análise do livro a doçura do mundo

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5-A doçura do mundo 5.1-A autora Thrity Umrigar nasceu em Bombaim (atual Mumbai) e desde os 21 anos mora nos Estados Unidos onde é jornalista e escritora. Quando questionada sobre o motivo de sua escolha dos Estados Unidos como local para a continuação dos estudos superiores, Umrigar dá a seguinte resposta: I've never had an easy answer to that question. In some sense, my whole life prepared me for moving to the U.S. I was a product of an educational system that was very colonial and very Western in its orientation. I still remember my fourth- grade composition teacher telling the class not to create characters who were blond and blue-eyed. Her statement came as a shock because that was all we knew, you know? When I was a child, I read everything ever written by the British children's writer Enid Blyton and later, the Billy Bunter and William series of novels. And as I got older, all I was reading was Western literature. American pop culture was a big influence, also. I mean, until I picked up Salman Rushdie's Midnight's Children, I had hardly ever read a novel by an Indian writer. Rushdie was a revelation for me. 1 Nesta passagem, Thrity Unrigar deixa bem claro que o sistema educacional indiano no qual teve sua formação de base foi um sistema baseado nos princípios educacionais coloniais britânicos implantados na Índia. O testemunho de Umrigar atesta a passagem a seguir, extraída da pesquisa de Marisa Grigoletto sobre a colonização britânica na Índia e seus mecanismos de alteração da cultura local em detrimento de uma valorização européia. Quanto à educação escolar dos indianos, começou, com a intensificação da atuação do governo desde o início do século XIX, um ‘ zelo reformista’ emanando da Inglaterra para a Índia (cf. Brown, 1994, pp. 71-2), com a conseqüente 1 http://www.umrigar.com/

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Autora Thrity Umrigar

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  • 5-A doura do mundo

    5.1-A autora

    Thrity Umrigar nasceu em Bombaim (atual Mumbai) e desde os 21 anos

    mora nos Estados Unidos onde jornalista e escritora. Quando questionada sobre

    o motivo de sua escolha dos Estados Unidos como local para a continuao dos

    estudos superiores, Umrigar d a seguinte resposta:

    I've never had an easy answer to that question. In some sense, my whole life prepared me for moving to the U.S. I was a product of an educational system that was very colonial and very Western in its orientation. I still remember my fourth-grade composition teacher telling the class not to create characters who were blond and blue-eyed. Her statement came as a shock because that was all we knew, you know? When I was a child, I read everything ever written by the British children's writer Enid Blyton and later, the Billy Bunter and William series of novels. And as I got older, all I was reading was Western literature. American pop culture was a big influence, also. I mean, until I picked up Salman Rushdie's Midnight's Children, I had hardly ever read a novel by an Indian writer. Rushdie was a revelation for me.1

    Nesta passagem, Thrity Unrigar deixa bem claro que o sistema

    educacional indiano no qual teve sua formao de base foi um sistema baseado

    nos princpios educacionais coloniais britnicos implantados na ndia. O

    testemunho de Umrigar atesta a passagem a seguir, extrada da pesquisa de Marisa

    Grigoletto sobre a colonizao britnica na ndia e seus mecanismos de alterao

    da cultura local em detrimento de uma valorizao europia.

    Quanto educao escolar dos indianos, comeou, com a intensificao da atuao do governo desde o incio do sculo XIX, um zelo reformista emanando da Inglaterra para a ndia (cf. Brown, 1994, pp. 71-2), com a conseqente

    1 http://www.umrigar.com/

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    produo de textos acerca dos parmetros e caminhos que deveriam ser tomados com o propsito de europeizar o povo colonizado por meio do ensino das cincia e literatura europias, alm dos ensinamentos do cristianismo. O que se pretendia era formar uma elite local europeizada por meio da educao, para que essa elite gradativamente propagasse esses conhecimentos, suas mudanas de comportamento e de valores entre o povo.2

    Pelo depoimento da escritora, parece que o empreendimento colonial foi

    to massivo e intenso que a cultura nacional era soterrada pelos costumes

    europeus a ponto de a literatura indiana ser desconhecida, ou ao menos pouco

    conhecida entre os prprios indianos. Como a literatura inglesa e norte-americana

    eram as literaturas mais difundidas para no dizer obrigatrias, o imaginrio

    indiano ia aos poucos sendo colonizado. As caractersticas europias ganhavam

    importncia e hierarquicamente acabava por serem consideradas superiores, a

    ponto de os personagens das narrativas criadas por Umrigar possurem

    caractersticas fsicas do colonizador ao invs dos grandes olhos negros, cabelos

    negros e tez morena to comum entre os habitantes da ndia.

    Sua reao frente ao pedido da professora de romper com o padro, com

    o que julgava ser o correto, causa um sentimento de estranhamento que

    culminar com seu encontro com a literatura de seu conterrneo Salman Rushdie,

    uma literatura em que a marca principal o encontro entre as culturas

    europias/norte-americana e asiticas, o questionamento do empreendimento

    colonial e a situao ps-colonial dos povos subjugados.

    Thrity Umrigar escreve desde criana. Sobre o ato de escrever, ela diz:

    Writing was my way to make sense of the world outside and inside my home. Despite the recollections of the adults in my life, I don't think I was a terribly articulate child. Writing was a way to give wings to the inchoate emotions and feelings inside of me.

    2 2002: p.68

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    Se a escrita era uma forma de dar sentido ao mundo e despertar emoes e

    sentimentos ocultos, seguramente, a partir de seu encontro com a real situao

    da ndia colonial e ps-colonial nas pginas de seu conterrneo que a consistncia

    de seus sentimentos frente ao mundo que se abria ao seu redor ganha forma em

    suas obras.

    Suas narrativas so densamente condimentadas com os temperos e aromas

    da sua terra natal, mesmo aquelas narrativas em que o pano de fundo no a ndia

    l est. E foi assim, incorporando sua viso crtica no encontro entre

    Europa/E.U.A e ndia, reflexo de sua prpria histria pessoal e de imigrao, j

    que uma indiana, Ph.D. em ingls, que vive nos E.U.A e escreve sobre a ndia,

    que Umrigar produziu os livros: Bombay Time (2001), First Darling of the

    Morning: Selected Memories of an Indian Childhood (2003), The space between

    us (2005) (A distnica entre ns) e If today be sweet (2007) (A doura do mundo)

    e acabou recebendo o prmio Nieman Fellowship da Havard University.

    E ser sua ltima obra, A doura do mundo, a que temos a inteno de

    analisar neste trabalho, sob a luz da discusso terica desenvolvida nos captulos

    anteriores.

    5.2- O mundo s doce quando assim o percebemos

    A obra A doura do mundo possui uma intertextualidade aberta com a obra

    de Omar Khayyam que perpassa desde a primeira pgina at a ltima e as embebe

    com o seu fino vinho da felicidade momentnea. A escolha de Khayyam no

    aleatria nem no sentido de sua obra nem em sua prpria figura. Ghiythuddin

    Abulfath Omar bin Ibrahim Al-Khayymi, nome completo de Khayyam, nasceu e

    morreu em Nishapur, provncia de Khorassam, na Prsia.3 A personagem

    principal, apesar de indiana, parse ou zoroastriana, o que significa ser seguidora

    do sbio persa Zoroastro.

