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DEBATE DEBATE 1387 1 Departamento de saneamento e saúde ambiental, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480/ 503, Manguinhos. 21041- 210 Rio de Janeiro RJ. [email protected] Análise dos impactos sociais e à saúde de grandes empreendimentos hidrelétricos: lições para uma gestão energética sustentável Analysis of the social and health impacts of large hydroelectric plants: lessons for a sustainable energy management Resumo O objetivo deste estudo foi analisar os impactos à saúde e sociais resultantes da constru- ção dos complexos de Usinas Hidrelétricas de Tu- curuí (Pará, Brasil) e de James Bay (Quebec, Ca- nadá). O método comparativo empregado na aná- lise da revisão bibliográfica visou apontar lições, a partir da experiência nacional e internacional, para uma gestão sustentável de futuros grandes empreendimentos energéticos no Brasil. No estu- do, foi observado um desencadeamento sucessivo de impactos sociais nas categorias de trabalho e renda, educação, saneamento, ambiente físico e cultura, associados aos agravos à saúde como es- tresse, distúrbios nutricionais, distúrbios psicos- sociais, cardiopatias, doenças respiratórias e di- gestivas. As ações mitigadoras e compensatórias foram tardiamente implementadas e visavam reme- diar os efeitos dos impactos negativos. Contudo, mesmo decorridos três décadas, essas ações se mos- traram ineficientes para a resolução de todos os problemas ocasionados à saúde e socioambientais. Palavras-chave Hidrelétrica, Gestão ambiental, Impacto social, Saúde ambiental Abstract The main objective of this study was to analyze the social and health impacts resulting from the construction of the Tucuruí (Pará, Bra- zil) and James Bay (Quebec, Canada) Hydroelec- tric Plants. The comparative method study used in analysis of the literature review revealed les- sons to be learned from the national and interna- tional experience in order to ensure sustainable management of future major energy projects in Brazil. In this study, a successive negative domi- no effect was observed in terms of social impacts on jobs, income, sanitation, and culture, all with associated health problems. These included stress, nutritional and psychosocial disturbances, car- diopathies, as well as respiratory and digestive problems. The actions seeking to mitigate the ef- fects of these negative impacts were slow to be implemented. Moreover, even though three de- cades have elapsed, these actions proved ineffi- cient to resolve all the health and socio-environ- mental problems caused. Key words Hydroelectric plants, Environmen- tal management, Social impact, Environmental health Adriana Renata Sathler de Queiroz 1 Marcelo Motta-Veiga 1

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1387

1 Departamento de

saneamento e saúde

ambiental, Escola Nacional

de Saúde Pública, Fundação

Oswaldo Cruz. Rua

Leopoldo Bulhões 1480/

503, Manguinhos. 21041-

210 Rio de Janeiro RJ.

[email protected]

Análise dos impactos sociais e à saúdede grandes empreendimentos hidrelétricos:lições para uma gestão energética sustentável

Analysis of the social and health impacts of large hydroelectricplants: lessons for a sustainable energy management

Resumo O objetivo deste estudo foi analisar os

impactos à saúde e sociais resultantes da constru-

ção dos complexos de Usinas Hidrelétricas de Tu-

curuí (Pará, Brasil) e de James Bay (Quebec, Ca-

nadá). O método comparativo empregado na aná-

lise da revisão bibliográfica visou apontar lições, a

partir da experiência nacional e internacional,

para uma gestão sustentável de futuros grandes

empreendimentos energéticos no Brasil. No estu-

do, foi observado um desencadeamento sucessivo

de impactos sociais nas categorias de trabalho e

renda, educação, saneamento, ambiente físico e

cultura, associados aos agravos à saúde como es-

tresse, distúrbios nutricionais, distúrbios psicos-

sociais, cardiopatias, doenças respiratórias e di-

gestivas. As ações mitigadoras e compensatórias

foram tardiamente implementadas e visavam reme-

diar os efeitos dos impactos negativos. Contudo,

mesmo decorridos três décadas, essas ações se mos-

traram ineficientes para a resolução de todos os

problemas ocasionados à saúde e socioambientais.

Palavras-chave Hidrelétrica, Gestão ambiental,

Impacto social, Saúde ambiental

Abstract The main objective of this study was to

analyze the social and health impacts resulting

from the construction of the Tucuruí (Pará, Bra-

zil) and James Bay (Quebec, Canada) Hydroelec-

tric Plants. The comparative method study used

in analysis of the literature review revealed les-

sons to be learned from the national and interna-

tional experience in order to ensure sustainable

management of future major energy projects in

Brazil. In this study, a successive negative domi-

no effect was observed in terms of social impacts

on jobs, income, sanitation, and culture, all with

associated health problems. These included stress,

nutritional and psychosocial disturbances, car-

diopathies, as well as respiratory and digestive

problems. The actions seeking to mitigate the ef-

fects of these negative impacts were slow to be

implemented. Moreover, even though three de-

cades have elapsed, these actions proved ineffi-

cient to resolve all the health and socio-environ-

mental problems caused.

Key words Hydroelectric plants, Environmen-

tal management, Social impact, Environmental

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Adriana Renata Sathler de Queiroz 1

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Introdução

Após um longo período de estagnação, o Gover-no Brasileiro tenta incentivar o crescimento eco-nômico, esbarrando num futuro repleto de limi-tações infraestruturais. Historicamente, a ofertade energia é apontada como um dos gargalos aesse crescimento, onde a de origem hidrelétricarepresenta papel significativo. Atualmente, a ge-ração hidráulica corresponde a ¾ da oferta totalde energia elétrica no Brasil.

O Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE2020), recentemente divulgado pela Empresa deProjetos Energéticos (EPE), estima que nos pró-ximos dez anos, a demanda total de energia de-verá crescer em mais de 60%. Com isso, a capa-cidade instalada nacional passará de 110.000 MWem 2010 para 171.000 MW em 2020, devendo serpriorizadas as fontes de geração renováveis (hi-dráulica, eólica e biomassa).

Grandes empreendimentos hidrelétricos es-tão associados a significativos impactos ambi-entais, sociais e à saúde e têm sua viabilidade atre-lada à obtenção das respectivas licenças ambien-tais. Nos próximos anos, dentro do Programade Aceleração do Crescimento (PAC) estão pre-vistas construções de dezenas de hidrelétricas,grande parte na região amazônica.

Alterações no modo de vida, associadas àinundação de áreas povoadas para formação doreservatório provocam o deslocamento compul-sório e a ruptura social; a mudança no biomacom interferência na cadeia alimentar e a altera-ção nos processos de produção nativa de baseagroextrativista e na caça.

Esses impactos sociais e seus efeitos à saúdenão são considerados na fase do planejamento.Os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) não in-cluem os impactos socioambientais, redundan-do em ações mitigadoras e compensatórias tar-dias e insatisfatórias. Nesse contexto, inviabiliza-se, desde a gestação, a possibilidade de uma ges-tão sustentável desses grandes empreendimen-tos hidrelétricos.

Reconhecendo-se essa lacuna na fase de pla-nejamento, não ser possível prescindir de energiae a existência de uma tendência político-econô-mica de aproveitamento dos recursos hídricospara geração de energia, se faz relevante avaliaros determinantes sociais e os agravos à saúde denovos empreendimentos, a partir das lições“aprendidas” em experiências passadas.

O objetivo deste estudo foi analisar os impac-tos sociais e seus efeitos à saúde das populaçõesatingidas pelas Usinas Hidrelétricas Tucuruí e Ja-

mes Bay, visando apontar lições para a gestão sus-tentável de futuros projetos hidrelétricos no Brasil.Aprender com experiências passadas é um dos maisimportantes instrumentos de prevenção, a fim deevitar que erros anteriores se repitam no futuro.

O processo de investigação se deu medianteuma revisão da literatura dos impactos sociais e àsaúde pós-facto nas hidrelétricas de Tucuruí e deJames Bay. Esse estudo enfatizou os impactos re-lacionados com a população indígena Parakanã,atingida diretamente pela construção da usinahidrelétrica (UHE) Tucuruí; e a população indí-gena Cree, atingida diretamente pela UHE JamesBay. O levantamento desses impactos e das res-pectivas ações para o desenvolvimento regionalconsistiu em comparar a resiliência social e osprocessos de gestão dos impactos sociais.

Impactos da UHE James Bay

A Hidrelétrica James Bay, em Quebec, Cana-dá, consiste em oito barragens no estuário LaGrande com capacidade total de 15.244 MW. Noinício do projeto, em 1971, a área era ocupadapor aproximadamente 6.500 índios Cree, 5.000índios Inuit e 450 índios Naskapi1.

As inundações para a construção dos reser-vatórios foram superiores a 11.000 km2 e atingiuos Cree que estavam a montante e impactandoem menor escala os Inuit a jusante. James Bay seiniciou sem o Estudo de Impacto Ambiental (EIA)e sem levar em consideração os povos residentesna área afetada2.

Os Cree tiveram papel central em forçar umagestão participativa. Ao tomar conhecimento doprojeto, líderes Cree iniciaram uma série de ma-nifestações políticas, aliando-se a grupos ambi-entalistas e à comunidade científica para se opo-rem à construção2-4.

Iniciou-se uma longa disputa jurídica, resul-tando na criação de acordos que visavam definircritérios para a ocupação e o uso das terras, coma inclusão no processo decisório das comunida-des indígenas Cree, Inuit e Kativik. O acordo “The

James Bay and Northern Quebec Agreement”(JBNQA) foi pioneiro e se tornou um marco nasquestões de ocupação e uso das terras e da distri-buição dos royalties2,5.

Através do JBNQA, os povos Cree e Inuitganharam compensações financeiras e direitossobre suas terras, negociaram um plano de au-tonomia regional à saúde, serviços sociais, edu-cação e proteção ambiental6.

A avaliação do impacto social é parte do pro-cesso de avaliação ambiental canadense. O esco-

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po do EIA no JBNQA estabeleceu que os gover-nos responsáveis e as agências criadas devessemlevar em “consideração”, uma série de princípiosque incluíam a proteção da caça e da pesca, amitigação dos impactos negativos ambientais esociais sobre os povos indígenas e as comunida-des nativas, bem como proteger o ecossistema9.No entanto, não garantiu uma avaliação ade-quada desses impactos visto que os estudos apre-sentam limitações no que tange às economias desubsistência2.

O JBNQA representou a forma como os ín-dios Cree “demonstraram claramente como umpovo de caça pode proceder para definir o seupróprio futuro”. Entretanto, o desenvolvimentoindustrial na região ameaçou o futuro da caça, e,os descumprimentos das obrigações estabeleci-das no acordo pelo governo de Quebec, agrava-ram os conflitos demonstrando que o acordonão era suficiente para evitar os problemas so-cioambientais5,7-10.

