entre o testemunho de Hermínio e o de Luciano: as datas não coincidem, os acontecimentos são diferentes e, até mesmo nos trechos onde se encontram alguns pontos em comum, detectamos discordâncias, como é o caso do processo hipnótico, que para um foi fácil de ser obtido e para outro custoso. Sigamos, avaliando o 2º encontro, para vermos se deparamos conformidade nos

depoimentos.  

RELATO DA 2ª REUNIÃO

HERMÍNIO MIRANDA LUCIANO DOS ANJOS3. O AGORA QUE JÁ PASSOU De tudo isso, uma conclusão era evidente por si mesma: Luciano apresentava condições de suscetibilidade que justificavam o aprofundamento da pesquisa.

p.354... Assim, ao lado da alegria, uma espécie de decepção me tocou: e eu? Contudo, pelo menos alguma coisa nova acabava de acontecer comigo. Restava prosseguir para vermos até onde chegaríamos.

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Foi o que decidimos fazer, não em reunião mais ou menos aberta como aquela, na qual realizamos os testes, mas sob condições que nos assegurassem o adequado grau de privacidade e segurança para um trabalho mais amplo. A primeira reunião com estas características foi marcada para a noite de 19 de maio de 1967, em meu apartamento.  [19/5/1967 caiu numa sexta-feira. Segundo Hermínio, houve mudança no local da reunião, no relato ao lado, Luciano afirma que o encontro realizou-se no mesmo local anterior] 

       

Como da primeira vez, Luciano foi rapidamente ao transe. Sua primeira palavra (vento) me pareceu uma queixa quanto ao desconforto causado pela brisa que soprava pelas janelas abertas do décimo andar, onde estávamos. Levantei-me para fechá-las e retomamos o diálogo que se iniciava.

 O que se segue é uma transcrição desse diálogo, com o mínimo de correções, para conservar-lhe o frescor da espontaneidade e o tom de autenticidade que ficou nos tapes. A primeira fala é minha. (...) [Eliminamos o trecho no qual Luciano narra episódios da vida presente, conforme o relato de Hermínio, uma vez que o jornalista a ele não faz referência no que diz ser a narrativa desse encontro. Estas podem ser conferidas no livro, capítulo 3, “O Agora que Já Passou”. Contudo, nesta parte omitida há uma nota inserida por Luciano dos Anjos, que reproduzimos a seguir] “Na segunda parte deste livro o leitor encontrará, com todas as suas minúcias, o desenrolar dessa primeira experiência, bem como toda a sintomatologia registrada antes, durante e após o desdobramento. (Nota de Luciano dos Anjos.)” [O problema é que não encontramos, na parte escrita pelo jornalista, qualquer relato que lembrasse o que foi descrito por Hermínio Miranda.]

  Ele se mostra um tanto agitado e diz ter medo.

Aguardei mais uma semana e, na segunda-feira seguinte voltamos ao apartamento da Sra. E.V.  [se formos seguir rigorosamente o que foi dito por Luciano, esta reunião teria acontecido em outubro de 1966, numa segunda-feira. Também o local do encontro não confere, Hermínio noticia que foi em sua casa, para Luciano continuaram a reunir-se no apartamento da Sra. E.V.]

Eu estava apenas entre desanimado e curioso, enquanto o Hermínio me consolava: -Bem em última análise, teremos conseguido comprovar, mais uma vez, que nesse tipo de trabalho é possível, de permeio, surgir uma manifestação mediúnica. Nosso tempo não estará perdido nem foi gasto em vão. E sempre uma contribuição que teremos dado à pesquisa.

Porém a segunda sessão nos pareceu bem melhor.

[vê-se que ambos falam que este seria o segundo encontro]

Entrei novamente no estado de inconsciência, após dez ou quinze minutos de indução.

[os desacertos entre os dois continuam: para Hermínio o transe foi rápido, para Luciano precisou de tempo]    [Na transcrição de Hermínio − veja comentário ao lado − aparece Luciano inicialmente recordando eventos de sua existência atual e depois Hermínio o induz a falar do passado remoto. Luciano, não faz referência a esta recordação preliminar, começa já dentro da rememoração de outra vida. A princípio isto não seria considerado contradição − supostamente um quis relatar toda a gravação, outro teria privilegiado a parte que julgou mais interessante. Mesmo assim, deveria Luciano ter noticiado a existência da outra parte, porém não vamos ser severos neste quesito. A maior dificuldade é que, mesmo nas lembranças relativas a existência francesa os relatos não batem.] Houve, então, entre mim e o Hermínio um longo diálogo, ainda entremeado de agitação, mas muito mais substancioso, o qual passo a transcrever, ipsis litteris, sem quaisquer correções, isto é, tal qual ficou na fita magnética:

– que está se passando com você?– Estou vendo uma sala ... – O que tem aí na sala? – ... uma sala muito grande ... Umas pessoas

conversando, em pé, em volta duma mesa. Eu estou parado na porta. Discutem... discutem ... com uns papéis. Parecem querer minha opinião. Mas não me

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[provavelmente, aqui dramatiza, para dar mais ênfase ao personagem que representará]  Intensificamos os passes e as sugestões tranqüilizadoras. Após algum tempo em silêncio, volta a falar, com voz lenta e apagada. É ainda Luciano e está em casa. Está com dois anos e a regressão prossegue, enquanto sua voz como que se apaga num murmúrio ininteligível. No momento seguinte, parece tomar fôlego, assumindo imediatamente uma personalidade adulta, confiante, segura de si e consciente das circunstâncias que o envolvem, com pleno domínio do contexto em que se encontra.

– Onde você se encontra no momento? – pergunto.

– Aqui. – Quem é você? Como você se chama? Breve hesitação, e depois: – Camille.

[revela o nome. Observem que na narrativa ao lado isso não se dá]

– Qual é sua idade? – 25 anos. – Onde você mora? – Paris. – O que você faz aí? – Vim estudar.  – Em que ano você nasceu? – 1760. – Onde você nasceu?– Em Guise.– Onde é isso?A manifesta ignorância de seu

interlocutor parece irritá-lo um pouco. Responde com certo enfado:

– Na França! Em Aisne!– Você veio estudar o quê?– Advocacia. Por quê? LC-1O interrogatório começa a incomodá-lo.

Por que tanta pergunta?– Quero saber. Queria que você me

informasse essas coisas.Longa pausa. Em seguida:– Estranho!– O que você está achando estranho?– Você. Quem é você?– Sou um amigo seu.Longo silêncio. Parece buscar algo nas

profundezas da memória.– Engraçado! Acho que te conheço...

Não me lembro de onde... Você não é de Guise? Você não nasceu em Guise?

– Não. Acredito que não. Você sabe que vivemos uma porção de vidas?

Nova pausa.– Não sei o que é isso...– Temos muitas vidas. Vivemos uma

pedem. Não querem que eu fale. Estou com a mão no queixo, na porta ... parado... olhando, acompanhando, calado ...

– Mas que local é esse? – Não. Uma sala grande ... Parece um

gabinete.   

   – Como é que você se chama? – Não sei se devo... Não interessa isso ...

[resiste em revelar o nome. Hermínio diz que, após breve hesitação, o nome foi proferido]

– Está bem. Não é necessário que você diga. Qual é sua função? O que você faz aí?

– Alguma coisa esperam de mim.  [vê-se que o rumo dos diálogos é completamente diferente]

 – Sei... Vá ver então o que são os papéis? – Eu sei o que são. – De que eles tratam? – Política. – Quem são esses homens que estão

examinando os papéis? – Um é baixo... Os outros não distingo

direito. – Como é que chama esse homem baixo, aí?

(Longa pausa. Hesitação.) Você quer evitar os nomes?

– Quanto menos se fala, mais se vive. – Exato! – É um perigo falar em nomes. Não se sabe o

dia de amanhã. – Mas, em que ano estamos, aí? – Não sei, mas posso ver a folhinha. – Então veja. – Está atrás. Não tem o ano ... – Vá até à folhinha e veja.

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existência, morremos e tornamos a nascer.– Por que isso? Por que essa conversa?– Se você pesquisar na sua memória

encontrará lembranças de outras existências.– Por que isso tudo? – pergunta

evidentemente irritado. – O que você quer?– O que você está fazendo aí?– Vim estudar!– Mas no momento o que você está

fazendo?– Andando... Passeando...– Onde?– Na França! Em Paris!– Em qual rua?– Saint Honoré...– Onde você mora?– Em Paris! Aqui...Como insisto em saber o nome da rua

em que fica o colégio dele, sua impaciência vai num crescendo.

– Ora... que coisa! Por quê?– Gostaria que você me dissesse.– Não vejo razão.– Você diz que tem 25 anos. Quando

vai concluir seu curso?– Agora. Este ano.– Em que ano estamos?Outra pergunta que lhe soa

absolutamente imbecil. Como é que alguém com quem conversamos não sabe o ano em que nos encontramos? Responde de má vontade:

– 1785. Por quê? [Ver-se-á na narrativa de Luciano, ao lado, que nenhuma das datas citadas coincidem]

– Queria saber. Estou procurando localizar bem a gente no tempo e no espaço. Você acha estranho isso tudo?

 Certamente tudo é estranhíssimo para

ele. Vejamos bem o quadro: um jovem estudante de Direito passeia em pleno ano de 1785 pela rua Saint Honoré, em Paris, quando é interceptado por um sujeito não menos estranho que lhe dispara uma série de perguntas perfeitamente idiotas. E o pior é que ele tem a impressão de que conhece tal pessoa de algum lugar. O que estaria acontecendo, afinal de contas?

[Há alguma coisa não bem explicada nesta explanação de Hermínio Miranda, vejam só: a narrativa indica que Luciano estivesse revivendo sua vida como Desmoulins, na França. Neste caso, não seria mais ele, Luciano, quem estava presente, sim Camille, poder-se-ia concluir que Luciano se apagara e fora substituído por Desmoulins (afinal ela estaria passeando pela Paris do século XVIII). A questão é que o jornalista não responde plenamente como Desmoulins, um “pedaço” de Luciano se mantém ativo. O que ambos

– ... janeiro, 1781. [as datas não são as mesmas, o que deixa clara que os relatos se referem a encontros diferentes. No entanto, apesar das narrativas quase que totalmente divergentes, ambos garantem estar falando do 2º encontro!]

– 81? As coisas estão ficando mais claras para você, agora?

– Por quê? – Você não está distinguindo melhor as

pessoas e os objetos? – Não sei... “Eles” querem que eu dê uma

palavra de orientação. Eu sei o que eles querem. – Então procure saber o que aconteceu

depois disso ... – Mas eu não devo... Não devo... Sei o que

querem. Não devo. – Você está aí num momento especial da sua

existência; mas o que aconteceu depois disso? Qual foi o acontecimento em que você tomou parte que precipitou alguma coisa?

– Não sei. Alguma coisa muito grave deve estar acontecendo.

– Você sabe. Está tudo guardado na memória do seu espírito.

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parecem não perceber é que Luciano tinha de estar presente para que o diálogo fluísse. Se a identidade atual “sumisse” por completo, Hermínio teria de manter conversação com uma pessoa do séc. XVIII em todos os sentidos! Peripécia que nos parece muito difícil de ser realizada! O que supomos estar demonstrado nessa cena é o esforço de Luciano em representar o que ele julgava fosse a personalidade de Camille Desmoulins. O único modo que reputamos viável de conceber-se que Luciano “desaparecesse” e fosse substituído por Desmoulins, conforme parece nos dizer Hermínio Miranda, seria que a conversa transcorre no contexto daquele período: Hermínio e Luciano/Desmoulins teriam que dialogar no francês do séc. XVIII, fazendo uso dos maneirismos da época. O que se pode dizer dessa suposta revivência é que a personalidade atual estivesse recessiva, atuando em segundo plano, mas não apagada. Desse modo, a sugestão que Hermíno nos dá torna-se inaceitável

−(Vejamos bem o quadro: um jovem estudante de Direito passeia em pleno ano de 1785 pela rua Saint Honoré, em Paris, quando é interceptado por um sujeito não menos estranho que lhe dispara uma série de perguntas perfeitamente idiotas.)

Na descrição que Luciano faz da indução que experienciou, o recesso da consciência, em vez de apagamento, fica patente. Na parte escrita por Luciano, ao lado, consta essa narrativa, observemos um trecho.

“A voz do Hermínio era poderosa, imperativa, ecoava como uma imposição absolutamente férrea. Minha ausência de controle psíquico era total, o clima psicológico parecia infundir-me uma desarmonia geral no meu sistema interior e, quando afinal o paroxismo do pânico me envolveu, perdi a consciência! Seguiu-se o diálogo que vimos acima, o qual durou cerca de uma hora”.

Apesar de ser um testemunho dramatizado, percebe-se que a consciência do paciente vai, aos poucos, recolhendo-se, até que a suposta personalidade de Camille tome a dianteira, passando Luciano a atuar subliminarmente.Não se pode esquecer que a suposição de que a real personalidade do paciente possa se apagar e ser substituída por outra consciência − mesmo que se trate de uma dita encarnação pregressa − contraria as boas teorias da hipnose, as quais postulam que o hipnotizado nunca fica completamente sob o controle do operador. Por isso é que os que se submetem à

[clara indução, para que o paciente responda conforme a teoria advogada pelo operador]

– Sei, mas não devo falar. Prudência, nessas horas, é a melhor companheira. Querem que eu fale. Eu nem sei de que lado estou. . .

– Sei. Então, vamos deixar esse período aí. Recuemos um pouco mais, na sua memória, para você relembrar-se de fatos menos tensos, menos cheios de preocupação. Procure recordar-se do tempo em que você era ainda jovem e procurava abrir caminho na vida, para assim guardar uma lembrança melhor e rememorar.

– Há um riacho... estou brincando, numa subida ...

– Quantos anos você tem? -Uns 17 ... 18...  – Em que ano você nasceu? – Não me lembro bem ... 1721 ... Acho que é

isso. – Onde você nasceu? Em que cidade? – Lyon. – Procure lembrar-se. Você dispõe, neste

momento, da sua memória integral.

[Aqui vemos, nitidamente, Hermínio Miranda conduzindo o paciente a responder conforme a teoria da “memória integral”, por ele defendida. Aliás, a leitura das sessões mostra que freqüentemente Hermínio como que força o regredido a acatar os postulados que abraça. Em vista de Luciano comungar as mesmas crenças que Hermínio Miranda não ocorrem conflitos. Seria interessante acompanhar um trabalho hipnótico em alguém que rechaçasse essas suposições. Ainda assim, Luciano não responde placidamente ao que lhe é imposto: muito pouco da suposta memória integral apregoada por Hermínio foi exibida pelo jornalista. Em outro trecho, ele insiste com o regredido: “Você sabe. Está tudo guardado na memória do seu espírito”. Porém, a resposta é pífia.]

– O corpo está girando... ficando leve ... – Como é que se chamava seu pai? – Antoine ... – E sua mãe? – ...

[lembra o nome do pai, mas não consegue dizer o nome da mãe! A propalada memória prodigiosa aqui falha dramaticamente!]

 – Você é capaz de vê-lo, agora? Ver o seu

pai? Procure lembrar-se de uma época em que ele ficou mais bem gravado na sua memória. A figura dele... o seu pai, em plena atividade, realizando alguma coisa que você tenha presenciado.

Longa pausa. – Ele foi covarde ...

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hipnose, em certos casos, rechaçam os comandos que lhe são dados: a consciência, recessiva mas vigilante, não acata qualquer imposição. Se a sugestão significar ofensa, agressão, ou algo que o paciente entenda perigoso para si, ele rejeitará.] 

– Há alguma pessoa aí perto de você?– Não. Estou sozinho.– Como você vê as coisas? Está bem

claro o ambiente? Está escuro? Como é?– Sozinho... passeando... andando...– Você não está vendo ninguém na rua?– Não. Não reparei. É. Tem gente por

aí. Lá longe, ali, lá...– É dia, ou noite?– É dia. Está claro.– E o que você vai fazer? Somente

passear? – Só. Por quê? – E depois você volta para o colégio? – Volto. A situação é incongruente, ridícula,

absurda e ele continua a buscar na memória a identidade perdida do seu interlocutor. Esboça um sorriso e repete:

– Conheço você. Não me lembro de onde... Você estuda onde?

Formulo uma resposta evasiva. Que outra coisa poderia dizer?

– Estou apenas procurando conversar um pouco com você.

Mas ele insiste: – Você estuda onde? – Não estudo aqui, não. – Hmm. – Você se lembra de ter-me visto em

algum lugar, não é? – Conheço você. Lembro bem. – Descreva, então, meu tipo. – Como você é? Por quê? É você, como

você é... – Diga como estou vestido... qual a

minha aparência física. – Igual a mim... umas roupas...

(interrompe e emite uma enorme exclamação). Ahnnnnnnnn! Engraçado! Você não é pari-siense... Não usam essas roupas aqui.

– São antigas, não é? Qual a idade que você me atribui?

– Isso é que eu não entendo, porque... Engraçado! Que coisa esquisita! Eu fazia idéia de um garoto, e você é um homem. Devo me lembrar de você com uns 10 anos... 11... um garoto. Não estou entendendo bem isso. Que coisa esquisita! Agora você deve estar com uns... 30 anos... Não sei... Esquisito! Ou então não é você! É muito parecido. Muito parecido e não sei por que eu conheço...

Está realmente perplexo. Há um

– Por quê? – Não sei direito. – Você está fugindo às lembranças ou elas é

que fogem de você? – Não sei. .. diz que foi covarde ... – Você vê alguém aí à sua volta? – Não. – Onde é que você se encontra no momento? – Em casa de um amigo. – Descreva o que vê. – Uma sala grande. .. muitas janelas. ..

muitas... muitas. Passadeiras, quadros. – Não tem mais ninguém aí? – Não. Estou esperando alguém. – Aguarde um pouco até que a pessoa

chegue. O que você foi fazer aí? – Acho que tínhamos um encontro. Agora já

chegou. – Como é esse amigo? – É uma mulher. – Como se chama? – Therese. – O que você foi discutir com ela? – Acho que vim pedir alguma coisa. – Que é, então? – Está sorrindo... de branco ... Abriu a porta,

entrou. Estou de pé, encostado na outra extremidade da sala, apoiado na parede, mão no queixo, olhando ela chegar. Ela está rindo.

– Sobre o que vocês conversaram? – Ela vem pedir por alguém. – Procure lembrar-se, especificamente, o que

é. – Acho que é uma chantagem o que estou

fazendo.  – Bem, se é uma lembrança desagradável,

não é necessário que você insista nela. – Therese. É minha amiga; ou noiva... ou

irmã... não sei... de um amigo meu. Não sei o que fui fazer ali.

– Você, o que realizou nessa vida? Você se dedicou mais a quê?

– Eu era homem de confiança. .. Há alguma coisa que está para acontecer, que eu não sei. .. Eles pensam que eu sei tudo. Eu sei, mas não posso dizer. Eles sabem que eu sei.

– Mas, agora que os acontecimentos já se passaram, você poderá recordar-se disso sem nenhuma agitação, não é? Você está apenas se lembrando desses acontecimentos. Você está, já, em outra existência e perfeitamente tranqüilo. Pode recordar-se disso sem afetar seu sossego.

– Às vezes eu tenho medo. – Você está com medo? – Às vezes... A gente nunca sabe quando vai

cair numa cilada. – Mas isso são fatos do passado. Você já

passou por tudo isso, não há razão para se afligir. – Não sei... não sei... É preciso desconfiar de

todo mundo. Não sei de que lado fico.

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baralhamento inexplicável, incompreensível na seqüência do tempo.

– Você pode identificar minha ocupação pela roupa? Um militar? Um sacerdote?

– Não! Eu diria que é um autêntico irlandês. (Ri.) Mas que coisa engraçada essa! Você... Deixe-me ver se me lembro, meu Deus... Onde é que eu o vi? Onde foi? (Longa pausa.) Ah! Meu Deus! Eu me lembro! Você é filho... Não... você é sobrinho... sobrinho... Ah! Eu me lembro! Sobrinho de uma moça, de uma moça... Como é, meu Deus? Era de uma parenta, de uma irmã... Espera aí... Meu Deus do céu, que coisa! Você tinha... você...Você não tem...? Seu pai não se chama...? Você não tem uma tia... Não... um tio que era casado... Um tio chamado... Rueben?

– Como é o meu nome? – Como era o seu nome, meu Deus?

Você era... Você... Deixe-me ver... Ora... você... havia um problema na família. Seu tio veio a Paris. Agora! Seu tio veio a Paris, você era ainda um garoto e ele trouxe você. Foi isso. Engraçado! Que coisa! Seu tio... Rubens?Acho que era Rubens Brau ...

– O que ele fazia, esse tio? – Ele foi arranjar um negócio de

dinheiro com o Mira... Não. (Pausa.) Você conhece o Mirabeau?

Outra pergunta embaraçosa. A resposta é curta e sem compromisso.

– Sim. – Ele esteve em Londres ... Quando foi?

Foi uma história que eu não estou lembrando. Mas havia um amigo que interferiu. Está meio confuso, meu Deus do céu! Está confuso, porque você era um garoto. Como era o nome de seu pai, meu Deus? (E para mim:) Como é o nome de seu pai?

– Robert? – arrisco eu. Ele explode: – Robert! Ah! (Ri de satisfação.

Desvendou o mistério.) Era irmão do seu pai (o tio): Rueben (Ri descontraidamente, com gosto.) Você tinha acabado de nascer. É... Mas como pode? Isso não tem sentido! Ele tinha ido a Londres fazer o quê? Negócio de dinheiro. O Mirabeau tinha ido. E Rueben também! E você veio a Paris depois... Tinha uns 10 anos, não mais que isso, com o seu tio.

– E foi aí que você me conheceu? Como é que foi essa história?

– Foi com o Mirabeau. Era meu amigo. Mirabeau é meu amigo! Íntimo... E havia uma amizade com a mulher do seu tio. LC-2

– Mirabeau era amigo da mulher de meu tio.

– É. E me apresentou... não... ele esteve lá antes e depois voltou e você esteve lá... Um garoto... tinha uns 10 anos...

– Isso foi em 1791.

– Bem, vamos saltar por cima desse período de indecisão. O que foi que aconteceu?

– Preciso sobreviver ... – Você sobreviveu, evidentemente. – Sobreviver... que as coisas parece que vão

mudar. Preciso ver de que lado sopram os ventos ... – Muito bem, acho que por hoje é bastante.

Vamos despertar ...  

Antes de entrar na análise desse diálogo devo descrever, pormenorizadamente, todos os sintomas que me acudiram durante o processo hipnótico (ou puramente magnético?).

Fechei os olhos e me estendi na poltrona, procurando relaxar todos os músculos do corpo. Até as pálpebras, procurei deixá-las como mortas. Em meu pensamento passavam, às vezes, algumas idéias de descrédito pelo êxito; procurei afastá-las sistematicamente, preocupando-me, para isso, em cuidar de ouvir apenas a voz monótona do Hermínio, enquanto fixava o interior negro de minha própria visão.

[Observa-se que Luciano destaca a indução verbal como ferramenta que o levou ao estado hipnótico, neste ponto, sequer faz menção ao passe magnético]

Comecei, depois de dez minutos, a ficar ligeiramente tonto, mas (por descuido, pois não deveria) admiti, de longe, que isso fosse normal, dada a total paralisação dos meus músculos e tensões.[tendões?] A tonteira, porém, foi aumentando e a respiração tornando-se cada vez mais difícil. Eu ofegava. A cabeça passou a girar. Primeiro, devagar; depois, vertiginosamente. Poderia parar aquele estado “crisíaco”? Não quis tentar. Porque não desejava ou, talvez... porque já não pudesse. Ainda ouvia, ao longe, agora bem mais distante, a voz do Hermínio pedindo calma, calma, calma ... As mãos então começaram a formigar ligeiramente; depois, mais e mais.

O formigamento foi subindo e, na medida em que atingia outras partes do corpo, deixava as anteriores anestesiadas, completamente mortas, insensíveis, passíveis de serem alfinetadas ou queimadas sem que me desse conta disso. O formigamento, afinal, chegou ao plexo solar, invadiu os intercostais, ganhou os peitorais e, nesse instante, julguei que alguma coisa muito grave estava acontecendo. Descontrolei-me interiormente, tive medo, agitei-me ainda mais, porém... não fossem mesmo os estertores da desencarnação (aquele medo, é claro, só podia provir da crença nessa iminência), eu teria desencarnado, porque não tinha mais condições de reagir.

[Tem-se a impressão de que o paciente vivenciou algo semelhante a uma crise histérica, desencadeada pelo interesse em dramatizar a experiência hipnótica, a fim de dar maior

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– É... Noventa, talvez... Mas não tem sentido nada disso... porque... Não tem, não pode ter! Uma confusão total! Seu tio... Agora! Seu tio pediu não sei o quê e eu interferi junto ao meu sogro.

– Quem era seu sogro? – Claude. Claude Etienne Laridon-

Duplessis... Interferi porque seu tio precisava de alguma coisa, não me lembro o quê. Fiz um favor. O Mirabeau pediu e eu ajudei. Mas isso é incrível! Depois... é, depois ele me apresentou a você... Era sobrinho... LC-3

Pausa. Em seguida, quase em pranto, tal é o desespero para entender de maneira ordenada toda essa novela anacrônica:

– Ó, meu Deus! Isso é tão confuso... é de uma confusão total... Meu Deus do céu!... LC-4

– Quer dizer que você não está mais com 25 anos?

– Não sei... Coisa esquisita! Eu julgava que... estava no colégio. Não estou. Passou a Revolução? Mas como? Então eu estava recordando ali... lembrando ali... Que bobagem, meu Deus do céu; e você me acompanhou até aqui agora? Que coisa, meu Deus. Você viu?

– Qual foi seu papel nessa Revolução? Que foi que você fez?

O tom agora é de indisfarçável orgulho: – Ah... você não sabe? Engraçado... não

sabia que você havia voltado. Que estava aqui. Você não viu as coisas? Não viu o que aconteceu? Agora é ... é outro! Agora acabou a Monarquia. Não se pode deixar a Revolução pela metade! Não pode. Ah, vocês ingleses... Que coisa!

– Mas como é mesmo seu nome? Diga. E ele muito solene e com novo toque de

orgulho: – Lucile Simplice Benoist Camille

Desmoulins! LC-5  

LEITURA COMPLEMENTAR[desta “leitura complementar” suprimos as partes que não julgamos passíveis de comentários. Ressaltamos que no relato de Luciano não constam comentários complementares]LC1 – Advocacia 

Camille entrou para o Colégio Louis-le-Grand em outubro de 1771. Em setembro de 1784 colou grau como bacharel em Direito e em março de 1785 conseguiu a licenciatura. Prestou juramento na Grande Câmara do Parlamento, em Paris, e não em Guise, como desejava o pai dele.

“Seus mestres”, escreve Raoul Arnaud, “lhe haviam dito em tom profético: ‘Tu serás

veracidade à regressão.Geralmente, quando o paciente atinge o nível de relaxamento muscular conforme relatado, corpo e mente quedam-se inertes e agradável sensação de leveza predomina. Do que Luciano diz, depreende-se que seria um paciente incomum: ao mesmo tempo que se entrega ao comando hipnótico, a ele resiste. Outra questão é a sensação de morte, que diz ter experienciado: temos dúvidas se alguém se manteria sob sugestão ante sensações tão drásticas. A nosso ver, o autor quis teatralizar a experiência.].

A voz do Hermínio era poderosa, imperativa, ecoava como uma imposição absolutamente férrea. Minha ausência de controle psíquico era total, o clima psicológico parecia infundir-me uma desarmonia geral no meu sistema interior e, quando afinal o paroxismo do pânico me envolveu, perdi a consciência! Seguiu-se o diálogo que vimos acima, o qual durou cerca de uma hora, em seqüência do que, teve início o processo de retorno.

Aqui, também, vale a pena conhecer suas etapas. A primeira coisa que me aconteceu foi voltar a ouvir a voz do Hermínio, que me mandava despertar. Mas isto não foi tarefa muito fácil. Eu estava novamente consciente, mas só tinha noção da própria cabeça. Do pescoço para baixo, eu nada sentia, embora me mexesse um pouco, sem agitação. Essa sensação me trouxe novo pânico. Eu não sabia o que houvera acontecido durante aquela hora decorrida, e pensava que ainda estava tudo por começar, em plena fase inicial. O medo voltou, principalmente porque eu ouvia o Hermínio repetir: “Vamos despertar”; mas, estranhamente, sentia-me flutuando a uns trinta centimetros acima do sofá, sem capacidade de me justa por a mim mesmo outra vez . O pânico interior cresceu, porque pensei, por um instante, que houvesse desencarnado, que minhas duas partes não se “colariam” mais(7). Agitei-me e confesso que falei para o Hermínio, em tom de súplica:

– Ajude-me, Hermínio. Eu estou passando muito mal.

O Hermínio deve ter logo compreendido todo o quadro e sorriu, respondendo:

– Não é nada, Luciano; isso vai passar. É assim mesmo.

[Evidente dramatização. Luciano apenas se imaginava fora do corpo. Não há qualquer indício de que a hipnose tenha o poder de deslocar a alma do corpo, aliás, parece-nos que em hipótese alguma tal descolamente seja possível, a não ser em caso de morte − ainda assim, levando-se em conta a suposição de que exista uma alma a ser desligada, coisa da qual não se tem plena certeza, pois pode ser que as coisas aconteçam de forma diferente da qual comumente se supõe. Mesmo sem adentrarmos em discussões sobre o dualismo e o unitarismo, podemos destacar que os que admitem a existência de duas estruturas diversas coexistindo harmoniosamente durante a existência terrena −

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Marcellus!’” Ele não duvidava da promessa de triunfo que lhe era feita, e sentindo-se capaz de assombrar o mundo e de o dominar, via o futuro abrir-se diante dele mais pleno de certezas do que de esperanças.

Marcellus, ou melhor, Claudius Marcellus, aristocrata, orador eloqüente, foi cônsul romano em 51 a.C. Inveterado adversário de Júlio César, tudo fez para destruí-lo. Prevendo, talvez, a fulminante carreira política do brilhante general, propôs, em março de 49, destituí-lo do comando do Exército. Mais tarde chegou mesmo a declarar guerra aberta a César, mas não possuía Exército preparado para isso. Em 46 – César no apogeu de seu poder – o Senado apelou ao imperador pleiteando o perdão para Marcellus, ocasião em que Cícero pronunciou um dos seus famosos discursos: Pro Marcello. César concedeu o perdão solicitado. Marcellus foi, portanto, um intelectual ambicioso e meio quixotesco. Ao que parece, e isto é mera especulação minha, a chamada “profecia” dos mes tres de Desmoulins seria antes uma identificação de Camille com Marcellus. Para dizer de outra maneira: não seria surpresa se me dissessem que Camille era Marcellus reencarnado.[não obstante ressaltar que se trata de suposição especulativa, Hermínio transforma uma declaração nitidamente figurativa em hipótese reencarnacionista! Os mestres de Camille disseram “tu serás Marcellus”, especificando o simbolismo que aplicavam à sentença, pois se fosse alguma revelação reencarnatória, teriam dito: “tu fostes Marcellus!]

 É impressionante a fixação de

Desmoulins nos tempos romanos, especialmente em torno da gigantesca figura histórica de César. Ele cita abundantemente os homens e os feitos daquela época.

Essas especulações, por mais fascinantes que sejam, são meras suposições e nos levariam longe demais. Não resisto, porém, ao impulso de citar mais algumas delas. Supondo mesmo que Robespierre tenha sido Catilina, como nos diz César Burnier que Marat tenha sido Sila, companheiro de Marius, e Danton na personalidade de Marius, teríamos a mesma equipe da Revolução Francesa reunida em diferentes épocas, na Roma Antiga, onde não faltaria nem mesmo Júlio César, renascido em Napoleão. [O que pode ser dito disto? Qual seria a técnica que permitiria obter a identificação de encarnação anterior com tanta facilidade? Em encontro que analisaremos adiante, ver-se-á essa suposta capacidade levada ao extremo. Veja no “Comentário Complementar”, abaixo

corpo e alma −, mesmo estes concebem que enquanto a vida se mantém estas estruturas são inseparáveis. Hermínio Miranda e Luciano dos Anjos, não mostram teoria consistente, capaz de demonstrar como se daria esse descolamento da alma, sem que o ente entrasse em desagregação. Eles apenas informam que teria acontecido dessa forma e ponto final. Ora, tudo leva a crer que se trata de representação psíquica de uma crença em vez de fenômeno real!] 

Lembro-me, então, de que chamou o Edson (o Hermínio não é médium) e pediu-lhe que me desse alguns passes. O Edson começou a trabalhar. Sem me aperceber (não sei se teria conseguido acompanhar como ocorreu a coisa), de repente me senti em mim novamente, embora com as pernas ainda inertes anestesiadas e as mãos e o plexo formigando muito, numa espécie de inversão paulatina do processo, fase por fase. O fato de sentir-me “dentro” de mim acalmou-me o espírito e pude ter certeza de que não desencarnara, e quase jurei, baixinho, que não tentaria outra vez de forma nenhuma. [dramatização!]  [destaque para a informação que Luciano nos traz: “chamou o Edson (o Hermínio não é médium) e pediu-lhe que me desse alguns passes”. Esta miúda frase põe grande parcela de dúvida sobre muito do que é declarado por Hermínio Miranda. Conforme atesta Luciano, devido a não-mediunidade de Hermínio ele precisava de assistente para aplicar os passes. Porém não encontramos em lugar algum Hermínio fazendo comentários sobre isso!] 

Ao procurar levantar-me, não achei as pernas e acabei tombando, espetacularmente, do sofá, numa cambalhota que só o tapete pôde amaciar. O Hermínio e o Edson tomaram-me pelos braços e colocaram-me sentado na poltrona menor enquanto me recomendavam que [não] tentasse ainda ficar de pé.

 Então, depois de quinze a vinte minutos, no

silêncio, pensando naquilo tudo, meditando no que acontecera, ainda cansado, num pequeno processo enfisematoso, registrando aguda taquicardia, fui pouco a pouco melhorando, até sair completamente daquele estado pós-hipnótico. Um outro fenômeno curioso adveio logo depois. Eu devo ter queimado açúcar em grande quantidade porque fui acometido de indescritível fome. O bolo e o cafezinho da dona da casa pareciam não bastar, e só de vergonha não saí para o terceiro avantaja do pedaço. Mas, já na rua, com o Hermínio, catamos um bar onde comi um sanduíche de presunto com refrigerante. Se viesse uma feijoada ou um cozido, também iriam, certamente ...

 [É interessante comparar como Hermínio relata este episódio da queda, comparem:

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desta tabela, avaliação desse “poder” identificativo.]

 Durante as regressões Luciano

lembrou-se vagamente de uma existência em Roma, mas parece que não estávamos autorizados a ir até lá... É curioso ainda observar sua má vontade (de Camille Desmoulins) com relação a Napoleão, jovem oficial que em 1789 tinha apenas 20 anos. Perguntado sobre ele, Luciano/Desmoulins diria apenas com um muxoxo de desprezo: “General era Dumoriez, Dillon, Boyer...” Resíduo de algum remoto desacerto entre eles? LC-5 Camille  

Luciano despertou sem a mínima lembrança do que havia ocorrido nos trinta ou quarenta minutos da nossa conversa de há pouco. Estava curioso por saber o que se passara, pois tinha a impressão de não haver conseguido alcançar o transe. Assim que tudo voltou à normalidade, nossa primeira atitude foi conferir os poucos dados concretos de que dispúnhamos. [indício de que o conhecimento que Luciano já possuía sobre a Revolução foi acrescido com leituras ocorridos no período da experiência, à medida que “conferiam” o que fora dito sob transe, Luciano incorporava novos conhecimento sobre a época em que acreditava ter vivido. Mais adiante falaremos detalhadamente desta questão]

 Verifiquei, desalentado, que, a despeito

da minha antiga paixão pela história, não tinha ao meu alcance nenhuma obra de fôlego sobre a Revolução Francesa ou sobre seus líderes. Salvou-nos a respeitável e competente Enciclopédia Britânica. A primeira surpresa foi quanto ao nome – não tínhamos idéia de que Desmoulins tivesse todos aqueles nomes que a Britânica confirmava. Como também confirmava que Camille nascera em Guise, no Departamento de Aisne, em 1760. [valorização excessiva do conhecimento de um detalhe da vida de Desmoulins. Em outro episódio ver-se-á Cesar Burnier, apresentado como especialista na história da Revolução, alegando que nem ele conhecia essa informação. Mas a euforia em torno de conhecimento detalhado da vida de um personagem, por parte do regredido, não tem tanta importância como se pretende. Em primeiro lugar, o fato de Hermínio, nem Cesar Burnier ter tal conhecimento, não significa que outros estudiosos não o tenham, ou seja, o especialista pode ter faltado à aula onde se discorreu sobre o nome completo de

“Despertou faminto, devorou rapidamente uma generosa porção de bolo e pediu mais, sem a mínima cerimônia. Em seguida levantou-se, deu um passo incerto e desabou no tapete macio, como se não tivesse pernas”.(versão de Hermínio) Um relato lembra vagamente o outro − a queda e o bolo são concordantes − mas há bastante diferenças: na narrativa de Hermínio o regredido desperta, come bolo, tenta levanta e patchbum! desaba no tapete.Na versão de Luciano, o patchbum! vem em primeiro lugar, ou seja, ele tomba, depois descansa uns vinte minutos e então é tomado por medonha fome, que o leva a devorar o bolo. Há um intervalo relativamente longo entre o bolo e a queda, que Hermínio Miranda não narrou. Vejamos a seqüência de eventos, segundo Hermínio: 1º) despertou do transe; 2º) devorou porção de bolo; 3º) levantou-se; 4º) desmoronou no tapete. Agora, vejamo-la, pela ótica de Luciano dos Anjos: 1º) os passes do Edson fizeram com que Luciano voltasse a ficar dentro de si mesmo; 2º) levantou-se; 3º) desabou no tapete; 4º) descansou 20 minutos; 5º) devorou o bolo. Pode-se alegar que essas divergências não têm grande relevância ante a questão principal que estamos a analisar, ou seja, a experiência de regressão. É certo que “o caso do bolo” não desqualificará os encontros regressionistas, nem as interpretações que deles nos dão os envolvidos, mas há um ponto importante a ser levado em conta: os protagonistas confundem acontecimentos banais e deles apresentam interpretações divergentes, o que nos leva a supor que em situações outras, e talvez em questões de maior importância, possam ter ocorrido deturpações difíceis de serem identificadas. Lamentavelmente, a sombra da suspeita se torna presente]

 Vejamos, agora, o que se poderia dizer do

diálogo. Não há dúvida de que a época é anterior à Revolução Francesa, não apenas pela informação do ano visto na folhinha – 1781 –, mas algo existe no clima retraído. Seria eu próprio, na personificação de Camille Desmoulins? Não é possível se afirmar. Creio, mesmo, que não o fosse ainda. Perguntado pelo nome de meu pai, respondi ser Antoine. Ora, o nome do pai de Camille Desmoulins era Jean; como verificamos mais tarde. Mas, curioso: meu pai atual se chama Antônio. Teria havido, aqui, alguma confusão nas duas figuras? A nacionalidade de ontem teria afrancesado o nome do meu pai hoje? É possível ... Por outro lado, Desmoulins não nasceu em 1721, nem em Lyon. Mas essas informações foram ditadas com muita insegurança. Acho que é isso. Quanto à casa descrita, não está muito distante do sonho que

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Desmoulins. É muito provável que estudantes da vida do republicano revolucionário saibam disso. Por outro lado, existem pessoas que se comprazem em aprender dados numerosos sobre personagens por quem nutrem admiração, sem serem grandes conhecedores do processo histórico. Este parece ser o caso de Luciano, que ao tempo em que demonstrou bom conhecimento sobre eventos da Revolução, não exibiu conhecimento crítico dos acontecimentos relativos àquele período em que se imaginara encarnado noutra vida.]