    J no prefcio a autora escolhe o seguinte poema de Khayyam:

    3 KHAYYAM, MCMLXVI: p.13

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    1)Ah, enche a Taa: - de que vale repetir Que clere passa o Tempo sob os nossos Ps? No nascidos no Amanh e falecidos no Ontem, Por que nos afligirmos com eles, se o Hoje pode ser Doce?4

    O poema uma clara declarao doura que o agora pode nos oferecer se

    estivermos abertos a experiment-lo sem nos preocuparmos com o que passou ou

    com o que vir. Afinal, carregamos em ns mesmos os fragmentos do ontem e a

    promessa do amanh atravs das memrias e dos desejos, por isso, devemos viver

    tranquilamente o presente, pois nele, todos os tempos esto contidos.

    O agora to caracterstico de nossas sociedades ps-modernas est

    representado pelo que Zygmunt Bauman chama de instantaneidade, que faz com

    que cada momento parea ter capacidade infinita; e a capacidade infinita significa

    que no h limites ao que pode ser extrado de qualquer momento, por mais breve

    e fugaz que seja.5

    Veremos durante a anlise da obra, como o ensinamento de Omar

    Khayyam de desfrutar o agora, ou melhor, de se permitir viver o agora, se reflete

    da situao em que as personagens se encontram e, de certa forma, resume as

    circunstncias e suas resolues mais saudveis.

    A narrativa inicia-se com a fala de um espectro sobre a coragem e fora da

    personagem principal, Tehmina Sethna. O espectro a alma do marido de

    Tehmina, Rustom Sethna, que a ajudou a ser corajosa e, por isso, parte dele ainda

    vivia com ela. ele quem nos apresenta o enredo da situao e dispara a narrativa

    da ndia aos Estados Unidos.

    Tehmina vivia em Bombaim (atual Mumbai) com seu marido, mas aps

    sua morte, ela viaja para a casa do filho Sorab que vive em Ohio com sua esposa

    Susan, que norte-americana, e seu filho Cavas, o qual chamam de Cookie.

    Com a perda do marido, Tehmina se sente sem sua base, no s porque, a

    maioria das mulheres indianas dependente dos maridos (fruto de seus costumes

    e tradies), como ela demonstra muitas vezes durante a narrativa, que era

    Rustom aquele que tomava as decises, mas tambm porque realmente o amou

    durante a maior parte de sua vida. Em conversa com Susan, ela reflete sobre o que 4 2008: p. 6 5 2001: pp. 144-145

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    sentir saudade e chega concluso que uma dor profunda como se seus

    prprios rgos a trassem, uma vez que, no momento da perda, ela se d conta de

    que tudo o que pensava possuir, na verdade, era partilhado com outra pessoa.6

    Como no se tem essa outra pessoa, no h partilha, logo no se possui

    nada. Esse sentimento de perda total agravado pelo fato de Tehmina estar em

    outro pas e inserida em outra cultura, a qual tem dificuldades de compreender.

    J no incio da narrativa, Themina d provas de seu estranhamento frente

    ao outro e de sua falta de compreenso da cultura alheia. Ela se lembra da

    primeira vez que se encontrou com Susan e reparou em suas mos. Tehmina ficou

    surpresa pelas mos das norte-americanas serem grandes, masculinas e

    abrutalhadas pendiam frouxas junto ao corpo, abertas, relaxadas. Alm do

    olhar aflito que ela exibia quase todo o tempo deixava Tehmina assustada e

    nervosa perto da nora.7

    As caractersticas fsicas so o primeiro ponto de comparao e diferena

    entre pessoas de culturas e pases distintos, no livro. Aps este primeiro contato e

    a constatao da diferena, a anlise adentra questes mais profundas e sutis

    relacionadas com as ideologias.

    Mais adiante, Tehmina, comparando os indianos aos norte-americanos, faz

    a seguinte observao com relao maneira de se enxergar a vida, de acordo

    com ponto de vista da cultura indiana. Porm, a crtica cultura norte-americana

    ao mesmo tempo uma justificativa da prpria rejeio da cultura indiana frente

    dos Estados Unidos.

    2) (...) esse o problema de vocs, norte-americanos, deekra e Tehmina resvalou para o carinhoso tratamento indiano -, que vocs todos pensam demais no riso e na diverso, como se a vida fosse um filme de Walt Disney. Uma coisa inventada por crianas. J na ndia, a vida um melodrama de Bollywood cheia de perdas e tristeza. E, por isso, todos rejeitam a indstria de cinema indiano e preferem Disney. At o meu Sorab foi seduzido por sua vida ao estilo Disney, por toda essa busca da felicidade e busca do dinheiro, e busca disso e daquilo.8

    6 op. cit.: p. 14 7 Ibidem, p. 12 8 Ibidem, p. 14

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    Ela tambm deixa explcito o seu descontentamento em ver seu prprio

    filho se desligar de sua terra natal, de seus costumes e ir em busca de novas

    experincias nos Estados Unidos, atravs da preposio at, o que demonstra

    seu espanto frente a atitude do filho que foi seduzido pelo esteretipo norte-

    americano de lugar onde tudo possvel, onde se pode ganhar dinheiro, onde se

    pode ser feliz, onde tudo funciona e etc.

    Porm, vendo-se na mesma situao de deslocamento que o filho, a qual

    jamais pensara antes que ia acontecer e nunca imaginara que teria que decidir

    entre sua querida Bombaim e Ohio, entre seu filho e neto e sua cidade, Tehmina

    comea a perceber no somente as diferenas fsicas e ideolgicas entre indianos e

    norte-americanos, mas tambm, como os indianos eram tratados, por causa destas

    diferenas, nos Estados Unidos, ou seja, como se dava esse encontro entre

    culturas, no mais desde o seu lado, mas do lado do outro, o do dono da casa.

    Susan ao discutir com Tara, a vizinha, esta lhe diz que no precisava ser

    lembrada das leis que punem os pais por maus tratos a seus filhos, j que conhecia

    muito bem as leis de seu pas, lugar no qual viveu toda sua vida, fazendo uma

    clara meno ao fato de Susan ser casada com um estrangeiro precisamente um

    indiano. Susan critica sua observao j que este fato no fazia nenhum sentido na

    discusso. A partir desse episdio, a me de Sorab se questiona sobre a

    discriminao que os indianos sofrem em outros pases e faz a seguinte reflexo:

    3) Tehmina queria perguntar a Susan se ela achava que Tara tivera a inteno de menosprezar Sorab, e queria agradecer-lhe por ter saltado em defesa do marido. Queria saber mais sobre esse tipo de racismo gratuito, se ele era muito comum e se Susan ficava vulnervel por ser casada com um homem de pele escura. E, se era verdade que Susan havia sentido e experimentado esse racismo, isso por certo significava que Sorab, o seu Sorab apesar das roupas bem passadas, das unhas bem cuidadas, do sotaque norte-americano, do relgio de ouro, do bom emprego, dos muitos diplomas -, tambm o havia sofrido. Tehmina sentiu um bolo no estmago ao pensar numa idiota ignorante como Tara destilando um veneno capaz de afetar um fio sequer do cabelo de seu precioso filho.9

    9 Ibidem, p. 25

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  • 129

    Nesta citao, percebemos que no a classe social ou o grau de instruo

    que um imigrante possui que torna mais fcil sua aceitao ou no em outro pas,

    mas sim o seu lugar de origem, uma vez que ele o estrangeiro, o estranho, o

    deslocado, o fora do lugar. Seguramente, essa condio estranha tem a

    tendncia a piorar de acordo o baixo nvel de escolaridade e classe social, at

    porque a educao, como vimos no estudo de Marisa Grigoletto, era um ponto

    importante das colonizaes, mas o fato que independente disto, a pessoa ser

    sempre a outra. Assim, como o prprio Edward Said, possuidor de formao

    acadmica europia, professor nos Estados Unidos e criador de teorias

    reconhecidas em todo o mundo, afirmou: minha sensao predominante era a de

    sempre estar fora do lugar.10

    Se Tehmina j se sentia deslocada, desgarrada de sua terra natal, refletindo

    sobre a condio dos indianos nos Estados Unidos, por meio do exemplo de

    Sorab, esse sentimento de deslocamento era sentido em maior intensidade.