O JBNQA permitiu o controle institucionalde políticas sociais pelos índios Cree que se orga-nizaram socialmente para resolver os problemascoletivos e com isto consolidaram lideranças edesenvolveram sua capacidade de autonomiafrente aos projetos desenvolvimentistas. Contu-do, essa autonomia se apresentou como ambí-gua junto ao governo de Quebec. A efetiva inclu-são dos nativos no sistema decisório gerou umaimagem positiva à província. Mas, não conse-guiu cultivar uma relação baseada na coopera-ção entre o governo e as lideranças indígenas5,11.

Esse processo de adaptação às mudanças ede participação política se deu diante de subse-quentes inundações, deslocamentos e dos conse-cutivos impactos cumulativos (abuso de álcool edroga, depressão, suicídio, violência, acultura-ção, etc.) que obrigava os nativos a repetidos eamplos ajustes no seu modo de vida na floresta.

Essa adaptação dos índios Cree às mudançasambientais ocorreu durante a crise no mercadode pele de animais de 1960 até 1983, quando aexportação de pele animal foi proibida. O pro-grama de renda garantiu direitos de caça territo-rial para consumo próprio, reforçando a pro-dução de subsistência para aqueles que passa-vam longos períodos na floresta8, preservandouma matriz de valores e práticas culturais de épo-cas anteriores12,13.

Apesar da resiliência dos índios Cree às mu-danças ambientais e do aporte político criado aoenfrentamento dos problemas socioambientais,as consequências dos impactos negativos em suapopulação foram imensos. Os principais impac-

tos foram a desagregação social, associada à rá-pida desintegração do modo de vida tradicional;além dos aspectos de saúde, decorrente das mu-danças sociais sem planejamento, externamenteinduzida pelo processo de urbanização, deriva-dos do grande fluxo migratório e da relocaçãoda comunidade13.

Atualmente, as preocupações com os efeitoscumulativos dos impactos centram-se na saúdedos jovens, principais vítimas das patologias so-ciais; e sobre suas incertezas quanto às escolhaslaborais para a sua subsistência no futuro, umavez que ¾ dos índios Cree não exercem mais ati-vidades de subsistência6,9,14.

Os índios apresentam menor expectativa devida e enfrentam riscos de obesidade e de doen-ças crônicas. A taxa de emprego é 10% abaixo dapopulação não-indígena, todavia, uma série defatores combinados torna a população indígenamais vulnerável à pobreza15.

A contaminação ambiental repercutiu tantona saúde quanto na economia Cree. O medo deintoxicação provocou mudanças na dieta, pas-sando ao consumo de produtos industrializa-dos, relacionando-se com os índices de diabetese obesidade. Essa mudança de hábitos alimenta-res provocou impacto econômico e cultural, alémde não fornecer uma conexão com a cultura euma ligação com a terra16,17.

Os impactos sobre a renda são percebidos naausência de equilíbrio saudável entre modo devida tradicional e a economia dos assalariados.O principal fator de estresse provém do fato deque parte da população não tem acesso aos re-cursos necessários para se adaptar a essa novadinâmica econômica. Os índios excluídos dosprogramas assistencialistas tornaram-se vulne-ráveis, principalmente os idosos11.

Segundo Torrie et al.11, a população Cree, de1970 a 2003 teve redução na taxa de mortalidade,sendo os maiores problemas de saúde na décadade 70 as altas taxas de problemas respiratórios edoenças infecciosas relacionadas às condições sa-nitárias precárias. Na década de 80, houve me-lhorias nas condições sanitárias e a construçãode novas unidades de saúde.

Na década de 90 a mortalidade infantil foireduzida, embora ainda tenha permanecido aci-ma da média de Quebec. Nos anos seguintes, astaxas de mortalidade da população Cree se apro-ximaram das de Quebec, porém as taxas de hos-pitalização continuaram acima da média. A mor-talidade por doenças infecciosas diminuiu e asdoenças respiratórias continuaram acima damédia de Quebec.

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Os índios Cree são as principais vítimas deacidentes automobilísticos. A elevação nas taxasde acidentes fatais coincidiu com o uso de álcool eo aumento na aquisição de carros devido às con-dições de renda assalariada (43% dos acidentesfatais estavam relacionados ao abuso de álcool).

A presença de diabetes surgiu nas últimas duasdécadas, não sendo documentados casos da doen-ça antes de 1975. A taxa de prevalência de diabetesem adultos passou de 1,9% para 13% no períodode 1983 a 2003. Esses valores são quatro vezes amédia nacional e provincial. Nos Cree, 43% doscasos estavam com menos de 40 anos. A obesidadecorresponde a 60% da população Cree, o que estáassociado à mudança nos padrões de vida.

As taxas de hospitalização por doenças circu-latórias e cardiovasculares da população Cree têmaumentado ao longo do tempo e são similares àstaxas de Quebec. A prevalência de hipertensãoarterial na população Cree é maior do que as ta-xas de Quebec. A taxa de mortalidade por câncerna região Cree permaneceu abaixo da média deQuebec. As doenças sexualmente transmitidasforam elevadas. Problemas psicossociais foramrelatados, já na década de 80, tais como violênciafamiliar, depressão e suicídio, sendo atribuídosao estresse associado à aculturação, ao desem-prego e ao abuso de álcool. Esses dados revelamos efeitos a longo prazo dos impactos que aco-metem, principalmente, as novas gerações.

A incompatibilidade da carga horária de tra-balho assalariado com as demandas de caça desubsistência associada ao baixo índice de contra-tação de trabalhadores indígenas cujas barreirasdemonstram os entraves relacionados à forma-ção, à educação, à experiência, a diferenças cultu-rais e de estilo de vida. A instabilidade social e seusdeterminantes são os principais responsáveis peloagravamento da saúde relacionados com fatoresambientais.