A hora já se adiantava e Luciano ainda precisava ir para casa. Lemos rapidamente o verbete biográfico da Britânica e ele partiu. Era emoção suficiente para uma só noite.  

tive com o Abelardo. Contudo, é bom registrar que toda casa daquela época teria, sem dúvida, “passadeiras”, “muitas portas”, “quadros”, “muitas janelas”, etc. O nome Therese não parece ser de grande significação. O Hermínio estava propenso, duas ou três semanas depois, a admitir que não se tratava do meu próprio espírito, mas de simples manifestação mediúnica, possível ou permissível, dadas as minhas ligações anteriores com gente da época da Revolução. Todavia não é absurdo aceitar, já agora que conhecemos outras informações, tratar-se de mim mesmo, embora confundindo muito os fatos todos, devido à inexperiência no processo. Ou devido a qualquer outro motivo que desconhecemos e que jamais conheceremos. (Eu Sou Camille Desmoulins. P. 355-361)[Luciano informa que não tem certeza, neste diálogo, se é a personalidade de Desmoulins se manifestando, admite que poderia ser “outro” espírito tomando carona na sua regressão. A condição que permitiria a almas “caroneiras” se infiltrarem nas regressões hipnóticas não é esclarecida pelos envolvidos. Parecem que aceitam a possibilidade sem quaisquer ponderações, como se fora algo muito natural. Como não apresentam explicações teóricas adequadas, ficamos sem ter como opinar a respeito. A questão nos parece confusa. Desse assunto, Hermínio Miranda apresenta comentário que, a nosso ver, mais complica que esclarece.] “Este fenômeno ocorreu com certa freqüência em minhas experiências. Sempre que o sensitivo tinha algo a dizer, não de sua própria elaboração mental, mas de origem mediúnica, espiritual, provinda de companheiros desencarnados ali presentes, o texto aparecia diante dos olhos e era lido. Foi assim mais uma vez.” (p. 76 – )

 COMENTÁRIO COMPLEMENTAR: visto que os episódios narrados, como relativos ao 2º encontro, são completamente diferentes, concluímos que tenham havido reuniões que Hermínio não narrou. As implicações dessa constatação para o estudo são muito sérias, uma vez que não podemos ter segurança sobre o que sucedeu fora dos relatos que nos são apresentados. Sem dúvidas, as narrativas não guardam fidedignidade plena com os fatos. A não ser que haja explicação plausível para essa constatação, a validade da experiência fica comprometida.

No que se refere à habilidade de reconhecer reencarnações, retornamos à declaração de Hermínio Miranda:

Não seria surpresa se me dissessem que Camille era Marcellus reencarnado (...)Essas especulações, por mais fascinantes que sejam, são meras suposições e nos levariam longe demais. Não resisto, porém, ao impulso de citar mais algumas delas. Supondo mesmo que Robespierre tenha sido Catilina, como nos diz César Burnier que Marat tenha sido Sila, companheiro de Marius, e Danton na personalidade de Marius, teríamos a mesma equipe da Revolução Francesa reunida em diferentes épocas, na Roma Antiga, onde não faltaria nem mesmo Júlio César, renascido em Napoleão

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Descreve-se, em diversos pontos do livro, atitude que reputamos sui generis, exibida pelos protagonistas e por alguns participantes secundários: hipotética capacidade, mal explicada, de identificar reencarnações. Hermínio é, de certo modo, ponderado ao apontar tais encarnações passadas: geralmente adverte tratar-se de suposição. Já Luciano é mais atrevido, dele encontramos declarações surpreendentes:

Sei, por exemplo, que Danton, o grande tribuno francês, está aqui no Rio, em Copacabana . Sei que Mme. Stäel está em Matão. Que Frei Joseph du Tremblay, a “Eminência Parda”, é um grande médium e reside em Salvador. Que Marat viveu no Rio e foi mais uma vez cassado. O Abade Bérardier, que foi diretor do famoso College Louis-Ie-Grand, tem consultório no Rio e é filho de um dos maiores presidentes da Federação Espírita Brasileira (FEB). O Papa Sixto V mora na Muda, aqui no Rio, bem perto de mim. Roberto Browning (pai) tem domicílio em Botafogo, também no Rio. O famoso poeta do mesmo nome, filho do precedente, é conhecido médium. O Cardeal Charles de Guise, e depois Professor Charles Bossut, almoça comigo freqüentemente.[!] Joana, a Louca, está em Uberaba. Helena Blavatsky dirigiu, até à desencarnação, um Centro Espírita em Ipanema. Carlos VII dirige um grupo, no Méier. Louis de Rochefoucauld, também já desencarnado, trabalhava numa corretora de título. Hérault de Sechelles era procurador do Ministério da Fazenda e morava em Jacarepagua. Maria Antonieta vivia, há pouco, em São José do Rio Preto. Anna Bolena é uma psicóloga atualmente residindo em Pato Preto. Benevenuto Celini, o notável artista do cinzel, é médium da FEB, dos mais evangelizados que conheço. Lavoisier reencarnou em Minas Gerais e vive em São Paulo; como engenheiro, continua pesquisando, agora na área espírita. Elizabeth I reside num simples apartamento no Méier. Lucile Desmoulins estuda na Faculdade Celso Lisboa. E Camille Desmoulins, que é o mesmo Charles d Orléans, poeta do século XV, agora é pai de Lucile.

De minha parte devo afirmar, embora correndo o risco de ser acusado de pretensioso ou de ridículo, que em matéria de espiritismo filosófico, científico ou religioso concedo-me o qualifIcativo de homem sério. (P. 303,304).  Não duvidamos da seriedade de Luciano, porém a indagação que fizemos antes, cabe ser reprisada aqui: qual seria o mecanismo que permite a Luciano dos Anjos e a outros identificar encarnações com tanta facilidade?

Vejamos o que se consegue com o terceiro encontro. Como se notará pela leitura, a narrativa de Hermínio é bem mais longa que a de Luciano.

 RELATO DA 3ª REUNIÃO

HERMÍNIO MIRANDA LUCIANO DOS ANJOS4. O ANTES E O DEPOIS  A segunda sessão de pesquisa foi realizada em 26 de maio de 1967. Vamos examiná-la a seguir, transcrevendo-a dos tapes do nosso arquivo.

[Hermínio nomeia este encontro como “segunda sessão”, contudo corresponde à terceira reunião, isso porque, conforme vimos, a primeira vez foi classificada como “reunião de teste”]

As primeiras impressões são ainda as da sua infância como Luciano. Está com 5 anos e diz que precisa ir para casa, pois se encontra na rua e está ficando tarde. (Alguma escapada durante a qual teria fugido à vigilância de sua mãe? É o que parece, pois ele se mostra um tanto assustado.) Prosseguimos com os passes até que ele relaxa e se acalma. Quando retoma a palavra, sua voz é adulta e firme.

p. 361... Os sete dias que decorreram até à segunda-feira seguinte serviram-me para duas importantes coisas: afogar o medo e aliciar minha curiosidade. Aliás, é sempre assim que acontece. Na hora do perigo, prometemos não repetir jamais o risco que lhe deu origem; depois, recuperamos a calma, a serenidade, e já nos acha: mos fortalecidos para nova experiência. E – frisemos – e

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– Onde é que estou? – pergunta. – Você mesmo pode descrever. O que você vê à sua

volta? – A minha casa – diz ele, após longa pausa. Rue du

Theâtre Français. – Quem mais está aí na sua casa? – Agora estou sozinho. – Com quem você mora aí? – Com minha mulher. Ela deve ter saído. Estou

deitado. Quem é você?

assim que acabamos vencendo os medos... Por outro lado, eu tinha visto crescer meu desejo de saber quem falara por mim e por que falara; conhecer de vez, enfim, a história que se ocultava por detrás daquelas experiências. Não sei se para iludir-me ou por sentir ser óbvio, procurei convencer-me, acima de tudo, de que os mentores espirituais, meu e do Hermínio, de todos, enfim, deveriam estar atentos e prontos para ajudar-nos, se necessário. Parti, pois, resoluto para a terceira sessão.

Chegamos à casa e logo iniciamos os trabalhos. Desta vez o processo transcorreu um pouco menos agitado. Conseguida a inconsciência, gravamos o seguinte diálogo, que foi muito mais demorado do que possa parecer da sua leitura, pois era intercalado de longas paradas, repetições de palavras, tautossilabismos, etc., que, evidentemente, não estão copiados abaixo.

Eis como se passou a sessão: – Alguma coisa vai acontecer. – Por que você está preocupado com o que vai acontecer? Você sabe, como espírito, que esses fatos a que está se reportando, no momento, já ocorreram em sua existência anterior, de modo que você pode, agora, adiantar um pouco mais, no tempo, e verificar o que aconteceu e libertar-se da condição de aflição. Não há necessidade de se tornar aflito. São fatos já ocorridos. – Às vezes, não sei o que faça. É preciso ter calma ... – O que é preciso é libertar-se dessa condição. Qualquer estado

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[Neste ponto, os relatos coincidem, em ambos o personagem encontra-se em decúbito]

– Novamente o baralhamento na seqüência tempo e no conceito de espaço físico.

– Você já me conhece. Novo e longo silêncio, e depois: – Tenho uma idéia... – Já conversamos anteriormente. Ele concorda e pergunta: – Cadê minha mulher? – Provavelmente ela saiu e não deve demorar. É preciso ter cuidado! (Começa a mostrar-se agitado.

É evidente que está vivendo sob terrível pressão emocional.) Preciso descansar. Sente aí. (Parece que a necessidade de companhia é tão urgente que ele resolve ignorar suas perplexidades.)

– Vamos conversar. Fique calmo. Em que você está pensando?

– Tudo. Nisso tudo... Às vezes penso se não seria melhor largar tudo pra lá e viver para a minha família, pra meu filho. Largar tudo... Estou com dor de cabeça. LC6

E depois: – Preocupando todo mundo... Ah, meu Deus! Enfim, alguém tem de fazer alguma coisa. Cansado... .

Peço-lhe que faça recuar sua memória para uma época em que se tenha sentido mais feliz e mais tranqüilo, a fim de que possamos conversar descontraidamente. Os passes continuam. Longo silêncio. Quando retoma a palavra, me identifica com indisfarçável alívio.

– Ah! É você... – Outro dia nós conversamos... Lembra-se? – Lembro. Aqui mesmo. – Você conseguiu lembrar-se do tempo em que eu era

um garoto e achou tudo muito confuso. – Nós aqui de novo... – diz ele com um sorriso. – Por que você acha que estamos aqui depois de

tantos acontecimentos passados? Está confuso ainda? – Não sei... – Durante sua existência você sempre foi descrente da

sobrevivência do espírito? Você nunca admitiu a possibilidade de o espírito sobreviver?

– Bom... não. Embora dê o direito a outros de acreditarem, eu respeito o ponto de vista de um Rousseau, que parece acenar com algumas hipóteses que custo, de fato, a aceitar.

– Acho que nem você nem seus amigos aceitam a hipótese da sobrevivência.

– Não. Sim... Não; mais não, quase não... É difícil. Há uma série de aspectos nesse problema que desanimam a gente. Olha a vida, olha a miséria, olha o clero, a aristocracia, olha nós... Não!

– Como é que você explica que esteja aí, lembrando-se da Revolução como uma coisa do passado?

Longa pausa para pensar. Não tem a menor idéia de sua vida atual como Luciano, e, mais ainda, de nada que tenha ocorrido após aquele momento ali em que ele se situa, embora conversando com alguém que está em 1967, cerca de cento e oitenta anos depois! A saída é pela tangente, e nem poderia

de desprendimento em que você entra, vai logo para esse período em que levou uma existência agitada. É necessário que você procure pesquisar, na sua memória integral, outros fatos e não apenas esses. – Mas, às vezes, dá medo. .. vontade de fugir... mas, é preciso ter coragem e ficar ... – Onde é que você está, no momento? – Na cama.

[a cena parece ser a mesma, pois em ambas narrativas o personagem encontra-se deitado]

– Em que você pensa? – Amanhã... Nec... Necker... Necker vai fazer uma besteira. – Que dia é amanhã? – Seis ... – O que ele vai fazer? – 28. .. 29... Qualquer dia, não importa ... – Mas não se agite fisicamente. Deixe seu corpo tranqüilo, sem agitação. E preciso, apenas, que você, como espírito, encare com maior naturalidade esses fatos e não se agite mais por eles, porque já se passaram. – Necker está pressionando ... Isso não pode dar bom resultado ... – Por quê? O que pretende fazer? – E o problema dos cereais. – Mas por que você está se lembrando disso agora? Você apenas leu isso na história? – Não sei. . . – Você se lembra de ter lido ou de ter vivido esses episódios?

[Interessante, aqui Hermínio decide enfrentar a probabilidade de que Luciano tenha se informado por meio de

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deixar de ser! – Posso me lembrar. Isso não vem ao caso. – Mas você se recorda de todos os acontecimentos? – Claro! – Até que ponto você se recorda? – Tudo. Eu vivi tudo; eu vi tudo. É evidente que foge da terrível realidade da morte, e

temos de evitar uma confrontação traumática antes de certo preparo.

– Até que ponto você viveu? – Até agora. Daqui para a frente é uma incógnita, mas

acredito que não tenham a ousadia, não tenham o topete, não tenham a coragem de mexer comigo.

Procuro tranqüilizá-lo, mas é óbvio que ele está entrando em pânico. O clima psicológico daquele momento é o do temporal que se avizinha. A hora é de decisões graves. A Revolução, como Cronos, começava a devorar seus próprios filhos, e ele começava a temer pela sua sorte, embora ainda esperançoso de que não ousassem eliminá-lo também, como tantos estavam sendo.

– Não teriam coragem. Já enfrentei coisa pior. – Me conta direitinho o que se passou com você nos

últimos tempos. – Você não soube de nada? – Soube da Revolução, soube do seu papel ... – Você chegou quando? Outra pergunta embaraçosa. A resposta clara e

objetiva lançaria em seu espírito confusão maior do que suas inquietações do momento. Regredido ao tumultuado período do Terror, ele não tem o mínimo preparo para uma avaliação serena da situação a uma distância de quase cento e oitenta anos. A resposta é evasiva:

– Preciso explicar isso mais tarde. Reservo-me o direito de falar sobre isso um pouco mais adiante a você. Vamos, agora, procurar despertar na sua memória todos os fatos.

E ele, cauteloso: – Tenho você na conta de amigo, hem?Sou seu amigo. Você sabe disso. Confia em mim, não

confia? – Espero que possa... – Você está desconfiado porque vive numa época

tumultuada, cheia de problemas, mas aqui a coisa é diferente. A observação é reconhecidamente incongruente para

ele, mas parece admissível para o momento, e ele repete: – Espero que possa... – Então vamos lá. Sei da Revolução, do que

aconteceu. Queria, porém, que você procurasse se recordar do que houve com você até os últimos acontecimentos.

Estamos andando em círculo, mas estou conscientemente evitando um questionamento direto.

– Até agora? – pergunta ele. – É isso que você vê... – Não estou vendo direito. Descreva-me. – Eu ainda acreditava um pouco no rei. Ainda

acredito. Ainda tenho um pouco de esperança. Muito pouco. LC7

– Em que ano estamos? A pergunta é séria e parece apanhá-lo desprevenido.

Agora? Este ano? 1792! Este ano agora... Não há como recuar agora, é preciso insistir, a fim de

leituras. A resposta é evasiva. O próprio Luciano deixa em suspenso esta possibilidade. Observa-se, na seqüência do diálogo, que o jornalista rapidinho muda o rumo da conversa. Ele parece não desejar que o agente insista nesta questão]  – É amanhã... Sei. Então vamos avançar sua memória para amanhã e ver o que aconteceu. – Eu dormi... dormi um pouco... – Sim. Agora, você acordou... durante o dia, e verificou o que aconteceu. ‘ – Necker vai fazer bobagem. . . – O que foi que ele fez no dia seguinte? . – É uma... uma provocação. É uma taxação. Necker vai assinar uma taxação.

[Vimos que, no relato de Hermínio, o nome de Necker apareceu no primeiro encontro]

– Escuta uma coisa: depois dessa existência, que voce teria vivido na França, você teve alguma outra existencia entre essa e a atual? – Não sei. . . – Não sabe? Está tudo guardado na sua memória. Por que você não pesquisa?

[Hermínio tenta arrancar de Luciano uma lembrança além das que seriam oriundas de Desmoulins: ele quer saber se houvera existência outra entre Camille e Luciano. Novamente, o jornalista frustra o inquiridor. Observe que Hermínio insiste que tudo estaria na memória de Luciano, mas o jornalista não reage conforme o operador

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quebrar o círculo mágico que o mantém prisioneiro do tempo, estacionado quase dois séculos atrás.

– Bem, mas você pode lembrar-se de acontecimentos que se passaram depois de 1792.

Longa e perplexa pausa. – Depois de 1792? Não. Antes, você quer dizer... – Quero dizer depois... – Antes... Depois? Sobe o nível da agitação dele, que se observa pela

respiração e movimentos com a cabeça, enquanto a crise se precipita com todo seu impacto emocional. Ele sabe a essa altura ser impossível evitar unir as duas pontas soltas na sua memória sem passar por ali, pelo ponto cruciante da sua experiência evolutiva – a guilhotina. Procuro fortalecê-lo com a intensificação dos passes e com uma prece, na qual peço para aquele momento crítico o amparo e a proteção dos amigos espirituais em nome do Cristo.

– Vamos passar rapidamente por esse período – digo-lhe – e vamos a uma época em que seu espírito, perfeitamente tranqüilo, encontra-se no espaço. Calma. Tranqüilize-se. Já passou... Calma...

É impressionante e dramática a crise que ele revive ali, com o corpo arqueado a emitir um som gutural inarticulado, como se não tivesse mais como falar por lhe faltar o aparelho. Na realidade, apalpa a região da garganta onde teria descido a lâmina fatal da guilhotina. Tosse e respira espasmodicamente, como se estivesse vivendo os primeiros momentos de suprema perplexidade no mundo póstumo, já decapitado. Não durou tudo mais que alguns rápidos segundos. Logo ele começa a respirar em ritmo adequado, enquanto continuam os passes e as sugestões pacificadoras.

Sua primeira palavra, ainda balbuciante, deve refletir também o último pensamento coerente ao saltar a barreira da morte:

– Lucile... Lucile... Chora, enquanto procuro fazê-lo seguir rumo ao

futuro, de modo a deixar para trás o momento mais agudo da crise da morte. Murmura algumas palavras ainda incoerentes e depois:

– Lucile, você não merecia... Suspira. Seu corpo está relaxado e ele tem novamente

o controle da situação. – Foi horrível – diz ele. – Sim, mas já passou. Você entendeu agora o que

aconteceu com você? – Eu morri...

– Morreu, mas está vivo! Seu espírito sobreviveu. Está vendo? Você não está vivo? Está respirando, pensando... Então você é um espírito que sobreviveu à crise da morte. Você está bem, está calmo, perfeitamente normal. Está entendendo agora?

– Lucile... – Lucile também está viva. Então a gente sobrevive à

morte... – Eu estava quase acreditando nisso. – Mas você ainda tem dúvida? – Não. – Onde está o espírito dela? Também foi a seu

encontro. (Como se sabe, ela foi executada pouco depois, cerca de uma semana.)

deseja]

– Houve um tumulto muito grande, depois disso. – E que aconteceu com você? – Eu... morri... – Em que ano foi?  – Era... Havia muita agitação. Era... era o frio... o frimário...– Em que ano foi isso? – Frimário.

[mês da geada, 23/11 a 22/12]

– Mas no calendário nosso, comum, que ano era? – Era o frimário ... Traidores! Miseráveis!

[Aqui, tem-se a impressão de que Luciano não consegue fazer a correlação entre o calendário da Revolução e o observado no restante do mundo cristão − (calendário Juliano, se não estou enganado). Isto surpreende, porque para um intelectual daquela época esse conhecimento deveria ser relativamente simples. Percebe-se que a dita formidável memória de Luciano dos Anjos não é exatamente conforme se diz]

– Mas isso tudo já se passou. Não há mais necessidade de ficar aflito por causa disso. . . – Traidores! É a ditadura... É a ditadura!... – Um momento... um momento. Depois disso... Tranqüilize-se. – Eles sabem que eu não concordo... Eu não concordo! ... [aparentemente, está teatralizando.]

– Está bem. Você foi para o

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– Está comigo – diz ele. – Bem, apesar de você ter achado absurdo, no

princípio, vamos prosseguir, vamos para a frente na sua memória. Que aconteceu depois?

Longa pausa. Ele parece ordenar aquilo tudo, examinando a soldagem das duas realidades numa só. Não demonstra ter ouvido minha sugestão. Parece despertar, e pergunta:

– Hem? Que foi? – Que aconteceu depois que você se encontrou com

Lucile no espaço, como espírito? – Não me lembro bem, mas ela ficou de me encontrar.

E não o encontrou? – Sim. – E para onde vocês foram? – Para o Brasil. – Fazer o quê?

A resposta é breve e eloqüente, e traz em si um toque de transcendental poesia. – Viver...

– Renascer, portanto. – Renascer – confirma ele. – Com que nome você renasceu? – Lucie... (Hesita e corrige:) Luciano. – E Lucile? – Ana Lúcia. (Sua filha.) – Ana Lúcia? Então todos estão novamente reunidos.

Não é isso? Está entendendo agora? – Luciano – repete ele. – É.– E você teve outra existência entre aquela que você

viveu na França e a atual? Havia ali um bloqueio, e para testá-lo reformulo a

pergunta:– Da existência que você teve como Camille até a em

que você renasceu no Brasil, como Luciano, há alguma intermediária?

– Não sei – é a resposta. – Sabe, sim. Seu espírito sabe. Procure buscar na

memória. – Depois apagou-se tudo... Não me lembro. Acho que

não. Estou bem agora. LC-8 – Agora você está bem. Entendeu bem o problema.

Sabe que a morte não existe, que a gente renasce, que os espíritos continuam juntos... Não é isso? Você tem consciência de sua vida como Luciano agora?

– Tenho. Não mudei nada... Em tudo sou igual: nas idéias, na forma, nas vontades...

– Nos ideais também? – Também... Não mudei nada. Consegui, pois, amarrar as pontas soltas ali, onde

havia uma interrupção, um bloqueio. É como se ligasse um plug perdido nos imensos reservatórios da memória integral. Restou apenas um inexplicado “branco” de cento e quarenta anos: entre a decapitação, em 1794, e o renascimento no Brasil, em 1933. Como espírito, porém, ele sabe o que se passou, como se depreende da sua maneira de colocar a questão: “Depois apagou-se tudo...”, diz ele. Pelo exercício deliberado da sua vontade, ele deve ter não “apagado” mas bloqueado e selado num envelope mágico esse período nada agradável, provavelmente para retomá-lo um dia para reexame e reordenação. Creio legítimo depreender-se isto da sua

mundo espiritual. E daí? Quanto tempo você passou no mundo espiritual. – ...

[Hermínio Miranda tem interesse em ver a memória de Luciano ampliada, de modo a narrar outros episódios de vidas passadas e também das entrevidas, porém Luciano mantém-se firme na elaboração de seu acreditado passado como Desmoulins. Em momento algum ele incursiona por outras existências, a não ser superficialmente] – E depois disso você teve alguma outra existência?– Não sei.

[Mesmo com insistindo Hermínio nada consegue, pois o interesse de Luciano está centrado em Camille Desmoulins...]

– Não sabe? Está bem. Vamos despertar, então?Nesse diálogo, como vimos, estamos agora, em plena época revolucionária A referência a Necker, por exemplo, é extremamente significativa. Nunca me demorei em grandes leituras sobre Necker.

[Observemos a frase, “nunca me demorei em grandes leituras sobre Necker”, ela mostra, sutilmente, que Luciano confirma ter realizado leituras sobre a Revolução. Só que, no caso de Necker, não foram “grandes leituras”...] Sabia, tanto quanto o Hermínio, que ele fora ministro das Finanças de Luís XVI e

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expressão “Estou bem agora”. Donde se conclui, ainda, que esquecer, mesmo que temporariamente, é uma bênção oportuníssima em situações extremamente traumáticas. É o que se observa na experiência diária da psiquiatria, segundo a qual a pessoa se aliena – no seu melhor sentido etimológico de isolar-se – sempre que a pressão de uma realidade penosa se torna insuportável e acaba por romper as estruturas do equilíbrio emocional.

Observe-se ainda a sinceridade, e honestidade de sua autocrítica “Não mudei nada...”. Sente-se praticamente o mesmo Desmoulins, com seus defeitos, virtudes e até a forma, segundo ele, ou seja, o corpo físico, o que ainda comentaremos alhures neste livro.

Outra pergunta: – Você pode se lembrar agora melhor do meu

espírito?– Lembro. Você me ajudou... Sou grato a você.

– Precisávamos vencer aquela barreira, não é? – É. Foi horrível ... Eu tive um pouco de medo. – É explicável. A cena da morte ficou tremendamente marcada no seu espírito. De modo que, quando chegava naquele ponto, você entrava em pânico. Não tanto pela sua morte, mas pela de Lucile. Mas agora tudo passou.

– Nunca perdoarei a Robespierre! – Você precisa perdoá-lo, por que não? Onde está o

espírito dele?– Não sei. Ele me traiu. Matar minha mulher e meu

filho. LC9 (Horace, o filho de Desmoulins, sobreviveu ao caótico período da Revolução.)

– Isso tudo é passado hoje. Provavelmente o espírito dele precisa tanto de ajuda como o seu precisou, e o meu, em outras épocas da vida. Temos de tratá-lo com carinho, fazer uma prece por ele...

– Eu amava Lucile... – E continua amando.

Ri e prossegue: Às vezes esqueço que estou com ela. – Então! Você restituiu-lhe a vida. – Eu que a arrastei a isso! Ela não queria casar

comigo. – Muito bem, você hoje está em paz, tem um

conhecimento mais profundo desses problemas. Nisso acho que você progrediu bastante em relação à existência anterior, em que você era materialista.

– Não, no final eu tinha dúvidas. Queria acreditar em alguma coisa. – Sim, mas agora você tem certeza.

– Li um livro... Ah! Como era o nome? Livro muito interessante! Eu estava preso. Ora... livro muito interessante... De Harvey. Lucile é que o levou para mim na prisão. Era... Méditations sur le Tombeau. Eu precisava de alguma coisa. Estava sozinho, tinha um pouco de medo... Somos todos uns covardes ... LC10

– A morte sempre assusta quando a gente não sabe o que ela é.

– Aquilo me animou um pouco. Eu precisava acreditar em alguma coisa, no Além, numa outra vida...

– Está aí a prova. – Coitada de Lucile! – Ela está bem hoje. Talvez a experiência tenha sido

personagem de grande destaque naquela época. Necker iria assinar, ao que se supõe, a taxação dos cereais. Na verdade ele deve ter assinado muitos decretos dessa natureza e nesse mesmo sentido. A informação, portanto, para nós, era muito vaga, embora em relação àquela época e à pessoa que falava por mim (se não fosse eu próprio) talvez representasse ato de vital importância. A revolta contra a ditadura é condizente com o pensamento de Camille Desmoulins. Afinal ele fora executado exatamente porque, com Danton e outros, pregou a moderação, a indulgência, e disso tinha sido acusado. Detestava a ditadura. Mas sua decapitação não se deu no frimário. E como se verá mais tarde Camille não sabia ainda que havia morrido. Contudo todos esses aspectos acabaram sendo, depois, nas semanas seguintes, devidamente explicados, ou corrigidos, quando as sessões passaram a transcorrer em clima mais sereno, mas seguro, mas objetivo. O Hermínio permanecia por enquanto sem convicção sobre a natureza do fenômeno. Ele achava que não tínhamos ainda nada, absolutamente nada de probante, nem a certeza de que não se tratava de simples manifestação mediúnica. Aliás, sua posição era intermédiária. Ele admitia que estivesse havendo uma conjugação muito interessante e rara entre a regressão da minha memória e, de permeio, a manifestação de algum espírito ligado a mim desde aquele tempo, por isso mesmo autorizado por mim a

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útil ao espírito dela, como foi ao seu. – Danton... muito mais homem que eu. – Onde está ele? Precisamos depois pesquisar para

saber dessas coisas. – Não sei. Não sei de ninguém. – E precisamos também mergulhar um pouco mais

nas suas vidas anteriores a essa. – Danton era um homem! Era meu amigo. Até o fim.

Danton... Gabrielle... (Sorri.) – E o seu primo?

– Eu tinha tantos! – Falo do que teve também um papel na Revolução. E

que deve ter sofrido decepções tremendas. Qual o nome dele? – Meu primo, meu Deus... (Pausa.) De quem você

fala? – Um parente seu, que você colocou e que teve

também papel preponderante nos acontecimentos, embora secundário.

– Meu primo? – Seu parente. Não sei se é realmente seu primo. – Ah! Você fala de Fouquier-Tinville? Um crápula!

Primo... Não era meu primo. Primo distante. Meu pai o ajudou. Eu também. Consegui-lhe um lugar. Fouquier... Não veio me defender. Sofri uma raiva! LCl1

– Sim, mas tudo isso é passado, hoje. O que houve com a Revolução foi que ela destruiu os melhores homens que tinha e se esvaziou.

– Mas eu não merecia. Meus amigos todos me traíram e me abandonaram.

– Talvez haja uma razão para isso. No estado em que se encontra, hoje, com o conhecimento mais amplo das coisas, você sabe que, provavelmente, é problema que veio de uma existência anterior.

– Não sei... mas não merecia. Lutei... No fundo, eu não queria mal a ninguém. Quis até... Diziam que era uma posição de exploração política, mas quis defender a todos, e me arrependi de muita coisa. Robespierre não me escutou, não me entendeu. Danton era muito atirado, o que atrapalhava um pouco, mas eu queria... Lucile chorava e achava também que era preciso parar. Coitada! Ela era linda! Muito linda! Eu era apaixonado por ela. Ela também gostava de mim.

É fato histórico conhecido que Desmoulins tentou parar a tenebrosa e sanguinária máquina do Terror. Era sangue demais, mortes demais, sofrimento demais... O apelo à clemência, a que ele e Danton deram forma e conteúdo, precipitou o fim deles próprios.

– Ela também dedicou toda a vida a você. Teve uma coragem muito nobre nos últimos acontecimentos. A atitude que ela tomou surpreendeu até os homens.

– Eu não soube de mais nada. Soube depois. Ela morreu... Ela disse que estaríamos juntos. Lucile... Ah! Lucile... Você a conheceu?

– Não devo tê-la conhecido, pois nessa época eu não estava em Paris.

– Era uma boneca. Magrinha e linda! – E o seu filho? – Não soube. Disseram-me que ele estava bem. – Não soube da história subseqüente dele? – Não, quase não estive com Lucile depois. – Esteve sim. Decorreram aí mais de cem anos.

manifestar-se naquele momento.

[Não podemos deixar de registrar o formidável atraso da narrativa de Luciano em relação a de Hermínio. Naquilo que, para Hermínio, seria o 3º encontro, Luciano já havia revelado seu nome e chorava a morte da esposa amada. Para Luciano, nessa reunião Hermínio Miranda ainda estava em dúvida se lidava com autêntica manifestação mediúnica. Se não houver outra explicação, só podemos supor que aconteceram vários outros encontros, os quais não estão relatados no livro. Isto prejudica, mesmo impede, que se possa realizar avaliação adequada!] De qualquer maneira não passávamos de conjecturas. Hoje creio que o Hermínio tinha muita razão. Seu sentido crítico estava certo, em grande parte. Creio que, na segunda sessão, tratava se de mim mesmo, mas falando ainda tumultuadamente sobre muitos fatos diferentes. A terceira sessão, porém, deve ter sido, de fato, a manifestação mediúnica de um espírito ligado à Revolução e a mim. Quanto à quarta sessão, também desse espírito, trouxe a primeira luz no caminho que nos conduziria à figura de Camille Desmoulins.

[Vimos, no relato de Hermínio, que a revelação sobre Camille Desmoulins ocorreu no 2º encontro. Aqui, estamos na 3ª reunião e Luciano ainda fala de indícios que conduzirão a Camille. Parece estar um pouco atrasado...] 

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– Não. Muito pouco. Depois... depois eu nasci. Mas aí eu não sei.

– O que você fez nesse espaço de tempo, como espírito? Tem alguma lembrança? – Não me lembro. Lembro-me antes. Até muito antes. Antes de nascer, em Guise.

– Sim? Onde foi? – Antes... Onde foi exato? Não me lembro. Acho que

foi em Reims. Tenho uma vaga idéia. – O que você fazia nessa ocasião? Qual a sua

ocupação? – Escrevia. – Lembra do nome? – Lembro. – Pode falar? Ou não quer? – Valois. .

– Como? – Não me agrada... Valois. – Não estou procurando forçar você a dizer. – Na corte... É... eu escrevia. Fiz coisas horríveis. Na

corte. Prefiro me lembrar de Camille, tentando desfazer aquilo tudo.

Teríamos oportunidade, mais adiante, de decifrar esse mistério, quando, na última sessão de regressão, ele resolveu falar dessa personagem histórica. Por enquanto, aceitamos suas reticências.

– Você agora está numa posição espiritual na qual essas coisas são colocadas na exata perspectiva. Você sabe muito bem, como ser encarnado, pelo estudo da Doutrina Espírita, que isso tudo tem uma seqüência lógica, que os fatos vão se encadeando e que a gente vai progredindo espiritualmente e moralmente. Não é isso?

– Deve ser assim... – Então os fatos do passado só interessam como lição. – Muita coisa eu corrigi como Camille. Outras, piorei.

A gente não pode ser tudo ao mesmo tempo. Tinha de refazer muita coisa. Eu refiz. Podia ter feito melhor, mas... (Pausa.) Talvez um pouco de vaidade...

– Esse é um problema muito sério do espírito... – Meu pai, não o vi mais também. Minha mãe...

Madame Darrone... Não vi mais ninguém. – Provavelmente esses espíritos estão todos por aí, em

recuperação, em outras lutas, com outros problemas ... Sorri e repete um nome: Madame Darrone... – Quem é madame Darrone? – Madame Duplessis... Eu que a chamava de Madame

Darrone. LC12 – Ah, sim. Sua sogra. Você sabe que ela ficou com

um escrito seu? Um documento que você escreveu na prisão... uma defesa. Não sei por que razão... Embora você o tenha atirado aos pés daqueles homens que o perseguiam, esse documento foi parar nas mãos dela.

– Não me deixaram. Onde está ela? Madame Darrone... Era linda! Lucile tinha muito dela.

– Seu sogro, o que fazia? – Trabalhava na Fazenda. – Era alto funcionário lá? – Era. Fazenda Pública!

– O que você foi pedir a ele em favor de um tio meu? – Ah! Um aval.

 Não foi logo que se percebeu isso. Mas naquela mesma noite, recordando os fatos e meditando seriamente sobre eles, é que senti estalar a possibilidade. E, muito tempo depois, numa de nossas últimas reuniões, eu mesmo, solicitado pelo Hermínio, recapitularia os eventos daquele dia e confirmaria – agora com calma e segurança absolutas – terem falado, através do meu corpo, alternadamente, eu mesmo, personificando Camille Desmoulins, e um outro espírito.  