    Se no mbito social, Tehmina no conseguia sustentar um sentimento de

    pertencimento, no mbito domstico no era distinto, uma vez que a casa de seu

    filho era regida por hbitos norte-americanos, estigmatizados na imagem da nora,

    no-indiana, Susan.

    A nora tentava reger os novos hbitos que Tehmina deveria ter. No levar

    os filhos da vizinha para sua casa, no falar com Tara, no deixar cabelos na

    banheira aps o banho eram alguns dos pedidos que tolhia cada vez mais sua

    naturalidade e a silenciava. As atitudes de Susan no permitiam que sua sogra

    tivesse voz prpria, sua voz era falada desde a boca norte-americana de sua nora,

    uma voz deturpada, que no representava o que Tehmina queria realmente dizer e

    o que sentia. Era amada, mas ao mesmo tempo tolhida; a protegiam, pensavam

    saber o que era melhor para ela, mas no a permitiam escolher o que ela prpria

    considerava o melhor para si. Assim como William Jones, como j vimos,

    sanscritista ingls que dedicou toda sua vida ao estudo dos textos clssicos

    indianos, mas que tambm acreditava que o imprio britnico, depois da

    Providncia, o maio bem que existe no mundo, especialmente para a sociedade

    indiana.11

    10 1999: p.19 11 NAIPAUL, 1988, apud BOU, 2006: pp. 60-61

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  • 130

    Mas devemos recordar que o silncio no significa o apagamento do

    indivduo. Grigoletto afirma que aquilo que permanece em silncio pode ter

    muitos sentidos, ao passo que o dizer provoca a iluso de que os sentidos so

    limitados. E relembra a obra de Orlandi (1992), na qual a autora postula que o

    silncio a matria significante por excelncia.

    Perceber o silncio como significao resulta em entender que ele um continuum significante sem os fechamentos de sentidos prprios da linguagem. Linguagem e silncio so matrias significantes distintas: o silncio fundante e nele o sentido .12

    Como tambm explica a pesquisadora, o silncio a dimenso do

    mltiplo; ele representa os demais sentidos que a linguagem persiste em reduzir

    em um. a partir do silncio que o indivduo tem a possibilidade de trabalhar sua

    contradio constitutiva de sujeito (silenciado) e objeto. Esse deslocamento

    permite que se perceba que o discurso silenciador sempre se remete a outro

    discurso que lhe d realidade significativa, em especfico, a cultura de Susan.

    No entanto, a caracterstica irredutvel do silncio faz com que o sentido

    silenciado continue a significar em outro lugar e de outra forma, resistindo ao

    prprio silncio. E este outro lugar passa a ser uma fissura por onde a voz

    subalternizada fala.

    Talvez, por isso, sabendo de sua condio potencial de sujeito apenas

    reprimida neste momento, Tehmina tenha reagido silenciosamente s proibies

    de Susan com o seguinte pensamento: 4) Voc acha que me conhece, minha

    nora, mas no conhece. Um pensamento quase proftico de que essa situao em

    breve mudaria.13

    A partir do silncio cultural a primeira atitude eleita por Tehmina para

    escapar da limitao scio-cultural imposta o escape psicolgico a sua origem e

    vida em Bombaim, lugar no qual foi feliz e sabia como agir diante de cada

    circunstncia, mesmo que sua atitude fosse esperar Rustom tomar a atitude. Ao

    mesmo tempo, com essa atitude, ela marca o seu no-pertencimento a esse novo 12 op. cit.: p. 134 13 op. cit.: p. 26

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  • 131

    lugar. Assim, tem dificuldade de se aproximar do outro em um nvel mais

    profundo, criando uma barreira na qual as diferenas falam mais alto e a separam

    dos demais. Seu convvio passa a ser cada vez mais difcil.

    A nica pessoa com quem conversa sobre seus problemas familiares Eva

    Metzembaum, uma judia gorda, duas caractersticas, assim como ser indiana,

    subalternizadas pela sociedade, somadas ao fato de serem mulheres. Eram as

    diferenas negativas que as aproximavam. E por diferenas negativas, entendemos

    somente em relao ao pensamento eurocentrista de que o ser humano superior

    euronorte-americano, homem, branco, cristo e heterossexual, dentre outras

    caractersticas menores, como bem afirma Agustn Pniker: trabajador,

    disciplinado, casado....14

    A prpria personagem Eva compreende sua diferena em relao aos

    demais norte-americanos por ser judia, e diz as seguintes palavras que confirmam

    a aproximao de sua condio a de Tehmina:

    5) - E o que voc esperava, Tammy? sua nora, no tenho nada contra ela, mas ela no judia, uma gi. Esse pessoal branco, eles so bons para fazer os nibus andarem no horrio. No mais, em qualquer coisa que envolva um corao batendo, pode esquecer. -Mas voc branca protestou Tehmina. - Sim, mas no branca como a Susan. No como a minha nora. Sou mais como voc, Tammy. Sei que o mundo feito de sangue, pus, suor e fezes. E no tenho medo disso. Gente como a sua nora pensa que o mundo feito de acar e temperos. E o mais estranho que, para pessoas como ela, essa a face que o mundo exibe.15

    Eva que percebe a diferena positiva em Sorab e Tehmina. A Sorab,

    julga ser mais prestativo que qualquer outro norte-americano, enquanto a

    Tehmina, considerada como da famlia e por isso, Eva a nica com quem

    Tehmina conversa sobre sua indeciso entre voltar a viver em sua casa em

    Bombaim ou fazer de sua casa, Ohio.

    14 2005: p. 94 15 op. cit.: p. 40

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  • 132

    O que causa dvida em Tammy, como Eva a chama, sua prpria

    condio estrangeira e o choque cultural ao qual se encontra exposta. A

    personagem conclui: 6) - Mesmo assim... Bombaim a minha casa. Aqui, tenho

    medo de ser sempre uma estrangeira, de nunca me acostumar com todos esses

    hbitos16.

    Mas, para Eva, estrangeiro aquele que tem uma percepo superficial do

    pas, ao passo que aqueles que se envolvem com as questes do outro pas no

    pode ser rotulado como estrangeiro.

    7) (...) pelo amor de Deus, Tammy, no seja boba, Seu filho e sua nora querem voc aqui, ento fique. E como que voc pode se chamar de estrangeira aqui? Estrangeiro quem vem aos Estados Unidos, tira umas fotos da Esttua da Liberdade, anda no bondinho de So Francisco e volta para casa achando que conhece o pas; isso que um estrangeiro. Mas voc e seu falecido marido estiveram aqui tantas vezes, que voc sabe o preo do leite na mercearia. E, se viesse morar aqui, eu a ensinaria a dirigir. Seu filho pode lhe comprar um carro, para voc ter sua independncia17.