A legislação canadense institui que os estudosde impacto ambiental abranjam o conhecimentocientifico antecipado dos impactos sociais negati-vos na fase de planejamento do empreendimen-to. No entanto, na prática, o conhecimento dasciências sociais no processo de avaliação de im-pacto, muitas vezes tende a ser ignorado6,13.

Grande parte da pesquisa de impacto socialrealizada para a Avaliação de Impacto Ambientalnunca foi considerada pelo proponente, Hydro-Quebec, tornando sua avaliação em grande par-te inútil. Atualmente, as decisões políticas e ope-racionais no desenvolvimento de projetos hidre-létricos devem contemplar a avaliação de impac-to socioambiental13.

Impactos da UHE Tucuruí

A UHE Tucuruí foi construída para atender ademanda de energia elétrica de diversos estados ede empreendimentos industriais. Tucuruí iniciouem 1975 tendo uma capacidade de geração de8.370 MW e um lago artificial de 2.917 km2 18.

Tucuruí responde por 70% da energia elétricaproduzida na Região Norte e 6% do Brasil e suaárea de influência abrange diversos municípios.As principais atividades econômicas desenvolvi-das na região eram o extrativismo vegetal e a pe-cuária19.

Os estudos de viabilidade técnica e econômi-ca foram concluídos em 1974 pelo ConsórcioEngevix-Ecotec. A avaliação socioeconômica ca-racterizou-se pelos aspectos que influenciariamna construção da usina, ou seja, as remoções dosocupantes das áreas necessárias ao projeto parafins indenizatórios. Os impactos socioambien-tais tiveram um papel mínimo no processo deci-sório da construção de Tucuruí, que se baseou,principalmente, nos benefícios financeiros20.

O primeiro levantamento das alterações soci-oambientais só foi feito em 1977 e recomendavaque a Eletronorte firmasse convênios com insti-tuições de pesquisa para a realização de estudosambientais. Mais tarde, alguns desses estudos fo-ram transformados em Programas Ambientais18.

Em 1998, foram apresentados ao órgão li-cenciador propostas de programas de mitigaçãoe compensação dos impactos. A renovação dalicença de operação está condicionada à avalia-ção dos programas ambientais implementados.Os impactos de Tucuruí foram significativos tan-to a montante quanto a jusante da barragem. Adiferença dos impactos está no tratamento dasações mitigadoras e compensatórias.

A Lei n.º 7.990/89 instituiu a compensaçãofinanceira pela utilização dos recursos hídricos,com critérios de repartição baseado na propor-ção da área alagada20.

A área total inundada correspondeu a 3.513km2 ou duas vezes o que foi projetado no estudode viabilidade, uma área de inundação de 1.630km2 18,19.

A Eletronorte atribuiu esta imprecisão no di-mensionamento das áreas inundadas à falta detecnologia, sendo este um ponto de conflitos nosdireitos compensatórios das áreas impactadasnão alagadas, como é o caso da área de influên-cia à jusante. Em 2010, esses percentuais foramhomologados em sentença judicial (Tabela 1).

Em Tucuruí a economia das vilas a jusante dabarragem foi destruída, criando, entre a popula-

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ção do baixo rio Tocantins, uma hostilidade qua-se unânime contra a Eletronorte.

Ainda em 1991, o Tribunal Internacional dasÁguas condenou o governo brasileiro pelos im-pactos de Tucuruí, colocando o Brasil no foco daatenção mundial sobre a existência de um pa-drão subjacente de problemas sociais e ambien-tais causados por este empreendimento. Aindaassim, o empreendimento Tucuruí II foi aprova-do sem a elaboração de RIMA, que só foi feitoem 1998 por ocasião da liberação de verbas paraa construção21.

O Pará obteve aumento da população abai-xo da linha da pobreza em mais de 237 mil pes-soas em 2009. Em relação à área de influência daUHE Tucuruí, a incidência de pobreza é a maisalta nos municípios a jusante (Tabela 2)22.

O Pará registrou a maior elevação na taxa dedesocupação passando de 5,36%, em 2008, para8,51%, em 2009. Em 1991 a taxa de desocupaçãono município de Tucuruí era de 6,34%, saltandopara 16,93% em 2000. A população urbana erade 46.014 em 1991, a rural 35.609. Em 2007, hou-ve crescimento da urbana para 85.426, enquantoque a rural decresceu a partir de 1991, chegandoem 2007 a 3.83822.

Entre 1991 e 2000, houve uma migração docampo à cidade, provavelmente pelos efeitos dastransformações territoriais de ocupação e de usoocorridas no entorno da UHE Tucuruí. Entre1993 e 2007, a taxa incidência de tuberculose apre-sentou variação negativa de 4,8%. O Pará possui19 municípios prioritários à hanseníase, sendoque no período de 1990 a 2008, a taxa de detecçãode hanseníase decresceu23.

Quanto às ilhas do lago de Tucuruí o quadrode saúde é delicado. A maioria dos municípiosnão possui saneamento. A água é retirada dire-tamente do lago para consumo humano24.

O abastecimento de água da maior parte dapopulação provém de poços com armazenamen-to em caixas d´água, aumentando o risco da pro-liferação de dengue25.

O status quo dos Parakanã que ocupam a re-gião atingida pela UHE de Tucuruí foi retratadono relatório de atividades do Programa Paraka-nã (PROPKN), apresentado a seguir.