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– Era tio meu, ou irmão? – Tio. – Tem certeza? – Tio. – Qual o sobrenome? – Era Browning. Lembro bem. Seu tio. – Você me viu, depois, em outras ocasiões? – Deixa-me lembrar como foi. (Pausa.) Foi isso: era

um aval. O Mirabeau, você conheceu, era meu amigo. Depois, também brigamos, mas no princípio era meu amigo. Ele é que o conhecia, não e?

– Provavelmente conheceu meu tio e a mim quando era garoto. Vivi muitos anos naquela existência. Até 1866.

– Fui pedir ao meu sogro... Ele tinha prestígio, tinha dinheiro...

– Muito bem, Luciano. Por hoje chega. – Tenho um receio... Estou falando com você do alto.

– Você vê aqui à volta? – Vejo, mas tenho medo... É que eu estou em cima.

Tenho medo de ficar em cima... (Ou seja, de não retomar ao corpo físico.)

– Vamos, então, retomar. Você sabe perfeitamente voltar. Já experimentamos isso mais de uma vez.

– Mas estou muito distante... Com os passes de dispersão em poucos instantes ele

estava de volta ao corpo físico, na plena posse de suas faculdades habituais. A vida sem o corpo ainda o assustava, pelo que se vê. Deve mesmo ter passado horrores no mundo espiritual... LEITURA COMPLEMENTAR LC-6 – “(...) largar tudo pra lá e viver para a minha família (...)”  

Essa regressão parece ir encontrá-lo precisamente no momento em que está tentando reavaliar tudo aquilo que faz e vê fazer. Valeria a pena? Os riscos, a agitação, os rancores, os tumultos, as aflições, as incertezas, os temores...

Há um momento na vida de Camille que parece ser precisamente esse. É ele um dos representantes dos cordeliers na Assembléia, mas começa a rejeitar tudo aquilo:  

Após essa tarefa de ódio, “escreve Arnaud, ao referir-se à sua violenta e fatal diatribe contra Brissot”, Camille abandonou a “carreira atlética”. Não participa mais das reuniões da Assembléia e, não tendo mais jornal, perdeu o hábito de tomar certas iniciativas. Não era visto mais com a mesma freqüência nos cordeliers nem nos jacobinos. Não escrevia mais, não denunciava mais, não insultava mais. Parecia satisfeito em levar vida fácil, em ambiente confortável, entre a mesa bem servida e seu leito de damasco azul. Recebia os amigos à rua do Teatro Francês, ia ao encontro deles no café, levava-os a Bourg-la-Reine para reuniões festivas, ia jantar com Lucile e a levava aos espetáculos. Parecia que esse tipo de existência fizera-o abandonar os sonhos de glória e perder o gosto pelo escândalo e o ruído.

 Ele próprio: Luciano/Desmoulins, me diria pouco

adiante que não nascera para aquilo e sim para fazer versos.

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 LC-7 – “(...) Ainda tenho um pouco de esperança (...)” 

Uma coerência não pode ser negada a Desmoulins: a de ter sido radical e dec1aradamente republicano desde o início, mesmo quando muitos, senão todos, só podiam conceber uma estrutura política renovada, é certo, mas ainda encabeçada pelo rei.

Em 1792 o sentimento de hostilidade ao rei vai num crescendo incontrolável e em agosto o povo invade as Tulherias, e toda a família real é retida como refém. Em setembro, nova agitação de rua caça a Princesa de Lamballe, amiga pessoal da rainha, e lhe corta a cabeça, além de outros horrores inenarráveis. No dia 21 desse mesmo mês a realeza é formalmente abolida por decreto da Convenção Nacional em sua primeira reunião. Era o começo do fim. Em novembro abre-se o processo contra o rei, que se arrasta angustiosamente até 21 de janeiro de 1793, data em que Luís XVI é guilhotinado às 10h22min.

Que alguém tão profundamente envolvido no processus da Revolução como Camille Desmoulins pudesse ainda admitir, em 1792, a possibilidade de manter-se o regime monárquico constitui inequívoco testemunho de lucidez política, especialmente porque Desmoulins nunca fez segredo de sua aversão aos ocupantes do trono, fossem eles quais fossem.

No seu terrível libelo constante de La France Libre poucos são os reis que escapam à sua palavra causticante e demolidora, como se, no dizer de Arnaud, visse “apenas suas torpezas, rejeitando ou ignorando todas as grandezas”. Philippe, o Belo, é “um falsário, moedeiro falso, insaciável de dinheiro e de poder, um tirano (...)”. Seus três filhos e sucessores são “herdeiros da sua cupidez”. Philippe de Valois – um dos seus antepassados, ao tempo em que foi o Duque Charles d’Orléans –, “um assassino e também um moedeiro falso”, além de “ingrato, violento e insaciável publicano”. Carlos V, seu antigo avô (de Charles d’Orléans), é um débil mental, Luís XI, seu primo naquelas remotas encarnações, “parceiro de carrascos, mandava prender jovens príncipes em celas pontudas e os retirava de lá, de três em três meses, para lhes arrancar, um a um, os dentes (...)”. Francisco I, “príncipe iníquio, simoníaco, déspota, insolente e orgulhoso, levou a França à beira do precipício pela sua imperícia, arruinou a com suas prodigalidades e a corrompeu com seus escândalos”. Henrique II arrasta-se aos pés de sua envelhecida amante: Francisco II leva o país à bancarrota. Quem o sucede é Carlos IX, “um monstro que extermina oitocentos mil súditos e suas esposas”. Preservou apenas raras imagens históricas, como a de Luís XII, que fora seu filho, como se verá mais adiante neste livro.  LC-8 – Bloqueio mental 

Encontramos nesse ponto um bloqueio que não foi possível vencer. Tentei algumas vezes, mas decidi não insistir mais, respeitando as razões da sua recusa, quaisquer que tenham sido. Parece legítimo supor que o período inicial, no mundo póstumo, logo em seguida à decapitação, tenha sido extremamente penoso e alienante. Ele morria jovem, com a cabeça cheia de sonhos grandiosos, o coração envolvido nas

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emoções profundas de verdadeira paixão pela esposa, também jovem, além de bonita e inteligente. Ficava ela entregue à sua própria sorte com um filho ainda infante. Ademais, era simplesmente caótica a conjuntura político-social. Sentia-se traído, desrespeitado, humilhado, tratado como vulgar criminoso, caçado como um facínora por ordem expressa de um dos seus próprios amigos: o terrível Robespierre. Um espírito com essa carga emocional não teria mesmo a mínima condição de sentir-se pacificado, lúcido e feliz no mundo póstumo. Não seria, pois, de se admirar que permanecesse por um tempo mais ou menos longo em estado de angústia e até mesmo de confusão mental. Acontece, porém, que, sob as mais terríveis pressões de acontecimentos espantosos, nosso dispositivo de videoteipe continua implacavelmente a funcionar e a registrar, como temos testemunhado em inúmeras oportunidades. Além do mais, Luciano nos evidencia sua lucidez pelo menos ao cabo de algum tempo, ao contar seu encontro com Lucile também na condição de Espírito desencarnado, e a decisão que tomaram de se reencarnarem juntos no Brasil, desta vez como pai e filha. No meu entender, portanto, ele apenas se recusa, provavelmente por prudência que respeitamos, a exibir o replay desse trágico período que se estendeu por cerca de século e meio.  LC-9 – “Ele me traiu. Matar minha mulher e meu filho (...)” 

Robespierre foi implacável com todos os que sacrificou às suas ambições pessoais ou aos seus rancores. No mesmo dia em que Camille foi guilhotinado, Lucile foi presa – 5 de abril de 1794, ou, pelo calendário da Revolução, 15 germinal. Nove dias após, no 24 germinal, às 6h da tarde, ela foi também executada, juntamente com o General Dillon e outros.

Horace, nascido em 6 de junho de 1792, não completara ainda 2 anos de idade. Arnaud relata, com sobriedade, a melancólica cena no apartamento da família Duplessis, à noite, logo após a decapitação de Lucile. Lá estavam dois velhos e duas senhoras, chorando ao lado de uma criança. Eram o Sr. Desmoulins e o Sr. Duplessis, Madame Duplessis e Adèle. A criança era Horace. A família de Lucile, ou melhor, o que dela restou, estava agora atirada à indigência, segundo expressão do deputado Goupelleau, que conseguiu do Conselho uma pensão para o filho de Camille Desmoulins. Pensão, aliás, que nunca foi paga. Tiveram de vender a amada propriedade em Bourg-la-Reine.

Os dois velhos não conseguiram sobreviver por muito tempo à dor. Madame Duplessis e Adele se incumbiram de criar e educar Horace. O menino matriculou-se, como seu pai, no Colégio Louis-le-Grand, que se chamava agora o Prytanée de Paris. Passou depois ao Santa Bárbara. Após concluir seus estudos de direito e prestar juramento, “não quis permanecer num país onde seu pai e sua mãe haviam sido guilhotinados”.

 Partiu para a América, “prossegue Arnaud”, instalou-

se em São Domingos, onde, após ter-se casado, morreu em 1825. 

No seu livro, publicado em 1928, Arnaud informa que a viúva de Horace, por nome Zoé Villefranche, vivia ainda “há cerca de quarenta anos”, ou seja, aí por volta de 1888, e que

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suas duas filhas tiveram numerosos filhos. Por fim, mais uma severa palavra com a qual Arnaud

encerra seu estudo biográfico:  

Como Horácio, que aceitou a condecoração do Lys (Lírio, símbolo da realeza em França), eles não devem saber exatamente como foi a vida turbulenta de Camille Desmoulins e ignoram, sem dúvida, todo o mal que nos vem dele, o pouco de bem que, num momento de corajosa clarividência, ele tentou fazer. LC-10 – “Somos todos uns covardes (...)” 

A despeito da indiferença ante a morte, que aparentava em seus escritos, “declara a Enciclopédia Britânica”, Desmoulins demonstrou pouca coragem por ocasião da sua morte, em agudo contraste com a brava e digna morte de sua esposa uma semana após.

 A linguagem da Enciclopédia é sóbria e discreta,

como convém. Alguns dos seus compatriotas, contudo, não deram esse tratamento ao episódio. Já nem recorro aqui a Arnaud, cuja opinião sobre Camille conhecemos. Vejamos, contudo, Michelet, mais moderado.  

Era com o povo mesmo que mais contava Desmoulins, “escreve ele, à página 807 e seguintes da Edição Plêiade”. O autor do Le Vieux Cordelier sentia-se amado, bendito. Tinha consciência de ter sido a voz do povo e sua fé no povo era total. Deu sobre a carreta o mais extraordinário espetáculo, agitando-se e obstinando-se em acreditar que jamais a França poderia abandoná-lo. “Povo! Pobre povo!”, gritava ele. “Enganam-te!... Matam teus amigos!... Quem te chamou à Bastilha? Quem te deu a insígnia com as cores nacionais? Eu sou Camille Desmoulins!”

 Contudo o espetáculo evocado parece comover o

próprio autor, da mesma forma que comoveu a muitos populares que não suportaram a trágica cena.  

Muitos fugiram, “escreve Michelet”, crendo ver a Pátria arrancar seu próprio coração. 

Desmoulins diria, cento e setenta e três anos depois, já mergulhado na vida como Luciano, que “todos somos uns covardes (...)”. Em realidade, porém, não era só covardia, era também a revolta, a angústia do desespero, a frustração da impotência, a decepção ante a indiferença do povo pelo qual ele estava certo de haver lutado tanto... “O povo é ingrato e esquece depressa” – ele me diria ainda, em outra oportunidade. O problema, porém, é que ele morria ainda muito jovem, deixando entregues à sanha de seus implacáveis adversários a esposa amada e o filho infante. Deixava também seus sonhos, suas esperanças e aquilo que, a seu ver, era uma das maiores contribuições à história da França, quiçá do mundo. Em vez de ficar imortalizada no panteão da glória em bustos de bronze, sua cabeça ia rolar em poucos minutos dentro de um cesto sangrento... LC-11 – “Fouquier... não veio me defender. Sofri uma raiva!”

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 Antonie-Quentin Fouquier-Tinville foi uma figura

tenebrosa. Nasceu em 1746, em Hérouel, mesmo departamento de Aisne onde nasceria, quatorze anos depois, seu primo, em segundo grau, Camille Desmoulins.

Gérard Walter entende que ele foi “apenas o lacaio obediente do governo”, o que praticamente o redime de sua longa série de horrores.

Para ficarmos, contudo, ao abrigo de opiniões extremadas, seja para agravar suas culpas, seja para exculpá-lo, vejamos o que diz dele a Enciclopédia Britânica:  Ele era tão implacável e incorruptível como o próprio Robespierre; ninguém o demovia de seus propósitos, seja pela piedade, seja pelo suborno. Sua desapaixonada impassibilidade fez dele eficaz instrumento do Terror. Não tinha eloqüência jurídica, mas a fria obstinação, com a qual expunha suas acusações, era mais convincente do que qualquer tipo de retórica, e raramente ele deixou de conseguir uma condenação. 

Por isso, agüentou dezessete meses no seu posto, um verdadeiro recorde naquela época angustiante. Durou até que Robespierre fosse também preso, julgado e condenado com a mesma rotineira frieza de sempre. Junto com Robespierre veio um homem que Fouquier detestava cordialmente, por nome Dumas, que, no dizer de Walter, “Robespierre transformou de obscuro advogado na própria encarnação do Terror”. O mesmo Walter diz que Fouquier “deve ter experimentado particular satisfação em requerer contra ele (Dumas) a aplicação da lei”.

Fouquier foi investido de poderes praticamente

ilimitados pela Assembléia e pela Comuna. Embora as prisões se fizessem sempre mediante decreto do Poder Legislativo Revolucionário, cabia a Fouquier o exame prévio do dossiê de cada um, na sua qualidade de Acusador Público.  Competia-lhe, “escreve Walter no segundo volume da Histoire de Michelet (à página 1.385 e seguintes)” dar a palavra final, uma vez que era quem decidia, após examinar o dossiê, se o suspeito deveria ou não ser levado ao tribunal revolucionário. 

Além disso, acompanhava o julgamento, ou melhor, aquele lamentável ritual que levava esse nome. Podia interferir no diálogo sempre que lhe parecesse oportuno e necessário, ou interpelar o acusado e as testemunhas. Se o júri decidia pela confirmação da culpa – real ou imaginária, não importa –, cabia-lhe tomar as providências decorrentes, ou seja, pôr em ação a tremenda rotina da execução pública. Gostava sempre de saber se haveria bastante gente na praça para assistir ao espetáculo... Se o acusado era julgado sem culpa, o que raramente acontecia, ele tinha poderes para impedir sua libertação, mantendo-o preso como medida de segurança.

Em 1º de agosto de 1794, quatro meses após providenciar diligentemente o julgamento e a execução de seu primo Camille, ele próprio foi preso. Cometera um erro fatal ao propor, logo após a morte de Robespierre, seu próprio nome para o cargo de Acusador Público na reestruturação que então se cogitava para o Tribunal. Pensava, com isso, agradar os

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novos donos do poder, mesmo porque, obviamente, gostava da sua função. Parece que os novos líderes temiam-no também, por saberem que a qualquer tempo Fouquier poderia mandá-los para a guilhotina com a mesma dura e fria eficiência.

Mas ele não foi julgado imediatamente. Nos oito meses que ainda passou preso, escreveu suas memórias, com o objetivo principal de justificar-se, defendendo a mesma tese que apresentaria perante o Tribunal: “Fui apenas uma engrenagem dócil e submissa à ação do mecanismo do governo.”

O julgamento, afinal, perante o novo Tribunal durou quarenta e um dias, segundo a Britânica, ou trinta e nove conforme Walter. Fouquier portou-se com a mesma frieza de sempre. Defendeu-se com notável habilidade, presença de espírito e sangue frio. Sustentou seu depoimento com inabalável firmeza perante um auditório hostil, e discutiu e chicanou minuciosamente cada acusação ou testemunho.

Perante a guilhotina, após ter sido insultado à vontade pela multidão enfurecida, escreve Gérard Walter...

 (...) esperou imperturbavelmente a queda da décima

quinta cabeça. Em seguida, subiu os degraus com passo firme, apertou a mão do carrasco (seu velho companheiro) e acomodou a sua própria (no cepo).

 Segundo informa César Burnier, com o apoio

mediúnico de Chico Xavier, Fouquier teve uma breve encarnação de quatorze anos no Brasil, “encarcerado na imbecilidade e na paralisia”. Ao morrer, em Pedro Leopoldo, lhe teria sido concedida uma “moratória de cinqüenta anos no espaço, após o que voltará à Terra em nova jornada”.

A História ficou em dúvida quanto ao engajamento de Fouquier como “engrenagem obediente e submissa” do Terror, ou seja, como ele conseguiu chegar lá. Gérard Walter acha possível que tenha sido Camille Desmoulins, seu primo, quem lhe proporcionou essa oportunidade, quando de sua função de Secretário-Geral do Ministério da Justiça, ao tempo de Danton.

Como Luclano espontaneamente confirmou essa versão, creio decidida a incerteza histórica. Não é, pois, sem razão que Desmoulins se lembraria, ainda com horror e amargura, da gelada indiferença de Fouquier pelo seu destino.

Ao que parece, ele nem soube da carta que seu pai escreveu a Fouquier. Embora Camille tenha tido seus problemas com o velho Desmoulins, pai é sempre pai! Vejamos o texto que consta do livro de Ferdinand Laboriau:  

Cidadão compatriota, Camille Desmoulins, meu filho, digo-o por convicção

íntima, é um republicano puro, um republicano por sentimento, por princípios e, por assim dizer, por instinto. Ele era republicano na alma e por gosto antes do 14 de julho de 1789; ele o tem sido, depois, por efeito. O perfeito desinteresse e o amor à verdade, suas duas virtudes características, por mim inspiradas desde o berço e por ele praticadas invariavelmente, sempre o mantiveram à altura da Revolução.

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Será verossímil, não será mesmo absurdo, acreditar ter ele mudado de opinião e renunciado ao seu caráter, às suas afeições pela liberdade, pela sabedoria do povo, ao seu sistema, ao sistema de seu coração, no momento em que o voto dele, bem conhecido e pronunciado, tinha os mais brilhantes sucessos; no momento em que havia combatido e vencido a cabala dos Brissot; no momento em que ele desmascarava Hébert e seus aderentes, autores da mais profunda conjuração; no momento em que devia acreditar a revolução terminada ou prestes a sê-lo, e a sua República estabelecida pelas nossas vitórias sobre os inimigos dela, tanto do interior como do exterior?

Bastariam essas inverossimilhanças para afastar de meu filho até a sombra de desconfiança e, entretanto, ele sofre os horrores de uma acusação tão grave, que creio caluniosa.

Preso ao meu gabinete pelas minhas enfermidades, sou aqui, pelos cuidados que tomam todos em mo ocultar, o último a saber deste acontecimento próprio a alarmar o mais franco patriota.

Cidadão, só te peço uma coisa, em nome da justiça e da pátria, pois o verdadeiro republicano só elas reconhece: é perscrutares por ti mesmo, e fazer perscrutar pelos jurados, toda a conduta de meu filho, e a de seu denunciante, seja ele quem for; saber-se-á logo quem é o mais verdadeiramente republicano. A confiança que tenho na inocência dele faz-me acreditar que essa acusação será um novo triunfo tão interessante para a República quanto para ele mesmo.

Saúde e fraternidade da parte de teu compatriota e

concidadão Desmoulins, que ate aqui se tem honrado de ser o pai de Camille, tido como o primeiro e mais inabalável republicano.

 O comovente apelo foi totalmente inútil, mas ninguém

lhe negaria os qualificativos de eloqüente, sincero e digno. Note-se que o velho Desmoulins não invoca o grau de parentesco nem os favores que o tenebroso primo lhes devia.

Tudo inútil. O julgamento é uma farsa dolorosa. A despeito de seu temperamento desabrido e dos erros que cometeu, ninguém poderia negar a Camille Desmoulins a nitidez de sua postura republicana, desde a primeira hora. Uma das aflitivas ironias daquela época trágica está precisamente em haver sido Camille condenado e executado sob a acusação de ter traído os ideais republicanos.  LC-12 – Duplessis 

Claude-Etienne Duplessis-Laridon era casado com Anne-Françoise Marie Boisdeveix Duplessis-Laridon, pai de duas filhas encantadoras – Anne-Louise ou Anne Lucie ou, melhor ainda, Lucile, futura Madame Desinoulins, e Adèle, com a qual Robespierre desejou se casar.

O Sr. Duplessis era alto funcionário do Ministério da Fazenda. Gérard Walter informa o título oficial: “Prémier commis du Contrôle général des Finances”. Embora num de

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seus artigos – no número 6 de Vieux Cordelier – Camille se refira ao sogro como “le citoyen Duplessis, bon roturier, et fils d’un paysan, maréchal ferrant du village” (“o cidadão Duplessis, bom plebeu, e filho de um campônio, ferreiro da vila”), o certo é que a família tinha suas aspirações, senão à nobreza o nome Duplessis foi adotado por essa razão – pelo menos à burguesia de mais elevado status.

Dizia-se maldosamente que ele devia sua confortável posição burocrática aos encantos de sua belíssima esposa, e até que Lucile nem era sua filha legítima. Que Madame Duplessis era bela e que tinha muitos admiradores fervorosos – inclusive o próprio Camille Desmoulins – não há dúvida, mas seu comportamento parece irrepreensível. O problema é que seu marido era bem mais velho do que ela e não tinha o mínimo gosto pelas frivolidades sociais, os saraus lítero-musicais tão em moda naquele tempo, e, por isso, dedicava-se inteiramente ao seu trabalho e, quando em casa, encerrava-se nos seus aposentos, enquanto a Sra. Duplessis recebia amigos e amigas nos salões iluminados para uma conversa inteligente, um pouco de música e poesia. No dizer de Arnaud, era “um velho rabugento” que não entendia bem o temperamento de Lucile e nem sequer fazia questão de entender. Quanto a Camille, foi ainda mais hostil e resistiu à idéia de concordar com o casamento dele com a filha.

Sejamos tolerantes com o velho Duplessis. Camille era de fato uma figura estranha. Mesmo a Enciclopédia Britânica, que se esmera em informar sem opinar, diz isto de Camille: “Seu sucesso profissional não era grande; seus modos, violentos, sua aparência, sem atrativos, e sua fala, prejudicada por uma penosa gagueira.” Algo aturdido quando viu Camille a seus pés, num gesto dramático, a pedir-lhe a mão de Lucile, acabou concordando hesitantemente, com o que não estava de acordo Madame Duplessis. Por fim ambos cederam, já que Lucile também acabara aceitando Camille que, a princípio, ela nem soube entender, apesar da sua impressionante precocidade intelectual.

Mesmo concordando, porém, e atribuindo à filha um

dote sensacional de 100 mil libras (francesas), equivalente a 125 mil dólares de 1967, o velho Duplessis fez questão de todas as formalidades legais e tradicionais para o casamento, como consentimento expresso e autenticado em cartório, dos pais de Camille, casamento religioso (católico), tudo rigorosamente segundo os costumes.

Suas exigências causaram não poucos dissabores a Camille, como ainda veremos, principalmente porque o jovem revolucionário era visceralmente anticlerical e alguns sacerdotes mais formais aproveitaram-se da ocasião para submetê-lo a alguns vexames, exigindo abjuração de seus escritos e confissão de fé.

Com o tempo, não obstante – e como foi curto esse tempo! –, o Sr. Duplessis tornou-se não apenas mais compreensivo em relação ao seu turbulento genro, mas até mesmo seu admirador. Quando, em momento de grave crise política, Camille escapou para a propriedade da família, em Bourg-la-Reine, o Sr. Duplessis, já nomeado oficial da Guarda

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Nacional, declarou que defenderia militarmente qualquer tentativa de seqüestro contra Camille c seus amigos ali abrigados.

Já bem idoso – não consegui apurar a data de seu nascimento –, sobreviveu juntamente com Madame Duplessis à filha e ao genro, ficando nas mãos do desolado casal o neto Horace, com menos de dois anos de idade.

Arnaud informa que mme. Duplessis não gostava do nome do marido – Laridon –, e foi ela que o teria levado a acrescentar o Duplessis, muito mais distinto. Em algumas oportunidades, ela assinou Laridon-Duplessis, mas desde que se casou fez questão de ser unicamente Madame Duplessis.  

  Vejamos a 4ª reunião: 

RELATO DA 4ª REUNIÃO

HERMÍNIO MIRANDA LUCIANO DOS ANJOS5. O QUANDO E O ONDE   A reunião seguinte foi realizada em 9 de junho de 1967. O tape guarda o diálogo que a seguir reproduzimos, com os comentários habituais.

– Está se sentindo bem, Luciano? – pergunto eu. – Onde você se encontra no momento?

– A um metro mais ou menos de nós. Acima... Não posso olhar para baixo; às vezes, uma espécie de atração me deixa inseguro.

– Você já sabe que o processo não oferece riscos. – Parece que vai descer e depois sobe. É claro que ele ainda experimenta algum temor em

afastar-se do corpo, provavelmente devido à traumatizante experiência da decapitação. Ele próprio tenta explicar:

– É que eu estou numa situação diferente. – Sim, é uma situação nova para o espírito. (O

desprendimento consciente.) – Não sei se estou aqui ou ali – continua ele. (Isso é

verdadeiro também, porque nos estados superficiais a consciência fica como que dividida, ou melhor, partilhada pelo corpo físico e pelo perispírito.)

– Devo ficar calmo – diz ele para se tranqüilizar. – Deus nos ajudará.

As sugestões apropriadas são dadas. – Você vai readquirir o conhecimento acumulado

sobre a existência anterior e vamos desenvolver o plano que combinamos, segundo o qual você vai relatar desde a infância essa existência, para que possamos coligir o material para um trabalho sério, um trabalho importante. Quando ele retoma a palavra, após nova pausa, somos surpreendidos com inexplicável fenômeno de gaguez. Fala com dificuldade, espaçando muito as palavras e hesitando com um sibilado em algumas que ofereçam maior obstáculo. – Não tenho uma clareza muito grande. Prefiro que você pergunte e vou localizando, senão tumultua.

Novas sugestões de relaxamento e tranqüilidade, simultaneamente com os passes longitudinais. Ele sabe que,

p.365...

Vejamos, porém, o desenrolar da quarta sessão. Estamos na semana seguinte. E foi quando, afinal, surgiu o acontecimento mais importante, no quadro até aqui traçado. Lamentavelmente, não temos a gravação dessa sessão. Tendo o Hermínio ido, naquela mesma semana, a Volta Redonda, gravou, por descuido, outra sessão em cima da faixa do nosso diálogo.

[Temos uma questão confusa aqui. Luciano diz que a gravação deste encontro se perdeu, Hermínio cita textualmente a existência do “tape”. Apesar de que, há grande incerteza sobre se os autores estão falando do mesmo encontro, tamanha a discrepância entre o que é dito por um e outro. Seja como for, a palavra de Luciano só traz mais confusão a esse quadro já tão desordenado!

É certo que na reunião de 1/9/1967, que será comentada adiante, ambos concordam que o gravador apresentara falha, mas Luciano fala aqui, neste 4º encontro, que a gravação fora realizada e depois perdida acidentalmente, coisa da qual Hermínio Miranda não faz qualquer menção.] Não obstante, num esforço de memória conseguimos recordar, em resumo, seus pontos essenciais. Isto veio a ocorrer

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seu espírito está preso ao corpo físico por fortes laços magnéticos. – Não vejo (isso) – diz ele. – Mas Deus vai nos ajudar.

Declara ainda não ver os amigos espirituais que nos ajudam na tarefa, mas está convicto da presença deles.

– Essa coragem, pelo menos, eu tive – comenta ele. Damos início, pois, às perguntas.

– Onde é que você nasceu? Antes – explica ele – eu estava nos locais e era mais

fácil e mais rápido. Agora, você tenha um pouco de paciência se me demoro mais, porque tenho que recordar. Agora é diferente. Tenho tudo, tudo, tudo, na memória. Tenha paciência.

Destaco sua observação de que nas duas sessões anteriores – bem como naquela primeira à qual consideramos mero teste de suscetibilidade – ele estava lá, mas agora se vê obrigado a recorrer aos arquivos da memória. Este ponto, de fundamental importância, é reiterado em várias oportunidades de nossa pesquisa, como ainda veremos, mas não constitui novidade, pois o mesmo fenômeno foi observado nas pesquisas do coronel de Rochas, conforme consta de sua excelente obra Les Vies Successives, extensamente comentada por mim no meu livro já citado A Memória e o Tempo. Escuso-me, pois, de repetir aqui considerações que nos afastariam do nosso roteiro específico. Basta ressaltar, para que fique bem claro, que há uma diferença fundamental entre estar lá e recordar-se Por isso, na parte meramente especulativa de meu livro, lembro que o tempo é também um local, ou, para dizer de outra maneira, a memória fica na interseção de tempo e espaço, ou ainda, conforme lemos em A Grande Síntese: “no ponto em que o onde se transforma em quando”.

Voltemos a Luciano. – Por que você sabia antes e não sabe agora, senão

com um esforço maior? A que você atribui isso? – Eu estava no local. Agora estou aqui, lembrando-me do local. Entende? A não ser que eu vá lá. Mas não queria, por enquanto. Nasci em Guise, departamento de Aisne, na França Setentrional. Sabe onde é? Foi lá que eu, nasci. Data? Deixe eu lembrar... 2 de março de 1760.

Como ele enfrenta grande dificuldade para falar, advirto-o com uma palavra de cautela:

– Você acha que está fazendo muito esforço para isso? Não podemos cansá-lo.

– Não me cansa. Não sei o que é... Porque eu falo do alto...

– E tem que transmitir ao corpo. – É. Isso sim que faz... não sei por quê. – Descanse um pouquinho agora. À medida que

formos progredindo no trabalho você irá aprendendo a controlar o processo de tal maneira que vai melhorar seu sistema de comunicação.

 – O corpo reage, mas não sinto. Pode espetar (agulha) se você quiser. Pode espetar.

– Mas não podemos exagerar para você não se cansar fisicamente. Vamos prosseguir. Então foi em Guise, no Aisne, em 2 de março de 1760 que você nasceu. Como se chamava seu pai?

– Jean Nicolas Benoist Desmoulins. Minha mãe? Marie Madeleine Godart.

posteriormente, em uma de nossas derradeiras reuniões, enquanto me achava inconsciente. Recapitulei, conforme já disse, durante novo transe e a pedido do Hermínio, os lances principais da sessão perdida. Logo ao estirar-me no sofá, iniciou o Hermínio seu comando. Depois dos minutos habituais, comecei a entrar em transe, de mistura com algumas imagens que me iam aflorando à mente. Pela primeira vez eu estava vivendo um processo um pouco diferente dos três anteriores.

[confirma que esta é a 4ª reunião]  É que, antes mesmo de entrar na inconsciência, pude mentalizar, perfeitamente, enquanto se iniciava o formigamento e a insensibilidade progressiva, a seguinte cena: alguém estava deitado numa cama. Parecia doente. Muito mal. Eu o estava observando, meio preocupado e nervoso. O ambiente era de tensão, de expectativa, de necessária cautela, talvez mistério. O doente parecia, de vez em quando, diz-me alguma coisa. Súbito senti-o como se a cena fosse real e estivesse transcorrendo naquele exato momento –, alguém bateu à porta. Ele se mexeu, ligeiramente, no leito e ficou de ouvido atento. Voltei a cabeça em direção à porta e me levantei para ir abri-la. Nesse ato de levantar, aconteceu a surpresa: a imagem se evaporou comple-tamente e só vim a saber do resto através da fita magnética.  [Vimos, linhas atrás, que a fita se perdera. Aqui ela reaparece. Pode ser que Luciano esteja se referindo a outra fita magnética, pois ele informa que ao final da experiência gravaram sessão especial, na qual ele, em transe, recordou os principais pontos deste encontro. Mas, há uma coisa estranha aqui: a frase de Luciano não parece referir-se à pretensa fita gravada em segunda mão. O jornalista, aparentemente, esqueceu do que disse há pouco e fala da fita perdida que, neste ponto, não está mais perdida... Não queremos insistir muito nesta linha de raciocínio, para evitar sermos acusados de excessiva severidade na análise. De qualquer modo, que está confuso, isso está!] 

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Intensifica-se a inibição da gagueira, ou melhor, não uma gaguez daquelas que ficam a repetir a mesma sílaba, mas de outro tipo, que se demora na primeira letra de cada palavra e de repente solta o resto num esforço espasmódico. Assim: MMMMMM... arie MMMMM... Madeleine ...

– O que fazia seu pai? – Era advogado da Corte, em Guise. – O que fazia um advogado da Corte naquele tempo? – Meu pai era do Bailliage. Sabe o que é? Uma

jurisdição. Era Lieutenant Général. Você não entende, você não conhece. É que havia uma jurisdição, entende? E os problemas jurídicos da Corte, nos departamentos, eram entregues a uma espécie de delegados. LC-13

– Sei. Como você falou em “tenente-general” pensei que ele tinha também um posto militar.

– Não. É que era um général, geral. Ou seja, a palavra general, aí, é mesmo francesa e se

traduz em português por geral. Desmoulins-pai era, portanto, um magistrado da Corte em Guise.

– Geral, civil... Era uma divisão... – prossegue ele. – Os Lieutenants podiam ser geral, civil, ou policial. Meu pai era Lieutenant Général Civil.

– Sim. Vamos repousar um, pouco. (Pausa.) Ele tinha fortuna própria, era homem de recursos, ou mais modesto?

– Não, meu pai tinha algum dinheiro, não muito. Mas era muito... muito... como se diz, muito seguro. Não gostava muito de dar, mas tinha recursos, sim.

Em outras palavras, o velho Desmoulins era um tanto pão-duro...

– Você tinha outros irmãos? – Tinha. Éramos... (Conta mentalmente em voz

baixa:) Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete ... Sete! LC-14 – Sete com você ou você e mais sete? – Não. Havia uma que morreu muito pequena.

Henriette. Tinha 9 ou 10 anos quando morreu. Ficamos sete. – Eram todos homens? – Não. – Você é capaz de dizer os nomes? – Ah, sim! Henriette Angélique morreu de um

“ramo de ar”. Tinha mais Marie-Toussaint, que me chamava de Preto. – Chamava você de Preto? Como era isso em francês?

– Crayon, Preto. – Esse espírito não foi sua irmã depois, novamente? A pergunta parece tomá-lo de surpresa. – Não sei. Quando morri ela ainda vivia. – Por que então esse nome de Preto passou para esta vida? Curioso isso, não é? – Porque eu tinha os cabelos e os olhos muito pretos. Interessante que você renasceu com cabelos e olhos pretos e ficou com o mesmo apelido. Não é isso? Faz uma longa pausa para pensar, e acaba concluindo: – É a Primerose! Primerose é sua irmã atual.[1]

– Bem. Depois vamos investigar isso. Vamos prosseguir com seus irmãos. E possível que seja o mesmo espírito, mas não queremos afirmar.

Sobe novamente o nível das suas emoções ante o impacto da conexão Marie-Toussaint/Primerose e ele diz, um

Passei a falar como se fora o enfermo! Isto é, “no lugar” do enfermo, vivendo o papel do enfermo. Estava aflitíssimo e indagava se era o Dr. Richard o visitante que acabara de chegar. Perguntava, nervoso, se o Hermínio era o Dr. Richard.  [Esse Dr. Richard aparece na sessão seguinte, no relato de Hermínio Miranda]

O Hermínio acabou dizendo que não, mas que era “um amigo do Dr. Richard”. O espírito estava convicto de que o Hermínio era a pessoa que batera à porta e que entrara na casa. Mas ele também se dirigia a um outro personagem que... estava sentado ao seu lado’ na beira da cama e com quem, até então, parecia conversar. Pe:guntou ao Hermínio por ele, pois tinha sido quem abrira a porta ao Dr. Richard (mais precisamente, ao “amigo” do Dr. Richard: o Hermínio)., Insistiu para saber onqe tinha ido essa pessoa; tinha Um recado a dar-lhe. E, afinal, declinou o nome dela: Camille Desmoulins. O recado era para que Camille publicasse em seu jornal uma advertência sobre nova lei que estaria prestes a ser assinada. Não me lembro se o espírito referiu essa lei. O Hermínio (o “amigo”. do Dr. Richard) prometeu dar o recado. O diálogo se prolongou ainda por alguns minutos, acabando o espírito por xingar o Hermínio, pois começou a desconfiar de que se tratasse de algum inimigo, simulando ser amigo do Dr. Richard, pronto para delatá-Ia. e que o Hermínio tentou saber o nome do enfermo e isso o deixou desconfiado. Dizia, então, em meio a grande ódio; – Seu porco! Você quer me entregar! Acabou a sessão e despertei, como de hábito (embora mais prevenido e mais preparado), sentindo os mesmos sintomas de sempre. O Hermínio me contou, ainda (isto não aparecia na gravaçao), que o final foi horrível, pois o espírito se comportara como se acabasse de ser guilhotinado! Achou, também, que o Impropério “porco” teria sido silabicamente articulado em portugues, mas a idéia original do espírito era em francês: “Cochon.” cuja acepção difere um pouco da nossa, no Brasil. Vale acrescentar, como vimos na Primeira Parte deste livro, que meu atual pai, Antônio dos Anjos, viveu, como médico, na época da Revolução, e se chamava

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tanto aflito: – Me deu um nervoso... Marie-Toussaint

Desmoulins... – Vamos prosseguir. Qual o outro irmão em

seguida? – Armand, Anne, Lazaré e Clément. – E depois? – Lucie. – Ah, sim. Você era, então, o quarto ou o quinto? – Não, eu sou o primeiro. O mais velho. Clément era

o caçula. – Henriette foi a que morreu com 9 ou 10 anos com

um golpe de ar, provavelmente uma pneumonia, como se diria hoje. Não é?