    Mas para Tehmina, o que determina se uma pessoa ou no estrangeira

    so outras condies. Ela continua afirmando que somente em Bombaim que se

    sente em casa porque os aspectos sociais de sua vida podem continuar sendo

    desenvolvidos como: fazer trabalho voluntrio no Centro Shanti, para crianas

    rfs, ajudar uma vizinha idosa a fazer compras e encontrar os amigos que, em

    sua maioria, conhece h mais de quarenta anos. Em resumo,

    8) - Sabe, l em Bombaim, eu me sinto uma pessoa, uma pessoa cuja vida tem um sentido, segue um caminho. Aqui, apesar de todos os esforos do Sorab, no consigo deixar de me sentir um ornamento, uma pea decorativa. Quase como um embrulho que algum tivesse largado na porta dele. Acho... o que eu estou dizendo, Eva, que no me sinto necessria aqui. Afora uma ou outra preocupao ocasional, os meninos ficaro perfeitamente felizes sem mim.18

    16 Ibidem, p. 38 17 Idem 18 Ibidem, pp. 38-39

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  • 133

    o ser humano como condio social que a faz sentir em casa, ou seja,

    que desenvolve um sentimento de pertencimento e que, em direo inversa, a

    condio social que d sentido prpria condio humana. E, se nos Estados

    Unidos, todavia, no possvel exprimir esse aspecto do ser humano, se torna

    dificultosa uma provvel ruptura com aquilo que considerava casa. L, ela era

    Tehmina Sethna, indiana, pertencente a uma sociedade que, apesar de seus

    conflitos inter-religiosos, era igualmente indiana. Sua identidade e o seu

    pertencimento a uma nao estavam livres de ameaas; j nos Estados Unidos, era

    uma indiana deslocada, com cuja nao no se identificava, sentindo-se assim, um

    objeto.

    Eva, por outro lado, por sua religio judaica e o passado histrico desse

    povo fadado migrao contnua, percebe a situao de Tammy de um ponto de

    vista distinto.

    9) - Ah, fofinha, est tudo bem. Ah, minha querida Tammy, muito difcil, eu entendo. Sabe, dizem que ns, os judeus, somos um povo nmade. Estamos acostumados a viver feito passarinhos, indo de um lugar para outro. Mas voc... a maioria das pessoas s tem um lugar a que chama lar. Eu compreendo, meu bem, juro que compreendo. uma grande deciso para se tomar.19

    Aqui, temos o pssaro como metfora daqueles que fazem de qualquer

    lugar a sua casa por construir seus ninhos pelas regies por onde voa e elege para

    gerar seus filhotes, assim como os judeus ao redor do mundo procura de um

    lugar seguro para suas famlias e suas prticas religiosas. O pssaro nos recorda

    outra metfora, a do caracol viajante citado por Mara Julia Daroqui para

    demonstrar que as pessoas, como o caracol que viaja, levam sua casa (discutido

    no primeiro captulo como identidade e nao) consigo para todos os lugares.20

    De qualquer forma, como bem o percebe Eva, sua concepo de casa

    no , no momento, compreendida por Tehmina, que talvez precise passar por

    19 Idem 20 2006: p. 145

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  • 134

    mais algumas experincias de encontro com o outro, ou o aprofundamento de suas

    experincias, para que consiga experimentar um novo sentimento de

    pertencimento e de si mesma, j que atravs do outro que nos conhecemos.

    Por enquanto Tehmina s se sentia plena de felicidade quando em meio

    diversidade da massa humana. No mercado do produtor, vendo todas as pessoas

    gritando, barganhando, experimentando as frutas num ritmo frentico de idas e

    vindas, sentia-se 10) como se houvesse voltado a se juntar raa humana,

    engajada numa atividade que a ligava ao resto do mundo21. Por outro lado, o

    mercado a fazia recordar dos mercados indianos, cheios de vida, em oposio

    atmosfera anticptica dos supermercados norte-americanos.

    Outro momento em que Tehmina se enche de humanidade durante a

    iluminao da rvore de Natal, no Public Square, em que milhes de pessoas

    aguardam igualmente ansiosos aquele momento, cuja diversidade humana forma

    uma grande massa comum. De acordo com suas palavras: 11) Naquela multido

    tinha sido fcil desaparecer, abandonar o prprio corpo e se tornar vazia, ilimitada

    e expansiva como o cu. A esta sensao se ope a vivida na casa de Sorab, em

    Rosemont Heights; l 12) ela se sentia constrangida com seu corpo, sentia o peso

    da cabea balanando sobre o pescoo, o peso das mos cadas dos lados, a

    presso incmoda de sua pele escura, j que todos os demais moradores

    pareciam 13) uniformimente similar e nenhum se envolveria com aqueles que

    destoam dessa uniformidade, como havia sido durante a iluminao da grande

    rvore de Natal.22

    Longe desses momentos de satisfao, Tehmina enfrentava preconceito e

    descontentamento. Ao encontrar seus vizinhos Jerome e Josh a ss do lado de fora

    de um mercado, ela se preocupa, mas quando Tara, a me dos meninos chega, ela

    sente o golpe da diferena. Tara se vira a seus filhos e diz:

    14) -Que que vocs esto fazendo, andando por a e falando com ... gente? E relanceou um olhar desdenhoso para Tehmina. Ela sentiu o rosto enrubescer diante do insulto evidente.

    21 Ibidem, p.42 22 op. cit.: pp. 42-43

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  • 135

    -Os meninos s estavam sendo gentis disse, ouvindo o gelo na prpria voz. eles me reconheceram e vieram apenas me cumprimentar. Tara olhou com insolncia para a senhora idosa, descendo lentamente o olhar do alto de sua cabea at os ps e depois encarando-a. Tehmina teve de se esforar para no ficar envergonhada diante do olhar de menosprezo da vizinha. -Ah ? disse, com ar indiferente. Bom, eles no tm permisso para falar com estranhos. 23

    Tehmina sente a dor e vergonha que a diferena lhe impe. O preconceito

    torna-se cada vez mais explcito e sua condio estranha imprime um sentimento

    de distncia em sua alma como uma marca; uma marca que determinasse a

    distncia entre ns e eles, parafraseando o livro anterior de Thrity Umrigar, a

    mesma distncia entre Bombaim e Ohio.

    So as diferenas que estabelecem os limites entre um e outro, o que

    permitido e aceitvel, o que deve ser evitado e as maneiras de se portar e viver em

    um lugar que no foi preparado socialmente para lidar com aquilo que o eu

    determinou como distinto dele, consequentemente, tornando-se o outro.

    A presena de Tehmina abala o relacionamento entre Sorab, Susan e

    Cavas. Susan comea a incomodar Sorab por causa do que ela chama de no-

    cooperao com as tarefas de casa e desabafa: 15) Sabe, at que eu gostaria de

    ter um lugarzinho para mim... s um refgio, quando o Cookie e... e todo o resto

    se tornassem uma barra pesada demais24.

    Por todo o resto entendamos Tehmina. Este o estopim que

    desencadeia uma reflexo em Sorab, sobre seus primeiros anos nos E.U.A. Ele

    sabia que 16) algumas desigualdades eram to grandes que ultrapassavam a

    linguagem, ultrapassavam as explicaes25.

