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Maria Elisa Souza Medeiros
Análise do documentário “Promessas de um novo mundo”: impactos culturais e identitários resultantes da adoção de
políticas públicas preferenciais em Israel e nos assentamentos palestinos
Belo Horizonte
2007
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Maria Elisa Souza Medeiros
Análise do documentário “Promessas de um novo mundo”: impactos culturais e identitários resultantes da adoção de
políticas públicas preferenciais em Israel e nos assentamentos palestinos
Monografia apresentada ao curso de Relações Internacionais
do Centro Universitário de Belo Horizonte de Minas Gerais,
como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em
Relações Internacionais.
Orientadora: Profª. Alexandra Nascimento
Belo Horizonte
2007
Sumário: Introdução .................................................................................. 07 1.1 Metodologia................................................................................ 10 1.2 Definição do termo “cultura”..................................................... 10 1.3 Evolução do termo...................................................................... 12 1.4 Etnocentrismo............................................................................. 13 1.5 Superando o etnocentrismo........................................................ 14 1.6 A diversidade.............................................................................. 22 1.7 Cultura de Massa....................................................................... 24 1.8 A Questão da Identidade............................................................ 27 1.9 Novos paradigmas...................................................................... 30 1.10 Paradigma de Huntington........................................................... 32 1.11 Huntington: fronteiras e conflitos............................................... 40 1.12 Fim das guerras........................................................................... 41 2.1 Histórico Conflito Palestina....................................................... 42 2.2 Análise do documentário............................................................ 49 2.3 Políticas públicas e conseqüências.............................................. 51 2.4 Conclusão ................................................................................... 55 3 Bibliografia.................................................................................. 61
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RESUMO Este estudo tem como referência o documentário “Promessas de um Novo Mundo”, que
aborda a relação entre crianças judias e árabes. Os conceitos de cultura, identidade e a
análise da obra “O Choque das Civilizações”, de Samuel Huntington, servirão de
substratos para o entendimento acerca das conseqüências das políticas públicas em
Israel e nos assentamentos dos palestinos.
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SUMMARY This study has the documentary “Promess” as a reference to approach the relation
between Jews and Arabs kids. The concepts of culture, identity and also the analysis of
Samuel Huntingtons´s book “The Clash of Civilizations” will serve as the essences to
understand the consequences of the public politics in Israel and in Palestinians
assentements.
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“...dado que as guerras nascem no espírito dos homens, é nesse mesmo espírito que se deve cultivar a defesa da paz e que essa deve se basear na solidariedade intelectual e
moral da humanidade” – Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional - ONU.
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Maria Elisa Souza Medeiros
Análise do documentário “Promessas de um novo mundo”: impactos culturais e identitários resultantes da adoção de políticas públicas preferenciais em Israel e nos assentamentos palestinos.
Monografia apresentada ao curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de
Belo Horizonte de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Relações Internacionais.
Belo Horizonte, _____de _________________ de 2007.
______________________________________________________
Profª. Alexandra Nascimento
Orientadora
_____________________________________________________
Prof. Leandro Rangel
______________________________________________________
Prof. Dawisson Belém Lopes
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INTRODUÇÃO
Sabe-se que o mundo nunca esteve tão interligado e interdependente como hoje. O
fenômeno da globalização, acentuado nos anos 1990, parece ter tornado possível reduzir
a esfera terráquea com o uso de tecnologias como os computadores, telefones e
televisores que conectam indivíduos de diferentes continentes em segundos, criando
uma rede internacional de informações e idéias. O fato é que os desdobramentos desse
processo se fazem sentir, independente da melhor definição que o caracterize.
Nessa rede, o fluxo de idéias encontrou um atalho e, praticamente, não há nada que se
pense ou se faça no Japão – desconsiderando os segredos de Estado – que não possa ser
divulgado no distante continente americano instantes depois.
Interessante é perceber que o mundo hoje dá sinais de uma união, mesmo que frágil,
diante do terror que um inimigo comum apresenta: a destruição do planeta. O meio
ambiente, obviamente, é vital para a sobrevivência da raça humana no planeta. A sua
conservação é tarefa de todos, independentemente de questões como raça, poder e
outras. E é nesse mundo mobilizado pela própria sobrevivência que ainda existem
guerras e conflitos que dividem indivíduos em grupos que brigam porque, além de
outros motivos, são diferentes.
Diante das observações mais genéricas acerca da desordem mundial, percebe-se que o
desentendimento entre as nações nasce, antes de tudo, de uma postura de intolerância
dos povos e dos indivíduos que as compõem. Trata-se de um lapso de conhecimento
que, ao longo da história, acaba por desdobrar-se em conflitos, sejam eles religiosos,
étnicos, políticos e econômicos.
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Grupos religiosos ou étnicos defendem os seus valores e crenças como sendo os
melhores, devendo deste modo, ser adotados por todos. O diferente torna-se
marginalizado, logo, devendo ser reprimido ou punido.
O conhecimento é a arma que desarma os ignorantes diante daquilo que lhes é estranho.
Desentendimentos que se perpetuam ao longo de décadas são alimentados pelos
indivíduos que repassam às novas gerações os ideais e preconceitos que nortearam as
suas ações. Cabe à cultura e à educação a função de esclarecer que a diversidade é
fundamental e, ao invés de ser combatida, deve ser incentivada e cultivada. A cultura e a
educação podem contribuir para desfazer esses condicionamentos que, quando
assimilados por novos indivíduos, servem de terreno fértil para a perpetuação dos
conflitos. Obviamente, trata-se de um processo que poderá gerar resultados em longo
prazo, a partir da participação empenhada de governos e instituições que dividam essa
mesma visão e assumam a sua responsabilidade como agentes de mudança.
Esta monografia, por meio da análise de um documentário que trata do conflito na
Palestina, aponta uma possível causa da perpetuação desse impasse, pontuando a
importância da adoção de políticas públicas na construção de um cenário receptivo ao
diálogo e entendimento entre os indivíduos e, conseqüentemente, entre os povos que
constituem as Nações.
O documentário “Promessas de um novo mundo” (Goldberg, Shapiro, Bolado, 2001)
torna-se referência para exemplificar os desdobramentos da adoção de políticas públicas
na esfera da educação e da cultura na formação de indivíduos. Nesse caso, a orientação
dada para os jovens palestinos foi pautada no preconceito e no cultivo do ódio entre os
povos envolvidos no conflito em questão. As crianças judias e palestinas, inicialmente
receptivas ao diferente e claramente bem dispostas a interagir umas com as outras,
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depois de alguns anos, tornaram-se indivíduos com um alto grau de intolerância e
desrespeito em relação aos outros que não compartilhavam da mesma crença religiosa.