– É. Ramo de ar... (Parece intrigado com a expressão, que continua a repetir.) Eu pensava que fosse outra coisa. Que fosse ataque da cabeça.

– Fale-me de sua mãe. – Cuidava da casa. Coitada! Eu me esqueci muito

dela... – Mas parece um nobre espírito. – Ela... Deixe-me lembrar. (Longa pausa.) Meu

Deus! Não me lembro... Coitada! Eu estava sendo preso e não soube que ela morreu. Coitada! Ainda fiquei mais preocupado naquela hora. Ó meu Deus... Eu a esqueci muito! Meu pai era um tanto culpado... LC-16

– Você saiu de casa muito jovem? – Saí. Acho que tinha uns 13 para 14 anos. LC-17

Saí para estudar em Paris. Eu queria sair de Guise. Só tinha o castelo.

– Você visitou o castelo alguma vez? – Fui em criança. Castelo histórico! Defesa da

cidade! Mas eu não queria Guise, e depois, eu queria estudar. Eu queria Paris! LC-18

– Onde você foi estudar? – No Clermont... Clermont, não. No Louis-le-Grand.

Clermont era antes, o nome. – O colégio chamava-se antes Clermont, mas

quando você foi lá era Louis-le-Grand? – Louis-le-Grand – confirma ele. LC-19 – Lá você conheceu muitas pessoas. Figuras

eminentes saíram daquele colégio. – Rue Saint Jacques. Você sabia...? – Quais foram seus amigos lá no colégio? – Léon... Não me lembro o sobrenome. Léon... Ah!

Ó... (Pausa.) Robespierre! (Longa pausa.) É evidente que a lembrança de Robespierre o

desarmoniza. É como se, ao encontrar novamente aquele vulto ali, na sua memória do Colégio Louis-le-Grand, tropeçasse nele e perdesse o rumo. Tento contornar o problema que, por certo, o aflige.

– Você guarda ressentimento de Robespierre, mas não é necessário isso. Você sabe, como espírito, que são acontecimentos passageiros e, de certa forma, necessários a nosso progresso espiritual. Ele provavelmente também passou pelas suas angústias e sofrimentos, e nem sabemos onde ele está hoje. Você sabe?

– Ele era padrinho do meu filho. Demos Horace aos seus cuidados. (Longa pausa. Faço uma pergunta que ele parece não ouvir. Em seguida, como se despertasse:) O que

Dr. Richard. Certamente, há de ser o mesmo de que estamos falando aqui. Analisemos, pois, o detalhe mais curioso, e que foi o ponto de partida da nossa caminhada na direção da figura revolucionária de CamilIe Desmoulins. Antes de entrar no estado de incons-ciência, era eu quem estava ali, na beira da cama, conversando com o doente. Quando este se manifesta, depois que caio em sono profundo, ele pergunta pela pessoa que estava ao lado e que fora abrir a porta, identificando-a como sendo o Jornalista francês CamilIe Desmoulins. Mas eu estou certo de que quem foi abrir a porta fui eu! Como se teria, então, processado o fenômeno? Talvez de forma muito simples: antes de ficar inconsciente, eu me vi na encarnação passada, naquela cena mentalizada. Ocorrida a hipnose, meu espírito se afastou e o do outro, que estava enfermo, deitado na cama, manifestou-se através do meu corpo somatico. Assim, tivemos, de início, uma visão do passado; depois, uma manifestação mediúnica que confirmava a visão anterior. Essa foi, aliás, conforme já disse, a explicação dada por mim mesmo, posteriormente, durante outra sessão. Mas depois dessa reunião duas coisas obrigaram-nos a suspender temporariamente nossos trabalhos: [Hermínio Miranda não relata ter havido suspensão dos trabalhos. Passemos uma vista d’olhos nas datas das reuniões, conforme a versão de Hermínio:1) Maio/1967 (sexta-feira) − apart. em Copacabana 2) 19/5/1967 (sexta-feira) – apart. de Hermínio 3) 26/5/1967 (sexta-feira) – apart. de Hermínio. 4) 9/6/1967 (sexta-feira) − apart. de Hermínio. 5) 16/6/1967 (sexta-feira) − apart. de Hermínio.6) 23/6/1967 (sexta-feira) − apart. de Hermínio.7) 7/7/1967 (sexta-feira) − apart. de Hermínio.8) 14/7/1967 (sexta-feira) − apart. de Hermínio.9) 21/7/1967 (sexta-feira) − apart. de Hermínio.10) 4/8/1967 (sexta-feira) − apart. de Hermínio.11) 1/9/1967 (sexta-feira) − apart. de

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foi que você disse? – Vamos voltar ao período da sua infância. Mas ele continua retido na figura de seu ex-colega

de colégio. – Robespierre já estava lá.

– Já estava no colégio quando você chegou? Era de uma turma mais adiantada do que a sua? – Era.

– Mais velho do que você também?– Era.

– Foi um aluno brilhante no colégio? – Foi. – Era estimado?

– Não muito, porque se isolava da gente. – Era muito introvertido, não? – Era. Diziam até que ele... (Faz um muxoxo e

conclui:) Bobagem... bobagem... Ele era muito auto-suficiente, mas era estudioso, dos melhores alunos. Era um apaixonado de Rousseau. Eu também, mas ele não o seguiu. No final, não. Eu segui.

– Sim. Vamos falar a seu respeito. Quantos anos você esteve nesse colégio?

– Até... espera aí, deixa eu ver... Até 1784. E mais um ano depois, para colar grau.

– O que você estudou? – Direito. Paris! – E depois que você se formou, o que foi fazer? – Foi meu primo por parte de mamãe que arranjou

para eu ser advogado (exercer). – Como se chamava esse primo? – Era... Espere um pouco... Era Viefville Desessart. Cometo aqui um ato de burrose (burrice eventual,

não crônica) e pergunto se não havia um general com esse nome, ao tempo de Napoleão. Lembro-me, depois, que a confusão se estabeleceu entre o nome Desessart e Dessaix, mas a pergunta cretina serve para uma resposta genuinamente coerente:

– Napoleão quase que eu não vi. – Sim, porque ele começou a aparecer quando a

Revolução já havia passado. Surgiu, como se diria hoje, na crista da Revolução. Mas, de qualquer maneira, seu espírito no espaço não pôde tomar conhecimento dos acontecimentos posteriores porque você deve ter permanecido num período de muita agitação depois da sua execução, que foi algo muito cruel numa idade em que você era ainda muito jovem, cheio de esperanças e de vida. Não é isso? (Antes que ele se agite novamente, apresso-me em acrescentar:) Mas isso hoje é acontecimento passado, superado. Isso não o perturba mais, não é mesmo? Conseguimos vencer a barreira que existia. Você agora está calmo, tranqüilo...

Mesmo assim ele parece recair naquele terrível clima emocional, e diz:

– É porque... você não pode imaginar. Por mais que a gente queira ser homem, é horrível! Mas o Hébert teve mais medo do que eu!

– O medo diante da morte é muito natural – digo eu para consolá-lo. – Especialmente para você, naquela época.

– Ele gritou feito um medroso! – conclui ele. – Quem é Hébert? – Hébert era um brissotista! – diz ele com evidente

Hermínio.12) 8/9/1967 (sexta-feira) − apart. de Hermínio. Conforme Luciano, a interrupção dos trabalhos teria ocorrido no 4º encontro, mas observamos que, de acordo com Hermínio, não houve nada que se pareça com o que foi dito. No máximo, ocorreu intervalo de 15 dias entre um encontro e outro, o que não seria propriamente interrupção (a não ser que Luciano assim o considere). Mesmo assim, do 4º para o 5º encontro, a seqüência semanal foi mantida. Luciano parece falar de algo que efetivamente não aconteceu.]  primeiro, a necessidade de o Hermínio participar de outras atividades espirituais, nas segundas-feiras, as quais houvera interrompido pela ausência de companheiros em férias; segundo, porque aquela última sessão, com os agônicos reflexos sobre mim próprio, das vascas de um homem guilhotinado, reacenderam-me as preocupações e o receio, e eu não estava, de novo, muito apressado em continuar. Pensava nos meus filhos e na cautela com que devia agir, com que devia entregar-me àquelas pesquisas.

Mas essa relação que fizemos sobre as duas fases da última sessão embora só nos ocorresse algum tempo depois – e não imediatamente, como pode o leitor ter julgado –, já naquela época me intrigara bastante e, passado algum tempo, espicaçara-me a curiosidade. Esta, por seu turno, acabou por recobrar-me o ânimo e a coragem. Todavia, para não cometer imprudências, lembrei-me de fazer uma coisa simplíssima: consultar o Alto sobre o assunto. Ouvir o Plano Superior e ser aconselhado sobre a conveniência de prosseguir ou não. Foi o que fiz, e em muito boa hora. Através de um, médium altamente evangelizado, cujo nome não quis que eu declinasse, indaguei aos nossos mentores espirituais sobre se valia a pena continuar nas pesquisas e, no caso afirmativo, como proceder daqui por diante. Recebi a mensagem que o Hermínio já transcreveu na Primeira Parte deste livro, no Capítulo O Quando e o Onde, LC-24. Pedi, ainda, a um outro médium idêntica orientação. Desta feita ao confrade Abelardo Idalgo Magalhães. Sua mensagem ficou perdIda. Contudo, ele

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desprezo. – Mas eu não podia... Lucile, coitada! – Você deixava muita coisa para trás e é evidente

que não queria morrer. – Danton foi incrível! Desde a prisão... Incrível! Ele

gostava também de Lucile, mas ela não ligou! LC-20 – Mas por motivos diferentes dos seus. Vocês,

preliminarmente, não acreditavam, na sobrevivência do espírito. Achavam que, ao morrer, desapareciam.

– Danton, nada! Eu tinha dúvidas... sobre Deus. Tinha dúvidas. O resto, não. Tinha dúvidas. Na prisão, eu queria acreditar mais, precisava, porque quando senti que Robespierre não iria ter pena... nenhuma! Como é que pode? Incrível! (Está quase chorando.) Era preciso acreditar em alguma coisa. Eu queria ler.

– Você me disse que leu um autor inglês... Harvey. Você se lembra do primeiro nome dele? Não conseguimos localizá-lo.

– Harvey. Ficou na prisão (o livro). Era um escritor inglês. Hervey.

– Não é Harvey, com “a”? – Não. Hervey... H-E... Era John Hervey! – Vamos procurar o livro. Você diz que o livro era

Méditations sur le Tombeau. – Méditations sur le Tombeau – repete ele. – E mais

dois livros. Le Nuit, de Young. (Com grande esforço e detestável pronúncia consegue fazer-se entender, dizendo:) Edward Young (diz, Édouard Yang). LC-21

Corrijo a pronúncia no meu inglês – modéstia de lado, muitíssimo melhor – e comento:

– Vocês, franceses, pronunciam tudo à sua maneira. – Le Nuit... Horrível, o livro. – Qual era o terceiro? – Esses, quando me prenderam, apanhei na minha

biblioteca. O outro, tinha comprado numa livraria pouco tempo antes e pedi a Lucile que me levasse na prisão. L’Immortalité. Este... deixa eu ver. Era um poeta. Eram poesias... Tinha uma capa... Você conheceu? Um livro... um poema trágico.

– Era traduzido para o francês ou você lia inglês? – Não, eu não sabia inglês. Muito pouco. Era a

primeira tradução para o francês. Desenterrou a filha! E o Danton também! Desenterrou Gabrielle. Coitado do Danton! Gabrielle... Você a conheceu? Conheceu Louise...? Gabrielle foi antes. Depois Louise. Gabrielle morreu. Era amiga de Lucile. Muito amiga. Morreu. E Danton desenterrou.

– Para quê? – Estava maluco! Completamente louco, coitado!

Totalmente. Tirou do túmulo! Alucinado, coitado! – Era um homem de grandes paixões. – Foi. Gabrielle... Você conheceu? Era baixinha,

bonita. Charpentier. LC-22– Você nunca mais voltou a Guise, depois que saiu

de lá, com 14 anos? – Voltei. Nas férias eu não ia para lá. No verão eu ia

para Bourg-la-Reine. LC-23 – Bourg-la-Reine? Que é isso? – Era a fazenda de mon beau-père (meu sogro).

Bourg-la-Reine. (Está gaguejando aflitivamente.) – Onde ficava isso? – Bourg-la-Reine fica no sul de Paris.

conseguiu recordá-la, em tese. Guillon Ribeiro (meu querido amigo da espiritualidade) recomendava o prosseguimento dos trabalhos. Assim, não me restou mais dúvida de que a palavra de ordem era continuar, devendo, muito em breve, surgir, ao que me era anunciado, algum fato “maravilhoso, do qual eu nunca estivera “tão perto” ... As mensagens serviram-me de bálsamo encorajador e – por que nega-lo? – despertaram-me ainda mais a curiosidade. Levei-as ao Hermínio. Ele gostou, achou-as muito sensatas e, por sua vez, também se reanimou. Marcamos o reinício dos trabalhos e daí por diante, os fatos foram paulatinamente se acumulando se justificando, se encaixando, se comprovando, se revelando, afinal, naquele “maravilhoso” prometido pelo Alto e que mais não era do que meu reencontro comigo mesmo, na sombra do passado longínquo há quase, duzentos anos, em meio à agitada França revolucionária de Luís XVI e encarnando a figura do jornalista CamilIe Desmoulins! (p.365-368 – cap. 4 – 2ª parte)

 

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– Em que época você conheceu Lucile? Quantos anos você tinha?

– Quando eu era estudante. – Como foi isso? – Foi uma felicidade grande, mas difícil! LC-24 – Ela era uma jovem de família importante e você

um estudante mais ou menos desconhecido, daí a dificuldade para você vencer a barreira social.

– É... Foi no Luxembourg. – Numa festa? – Não, no jardim. No Jardim de Luxemburgo. Eu ia

saindo do colégio e ficava passeando, e lá vi uma moça antes de Lucile. Uma moça bonita também. Uma moça. Fiz uns versos para ela, mas... Lucile, sim. Depois, Lucile... um dia... Você quer mesmo saber disso?

– Vamos saber, sim, porque isso interessa à nossa pesquisa. Além disso, é uma recordação agradável para você.

– É! Lucile ia brincar com a irmã dela. – Ela era mais jovem que você? – Era. E com Madame Darrone. No jardim.

Luxemburgo. Madame Darrone... Você a conheceu? Eu é que a chamava de Darrone... Foi um apelido que eu botei.

– Qual a razão desse apelido? – Darrone é patrone. É gíria. – Argot? – Argot. Patrone... Patrone... (Experimenta a

pronúncia de várias maneiras, até que parece encontrar a entonação adequada.) Patrone.

– Você é capaz de falar francês agora? – Oui. Patrone. Francês... não repercute bem,

embaixo. (Ou seja, no corpo físico.) LC-25 – Ah, sim. Você pode pensar lá em francês que

chega aqui, sai em português. É um fenômeno interessante. Está bem. Vamos continuar.[2]

3 Penso tal qual o Hermínio, quanto à linguagem utilizada durante o transe. No mais, nesse caso específico, o emprego do francês não teria acrescentado muita coisa. Eu o falo razoavelmente bem. Não me seria difícil a utilização e, portanto, nada teria acrescentado á pesquisa, em matéria de comprovação. (Nota de Luciano dos Anjos.)

 – Patrone é patroa! Confunde-me tudo isso, mas eu

dou um jeito. E Darrone é argot (gíria). Muito boa, Madame Duplessis. Muito boa... Annette. LC-26

– Ela, levou, então, Lucile para brincar juntamente com a outra irmã?

– Ela se sentou ao meu lado e Lucile brincava com Adèle.

– Adèle é a irmã? – Adelette. Adèle, Adelette. Era mais jovem.

Jogavam, brincavam. Duas crianças lindas! – E você conversava com Madame Darrone... – Eu me sentei no vestido dela! Pedi desculpas. E

começamos a conversar. Ela era linda também! Mas Lucile era minha Loulou... Era linda! Fréron gostava dela também. E Paul também... E Claude também... (E num sussurro:) Mas ela gostava de mim!

Pelo que se vê, Lucile era uma criatura encantadora e tinha um séquito de admiradores; como, aliás, a Sra.

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Duplessis. – Como então começou o romance? Você estava

conversando com madame Darrone no parque, no Luxemburgo, e daí ficou conhecendo Lucile.

– Elas chegaram... Madame Darrone me apresentou. Conversamos, e ficamos amigos.

– Quantos anos você tinha aí? – 22... 23... Não mais. – E Lucile? – Garota. Uns 15 anos...– E daí você passou a freqüentar a casa deles? – Custou! Você quer saber? – Acho que é uma cena que ficou muito gravada em

sua memória, porque em nossa primeira experiência você se viu numa sala com muitas janelas e estava ansioso, esperando por alguém. Não sei se já era sua noiva ou apenas namorada. Você se lembra disso?

–Sei... Vou contar. Eu inventei um pretexto. Fiz um libreto... uma ópera. Uma ópera? Não, uma opereta. Tema? Era um romance frustrado e fui levar. Madame Darrone e Lucile tocavam piano muito bem. Lucile não era Lucile. Lucile era apelido.

Atenção para mais um módulo informativo daqueles a que costumo chamar de a “eletrizante trivialidade”.

– Ah, o nome dela não era esse? – Não.

Neste ponto ele interrompe para pedir um favor: que eu dê alguns passes a mais, o que faço imediatamente. E como a conversa já se prolonga por cerca de uma hora, proponho que seja interrompida para não cansá-lo. E ele:

– Pode continuar, mas devo lhe pedir uma só coisa. Só uma. Não me importa quanto tempo falemos assim, que estou bem. Não importa. Ou que você fale sobre qualquer coisa. Porque temos um compromisso. Temos que juntar tudo, tudo, tudo... muito depressa. Mais duas ou três vezes poderei estar conversando com você. – Por que isso? – Porque eu sonhei... Não. Não sonhei não. Disseram-me aqui... É que confunde. Que temos que ultimar nossa tarefa nessas condições e prosseguir na outra, pelo menos comigo, na tarefa da vida de prisioneiro.

– Isso está muito misterioso. Não estou entendendo. Você podia explicar melhor? Você diz que temos mais duas ou três reuniões apenas... – Eu pediria. Porque devemos... Se você esperar um instante, vou ler para você o que vai passar.

Este fenômeno ocorreu com certa freqüência em minhas experiências. Sempre que o sensitivo tinha algo a dizer, não de sua própria elaboração mental, mas de origem mediúnica, espiritual, provinda de companheiros desencarnados ali presentes, o texto aparecia diante dos olhos e era lido. Foi assim mais uma vez.

“Meus caros amigos: louvado seja Nosso Senhor! Que Ele vos abençoe e vos envolva com a luz do Seu amor e da Sua paz. A tarefa é grande e, sobretudo, agradável a Jesus. Por isso, possam os corações de todos os que nela se acham em trabalho ouvir e, se quiserem, aceitar nossa sugestão fraterna para que ela se desenvolva em duas etapas: essa primeira, propriamente dita, em condições especiais com o concurso de nossos amigos todos, (através do recurso do

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desdobramento e uma segunda, em que se vejam mais livres e por conta mesma de suas próprias interpretações e deliberações. Seria um pouco cômodo a tarefa toda em condições privilegiadas, mas hão de estar sempre assistidos por todos nós. Depois talvez sofram um pouquinho, mas Nosso Senhor os abençoará.” LC-27  

A leitura foi feita muito pausadamente, como se o texto estivesse passando diante dos olhos do leitor, palavra por palavra, surgindo de um lado e desaparecendo do outro.

O texto não continha assinatura é certos aspectos ali mencionados nos parecem obscuros até hoje, ao escrevermos isto, quatorze anos depois.Depreende-se, contudo, que a tarefa fora cuidadosamente planejada e contava com ampla cobertura espiritual. Lembro-me de que na época não compreendi muito bem a sugestão de dividir o trabalho em duas etapas. Percebo hoje, porém, que a idéia era coletar prontamente os dados nas sessões de desdobramento e, em seguida, fazer nosso próprio trabalho de pesquisa, interpretação e exposição. Sobre esta fase, embora assistidos, diziam os não-identificados mentores espirituais que não contássemos com a comodidade de “condições privilegiadas”, ou seja, tínhamos de fazer nossa parte.

Ficou no ar a advertência sobre algum sofrimento como causa direta da tarefa. Isto, porém, era colocado apenas como probabilidade, não como certeza.[3]

4Suponho que eu saiba, hoje, de que falaram os espíritos ao referirem que iríamos sofrer um pouquinho. É problema intimamente ligado à minha família, que peço licença para manter privado. Ou, noutra hipótese, breve, infundado e improcedente percalço com que nos deparamos, na fase que precedeu o lançamento deste livro. (Nota de Luciano dos Anjos.)

 – Por isso, o tempo não tem importância – conclui

Luciano –, faremos tudo como você queira. Encerramos neste ponto a sessão daquela noite, 9 de

junho de 1967. Como percebe o leitor, duas pontas ficaram soltas por causa da interrupção (obviamente necessária) para leitura da comunicação de nossos amigos espirituais. Uma delas foi a narrativa de como Desmoulins conseguiu aproximar-se da família Duplessis; a outra foi a questão suscitada pelo nome de Lucile, que segundo ele era outro. Este ponto é de extrema importância por causa do transbordamento do nome verdadeiro dela para a existência atual.

Veremos isso mais adiante. 

 

  Considerando que Luciano apresenta relatos até a 4ª reunião e depois narra o encontro ocorrido em 1/9/1967, deixaremos de fora os demais encontros relatados por Hermínio Miranda e nos concentraremos neste.

 

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O ENCONTRO DE 1/9/1967 Esta é a única sessão na qual a data coincide, e sobre a qual não resta dúvida de

que tanto Luciano quanto Hermínio se referem ao mesmo episódio. Achamos que desta vez seria possível efetuar comparação dentro dos moldes desejados. Infelizmente, ver-se-á que os narradores tomaram rumos distintos em suas explanações e a mesma dificuldade que relatamos nos diálogos anteriores aqui também se fez presente. Para não alongar demasiadamente este estudo, muitas passagens dos relatos deixamos sem apreciações, mesmo assim, apresentamos os escritos por inteiro, para que os leitores possam visualizar corretamente o que foi dito pelos participantes.RELATO DE HERMÍNIO MIRANDA RELATO DE LUCIANO DOS ANJOS13. CONTRIBUIÇÃO DE CÉSAR BURNIER (p.248...)Estudaremos a seguir a contribuição de César Burnier e de outros companheiros a este fascinante estudo. Tal como nos recomendara a comunicação mediúnica que Luciano nos lera numa das sessões, havíamos decidido encerrar a fase de coleta de dados na sua memória para dar início à segunda fase, e que teria de consistir em complementar as pesquisas com informaçoes documentadas, arranjar todo o material de forma coerente e apresentá-Io racionalmente, num relato como este em que a história fluísse ordenadamente, a fim de que todas as suas Implicaçoes pudessem ser apreciadas. A notícia do nosso trabalho, contudo, circulara entre alguns amigos mais íntimos e houve certa curiosidade – sadia, por certo – em examinar de perto as condições sob as quais estávamos trabalhando. Por essa razão combinamos para a noite de 1.° de setembro de 1967 uma reunião de trabalho para estudo e debate do assunto. [as datas coincidem perfeitamente. De todos os relatos, este é o único onde os testemunhos estão corretamente situados no tempo]A coordenação dessa reunião ficou a cargo de nosso amigo comum, Abelardo Idalgo Magalhães, havendo de nossa parte apenas a restriçao de que teria de ser um grupo muito reduzido de pessoas, de absoluta confIança. Eu próprio não sabia quem viria à minha casa para essa tarefa. Compareceu o Dr. Armando de Oliveira Assis, então vice-presidente da Federação Espírita Brasileira – FEB – (posteriormente seu presidente), pessoa de elevado conceito tanto nos meios espíritas como na vida pública, no desempenho de funções da maior responsabilidade técnica e social. Veio Abelardo Idalgo Magalhães, que já conhecemos. Também o Dr. Jayme Cerviño, médico competente e estudioso da fenomenologia, autor de um livro já em segunda edição, na FEB, sob o título Além do Inconsciente. Veio José Salomão Mizrahy, amigo e confrade de todos nós. (Mais tarde viemos a

6 INFORMES PERIFÉRICOS DE REENCARNAÇÕES PARALELAS

Nesta altura devo fazer uma longa digressão. Trata, esta obra, do exame de provas e circunstâncias que levam à identificação de minha encarnação anterior, na personalidade de Camille Desmoulins. Entretanto, conforme o leitor pôde verificar – e terá de compreender desde logo –, durante as pesquisas surgiram variados informes periféricos, não apenas sobre pessoas que convive-ram comigo àquela época mas, também, sobre outras encarnações, minhas mesmo. Não obstante, tais informes são de muita significação, alusivos ao Hermínio Corrêa de Miranda (Robert Browning), ao médium Abelardo Idalgo Magalhães (Charles Bossut), ao permanente líder César Burnier Pessoa de Mello (Danton), ao político Carlos Lacerda (Marat), ao procurador Roberto Jauréguiber (Hérault de Sechelles), ao médico Luiz Guillon Ribeiro (Bé-rardier), ao meu pai Antônio dos Anjos (Richard Ansiette), à minha irmã Primerose Pinto (Marie Toussaint) e à minha querida filha Ana Lúcia Martino dos Anjos (Lucile Duplessis Desmoulins). Já aludi, mais ou menos demoradamente, nos capítulos precedentes, a algumas dessas pessoas. Também o Hermínio referiu-as. Retornarei a elas e farei a introdução de outras não citadas até aqui. Mas antes de tudo cumpre deter-me nos informes que revelaram minhas encarnações anteriores à de Desmoulins tais como as de Charles d’Orleans (1391-1465), de Jean-Charles e de Luís. Em seguida, alinharei uma série de fatos e acontecimentos sobre personagens ligadas tanto a Charles d’Orléans quanto a Camille Desmoulins.

No dia 1. o de setembro de 1967 realizamos a longa reunião de que nos fala o Hermínio, em capítulo da Primeira Parte deste livro. Como vimos, por lamentável descuido, o gravador nesse dia não funcionou. E para que os lances principais não ficassem esquecidos, o Hermínio fez, logo ao término dos trabalhos, nova gravação, com o testemunho dos participantes, em especial o do César Burnier, que foi, no caso, com quem mais conversei durante o desdobramento, e quem tivera a maior ligação comigo nos idos de 1789. [a falha no gravador está concorde nas duas

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saber que ele fora um dos destacados parentes de Luciano na existência que este viveu como Charles d’Orléans... O leitor compreenderá as reticências.) E, afinal, estava conosco um cidadão mais idoso do que nós; estatura elevada, figura imponente, que comparecia como especialista em história da Revolução, com o objetivo de formular algumas perguntas para Luciano, já em transe: Chamava-se César Burnier Pessoa de Mello, advogado, alto funcionário aposentado do Ministério da Fazenda, filho de conceituada família mineira, amigo pessoal de Chico Xavier, com o qual conviveu intermitentemente por dezenas de anos. César me causou profunda impressão. Quando lhe apertei a mão, ao ser-lhe apresentado, pude perceber a força do seu magnetismo pessoal, e por um desses palpites inexplicáveis, ocorreu-me – mas não o disse a ninguém – que ele tinha algo a ver com tudo aquilo que estávamos fazendo ali. O grupo se completava, naturalmente, com Luciano e eu. Acomodados todos, e após a troca inicial de impressões, fiz uma exposição sumária da situação das pesquisas até àquele ponto, e comentei aiguns aspectos dos “achados” históricos. Respondidas algumas perguntas suplementares, Luciano foi posto em transe, como de hábito, por meio de passes, e iniciamos os trabalhos. Lamentavelmente, nosso gravador falhou naquela noite crítica. Temos, porém, um relato que César Burnier escreveu meu pedido, com base em suas notas pessoais então colhidas.

[observa-se sensível diferença entre o que Luciano diz ter acontecido e a informação de Hermínio: o jornalista fala que houve nova gravação ao final do encontro; Hermínio Miranda diz que baseou-se nas notas de Cesar Burnier, a qual foi elaborada seis anos após o encontro!]

Ao elaborar este trabalho solicitei – e obtive – permissão de César para incorporar seu relato a este livro.

Ei-lo:

“Prezado e distinto amigo Dr. Hermínio Miranda. Rio de Janeiro, 30 de março de 1973.

Grave enfermidade me reteve durante longo tempo nos hospitais do Rio, motivo por que só agora posso me manifestar sobre o seu esplêndido artigo inserido na revista Reformador nº 8, de agosto findo, e em que meu nome é citado por mais de uma vez. Julgo-me, por isso mesmo, na obrigação de dar testemunho de tudo quanto ocorreu durante as sindicâncias científicas que o distinto amigo

narrativas, porém Hermínio não relata ter havido outra gravação ao término dos trabalhos, na qual teria constado o testemundo de César Burnier, que é o que assegura Luciano dos Anjos. Contraditoriamente, Hermínio joga o testemunho de Burnier para vários anos adiante..]

Anote-se, como fator importantíssimo: eu estava sendo apresentado a ele naquela noite, naquele instante, e nunca tinha, ouvido falar nem em seu nome e menos ainda em seu passado reencarnatório. No entanto ele ali estava, especialmente convidado porque era, nada mais nada menos, do que o Danton reencarnado! E, pela lógica, tinha que ser reconhecido por mim, pois fomos intimamente ligados, como, de resto, a própria história o registra. [Encontramos no trecho sublinhado acima a síntese do pensamento falacioso de Luciano, no que tange às identificações reencarnativas. Vê-se que o jornalista recorre à “lógica” como forma de ratificar a inferência. Avaliemos o que ele declara, dito de outro modo:

1. Luciano (travestido hipnoticamente como Desmoulins) reconheceu em Cesar Burnier a reencarnação do amigo Danton;2. a identificação teria de acontecer, pois a própria história registra que ambos eram intimamente ligados;3. Portanto, ficou provada a correta identificação de que Burnier era Danton redivivo!

É com esse raciocínio torto que Luciano dos Anjos pretende demonstrar a capacidade de reconhecer reencarnações passadas. Mas, o que têm nas declarações do jornalista, durante a sessão hipnótica, que sejam capazes de corroborar a existência de um fictício mecanismo reconhecedor de encarnações?

A resposta é: nada, absolutamente nada!

Esse óbice, nenhum dos participantes do encontro parece ter percebido. O fato de Luciano dos Anjos, sob hipnose, realizar afirmações que os registros históricos ratificam, apenas, e tão-somente, demonstra que o jornalista, quando hipnotizado, exibe bons conhecimentos de eventos históricos do período da Revolução. A inserção de declarações reencarnacionista nesse quadro é gratuita! Teria de haver outros elementos que permitissem supor que o discurso identificativo faz sentido e seja oriundo de algum dom especial com o qual o jornalista foi aquinhoado. A correlação entre o discurso do regredido e a história reencarnativa de César Burnier, a qual é apresentada como legítima, está apoiada no vazio.]

Vimos que o Hermínio quis recuar ainda mais no tempo e investigar-me outras encarnações. Surgiram,

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realizou, à minha frente, na faixa daquilo que denominamos ‘regressão da memória’.

De início, confirmo, plenamente, as afirmações feitas pelo amigo às páginas 197-206 do Reformador de agosto .

[Hermínio esqueceu de transcrever o que disse em O Reformador. Ficamos sem saber o que é que Cesar Burnier estaria confirmando...]

 Devo mencionar, também, que todas as pessoas que tomaram parte nas aludidas experiências eram absolutamente desconhecidas de mim, incluindo, entre elas, o prezado e muito distinto amigo, a quem fui apresentado no momento em que dei entrada no cômodo onde as pesquisas iriam ser feitas com a sua supervisão. Ê certo que o jornalista L.A. (Luciano dos Anjos) – seu paciente – já me havia sido apresentado quando exibi, no salão da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), o filme de longa metragem rodado por mim em Pedro Leopoldo, em 1946, tendo por objetos a pessoa e a mediunidade de Chico Xavier.*

*Sinceramente, não me recordo, ainda hoje, do prévio encontro com Cesar Burnier. Acho que não estive na ABI naquele dia a que ele se refere. (Nota de Luciano dos Anjos.)

Mas essa apresentação não passou de um simples aperto de mão e troca de palavras amáveis. Ninguém, entre os componentes do seu grupo, sabia dos estudos que eu vinha fazendo desde 1940 no campo da história e com base na reencarnação, fato que eu escondia dos espíritas, com exclusão do médium Xavier e de um pequeno grupo de amigos, isso a conselho dos próprios espíritos, conselhos e advertências filtrados por aquele magnífico médium mineiro, conforme mensagem em meu poder. Conclusão: minha modesta adesão às pessoas estudiosas que formavam o seu grupo foi inspirada em virtude dos meus conhecimentos da história francesa e, em particular, da grande revolução de 1789. Não Ignorava eu, entretanto, que as suas experiências Consistiam nas sondagens regressivas da memória. O confrade que me dera essa informação acrescentara que o paciente – o jornalista L.A. que lhe ‘servia de cobaia’ (perdão pela expressão) – teria sido o célebre Camille Desmoulins, da Revolução que deu fim ao ‘direito divino dos reis’. Rejubilei-me: Camille era alguém cujo rumo certo eu procurava desde o começo das minhas pesquisas. Nao nego que por várias ocasiões pensei tê-Io descoberto por palpite, jamais por indicação tácita dos espíritos, ou arrimado em prova que me convencesse categoricamente. Meras

então, aquelas personalidades já referidas, sendo que a primeira e mais antiga se chamava Charles d’Orléans. Quem era? Confessei-o eu mesmo e os dados históricos, depois, confirmaram que se tratava de um duque, sobrinho do Rei Carlos VII e pai de Luís XII. Poeta, casado quatro vezes, prisioneiro dos ingleses durante longos anos. Devo sublinhar, aqui, detalhe importantíssimo: ele era um Valois! Depois é que ganhou o ducado de Orléans e passou a chamar-se Charles d’Orléans. Ora, esse – se o leitor não esqueceu –, tinha sido, precisamente, um dos raros detalhes fornecidos pelo medium Francisco Cândido Xavier sobre minha existência anterior: que, eu fora um Valois, escritor, e vivera na França durante o período revolucionário.

[Luciano “ajeita” a revelação falhada de Chico Xavier, para que fique concorde com sua postulação de ter sido Camille Desmoulins e, antes disso, um Valois! Mas, o que Chico Xavier dissera sobre a encarnação francesa de Luciano? Que ele fora um “Valois, escritor”. Vamos ver o que Luciano escreveu, na terceira parte de seu escrito, sob o título “A Forte Presença do Passado Francês”:

“Sempre acreditei, sendo espírita, que houvesse vivido na França, tanto pelo amor que lhe sentia como, mais tarde, por uma oblíqua insinuação do querido médium Francisco Cândido Xavier. Mas nada me autorizava a afirmá-lo positivamente. Eis que, um dia, os confrades Aberlardo Idalgo Magalhães, José Salomão Mizrahy e Henrique Russo Olivier vão a Uberaba, em visita àquele incansável medianeiro, e me trazem dele informação mais aclaradora: Chico Xavier informara-lhes que eu realmente vivera na França, na última encarnação, durante o período revolucionário, E – eis, agora, um detalhe que, em princípio, parece equívoco, mas que o tempo se encarregou de confirmar, como já vimos neste livro – que eu tinha sido um Valois, escritor! Ora, não era um médium qualquer quem o afirmava, era o mais completo médium do Brasil, quiçá do mundo inteiro, no campo da fenomenologia intelectual. Agora, por conseguinte, eu estava diante da possibilidade real de entreabrir o surpreendente livro do meu passado! Mas, quem fui eu, afinal? O Abelardo, o Henrique e o Salomão colocavam a mão no queixo e respondiam: “Não sabemos... Ele não disse.”

Sigamos com a leitura, de modo a deixar bem claro o procedimento do jornalista]

A informação, por conseguinte, era duplamente exata. O que me faltou, na ocasião, foi calma (e maior interesse, pois eu estava muito despreocupado do assunto) para analisar e separar a informação.

[Luciano “conclui” que pensara estar diante de

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desconfianças! Tão logo cheguei ao seu apartamento, ouvi do prezado amigo o mais completo relatório de todos os trabalhos realizados até então. Um possante gravador completou, durante mais de uma hora, todos os pormenores da sua exposição.

[Cesar Burnier introduz uma terceria versão dos acontecimentos, não fala de falha alguma na gravação e assevera que o encontro foi registrado normalmente pelo aparelho! Temos pois, em cada relato, uma visão, não só diferente, mas conflitante!]

Inteirei-me de tudo. Submetido o jornalista ao transe hipnótico, um médico não-espírita16

constatou que o transe era completo: relaxamento dos músculos, pupilas dilatadas, alterações do metabolismo e do ritmo cardíaco. Confesso que não esperava grande sucesso, porquanto sou bastante cético.

16 É engano de César que, como disse de início, ele próprio desconhecia os presentes. O Dr. Jayme Cerviño, aliás desencarnado tão jovem, foi espírita militante e participou de grupos da chamada juventude espírita, quando estudante.

Iniciados os trabalhos, o amigo anunciou ao paciente que havia uma visita na sala e perguntou-lhe se a conhecia (pergunta habitual em todos os trabalhos desse gênero). Resposta: ‘Sim, eu a conheço. É Marius’.