    O conflito entre Tehmina e Susan fez com que Sorab recordasse o incio

    de sua vida em Ohio a experincia do desarraigo que somente pessoas em

    condio de deslocamento, como a dele, podia sentir. Um sentimento que ele

    descreve 17) como se sua cabea tocasse os cus da Amrica enquanto os ps

    23 Ibidem, p. 48 24 Ibidem, p. 65 25 Ibidem, pp. 66-67.

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  • 136

    estavam fincados em Bombaim, como se ele se equilibrasse sobre dois

    continentes?26.

    Dividido entre dois mundos, entre duas culturas, entre duas partes de si

    mesmo seus sonhos e sua origem -. Foram as visitas de seus pais aos E.U.A. que

    o dava a sensao de completude, o seu novo eu e seu antigo eu em um s

    momento. Aos poucos seu hibridismo torna-se algo natural, um limite

    ultrapassado em direo ao outro Susan. Ela representa sua metade norte-

    americana enquanto os pais representam sua metade indiana. O encontro de Susan

    e seus pais serve de metfora para a fuso de suas duas metades em um eu hbrido

    perfeito e aceito.

    Mas, a dificuldade de Susan perceber a dor deste processo de ruptura do

    passado, de sua identidade e de seu pas de origem unida dor de uma nova

    condio de subalternidade em relao ao outro, o no pertencimento a nova

    cultura e ao novo pas, faz com que Sorab relembre a sua prpria experincia, a

    muito esquecida. Por isso diz:

    18) -Susan, por favor, pare de me tratar como se eu fosse um matuto do Terceiro Mundo. Voc acha o qu, que eu no gosto do banheiro limpo? Acontece que h outras coisas, como a tranqilidade em casa, por exemplo, que tm a mesma importncia para mim. Voc no sabe como se porta com a mame s vezes... como se fosse uma princesa branca, dando ordens aos serviais 27.

    Sorab retoma suas diferenas culturais originais e agride Susan frisando a

    distino que ainda permanece entre eles por causa das origens distintas, uma

    terceiro-mundista e outra primeiro-mundista caracterizada pela cor da pele de

    Susan e consequentemente, a primeira considerada subalterna em relao

    segunda.

    Esses conflitos culturais trazidos pela presena de Tehmina tambm

    afetavam a Cavas. Segundo Ashcroft, na linguagem que a tenso da revelao

    cultural e do silncio cultural torna-se mais evidente para a manifestao da

    26 Ibidem, p. 67 27 Ibidem, p. 69

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  • 137

    represso e inferioridade.28 Podemos perceber Cavas como o representante dessa

    tenso lingstica, logo, cultural. Ele repreende a av dizendo: 19) - Meu nome

    no Cavas cantarolou. Cookie. E no use palavras em gujarati quando

    falar comigo. Sou um menino americano e s entendo ingls.29

    Tehmina, ento, tenta explic-lo que ele tambm herdeiro de uma parcela

    da cultura indiana por seu pai ter nascido na ndia. Mas, novamente ele rebate: 20)

    - No, no sou disse ele, batendo os ps. Os indianos so velhos e falam

    esquisito. A mame diz que sou um menino americano tpico30.

    Mesmo quando Tehmina tentava expressar o sentimento mais puro e

    verdadeiro que sentia por Cavas, a questo lingstica se punha entre os dois. Em

    um episdio Tehmina fala: 21)-Eu o amo tanto, que voc faz parte do meu fgado

    disse, e percebeu de imediato, pela expresso de repulsa no rosto de Cavas, que

    a traduo desse sentimento do gujarati para o ingls tinha sido um erro31.

    Quando a av sugere ao neto, antes de dormir, a leitura do livro sobre a

    histria indiana de Akbar e Birbal, presente dado no ano anterior, ele rejeita e

    afirma querer ler o livro Noite longa32. Com o desdm que Cavas apresentava por

    tudo o que era indiano, Tehmina se sentia rejeitada33.

    Como reao atitude de Tehmina se referir constantemente ndia,

    especialmente em termos comparativos aos E.U.A., em uma tentativa de se

    proteger a tudo que lhe incompreensvel e ameaador, Cavas a questiona sobre o

    porqu de ela sempre falar de Bombaim e acrescenta em tom reprovador: 22) A

    gente aqui faz tanta fora pra voc se sentir em casa, vov, mas voc s fica

    falando de Bombaim e tudo34.

    Tehmina se defende, tambm em tom decisivo com a seguinte explicao:

    23) - Porque Bombaim a minha casa, entende? disse, sem tentar retirar o ardor da voz. Assim como aqui a sua casa. Passei a minha vida inteira l. E, embora os outros possam ver apenas uma cidade suja, imunda, onde os nibus enguiam e a

    28 1991: p. 59 apud BONICCI, 2008: p.64 29 op. cit.: p. 77 30 Ibidem, p. 78 31 Ibidem, p. 81 32 Nem o autor nem o tradutor oferecem informaes sobre a origem desta obra. Possivelmente se refere a Long Night, de Poul William Anderson, escritor norte-americano de fico cientfica. 33 Ibidem, p. 78 34 Ibidem, p. 80

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  • 138

    eletricidade no funciona, o verdadeiro habitante de Bombaim enxerga alm disso tudo, v o corao grande e generoso da cidade. E isso que a maioria das pessoas no consegue perceber.35

    Tehmina estabelece uma clara separao entre seu prprio neto e ela

    quando diz que Bombaim o lugar de sua casa enquanto Ohio a casa de Cavas,

    como se no fosse possvel tanto para um quanto para o outro fazer do outro lugar,

    sua casa. Alm disso, outra distino feita entre os verdadeiros habitantes da

    cidade que conseguem observar para alm das aparncias, em cujo conjunto ela se

    inclui, e aqueles que percebem apenas a aparncia superficial de sua cidade, ou

    seja, todos aqueles que no so de Bombaim ou talvez da ndia.

    Analisando as atitudes e seu relacionamento com Cavas, a personagem

    conclui:

    24) O filho dela tinha sido um perfeito menino indiano bonzinho, ao passo que seu neto era muito... qual era a palavra?... muito americano. Sim, essa era a melhor palavras para descrever Cavas. Tehmina nunca se sentia to dolorosamente, to excruciantemente indiana quanto ao se encontrar perto dele. Rustom, por outro lado, havia aceitado o neto em seus prprios termos. Com que facilidade Rustom se adaptara vida nos Estados Unidos!36

    A facilidade que Rustom tinha de ultrapassar os limites culturais e

    participar da cultura do outro era algo que Tehmina no tinha e, ao contrrio, at

    resistia. Ela no conseguia entender, por exemplo, como Sorab, criado

    participando ativamente da diversificada vida scio-cultural de seu pas tinha

    podido se encaixar em um mundo to uniforme e como, a personagem

    constantemente descreve Ohio, anti-sptico. E, se ela achava estranha essa

    adaptao, questionava-se como seu filho pensava que ela prpria poderia se

    encaixar nesse novo mundo.

    Tehmina apresentava uma incompatibilidade de valores referentes a toda

    organizao norte-americana o que fazia com que ela talvez no percebesse que

    35 Idem 36 Ibidem, p.81

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  • 139

    tanto ali quanto em sua querida Bombaim houvesse as mesmas paixes e misrias

    humanas, porm, com outra roupagem.