Assim, pode-se perceber como a educação e a cultura podem ser empregadas como
catalisadores de idéias e princípios que contribuem para a perpetuação de conflitos. Os
conceitos de cultura e identidade foram o ponto de partida para se entender um pouco a
questão do etnocentrismo. Tais conceitos são esclarecedores para a compreensão das
distintas visões de uma sociedade sobre a outra, na maneira com que elas se relacionam
e até mesmo se discriminam.
A obra de Samuel Huntington (1997), “O Choque das Civilizações”, foi utilizada como
referência, uma vez que analisa alguns conflitos que assolam a humanidade. O
pressuposto que norteia o autor em sua obra é a idéia de que a cultura será o principal
fator desencadeador de guerras nos próximos tempos. Embora sua obra abranja conflitos
de forma geral, esta monografia se atém às questões que têm o Oriente Médio como
cenário. Assim, são abordadas explanações que tentam delinear o perfil dessas
sociedades do mundo muçulmano. O autor sugere alguns pontos, tais como a educação
e identidade, que acabam por cultivar e perpetuar os conflitos ao longo dos anos.
Após uma contextualização histórica do conflito entre árabes e judeus na Palestina, essa
monografia analisa o citado documentário. “Promessas de um novo mundo” (Goldberg,
Shapiro, Bolado, 2001) é a referência para explanar acerca do papel das políticas
públicas nas áreas da educação e de infra-estrutura como instrumentos para orientar os
indivíduos rumo a uma visão esclarecedora e sem preconceitos a respeito do “outro” e
do “diferente”, ou como meio de manutenção de uma ordem que cultua o
desentendimento e intolerância entre os indivíduos e, conseqüentemente, entre os
Estados.
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1.1 METODOLOGIA
A seguinte monografia foi elaborada utilizando-se de revisão bibliográfica.
1.2 DEFINIÇÃO DO TERMO CULTURA
A partir da discussão de Ávila (1973) é possível definir o termo “Cultura”. De acordo
com o autor, a Sociologia da Cultura estuda os elementos culturais da sociedade. Não há
consenso universal entre especialistas quanto ao problema da delimitação dos campos
da Sociologia e da Antropologia Cultural. Assim, para alguns, a Sociologia é a ciência
inclusiva que compreende em si todas as disciplinas que se ocupam da cultura como
fenômeno social, sendo a Antropologia da Cultura, então, apenas uma parte ou um
capítulo da Sociologia.
A primeira definição de cultura foi formulada do ponto de vista antropológico. Taylor
procurou demonstrar, nessa primeira formulação, que a cultura pode ser objeto de
estudo sistemático, por ser tratar de um fenômeno natural que possui causas e
regularidades. Sob essa perspectiva seria possível fazer um estudo objetivo e análises
capazes de proporcionar a formulação de leis que regeriam o processo evolutivo. As
críticas a esse autor devem-se ao fato de ele deixar de lado toda a questão do relativismo
cultural, uma vez que essa idéia está associada à de evolução multilinear (Taylor apud
Laraia, 2004).
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O antropólogo americano Alfred Kroeber, contribuiu para a ampliação do termo
“cultura” em diversos pontos. Kroeber defendeu que a cultura, mais do que a herança
genética; seria a responsável pela determinação do comportamento humano, justificando
as suas realizações. O homem agiria então, de acordo com os seus padrões culturais,
uma vez que os seus instintos foram parcialmente anulados ao longo do seu processo
evolutivo. A cultura também seria um meio de adaptação aos diferentes ambientes
ecológicos, pois o homem foi capaz de romper as barreiras das diferenças ambientais e
transformar toda a terra em seu habitat. Kroeber também acredita que foi adquirindo
cultura que o homem passou a depender mais do aprendizado do que agir por meio de
atitudes geneticamente determinadas (Kroeber apud Laraia, 2004).
Ao mencionarmos o termo cultura, tomaremos a definição de Ávila (1973) que utiliza o
termo no seu sentido objetivo como: “conjunto de criação em que se vai objetivando o
espírito humano na satisfação das tendências individuais e sociais” (Ávila, 1973, p.343).
Ávila apresenta a cultura como um conjunto que representa um patrimônio riquíssimo
da humanidade, sendo constituído dos mais variados elementos: idioma, conhecimento,
crenças ideológicas, sistemas filosóficos, lendas, tradições, símbolos, formas de
comportamento, normas de conduta religiosa, morais, jurídicas, higiênicas, formas de
organização social e política, organização econômicas, obras de arte, construção,
instrumentos, utensílios, máquinas, modas, cerimônias, ritos.
Uma vez definido o conceito de “cultura”, as próximas páginas buscarão evidenciar a
evolução do termo e seus desdobramentos como a diversidade cultural, o relativismo e o
etnocentrismo.
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Grupos sociais criam, transmitem e difundem a cultura no tempo e no espaço. Desse
modo:
“A cultura é um fenômeno social, neste sentido que é obra do grupo, não do indivíduo. É claro que toda criação cultural se resolve, em última análise, numa multiplicidade sem números de atos mentais ou manuais de indivíduos. Isto, porém, não derroga a natureza essencialmente social da cultura, que seria impossível sem a vida em grupo. É da vida social da família ou dos grupos maiores, que o indivíduo recebe a motivação e o estímulo da sua ação. É na vida social que encontra os meios e a cooperação indispensável para realizá-lo.” (Ávila, 1973, p.350)
Assim, a cultura é transmitida por meio da herança cultural, pela qual, gerações
transmitem seus patrimônios e tradições às seguintes. Há um processo de aprendizagem
para que uma cultura seja assimilada no tempo de uma geração e para que esta se torne
apta a enriquecer o seu patrimônio cultural para as próximas gerações.
Ávila (1973) afirma então que a cultura condiciona a vida dos grupos em todas as suas
atividades, dando aos indivíduos as condições e possibilidades de agir. As atividades e
comportamentos das diversas sociedades e grupos se diferem por serem inseridas em
contextos culturais diferentes.
Assim, é possível falar de diversidade cultural, uma vez que ela pode ser caracterizada
pelas maneiras diferentes de viver. Estes “modos de vida” podem ser conhecidos e
respeitados, o que pode contribuir para eliminar preconceitos e perseguições dos quais
são vítimas grupos e categorias de pessoas.
1.3 EVOLUÇÃO DO TERMO
Tomando como referência os aspectos da cultura, Santos (1989) afirma que, ainda no
século XIX, diversos estudos foram feitos numa tentativa de organizar ou até mesmo de
hierarquizar todas as culturas humanas, existentes ou extintas. O autor observa que,
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desde o século passado, o interesse em estudar as culturas humanas tem se intensificado,
principalmente quando se observa a aceleração dos contatos, nem sempre pacíficos,
entre povos e nações. Assim, as preocupações com cultura se voltaram para a
compreensão desde as sociedades modernas e industriais quanto das que iam
desaparecendo.