A inundação para construção de UHE Tucu-ruí provocou a remoção de aldeias, relocadas noassentamento chamado de “loteamento Paraka-nã”. Essa construção, só não representou umaameaça maior à sobrevivência dos Parakanã,porque eles já tinham certo grau de adaptação.

Município

Breu Branco

Goionésia do Pará

Itupiranga

Jacundá

Marabá

Nova Ipixuna

Novo Repartimento

Tucuruí

Tabela 1. Novos percentuais das áreas inundadas

pelos reservatórios da UHE Tucuruí nos municípios

do Estado do Pará

ÁreaInundada

(km2)

238,33

546,18

154,90

342,48

43,57

124,91

1441,30

621,62

ÁreaInundada

(%)

6,78

15,55

4,41

9,75

1,24

3,56

41,02

17,69

Fonte: ANEEL, 201020.

Região UHE Tucuruí

Montante

Jusante

Municípios

Breu Branco

Goionesia do Pará

Itupiranga

Jacundá

Marabá

Nova Ipixuna

Novo Repartimento

Tucuruí

Baião

Cametá

Igaparé-Miri

Mocajuba

Limoeiro do Aracaju

Incidência de pobreza (%)

40,86

46,16

45,43

40,70

42,73

41,61

38,12

32,98

55,71

52,36

53,84

63,33

45,35

Tabela 2. incidência da pobreza dos municípios impactados pela UHE Tucuruí

Fonte: IBGE. Mapa da Pobreza e Desigualdade, 200322.

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Apesar das alterações no processo de saúde-do-ença, houve crescimento populacional de 5%26.

O mais importante grupo de doenças são asrespiratórias agudas. Outro destaque foram asdermatológicas e as diarreicas que estão associa-das ao banho no rio. Não houve caso confirma-do de tuberculose e de hipertensão arterial. Pro-blemas de ordem psicossocial, tais como depres-são e distúrbios comportamentais têm sido re-gistrados.

A presença de carros nas aldeias contribuiupara as taxas de acidentes. Doenças como Equi-nococose, Neotropical e Leischmaniose devido àconvivência dos Parakanã com cachorros cha-mam a atenção.

A malária é um importante problema de saú-de, onde o grupo de risco são crianças de até 10anos. Em virtude do intenso deslocamento entreas aldeias antigas e novas, é possível evidenciar oimpacto que o processo de mudança causou so-bre o quadro epidemiológico da malária. Os anosque apresentaram alta incidência coincidiramcom grande movimentação da população paraformação de novas aldeias.

A educação é diferenciada e específica, onde aalfabetização na língua materna é uma obriga-ção legal. O currículo inclui cursos nas áreas desaúde, educação e produção23.

Lições para uma gestão energética

sustentável no Brasil

Um problema recorrente nos projetos hidre-létricos é a negligência na predição dos impactosindiretos ainda na fase de planejamento27.

O custo social de empreendimentos hidrelé-tricos reflete-se nos indicadores sociais da região,os quais, no caso brasileiro, geralmente já apre-sentam elevados índices de pobreza expressos nostatus quo da educação, saúde, saneamento, ha-bitação e trabalho das áreas afetadas21.

O processo de desapropriação e relocaçãocausam impactos nas atividades de subsistência,sobretudo, para aqueles intimamente ligados àvida ribeirinha com base na agricultura, caça,pesca e extração vegetal. Este processo foi agra-vado pela dinâmica demográfica e social, obser-vada pelo deslocamento migratório das popula-ções atraídas pelo empreendimento18.

As experiências de Tucuruí e James forammarcadas por graves problemas relacionadoscom a população indígena envolvendo grandesdisputas judiciais.

Os impactos, mais específicos que afetaramas populações indígenas foram: pressão antró-

pica sobre as terras indígenas e intensificação dosconflitos entre indígenas, fazendeiros e assenta-dos no entorno; educação inadequada à culturaindígena ocasionando a substituição da línguanativa pelo português; predomínio de doenças eproblemas psicossociais características dos pro-cessos de aculturação como doenças sexualmen-te transmissíveis e de veiculação hídrica, violên-cia, uso de álcool e drogas, tabagismo, desnutri-ção, entre outras28.

A eficácia das ações propostas foram polê-micas e consideradas inadequadas e insuficientespara reparação dos atingidos11. Estudos apon-tam casos de corrupção e a pouca efetividade dasações prometidas29,30.

Na experiência brasileira, a Eletronorte prevêinvestimentos em projetos de incentivo à agricul-tura, melhoria das condições pesqueiras, de sane-amento básico e de comunicação social, além deinvestimentos em infraestrutura social, econômi-ca e em ações de fortalecimento das atividadesprodutivas. Espera-se que essas “novas medidas”produzam níveis diferenciados de cidadania e deconscientização das populações ribeirinhas31.

Contudo, apesar desse otimismo da Eletro-norte, cabe lembrar, que as lições do modelo ge-rencial adotado no Programa de Reassentamen-to em Tucuruí geraram desqualificação política ea descaracterização sociocultural, evidenciada pelaimprevidência técnica e pela ausência de umapolítica negociada com interlocutores socialmentelegitimados32.

Em Tucuruí a maioria dos impactos identifi-cados (Quadro 1) está associada àqueles queocorreram na área inundada, excluindo os mu-nicípios a jusante que sofreram impactos negati-vos e não receberam compensações financeirasem “royalties”18.