    Tehmina ao observar a neve se lembra da chuva em Bombaim e percebe o

    quo diferente elas so. A chuva em Bombaim caia com a fora das mones, ao

    mesmo tempo em que trazia vida s colheitas, trazia destruio para aqueles que

    tinham pouco ou nada para se proteger dela. J a neve era suave, caia com

    delicadeza sem estardalhao e embelezava a paisagem. 25) Chuva e neve. A

    maneira perfeita de descrever a diferena entre Bombaim e os Estados Unidos,

    pensou Tehmina. Uma era ruidosa, catica, tumultuada e errtica. A outra era

    calma, anti-sptica, refinada e polida37.

    Tehmina no percebe que a neve apenas uma transformao sofrida

    pelos pingos de chuva. Ou podiam ser pingos de chuva ou podiam se tornar leves

    flocos de neve, o que determinaria sua modificao seria o encontro da prpria

    gota com as alteraes do meio externo, assim como ela.

    Pensar na sua querida Bombaim faz com Tehmina se lembre de momentos

    passados. Ela recorda que Rustom e ela ficaram tristes, porm, no surpresos,

    quando Sorab anunciou que ia se casar com uma norte-americana. Na verdade,

    eles desejavam que 26) Sorab viesse a escolher uma boa moa parse, algum a

    quem ela pudesse amar de forma irrestrita como a uma filha. Ao contrrio,

    escolheu 27) uma norte-americana branca, chamada Susan38.

    Os pensamentos de Tehmina deixam claro que os elementos culturais

    podem interferir na distncia ou proximidade entre pessoas de culturas/pases

    diferentes. Quando diz que preferiam que Sorab tivesse escolhido uma moa parse

    a qual eles pudessem amar de forma irrestrita, significa que se a moa escolhida

    no fosse parse, o amor entre eles seria restrito. Rustom, porm, parecia ter

    deixado as diferenas culturais de lado para aceitar a nova condio do filho e a

    famlia que ele desejou em sua totalidade.

    Rustom novamente se manifestou para Tehmina, insistindo que ela devia

    ter coragem e fosse feliz aceitando as coisas como elas se apresentam. Mesmo

    com as palavras de Rustom ecoando em seu corao, ela olhava para Sorab e

    37 Ibidem, pp. 93-94 38 Ibidem, p.194

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  • 140

    percebia que ele j no pertencia somente a eles, 28) com uma pontada de dor.

    Agora tambm faz parte dessa outra famlia39.

    Mas se seu filho tinha sido um perfeito menino indiano e lhe dava orgulho

    ver como ele aprendera com o pai a no sentir inveja dos outros e, principalmente,

    de ajudar os necessitados, depois de alguns anos vivendo nos E.U.A. Tehmina j

    no o reconhecia como aquele menino tipicamente indiano.

    Mesmo que ainda seja com uma pontada de dor, ela comeava a se dar

    conta das mudanas sofridas por seu filho. Se antes, Sorab defendia os mais

    necessitados em Bombaim, Tehmina percebia que, ao presenciarem o namorado

    de Tara maltratando Jerome e Josh, Sorab no se envolvia no problema da famlia

    para proteger as crianas. Como ele mesmo dizia, ali eram os E.U.A. e no

    Bombaim onde ningum respeitava a privacidade alheia e todos sabiam tudo

    sobre a vida das pessoas. Ele no queria se envolver com os problemas da vizinha

    porque ela era perigosa.

    29) Ele est mudado, pensou Tehmina, e seus olhos se encheram inexplicavelmente de lgrimas. Esse pas o modificou. Houve uma poca em que o meu Sorab nunca teria ficado parado, vendo uma criancinha ser maltratada por aquele brutamonte. Mas agora ele est... mais embotado. J no aquele jovem sensvel de Bombaim que via uma injustia em cada esquina.40

    Tehmina comeou a perceber a hibridizao de seu filho e isso a assustou

    porque acreditava que essas transformaes extinguiam dele seus mais profundos

    e belos valores. Dessa forma, Tehmina evitava enxergar a realidade e refletia: 30)

    Casa, pensou ela com seus botes, e a palavra solitria queimou como fogo.

    Preciso ir para casa. Mas onde ficava essa casa, disso Tehmina j no tinha

    certeza41.

    Aqui percebemos que Tehmina j no tem tanta certeza de que Bombaim

    a sua casa como antes afirmado enfaticamente a Cavas. Ela comea a sentir uma

    alterao em si prpria que a conecta tambm a esse novo lugar, a Ohio. 39 Ibidem, p. 107 40 Ibidem, p. 130 41 Ibidem, p. 126

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  • 141

    Enquanto isso, Sorab tambm continua refletindo sobre os motivos que o

    fizeram sair da ndia em direo aos Estados Unidos.

    31) Talvez essa tivesse sido uma das razes de ele fugir da ndia e troc-la pelos Estados Unidos, para poder deixar para trs aquela pastosa suavidade da infncia e se firmar como homem. E aquele novo pas tinha sido bom para ele endurecera-o, tornara-o competitivo, independente, vido de progredir, obstinado em sua busca do sucesso. Havia liberado alguma coisa nele. Enquanto na ndia as pessoas sempre lhe diziam para no parecer ambicioso demais, voraz em demasia, ali, nos Estados Unidos, essa ambio e essa avidez eram reverenciadas, incentivadas e recompensadas.42

    O sistema de ensino, a corrupo, os correios, o trnsito lento, a

    burocracia, tudo era criticado na ndia. Os Estados Unidos proporcionaram a

    Sorab a realizao de parte de seus sonhos que, na ndia, talvez no fosse possvel

    realiz-los.

    Tehmina se perguntava como um pas podia mudar a personalidade

    inerente de uma pessoa, mas sentia-se feliz em ver o que os Estados Unidos

    fizeram pelo seu filho adotivo, Percy, resgatado por Rustom e Tehmina dos maus

    tratos do pai. 32) E, pela primeira vez, Tehmina sentiu-se grata aos Estados

    Unidos. Ela e Rustom tinham dado a Percy uma chance, porm aquele pas lhe

    tinha dado sua vida. Era surpreendente a transformao que ocorria com todos

    aqueles jovens ao chegarem l43.

    Sorab, porm, inicia tambm um questionamento frente ao encontro com

    seu eu hbrido. Aps a superao dos primeiros anos nos E.U.A. sem a presena

    dos pais, a conquista de seus objetivos, a formao de sua famlia, o convvio com

    sua me desencadeia reflexes que fazem com que ele se questione e tente

    compreender quem ele realmente .

    33) Talvez ela decida voltar para casa, afinal. Sorab estava passando apressadamente a mo pelo cabelo quando essa idia traioeira lhe ocorreu. Olhou-se no espelho, estarrecido. isso

    42 Ibidem, p. 144 43 Ibidem, p. 157

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  • 142

    que voc quer, seu cretino? Se assim, por que est submetendo mame, Susan e todo o mundo a esse dramalho? Fitou com desagrado um rosto que de repente lhe pareceu fraco e desonesto. Que voc?, perguntou a seu reflexo. O que quer? Em quem se transformou? Quando no houve resposta, obrigou-se a imaginar a casa sem sua me, e sentiu-se gratificado com a fisgada de perda e solido que acompanhou essa imagem. No segundo seguinte, porm, imaginou o alvio o alvio de no ter que ficar em silncio quando fazia amor com a mulher, o alvio de no ter que entreter a me ao voltar para casa, depois de um dia cansativo no trabalho, o alvio de no ter que se mudar para uma casa maior, de no ter que se meter em mais dvidas, numa hipoteca maior. Mas a pensou na me sozinha no apartamento de Bombaim, (...) 44.