Santos (1989) observa que a necessidade de definição do termo cultura, e sua posterior
compreensão tomaram força com o poderio das nações européias frente aos demais
povos no século XIX. Nessa época, a preocupação com a cultura se generalizou como
uma questão científica. Foi introduzida uma visão de mundo laica, na qual as
transformações da humanidade seriam explicadas por uma teoria da evolução das
espécies. Essas novas visões eram amparadas pelo momento histórico das sociedades
industrializadas que se expandiam política e economicamente. Nesse período as
preocupações com cultura tinham uma marca que legitimava a dominação colonial,
considerando superior tudo o que fosse ocidental.
De acordo com Santos (1989) a cultura é uma construção histórica, não é algo da vida
natural:
“ ...a cultura é um produto coletivo da vida humana. Isso se aplica não apenas à percepção da cultura, mas também à sua relevância, à importância que passa a ter. Aplica-se a conteúdo de cada cultura particular, produto da história de cada sociedade. Cultura é um território bem atual das lutas sociais por um destino melhor.É uma realidade e uma concepção que precisam ser apropriadas em favor do progresso social e da liberdade, em favor da luta contra a exploração de uma parte da sociedade por outra, em favor da superação da opressão e da desigualdade.” (Santos, 1983, p 45).
1.4 O ETNOCENTRISMO
O estudo da cultura passou por um momento no qual a humanidade, dentro da sua
diversidade, foi organizada de maneira hierarquizada. Nesse momento foram lançadas
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as sementes de um pensamento etnocêntrico, que levará algum tempo para ser superado.
Sobre o etnocentrismo, Rocha (1984) afirma se tratar de:
“...uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.” (Santos, 1984, p 7).
Rocha discorre sobre o tema, inicialmente, procurando enfatizar o porquê do interesse
sobre o etnocentrismo, concluindo que essa não é uma questão exclusiva de uma
determinada época nem mesmo de uma só sociedade. Este choque gerador do
etnocentrismo nasce talvez, na constatação das diferenças. Afinal, esta pode ser
ameaçadora, chegando a ferir nossa própria identidade cultural. Um confronto é gerado:
o grupo do “eu” defende a sua visão única como a melhor, a natural, a superior, a certa;
versus o grupo do “outro”, considerado engraçado, absurdo, anormal, ininteligível.
1.5 SUPERANDO O ETNOCENTRISMO
Existem idéias que se contrapõem ao etnocentrismo: a relativização se configura como
uma tentativa de superação deste. Trata-se de uma visão na qual as “verdades” são
consideradas menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição.
Seria, por exemplo, quando um ato deixa de ser visto na sua dimensão absoluta, mas
sim no contexto em que acontece; assim como quando compreendemos o outro nos seus
próprios valores e não nos nossos. Esta visão pode ser entendida como a: “capacidade
de ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado” (Rocha, 1984, p 20).
Para se chegar a esse relativismo, um longo caminho foi traçado. A Antropologia
buscou, ao longo do tempo, superar a visão etnocêntrica. Dessa forma, diferentemente
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do senso comum, o movimento da Antropologia converge no sentido de ver a diferença
como a forma pela qual os seres humanos encontraram soluções distintas para limites
existenciais em comum. O percurso que leva a Antropologia à superação do
etnocentrismo implica uma sucessão de movimentos que podem ser considerados se
observarmos o panorama dos séculos XV, XVI e XVII com suas navegações,
expedições, colonizações e aberturas. Foi um momento marcado pelo encontro com o
“outro”, quando o “Velho Mundo” se lançou à descoberta do “Novo Mundo”.
Rocha (1984) mostra que o pensamento ocidental dessa época era voltado para a
expansão do império. E por isso, era necessário desbravar esse novo mundo fascinante,
mas assustador. Não se sabia o que os esperava nesse outro mundo. Assim, do encontro
inicial fica a idéia de perplexidade, do espanto diante da diferença.
A Antropologia surge como ciência no século XIX com o intuito de buscar explicações
para essas diferenças que durante séculos causaram tanto estranhamento. A primeira
escola teórica da Antropologia foi o Evolucionismo, e se baseava na idéia de que o
“outro” é diferente porque possui grau de evolução diferente. De acordo com Rocha
(1984), essa evolução tem o mesmo sentido de desenvolvimento. Nesse caso, evolução
seria “a transformação progressiva no sentido da realização completa de algo latente. É
um processo permanente onde uma unidade qualquer se transforma numa segunda que,
por sua vez, se transforma numa terceira e assim sucessivamente”. (Rocha, 1984 p.27).
Assim, para essa escola a noção de progresso é fundamental, pois é seguindo o seu
caminho que a história se constrói: o avanço do tempo provê o progresso do homem. A
direção é sempre um estágio mais avançado: do primitivo rumo a uma civilização mais
avançada.
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Nesse sentido, antropólogos iniciam trabalhos que consideram a existência do homem
em tempos primitivos. A idéia, de acordo com Rocha (1984), seguia uma lógica de
raciocínio simples: transformar sociedades contemporâneas em retratos do passado. O
critério estabelecido para medir esse possível estágio de avanço seria proposto por Sir
Edward Tylor em sua obra “A Origem das Culturas”, que já na primeira página afirma:
“Cultura ou civilização, no seu sentido etnográfico escrito, é este todo complexo que
inclui conhecimento, crença, artes, leis, moral, costumes e quaisquer outras capacidades
e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor apud Rocha,
1984, p30).
Partindo desse pressuposto, a escola evolucionista estabeleceu um critério limitado, uma
vez que aplicavam essa definição a todas as sociedades, como se todas as culturas
enfrentassem os mesmos problemas e que, com o passar do tempo, os primitivos se
tornariam avançados.
Os estudos eram orientados no sentido de encaixar cada cultura em algum estágio da
evolução já predeterminado na evolução. “O etnocentrismo estava em achar que o outro
era completamente dispensável como elemento de transformação da teoria” (Rocha,
1984, p 32).
O século XX apresentou avanço no campo antropológico no sentido de afastar o
etnocentrismo da disciplina. Ao longo do tempo, a Antropologia passou a relativizar a
noção ocidental de tempo, assim como outras noções ocidentais acerca do indivíduo.
Franz Boas inaugura uma nova escola de pensamento que ficou conhecida como
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Difusionista ou Escola Americana. Com seu trabalho, a idéia de evolucionismo, assim
como as noções de cultura e história, foram repensadas e relativizadas. Boas propõe que
cada cultura seja estudada dentro das suas particularidades, afinal, era produzida a partir
das suas condições, sejam elas geográficas, climáticas, históricas, lingüísticas etc
(Rocha,1984).
Os antropólogos que sucederam Boas produziram estudos que tendiam a fugir do
etnocentrismo ao buscar compreender a relação entre cultura e o meio-ambiente; entre
a cultura e a personalidade – mentalidade, psicologia dos indivíduos; e entre a cultura e
a linguagem (idem).