A resposta deixou os assistentes em confusão. A mim, todavia, imensamente interessou: Marius era o nome que Lucile Desmoulins aplicava a Danton, na sua intimidade com o ardoroso convencional, de quem Camille fora secretário. Eu havia lido dezenas de biografias de Danton e Desmoulins. Entretanto somente numa delas – a de Hermann Wendel, à pág. 334 – encontrei essa citação, colhida numa carta que Lucile escrevera a Fréron e na qual se queixava da lassidão de Danton, exausto pelas lutas revolucionárias e amargurado com os homens da Revolução. Lucile achava Danton muito parecido, política e psicologicamente, com aquele famoso político romano. De um salto, depois dessa curiosa citação, e depois de confirmar aos presentes o seu inegável acerto, pus-me a interrogar o paciente através do caríssimo amigo, de cuja voz me utilizei, porquanto, estando o paciente em rapport com você, não poderia ouvir-me de maneira alguma. (Outro indício do seu estado de transe.) Incontáveis perguntas dirigi ao paciente, todas elas capciosas, difíceis de serem respondidas em conjunto.

uma única informação, mas depois percebeu que eram duas! Desse modo, quando Chico Xavier garantira que Luciano fora um Valois escritor, em realidade estaria declarando que o jornalista tinha sido (1º) um Valois; (2º) um escritor, portanto, dois, em vez de um.

Com base em quê chegou a tal ilação? Por conta de uma vírgula, que ele, estrategicamente, inseriu na mensagem verbal, a qual transformou numa conjunção aditiva e, com um pouco de esforço, converteu em duas asserções!

Os amigos de Luciano, ao retornarem do encontro com o médium, apresentaram a seguinte informação: “ele disse que você foi um Valois escritor e viveu na França no período revolucionário”.

O caso é que depois que se descobriu a si mesmo como Camille Desmoulins, Luciano ficou com um problema a elucidar, pois a informação dada anteriormente pelo médium não fechava com a recém-descoberta. Camille, é certo, vivera no período revolucionário, mas não fora Valois. E agora, quem poderá me defender? Deve ter se perguntado o jornalista. Súbito, idéia luminosa o envolveu: e se a revelação fosse duas, embrulhadas na mesma embalagem? Ante esta inspiração, reservou a parte “período revolucionário e escritor” para Desmoulins e partiu em busca do Valois que fora.

Só que Luciano esqueceu que a informação completa dizia: “fora um Valois, escritor e vivera na França no período revolucionário”. Esta seria a imagem completa da encarnação francesa de Luciano, que ele desmembrou, para tornar o discurso de Chico Xavier coerente. Em verdade, ele deveria estar a buscar um Valois com tais características (escritor, que tivesse vivido na época da Revolução). Só que para tanto, teria de abandonar a identidade de Camille Desmoulins e isso ele não faria de jeito algum!

A adaptação reencarnatória feita por Luciano esbarra no próprio escrito do jornalista. Vejam o seguinte trecho:

Chico Xavier informara-lhes que eu realmente vivera na França, na última encarnação, durante o período revolucionário... que eu tinha sido um Valois, escritor!

Ora, é mais do que claro que Chico Xavier se referira à última encarnação, portanto fora uma só vivência e não duas!

O médium, dissera: “Viveu na França: na última encarnação, durante o período revolucionário, e que

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[nota-se o empenho de Burnier em valorizar a boa memória de Luciano, diz que dirigiu ao paciente “incontáveis perguntas”, numa reunião com pouco mais de uma hora de duração seria muito difícil conseguir tal feito]

Inquiri-o quanto ao nome da velha ama-de-leite da família de Danton (ela o acompanhou até à sua morte). Camille e Lucile eram comensais do tribuno. Provaram muito com as pessoas que o cercavam. A resposta não tardou: Margueritte Hariot. E a outra empregada, a que esteve presente ao casamento do tribuno na cour de Commerce? Danton casou-se, na segunda vez, com Louise Gelly. A resposta veio exata: Marie Fougerot. (Ver a biografia de Danton – autor Dr. Robinet, página 249.) Essa Marie Fougerot e uma outra doméstica – Catherine Motin – foram as pessoas encontradas pelas autoridades – Louis Thuller, juiz de Paz da Seção do Teatro Francês, quando esse juiz se dirigiu à residência da falecida Antoinette Gabrielle Danton para fazer o arrolamento dos seus bens, na ausência de Danton, enviado pela Convenção à Bélgica em desempenho de grave missão junto de Dumoriez. (Ver peça justificativa nº 6, intitulada ‘Apposition des scelles chez Danton, Le 12 Février 1793’ – constante das folhas 234, do livro Danton, edição 1884, da autoria do Dr. Robinet17). Não contente de todo com as respostas dadas, formulei numerosas outras perguntas vazadas no mesmo estilo.

17 Foi ao retomar dessa viagem que Danton mandou desenterrar GabrieIle para se certificar de que ela estava mesmo morta. no episódio a que aludiu Luciano em transe.

O paciente, vencidos os esforços naturais, saiu-se esplendidamente.

O físico do jornalista L.A. é absolutamente idêntico ao de Camille Desmoulins. Seu cacoete (ligeira gagueira ou tropeço) continua o mesmo.18

18 A gagueira só se verificou no estado de transe. mesmo assim foi eliminada com o tempo. Luciano não apresenta a menor dificuldade em falar em seu estado de vigília.

[Burnier esforça-se por demonstrar que existiriam indícios na constituição corpórea e nas atitudes de Luciano que o caracterizariam como Desmoulins. Porém, é fácil perceber que exagera: “o físico do jornalista L.A. é absolutamente idêntico ao de Camille”, declara em sua euforia. E ressalta que a gagueira seria outra comprovação. Hermínio não vê alternativa senão refrear a excessiva empolgação do

tinha sido um Valois, escritor.” É claro que ele se referira às duas personalidades: a de Desmoulins e a de d’Orléans! Na França, ambos haviam vivido − certo; na última encarnação, durante o período revolucionário –, também certo, na personalidade de Desmoullns; e tinha sido um Valois escritor – certo, igualmente, na personalidade de Charles d’Orléans. Absolutamente certo, correto, exato. Só não sei se o Chico sabia da distinção e não quis dizer, ou se ele mesmo também a ignorava. Neste caso, sabia agora que, mais uma vez, sua mediunidade não falhara, o que, de resto, não surpreende a ninguém ... [Parece que o único que não se surpreende com esse nó indesatável é o respeitável jornalista!! É bem conforme alguém declarou: com um pouco de criatividade tudo se ajeita!]O leitor deve estar lembrado também que falei, no mesmo capítulo 3 desta Segunda Parte do livro, da informação que me dera, o médium Homero Lopes Fogaça dizendo que eu “Vivera na França, fora membro da corte, era assim magro como hoje e autorizei a morte de algumas pessoas”. Estava, portanto, igualmente certíssimo. Não devo deixar passar a ocasião para assinalar que, pelo menos quanto à encarnação como Camille Desmoulins, recebi, também, por mais de uma vez, a confirmação de outro extraordinário médium: Divaldo Pereira Franco. Se quiserem o arremate decisivo, ei-lo: Olímpio Giffoni, médium do Grupo Ismael, da Federação Espírita Brasileira, e dos mais evangelizados que se conhecem (antena psíquica das raras e sublimes mensagens de Ismael à Terra), e que me confirmou, da mesma maneira, essa encarnação.

E até, a respeito dela, deu-me muitos conselhos pessoais ... Vamos adiante! Entre as vidas de Charles d’Orléans e de Camille Desmoulins, renasci; ainda na França, por mais duas vezes, ambas exercendo um ofício que nunca, nenhum de nós, houvéramos ouvido falar: vinagreiro, isto é, vendedor ambulante de vinagre. Vidas duras, difíceis, árduas, cheias de tropeços. E foi me referindo a uma delas que aflorou, nas nossas pesquisas, a figura do Cardeal CharIes de Guise, sobejamente conhecido da nossa história universal. Quem era ele? Exatamente, como já contou o Hermínio, o confrade e amigo atual Abelardo Idalgo Magalhães.

O surgimento do nome do Abade Bossut, acontecido durante aquela mesma reunião, tem implicações especialíssimas. Naquela mesma semana, ninguém sabia, ainda, com precisão, de que se tratava; sequer como se escrevia o nome Bossut. Mas o Abelardo Idalgo Magalhães, por via de sua própria mediunidade, chegou, mais depressa do que podíamos esperar, às conclusões que buscávamos. Em sua casa, no domingo daquela semana, ele recebera uma forte intuição no sentido de que

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visitante: em verdade, Luciano não é gago, exibia a gagueira apenas quando representava Camille. Na sua generosidade identificativa, Burnier acaba criando uma nova vertente na doutrina da reencarnação: a de que os reencarnados apresentam as características físicas e psicológicas de seus antecessores. Parece-nos que Kardec não veria essa idéia com bons olhos... Também, seria o caso de perguntar: e César Burnier, teria o mesmo físico que Danton? Pena que não dispomos de fotos de Burnier para comparação. No relato de Luciano, veremos que ele comunga a mesma idéia de Burnier, mas com algumas diferenças nos detalhes]

Para ser leal, informo-lhe: até o dia da nossa reunião com L.A., eu ignorava que Camille Desmoulins chamava-se Lucie Simplice Benoist Camille Desmoulins. Esse Lucie Simplice passou a ser uma novidade para mim. (Ver Enciclopédia Larousse, volume 6, pág. 570.) Não conheço uma só biografia de Desmoulins que cite esse Lucie Simplice que o prezado amigo descobriu na Enciclopédia Britânica.

[Conforme comentamos anteriormente, a citação do nome completo de Desmoulins foi excessivamente enaltecida. Aqui observa-se Burnier intensificando o valor dessa lembrança. Ele declara não conhecer “uma só biografia” que cite o epíteto por inteiro. Observem: nenhuma uma biografia, nem umazinha sequer, na qual o informe constasse! Será que faz sentido tal declaração, vinda de especialista na Revolução Francesa? Indagamos: quantas biografias de Camille o declarante leu? Temos uma resposta do próprio Burnier:

“Eu havia lido dezenas de biografias de Danton e Desmoulins”.

“dezenas” de biografias, significa de vinte para além, e em nenhuma delas o nome completo de Camille aparecia?! Uma coisa é certa, entre essas mais de vinte biografias, Cesar Burnier não leu a que consta da Enciclopédia Britânica, provavelmente da mais popular das biografias o especialista olvidou a leitura ... um tanto estranho... contudo o maior problema não está aí: as boas biografias costumam trazer informes pessoais completos sobre os personagens que descrevem. Supomos que Burnier tenha examinado material de boa qualidade. Como então aceitar que em nenhum deles o nome inteiro do revolucionário aparecesse? Até em biografia mixurucas a informação está presente. Quem quiser conferir, basta jogar o nome “Camille Desmoulins” em ferramentas de pesquisa na Internet, vão aparecer um montão

consultasse o Lello Universal. Ora, nós, que já havíamos tentado a Enciclopédia Britânica, a fim de localizar o Professor Charles Bossut, não poderíamos supor que o LeIlo registrasse alguma coisa. Mas a intuição fora absolutamente certa. O Abelardo me telefona e me dá notícia da sua descoberta. Três ou quatro linhas apenas, mas o bastante para confirmar-se que o abade existira de fato. Posteriormente, foi mais fácil ampliar a pesquisa, na Biblioteca Nacional. Então, apuramos tudo sobre o assunto e os fatos começaram a casar-se de forma maravilhosa. Fatos que não poderiam ser imaginados, que não poderiam ser fabricados e que estão acima da possibilidade humana, consciente ou subconsciente, de serem arrumados. Descobrimos, por exemplo, que Bossut foi o primeiro tradutor, na íntegra, de Pascal, por sinal contra recomendação da Igreja da época, que não queria o trabalho. Ora, as Iigações do Abelardo (médium) com o Espírito Pascal são muito anteriores as nossas pesquisas. Bossut foi estudioso de assuntos sobre oceanografia, sobre construção de diques, de represas, etc. O Abelardo veio a ser, antes das pesquisas, auditor de uma das raras firmas construtoras de diques no país. E tanto o cardeal como o abade se chamavam Charles. O Cardeal Charles de Guise fundara uma universidade; o Abade Bossut era professor de matemática; o Abelardo leciona contabilidade. Bossut viveu, realmente, à época da Revolução Francesa, e teve sua condição de abade cassada. Mas, de fato, salvou-se da guilhotina, pois a história não registra em contrário.

Assinale-se, ainda, que se o Abelardo não pede ao Hermínio, durante aquela reunião, que me fosse perguntado se havia mais alguém conhecido ali na sala, toda essa história não teria surgido. Não foi, portanto, uma narrativa espontânea, mas provocada por uma pergunta de última hora.

Quanto ao César Burnier, há muito o que dizer. Repito que não o conhecia, nunca o tinha visto antes. Preveniram-me de que participaria da reunião uma pessoa muito estudiosa da história da Revolução Francesa e que me iria fazer algumas perguntas. Concordei, pois àquela altura eu já não duvidava de que’ em transe seria capaz de responder a qualquer indagaçao. Não me havia dito, porém, que se tratava da reencarnação do Danton. Ora, Desmoulins tinha de reconhecer Danton e esse reconhecimento seria, sem dúvida, fator decisivo de comprovaçao. Pois bem, os fatos ocorreram tal qual o leitor verifícou, ao ler o relato correspondente na Primeira Parte deste livro, sob a responsabilidade de Hermínio C. Miranda.

Acrescento, neste ponto, uma outra informação que não é oriunda das sessões feitas com o Hermínio, mas fornecida, oralmente, pelo César Burnier: além de Charles d’Orléans, do vinagreiro (duas vezes) e

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de comentários citando o nome inteirinho de Desmoulins. (Atenção, antes que digam que não havia internet na época em que as experiências foram realizadas, esclareço: a internet não existia, no entanto as biografias existiam)]

Esse fato é mais uma contribuição a favor da autenticidade do depoimento obtido do seu paciente em estado de transe, como se não bastasse aquela declaração sua de que a Sra. Duplessis-Laridon, mãe de Lucile, tinha o apelido de Madame Darrone, ‘coincidência’ notabilíssima que o distinto amigo indica em seu magistral artigo, usando as seguintes palavras: ‘Cerca de dois anos depois, ao passar por uma livraria, em companhia de L.A. e de César Burnier – que desempenha nesta pesquisa importante papel –, encontrei num velho volume da história da Revolução a confirmação de que Mme. Duplessis tinha o apelido de Mme. Darrone.’

Realmente essa descoberta se deu de acordo com a sua exposição de motivos. Nós nos encontrávamos juntos, por ‘acaso’, quando entramos na livraria (o almoço não fora combinado previamente), onde o livro esclarecedor foi encontrado ... Quantos ‘acasos!’. . .

Sei que o jornalista L.A. tem uma filha, registrada em cartório muitos anos antes das suas pesquisas, com o nome de Ana Lúcia, o mesmo da infortunada Anne-Lucile Desmoulins19; sei, também, que ambas nasceram no mesmo dia e no mesmo mês – 24 de abril.

19 Há pequeno engano de César. aqui. O nome de Lucile era Anne-Louise, mas era tratada, na intimidade, por Anne-Lucie ou ainda Lucile.

Tudo isso o meu distinto amigo relatou no seu brilhante artigo do Reformador de agosto. A leitura da tradução da carta escrita por Camille a seu pai, carta estampada no Reformador, constitui esplêndida prova da memória regressiva do jornalista L.A.20

20 O fenômeno parece uma combinação de memória com vidência, pois ele “via” a carta diante dos olhos espirituais.

Aliás – é bom precisar aqui –, várias foram as cartas escritas por Desmoulins ao seu progenitor – Nicolas Desmoulins –, homem de muita influência na sua terra natal, porém muito agarrado ao dinheiro. Em quase todas essas missivas Camille reclamava ajuda e revelava sua ânsia de querer subir na política. Numa dessas

de Camille Desmoulins. Eu teria vivido como lugar-tenente de Spartacus, líder da célebre revolta dos Escravos em Roma, no século 71 a. C. César Burnier fora o próprio Spartacus, mui antes, e claro, de reencarnar como o tribuno revo lucionário Georges Danton.

[É certo que dar asas à imaginação não é crime e até dá um certo colorido à narrativa, porém em nada ajuda a explicar a experiência...]

Mas, pelo menos quanto a mim, estamos, nesse passo, no terreno da mera especulação. Há quem diga, ainda, que ao tempo do nascente Cristianismo fui Demétrio referido por Emmanuel na sua obra Paulo e Estêvão.

Particularmente, acho possível. Mas também não tenho provas de nada. E neste livro só estamos cuidando de matéria provada e comprovada cientificamente.3

[?!] [Pena que Luciano dos Anjos não quis ampliar a declaração, informando o que, em seu modo de ver, significa “matéria provada e comprovada cientificamente”. Se ele está a se referir à sua regressão, e à conseqüente suposição de que fora Camille Desmoulins, como matéria cientificamente comprovada, então estamos diante de sérias dificuldades. Ressalte-se que nem o próprio Hermínio Miranda ousou emitir declaração tão contundente! Conforme se vê na nota acrescida por Hermínio ao declarado pelo jornalista]

3 Em verdade seria imprudente assegurar a identificação de Luciano com Demetrio sem dispor de um mínimo de evidências convergentes, como tantas existentes no caso Luclano/Desmoulins. Certas conotações, no entanto, são singularmente curiosas. Segundo relato de Emmanuel, pela psicografia de Chlco Xavier, em Paulo e Estêvão, Demétrio era ourives, em Efeso, e tinha consideravel interesse na comercialização de imagens da famosa Diana, deusa da mitologia grega que ali se venerava. A pregação da mensagem cristã, devido ao pioneirismo de Paulo de Tarso, não apenas ameaçava o rendoso comercio como, eventualmente, poderia acarretar dificuldades a “toda uma classe de homens válidos (que) ficava sem trabalho”, como escreve Emmanuel, se ali viesse a implantar-se o culto sem imagens do cristianismo nascente.

Demétrio viu logo o inconveniente que aquilo representava para os seus interesses pessoais e, por extensão, não sem certo teor de demagogia – as implicações sociais, potencialmente explosivas, ante o fantasma do desemprego. Foi o bastante para entrar em ação com o objetivo de mobilizar a opinião pública. Promoveu uma reunião com

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cartas, escritas com letra quase ilegível – como a de 20 de setembro de 1789 –, Camille pedia que se lhe remetessem duas camisas e roupas. (Ver Enciclopédia Larousse – volume 6, pág. 570.)

O Café Procope ainda existe. Seu dono chamava-se, de fato, Lopes. Possuo ótimos slides coloridos desse café. Nada mudou ali. Constatei, através de informações seguras, que a expressão de que alguém pudesse morrer de ‘ramo de ar’ era comumente usada no velho Portugal daqueles tempos e tinha o significado que o meu amigo lhe dá, no seu artigo, isto é, o de uma crise de circulação, ou estupor português.”

O longo documento preparado por César Burnier prossegue, expondo fabuloso acervo de informações colhidas tanto em registros históricos confiáveis, que ele vai citando, como no trato com seus mentores espirituais, seja através das suas próprias faculdades mediúnicas, seja com a valiosa participação de seu particular amigo Francisco Cândido Xavier. César não tem dúvida, assim, em identificar Luís XVI o rei que assistiu, impotente, a queda da Bastilha, símbolo vivo e sinistro do absolutismo – como reencarnação de Carlos V, avô do Duque Charles d’Orléans, que em 1377 mandara construir a Bastilha, usada, a princípio, como fortaleza e, posteriormente, como prisão política, onde crimes tenebrosos foram· cometidos ao longo dos séculos. Para ele, César, Lucile Desmoulins foi a reencarnação de Valentina Visconti, Duquesa de Milão e de Orléans que antes de morrer induziu seu filho Charles – o futuro Camille Desmoulins a – a exigir a punição dos assassinos de seu pai e ele próprio a vingar-se de João sem Medo. Este, por sua vez, César identifica com Maximilién Robespierre, como já vimos. (Aliás, até fisicamente eles se parecem.) César descreve João sem Medo como “homem terrível, hipócrita e a· quem Paris temia horrivelmente. O assassinato de Louis (d’Orléans) ficou impune, tamanho o medo, o terror que esse João sem Medo inspirou ao povo e ao próprio rei da França – Carlos VII”. Reunidas, assim, as personagens, só faltava desenrolar-se o drama, ou melhor, a tragédia que, afinal de contas, teve conseqüências positivas com a derrubada do chamado “direito divino dos reis”. É certo, contudo, que poderia ter tido as mesmas conseqüências com muito menos, atrocidades, ou talvez nenhuma. Voltaremos ao documento de César Burnier um pouco mais adiante. Retomemos, agora, o relato sobre nossa reunião do dia 1º de setembro de 1967. Como ficou dito, logo que iniciamos os trabalhos, Luciano já em transe identificou prontamente a presença de um de seus antigos companheiros da

seus colegas ourives, que concordaram em aliciar e financiar arruaceiros e amotinadores que prontamente comecaram a espalhar boatos tendenciosos pelas ruas, fazendo crer que Paulo e seus seguidores se preparavam para tomar de assalto o templo sagrado de Diana e profaná-Io com a destruição indiscriminada dos objetos do culto.

Como Paulo estava programado para falar no teatro local naquela noite, pequena multidão hostil começou a formar-se na praça principal ao entardecer, e a engrossar constantemente no correr das horas.

Não foi difícil manobrar a turba para uma verdadeira caçada a Paulo e aos seus. invadiram primeiramente o teatro, mas o Apóstolo ainda não estava ali. Prenderam apenas Gaio e Aristarco, dois macedônios cristãos que estavam providenciando para que tudo estivesse preparado a tempo e hora para a palestra. Em seguida a multidão saiu na direção da pequena oficina de Áquila e Prisca, onde Paulo tecia suas tendas, pois vivia igualmente do humilde artesanato. Também ali não estava Paulo, mas a turba exaltada desmantelou a modesta oficina dos trabalhadores cristãos, atirando na rua teares quebrados e peças de couro. O casal foi preso.

“A notícia espalhou-se com extrema rapidez”, narra Emmanuel. “A coluna revolucionária arrebanhava aderentes em todas as ruas, – dado seu caráter festivo. Debalde acorreram soldados para conter a multidão. Os maiores esforços tornavam-se inúteis. De vez em quando Demétrio assomava uma tribuna improvisada e dirigia-se ao povo, envenenando os ânimos.” (Os destaques são desta transcrição.)

 Aí está o homem! Se não é o precursor de Desmoulíns, ou o próprio, é muito parecido ...

[Malgrado o respeito que Luciano merece, o perfil de suas encarnações não é muito lisonjeiro. Demétrio era interesseiro, esperto e oportunista. Não estava preocupado com o culto a Diana, como dizia, sim com o risco de perder rendoso negócio, caso a mensagem pregada por Paulo prosperasse. Camille Desmoulins também não foi lá essas coisas em termos morais: ambicioso em excesso, aproveitou rara oportunidade que lhe surgiu e desposou rica herdeira − talvez, mais tarde tenha brotado sincero amor, contudo sua motivação inicial não foi sincera. Ainda que Hermínio mostre que existem controvérsias a respeito da real personalidade de Desmoulins, dá a entender que o moço não foi nenhum anjinho. E Luciano em dado momento diz: “não mudei nada, continuo o mesmo”. O que podemos deduzir desta declaração?

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Revolução ou, para ser mais exato, seu amigo Danton, na pessoa de César Burnier. Preferiu, não obstante, chamá-Io por um apelido íntimo – Marius –, que fora colocado por Lucile Desmoulins. Aliás, como tivemos oportunidade de observar, Luciano nos dissera, numa das nossas sessões de pesquisa, que Lucile adorava botar apelidos nos amigos. Os casais Desmoulins e Danton eram quase vizinhos – viviam ali em torno da cour de Commerce – e, além disso, amigos íntimos que se encontravam com freqüência, socialmente. O apelido invocado por Luciano, em transe, oferece dessa forma valioso fator de autenticidade, mesmo porque, ali naquela sala, somente César Burnier tinha condições de saber de quem se tratava. Foi como que a senha identificadora, a centelha que reacendeu a chama da velha e sólida amizade, a mola que destravou todo o mecanismo do reencontro. Logo que Luciano disse que Marius estava presente ali, César aproximou-se mais, visivelmente emocionado e atento. Era com ele mesmo... ainda que nós outros não soubéssemos bem, de início, o que estava se passando entre eles dois. A essa altura, não eram mais César Burnier e Luciano dos Anjos, e sim, Georges Danton e Camille Desmoulins que se reencontravam, cento e setenta e quatro anos depois que se viram pela última vez, sobre o tablado da guilhotina, ante a multidão agitada, na place de Ia Revolution, em 5 de abril de 1793 (16 germinal pelo calendário da Revolução.) E o que pede Luciano a César? Dirigindo-se a mim, diz ele: – Pede ao Danton que me dê um beijo ... Em verdade, Sanson, o carrasco, impediu que os amigos se despedissem com o clássico beijo francês. Danton, tremendo fazedor de frases, deixou cair mais uma: – Que importa, se nossas cabeças se beijarão, dentro de alguns instantes; no cesto? Era esse o beijo que Desmoulins reencarnado estava agora a reclamar de seu amigo Danton, também reencarnado. Era a expressão sentimental de um símbolo que reatava as pontas soltas de duas vidas. “César curvou-se respeitosamente”, escrevi eu em Reformador de agosto de 1972, “e depositou o beijo há tanto tempo devido sobre a testa do amigo reencontrado.” Era insuportável a emoção de todos os presentes, mas especialmente dos dois protagonistas que, no século XX, reatam uma amizade que floresceu tragicamente no século XVIII. Seguiram-se as perguntas formuladas por César e as respostas de Luciano, conforme já vimos do relato de Burnier há pouco transcrito. Naquela mesma noite Luciano, em transe, identificou mais um amigo de outras eras, desta vez na pessoa do nosso companheiro Abelardo

A resposta fica por conta de cada um] Se é, fazia ali um ensaio que lhe serviria, mil e setecentos anos depois, para açular a multidão inconsciente e botá-la a caminho da Bastilha. Na Paris daquele final de século XVIII, a tribuna improvisada eram as cadeiras do Café. Foi, no Palais-Royal. Em Efeso, no primeiro século, talvez fosse uma banqueta rústica ou um simples bloco de pedra, mas o animus revolucionário era idêntico. Por outro lado, era a mesma multidão amorfa, sempre plástica, quando açulada por hábeis manipuladores, que lhe dão conteúdo e sentido, segundo suas ambições. Vemos até um pormenor curioso – o traço artístico que persiste e transborda quase sempre de vida em vida, manifestando-se nas suas diferentes formas de expressão. Em Éfeso, era o ourives. Na França medieval, o guerreiro e poeta; na França revolucionária, o jornalista e poeta; no Brasil, jornalista e poeta com o talento adicional para o desenho. Atenção, contudo, para uma ressalva: isto não é história – é especulação, cujo teor pode até ser verdadeiro, mas que não deve aqui ultrapassar ns modestíssimas dimensões de sedutora e matizada fantasia. (Nota de Hermínio C. Miranda.) [Um ponto importante, relativo a esse relato sobre a artimanha de Demétrio: Hermínio atribui a narrativa à revelação mediúnica, provinda de Emmannuel. Porém o texto consta da Bíblia, de onde Chico Xavier, representando Emmannuel, o copiou e acrescentou alguns passos, por conta de sua imaginação. Tudo indica que nem Hermínio, nem Luciano sabiam disso. Para quem quiser conferir, reproduzimos abaixo o texto bíblico, de onde o alegado Emmannuel extraiu a história.

ATOS [19]1 E sucedeu que, enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo tendo atravessado as regiões mais altas, chegou a Éfeso e, achando ali alguns discípulos,2 perguntou-lhes: Recebestes vós o Espírito Santo quando crestes? Responderam-lhe eles: Não, nem sequer ouvimos que haja Espírito Santo.3 Tornou-lhes ele: Em que fostes batizados então? E eles disseram: No batismo de João.4 Mas Paulo respondeu: João administrou o batismo do arrependimento, dizendo ao povo que cresse naquele que após ele havia de vir, isto é, em Jesus.5 Quando ouviram isso, foram batizados em nome do Senhor Jesus.6 Havendo-lhes Paulo imposto as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo, e falavam em línguas e profetizavam.7 E eram ao todo uns doze homens.8 Paulo, entrando na sinagoga, falou ousadamente por espaço de três meses, discutindo e persuadindo acerca do reino de Deus.

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Idalgo Magalhães, em quem ele já identificara também Charles de Guise, cardeal da Loraine. Não era ao cardeal, porém, a quem ele se referia agora e, sim, a certo Charles Bossut, que, segundo ele, fora seu professor de matemática nos dias de estudante no Colégio Louis-le-Grand. Luciano dizia que Bossut fora sacerdote católico, profundo conhecedor de matemática e física e autor de alguns livros didáticos, sendo de notar-se um que estudava as leis físicas que governam o movimento dos fluidos. Disse mais, que em plena Revolução salvara a vida de seu antigo mestre fornecendo-lhe um salvo-conduto providencial, com o qual o velho padre conseguiu escapar à sanha trágica das matanças do Terror. Como sempre, isto não é posto aqui como fato cientificamente demonstrado ou sacudindo provas concretas nas mãos. Andei discutindo alhures em meus escritos (A Memória e o Tempo) o conceito de demonstração e prova, bem como o que constitui prova no contexto da fenomenologia psíquica. Não temos, pois, provas a exibir, mas algumas evidências são impressionantes. Foi bastante difícil, em primeiro lugar, descobrir referências históricas àquela obscura personagem – o Abade Bossut. A Enciclopédia Britânica, única obra de consulta de que dispúnhamos ali no momento, não trazia a mínima indicação. Lembro-me de Armando Assis e eu a procurarmos no índice todas as grafias possíveis: Bossut, Bossu, Bossy, Baussu... Nada! Só algum tempo depois conseguimos apurar, em livros franceses, que o homem realmente existiu. Um dia, porém, obtive dados mais amplos sobre ele. Teria sido por “acaso”? Não sei. Encontrava-me em Barra Mansa – tratava de dentes com um primo dentista que ali exercia, com inquestionável competência, sua nobre profissão – quando me vi com uma disponibilidade inesperada de tempo. Pois bem, funcionava ali no mesmo edifício onde meu primo dentista tinha seu consultório Uma sessão da valiosa biblioteca pública mantida em Barra Mansa pela prefeitura local. Entrei sem nenhuma idéia preconcebida e comecei a ver os livros, paixão antiga e incurável. Magnífico acervo de obras preciosas ali estava. Logo dei com velhíssimo livro francês, uma espécie de enciclopédia cujo título e características não anotei, mas que ainda deve estar em Barra Mansa. Lá estava um verbete mais ou menos extenso sobre o nosso caríssimo Abade CharIes Bossut. Confirmava-se ali a época em que vivera e as suas especializaçêes culturais. Foi, realmente, notável matemático e físico, ainda que obscuro, e escrevera os livros a que Luciano se referira. Sua grande paixão foi a matemática. Nos últimos tempos de sua pobre existência caiu em estado de apatia, do qual não conseguia livrar-se. Já não falava, nem se interessava por coisa alguma. Alguém se lembrou de provocar nele uma reação

9 Mas, como alguns deles se endurecessem e não obedecessem, falando mal do Caminho diante da multidão, apartou-se deles e separou os discípulos, discutindo diariamente na escola de Tirano.10 Durou isto por dois anos; de maneira que todos os que habitavam na Ásia, tanto judeus como gregos, ouviram a palavra do Senhor.11 E Deus pelas mãos de Paulo fazia milagres extraordinários,12 de sorte que lenços e aventais eram levados do seu corpo aos enfermos, e as doenças os deixavam e saíam deles os espíritos malignos.13 Ora, também alguns dos exorcistas judeus, ambulantes, tentavam invocar o nome de Jesus sobre os que tinham espíritos malignos, dizendo: Esconjuro-vos por Jesus a quem Paulo prega.14 E os que faziam isto eram sete filhos de Ceva, judeu, um dos principais sacerdotes.15 respondendo, porém, o espírito maligno, disse: A Jesus conheço, e sei quem é Paulo; mas vós, quem sois?16 Então o homem, no qual estava o espírito maligno, saltando sobre eles, apoderou-se de dois e prevaleceu contra eles, de modo que, nus e feridos, fugiram daquela casa.17 E isto tornou-se conhecido de todos os que moravam em Éfeso, tanto judeus como gregos; e veio temor sobre todos eles, e o nome do Senhor Jesus era engrandecido.18 E muitos dos que haviam crido vinham, confessando e revelando os seus feitos.19 Muitos também dos que tinham praticado artes mágicas ajuntaram os seus livros e os queimaram na presença de todos; e, calculando o valor deles, acharam que montava a cinqüenta mil moedas de prata.20 Assim a palavra do Senhor crescia poderosamente e prevalecia.21 Cumpridas estas coisas, Paulo propôs, em seu espírito, ir a Jerusalém, passando pela Macedônia e pela Acaia, porque dizia: Depois de haver estado ali, é-me necessário ver também Roma.22 E, enviando à Macedônia dois dos que o auxiliavam, Timóteo e Erasto, ficou ele por algum tempo na Ásia.23 Por esse tempo houve um não pequeno alvoroço acerca do Caminho.24 Porque certo ourives, por nome Demétrio, que fazia da prata miniaturas do templo de Diana, proporcionava não pequeno negócio aos artífices,25 os quais ele ajuntou, bem como os oficiais de obras semelhantes, e disse: Senhores, vós bem sabeis que desta indústria nos vem a prosperidade,26 e estais vendo e ouvindo que não é só em Éfeso, mas em quase toda a Ásia, este Paulo tem persuadido e desviado muita gente, dizendo não serem deuses os que são feitos por mãos humanas.27 E não somente há perigo de que esta nossa profissão caia em descrédito, mas também que o templo da grande deusa Diana seja estimado em

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qualquer que o reanimasse. Daí a pergunta, a única que poderia interessá-lo: – Professor, qual é o quadrado de 12? E ele, num sopro, quase sem alento: – Cento e quarenta e quatro ... Vejamos, agora, o estranho jogo de circunstâncias que cercam essas identificações. Partamos da hipótese inicial de trabalho de que são verdadeiras tais identificações. Numa existência no século XV o cardeal de Guise, poderoso ministro de Catarina de Médicis – que por sua vez seria uma existência anterior do espírito Robespierre –, socorre o Duque d’Orléans, então reencarnado na pessoa de um humílimo vendedor ambulante de vinagre, salvando-lhe a vida num tumulto de rua. Ao que tudo indica, esse tumulto foi o massacre da Noite de São Bartolomeu, a 24 de agosto de 1572. Posteriormente – cerca de dois séculos após –, revertido de uma existência de fausto e poder a outra de humílima condição social, o antigo cardeal é agora modesto sacerdote e competente professor de matemática e física. O tumulto agora é o da Revolução Francesa, pelo qual ele seria fatalmente tragado. Tinha, porém, um crédito cármico. Tivera um gesto de bondade, acolhendo um pobre vinagreiro em tempos outros. O vinagreiro é agora figura influente na Revolução e um de seus ex-alunos e lhe dá um ‘salvo-conduto providencial, com o qual retribui o generoso gesto de 1572. Mas a “novela” continua. Segundo soubemos de outras fontes, o antigo cardeal, que foi também o Abade Bossut, obscuro mas genial matemático, voltou à carne, desta vez em 1854, na figura não menos genial de Henri Poincaré. O campo de seu interesse? O mesmo de antes: matemática, física, astronomia, a filosofia da ciência... Nasceu, ou melhor, renasceu em Nancy, deixou mais de trinta livros e cerca de quinhentos papéis do mais alto valor científico. Sua paixão, porém, continuava sendo a matemática, à qual deixou uma contribuição internacionalmente reconhecida como do maior relevo. Tudo o que fez, foi bem feito. Até mesmo sua linguagem era simples, correta e bela. Tão bom era como cientista quanto foi como escritor. Foi um mestre da língua francesa, como diz a Britânica. Chegou, por isso, à Academia Francesa, onde foi ocupar a cadeira deixada vaga com a morte do poeta Sully Prudhomme. Morreu em 1912, cercado de imenso respeito e admiração. Em Paris, residiu à rue de Guise, a alguns metros dos portões senhoriais da família que em outros tempos fora sua. Seu primo, o não menos ilustre Raymond Poincaré, advogado, escritor e político eminente, chegou a ser presidente da França. Seria ele – outra especulação que podemos considerar gratuita, mas possível –, seria ele a reencarnação do famoso Duque de Guise, irmão do antigo

nada, vindo mesmo a ser destituída da sua majestade aquela a quem toda a Ásia e o mundo adoram.28 Ao ouvirem isso, encheram-se de ira, e clamavam, dizendo: Grande é a Diana dos efésios!29 A cidade encheu-se de confusão, e todos à uma correram ao teatro, arrebatando a Gaio e a Aristarco, macedônios, companheiros de Paulo na viagem.30 Querendo Paulo apresentar-se ao povo, os discípulos não lho permitiram.31 Também alguns dos asiarcas, sendo amigos dele, mandaram rogar-lhe que não se arriscasse a ir ao teatro.32 Uns, pois, gritavam de um modo, outros de outro; porque a assembléia estava em confusão, e a maior parte deles nem sabia por que causa se tinham ajuntado.33 Então tiraram dentre a turba a Alexandre, a quem os judeus impeliram para a frente; e Alexandre, acenando com a mão, queria apresentar uma defesa ao povo.34 Mas quando perceberam que ele era judeu, todos a uma voz gritaram por quase duas horas: Grande é a Diana dos efésios!35 Havendo o escrivão conseguido apaziguar a turba, disse: Varões efésios, que homem há que não saiba que a cidade dos efésios é a guardadora do templo da grande deusa Diana, e da imagem que caiu de Júpiter?36 Ora, visto que estas coisas não podem ser contestadas, convém que vos aquieteis e nada façais precipitadamente.37 Porque estes homens que aqui trouxestes, nem são sacrílegos nem blasfemadores da nossa deusa.38 Todavia, se Demétrio e os artífices que estão com ele têm alguma queixa contra alguém, os tribunais estão abertos e há procônsules: que se acusem uns aos outros.39 E se demandais alguma outra coisa, averiguar-se-á em legítima assembléia.40 Pois até corremos perigo de sermos acusados de sedição pelos acontecimentos de hoje, não havendo motivo algum com que possamos justificar este ajuntamento.41 E, tendo dito isto, despediu a assembléia. E Jean-Paul Marat? Eis outra história não menos fascinante de quantas tenho relacionado até aqui. Neste caso, cresce o fascínio, pois envolve um dos mais discutidos jornalistas da França revolucionária, cuja reencarnação no Brasil atraiu, igualmente, a atenção do povo, das autoridades, dos círculos políticos e culturais de todo o país. Por isso mesmo vejo-me no dever de me alongar um pouco mais no exame da sua personalidade e da sua presença nas nossas reuniões, em que pese as referências já feitas pelo Hermínio, na Primeira parte deste livro. Vamos, pois, conhecer o retorno de Jean-Paul Marat, o famosíssimo político e jornalista que, incediou a França, às vésperas do 14 de Julho, durante o período agonizante da monarquia e mesmo após sua

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cardeal e que agora vinha como seu primo irmão? Fica aberta a questão. Talvez algum dia possamos apurar isso ... E então, em vez de escrever um Who’s Who (Quem é Quem), escreveríamos um Who was Who (Quem foi Quem). E já que estamos aqui fazendo algumas conexões, voltemos ao relato de César Burnier, de onde faço mais uma transcrição, de vez que ele me autorizou a utilizar com liberdade todo o material que generosamente colocou à minha disposição. “Não há palpite nessas afirmações”, escreve ele, na já citada carta de 30 de março de 1973 a mim. “Elas se esteiam em pesquisas sérias, estribadas em lastro de caráter científico. Possuo, também, várias mensagens mediúnicas recebidas por Chico Xavier, focando parte do apaixonante assunto. Quanto à figura de Louise Gely – falecida em 1856, com 80 anos –, sou feliz em declarar que é ela um dos meus principais mentores no campo da minha mediunidade de colorido histórico. Louise reencarnou no Brasil em 19.8.1932 e desencarnou em 31.3.1938, em Belo Horizonte. Foi um menino lindo e inteligentíssimo.21 Chico Xavier, ao tempo da ‘Grande Revolução’, era uma moçoila um tanto caiplra da cidade de Arras. Chamava-se Jeanne d’Arencourt. Jeanne era pro tegida de Andréa de Taverney, Condessa de Charny, que a intro duziu na corte de Maria Antonieta.[Quem milita no meio espírita talvez possa esclarecer a estarrecedora dúvida, que brota da declaração de Burnier: será que a revelação sobre esta reencarnação do médium de Uberaba teve a repercussão devida? Existem especulações mil sobre as vidas passadas de Chico Xavier. Numeroso segmento no espiritismo advoga ter sido ele o própro Kardec reencarnado! César Burnier não entra nesta polêmica, prefere desencavar uma vida modesta, ao tempo da Revolução, na qual Chico Xavier assumira a identidade de uma mulher! Ao que tudo indica, nem o próprio Chico jamais comentou a respeito dessa suposta vivência, provavelmente, o gentil médium concluiu que Burnier estaria por demais eufórico e preferiu esquecer o assunto !]Sua permanência na corte foi muito curta. É que Jeanne, sem jeito e extremamente acanhada, quebrou logo o protocolo real pisando nos pés da rainha. Foi a sua felicidade. Esse acidente, afastando·a da alta nobreza, evitou-lhe a morte na guilhotina, mas não evitou que a lâmina desta cortasse a cabeça do seu pai, pequeno nobre da terra de Robespierre. 21 O menino foi filho do próprio César Burnier, que ficou desesperado ao vê-lo morrer com 6 anos incompletos.Jeanne era amiga de Danton. Apelou para o ardoroso tribuno pedindo sua ajuda junto ao ‘Incorruptível’. Danton levou-a à presença do

queda, até que fosse apunhalado, dentro duma banheira, pela coragem e o sangue-frio de Charlotte Corday. Localizado Desmoulins, era natural que, en passant, esbarrássemos também na figura de Marat, pois ambos eram amigos (depois romperam), viveram quase os mesmos ideais e conviveram no mesmo momento histórico, embora Desmoulins fosse bem mais moço. Aliás, daquela plêiade de revolucionários, Marat era o mais velho de todos.