    Sorab fica dividido entre ter sua me por perto e proporcionar-lhe a

    completude que sentia quando aos E.U.A. chegou, e sua privacidade,

    independncia e individualidade desenvolvidas neste novo pas em oposio ao

    sentimento de comunidade estimulado na ndia.

    O conflito interno no qual Sorab se encontra fruto de sua condio

    hbrida, das influncias de ambos os pases que contriburam em sua formao

    interior, mas como isso se reflete no seu convvio social, acaba causando-lhe

    sofrimento.

    Sorab, mesmo no se reconhecendo e assustando-se com seus pensamentos

    relativos a sua prpria me, no se d conta de que sua transformao, na verdade,

    no uma aculturao, mas sim uma hibridizao. Afinal, durante a nevasca, o

    mesmo Sorab que por um momento deseja e sente prazer na idia do retorno de

    sua me ndia o mesmo que estremece de compadecimento lembrando-se dos

    34)sem-tetos que se alinhavam nas caladas de Bombaim, dormindo no cho

    duro, em qualquer tipo de clima.45

    Chegamos, ento, ao ponto culminante da narrativa. O limite que marca o

    antes e o depois de um acontecimento cujos resultados iniciam-se no interior do

    ser humano e extravasa contagiando a todos a seu redor.

    Na vspera do Natal, Tehmina v, por trs da cerca que separava as casas

    de Sorab e da vizinha, Tara espancando seu filho Josh e, horrorizada com a

    crueldade investida contra o corpinho frgil da criana, decide no se omitir.

    44 Ibidem, p. 188 45 Ibidem, p. 90

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  • 143

    Como Tara, depois do espancamento, sai deixando os dois filhos sozinhos em

    casa, Tehmina resolve pular a cerca para ajudar os meninos.

    A cerca tinha 1.80m de altura, o que resultava difcil a tarefa. Com a ajuda

    de uma cadeira sobre um deque, Tehmina consegue se pr no alto da cerca,

    passando ambas as pernas para o terreno vizinho. Porm, sente-se com muito

    medo, uma vez que do outro lado no h nenhum objeto que poderia encurtar seu

    impacto com o solo e pensa em voltar. Mas, nesse momento ouve a voz de

    Rustom, em um comando grave para pular. Quase no teve tempo de pensar na

    presena de Rustom, sentiu um empurro e, no instante seguinte, se encontrava do

    outro lado da cerca, sem nem ao menos sentir no corpo as dores da idade que a

    acompanhavam.

    Tehmina v que Josh est sangrando muito e decide levar os dois meninos

    para a casa de Sorab (aproveitando a ausncia de todos), onde poderia fazer os

    devidos curativos e aliment-los. Quando Cavas chega e encontra os dois

    meninos, a av obrigada a explicar-lhe o ocorrido e pede segredo ao neto. Ele

    concorda, mas decide ligar para a polcia para denunciar os maus tratos que Josh e

    Jerome sofreram por sua me.

    Dois policiais e um reprter vo casa de Sorab averiguar a denncia.

    Encontram as duas crianas assustadas e Tehmina que est confusa com a situao

    e medo de ser acusada de rapto. Mas os policiais dizem que ela fez o que era

    certo, esperam Tara chegar e um deles a leva para a priso. Enquanto o reprter

    faz algumas perguntas Tehmina e tira algumas fotos dela, o outro policial leva

    as duas crianas para a casa de parentes prximos.

    Neste momento, sem esforo, um poema de Omar Khayyam vem mente

    de Tehmina como um sussurro do marido:

    35) Move-se a mo que escreve e, tendo escrito, Segue adiante: nem toda a tua Piedade ou teu Saber A atrairo de volta, para que risque sequer metade de uma linha; Nem todas as tuas Lgrimas lavaro uma s de suas Palavras.46

    46 Ibidem, p. 223

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  • 144

    O poema de Kayyam sela a passagem de um estado a outro. Suas doces

    palavras nos dizem que impossvel voltar atrs. impossvel retornar ao

    passado para evitar com que Tehmina no pulasse aquela cerca. Tendo escrito,

    nada a far voltar para que risque sequer metade de uma linha.

    Tehmina que tanto se defendia do novo lembrando-se de sua Bombaim,

    como em uma tentativa de trazer o passado at ela, agora sente a objetividade da

    impossibilidade de retorno ao passado.

    No dia de Natal, quando Sorab l a notcia da priso de Tara no jornal ao

    lado de uma foto de sua me, ele fica revoltado, pois havia pedido a Tehmina que

    no se envolvesse com os assuntos dos vizinhos. E mais uma vez lembra que os

    E.U.A. no eram como a ndia e, com medo de esse evento ferir sua reputao em

    seu trabalho, disse:

    36) Mulheres, pensou Sorab, abanando a cabea. Como sabiam ser traioeiras! Sem querer, uma imagem do rosto de Grace Butler, com seu cabelo bem penteado, surgiu diante de seus olhos. Provavelmente, ela leria ou ouviria falar dessa histria. E Sorab sentiu-se enjoado com a idia. Sabia o que ela iria pensar. Quem, seno uma ignorante do Terceiro Mundo, faria algo to grosseiro quanto pular uma cerca para espionar uma vizinha? Mame havia acabado de garantir a promoo de Gerry Frazier. Ele sabia que a me do Gerry nunca teria feito uma coisa to impulsiva e impensada.47

    Mais uma vez as diferenas culturais incitam os julgamentos de Sorab que,

    pensando em sua carreira profissional, inferioriza sua me e menospreza suas

    atitudes frente situao ocorrida. Mas, o fato de Tehmina ter defendido duas

    crianas indefesas fez com que Sorab relembrasse algumas memrias de sua

    infncia.

    37) Num instante de fraqueza, Sorab viu surgir uma imagem diante dos olhos uma imagem de seus pais acolhendo em casa um Percy abandonado e perdido. Como ele se orgulhara dos pais naquele momento! Mas isso diferente, disse a si mesmo, furioso. Neste pas ela uma estrangeira, nem sequer

    47 Ibidem, p.232

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  • 145

    seus papis com a imigrao esto regularizados. (UMRIGAR, 2008: p. 233)

    Mas, a lembrana idlica de Tehmina e Percy no justificava a atual atitude

    de sua me. Sua condio estrangeira era determinada pelos papis de imigrao e

    no por seu envolvimento com o outro.

    Porm, quando Tehmina tratada por todos por onde passa como algum

    que teve atitudes de uma verdadeira cidad (norte-americana), inclusive,

    recebendo o telefonema de Joe, dono da companhia em que Sorab trabalha e

    admira, dando os parabns pelas suas atitudes. O ponto de vista do qual Susan e

    Sorab olham Tehmina tambm comea a mudar. Uma mudana interior tambm

    se inicia nos dois ao alcanarem a dimenso da atitude de Tehmina.

    38) De repente, ocorrera uma idia a Tehmina: Susan estava ficando mais parecida com todos eles. Mais emotiva, mais sentimental, mais... bem, mais parse. Menos norte-americana. Menos branca. Era como se a influncia que Sorab exercia nela comeasse finalmente a aparecer.48

    Uma vez que Sorab sofreu hibridizao por se encontrar em outro pas e

    outra cultura, Susan tambm sofreria por estar em contato com Sorab e sua

    famlia. Assim como Tehmina que passou a ver qualidades positivas nos Estados

    Unidos e foi tocada por seus pequenos cidados, Jerome e Josh, a ponto de no

    omitir-se pela primeira vez e, de sentir-se novamente algum.