Esses estudos buscaram relativizar abrindo mão de certezas etnocêntricas em busca de
responder dúvidas e questões necessárias para compreender a sociedade do “eu” e a
sociedade do “outro”. Para tanto, Boas mostra que a história pode ser pluralizada e,
desse modo, cada sociedade teria a sua. Além disso, Boas retira o “eu” do centro,
considerando outros fatores na determinação da cultura. Enfim, Boas ajudou a
desenvolver uma Antropologia aberta a diálogos com outras áreas. O “outro” adquiriu
um novo status, deixando de ser um retrato do “eu” primitivo e passando a ser, até
mesmo, uma referência para dimensionar a sociedade do próprio “eu”. (ibidem).
Há que se ressaltar a importância de outros autores rumo à superação do etnocentrismo
na Antropologia. Radcliffe-Brown desamarra a Antropologia da História, abrindo
espaço para que a sociedade do “outro” se mostre como ela é. Ao discordar da
vinculação que existia entre a compreensão do presente de uma cultura e o seu passado,
Brown aponta para um estudo funcional das sociedades. Assim o estudo do “outro”,
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supera uma preocupação com a história, que é, antes de tudo, uma preocupação do “eu”,
que valoriza o tempo linear, histórico. O Funcionalismo proposto por Radcliffe-Brown
ajudou a pensar a sociedade do outro em seus próprios termos.
Cabe ressaltar a importância do trabalho do antropólogo Malinowski, que foi
plenamente ao encontro do “outro” ao levar ao extremo a idéia da inserção na cultura do
“outro” por meio da pesquisa de campo. Ainda que não seja uma inovação proposta
pelo antropólogo – Boas já utilizava o método – Malinowski propõe uma imersão total
na cultura a ser conhecida, que deveria passar pela incorporação desta pelo
pesquisador. Esse instrumento fomentou o surgimento de uma comparação possível na
instância antropológica, a comparação relativizadora:
“Malinowski comparou objetos com seus respectivos contextos e destes para
outra cultura onde também examinou contextos e objetos. A comparação
relativizadora, o trabalho de campo, a autonomia da Antropologia diante da
História e do fato social frente ao individual são passos gigantescos rumo à
superação do etnocentrismo.” (Rocha, 1984, p 72)
O etnocentrismo está calcado em sentimentos fortes como o reforço da identidade do
“eu”. Para a sociedade ocidental, em especial, o etnocentrismo está aliado à idéia de
progresso, à ideologia da conquista e à crença num estilo de vida que exclui a diferença
O afastamento do pensamento etnocêntrico se configura como o objetivo final da
Antropologia, que se dispôs a enfrentar a complexidade que é relativizar. Esta
dificuldade se confirma quando nos deparamos com outros espaços de pensamento e de
ação social onde muito pouco se relativiza, tais como as relações interétnicas, os
costumes políticos, a indústria cultural e a exploração econômica.
Superados alguns entraves que limitavam o entendimento das culturas, os novos estudos
preocuparam-se em entender os diferentes caminhos que conduziram as sociedades
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dentro de suas particularidades às atuais relações. Assim, a diversidade cultural passou a
ser objeto de estudo. De acordo com Santos (1989), esse caminhar da humanidade é
marcado por contatos e conflitos entre modos diferentes de organizar toda a estrutura
social, da maneira como os recursos naturais são apropriados e empregados, da própria
concepção de realidade. A história, cenário para a evolução dos homens, registra todo o
processo de transformação por que passam essas culturas, desdobramentos de forças
endógenas e exógenas e conseqüência dos contatos e conflitos que desembocam na
situação contemporânea.
Todo esse processo histórico serviu de alicerce para o desenvolvimento dos mais
diversos tipos de agrupamentos humanos dotados de características que os une e os
diferenciam. Sob essa perspectiva, cultura diz respeito à humanidade como um todo,
assim como a cada um dos povos, sociedades, nações e grupos humanos. A fim de
entender essa gama variada de culturas, Santos (1989) relaciona a variedade de
procedimentos culturais ao contexto em que são produzidos, uma vez que, o conjunto de
hábitos, crenças e afinidades que formam um agrupamento é resultado da sua existência.
“Entendido assim, o estudo da cultura contribui no combate a preconceitos, oferecendo
uma plataforma firme para o respeito e a dignidade nas relações humanas” (Santos,
1989, p 8).
Nesse sentido, cabe reafirmar a impossibilidade de estabelecer seqüências históricas
fixas pelas quais cada realidade cultural passou: cada cultura é resultado de uma história
particular, assim como suas relações com outras culturas. Desse modo, falar das etapas
evolutivas humanas da selvageria, barbárie e civilização permite a compreensão do
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aparecimento da sociedade burguesa na Europa, mas não são suficientes para entender
culturas que se desenvolveram fora do âmbito dessa civilização.
Percebe-se que essa tendência de classificação de culturas culminava numa justificativa
do domínio das sociedades capitalistas centrais. A introdução de idéias racistas foi
associada a essa linha de pensamento: muitas vezes os povos não-europeus foram
considerados inferiores, o que era usado como justificativa para seu domínio e
exploração. Observa-se então que a diversidade das culturas existentes acompanha a
variedade da história, contrariando a idéia de uma linha de evolução única para as
sociedades humanas. No entanto deve-se atentar para a relativização total do estudo
dessas culturas.
De acordo com Santos (1989), a idéia de relativismo parte do princípio que a avaliação
das culturas varia de acordo com o observador, ou seja, depende da cultura particular da
qual se efetue a observação e análise. Desse modo, a observação de outras culturas
depende do ponto de vista definido pela cultura do observador, assim como dos critérios
usados para classificar essas mesmas culturas.
Se tomarmos a relativização total como referência para o estudo das culturas, toda a
diversidade cultural será suprimida em prol de um entendimento restrito destas, ou seja,
a constatação do relativismo cultural. Cabe considerar sempre a história da humanidade.
O entendimento dessa história é primordial para se compreender a importância dos
aspectos objetivos que o desenvolvimento histórico e a relação entre povos e nações têm
na formação dessas culturas. Assim,
“Não há superioridade ou inferioridade de culturas ou traços culturais de modo absoluto, não há nenhuma lei natural que diga que as características de uma
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cultura a faça superior a outras. Existem, no entanto, processos históricos que as relacionam e estabelecem marcas verdadeiras e concretas entre elas.” (Santos, 1973, p 16)
Assim, percebe-se que a ênfase dada ao relativismo de critérios culturais é uma questão
estéril quando se depara com a história, cenário onde essas culturas se relacionam e se
hierarquizam. “Mostrar que a diversidade existe não implica concluir que tudo é
relativo, apenas entender as realidades culturais no contexto da história de cada
sociedade, das relações sociais dentro de cada qual e das relações entre elas” (Santos,
1989, p 20).