Recentemente, a Eletronorte reconheceu aimportância dos impactos à jusante. Desta for-ma, a definição da área diretamente afetada nãodeveria se restringir ao percentual da área inun-dada, apesar da legislação em vigor manter essecritério para distribuição de royalties31.

Tanto em Tucuruí quanto em James Bay, pro-blemas relacionados com a qualidade da águarepercutiram na saúde e no modo de vida dapopulação. Foram observadas altas taxas dedoenças de veiculação hídrica, como diarreia ehepatite, a mortandade de peixes influenciou apiscicultura afetando a economia e subsistênciada população. A contaminação por mercúrio, nocaso de James Bay, foi determinante para a mu-dança dos hábitos alimentares e o aparecimentode distúrbios nutricionais.

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Quadro 1. Impactos Sociais da Usina Hidrelétrica Tucuruí

Impacto

Formação doreservatórioPrevisto áreainundada de 1.630km2; sendo na 1ª fase2.875km2 e na 2a fase2.800 km2, chegandoa 3.513 km2

Qualidade da água

Ictiofauna

DeslocamentocompulsóriopopulacionalInicial de 4.407pessoas chegando a10 mil famílias

PerfilEpidemiológico

InfraestruturaUrbana

Sociedades indígenas

Economia

Efeitos

Isolamento da população ribeirinha no enchimento do reservatório;Compensação financeira para os municípios que tiveram áreas inundadas atravésda Lei dos Royalties, excluindo a jusante;Migração interna, especialmente da população a jusante;Ocupação irregular e desordenada;Conflitos de uso;Ausência de infraestrutura;Praga de mosquitos;Riscos de manifestações de doenças de veiculação hídrica;Alteração da qualidade da água;Perda do sustento e renda;Alagamento de vicinais no período de chuva;Cadeia alimentar contaminada por metil-mercúrio;Dificuldades de deslocamento e acesso a outras áreas e serviços.

Comprometimento do abastecimento de água e alimentos a jusante comconsequente abertura de poços;Degradação da qualidade da água a jusante;Riscos de manifestações de doenças de veiculação hídrica;

Perdas de zonas de pesca a jusante com redução do estoque pesqueiro;Adaptação à pesca artesanal em detrimento dos meios de produção tradicional;

Reassentamento em áreas impróprias (infertilidade dos solos ecomprometimento para a agricultura);Instabilidade econômica;Acampamentos improvisados ou em superlotados imóveis de núcleos urbanos emimplantação;Alto índice de abandono e de comercialização de lotes;Pressão na estrutura fundiária local;Desestruturação da organização econômica e social;Conflitos de interesse emobilização comunitária;Processo de emigração para outras áreas, principalmente para as ilhas.

Proliferação de mosquitos/aumento da incidência de malária;Aumento no risco de metilação do mercúrio e sua introdução na cadeiaalimentar, com intoxicação dos povos ribeirinhos e indígenas da região;Aumento dos riscos de manifestação de doenças de veiculação hídrica;Aumento no risco de aparecimento de novas doenças, inclusive arboviroses;Aumento da incidência de doenças a jusante;

Demanda superior a oferta de serviços sociais básicos;Abandono dos lotes das áreas de reassentamento;

Remanejamento da Comunidade Parakanã;Desestruturação das relações sociais das comunidades indígenas na região deTucuruí;Aumento da incidência de doenças;Pressões sobre as Terras Indígenas.

Geração de empregos;Perda na produção pesqueira;Mudança na estrutura produtiva agroextrativista;Declínio da produção tradicional e estagnação econômica, sobretudo, a jusanteque teve queda da produtividade na extração do cacau nativo e do açaí dasmargens do rio por causa das alterações na qualidade da água;Urbanização desordenada;Pesca comercial no reservatório;Conflito entre pescador artesanal e comercial;Queda de produção nas atividades tradicionais desenvolvidas nas várzeasapontada pelos produtores locais;Conflitos de interesse em decorrência da valorização da terra;Expansão da exploração predatória da madeira;Conflito fundiário

Fonte: La Rovere e Mendes19, Acselrad32

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Desta forma, os novos projetos hidrelétricosdeveriam abranger a análise dos efeitos à saúdehumana provocados pela emissão de poluentes,visando obter parâmetros para a elaboração dasações e a tomada de decisões adequadas. Pararessaltar o descumprimento dessa lição básica,um novo empreendimento hidrelétrico em BeloMonte, também na região amazônica, já recebeua Licença de Instalação sem ter realizado o inven-tário de fontes de poluição33.

Outra lição desconsiderada em Belo Monte,já bastante discutida em Tucuruí, é a imprecisãode números de famílias relocadas. Em Tucuruí,este erro resultou na relocação em áreas impró-prias, inclusive para produção da agricultura,onde houve alto índice de abandono e de comer-cialização de lotes, e processos de emigração paraoutras áreas18.

No caso de Tucuruí ainda não houve soluçãopara as iniquidades cometidas pelas irregulari-dades nos processos de expropriação e compen-sação, cujo passivo social ainda é sinônimo deluta e reivindicações empreitadas pelo Movimentodos Atingidos por Barragens (MAB).

Outra lição aprendida que continua sendonegligenciada é a necessidade da disponibilizaçãoantecipada de infraestrutura em saúde, educaçãoe saneamento para reduzir os efeitos negativos doempreendimento. No caso da AHE de Belo Mon-te está previsto a realização dessas ações durantea implantação do projeto, o que representa umrisco para a eficácia das ações mitigadoras.