Houve época em que marquei encontro com ele, no Rio, e não pude comparecer. Era meu intento identificá-lo publicamente somente depois de ouvi-lo a respeito. Por isso, quando, pela primeira vez, abordei na imprensa o assunto, fiz a omissão do nome dele. Mais tarde, porém, mantivemos contato e, em princípio, ele, não demonstrou nenhum receio de ser identificado, ainda que não me confirmasse nem desmentisse a hipótese de ter sido, em vida anterior, o jornalista francês. Achou-a, porém, interessantíssima e se entusiasmou pelo assunto. Seja como for, a ninguém seria difícil reconhecer o mesmo espírito em duas personalidades. Basta ler a vida de Marat, que guardou, praticamente, todas as suas características, embora não tenha deixado de progredir espiritualmente, dentro das inexoráveis leis evolutivas. É certo, também, que voltara com inteligência, talvez ainda mais brilhante, e um peso cultural digno, nesse particular, tanto do seu passado quanto do seu mais recente presente. [Luciano não percebe que a “fórmula” por ele adotada para reconhecer encarnações é completamente subjetiva. Com um pouco de paciência e engenho criativo é possível encontrar similaridades entre duas pessoas, sejam elas quem forem. Depois, basta destacar esses pontos em comum e esquecer as diferenças e, pronto!, temos os perfis reencarnacionistas estabelecidos. Se se pretende levar a teoria reencarnacionista a sério, esses exercícios de inventividade deveriam ser descartados]Conheci-o de perto. Foi figura invulgar, embora suscitasse sempre controvertidas opiniões em todos os meios. Trata-se do político e jornalista Carlos Lacerda. Algum tempo antes da sua desencarnação, ele vinha demonstrando público interesse pelos assuntos paranormais, bastando lembrar, por exemplo, a pequena nota saída na edição de 23.3.72, pág. 10, do Jornal do Brasil, sob o título “Parapsicología” – Seção Informe JB: Preso ao leito, com uma basite que trouxe de Atenas, o Sr. Carlos Lacerda nada mais tem podido fazer a não ser intensificar seus estudos sobre parapsicologia. Numa dessas noites, em sua casa, presentes os Srs. José Gueiros, Nertan Macedo e Roniquito Chevalier, falando sobre a Grécia, fez amplas considerações sobre o movimento de liberdade das esculturas gregas. Ficou impressionado quando, no dia seguinte, encontrou num livro de André Malraux

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‘todo-poderoso detentor das pulcritudes cívicas’. Durante o trajeto, Danton recomendou-lhe: ‘Atire-se aos pés do homem; diga-lhe que seu pai é pessoa moderada, nascida em sua terra Arras; chame-o de Citoyen, mostre-se humilde e confiante no seu poder e na sua magnanimidade.’ Jeanne cumpriu religiosamente os conselhos do amigo, enquanto Danton se dirigia ao Pontífice das Virtudes Cívicas, implorando sua piedade para com a infeliz moça. Robespierre ouviu-o das culminâncias do seu orgulho. Depois, num gesto todo seu, atirou a cabeça para trás, trincou os maxilares e exclamou: – Minha filha, Robespierre comoveu-se com a sua rogativa, mas é o Comitê de Salvação Pública que está encarregado dos assuntos da pátria. Todo traidor terá de morrer! No dia seguinte o pai de Jeanne perdeu a cabeça na guilhotina, e a moça, banhada em lágrimas, fugiu para a Espanha, onde faleceu, algum tempo depois, vítima da tuberculose (Barcelona), na igreja de Sant’Ana. Emmanuel, o magnífico guia do Chico, fugiu de Paris, do Terror de Robespierre. Chamava-se Jean Jacques Tourville ou Turville. Era professor da nobreza e se refugiou igualmente na Espanha. [Aqui encontramos outra reencarnação, gerada da inventividade de Burnier, que não conheceu qualquer divulgação! Há suposições de que Emmannuel fora Manoel de Nóbrega, padre jesuíta. Parece que esta foi confirmada pelo próprio Chico. Entretanto, da “revelação” de Burnier não se conhece qualquer comentário (não ao nível em que informação dessa importância para as lides espíritas mereceria). Qual terá sido o motivo do silêncio em torno de notícia que esperar-se-ia fosse exaustivamente divulgada? Será que a comunidade espírita não levou a sério a pretensa capacidade de César Burnier em revelar identidades pregressas?]A citação desses episódios – meu caro amigo Hermínio força-me a ir além do que havia premeditado dizer-lhe quando iniciei esta carta. Não é aconselhável que eu fique nos prelúdios do passado e interrompa a seqüência dos acontecimentos, por demais significativos para nós, em virtude das suas lições de aspecto evangélico e cármico. Vou aos fatos. Robespierre reencarnou no Brasil na figura de uma médica (Minas Gerais). Seu novo sexo – ao que julgo – deveria dar-lhe novas perpectivas da vida, principalmente na faixa da sentimentalidade reparadora. Veio ligada a Saint-Just, seu marido e médico também. Tiveram várias filhas e viveram pobremente. Toda a velha entourage do ‘Incorruptível’ surgiu de novo em torno dos dois. Entretanto a idéia da morte e as velhas correntes do extermínio demonstradas fartamente no ‘Grande Terror’ (1794) acompanharam o casal em lide. Materialistas, inclinados a princípios

(Psicologia da Arte) um trecho que ele e seus convidados desconheciam e no qual o autor escreveu: “Em face da escravidão petrificada das figuras da Asia, o movimento das estátuas gregas, o primeiro que os homens conheceram, é o próprio símbolo da liberdade.” O Sr. Carlos Lacerda ficou vivamente impressionado, porque havia tratado longamente do tema, na noite anterior, e depois abre esse livro e encontra Malraux tratando do mesmo problema. Relacionava-me bem com ele, certamente por extensão natural do relacionamento que tivéramos, à época da Revolução Francesa. Em dezembro, sempre me enviava cumprimentos natalinos. Por volta de agosto de 1972, Carlos Lacerda voltou a exprimir, na Manchete, seu interesse pelos fenômenos supranormais. E no dia 12 de outubro daquele ano ele regressava da Europa e me mandava um cartão, onde dizia, dentre outras coisas: “Caro Luciano: trouxe o último livro do Arthur Koestler, na tradução francesa, intitulado Les Racines du Hasard, no original The Roots of Coincidence, um estudo fascinante sobre as relações de tudo isso com a física e os últimos avanços científicos. Tão logo me desvencilhe das urgentes tarefas que aqui os dias de ausência me absorvem, gostaria de vê-lo e ouvi-lo. Um abraço do Carlos Lacerda.” Vale repisar que no Brasil apenas refizemos um velho companheirismo, voltando, ambos, tanto eu quanto ele, às mesmas lides jornalísticas, embora, é claro, haja me faltado sempre, pelo menos nesta encarnação, o talento iluminado que fez de Carlos Lacerda um dos homens mais brilhantes e mais conhecidos do Brasil e do mundo. De qualquer forma, nas minhas limitações não me faltaram, também, algumas proezas, tais as que o leitor conheceu no Capítulo 2 da Segunda Parte deste livro. Não fosse a Doutrina Espírita – costumo repetir –, também teria eu me envolvido de corpo e alma, mais uma vez, na política, tal como ocorreu a Marat nesta última encarnação

Logo depois que Carlos Lacerda recebeu, ao lado do Major Rubem Vaz, o célebre tiro no pé, que originou a dramática crise de 1954, recolheu-se ao seu apartamento com alguns amigos, muitos políticos e jornalistas, encontrando-me então entre eles. Já contei que no apogeu da TV Rio, Canal 13, em plena efervescência política do governo de Juscelino Kubitscheck, dirigi naquela televisão um programa ao vivo, conseguindo fazer a proeza de colocar à mesma mesa de debates personalidades eminentemente adversárias, inclusive CarIos Lacerda.

O bom relacionamento da França, portanto, esteve sempre vivo, em que pese, é claro, naturais divergências ideológicas, tanto (naquela quanto nesta encarnação...

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negativistas, pressionados por aflições íntimas, encontraram logo um caminho salvador: o suicídio. Houve um pacto entre eles, cumprido por ele só, o médico. O desespero levou a companheira às raias da loucura. Devia matar-se também e injetar cianureto de potássio nas veias das suas filhas. Todavia afogou-se em lágrimas e esperou ...

Seu destino ainda não estava cumprido de todo: faltava-lhe o segundo ato – o conhecimento do Espiritismo e o perdão do Chico e de outras vítimas suas.

Pressionada pelo sofrimento, a médica lembrou-se de consultar outro médico de Minas, ex-professor da Universidade de Minas e inteligência brilhantíssima, quanto aos seus pontos de vista em face do intercâmbio entre os vivos e os mortos. O professor fora materialista intransigente. Entretanto ...

Entretanto teve que se inclinar diante da evidência dos fatos. É que em sua carteira guardava um soneto de Hermes Fontes, dirigido à sua viúva, quando esta senhora, acompanhada pelo médico em apreço e por outras pessoas, assistira, em Pedro Leopoldo, em virtude de inesperado acontecimento, a uma reunião espírita em que Hermes Fontes produzira esplêndida mensagem (lindo soneto), do qual somente eu possuo cópia. Nesse soneto Hermes faz alusões claras às razões que o levaram ao suicídio, perdoa aos que motivaram esse gesto tresloucado e cita, taxativamente, o nome da sua ex-companheira, sentada ali, ao lado do médico, e usando nome trocado ...

O soneto era cem por cento do magnífico poeta brasileiro, absolutamente seu. A surpresa do médico catedrático foi sem limites. Foi ele mesmo que leu, em voz alta, o soneto, acrescentando-lhe o seguinte comentário: ‘Estou atônito. Sem o mínimo esforço recebi, de um instante para outro, a mais irrecusável prova da sobrevivência do homem. É incrível o que está acontecendo conosco neste momento. Chico não me conhecia pessoalmente, nem a mim nem à senhora que Hermes Fontes mencionou neste soneto.’ A viúva do poeta soluçava de emoção.

Foi essa peça literária que levou a médica (ex-Robespierre), a que eu vinha me referindo, à presença de Chico Xavier.

Por cinco vezes ela perambulou entre Belo Horizonte e Pedro Leopoldo, sem poder aproximar-se do nosso querido Chico. Sérios embaraços afastaram-na do médium. O destino ou as leis cármicas exigiam-lhe o recurso que lhe

Marat foi um dos homens mais discutidos da França revolucionária. Jornalista de acutilada visão, não raro acusavam-no de escandalizar pelas suas tão disputadas quanto arrepiantes colunas. Caracterizava-se, principalmente, pela denúncia de negociatas e conchavos políticos. Porém, às vezes, se equivocava. Prometia, então, apresentar provas documentais de seus doestos, mas acabava não o fazendo, por absoluta falta delas ou por total desprezo a seus acusados e acusadores. Notável demagogo, Marat era, igualmente, talentoso como escritor e vibrante como orador. Quando encurralado, teatralizava seus posicionamentos, do alto das tribunas, e seu verbo retumbante defluía à conta de impressionante magnetismo pessoal, que envolvia e esmagava, empolgava e dominava. Numa ocasião, quiseram cassar-lhe o mandato, e tudo já estava combinado para isso. Mas quando Marat começou a discursar para defender-se, foi tal sua retórica que pouco a pouco o clima se modificou, e na votação final ele saiu vencedor. Isso mesmo veio a acontecer com Carlos Lacerda, quando ele era deputado federal. De outra feita, Marat deixou perplexa a nação quando, vendo perigar determinada tese, sacou um punhal e ameaçou suicidar-se ali mesmo, em plena Assembléia, diante dos seus pares e do público! Apesar dessas atitudes extremadas e radicais, era pessoalmente instável e inconstante. Diziam dele que não tinha amigos, porque a todos traía se sua causa estivesse em risco. A análise, é claro, é subjetiva, não faltando, portanto, os que, ao contrário, vissem nesses comportamentos a imagem da verdadeira fidelidade a ideais mais altos que os das amizades pessoais.

Indiscutível, porém, era sua fácil mudança de lado, ora surgindo como líder popular das esquerdas, ora liderando as hostes elitistas da direita. Foi alvo de atentados. Era temido. Fez da conspiração um hobby. Seu jornal, L’Ami du Peuple (O Amigo do Povo), nasceu da venda de bônus e fazia campanhas de subscrição pública para subsistir. Nesse particular Carlos Lacerda nada mais fez do que reeditar seu método, já que a Tribuna da Imprensa nasceu, também, da venda de bônus ao público e empreendeu, nos mesmos termos, algumas campanhas financeiras junto aos leitores, a fim de se manter. L’Ami du Peuple era um dos veículos mais populares, subversivos e escandalosos da época. Quando, devido às suas campanhas, a situação se convulsionava, Marat se retirava da França e ficava esperando que a crise passasse. “Tantas ele fez que acabou sendo assassinado! Charlotte Corday, a pretexto de fornecer-lhe uma lista de conspiradores para publicar, conseguiu entrar em seus aposentos e apunhalou-o enquanto ele se banhava. Terminava, naquele instante, a carreira de um dos mais excêntricos políticos e jornalistas franceses. De lá, veio ele reencarnar-se no Brasil, onde novamente

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estava previamente traçado: minha interferência no seu problema sentimental.

Tivemos uma entrevista a sós. Falei-lhe sobre a sua tragédia, a beleza dos princípios de Kardec, a gloriosa mediunidade de Chico e aconselhei-a a que voltasse à casa do Chico imediatamente, pois tinha certeza de que seria atendida nessa sexta vez.

Assim sucedeu. Munida de uma apresentação do Professor Mello Teixeira – o médico que Hermes Fontes traumatizou –, apresentação, aliás, em que seu nome era omitido, a pedido da própria interessada, rumou para Pedro Leopoldo a desolada senhora.

Recebeu-a, sob angustiosa sensação, o pai do médium, o mesmo indivíduo cujo destino, em 1794, estava dependendo do Comitê de Salvação Pública e para o qual Robespierre nada poderia fazer, porquanto ‘todos os traidores teriam de morrer’.

Apresentada ao Chico, a senhora negou-se a declinar seu nome. O médium, perturbado com essa desconfiança, consultou Emmanuel quanto ao que deveria fazer. A resposta veio imediatamente: ‘Trata-se da Doutora Fulana de Tal, e de seu marido, Doutor Sicrano, desencarnado por suicídio. Vou buscá-lo na lama do seu sepulcro. Esperem um instante. Voltarei logo.’

Essas declarações de Emmanuel deixaram a viúva inteiramente arrasada. Segundos depois Chico Xavier advertia: ‘Emmanuel se aproxima ‘com um espírito cambaleante, que se contorce de dores no estômago e no esôfago. Ele exclama, aflitivamente, o nome das duas pessoas: P... e N ... ‘ Na verdade, P ... e N... (cunhado e filha do suicida) foram as pessoas que o socorreram no instante em que o médico entrara em agonia. Não pretendo ir além na narração de tudo quanto aconteceu depois, mas devo dizer-lhe – distinto amigo Hermínio Miranda – que, poucas semanas após, Chico Xavier reproduziu para mim o que ouvira do seu guia Emmanuel com referência à desolada senhora, a quem todos nós socorremos na medida das nossas forças.

Disse-lhe ele: ‘Ela teria de receber primeiro o perdão de vocês todos: o seu, o do seu pai e o do César. Daí as dificuldades que encontrou para chegar até você.

Lei de causa e efeito, pois não? Cumprimos a nossa tarefa. Que a beneficiada saiba cumprir a sua ... “

encontrou o caminho da política e do jornalismo. Então, repassou quase todas as suas lutas, aspirações e técnicas, contribuindo, não obstante, para o enriquecimento da nossa história, em que pese todas as restrições feitas por seus adversários. Acertando ou se equivocando. não se lhe pode negar o lugar que. conquistou nos fastos da nossa cultura. Pena que tenha despertado um pouco tarde para as realidades maiores do espírito, quando começou a se interessar de perto pela fenomenologia supranormal. Há muitos outros pontos de relação entre Marat e Lacerda, inclusive a alcunha que aquele recebera de “Ave de Rapina”, enquanto este era chamado de “Corvo”, depreciativos que, entretanto, nunca os abalaram. Tal é a semelhança de comportamento que o jornalista David Nasser fez, em artigo publicado em O Cruzeiro, paralelo que, sem saber, mais não era do que a expressão da melhor verdade reencarnatória: “Marat-Lacerda”. Os fatos sobre Marat estão na história. A revelação da sua encarnação no Brasil foi feita pelo companheiro Camille Desmoulins. Ambos Vieram daquela agitada, turbulenta e ImprevisíveI época de Luís XVI, do Diretório, da Comuna e do Comite de Salvação Pública para se reencontrarem, afinal, na Terra do cruzeiro do Sul. E se alguma dúvida ainda restasse a mim ou ao Hermínio, tê-la-íamos desfeito completamente no instante em que apanhamos a Enciclopédia Britânica e deparamos com o retrato de Marat. Incrível! Nem fisionomicamente mudara. Era o mesmo ...

Agora, algumas palavras sobre Luiz Antônio Guillon Ribeiro, sobre meu pai e sobre minha irmã.

Luiz Antônio Guillon Ribeiro é filho de um dos miis notáveis espíritas que o Brasil já conheceu: Luiz Olimpio Guillon Ribeiro autor e tradutor de numerosas obras de peso, entre as quais as de Allan Kardec e de Jean-Baptiste Roustaing, dois bauartes da Doutrina Espírita. Presidiu (o pai) a Federação Espírita Brasieira formando, ao lado de Augusto Elias da Silva, que a fundou, e de Adolfo Bezerra de Menezes, que foi o grande apóstolo daquela entidade, um trio evangélico de papel marcante na longa história do espiritismo. Tenho-o na conta de meu amigo espiritual. Ajuda-me constantemente. Socorre-me. Inspira-me. Supre minhas deficiências, notadamente as espirituais. Devo-lhe muitíssimo, e não poucos médiuns o vêem ao meu lado quando escrevo ou quando falo. Não seria de estranhar, talvez, a amizade que, desde longos anos, nasceu também entre mim e seu filho Luiz Antônio Guillon Ribeiro. Clinicou, muitas vezes, minha mãe, meu pai, minha tia. É meu médico, em quem confio cegamente. Na hora da dor de barriga, é para ele que apelo. Isso, desde todos os tempos, inclusive quando ele ainda cooperava com a FEB, dando consultas gratuitas, em sua sede, na avenida Passos .. É meu amigo incondicional. Orgulho-me dessa amizade. E

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Interrompo mais uma vez a narrativa do Dr. César Burnier para lembrar aquilo a que costumo chamar de simetrias históricas. Na França revolucionária César Burnier, na figura de Jacques Danton, leva uma pobre moça aflita a Robespierre,seu parceiro no poder, para tentar salvar a vida do pai, colhido nas malhas impiedosas do Terror. Robespierre nega a vida implorada pela moça, sua conterrânea, aliás. Volvidos os anos – século e meio –, a situação é inversa, mas o papel de César é ainda o de mediador. Desta vez cabe-lhe levar Robespierre reencarnado como uma desesperada mulher que anseia por entender melhor os complexos mecanismos da vida. São muitas e imprevistas as dificuldades para chegar até Chico, não porque este se recusasse a recebê-Ia, mas por circunstâncias estranhas à sua vontade e até sem seu conhecimento. A coisa somente se decide com a interferência pessoal de Danton, já agora na personalidade de César Burnier. A médica volta pela sexta vez a Pedro Leopoldo, e quem vem recebê-Ia senão aquele mesmo pai cuja vida ela recusou à filha desesperada? Por fim, o Chico e a brutal e chocante evidência produzida por Emmanuel – outra vítima da Revolução – que transmite a Chico, e este à doutora, informes incontestáveis, como nomes próprios e situações que Chico ignorava totalmente. Mas, o episódio tem uma seqüência não menos interessante. Para isso, voltemos à narrativa de César Burnier.

“Perdeu-se, com a morte do Professor Mello Teixeira, o soneto original de Hermes Fontes. Chico Xavier anseia possuí-Io. Fiquei triste com a irreparável perda. Como foi possível isso? Mas o destino, o ‘acaso’, tem seus caprichos. Calcule você – Hermínio: vinte e cinco anos passados fui a uma festa em Copacabana. Nessa festa, havia muitos espíritas, inclusive uma senhora cujo nome ignoro totalmente até hoje. Durante as conversas falei, por qualquer motivo, no nome de Hermes Fontes. A senhora a que aludo declarou-me, em voz alta, que sabia de cor um lindo soneto póstumo do apreciado poeta e que o guardara na memória, com absoluta fidelidade, posto tê-Ia lido uma só vez!”

Com a curiosidade prontamente ativada, César quis saber que soneto era esse, e como ela tomara conhecimento dele. A senhora informou que o vira com o Dr. Mello Teixeira.

“Não perdi tempo”, prossegue César. “Chamei-a para a copa da casa onde estávamos e gravei o soneto perdido, que será remetido, agora, ao Chico’ Xavier, conforme lhe prometi. Sim, meu amigo, eu tinha nas mãos um gravador, levado à festa sem necessidade alguma!”

tanto que o convidei a avalizar meu contrato de casamento. É dele a assinatura que consta, para minha alegria, em nossa certidão.

Pois bem, durante nossas reuniões, ei-lo que surge na personalidade do Abade Bérardier, culto professor, diretor do Colégio Louis-le-Grand, o mais afamado da época revolucionária. Foi mestre e amigo pessoal tanto de Desmoulins quanto de Lucile Duplessis. E foi, precisamente, quem lhes celebrou o casamento, ocorrendo, então, um episódio curiosíssimo, que a história narra e que, de certa forma, acabou se repetindo nos tempos atuais.

Bérardier disse que só celebraria o casamento se o jornalista abjurasse as idéias revolucionárias que vinha difundindo pela imprensa. Desmoulins se negou a fazê-lo. Bérardier, que não estava interessado em brigar com o ex-discípulo e estimado amigo, buscou uma solução de fantasia: faria a celebração se Lucile, que era católica, abjurasse pelo noivo. “ Ora, um verdadeiro absurdo, pois a abjuração de qualquer idéia só pode ter vaIor se feita pela própria pessoa. Mas, no caso, o que o bom Bérardler queria era uma saída. Desmoulins respondeu que a noiva o faria, com toda a certeza, e isso, de fato, aconteceu. E o casamento se realizou. Pois bem, embora sem a presença de Bérardier (Luiz Guillon), esta cena voltou a acontecer, em minha vida atual. Minha mulher (Nely) era católica (hoje é espírita como eu). Fez questão do casamento na Igreja. Eu lhe disse que para mim não teria nenhum valor. Mas, é claro, tendo-o para ela, não seria justo frustrá-Ia. Concordei e marcamos a data. Na semana anterior, fui chamado à Matriz para instrução do processo. Em meio a um montão de tolices, o padre queria que “abjurasse ao protestantismo, à Associação Cristã dos Moços, ao marxismo e ao espiritismo”. Aí não deu. Os outros três não me importavam em nada, mas abjurar ao espiritismo não era possível. Disse-lhe, então, que eu era espírita e não podia atender àquele item. Ele levou um susto. Olhou-me estarrecido. Insistiu. Eu também. Afirmou, então, que não podia fazer meu casamento. Apenas levantei e me preparava para sair quando ele indagou: ‘‘E sua noiva? Abjura pelo senhor?” Respondi-lhe no mais gozador sorriso íntimo: “Ah, com toda a certeza, seu padre ... “ Então, paguei os emolumentos (que ele pegou bem depressa) e o casamento foi marcado.

Agora, voltemos a Guillon Ribeiro. Quando ele soube que era o Abade Bérardier, contou-me este caso muito curioso. Certa ocasião, foi atender a uma doente muito idosa, que o recebeu dizendo: “Chegou o abade...” Além disso, Guillon Ribeiro também deu aula de medicina, na Universidade do Brasil, e – confessa – sempre se sentia muito à vontade nesse mister. Estando em Paris pela primeira vez, surpreendeu-se, ele próprio, com o fato de conhecer

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“Muitos confrades me perguntam”, prossegue o relato de César, “por que o Brasil e o estado de Minas, em particular, foram escolhidos para a divulgação do Espiritismo, consoante afirmamos em nossos livros e artigos. Não faz muito tempo – aduz um desses informantes –, Chico Xavier declarou, publicamente, que nesses últimos oitenta anos milhares de antigos franceses reencarnaram entre nós, motivo por que há no Brasil pessoas que conhecem mais a história da Revolução Francesa do que a própria história do nosso país. A resposta tem sido fartamente divulgada pela imprensa espiritista e pelo médium Xavier, entre outros.

Não me envergonho se lhe disser que muitas vacllaçoes experimentei quando li a obra Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, psicografada pelo médium Xavier. Achei esse livro demasiadamente verde-e-amarelo. Com o tempo e o desenvolvimento do meu mediunismo comecei a compreender que o livro em tela foi até muito modesto em suas declarações. Não há dúvida: muitas surpresas sensacionais nos esperam nos próximos anos.”

[Lamentamos que César Burnier não detalhe os motivos que o levaram a mudar de opinião. A primeira idéia tem mais coerência: de fato o livro é “demasiadamente verde-e-amarelo”, para dizer o mínimo. Só nos resta esperar pelas surpresas sensacionais prometidas! Até o presente, passados mais de trinta anos, as surpresas não chegaram...]

Mais adiante, já na etapa conclusiva de seu valioso trabalho, escreve César:

“Rogo sua atenção para as transcrições feitas: todas elas foram colhidas em publicações conhecidas, fáceis de serem confrontadas e ao alcance de qualquer bolsa. ( ... )

Todavia, prevendo que algum embaraço pudesse surgir, tive a cautela de indicar as obras é os autores que me forneceram a seiva que nutre estes comentários elucidativos, apontando páginas e livros. Nem todos os historiadores são acordes nas suas apreciações dos homens e dos fatos. (...)

Só admiti aquilo que a lógica me impôs e os meus guias sancionaram. Evitei, tanto quanto possível, insinuar pontos de vista meus com relação aos indivíduos que me fizeram sofrer no passado e cuja índole pude devassar muito melhor agora, dentro de uma perspectiva extremamente ampla e multissecular...

Muitos dos meus ‘heróis’ se encontram

os locais sem nunca os ter visto antes. Era capaz de adivinhar o que ia encontrar depois de uma esquina. Acertava.

Sem dúvida, só a lei da reencarnação é suficiente para explicar, a contento, todas essas circunstâncias. Passemos, agora, a outra personagem: meu pai, Antônio dos Anjos. Escusado dizer que, ao lado de meu filho, é ele meu maior, verdadeiro e melhor amigo. Já contei que foi sua fé que me despertou para a Doutrina Espírita na vida atual. Fora disso, há a registrar que sempre nos entendemos em termos incrivelmente amistosos e capazes, talvez, de provocar algumas ciumadas familiares... Pois isso – compreendemos agora – teve sempre sua razão de ser, conforme o leitor já verificou ao encontrar, na Primeira Parte deste livro, o nome do Dr. Richard Ansiette.

Ora, todos de minha família e de nossa roda de amigos e conhecidos sabem das profundas inclinações de meu pai pela medicina. Suas .preocupações com a saúde da família chegavam a ensejar piadas e muitas brincadeiras. E não faltaram os de fora que, às vezes, iam-no procurar para “consultas” (que ele dava com a maior sem-cerimônia) e cuja medicação...– sempre, é claro, de composição – produzia resultados eficazes ... Sorte? Espiritismo? Intuição?

Por outro lado, minha mãe, que tinha seus breves momentos de captação mediúnica, costumava garantir que na encarnação passada meu pai tinha sido, realmente, médico. E, até – aqui o lado triste da história –, que ele tinha sido responsável pela morte de uma mulher, fato que lhe marcara duramente a caminhada terrena. Este episódio deve ser confrontado com a informação constante do Capítulo 4, Segunda Parte, onde analiso a realização da quarta sessão com o Hermínio e durante a qual aparece, pela primeira vez, o nome do Dr. Richard.

Enfim, meu pai era, à época da Revolução Francesa, o Dr. Richard Ansiette, médico presumível de revolucionários (principalmente quando feridos em choques de rua) e, com certeza, de Camille Desmoulins. Desse contato nasceu, sem dúvida, nosso fraterno relacionamento, hoje transformado, além do mais, em proveitosa ligação paternal. Arrematando: em raríssimos casos e ensejos pensamos diferente. Nossas idéias sempre foram incrivelmente as mesmas. Meu pai trabalhou em teatro, quando solteiro e nos primeiros anos de casado. Redigiu vários esquetes e usava o nome de Anjos Sobrinho. Pertenceu, inclusive, à famosa Companhia Leopoldo Froes (que era padrinho de meu primo-irmão Leopoldo Ferreira, filho do casal Plácido e Cordélia Ferreira, ambos também de teatro e, depois, do rádio). Pois bem, foi meu pai o intérprete, em mais de uma oportunidade, do papel

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reencarnados – a maioria no Brasil. Ocultei-lhes por elegância moral e para não açular estúpida e ignorante vaidade. A mim – direi melhor, ao nosso esboço reencarnacionista – pouco importam os indivíduos em si mesmos, salvo como elementos comprobatórios da multiplicidade das existências terrenas. Minha opinião é esta: as reencarnações interessam pelo seu valor social, humano e pelos exemplos que nos possam trazer face à Doutrina Espírita que abraçamos. Através das reencarnações (é o nosso caso, é a tese que es-tamos expondo) podemos acompanhar, passo a passo, a evolução de cada ser estudado, suas aquisições psicológicas, suas reações emotivas e as incomensuráveis sedimentações que vão forrando Os pisos subterrâneos da sua consciência impressentida. Somos poços de águas claras, mas, embaixo, somos depósitos de lixo e lodo espessos. O simples movimento de uma vara pode tisnar horrivelmente a claridade dessas águas.” (P. 248-265)

Muito mais informações contém o depoimento espontâneo e rico do amigo Dr. César Burnier Pessoa de Mello,

[Anteriormente, Hermínio dissera que “encomendara” o relato a Burnier, aqui é dito que foi “espontâneo”]

mas seria impraticável reproduzi-lo todo aqui, mesmo porque certos aspectos por ele abordados, com a erudição histórica que todos lhe reco-nhecem, iriam exigir extensa coleta e apresentação de dados suplementares para que o leitor pudesse entendê-Ias em todas as suas implicações históricas. Ê que, no seu entusiasmo pelo fascinante tema da reencarnação na história e pelas inesgotáveis ramificações e entrelaçamentos das muitas vidas de inúmeras personagens, César desvela um panorama vasto demais para os propósitos deste trabalho.

Desejo documentar aqui minha gratidão pela generosa doação de seu tempo e dos inúmeros dados informativos que ele colheu pacientemente e com não poucos sacrifícios ao longo de toda uma existência inteiramente devotada aos levantamentos históricos e às conexões reencarnacionistas em que se empenha com um grupo de amigos espirituais.

Se antes ele fez a história, quase sempre dando a vida pelo ideal da liberdade – Spartacus, Danton, Garibaldi entre tantos outros –, agora ele procura reconstituir a história. conceituando-a tal como Arnold Toynbee, como ação visível e dirigida de Deus através de grupos de espíritos que nascem e renascem com tarefas específicas a realizar no plano físico. (p. 248-265)

do Cristo na célebre peça O Mártir do Calvário, de Eduardo Garrido. Como pintor, também produziu uma figura do Cristo, em cópia, que presenteou a vários confrades. como por exemplo ao próprio Hermínio Corrêa de Miranda. Muitos trabalhos seus ilustravam o gabinete do famoso médico Dr. Moncorvo Filho, seu amigo e admirador.

Prossigamos. Já fiz rápida referência, no Capítulo 3, à minha irmã Primerose, a mais velha. Seu nome, como se pode verificar de pronto, é tipicamente francês. Teve por mim, sempre, desde que encarnei como Luciano, uma afeição toda especial, que ela mesma me confessaria, um dia, por escrito: “Você sempre teve a minha preferência.” Enquanto eu era guri, apelidou-me de Pretinho e, depois que cresci um pouco mais, de Preto. O apelido era em razão dos meus cabelos, olhos e sobrancelhas muito negros. Pois bem, a irmã de Camille Desmoulins – Marie Toussaint (como o leitor já verificou) também lhe dava quase o mesmo apelido e pelas mesmas razões: Crayon. Entre os desenhistas, a palavra crayon designa a obra executada totalmente em preto. Aurélio Buarque de Holanda aportuguesou o termo e verbeteou-o à pág. 400 de seu Dicionário: “Creiom [Do fr. crayon] S.m. 1. Lápis de grafia. 2. Desenho feito com esse lápis.”

Resta dizer, aqui, neste instante, que meus irmãos sempre foram muito queridos por mim. Todos, sem exceção. Aliás, damo-nos excelentemente, cada qual se preocupando com o outro.