Para Lévi-Strauss (2004), no entanto, só existem duas atitudes mentais possíveis: o
etnocentrismo, do Ocidente ou do selvagem, que defende o valor absoluto de sua
própria cultura e, ainda, acredita na barbárie. Por outro lado, há o relativismo, que passa
a reconhecer um valor apenas relativo e igual em todas as culturas, e nega a idéia da
barbárie.
Lévi-Strauss (2004) tenta compreender quais seriam as lições do relativismo. Para esse
estudioso, o relativismo responde a três necessidades. A primeira seria uma posição
ético-político contra os males o expansionismo ocidental, notadamente colonialista,
praticados em nome de um ideal “civilizador”. Outra, o relativismo cultural responde a
uma necessidade metodológica – o etnólogo só pode alcançar resultados científicos se
suspender a priori qualquer julgamento moral sobre o que parece ser “bárbaro” nas
populações que estuda. Por fim, Strauss pontua que se trata de uma resposta
epistemológica. Para esse autor, toda cultura tem uma estrutura interna, cujos elementos
podem se relacionar entre si para serem compreendidos. Assim: “Estando todo modelo
cultural circunscrito à sua área de validade, nenhum deles é, por direito universal ou
absoluto, superior aos outros” (Strauss apud Wolff in Novaes, 2004, pág 35). Seria a
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tese oposta ao evolucionismo, que explica a sociedade por sua história e não pela sua
estrutura, além de considerar todas as sociedades como momentos sucessivos de um
mesmo devir humano. Dessa maneira percebe-se que a contrapartida do estruturalismo
straussiano, que é o valor igual de todas as culturas, sendo todas possíveis expressões do
humano.
Ainda, para Strauss (2004), o relativismo cultual apresenta vantagens incontestáveis.
Afinal, proclamar o igual valor de todas as culturas parece ser outro modo de proclamar
a igual dignidade de todos os homens, a melhor proteção contra a uniformização e o
imperialismo culturais.
1.6 A DIVERSIDADE
Percebe-se que uma das características das sociedades modernas é o alto grau de
diversidade externa e interna. A diferenciação interna básica é proveniente das posições
diferenciadas que a população assume no processo de produção. Há assim, a divisão
superficial entre a classe que detém os bens de produção e a classe trabalhadora, que
constituem os trabalhadores dessas organizações. Essas classes, por sua vez apresentam
formas de viver diferentes. No entanto, essa diferenciação é muito mais complexa e
depende de outros fatores tais como as paisagens regionais da sociedade, da religião e
outros. A intenção nessa exposição é destacar que, para ser entendida, a cultura deve ser
tratada como uma dimensão do processo social e, por isso, serve de instrumento para
compreender as sociedades contemporâneas.
Sobre a diferenciação interna de uma sociedade, Santos (1989) aponta duas formas de
classificação cultural mais freqüentemente usadas. Para isso, recorre à história e volta à
Europa já no fim da Idade Média quando a cultura se transformou na descrição das
formas de conhecimento dominantes nos Estados Nacionais. Nesse contexto, somente a
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classe dominante nesses países tinha acesso ao conhecimento erudito. Contrapondo-se à
cultura erudita, o conhecimento ao qual a maior parte da população tinha acesso, cujo
conteúdo era visto como inferior, atrasado, superado logo adquiriu status de outra forma
de cultura, a cultura popular.
Percebe-se assim que a cultura popular é classificada a partir da relação desta com a
cultura erudita, sempre associada às culturas dominantes. As preocupações com a
cultura popular, oriunda da classe dominante, podem ser vistas como tentativas de
classificação das formas de pensamento e ação das populações marginais de uma
sociedade, buscando entender a sua lógica interna e os desdobramentos políticos e
sociais que poderiam gerar.
As instituições – universidades, academias e ordens profissionais – detêm um papel
importante na questão da legitimação da cultura erudita, expressa pela filosofia, ciência
e todo o saber proveniente e controlado pela classe dominante. Obviamente, essas
instituições se encontram distantes do controle das classes dominadas. Desse modo:
“...entende-se, então, por cultura popular as manifestações culturais dessas
classes (dominadas), manifestações diferentes da cultura dominante, que estão
fora de suas instituições, que existem independentemente delas, mesmos que
sendo suas contemporâneas.” (Santos, 1989, p 55)
Desse modo, é possível afirmar que é a própria elite cultural da sociedade, legitimadas
pelas instituições, que desenvolvem o conceito de cultura popular. Partindo dessa
premissa pode-se sugerir que a polarização entre o erudito e o popular, sob o qual
classificamos os tipos de cultura, pode ser transferida para o âmbito social, mais
precisamente para as classes sociais. Dessa forma, a existência de uma classe dominada
26
denuncia as desigualdades sociais e a necessidade de eliminá-las, agregando à cultura
popular o papel de transformadora. Assim como a expansão da classe dominadora pode
ser vista como uma expansão colonizadora. (Santos, 1989).
Santos (1989) ressalta que as manifestações culturais não podem ser totalmente
reduzidas às relações sociais de que são produtos. As culturas também têm sua dinâmica
própria, ou seja, são criativas. Embora a cultura não esteja presa, exclusivamente, às
outras dimensões da sociedade, é inegável que mantenha relações fundamentais com
elas.
Apesar dessa distinção, há que se ressaltar ainda a cultura de massa, que toma como
referência o erudito e o popular, cujo produto está voltado ao consumo, e nesse sentido,
deve agradar a todos os grupos sociais. Rocha (1989) observa que as sociedades de
massa – lugares da cultura de massa – são resultado da ação de instituições dominantes
que criam e provêm necessidades nas multidões e em seus participantes anônimos.
Além disso, essas mesmas instituições desenvolvem mecanismos de controle, fazendo
com que as massas produzam, consumam de maneira resignada, sem questionar seus
sonhos e destinos.
1.7 CULTURA DE MASSA
Os meios de comunicação de massa – rádio, televisão, imprensa, cinema entre outros –
servem como instrumento para a transmissão de mensagens às multidões. Esses
mecanismos são os responsáveis pela tendência à homogeneização da vida e da visão de
mundo das mais diversas populações. Para Rocha (1989), o epicentro dessa cultura
niveladora se encontra num setor específico de atividade, a indústria cultural.
27
O ritmo acelerado de produção e consumo é acompanhado da evolução dos meios de
comunicação que se aprimoram na rapidez e alcance. A indústria cultural é, por si só,
uma esfera de atividade econômica, que emprega mão-de-obra especializada,
desenvolve novas tecnologias, produz bens e serviços. Assim, esses meios de
comunicação são elementos fundamentais da própria organização social e estão
associados às manobras do poder e da manipulação da vida social.