Discussão

A construção de grandes barragens modifica o bi-ótopo, antes coexistente em interdependência har-mônica pessoa-ambiente, alterando os ecossiste-mas ribeirinhos. Isto pode ser representado pelanoção de posicionamento e orientação espacial ge-ográfica, essencial para a capacidade adaptativa dapopulação autóctone, sobretudo, a indígena; quecom o desaparecimento dos referenciais espaciaiscostumeiros para a sua orientação local, não raro,gera um sentimento de insegurança inicial que subs-titui o acúmulo de certezas práticas que a popula-ção possuía e que vinha sendo acumulado por sé-culos, passando de geração para geração.

Essa relação ambiental se dá naturalmente,através da complexidade do lócus que é observa-do em longo prazo: enchentes do curso de água;o regime pluviométrico; a variação sazonal; ocomportamento faunístico e a previsibilidade daatividade migratória.

Desvio de rios, edificações e inundações impac-tam o ambiente com tal grandeza que todo o co-nhecimento acumulado durante toda uma exis-tência se desvanece, requerendo da população atin-gida uma súbita adequação à realidade a qual sedepara. A inicialização do processo de readapta-ção, difícil e penoso para os expropriados, e as fa-cilidades aparentes que lhes podem ser ofertadas,destoam dos seus hábitos seculares. Ocorre, então,o estresse situacional, bem como o ocupacional,produzindo um trauma de desocupação, desvalo-rização de sua capacidade de operar com o meio.

A recuperação destes fatores psicossociais atéo patamar de produtividade satisfatória requer:o resgate da capacidade exploratória do meioambiente; a familiarização com todos os fatoresconstituintes e eventuais da ambiência em que,agora, estão reinseridos compulsoriamente; avalorização do conhecimento obtido através doinstinto observacional-experimental usual em seuecossistema familiar anterior; a conquista de umarelação segura com o meio ambiente novo, con-figurado antropicamente pelo povo dominante;a imposição inevitável para a aquisição de umalinguagem idiomática estrangeira, que lhe garan-ta a subsistência; o difícil entendimento do pro-cesso simbólico de uma economia monetária.

A fenomenologia do processo adaptativopara se tornar adequado e eficaz, atingindo umestágio de estilo de vida harmônico com o ambi-ente natural, depende da temporalidade do pro-cesso de ajuste pessoa – ambiente e de fatoresexternos intervenientes.

Tucuruí e James Bay possuem ambientes na-turais com características distintas, porém comorganizações socioculturais que advêm, essenci-almente, da relação adaptativa com o meio físicoe biótico nos quais estão inseridas. Verificou-seno processo de resiliência da população Cree, quecomunidades indígenas que possuem liderançase, culturalmente, estão mais organizadas para oenfrentamento de problemas no nível coletivo,têm melhores condições de implementar estraté-gias para lidar com as adversidades ambientais,impostas por pressões antrópicas, em busca deum equilíbrio ecossistêmico e da preservação domodo de vida.

Outro destaque de reflexão é a obliquidadedos mecanismos regulatórios e processuais parao EIA. Apesar de constar no escopo da avaliaçãoambiental os determinantes antrópicos, os estu-dos, por interesses diversos, são falhos no dimen-sionamento do capital humano e da capacidadeda região em suportar as mudanças ambientaisde repercussão social, uma vez que por conta das

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características ambientais, isoladas dos polos dedesenvolvimento, apresentam recursos rudimen-tares para a subsistência. Desta forma, a qualida-de das ações mitigadoras fica comprometida, re-duzindo o seu potencial reparador do dano.

As lições de James Bay e Tucuruí evidenciamque os impactos ambientais provocam altera-ções sociais de alta repercussão na saúde indivi-dual e coletiva, seja na forma de agravos à saúdeou em consequências econômicas decorrente doscustos das doenças geradas pelos efeitos negati-vos do impacto.

Os agravos à saúde associados aos impactossocioambientais, frequentemente, são determi-nados por abruptas mudanças no modo de vidaonde o indivíduo se depara com situações de frus-tração, medo e incapacidade para lidar com oproblema, diminuindo a sua resiliência.

A lição em destaque neste estudo, é que o co-nhecimento das mudanças ecossistêmicas não ésuficiente para uma ação mitigadora do estressepós-traumático vivenciado pela população im-pactada (uns com mais intensidade do que ou-tros). Embora, teoricamente, seja importante enecessário esse conhecimento para a compreen-são ética e um olhar de sensibilidade psicosso-cial, inspirando ações práticas e satisfatórias parao povo autóctone afetado.

O estado de estresse pós-traumático consti-tui uma resposta retardada ou protraída a umasituação ou evento estressante, de curta ou longaduração, e de natureza excepcionalmente amea-çadora ou catastrófica. O sintoma de mudançade personalidade é o maior dano que o impactopsicossocial pode causar, podendo levar a umasituação de instinto compensatório que na mai-oria das vezes são insuficientes, e gerar ações ia-trogênicas aprofundando a dependência, impli-cando na resiliência coletiva.

Assim, a discussão centrada no processo detransformação e aculturação, por vezes experi-mentado pela população indígena no decorrer dasalterações ambientais causadas pela construçãode grandes projetos hidrelétricos, requer um nívelespecífico de análise de impacto social privilegian-do os fatores psicossociais e antropológicos.

Os impactos sociais e à saúde provocadospelos projetos hidrelétricos James Bay e Tucuruíse assemelham; entretanto, os contrastes maissignificativos observados no estudo dessas duasexperiências se refere aos efeitos positivos da ges-tão coparticipativa da população indígena deQuebec no processo decisório, o que não ocor-reu no caso de Tucuruí.