    No jantar oferecido por Joe a Sorab e sua famlia, Tehmina parabenizada

    pessoalmente por seu ato de cidadania, Sorab promovido de cargo em seu

    trabalho e Joe pergunta a Tehmina se ela sabia a histria que narrava o encontro

    do lder dos parses com o rei hindu, na chegada deles ndia, algo que ele tinha

    lido recentemente.

    39) Se ela a conhecia? Qualquer criana parse que houvesse tomado leite materno conhecia a lenda de como o grupo de

    48 Ibidem, p. 249

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  • 146

    persas que tinha fugido da perseguio islmica no Ir, uma trupe pequena e exausta, havia chegado cidadezinha indiana de Sanjan, em busca de asilo poltico. O governante hindu, na impossibilidade de fazer esse grupo de estrangeiros de lngua parse compreender que no lhe era possvel acolher mais refugiados, fora receb-los na praia com um copo de leite cheio ata a borda. No h lugar era o que pretendia simbolizar o copo cheio. Mas o sumo sacerdote zoroastrista era um homem brilhante. Tirando uma pequena quantidade de acar de seus mantimentos, ele o dissolvera no copo., tomando o cuidado de no derramar uma s gota do leite. Essa for a sua clebre resposta a resposta que se havia transformado em fonte de orgulho e orientao para as geraes futuras: como o acar no leite, nossa presena adoar o sabor de suas vidas, sem desloc-los nem lhes causar nenhum problema. E, assim, eles tinham recebido permisso para ficar e se haviam transformado nos parses da ndia.49

    A histria nos conta muito mais que a chegada dos parses na ndia por

    causa da perseguio islmica no Ir e seu encontro com o rei hindu. Ela tambm

    nos mostra como as pessoas podem se transformar em contato umas com as

    outras, assim como o acar que adocica o leite.

    Durante o jantar de Ano Novo, sozinha em seu quarto enquanto os

    convidados esto na sala com Susan, Sorab e Cavas, Tehmina ouve novamente

    Rustom. Dessa vez ele a obriga escolher entre Bombaim e Ohio. Ele a obriga

    decidir onde ser sua casa. E nesse momento ela se depara com o antigo livro de

    Rustom, com os poemas de Omar Kayyam, aberto na pgina em que continha o

    seguinte poema:

    40) Ah, minha Amada! Enche a Taa que retira Dhoje as Dores do passado e os Medos do futuro. A-manh? Ora, A-manh talvez eu mesmo Esteja com os Sete Mil anos de Ontem 50.

    Retomando a idia central do poema que inaugura a narrativa, este que a

    encerra tambm uma elegia ao hoje, ao momento, ao instante, ao carpe diem to

    rico a Kayyam. Assim, inspirada pelas palavras de Rustom y Kayyam, Tehmina

    49 Ibidem, p. 262 50 Ibidem, p 297

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    decide que sua casa ser Ohio e anuncia que ir ficar. A comemorao do Ano

    Novo representa simbolicamente o renascimento de Tehmina, mesmo que essa

    mudana tenha ocorrido naquele dia em que pulou a cerca para ajudar um outro

    que no fazia, e ao mesmo tempo fazia, parte dela. Pular a cerca significava pular

    a fronteira invisvel e estar aberta ao encontro espiritual com o outro.

    Nas palavras de Tehmina,

    41) Minha casa, pensou. Onde fica minha casa? Qual o meu lugar? Lembrou-se do apartamento de Bombaim, (...). De repente, Bombaim agigantou-se em sua imaginao. Tehmina esqueceu a sujeira, as favelas, a nuvem negra de poluio, o calor insuportvel, as multides atordoantes. Em vez disso, viu o cu dourado do crepsculo, (...); em vez dos nibus perigosos e superlotados, lembrou-se das ruas festivas, repletas de gente, daquela humanidade que reafirmava a vida, em imenso contraste com as ruas mortas e desertas que a acolhiam toda noite em Rosemont Heights. Mas, ento, pensou: e, entre aqueles milhes de pessoas das ruas de Bombaim, quem se importa se estou viva ou morta? Sua melhor amiga, Zinobia, se importaria; alguns vizinhos se importariam, como Persis; os presidentes das instituies em que ela trabalhava como voluntria se importariam. E quem mais? Aqui, porm, apesar da esterilidade da vida cvica, apesar dos invernos frios e das ruas desertas, apesar dos condomnios residenciais construdos sem caladas, havia gente que se importava muitssimo com seu bem-estar. Que se preocupava, se inquietava, ligava suas prprias vidas e destinos aos dela. E e, nessa hora, Tehmina obrigou-se a engolir sua modstia natural aqui havia pessoas que, a despeito do que ela havia suposto antes precisavam dela. Agora podia perceb-lo. Cookie precisava dela, precisava do que s uma av poderia lhe oferecer. A me de Susan morava longe demais para lhe proporcionar a ddiva de sua presena constante. Susan precisava dela, para polir algumas de suas arestas mais speras, para fazer emergir a meiguice que os horrios frenticos e o excesso de responsabilidades haviam sepultado. Quanto aos meninos Percy, Sorab e, agora, talvez at Joe -, Tehmina sabia ter amor suficiente para todos eles. E tambm sabia uma outra coisa. Ela ficaria. Aqui, nos Estados Unidos. Foi menos uma deciso do que o reconhecimento de algo j sabido, a culminao lgica de seu processo de pensamento. Ao contrrio dos filmes, no houve tambores rufando ao fundo, nenhuma trombeta anunciando sua tomada de deciso. que, na verdade, a deciso fora tomada alguns dias antes. Na hora em que se soltara da cerca, em que encontrara coragem para pular, ela havia aterrissado em mais do que o quintal de Antonio. Havia aterrissado neste continente. A cerca tinha sido a linha divisria entre passado e futuro, entre a ndia e os Estados Unidos. Tehmina admirou-se do fato de no ter sabido disso at um segundo antes, de s

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    agora seu corpo e sua mente estarem captando seu destino. Move-se a mo que escreve, pensou. O quarto ficou em silncio enquanto ela jogava uma gua no rosto. Pela primeira vez em meses, aquela sensao nervosa e agitada que se alojara em seu estmago a deixou.51

    Tehmina percebe que seu lugar junto das pessoas que a amam, assim

    como o prprio subttulo do livro diz. Junto a eles, qualquer lugar pode se tornar o

    seu lugar; pode lhe proporcionar a doura que o mundo pode dar desde que saiba

    e esteja disposta a usufruir o instante e retirar dele infinitas experincias antes que

    termine e tenha que ir a um novo lugar. Alm disso, percebe que ela mesma est

    mudada e, a partir dessa primeira mudana, muitas outras podem surgir.

    Tehmina mobilizada e transformada pelo sofrimento do outro e, com

    isso, alcana um nvel mais profundo e livre de barreiras nos encontros sociais. E

    se era a condio social do ser humano que, para ela, determinava quem era ou

    no estrangeiro, agora, ela poderia se considerar pertencente a esta famlia,

    sociedade, pas, nao e cultura. Finalmente, Tehmina de gota de chuva tambm

    aprendeu a ser floco de neve.

    51 Ibidem, pp. 297-299

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