Esses meios de comunicação de massa penetram em todas as esferas da sociedade –
social, política, econômica, religiosa – e são responsáveis não só pela transmissão de
informações, mas também difundem maneiras de comportamento, estilos de vida, de
pensar, de falar, de amar, de sofrer, de lutar. Essas mensagens, embora pareçam ser
dirigidas a cada indivíduo particularmente, trazem conteúdos comuns e ajudam a criar
necessidades massificadas, assim como transmitir idéias a respeito dos mais diversos
assuntos e esferas. No âmbito prático, por exemplo, o governo de Hitler, durante sua
ascensão e queda, lançou mão de meios de comunicação em massa – como filmes,
propagandas e outros – para incutir os seus ideais aos indivíduos e, assim, criar uma
coesão popular (Rocha, 1989).
Interessante é notar que a lógica por trás desse nivelamento é o amaciamento dos
conflitos sociais. No entanto, “a cultura na sociedade contemporânea não se reduz ao
conteúdo dos meios de comunicação em massa, nem à lógica do funcionamento da
indústria cultural é necessariamente uma descrição da dimensão cultural da sociedade”
(Rocha, 1989 p.69). Sob essa perspectiva é possível perceber que nem mesmo a
niveladora indústria cultural está imune às contradições da vida social, mostrando que o
controle das massas não é absoluto, ou seja, a percepção dos consumidores em relação
28
ao mundo ao seu redor não pode ser totalmente substituída. As mensagens da indústria
cultural, com propósitos de homogeneização e controle das populações, podem ser um
projeto dos interesses dominantes da sociedade, mas não podem ser tomadas como a
cultura dessa sociedade. Nesse sentido,
“... como as nações são unidades políticas da história contemporânea e como entendemos a cultura como dimensão do processo social, pode-se pensar em cultura nacional. Sendo ela o resultado e aspecto de um processo histórico particular. É uma realidade histórica, resultado de processos seculares de trabalho e produção, de lutas sociais, conseqüência das forças como a nação se produziu. A cultura nacional é, portanto, mais do que a língua, os costumes, as tradições de um povo, os quais de resto são também dinâmicos, também sofrem alterações constantes.” (Rocha, 1989, p 72).
As discussões acerca da cultura nacional são um terreno fértil para a alteração das
relações de poder na sociedade. Afinal, a cultura pode ser tratada como uma realidade
estanque, de características acabadas e, por isso, pode ser capaz de explicar a vida da
sociedade. Então, se a cultura não mudasse, não haveria o que fazer senão aceitar como
naturais as suas características, e estariam justificadas assim as suas relações de poder.
A discussão sobre cultura engloba, nesse sentido, as relações de poder. As culturas
foram “consolidadas” com o processo de formação de nações modernas dominadas por
uma classe social, período de expansão de mercado das potências européias. Assim, as
preocupações com culturas surgiram associadas ao progresso da sociedade e do
conhecimento quanto às novas formas de dominação.
Atualmente, a cultura é uma preocupação dos centros de poder das sociedades, que
buscam entendê-la e, assim, agir sobre o seu desenvolvimento. Rocha (1989) lembra
que existem instituições públicas encarregadas disso. A cultura, então, merece atenção
como uma esfera de atuação econômica, com empresas voltadas diretamente para elas.
Por fazer parte da organização social, a cultura estimula movimentos sociais que exigem
29
que esse setor seja democratizado e expandido, principalmente se considerarmos as
mazelas de um povo tais como o analfabetismo, a pobreza do serviço público, a
deficiência da educação, a falta de investimento na formação intelectual das novas
gerações. Assim, fica explícita a proximidade que a preocupação com a cultura mantém
com as relações de poder, ajudando a perpetuar as formas de dominação na sociedade.
1.8 A QUESTÃO DA IDENTIDADE
A identidade tem se destacado como uma questão central das discussões
contemporâneas, no contexto da globalização, da reafirmação das identidades nacionais
e étnicas. A identidade, nesse caso, pode ser definida simplesmente como aquilo que se
é. Assim, nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é auto-
contida e auto-suficiente. Seguindo o mesmo raciocínio, tem-se que a diferença também
é uma entidade independente. Em oposição à identidade, a diferença é aquilo que o
outro é. Dessa forma, identidade e diferença estabelecem uma relação de estreita
dependência. Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos sendo a norma pela qual
descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos (Silva, 2000).
Além de serem interdependentes, identidade e diferença são resultados de atos de
criação lingüística, ou seja, não são elementos da natureza, essências. Ao contrário, são
entidades ativamente produzidas, fabricadas no contexto das relações culturais e sociais.
Vale lembrar que o ato lingüístico está sujeito a propriedades que caracterizam a
linguagem em geral. Logo, os elementos – os signos – que constituem uma língua não
têm valor absoluto, não faz sentido se considerado isoladamente. Assim, a identidade e
a diferença não podem ser compreendidas fora dos sistemas de significação nos quais
adquirem sentidos, uma vez que elas são resultados da cultura e dos sistemas simbólicos
que as compõem (Silva, 2000).
A identidade, assim como a diferença, é uma relação social, por isso sujeita a vetores de
força, de relações de poder. Elas não são impostas e não convivem lado a lado de
maneira harmoniosa, em um campo sem hierarquias. Assim, a definição da identidade e
da diferença é um objeto de disputas entre grupos sociais assimétricos. Sendo que, nessa
30
disputa identitária, se encontra uma disputa mais ampla, por recursos simbólicos e
materiais da sociedade. A identidade e a diferença estão, pois, diretamente conectadas
com as relações de poder (Silva, 2000).
Sob essa perspectiva, afirmar a identidade significa delimitar fronteiras, fazer distinções
entre o que fica dentro e o que fica fora, reafirmando as relações de poder. A partir daí,
surgem as classificações, que sempre são feitas a partir do ponto de vista da identidade.
Nesse caso, dividir e classificar significa hierarquizar. Aquele que classifica, detém o
privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados. Estabelecer uma
determinada identidade como norma pode ser considerada uma das formas privilegiadas
de hierarquização (Silva, 2000).
Stuart Hall (2000), por sua vez, acredita que seja necessário vincular as discussões
acerca da identidade e das práticas que têm perturbado o caráter “estabelecido” de
muitas populações e culturas aos processos de globalização que acabam se confundindo
com a modernidade.