Agora vamos projetar-nos para tempo um pouco posterior à realização de nossas reuniões. O evento que narro a seguir é verdadeiramente notável, mas ocorrido fora do apartamento do Hermínio. A convite do Abelardo Idalgo Magalhães fui até o Ministério da Fazenda (Rio) para fazer-lhe companhia. Lá, encontramos um confrade da Federação Espírita Brasileira. J. B. Anjo Coutinho que me apresentou ao Dr. Roberto Jauréguibier Prel, advogado, procurador do Ministério, já desencarnado. No instante dessa apresentação, tanto ele quanto eu sentimos estranha sensação. Por isso mesmo custamos a soltar nossas mãos. Nossos olhares, se penetraram profundamente. Depois, com o correr da conversa, ele se confessou médium e passou a descrever fatos da minha vida passada, bem como do Abelardo. Incrível! Descreveu-me tal qual se trajava Desmoulins e caracterizou muito bem a condiçao do Abelardo. Falamos-lhe, então, das nossas experiencias e sobre Camille Desmoulins. Ele se empolgou e, fechando a porta do seu gabinete, começou a afirmar que tinha certeza de que convivera comigo na época da Revolução Francesa. Disse-me, quase numa súplica, que eu o haveria de identificar, que eu sabia quem ele tinha sido. Furtei-me, inicialmente, a qualquer tentativa. Ele insistiu. Pegou-me as mãos e, em francês, passou falar-me,

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emocionado, da turbulenta época da Revolução. Fitava-me esgazeado. E me disse, afinal, que havíamos seguido juntos, na mesma carro ça: era a guilhotina! Pediu, insistiu, implorou que eu o Identificasse (?!). Ele não parava de falar, falar, num francês absoluta mente escorreito .

[Será que o sujeito estava, naquele momento, em juízo perfeito? Parece a descrição de alguém meio fora de si]

Eu lhe respondia, também em francês, que não me lembrava, que não estava me lembrando. O quadro era nervoso. Até que, de repente, vi-o personificando uma determinada figura. Vi-o muito bem, por sinal. E lhe disse:

– Vous êtes mon ami, Hérault de Sechelles!

Ele ouviu e serenou. Fechou os olhos, saiu daquela tensão, deixou cair o corpo no encosto da poltrona e largou minhas mãos. Eu também suava um pouco e recostei-me. Ao lado, calados, o Abelardo e o Anjo Coutinho testemunhavam tudo. Mais tarde, fomos ler qualquer coisa sobre aquela personagem. Tinha sido advogado e uma espécie de procurador do governo em algumas províncias da França. O Dr. Roberto Jauréguibier Prel, conforme já disse, também era advogado, além de exercer a função de procurador do Ministério da Fazenda. Um desenho de Hérault de Sechelles, estampado no Larousse, revelou-nos vários traços morfológicos semelhantes aos do Dr. Roberto Jauréguibier. Tudo me leva a crer que eram a mesma pessoa. Muitos outros fatos, com o correr do tempo, vieram corroborar essa hipótese.

E, a propósito, narro outro episódio, tão interessante quanto curioso, ocorrido comigo na noite de 27.9.68. Fui participar, juntamente com o mesmo Abelardo, de uma reunião na casa do Roberto Jauréguibier Prel, na estrada de Jacarepaguá, 4.783. Através dele se manifestou um espírito, falando exclusivamente francês. Conversei com ele alguns minutos. Culto, inteligente, vivera na época da Revolução, mas não era conhecido. Depois que se foi, aconteceu algo muito estranho. Eu senti irresistível vontade de escrever. Apanhei, então, o lápis e coloquei no papel os seguintes versos:

“Tant que le monde resfera divisé Tant qu’existeront des barrere et des confins, Tant Qu’existeront des drapeaux de couleurs, Tant qu’existeront des ‘enemies’ et des ‘étrangers’, Tant qu’existera la femme que tombe par famine Tant qu’existera une lute par Ia paix Tant qu’existera des hommes sans travail, des enfants sans toit; Le monde sera un chaos Et un massacre par si-même.”

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Ao terminar, assinei: Camille Desmoulins. O Prel buscou explicar que os versos foram produzidos por mim mesmo, mas movido pela outra personalidade, isto é, a do jornalista francês. Não sei sequer se, antes, Desmoulins já os teria escrito e se eu, naquele momento, os estava apenas reproduzindo. Não fiz a pesquisa. Mas, repetidos ou criados naquele momento, a verdade é que quem os escreveu foi Camille Desmoulins, o que não deixa de ser fato bastante curioso.

Há uma outra figura de minhas relações que vale a pena ser assinalada. Trata-se do confrade e meu muito estimado amigo Ismael Nunes Tavares sobre quem falei no Capítulo 3 desta Segunda Parte, quando contei meu primeiro encontro com a D. Chiquita, médium da Casa do Coração.

Sempre nos permutamos uma amizade incomum, rara entre as criaturas humanas. Pois não é difícil, hoje, identificar as origens da nossa ligação. O Ismael também andou pela França, à época da Revolução. E, obviamente, privamos do mesmo convívio.

Vivíamos, ainda, o clima das sessões que estávamos realizando com o Hermínio quando, certa tarde, em plena avenida Rio Branco, eu e o médium Abelardo Idalgo Magalhães nos encontramos Com o Ismael. Conversamos um pouco. Quando ele partiu, Abelardo parou, olhou para mim e disse, num repente: “Ele é o Rochefoucauld. Em outro dia fomos saber, com vagar, na Biblioteca Nacional, de quem se tratava, pois ele referira a época da Revolução Francesa, nada tendo a ver, portanto, com o escritor, do mesmo nome, que viveu no século XVII. Ora, os dados que levantamos são, na verdade, de incrível ajuste ao Ismael Nunes Tavares, notadamente os de cunho psicológico, temperamental. Chamava-se ele Louis-Alexandre, Duque de La Rochefoucauld. Foi membro da Assembléia dos Notáveis e deputado, nos Estados Gerais, pela nobreza da cidade de Paris. Participando sempre dos debates das grandes questões políticas e sociais, Rochefoucauld rastreou sua atuação pela dura oposição ao clericalismo, tendo mesmo apresentado uma moção autorizando a cassação dos bens da Igreja em nome da Revolução. Uma outra moção de sua autoria, levantando a incompetência da Assembléia Nacional para considerar o catolicismo como a única religião cujo culto público seria autorizado, foi igualmente aprovada.

Mas o partido de Péthion e Manuel, que haviam sido suspensos com o voto de Rochefoucauld, não cessavá de insultá-lo e persegui-lo. Rochefoucauld não suportou e se demitiu, pretendendo com isso ser esquecido. Mas sua atuação o havia marcado muito. Populares mataram-no a pedradas, no dia 14 de

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setembro de 1792, durante os célebres Massacres de Setembro, acontecimento sangrento que irá se transformar, depois, em 1794, na motivação que levará Danton, Desmoulins e tantos outros à guilhotina. Rochefoucauld tinha, então, 60 anos. Referências aos Massacres de Setembro constam da Primeira Parte deste livro.

 É curioso observar, agora, como o comportamento psicológico dos espíritos dificilmente se altera. E, mais do que os elementos concretos – como parecença física, recidiva de defeitos anatômicos, etc. –, os elementos psicológicos atestam muito mais convin centemente uma reencarnação .

[suposição altamente contestável: difícil, senão impossível, demonstrar objetivamente essa tal similaridade de “comportamento psicológico” do espírito em suas diversas encarnações! Trata-se de concepção dependendente de elevada dose de subjetivismo para poder ser tida por aceitável. Conforme comentamos anteriormente, com um pouco de imaginação pode-se destacar elementos psicológicos que tornam duas pessoas muito parecidas, a ponto de justificar uma pseudo identificação reencarnacionista. Não obstante Luciano pensar de outro modo, tal procedimento passa a quilômetros de distância de investigação que possa ser denominada científica.] No caso, Ismael Nunes Tavares é pessoa que realmente se situa a meio caminho de inclinações aristocráticas e populares. O porte é nobre, seus contatos profissionais são feitos na área da alta esfera financeira, seus negócios se decidem nos gabinetes atapetados. Mas sua emoção é popular, seu impulso é liberal. Rochefoucauld também se deixara ficar nesse meio-termo. Era duque, usava punhos de renda, mas acabou se engajando no movimento revolucionário. É verdade que integrou o número dos massacrados de setembro, mas talvez ali o povo estivesse já cometendo injustiça. E essa desencarnação violenta é que ainda hoje faz Ismael desagradar-se dos grandes conglomerados populares, enquanto seu anticlericalismo se mantém o mesmo. Em Vida mais recuada, ele foi tambem o espanhol Fernando Rojas, autor de La Celestina. E segundo informações colhidas da D. Chiquita, encarnou, ainda, aqui no Brasil, a figura do bandeirante Matias Cardoso de Almeida, no século XVII

Eis, leitor, alguns dados que exponho para testificar, uma vez mais, que são fundamentais os encaixes psicológicos para se afirmar, com menor probabilidade de engano, a reencarnação de alguém.

[Luciano expõe a “metodologia” que deve ser utilizada na identificação de reencarnações”. Repetimos: é fácil traçar perfis psicológicos variados da uma mesma pessoa. Hermínio

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Miranda mostra que diversos biógrafos de Desmoulins o descreveram de modos mui distintos. Dessa forma, a probabilidade de equívocos que, na ótica de Luciano, seria minimizada com a aplicação de seu método, em realidade faz com que toda a sorte de suposições, por mais estapafúrdia que seja, se torne aceitável]

Sobre o Ismael, aliás, eu já havia publicado essas informações nas páginas de A Notícia de 17.10.75, sob o título “Reencarnações Conhecidas”.

Rochefoucauld e Desmoulins se aproximaram, à época da Revolução, dados os seus ideais, ainda que um estivesse entre os nobres e o outro ligado ao Terceiro Estado. Essa aproximação transformou-se em algo mais sólido e duradouro, capaz de vencer a barreira do tempo e chegar ao Brasil na configuração de uma amizade inquebrantável.

Quanto a meu filho Luciano dos Anjos Filho, dele não tive, até hoje, qualquer informação, pelo menos que apresentasse uma ligação passada entre nós dois. Terá existido, com toda certeza, pois não estamos reunidos, na vida atual, por acaso. Entretanto nada sei. O médium Chico Xavier, por mim consultado em 1981, recomendou, apenas, que ele não se detivesse muito na mentalização de um sonho que tivera e no qual participava de manobras de guerra, num pântano, tentando desesperadamente salvar uma mulher com uma criança ao colo. Acabou recebendo um tiro no rosto. O sonho havia sido muito nítido, muito real, e ele mesmo queria informar-se a respeito. Daí minha consulta ao médium de Pedro Leopoldo. Mas a guerra era moderna, com todas as característica deste século. Nada tinha a ver, portanto, com as vidas pretéritas por mim e minha filha vividas, as quais venho examinando neste trabalho. O que também posso afirmar é que amo profundamente meu filho, de fato, o maior amigo que tenho. É indescritível nosso amoroso relacionamento. Eu o amparo, e ele a mim. Procuro-o nos meus momentos de dificuldade, de depressão, de dúvida. Ele faz a mesma coisa comigo. Sabe de tudo que me acontece. Conheço-lhe as atitudes mais recônditas. Amamo-nos, eis tudo!

Um último registro: Nely Martino dos Anjos, minha atual mulher. Onde ela entra em toda essa minha longa jornada? Entra lá atrás, nos idos do século XV, quando eu era Charles d’Orléans. Pelo menos, até onde nos foi dado saber.

Eu gostava de uma criatura que, neste século, veio a reencarnar com o nome de Zulma Câmara. Apesar de amá-la (?), enviei-a à masmorra. Pois a Zulma era irmã da Nely. Ter-lhe-ei feito mal, também? Ou ela a mim? Ignoramos. Certo é que aqui estamos, novamente juntos, recompondo nosso carreiro e refazendo nossos passos. Meu relacionamento com

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Zulma Câmara, já o contei através das páginas de A Notícia (números de 10.1.75; ‘v 21.1.75; 28.2.75; 7.3.75; 14.3.75; 21.3.75; 4.4.75; 11.4. 75; 18.4.75; 25.4.75 e 2.5.75), do Obreiros do Bem (números de julho de 1974, janeiro, fevereiro e março de 1975) e do Jornal Espírita (edições de setembro e outubro de 1978). (P. 382-399)

[Ao final deste trabalho, incluímos texto de Luciano dos Anjos, no qual ele explica como identificou quem fora André Luiz, acompanhado de comentários nossos. A leitura mostra muito claramente o subjetivismo da “técnica” do jornalista] 

 COMENTÁRIOS COMPLEMENTARES:

Nota-se que poucas informações são comuns aos dois relatos: basicamente que a reunião ocorreu em 1/9/1967 e o gravador não funcionou.

Logo, logo, começam as contradições: partindo da falha do gravador:

Hermínio diz: Temos, porém, um relato que César Burnier escreveu a meu pedido, com base em suas notas pessoais então colhidas.

Luciano diz: E para que os lances principais não ficassem esquecidos, o Hermínio fez, logo ao término dos trabalhos, nova gravação, com o testemunho dos participantes, em especial o do César Burnier.

Vejam que não se trata de modos diversos de narrar o acontecimento, os protagonistas estão a dizer que as ocorrências foram distintas! Hermínio informa que dispôs do testemunho de Cesar Burnier (o qual foi preparado vários anos após o encontro); Luciano declara que fora realizada gravação com o depoimento dos participantes ao final da reunião. Muita diferença! Mesmo que não queiramos, não podemos nos furtar à suspeição de que um ou outro dos redatores viu coisas que não aconteceram...

Mas não param por aí os relatos conflitantes. Agora é a vez de César Burnier declarar, no escrito que teria enviado a Hermínio: Tão logo cheguei ao seu apartamento, ouvi do prezado amigo o mais completo relatório de todos os trabalhos realizados até então. Um possante gravador completou, durante mais de uma hora, todos os pormenores da sua exposição.

Conforme o testemunho de Burnier, a gravação fora feita normalmente. Nítido contraste entre os testemunhos (os três!).

Diante desse quadro, indagamos: podemos estar seguros no que se refere à fidedignidade dos relatos? Se em questões triviais, os envolvidos se confundem, onde mais teriam cometido deslizes? Aqui, não se trata de qualquer má-vontade em analisar isentamente a experiência regressionista, trata-se de constatação que salta aos olhos de quem ler a obra com um pouco de senso crítico. Lembramos que foram relatadas muitas outras passagens desarmoniosas entre os escritos de Hermínio e de Luciano.

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Fica, pois, constatado que os envolvidos não disponibilizaram material de boa qualidade, que permitisse correta análise da experiência. Para fechar o presente estudo, apresentaremos algumas considerações complementares e a conclusão.

 A REENCARNAÇÃO DE LUCILLE DESMOULINS

 O episódio do retorno da esposa de Desmoulins na identidade da filha de Luciano insere-se no contexto das identificações reencarnativas, tarefa que Hermínio, Luciano, César Burnier e alguns outros se dizem capazes de realizar. Linhas atrás expusemos nosso parecer a respeito dessa suposta capacidade, a qual está mal esclarecida.

No caso da reencarnação de Lucille, que teria retornado como filha de Luciano, deparamos alguns tópicos que merecem comentários específicos.

O registro desse acontecimento acha-se nas pág. 349-351, da edição que estamos a utilizar. Transcrevemos o texto: (destaque de nossa autoria)

Eu estava em processo de desdobramento, na sala do Hermínio, em seu apartamento, quando a informação dada por mim esclareceu a questão: minha filha, em meu apartamento, no lado oposto da cidade (o Hermínio morava no Humaitá e eu na Muda da Tijuca), começou a passar estranhamente mal. Minha mulher se preocupou. Percebeu que ela estava sob uma influência esquisita, que não sabia sequer descrever direito. Vomitou, embora não houvesse comido nada que o justificasse. Meia hora depois, como que por encanto, tudo passava. Ela estava bem outra vez. É evidente, concluímos todos, que houve naquele momento um processo qualquer de sintonia entre nossos espíritos, o que terá motivado o mal-estar dela, principalmente se lembrarmos que também ela desencarnou sob o cruel cutelo da guilhotina...

Mas não terminam aí as “coincidências”. Um dia – ela ainda era uma criança –, peguei-lhe entre as mãos a cabecinha, , deitados ambos na poltrona da minha casa, e lhe disse:

– Minha filhinha, preste atenção ao que o papai vai lhe perguntar. Preste bastante atenção. Ouça esse nome: Lucile Duplessis; Anne-Lucie Philippe Laridon Duplessis; Lucile Duplessis – Fiz uma pausa, olhei-a bem no fundo dos olhinhos muito abertos e meio alegres. Depois, perguntei, sério: – Quem é ela? Quem é ela?

Respondeu-me como quem não tem dúvida do que respondia: – É a Ana Lúcia Martino dos Anjos... Rigorosamente assim: o nome completo. E me ficou olhando como a esperar minha reação. Curioso com a resposta, beijei-a na fronte e, depois de alguns segundos de mudez, fomos tratar doutra coisa. Coincidência? Efeitos subconscientes? Não creio. Também aqui a lei da reencarnação parece aflorar, incontestável, se não bastasse minha própria afirmativa, durante as sessões, de que Ana Lúcia é realmente a Lucile.

Resta repisar para o leitor aquele conclusivo detalhe: Ana Lúcia nasceu no dia 24 de abril de 1960; Lucile Duplessis nasceu, também, num dia 24 de abril, de 1771! É coincidência demais, não acham? Encerrando este capítulo, aqui vão alguns traços pessoais da Ana Lúcia. Adora música. Desde pequenina tinha mania de tirar, no piano de brinquedo, de sete teclas, as melodias que ouvia na televisão. Quando começou a estudar piano, sua professora, Odete Calvet, dizia que ela era uma pianista nata. Não sei se exagerava para estimulá-la, mas, que o dizia, isso é verdade. Curioso é que não pára no piano. Abre-o, fecha-o, abre-o de novo, senta, toca, levanta, senta de novo. Está sempre irrequieta. Tal qual narra um livro que lemos sobre Lucíle. Gosta também de escrever solitaria-mente, da mesma forma que no passado francês. É alegre, está sempre rindo, não sossega, constantemente inventando alguma coisa nova para fazer. Formou-se em normalista e agora está na universidade, fazendo pedagogia. Ama as criancinhas. Ama a vida da fazenda. Ama cavalos. Está fazendo, agora, patinação, depois de ter cursado um bom período de pintura com a Professora

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Marina de Almeida Pinto, que também a elogiava bastante. É muito decidida, voluntariosa, indomável. Mas sabe ceder quando o clima é de carinho e amor.

Luciano informa que quando veio à tona a revelação de que Lucile Desmoulins reencarnara como sua filha, Ana Lúcia, a menina começou a passar mal. Imediatamente nos veio à mente a declaração de Allan Kardec:

Com efeito, a lembrança traria gravíssimos inconvenientes. (...) Em todas as circunstâncias, acarretaria inevitável perturbação nas relações sociais. Freqüentemente, o Espírito renasce no mesmo meio em que já viveu, estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que lhes haja feito.

Este caso tem tudo para se enquadrar no discurso do codificador da doutrina. É certo que, em princípio, não haveria mal a ser reparado, mas não se sabe o que pode ter havido na intimidade do casal ou mesmo nas intenções de Desmoulins em relação à sua mulher, ou outras questões que não teriam chegado ao conhecimento público. Luciano considera o mal-estar da filha como resultado de sintonia espiritual entre ele e a menina, entretanto, outra interpretação pode ser apresentada: sentir que o pai fora seu esposo em outra existência foi muito forte para uma menina com sete anos de idade! Imagine-se o que não teria passado pela cabeça da filha ao descobrir que o pai lhe foi íntimo em outra existência! E se recordações daquela vida aflorarem à consciência, quantos grilos não lhe acometeriam? Luciano parece enfrentar sem sobressaltos tal lembrança, quanto à filha, nada sabemos. Mesmo que nenhum sentimento desagradável se interponha entre eles, uma coisa não pode deixar de ser considerada: trata-se de uma situação muito esquisita, a filha saber que já dormiu com o pai... Não estamos a fazer insinuações malévolas, sim constatando o que pode ser motivo para muitos problemas. Se Luciano e a filha convivem bem com esse conhecimento, em outras situações semelhantes, com outros protagonistas, provavelmente não haveria tanta harmonia.

 O DESACOPLAMENTO DO ESPÍRITO O medo voltou, principalmente porque eu ouvia o Hermínio repetir: “Vamos despertar”; mas, estranhamente, sentia-me flutuando a uns trinta centimetros acima do sofá, sem capacidade de me justapor a mim mesmo outra vez. O pânico interior cresceu, porque pensei, por um instante, que houvesse desencarnado, que minhas duas partes não se “colariam” mais. (p.360)

Afinal, a indução hipnótica possui a capacidade, defendida por Hermínio Miranda, de decompor o ser em suas hipotéticas partes integrantes, alma, perispírito e espírito? O que se pode dizer a respeito?

Em termos das teorias mais aceites sobre o fenômeno hipnótico, nem falar disso. Nenhum teórico do assunto, que não fosse espírita −e mesmo dentre os espíritas temos dúvidas se o pensamento de Hermínio fosse acatado unanimemente −, pelo que sabemos, advoga tal hipótese. A hipnose pode ser descrita como a exacerbação de certa característica existente na mente, que é a focalização da atenção em torno de um tema. Adequadamente conduzido, o fenômeno abre caminho para que sugestões possam ser passadas ao paciente e por ele trabalhadas de forma criativa. Aplicações terapêuticas também são possíveis, dentro de certos limites.

A idéia advogada por Hermínio Miranda vai muito além dos limites que se supõe possa alcançar o processo hipnótico. Ele assevera que a indução hipnótica consegue penetrar no conjetural e elástico campo do inconsciente e realizar o que nem os espíritos mais

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poderosos conseguiriam, que é decompor a estrutura do indivíduo nas partes material e espiritual. Em mais, tudo isso sem provocar a destruição da vida!

E como comprova que as coisas acontecem desse modo? Com justificativas ingênuas, oriundas de sugestões que ele próprio passa para seus pacientes.

No texto apresentado acima, vemos Luciano dramatizando o processo. Ele acredita, tal qual Hermínio, que o desacoplamento espiritual é realidade, por isso responde como desejado pelo pesquisador. Mas, seria muito simples demonstrar que tudo não passa de encenação do subconsciente, pequenos testes que se realizassem durante a indução comprovariam claramente que não havia nenhum espírito descolado. Porém, Hermínio Miranda não demonstra intenção de investigar sua crença. Selecionemos duas cenas em que Luciano se diz flutuando fora do corpo e vamos estudá-la com um pouco de atenção.

A reunião seguinte foi realizada em 9 de junho de 1967. O tape guarda o diálogo que a seguir reproduzimos, com os comentários habituais. – Está se sentindo bem, Luciano? – pergunto eu. – Onde você se encontra no momento? – A um metro mais ou menos de nós. Acima... Não posso olhar para baixo; às vezes, uma espécie de atração me deixa inseguro. (1)

– Você já sabe que o processo não oferece riscos. – Parece que vai descer e depois sobe. É claro que ele ainda experimenta algum temor em afastar-se do corpo, provavelmente devido à traumatizante experiência da decapitação. Ele próprio tenta explicar: (2)

– É que eu estou numa situação diferente. – Sim, é uma situação nova para o espírito. (O desprendimento consciente.) – Não sei se estou aqui ou ali – continua ele. (Isso é verdadeiro também, porque nos estados superficiais a consciência fica como que dividida, ou melhor, partilhada pelo corpo físico e pelo perispírito.) (3)

– Devo ficar calmo – diz ele para se tranqüilizar. – Deus nos ajudará. As sugestões apropriadas são dadas. – Você vai readquirir o conhecimento acumulado sobre a existência anterior e vamos desenvolver o plano que combinamos, segundo o qual você vai relatar desde a infância essa existência, para que possamos coligir o material para um trabalho sério, um trabalho importante. Quando ele retoma a palavra, após nova pausa, somos surpreendidos com inexplicável fenômeno de gaguez. Fala com dificuldade, espaçando muito as palavras e hesitando com um sibilado em algumas que ofereçam maior obstáculo. – Não tenho uma clareza muito grande. Prefiro que você pergunte e vou localizando, senão tumultua. Novas sugestões de relaxamento e tranqüilidade, simultaneamente com os passes longitudinais. Ele sabe que, seu espírito está preso ao corpo físico por fortes laços magnéticos. (4)

– Não vejo (isso) – diz ele. – Mas Deus vai nos ajudar. Declara ainda não ver os amigos espirituais que nos ajudam na tarefa, mas está convicto da presença deles. (p.65,66 – cap. 5)__________________________A reunião seguinte foi no dia 16 de junho de 1967. O desprendimento ainda oferece algumas dificuldades operacionais, mas Luciano vai se tornando mais familiarizado com sua técnica. Habituado a observar fenômenos de natureza psíquica, ele consegue ser bastante objetivo para ver e descrever o que se passa com ele próprio. Vejamos, a respeito, este diálogo inicial:– O que você está sentindo de diferente hoje? – pergunto eu.– Estava muito perto – diz ele.Ou seja, não se desprendera o suficiente do corpo físico a ponto de libertar-se da sua influência inibidora. (5)

– Você não se tinha ainda desprendido totalmente, não é isso? – Deve ser. Agora está na posição certa. – Onde você se encontra no momento?

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– Em cima de vocês, a um metro mais ou menos. – Mas o corpo fica em pé ou deitado?– Deitado.– O corpo espiritual também?– Também. (6)

– Por que você disse vocês? Tem mais gente aí? (7)

– Não. Vocês... sou eu mesmo... – É porque o corpo nessa posição é como se fosse uma terceira pessoa.– É. Fico olhando... Também este fenômeno nada tem de insólito. É bastante comum o espírito desprendido referir-se a seu próprio corpo físico como se fosse outra pessoa ou pertencesse a outro indivíduo. Em casos extremos de rejeição, o espírito nem deseja mais reassumir o corpo, pois equivale a voltar para uma prisão. Este não era, claro, o caso de Luciano. Mais de uma vez encontrei, contudo, pessoas que se referiam a si mesmas empregando a terceira pessoa: ele ou ela, como se o corpo não lhe pertencesse. Em um caso dramático dos arquivos de Luís J. Rodriguez (autor do livro God Bless the Devil), uma vez desprendido, o espírito não queria de forma alguma retomar ao corpo que o mantinha prisioneiro a uma existência de penúria e angústia. (p.100,101 – cap. 6) Comentando:

(1) Onde você se encontra no momento? – A um metro mais ou menos de nós. Acima... Não posso olhar para baixo; às vezes, uma espécie de atração me deixa inseguro.

Em termos de experiência, Hermínio deveria explorar mais essas notificações de Luciano, sobre estar flutuando acima deles e as dificuldades encontradas para olhar para baixo. A explicação é de que Luciano ainda não dominava o processo, daí o medo que advinha da sensação de estar fora do corpo. De qualquer modo, esse seria o ponto de partida para a verificação se o espírito estaria realmente do “lado de fora”.

 (2) É claro que ele ainda experimenta algum temor em afastar-se do corpo, provavelmente devido à traumatizante experiência da decapitação. Ele próprio tenta explicar:

Explicação ad hoc, Hermínio faz uma ilação forçada e sem muito sentido. Mesmo que se admitisse a hipótese de que o espírito de fato estivesse flutuando, outros conjeturas mais plausíveis poderiam ser apresentadas para justificar o medo; uma delas seria que decorresse de estar o regredido vivenciando experiência nova, algo semelhante ao receio que se apossa de quem está aprendendo a andar de bicicleta. A suposição de que a experiência de ser guilhotinado fora traumatizante para Desmoulins não só enquanto vivo, mas para seu espírito, não tem fundamento: quem teve a cabeça cortada foi o corpo; guilhotina nenhuma, por mais afiada que esteja, consegue decepar uma cabeça espiritual, se é que existe tal componente na constituição não-física do ente.

(3) – Não sei se estou aqui ou ali – continua ele. (Isso é verdadeiro também, porque nos estados superficiais a consciência fica como que dividida, ou melhor, partilhada pelo corpo físico e pelo perispírito.)

Consciência dividida... alguém sabe explicar o que significa? O que Hermínio Miranda parece estar a dizer é que ficaria um pedaço da consciência no corpo e outro no espírito! Difícil...

(4) Ele sabe que, seu espírito está preso ao corpo físico por fortes laços magnéticos.

Hermínio Miranda opta por propor que o espírito se mantém ligado ao corpo por laços magnéticos (“fortes laços”). É usual, entre os que postulam a possibilidade de viagens

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fora do corpo, asseverar-se que a ligação corpo-alma se faça pelo “cordão de prata”, uma mística idealização que permitiria ao espírito se desprender do corpo sem risco de desaparecer no éter astral. Talvez Hermínio dissesse que “é tudo a mesma coisa” − laço magnético seria o mesmo que cordão prateado. Porém, parece-nos que a preferência pelos “laços magnéticos” tenha a intenção de dar um ar de cientificidade à suposição. Entretanto, seja laço, seja cordão, além de não haver evidência que comprove tal idealização, a suposição não encontra fundamentação em qualquer teoria que possa, minimamente, ser classificada de científica.

– O que você está sentindo de diferente hoje? – pergunto eu.– Estava muito perto – diz ele.(5) Ou seja, não se desprendera o suficiente do corpo físico a ponto de libertar-se da sua influência inibidora. – Você não se tinha ainda desprendido totalmente, não é isso? – Deve ser. Agora está na posição certa.  

Outra concepção não esclarecida, o que seria “influência inibidora”? Se o autor falasse de atratividade, mesmo não concordando, poderíamos entender melhor, uma vez que, supostamente, quanto mais próximo estivesse o espírito do corpo, maior atração este exerceria sobre a alma fujona. Poderíamos afirmar: o corpo não suporta viver sem sua alma! Agora, no que tange à “influência inibidora” não conseguimos dizer coisa alguma. Será que Hermínio quer dizer que o somático embota a manifestação anímica? Curiosamente, Hermínio induz Luciano a que confirme sua teoria, mas, para desencanto do experimentador a resposta é um evasivo “deve ser”. 

(6) – Em cima de vocês, a um metro mais ou menos. – Mas o corpo fica em pé ou deitado?– Deitado.– O corpo espiritual também?– Também.

A coisa toda é bastante esquisita. Hermínio passa para Luciano sua suposição de que a alma se desprenda do corpo, durante o processo hipnótico. Luciano aceita a idéia e a representa quando entra em transe. Até aqui tudo bem, pois está concorde com o geral da teoria hipnótica, ou seja, de que o paciente quando acata a sugestão reproduz, da melhor forma que consegue, o que lhe é sugerido. Como os detalhes de como seria o desprendimento não foram passados, Luciano faz o que pode. Pela descrição que apresenta, dá a entender que o corpo perispiritual fica a certa altura, como que deitado de barriga para cima, olhando para o teto. Isso contraria algumas postulações que afirmam que a alma, depois de desprendida, não permanece em posição rígida, ao contrário, pode voar pelo aposento e até rumar para outras plagas, tal qual nos filmes infantis. Mas, como o objetivo de Hermínio não era fazer com que a alma de Luciano perambulasse, havia necessidade de que se mantivesse mais ou menos quieta, para que a exploração da alegada memória integral se processasse. Caso o espírito em desprendimento fosse dar uma voltinha, o corpo ficaria inerte e nada responderia. É o que se supõe aconteceria.

Contudo, a voz que respondia às inquirições de Hermínio Miranda saía do corpo de Luciano, em vez de provir do teto, onde sua alma estaria. A explicação herminiana para o fenômeno é de que a alma fala, mas repercute no corpo, pois as cordas vocais estão nele. Certo, é um tanto estranho, mas deve fazer sentido, ao menos para quem crê que coisas complexas possam acontecer com tanta simplicidade...

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Falamos que testes simples poderiam ser implementados, no intuito de confirmar o desprendimento do corpo. Um deles seria o que nominamos “exame da leitura”, que vamos descrever de forma tosca, sem propostas sofisticadas, o que aconteceria em experiências controladas e de cunho científico. O que sugerimos seria tão-somente a verificação de uma possível resposta do espírito desprendido. Luciano afirmava que seu espírito encontrava-se acima deles, a um metro de altura. Pois bem, o próprio Hermínio poderia conduzir a investigação. Primeiro vendaria os olhos físicos de Luciano. Em seguida, fazendo uso de escada que tivesse mais de um metro de altura, pegaria um livro qualquer, de preferência que não houvesse lido recentemente, subiria a escadinha, até um ponto pouco superior à do espírito e, com a capa do livro voltada para si, de modo que não pudesse saber do conteúdo, abriria em qualquer página e pediria que Luciano lesse algumas linhas. Antes que alguém pergunte o porquê de subir na escada, esclareço: é que foi dito que o espírito do jornalista flutuava de cabeça para cima, por isso ele poderia alegar impossibilidade de ler o livro devido à posição em que se encontrava.

Para ser bem sucedido, este exame simples exige que o examinador (no caso Hermínio), em momento algum, leia o que está escrito na página que foi aberta. Somente depois do espírito se manifestar é que conferiria se houve acerto.

Caso Luciano fosse bem sucedido na prova, implementar-se-iam testes complementares, a fim de reforçar a confirmação de que a alma efetivamente estava fora do corpo, aí sim, o resultado seria considerado sugestivo, entretanto nem o básico do básico foi feito.

Notem que não se faria necessário equipamento especial, nem alto investimento. Apenas um examezinho simplérrimo evidenciaria, ao menos preliminarmente, o desprendimento do espírito. Infelizmente, nada foi realizado. O experimentador estava tão convicto que a alma de fato fica do lado de fora, que nenhuma confirmação achou necessária. Em outras palavras, uma tese fragílima, que não encontra respaldo nas múltiplas experiências hipnóticas que se fazem em todos os cantos, foi pelos autores considerada insofismável! Se fosse firme a tese do desprendimento espiritual, dele haveria relatos em muitos outros experimentos de indução hipnótica, e não só no contexto regressionista.

 A GAGUEIRA DE LUCIANO/DESMOULINS

Um dos argumentos em defesa da legitimidade da manifestação foi que, como a gagueira não aconteceu imediatamente após Luciano ter sabido que Desmoulins era gago, significaria ponto a favor de uma demonstração real da personalidade de Camille, que gradativamente ia tomando forma, à medida que as sessões regressionistas evoluíam. Vamos recordar o assunto e acrescentar nossas considerações.

Sejamos tolerantes com o velho Duplessis. Camille era de fato uma figura estranha. Mesmo a Enciclopédia Britânica, que se esmera em informar sem opinar, diz isto de Camille: “Seu sucesso profissional não era grande; seus modos, violentos, sua aparência, sem atrativos, e sua fala, prejudicada por uma penosa gagueira.” Algo aturdido quando viu Camille a seus pés, num gesto dramático, a pedir-lhe a mão de Lucile, acabou concordando hesitantemente, com o que não estava de acordo Madame Duplessis. Por fim ambos cederam, já que Lucile também acabara aceitando Camille que, a princípio, ela nem soube entender, apesar da sua impressionante precocidade intelectual.

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Este é parte de um dos comentários feitos por Hermínio Miranda, concernentes à sessão ocorrida em 26/5/1967. Duas semanas depois, em 9/6/1967, aconteceu, durante a regressão, a manifestação curiosa. Leiamos:

Quando ele retoma a palavra, após nova pausa, somos surpreendidos com inexplicável fenômeno de gaguez. Fala com dificuldade, espaçando muito as palavras e hesitando com um sibilado em algumas que ofereçam maior obstáculo.

A interpretação dessa circunstância é feita pelo menos de dois modos: o primeiro, favorável, supõe que a personalidade de Camille foi crescendo em presença no decorrer das sessões regressionistas. Seria algo semelhante a um despertar por etapas, até que ocorresse a plena manifestação. Portanto, estaria explicado porque características de Desmoulins apareceram aos poucos. Dentro desta hipótese, não teria havido representação inconsciente de Luciano, tratar-se-ia, sim, de processo “normal” de eclosão gradativa da personalidade pregressa.

Certamente, tal suposição faz sentido, porém é preciso conhecer o outro lado e levar em conta algumas ocorrências dignas de nota.

A hipótese concorrente concebe que o subconsciente de Luciano foi construindo o personagem, conforme ia conhecendo detalhes a respeito daquele que teria sido. Neste caso, a manfestação da gagueira, foi um trabalho mental do jornalista – possivelmente inconsciente. Não é necessário aventar-se que tenha havido fraude consciente, sim resultado do almejo acalentado pelo paciente de que estivesse experienciando legítima recordação de existência passada. Dessa forma, em segundo plano e aos poucos, a mente do regredido aprimorava a imagem que pretendia representar daquele que supunha ser reencarnação.

Em favor da primeira hipótese temos a gagueira, a qual se manifestou diversas vezes, como se vê na texto a seguir:

Nosso trabalho teve prosseguimento em 23 de junho de 1967. Proponho-lhe retomar as pesquisas no ponto em que as deixamos na última reunião, com o que ele concorda. Observa-se, contudo, às suas primeiras palavras, que ele recaiu na penosa gagueira, que já várias vezes ocorreu no decorrer de nossos diálogos. Pressuponho que a dificuldade manifestada provém de algum mecanismo inibidor inerente mesmo ao processo de comunicação espírito/corpo, com o qual ele ainda não se acha bastante familiarizado a ponto de dominá-lo com segurança. Transmito-lhe, pois, sugestões visando a eliminar a dificuldade que, não obstante, persiste, enquanto ele se mostra um pouco agitado. Reforço as sugestões com alguns passes e ele acaba relaxando um pouco mais.