Com relação ao desenvolvimento regional, oPará tem os piores índices de pobreza revelando

a ineficiência das compensações financeiras emgerar investimentos capazes de produzir riquezae bem-estar da população. As regras atuais quedisciplinam a cobrança de royalties criam nichosde riqueza aparente, e evidenciam a incoerênciaentre os critérios de distribuição para as áreas deinfluência do projeto.

O efeito contextual da riqueza municipal nasaúde ocorre porque municípios mais pobresfornecem piores serviços de saúde, então a qua-lidade dos serviços é uma variável intermediáriaentre o efeito da pobreza municipal e a saúde dapopulação27.

Embora exista um Projeto de Lei para a inclu-são dos municípios situados a jusante, a Lei 9.648/90 determina que os critérios de compensação fi-nanceira se dê pelo percentual de área inundada.

Outras consequências, provenientes das in-formações ambíguas geradas foram: o isolamen-to da população ribeirinha; a dupla realocação,com inundação das áreas nas quais foram reas-sentados os expropriados; migração interna, es-pecialmente da população a jusante acarretandoem ocupação irregular e desordenada, bem comoa ausência de infraestrutura, infestação de mos-quitos e riscos de manifestações de doenças deveiculação hídrica como a diarreia e dermatites,desaparecimento dos peixes, a má qualidade daágua, bem como a queda na produtividade agrí-cola das áreas de várzea, além de mudanças mi-croclimáticas19,34.

Os impactos sociais são bastante evidentesnas populações indígenas Parakanã e Cree. Naexperiência brasileira (Quadro 1), sem recursoslegais e políticos para se posicionar frente às açõesde desenvolvimento criou-se um total estado dedependência, além de uma brusca redução po-pulacional no período de construção da Transa-mazônica e da UHE Tucuruí29,31,35.

Esse quadro só veio a mudar após a implan-tação do PROKN, cujo objetivo principal foi oretorno à autossustentação da comunidade atra-vés de ações nas áreas de saúde, educação, produ-ção agrícola e vigilância dos limites territoriais.No entanto, o status quo dos Parakanã revela queeste processo é lento, implicando em apoios fi-nanceiros até que se atinja o objetivo de sustenta-bilidade. Os diversos impactos sociais não men-surados foram ignorados pelo órgão licenciador,culminando nos impactos à saúde analisados.

As experiências de James Bay e Tucuruí des-critas neste estudo retratam os complexos im-pactos sucessíveis de difícil controle pós facto, prin-cipalmente, em ambientes isolados e com infraes-trutura precária, ressaltando a importância deações preventivas. Contudo, após dezenas de anos

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das experiências negativas de James Bay e de Tu-curí, parece que essas lições ainda não foramaprendidas. Os novos empreendimentos hidrelé-tricos na região amazônica demonstram que oprocesso decisório ainda é norteado, prioritaria-mente, por interesses políticos e econômicos, dan-do pouca ênfase aos aspectos sociais e am-bientais29,31,35.

Conclusão

As experiências descritas neste estudo mostramo desencadeamento sucessivo de impactos, irre-futáveis por negligência na fase do planejamentodo projeto. As ações mitigadoras e compensató-rias implementadas, a fim de remediar os efeitosdos impactos negativos, mostraram-se, ao lon-go de décadas, insuficientes para a solução dosproblemas socioambientais.

O status quo das populações estudadas retra-tam a incapacidade de se controlar os impactoscumulativos e sinergéticos causados pelas hidre-létricas. A defasagem dos índices esperado e real,infere que a vontade política não se debruça nodetalhamento de todas as implicações socioam-bientais envolvendo o planejamento do projetohidrelétrico.

Os programas de cunho assistencialista, finan-ciados por estatais consorciadas com empreitei-ras, se mostram necessários no resgate da autono-

mia e remediação dos impactos. O maior proble-ma é a garantia de continuidade dos programas.

Contudo, o entendimento da relevância doimpacto social para as vertentes de um planeja-mento energético sustentável é o aspecto que maisevoluiu, todavia, a Avaliação Ambiental Integra-da não tem sido feita na sequência e nos moldesem que foi concebida, ou seja, o licenciamento deviabilidade do projeto hidrelétrico é concedidoantes da devida conclusão dos estudos de im-pacto socioambiental.

Logo, a gestão participativa e a conduta éticae imparcial de todos os atores envolvidos no pro-cesso de avaliação e viabilidade do projeto, é umdeterminante para a qualidade da Avaliação deImpacto Ambiental e Social e respectiva eficáciadas ações mitigadoras propostas.

Desenvolver metodologias de gestão partici-pativa para avaliação dos impactos sociais, quepermita mais transparência nos programas e nomonitoramento do desempenho dos indicado-res de forma a identificar a eficiência das açõesrealizadas, contribuindo assim com a AvaliaçãoAmbiental Estratégica, pode ser uma alternativapara a efetiva mitigação dos impactos sociais e àsaúde, atrelados ao desenvolvimento regional.

As experiências dos impactos negativos pro-duzidos pela construção das hidrelétricas de Tu-curuí e de James Bay analisadas neste estudo de-vem ser internalizadas, aprendidas e servir comolições para uma gestão sustentável de futurosgrandes empreendimentos energéticos no Brasil.

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Colaboradores

ARS Queiroz foi responsável pela condução teó-rica e metodológica da pesquisa e trabalhou naelaboração e redação do texto; M Motta-Veigaatuou na orientação e na estruturação teórica emetodológica da pesquisa, bem como na reda-ção final do texto.

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