Ainda para esse estudioso, as identidades são construídas dentro dos discursos, sendo
produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e
práticas discursivas específicas. Além disso, a identidade pode ser considerada mais um
produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade
idêntica, naturalmente constituída. Assim, as identidades são construções feitas a partir
das diferenças e não fora delas, ou seja, apenas no contato como o outro, da relação com
aquilo que não é, se pode distinguir a sua identidade. Assim Hall aponta para a questão
de quem e o que nós representamos quando falamos. O autor argumenta que o sujeito
fala e se expressa a partir de uma posição histórica e cultural específica e, então, define
“identidade”: “Ponte de encontro, ponto se sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas
que tentam no “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos
nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro
lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como
sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades são, pois, pontos de apego
temporário às posições de sujeitos que as práticas discursivas constroem para
nós.” (Hall, 2000, p111)
31
Woodward (2000) também defende que a identidade seja algo marcado pela diferença e
pelo uso dos símbolos. Assim, a construção da identidade seria algo tanto simbólico
quanto social. A luta para afirmar as diferentes identidades tem causas e conseqüências
materiais, como a guerra, por exemplo. A autora pontua, ainda, que em alguns
momentos e lugares particulares, determinadas diferenças assumem um papel com mais
importância. Dessa forma, a afirmação das identidades nacionais é historicamente
específica. Uma das formas pelas quais as identidades reivindicam é por meio de apelos
a antecedentes históricos. Sobre isso, Woodward comenta:
“Ao afirmar uma determinada identidade, podemos buscar legitimá-la por
referência a um suposto e autêntico passado – possivelmente um passado
glorioso, mas, de qualquer forma, um passado que parece “real”-que poderia
validar a identidade que reivindicamos. Ao expressar demandas pela identidade
no presente, os movimentos nacionalistas buscam a validação do passado em
termos de território, cultura e local.” (Woodward, 2000, p27).
No contexto no qual fenômeno da globalização acarreta grandes transformações, a idéia
de uma “crise de identidade” surge como ponto a ser discutido. A globalização, ao
envolver uma interação de fatores econômicos e culturais, causando mudanças nos
padrões de produção e consumo, acaba produzindo novas identidades globalizadas.
Assim, a homogeneidade cultural promovida por esse mercado global pode levar ao
distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultura local. Em
contrapartida, pode haver uma resistência com o intuito de fortalecer e reafirmar
algumas identidades nacionais e locais ou até mesmo desencadear o surgimento de
novas posições de identidade (Woodward, 1997).
As mudanças na economia global produzem dispersão das demandas ao redor do
mundo. A migração de trabalhadores motivada pela necessidade econômica, por
exemplo, ilustra essa revolução transnacional que está remodelando as sociedades e as
políticas ao redor do mundo. Essa dispersão de pessoas ao redor do globo produz
identidades que são moldadas e localizadas em diferentes lugares. Por fim, as mudanças
e transformações globais nas estruturas políticas e econômicas no mundo
contemporâneo colocam em relevo as questões da identidade e as lutas pela afirmação e
manutenção das identidades nacionais e étnicas. As identidades em conflito se
encontram, então, no interior de mudanças sociais, políticas e econômicas, mudanças
32
para as quais elas contribuem. As atuais lutas políticas são descritas e teorizadas não
mais em termos de ideologia, mas, sim, pela competição e pelo conflito entre as
diferentes identidades, reforçando o argumento da existência de uma crise de identidade
no mundo contemporâneo (Woodward, 1997).
1.9 INTRODUÇÃO ÀS TEORIAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: NOVOS
PARADIGMAS
O estudo das relações internacionais na contemporaneidade intensificou-se devido às
profundas transformações ocorridas nas últimas décadas em decorrência do fim do
conflito bipolar, da aceleração dos fenômenos de globalização e da fragmentação
sociocultural. Emergiram então novos campos de estudo, assim como novos projetos de
pesquisa. A crise das estruturas de autoridade baseadas no Estado-Nação, o
questionamento da hegemonia do realismo e a interdisciplinaridade conduziram à busca
de novos paradigmas.
Herz (1997) considera três tendências para as quais os estudos das Relações
Internacionais nos anos 1990 parecem convergir. Observa que há uma intensificação do
debate em torno do papel das instituições internacionais, o retorno da dimensão cultural
enquanto tema das relações internacionais e a nova legitimidade de estudos de caráter
normativo.A autora aponta que o surgimento ou ressurgimento desses paradigmas foi o
resultado de uma série de fatores endógenos e exógenos, tais como o fim da Guerra Fria
e do conflito entre dois sistemas socioeconômicos distintos, o fluxo transnacional de
bens materiais, culturais, e financeiros, a globalização, os conflitos étnicos e nacionais,
narcotráfico, terrorismo, desequilíbrio ambiental, desenvolvimento econômico,
migrações, armamentos, as ONGs e os blocos de integração regionais.
33
A análise de Herz (1997) aponta a incorporação de temas como cultura e identidade
como questões de caráter crucial para o entendimento das relações internacionais. Essa
tendência pode ser percebida em autores como Goldstein e Keohane (1993).
Herz (1997) mostra que nos anos 1950 e 1960, havia uma preocupação com a distorção
das informações e com os possíveis problemas gerados pela leitura de autores realistas,
tais como a homogeneização estatal. Assim, temas na esfera cultural, nesse período,
contribuíram para análises da política externa enfatizando variáveis cognitivas.
Nos anos 1970, Herz (1997) aponta a Escola Inglesa como responsável pelo
levantamento de discussões acerca do tema, ao introduzirem uma distinção entre
sistema internacional e sociedade internacional, considerando a existência de normas e
valores compartilhados, ou seja, defendiam a idéia de uma cultura internacional. Os
anos 1980, por sua vez, foram um terreno fértil para as perspectivas pós-modernistas,
onde o interesse por questões subjetivas, como cultura e identidade foram latentes. No
entanto, nesse mesmo período, influenciados pelas teorias neo-realistas, particularmente
o trabalho de Kenneth Waltz (1979), o tema da cultura foi negligenciado pelos trabalhos
sobre o sistema internacional.
Herz (1997) ressalta que hoje, percebe-se um retorno ao tema, com autores que
trabalham com economia internacional Jacobsen (1995, apud HERZ, 1997), análise de
política externa, liberais ou neoliberais, como Goldstein e Keohane (1993, apud HERZ,
1997), e conservadores como Huntington (1997). Tais estudiosos voltam a enfatizar os
papéis da cultura e da identidade na configuração do sistema internacional. Segundo a
autora:
34
“A premência de estudos sobre os fenômenos de fragmentação e integração de comunidades, conflitos étnicos e nacionais, possibilidades de cooperação internacional e a necessidade de uma maior reflexão sobre o papel dos analistas de política internacional leva-nos de volta ao tema da cultura, ao papel das idéias e identidades, às análises de dentro para fora.” (Herz, 1997)
Cabe ressaltar assim a necessidade do retorno ao conceito de cultura internacional para
entender os processos de cooperação internacional. Tal abordagem pode, então,
enfatizar a gestação de uma sociedade internacional integrada, ou até mesmo realçar a
contradição entre o processo de universalização de todo um modo de pensar e as
peculiaridades de cada cultura.
O retorno dessa perspectiva que coloca a cultura e identidades como elementos
socialmente construídos vai de encontro às teorias que tratavam os atores como estáveis
e previsíveis como bolas de bilhar.
De acordo com Herz (1997), à medida que as premissas de teorias como a realista ou a
institucionalista são questionadas, a cultura e a identidade reagem como variáveis
endógenas às análises da arena internacional.