No entanto, algumas situações inclinam-se para a 2ª possibilidade, ou seja, a da representação inconsciente do personagem. Se examinarmos as reuniões de 9/6/1967 (na qual a gagueira aconteceu pela primeira vez), a de 16/6 e a de 21/6, notaremos o problema ocorria ora sim, ora não. Pode-se supor que quando o subsconsciente de Luciano lembrava que Desmoulins era gago, a característica era exibida. Ora, se este distúrbio, presente em Camille quando vivo, se manifestasse efetivamente em Luciano sob regressão, ele deveria surgir sempre que o jornalista entrasse em transe e assumisse o ego de Desmoulins.

No encontro de 7/7/1967 surge fato novo:

Foi assim naquela noite; logo, porém, conseguimos um controle melhor do mecanismo da comunicação. Daí em diante o diálogo flui normalmente.

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– Está se sentindo bem agora?– Ótimo. – O que você está pensando aí? – Olhando o corpo – diz ele. – Ele treme um pouco... – Agora não mais – digo eu. – Estava tremendo, sim, mas você já conseguiu controlar. Podemos retomar nosso trabalho? Bem, você sabe que temos algumas dúvidas para resolver. Um dos problemas que precisávamos esclarecer é quanto à dificuldade que você tinha em falar. No momento você não a tem mais, não é? Por que isso? Como você conseguiu controlar isso? – Não sei... É... não sei. – Talvez porque você tenha racionalizado o problema e viu que a gagueira era desnecessária. Ela apresentou um fator muito importante para controle do nosso trabalho, porque agora sabemos que na existência anterior você tinha esse problema, inteiramente superado hoje.

O que para Hermínio Miranda foi a solução de um problema, em verdade significa um dificultador para a teoria de que a regressão era legítima. Ele precisava explicar porque a gagueira havia desaparecido, e encontra uma hipótese ad hoc que lhe satisfaz. No entanto, até onde se sabe, Camille Desmoulins em vida não controlou o problema da gagueira. O que provavelmente aconteceu é que representar um gago é cansativo e dificulta o diálogo, então o subsconsciente de Luciano excluiu a manifestação.

Encontramos num pequeno trecho dos relatos o que nos pareceu demonstração indubitável de que Luciano, entre um encontro e outro, exercitava a mente na construção do que achava deveria ser a manifestação de Desmoulins. Leiamos:

Mas você ficou de verificar, durante esta semana, nos seus desprendimentos, a razão de ser de seu encontro com o espírito de sua mulher atual e do seu filho. (Cap. 9, 1ª parte, “Os Dois Agoras”)

O que temos aqui é Hermínio cobrando de Luciano a informação que haviam combinado deveria aparecer no encontro seguinte. De que modo? Durante a semana Luciano meditaria (“se desprenderia”) até que encontrasse o informe buscado. Na continuidade do diálogo ver-se-á que a missão não deu resultado, porém, para nós, demonstra que o jornalista não ficava passivo nos intervalos dos encontros, ao contrário, estava em contínua reflexão e, talvez inconscientemente, alimentava a mente com idéias variadas. Durante as regressões, o resultado dessas cogitações vinham à tona.

 CONCLUSÃO

Acreditamos que a experiência regressionista aqui analisada pode ter sido convincente para Luciano dos Anjos, que aguardava ansiosamente oportunidade de descobrir sua encarnação pretérita. Louve-se o esforço dos envolvidos em demonstrar que as lembranças eram verazes.

Em termos gerais, porém, muitas questões ficaram em aberto e o experimento não evidenciou suficientemente que as recordações fossem autênticas lembranças de outra vida. O que desqualifica o trabalho como legítimo evento reencarnacionista.

A “memória integral”, tese que embasa o trabalho regressionista de Hermínio Miranda, não foi demonstrada, de forma alguma, durante as experiências. Ao contrário, na maioria das vezes em que Hermínio exigiu do regredido que recorresse à dita memória, o retorno foi frustrante. Várias hipóteses discutíveis foram apresentadas para justificar o fracasso.

Ex. de falhas na demonstração da memória integral:

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– E você teve outra existência entre aquela que você viveu na França e a atual? Havia ali um bloqueio, e para testá-lo reformulo a pergunta:– Da existência que você teve como Camille até a em que você renasceu no Brasil, como Luciano, há alguma intermediária? – Não sei – é a resposta. – Sabe, sim. Seu espírito sabe. Procure buscar na memória. – Depois apagou-se tudo... Não me lembro. Acho que não. Estou bem agora.(Cap. 4, 1ª parte, “O Antes e o Depois”)____________________________________ – O que é preciso é libertar-se dessa condição. Qualquer estado de desprendimento em que você entra, vai logo para esse período em que levou uma existência agitada. É necessário que você procure pesquisar, na sua memória integral, outros fatos e não apenas esses. – Mas, às vezes, dá medo. .. vontade de fugir... mas, é preciso ter coragem e ficar ... (Cap. 4, 2ª parte)____________________________________ – Vamos, então, recomeçar. Queria que você me descrevesse sua infância, em Guise. Você chegou a estudar lá? – Sim. Não me lembro muito bem, mas deixe-me pensar. Distante... – Você sabe que está tudo guardado em sua memória. É questão somente de procurar o caminho de acesso. Estamos sendo ajudados por irmãos nossos do mundo espiritual. – Era um pppppppp... patronato de religiosos. Se ch... ch... chamava... Era... Ah, meu Deus! Era... Deixa eu ver... Cambrésis. Chateau-Cambrésis... Eram só meninos. (...)(Cap. 7, 1ª parte, “O Durante e o Depois”) ____________________________________– Isso será dado conhecer se for permitido pelos nossos mentores espirituais. Se interessar ao nosso trabalho e ao nosso espírito. Mas você ficou de verificar, durante esta semana, nos seus desprendimentos, a razão de ser de seu encontro com o espírito de sua mulher atual e do seu filho.  – Não vi... Não sei... – Por quê? Não teve tempo ou não foi permitido?  – Não sei. – Isto, então, é um dos pontos em que não devemos insistir mais, porque, provavelmente, não está incluído no nosso trabalho, pois seu espírito sabe. Você pode não estar lembrando, mas isso está registrado. Então não será possível apurarmos isso. O que for possível, remos apurando, especialmente o destino de seus amigos daquela época. Onde estará Danton? O que você imagina tenha acontecido a ele? Será que ele está aqui no Brasil? (Cap. 9, 1ª parte, “Os Dois Agoras”)____________________________________ – Escuta, e você? Provavelmente teve ligações com esses espíritos, anteriormente. Procure localizar em sua memória, você tem acesso a ela agora, onde é que começou essa história? – Não sei, acho que eles estiveram comigo, sim. – É quase certo, isso, porque o trabalho que vocês realizaram em conjunto provavelmente já vinha de trás. Você não consegue lembrar-se assim de pronto, não? – Não. – Escuta: entre sua vida no século XIV e essa, na França, no seculo XVIII, você teve outra existência? – Acho que tive – diz ele, após longa pausa. – Você pode localizá-Ia, pois está tudo guardado aí em sua memória. É um período muito longo, de quase trezentos anos; não é possível que não tenha, nesse tempo todo, pelo menos uma existência, ou mesmo duas. – Mais de uma – confirma ele. – Foi tudo na França? – Foi. – Há quantos séculos, então, você vivia na França? Quanto tempo você pode recuar sua memória sem prejuízo da sua posição agora?  – Muito tempo. .. Em Roma, também; mas isso é tão longínuo. .. tão distante. – Mas você lembra também de Roma?

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– Também! – O que você fazia lá? – Nada, vivia... Isso é tão distante que a gente fica sem certeza das coisas . – Mas não são memórias agradáveis’? – Dali não tenho certeza. – Quando é que você começa a ter mais consciência das suas existências? – No século XV. – Nessa existência como um dos Valois? E depois?  – É. Fui vendedor de rua ... (Ambulante.) Tem uma ... acho que era Louis. Não tem nada. – É uma vida muito apagada? – Muito ruim ... – Difícil? – É. – Em que época foi essa? Não dá para ver, não é?– Ah, isso baralha muito. Eu me vejo na rua, assim ... andando ... – Foram muitos anos de vida? – Não sei. Puxava um baldinho, vendendo. .. Não... isso foi depois. Deixe-me ver. Vinagre. .. Levando vinagre. A gente amarrava um barrilzinho dos dois lados e ia puxando com uma corda. Vendia vinagre. O método de transporte do vinagre – um barrilzinho preso pelo ‘eixo maior e rolando pelo chão – ainda se vê hoje aqui mesmo, no Rio de Janeiro, em alguns bairros pobres, para transportar água. – Como você se chamava? Essa vida aí está mais perto. Você pode se lembrar. – Vinagre. .. Jean. .. (Ri. Parece contemplar a melancólica figura de um pária social.) – Quer dizer que você passou uma existência muito brilhante na corte e depois duas existências muito obscuras ... – É, sofri muito! – Foi para aprender a lição da humildade. Daí, então, depois dessas duas é que você veio como Camille?  – É, depois Camille. . Novamente faço uma sondagem no desconhecido – E depoIs de Camille... Você não teve nada aí nesse meio, entre Camille e Luciano? O bloqueio continua firme. – Não sei... não consigo. É um vazio imenso... imenso... Uma bola imensa, vazia. Como se fosse uma bola.– Provavelmente você foi assistido como espírito, a fim de se recuperar e retornar agora à vida (na carne). – É, deve ser... Não é bom... – Felizmente agora você está no caminho certo, procurando corrigir essas deficiências que todos nós temos, e está preparando um programa de trabalho para o futuro, não é? (Cap. 10, 1ª parte, “O Perto e o Longe”) Excessiva valorização foi dada pelos experimentadores ao conhecimento histórico do regredido. Contudo, não foram levados em conta a existência de vários equívocos, ou, quando se considerou esses deslizes, as explicações não foram suficientes. Além disso, existem numerosas contradições entre as declarações de Hermínio e as de Luciano. Além das que já foram referidas, apresentamos a que segue.

No início da 2ª parte do livro (na edição utilizada, p. 301), relato de Luciano, lê-se:

No campo das reencarnações há de tudo. Meu amigo Hermí nio Corrêa de Miranda, que orientou as sessões que vão narradas neste livro, já me dizia, desolado, que só de Marias Antonietas ele ouviu falar não sabe de quantas. Os Napoleões estão por aí mesmo. Ninguém quer ser gente humilde do passado. Parece até que os “apagados” não renasceram mais ...

Hermínio Miranda toca no mesmo tema, entretanto diz coisa bem diversa daquilo que o jornalista disse serem suas palavras. Leiamos:

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Devo confessar, de início, que a revelação do primeiro momento foi impactante. É que, à falta de argumentos e, menos ainda, de fatos que possam abalar a doutrina palingenésica, é comum dizer-se que tudo não passa de mera fantasia, uma vez que ninguém se lembra de vidas humildes e anônimas, mas todo mundo quer logo ser Maria Antonieta ou Napoleão – as duas mais citadas personalidades históricas nesse contexto.

A observação é de uma puerilidade tão grande que beira o ridículo. Em primeiro lugar, por não ser verdadeira, e isso nos pouparia até o esforço de dizer algo mais, como o artilheiro que não pode disparar o canhão por vinte e duas razões, a primeira das quais é porque não tem pólvora... A verdade é que o mais comum nas regressões da memória – provocadas ou espontâneas – é a lembrança de discretas existências, e até penosas, vividas em penúria e terminadas melancolicamente. Por outro lado, pessoas inclinadas a propalar levianamente aos quatro ventos possíveis encarnações em posições de relevo social, político, religioso ou artístico estão provavelmente desequilibradas ou desarmonizadas e confusas. Nunca devemos esquecer, contudo, que se vivemos muitas existências encadeadas – e isto é estritamente verdadeiro –, e no passado viveram, tanto quanto vivem hoje, personalidades que se destacam no contexto humano, não é impossível que algumas daquelas personalidades sejam, aqui e ali, identificadas em alguém reencarnado.

Vejam só, as palavras que Luciano dos Anjos põe na boca de Hermínio, este declara não serem de sua autoria. Tratar-se-ia da opinião de terceiros, com as quais não concorda de forma alguma!

A questão mais embaraçosa, no que se refere a possibilidade de uma boa análise da obra, são os relatos conflituosos de Hermínio e de Luciano, vários deles apresentados durante o estudo. Não encontramos explicação satisfatória para tal ocorrência. A possibilidade mais viável que podemos aventar seria a existência de reuniões que um ou outro “esqueceu” de narrar. Isso traz sérias implicações na confiabilidade do relato e dificulta a avaliação adequada da experiência conjunta. Em alguns diálogos parece que os protagonistas estão a falar de situações somente parecidas, mas em tudo distintas, tamanha é a quantidade de fatos não coincidentes.

Do que foi exposto, fica demonstrado que, na obra em questão, não existem elementos suficientes que permitam falar-se em regressão à vida passada. Se tal fenômeno ocorre, não ocorreu no episódio analisado. Os defensores da teoria ficam em débito: devem apresentar experiências que exibam ocorrências seguras de lembranças pretéritas. Até o presente, o que podemos dizer é que as supostas lembranças são resultante de elaborações de mentais sob sugestão hipnótica, ou seja, fantasiosas.

A pretensa capacidade de Luciano dos Anjos em reconhecer espíritos, cujos fundamentos teóricos são pobres, constitui assunto não diretamente ligado ao tema principal da obra, mas que mostra o muito de empolgação e pouco de espírito científico suas cogitações apresentam.

Mais poderia ser dito: o material que Hermínio Miranda produziu enseja trabalho que comportaria páginas e mais páginas de avaliações. O que mostra que o dedicado escritor, mesmo levando-se em conta os equívocos aqui apontados, é um gigante no estudo e na pesquisa. Como finalização e complementação do presente estudo, apresentamos texto, escrito por Luciano dos Anjos, em que o autor noticia como reconheceu a identidade de André Luiz. Neste artigo inserimos, entre colchetes e destacado na cor vermelha, comentários de nossa lavra.Moizés Montalvã[email protected]

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_________________________________ O VERDADEIRO ANDRÉ LUIZLUCIANO DOS ANJOS

“Em 19.5.04, distribuí texto pela internet sobre o espírito André Luiz, mostrando-lhe os olhos e informando que o médium Waldo Vieira identificara para um amigo dele (e meu) quem era realmente o famoso médico carioca.

[neste caso, não foi Chico Xavier quem noticiou a identidade de um de seus mentores! Parece-nos que a pontinha de um problema começa a surgir...]

Naquele texto, voltei a explicar que, no início da década de 70, após extenuante pesquisa com 286 médicos desencarnados de 1926 a 1936 (68 foram categoricamente de doenças ou cirurgias gastro-intestinais), eu houvera chegado ao verdadeiro nome, que nada tem a ver com Carlos Chagas, Miguel Couto, Osvaldo Cruz ou Francisco de Castro, os mais citados. O médium Francisco Cândido Xavier me confirmara o nome, mas considerou que a identidade deveria ser mantida em segredo.

[aqui pode-se considerar outra suposição: Chico Xavier não se sentiu confortável ante a “revelação” de Waldo Vieira, porém não quis entrar em atrito com quem, na época, era seu amigo. Preferiu digerir a notícia e não fazer alarde, esperando que morresse quieta]

[A fragilidade maior nesta “identificação” está em aceitar-se, sem discussões, que Waldo Vieira seria habilitado – não se sabe como, nem por que, nem por quem − para reconhecer quem fora André Luiz. Ainda não estamos levando em conta a probabilidade de que tal personagem seja meramente criação da fantasia de Chico Xavier, mas preferimos deixar o desenvolvimento dessa idéia para outro trabalho...]

Durante minhas pesquisas aconteceu o menos esperado: a família soube dos meus passos e me procurou. Percebi então que o Chico tinha razão quanto a sermos cautelosos e disse àqueles familiares – que já sabiam de tudo – que, de minha parte, o público ainda nada saberia.

Guardei esse segredo até a recente distribuição do texto pela internet, quando divulguei junto os olhos de André Luiz, receoso de que a revelação do Waldo se espalhasse sem mais controle. Agora porém tudo mudou e não vejo mais motivo para qualquer reserva. Pretendo contar tudo e até publicar minha pesquisa em livro, pois não sei quem conheça mais detalhes dessa história do que eu; não apenas em relação às ponderações do Chico, mas também relativamente à conversa que tive com a família de André Luiz.

A pessoa a quem o Waldo passou a informação é meu amigo, Osmar Ramos Filho. Ele é o autor da extraordinária obra O Avesso de um Balzac Contemporâneo, análise de amplo espectro do livro Cristo Espera por Ti, de Honoré Balzac, psicografado pelo Waldo Vieira. Um estudo notável de corroboração da mediunidade do Waldo. Acertei com o Osmar que continuaríamos mantendo segredo, transferindo para meu filho Luciano dos Anjos Filho o encargo de fazer a identificação pública, quando as circunstâncias se mostrassem propícias, isto é, ao tempo em que a conduta terrena de André Luiz, narrada em Nosso Lar, pudesse ser melhor assimilada pelos descendentes.

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Por que meu novo posicionamento? Afirmei certa vez que, após a precisão da minha pesquisa, o Chico havia passado para o Newton Boechat a identificação correta. Eles eram muito amigos, muito ligados. A atitude do Chico, portanto, nunca me surpreendeu, especialmente ao constatar que eu já havia chegado ao nome certo. Em qualquer circunstância acabaria ali o mistério. E – confesso hoje mais claramente – eu sabia que o Boechat sabia, pois a respeito disso conversamos várias vezes, sempre sem nenhuma testemunha.

Ocorre que o Newton Boechat achou por bem abrir uma exceção e estendeu a identificação, também em caráter confidencial, a uma outra pessoa. E esta, por motivos que ignoro, recentemente repassou a informação para mais alguém, num lamentável e inconseqüente deslize verbal.. Bem, agora já se trata de segredo condominial. Estão querendo inclusive publicar um livro sobre a vida do verdadeiro André Luiz. Já tem até editora. A intenção é temerária, porque nem sabem da conversa que tive com os familiares. O levantamento dos dados está sendo feito às pressas e em sigilo, naturalmente para parecer que a identificação já era conhecida antes de mim. Como não sou tão ingênuo como os mais ingênuos supõem, estou agora abortando essa esperteza.

Já relembrei que desde o início da década de 70 divulguei na imprensa, por mais de uma vez, minha pesquisa, embora sem revelar o resultado final. Não seria, pois, tão necessária essa minha decisão de agora, pois ninguém no movimento espírita desconhece meu trabalho.

Mas já apareceu até quem dissesse que foi o ex-presidente de um centro espírita do Méier, aqui no Rio de Janeiro, que me passou o segredo. Lorota de alto vôo e alta envergadura, seja lá de quem for a versão e diante da qual os que me conhecem preferem acreditar que os condores têm medo das alturas.... Ninguém mais além de mim, do Newton Boechat, do Chico e do Waldo (estes dois obviamente) sabiam da verdadeira identidade de André Luiz. Incluo ainda a discreta e amorável Maria Laura Hermida de Salles Gomes (Mariazinha), que se relacionava com uma sobrinha de André Luiz e a qual teve papel importante na conexão com o Chico e o Waldo. Pouco depois, mais aquele amigo do Newton Boechat passou a saber também, em caráter excepcional. Foi ele que, aperaltando assunto tão sério, acabou contando para quem está agora esboçando o livro. Minimizar minha pesquisa fazendo dela fruto de mera informação de um ex-presidente de centro do Méier é denunciar a si mesmo de oportunista, enquanto perambula pelo humorismo barato dos pobres de espírito, na tentativa de ignorar que uma história dessas só é degustável com sal de fruta.

Ora, nesse ritmo, logo outros, muitos outros, todos saberão e, se eu esperasse o tal livro aparecer, ninguém mais deixaria de saber, com todos os holofotes em quem tomou o bonde andando. Eis por que, nesta data, me antecipo e universalizo o segredo.

FAUSTINO ESPOSEL

André Luiz é Faustino Esposel.Faustino Monteiro Esposel nasceu na rua dos Araújos nº 10, bairro do Engenho Velho, cidade do Rio de Janeiro (registro 1469), em 10.8.1888. Desencarnou no Rio de Janeiro,

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às 17 horas de 16.9.1931, residindo então na rua Martins Ferreira nº 23, no bairro nobre de Botafogo.

Era filho de João Paiva dos Anjos Esposel e de Maria Joaquina Monteiro (filha secundária).

[o que seria “filha secundária”?]

Ele [João Paiva] nasceu no Rio de Janeiro, conforme registro de batismo feito em 29.5.1847 (B. 2.8), na Capela Imperial (registro 1,128) (hoje Catedral Metropolitana, na avenida Chile). Desencarnou de tísica, no Rio de Janeiro, em Irajá, em 1º.5.1900, sendo sepultado no carneiro CP 1814 quadra 39 do cemitério de São João Batista. Foi a mulher dele, Maria Joaquina Monteiro, quem mandou fazer a sepultura. Ela desencarnou no Engenho Velho, no Rio de Janeiro, em 29.9.1910, portanto, dez anos depois dele. Casados no Engenho Velho, Rio de Janeiro (registro nº 6º, 35), em 7.12.1871.João Paiva dos Anjos Esposel e Maria Joaquina Monteiro tiveram os seguintes filhos:

1. Oscar Monteiro Esposel, nascido no Engenho Velho, Rio de Janeiro (registro 8º 73). Casado com Orminda Monteiro Esposel. Moravam na rua Bambina (estou omitindo o número de propósito). Seu filho, Léo Esposel, em 1974 estava casado com Maria de Lourdes Ribeiro Esposel. Tinha também duas filhas, Lívia Monteiro Esposel, que morava em 1974 na praia do Flamengo (idem, idem), e Ida Esposel Neves. Orminda nasceu em 1902, no Rio de Janeiro, tendo desencarnado em novembro de 1978, quando morava na praia do Flamengo. Oscar e Orminda tinham sete netos (Luiz, Francisco, Nélida, Consuelo, Maria Cristina, Mônica e Patrícia) e sete bisnetos (Marcos André, Guilherme, Marcelo, Ricardo, Luciana, Márcia, Camila).2. Noêmia Monteiro Esposel, nascida no Engenho Velho, Rio de Janeiro (registro 10º v.).3. Mário Monteiro Esposel, nascido no Engenho Velho, Rio de Janeiro (registro 11º, 64). Era almirante. Em 1975 morava na rua Prudente de Morais (idem, idem).4. Adolfo Monteiro Esposel, nascido no Engenho Velho, no Rio de Janeiro, em 30.11.1885.

Desencarnou com apenas quatro meses, no Rio de Janeiro, em 13.4.1886, na rua dos Araújos nº 10, tendo sido sepultado no cemitério do Caju (4m.B.d.). (Em Nosso Lar aparece como menina, mas na verdade era um menino. Quando desencarnou, em 1886, Faustino ainda não era nascido, o que só vai acontecer dois anos depois, em 1888. André Luiz deslocou o acontecimento para depois do nascimento dele, quando ele era “pequenino”.)

[dois erros de “André Luiz”: identificar incorretamente o sexo do irmão falecido e situá-lo num período posterior à sua morte.]

5. Carlos Monteiro Esposel, nascido no Engenho Velho, Rio de Janeiro (registro 12º 4v). Em 1974 morava na rua São Salvador (idem, idem). Mudou-se depois para a rua Paissandu (idem, idem). Acabou indo morar em Santa Catarina.6. Faustino Monteiro Esposel.

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Eram avós paternos de Faustino Esposel: José Maria dos Anjos Esposel e Margarida Maria; e avós maternos: Isidro Borges Monteiro (desembargador) e Paulina Luísa de Jesus.

João Paiva dos Anjos Esposel, pai do Faustino, tinha um irmão chamado Joaquim Maria dos Anjos Esposel (1842-1897), casado com Maria José de Barros Carvalho (filha de Delfim Carlos de Carvalho, barão da Passagem, herói da primeira guerra do Paraguai, e de Ana Elisa de Mariz e Barros, filha do visconde de Inhaúma). O casamento foi celebrado na igreja de São José. Tiveram quatro filhos:

1. Alice Esposel (casada com Andrônico Tupinambá).2. Dulce Esposel (casada primeiro com Sabino Elói Pessoa e, em segundas núpcias, com Joaquim Bernardo da Cruz Secco).3. Eponina Esposel (casada com Alberto de Costa Rodrigues).4. Delfina Esposel.(Há uma rua no Rio de Janeiro chamada Joaquim Esposel.)

Faustino Esposel tinha muitos sobrinhos, dentre os quais Lívia Monteiro Esposel, Elza, Ida Esposel Neves, Lúcia (residente no Rio de Janeiro) e Léo, casado com Maria de Lourdes Ribeiro Esposel. E sobrinhos-netos: Élcio (almirante), Carlos, Ronaldo (morava em 1974 na rua Prudente de Moraes, era comerciante de couro, casacos de couro, ligado ao Jockey Club Brasileiro). Todos pessoas de bem.

Outros parentes: Laís de Niemeyer Esposel, residente em 1974 na av. Vieira Souto, desencarnada em fevereiro de 1994; Jayme Carneiro de Campos Esposel, residente em 1974 na estrada do Joá, era capitão de fragata quando comandou o contratorpedeiro Ajurieda, de 16.10.56 a 29.11.1957; Marcello, residente em 1974 na rua Cândido Mendes. Nomes de respeitabilidade entre os que os conhecem.

Faustino Esposel

[este seria o imaginado André Luiz]

casou com Odette Portugal Esposel, conhecida por Detinha. Era filha do médico José Teixeira Portugal, desencarnado em 1931. Ela desencarnou em fevereiro de 1978. A missa foi rezada no dia 13 daquele mês, na igreja de Santa Margarida Maria, na Lagoa. Irmãs da Odette Portugal Esposel: viúva Gumercindo Loretti e Olga Portugal, casada com Artur Machado Castro. Sobrinhos: Lygia, Regina e Jorge C. Dodsworth.Faustino Monteiro Esposel e Odette Portugal Esposel moravam na rua Martins Ferreira nº 23, em Botafogo, cidade do Rio de Janeiro. Em 1975 estava instalada naquele local a Associação Educacional Católica do Brasil, instituição mais tarde transformada numa creche, dirigida por três senhoras que ali residem até hoje (2005). O atual porteiro se chama “coincidentemente” André Luiz...

Faustino Esposel nasceu na capital federal, no dia 24 de outubro de 1888. Era professor substituto da seção de neurologia e psiquiatria da Faculdade de Medicina e reputado clínico, catedrático de neurologia na Faculdade Fluminense de Medicina. Foi ainda chefe do serviço da Policlínica de Botafogo e do Sanatório de Botafogo e médico da Associação dos Empregados do Comércio. E era também sanitarista, portador por

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concurso do título de docente de higiene da Escola Normal do Rio de Janeiro, na qual foi continuamente encarregado de cursos complementares. Fez os estudos primários na Escola Alemã, conhecia profundamente o idioma germânico, cursou durante alguns anos o externato Mosteiro de São Bento. Formou-se em 1910 em farmácia e em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde defendeu tese sobre “Arteriosclerose cerebral”, em que recebeu a nota de distinção.

Durante o curso acadêmico, foi adido dos serviços clínicos da 7ª e da 18ª enfermarias da Santa Casa da Misericórdia, chefiadas respectivamente pelos mestres Miguel Couto e Paes Leme. Ainda nessa época, exerceu o internato oficial da Clínica Pediátrica dos professores Barata Ribeiro e Simões Corrêa.

Pouco após a formatura, candidatou-se a médico da Assistência de Alienados do Rio de Janeiro, classificando-se em primeiro lugar, pelo que foi nomeado assistente do Hospital Nacional de Alienados. Chegou a titular de livre docente da Faculdade de Medicina, exercendo ali o cargo de professor substituto de neurologia e psiquiatria. Nessa condição teve ensejo de integrar diversas bancas examinadoras de teses de doutoramento.Foi ainda interno e assistente da clínica neurológica e médico adjunto do Hospital da Misericórdia. Deixou muitos trabalhos publicados sobre a especialidade, o que lhe permitiu ingressar em várias sociedades científicas nacionais e estrangeiras. Em 1918 fez parte da missão médica brasileira que foi à Europa durante a I Grande Guerra. Como representante do Brasil participou de vários congressos na Europa e na América do Sul. Foi organizador e secretário geral da Segunda Conferência Latino-Americana de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal. Sobre a epidemia de gripe no Hospital Brasileiro em Paris, apresentou em 1919 substancioso relatório ao chefe da Missão Médica Brasileira. Recebeu honroso diploma do curso oficial de Pierre-Marie, assinado por este famoso professor e pelo decano da Faculdade de Paris, professor Roger.

Durante o impedimento do professor Antônio Austregésilo, catedrático de Clínica Neurológica (foi eleito para o Congresso Nacional), Faustino Esposel exerceu com brilho aquela função, conquistando grande renome como didata. Conseguiu elevado prestígio entre os seus colegas, gozando de justo renome no meio social da época. Aficionado dos esportes, criou grande círculo de amizades nas rodas desportivas, em época em que o futebol não era unanimidade nas elites do país.

Faustino Esposel desencarnou na capital federal, às 17 horas do dia 16 de setembro de 1931, com 42 anos 10 meses e 22 dias.

[todo este detalhamento, será com o fito de conceder maior autenticidade ao que o autor defende? Parece-me que sim]

O sepultamento foi numa quinta-feira, no dia 17, às 16:30h, no cemitério de São João Batista. O corpo saiu da residência. Missa de 7º dia foi celebrada em 23.9.31, às 10 horas, na igreja da Candelária.

Antônio Austregésilo, amigo de infância, assinou o atestado de óbito, nele fazendo constar, como causa da morte, apenas uremia. Era portador de uma nefrite crônica. Entretanto, os familiares sabiam e alguns descendentes vivos sabem que ele desencarnou de câncer,

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[êpa! Parece afirmação temerária, vejam só: o médico teria mentido no laudo, a fim de ocultar a verdadeira causa mortis, que, no entanto, foi noticiado pelo médium Chico Xavier em “Nosso Lar”! Isto parece o caso de forçar a realidade a adaptar-se à teoria.]

o que foi omitido por todos os jornais da época, que apenas mencionaram, como era praxe nesses casos, “a violência da súbita enfermidade que o acometeu” sendo “todos os esforços impotentes no combate ao mal insidioso” (Diário de Notícias, 17.9.31); ou “acometido de moléstia aguda, que sobreveio inesperadamente” (Jornal do Commércio, 17.9.31). Quando do falecimento, o amigo Antônio Austregésilo fez um panegírico, inserido em Arquivo Brasileiro de Medicina, nº 8, de 1931 (Biblioteca Nacional).

Em 29.9.1927, Faustino Esposel inscreveu-se à vaga aberta na Academia Nacional de Medicina decorrente da passagem de Teófilo de Almeida Torres, membro titular da Seção de Medicina Geral, para a classe dos Membros Titulares Honorários. Apresentou juntamente com os seus trabalhos a memória intitulada “Em torno do sinal de Babinsky”. Aprovado, a eleição teve lugar em 17.11.1927 e a cerimônia de posse na sessão de 24.5.1928, sob a presidência do acadêmico Miguel Couto, que designou os acadêmicos Antônio Austregésilo e J. E. da Silva Araújo para acompanhar o novo acadêmico ao recinto. Fez-lhe a saudação de paraninfo o acadêmico Joaquim Moreira da Fonseca. Com o seu falecimento, sua poltrona passou a ser ocupada pelo acadêmico Odilon Gallotti, eleito em 23.6.32 e empossado em sessão de 25.6.36.

Na sessão de 30.6.32 a Academia promoveu uma homenagem a Faustino Esposel, discursando na ocasião o orador oficial Alfredo Nascimento.

Tenho em meus arquivos todos os discursos pronunciados naquela instituição. Faustino Esposel era católico.

[seria isso prova de que os católicos também reencarnam?]

Militou na União Católica Brasileira. Foi congregado mariano. Comungava com freqüência, o que era hábito da maioria religiosa daquela época.

Tinha ficha de cadeira cativa do Clube de Regatas do Flamengo, dos anos de 1925 a 1930. Foi presidente do clube no biênio 1920-1922, depois de 1924 a 1927, ano este em que renunciou, assumindo Alberto Borgerth. Em 1928 voltara à presidência, não tendo completado o mandato em virtude da doença. Na assembléia de 23 de dezembro de 1920, quando o presidente já era Faustino Esposel, o Flamengo aprovou o seu novo uniforme, usado até hoje.

Em 1926, os Guinle pediram a devolução do imóvel que estava arrendado ao clube. Fez-se então uma campanha de arrecadação junto ao quadro social para a aquisição de um local próprio. Desde 25 de março de 1925, o presidente Faustino Esposel havia reunido a diretoria comunicando a disposição do então prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Antônio Prado Jr., de ceder uma área de mais de 34 mil metros quadrados às margens da lagoa Rodrigo de Freitas. Após negociações que se sucederam com o prefeito Alaor Prata, o presidente Faustino Esposel obteve a desejada área na Gávea.

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O primeiro jogo ali promovido, ainda sem muro e cercado por madeiras, aconteceu sob a presidência de Faustino Esposel, no dia 26 de novembro de 1926, entre a Liga de Amadores de Foot-Ball (São Paulo) e a Association de Amateurs de Argentina. Nesse período, outro conselheiro do clube era Oscar Esposel, irmão de Faustino, que foi quem propôs a inauguração do estádio da Gávea em 15 de novembro de 1938, quando o Flamengo estaria completando 43 anos de fundação. Mas a festa acabou acontecendo antes, no dia 4 de setembro daquele ano com um jogo entre Flamengo e Vasco, vitória vascaína por 2 a 0 que, no entanto, não abafou a alegria rubro-negra, por estar com a nova casa concluída.Entusiasta dos esportes e da educação física, que sempre cultivou, pertenceu a várias associações esportivas em que exerceu cargos técnicos e administrativos e de que foi presidente por diversas vezes, como a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos e a Federação Brasileira de Desportes.

Há dois retratos de Faustino Esposel na sede do Flamengo, na Gávea. Outro, de corpo inteiro, não está, como alguns parentes supunham, no gabinete do Deolindo Couto (de quem foi professor). Constatei que se encontrava no corredor escuro da Faculdade de Medicina, então na praia Vermelha (hoje não existe mais). Existe também um quarto quadro, em que ele está de meio-perfil, na residência da Maria Laura Hermida de Salles Gomes (Mariazinha), em Cambuquira, na rua Getúlio Vargas, 141. Um último registro: Antônio Austregésilo, talvez o maior amigo do Faustino, chegou a presentear Odette com os livros de André Luiz.

Bem, eis o que posso adiantar. Tenho muitas outras informações, mas meu acervo completo só pode ser aberto realmente em livro, dados os comentários e as explicações que o tema exige.

[Então, quem quiser conhecer os melhores argumentos sobre a hipótese sob apreciação, terá de examinar o livro referido, pois, até aqui, tudo o que Luciano dos Anjos apresentou são dados biográficos do falecido, nada que sirva como demonstração de Esposel era André Luiz, ou vice-versa]

Aí então farei a necessária análise comparativa com o livro Nosso Lar e outros da série. Devo salientar desde logo, que André Luiz fez pequenas modificações para despistar o leitor, em obediência à preocupação exposta no prefácio de Emmanuel no sentido de ocultar sua verdadeira identidade, o que ele mesmo reafirma na mensagem de abertura (“Manifestamo-nos, junto a vós outros, no anonimato que obedece à caridade fraternal.”)

[explicação ad hoc]

Mas, num único ponto essa modificação não foi pequena, ou melhor, foi radical: a família deixada na terra. Na verdade, Faustino Esposel não deixou filhos. Então, quem são aquelas pessoas referidas no livro? Segundo explicação do Chico, apresentada desde 1975, são todos membros de uma família de que o Faustino era membro em encarnação anterior.

[Pois é, assim fica fácil “explicar” qualquer coisa!]

A fim de ilustrar os ensinamentos ele foi buscar a situação doméstica no seu passado mais remoto.

Page 113: Análise e crítica do livro eu sou camille desmoulins

Outros detalhes que posso antecipar:– André Luiz informa que foi assistido na colônia Nosso Lar por um médico chamado Henrique de Luna. Na terra, De Luna (médico, com esse mesmo nome) era contemporâneo de Faustino Esposel.

– André Luiz narra em Nosso Lar que teve quinze anos de clínica. Formado em 1910, consta que a partir da segunda metade da década de 20 ele viveu muito mais para o magistério e trabalhos intelectuais ligados à medicina, além das atividades desportivas.

[“viveu muito mais para o magistério”, mas deixou completamente de clinicar? Pelo escrito depreende-se que não, o que daria mais que os 15 anos relatados por André Luiz. Por isso, torna-se necessária explicação que possa tapar o furo.]

– Luísa, a irmã que André Luiz conta ter desencarnado cedo, quando ele era “pequenino”, na verdade era um irmão (Adolfo Monteiro Esposel), desencarnado com apenas quatro meses, em 1886, dois anos portanto antes de ele nascer.

[outro erro!]

– Quem privou muito da proximidade de Faustino Esposel foi um porteiro que, até meados da década de 70, embora aposentado, ainda costumava freqüentar o Pinel. Disse-me conhecer toda a vida do professor Faustino Esposel, que ele atendia muitos doentes de graça e que era famoso de verdade. A par disso, aludiu a alguns fatos que se ajustam perfeitamente ao que está confessado por ele mesmo nas páginas de Nosso Lar. E confirmou, inclusive, detalhes de comportamento que o próprio André Luiz também não escondeu no livro.”

[bela testemunha, e belas informações... Luciano deve achar que tal testemunho dá a “força” argumentativa de que precisa, a fim de demonstrar que Andre Luiz e Esposel são a mesma pessoa. Mas, além de ter conhecido o Dr. Esposel, parece que o porteiro não dispunha de informe de maior relevância.]

Rio de Janeiro, 1º de julho de 2005LUCIANO DOS [email protected]