As análises de cunho cognitivo, como as iniciadas pela escola inglesa, não devem ser
repetidas ou marginalizadas. Percebe-se a insurgência de temas e perspectivas teóricas
distintas que interagem com essa problemática, proporcionando aos estudos das relações
internacionais um caráter ainda mais interdisciplinar.
1.10 PARADIGMA DE HUNTINGTON
De acordo com Huntington (1997), a cultura e as identidades culturais estão moldando
os padrões de coesão, desintegração e conflito no mundo Pós-Guerra Fria. Segundo o
35
autor, a política mundial é multipolar e multicivilizacional; o equilíbrio de poder que
tem o Ocidente como poder hegemônico está se deslocando para as novas potências que
começam a emergir na Ásia a partir da explosão demográfica do Islã; uma nova ordem
mundial está surgindo e as sociedades afins cooperam mais umas com as outras e, por
fim, que as pretensões universalistas do Ocidente agravam cada vez mais os conflitos,
principalmente com o Islã e a China.
Partindo da premissa que durante a Guerra Fria o mundo se tornou bipolar e que já na
década de 1980, o mundo comunista desmoronou, as distinções mais importantes entre
os povos deixaram de ser ideológicas, políticas ou econômicas, tornando-se
preocupações culturais. Assim, a pergunta “quem somos nós?” assume um novo
patamar de importância e, para respondê-la, as pessoas se definem em termos de
antepassados, religião, idioma, história, valores, costumes e instituições. Os indivíduos
se identificam com grupos étnicos, comunidades religiosas, nações e civilizações.
(Huntington,1997).
Na contramão desse pensamento, Hall (2004) acredita numa mudança de paradigmas
trazida pela modernidade, no entanto, numa outra direção. De acordo com o autor, o
indivíduo está passando por profundas transformações, reflexo das mudanças estruturais
da sociedade na qual ele está inserido. Todo esse processo desestrutura a idéia que
temos sobre nós mesmos como sujeitos integrados. Seria um deslocamento ou
“descentração” do sujeito, tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si
mesmo, o que causa uma “crise de identidade”. Esse sujeito moderno seria então,
moldado pelo ritmo e alcance das mudanças, numa realidade histórica caracterizada pela
36
“diferença”. Esse novo indivíduo está se tornando fragmentado, composto não de uma,
mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas (Hall, 2004).
“Correspondentemente, as identidades, que compunham as realidades sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais.” (Hall, 2004, p 12).
Assim, a identidade seria uma “celebração móvel”, formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos apresentados nos sistemas
culturais. Com a multiplicação dos sistemas de significação, o indivíduo se vê diante de
uma multiplicidade de identidades possíveis, com cada uma das quais poder-se-ia
identificar, mesmo que fosse temporariamente (Hall, 2004).
Tomando como referência a esfera além do indivíduo, o pensamento de que os Estados-
nações permaneçam no posto de principais atores do sistema internacional não é
descartado. O comportamento dos Estados continua orientado no sentido da busca do
poder e riqueza, sem descartar, todavia, os aspectos comuns e diferenças. De acordo
com Huntington (1997), a política mundial, está sendo reconfigurada de acordo com as
linhas culturais e civilizacionais. Nesse sentido, os conflitos que irão alarmar o mundo
contemporâneo não se darão entre classes sociais, ou entre grupos definidos por termos
econômicos, mas sim entre povos pertencentes a diferentes entidades culturais. Isso se
deve aos diferentes pressupostos culturais entre as civilizações, tais como filosofia,
valores subjacentes, relações sociais, costumes e as formas de ver a vida de forma geral.
Desse modo,
“...a revitalização da religião em grande parte do mundo está reforçando essas diferenças culturais. As culturas podem se modificar e a natureza do seu impacto sobre a política e a economia pode variar de um período para o outro. Contudo, as principais diferenças em desenvolvimento político e econômico entre as civilizações estão nitidamente enraizadas em suas culturas diferentes.” (Huntington, 1997, p.28)
37
Os padrões predominantes de desenvolvimento político e econômico diferem de uma
civilização para outra. Desse modo, as questões-chave do cenário internacional
envolvem diferença entre as civilizações. A política mundial é, hoje, multicivilizacional.
Segundo Huntington (1997), dentre todos os elementos objetivos que definem as
civilizações, o mais importante é a religião:
“Em larga escala, as principais civilizações na História da humanidade se identificaram com as grandes religiões do mundo, e povos que compartilham etnia e idioma, podem, como no Líbano, na Iuguslávia e no continente indiano, massacrar-se uns aos outros porque acreditam em deuses diferentes.” (Huntington, 1997, p.47).
A existência de uma “civilização universal”, cuja definição implicaria a conjunção
cultural da humanidade e a crescente aceitação de valores, crenças, orientações, práticas
e instituições comuns pelas sociedades, transformou-se em tema de discussão. No
entanto, Hall (2004) discorda dessa possibilidade ao enfatizar que essa
“homogeneização cultural” é uma visão simplista e unilateral. Para o autor, essa
tendência homogeneizante vai de encontro da fascinação que o “diferente” acaba
causando. Junto disso, o “local” também se torna interessante. Além disso, pode-se
dizer que o processo de globalização1 é muito desigualmente distribuído ao redor do
mundo, entre regiões e populações, fato que dificultaria a existência dessa “civilização
global” (Hall, 2004).
No entanto, de acordo com Huntington (1997), há outras maneiras de definir
“civilização global”. A primeira está ligada diretamente às questões dos valores básicos,
ou seja, haveria um “sentido moral” parecido entre as pessoas das sociedades. Em
1 A Globalização representa, ao mesmo tempo, interpenetração e interconexão marcadas pela supremacia do capital e do mercado, entre regiões, estados nacionais e comunidades, e potencialização da demanda por singularidade e por espaço para a diferença. Se nas instâncias econômicas a globalização significa o retraimento da soberania dos estados sobre essas, nas instâncias culturais o processo encontra a necessária resistência à perda das identidades e à anulação de culturas. (Fróis, 2004).
38
segundo lugar, “civilização universal” poderia se referir àquilo que as sociedades
civilizadas têm em comum, como as cidades e a alfabetização, o que as distingue de
outros tipos de sociedades. Em terceiro lugar, poderia ser os pressupostos, valores,
doutrinas atualmente mantidas pela civilização ocidental e por alguns povos de outras
civilizações. Por fim, propõe-se a noção de que a disseminação da cultura e padrões
ocidentais está criando uma civilização universal, tendo a comunicação global como
uma das mais importantes manifestações do poderio ocidental.
De acordo com Hall (2004), essa seria uma visão equivocada acerca da sociedade
contemporânea. Embora Hall admita que a globalização tenha efeito pluralizante sobre
as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de
identificação, seu efeito geral permanece contraditório. Algumas identidades buscam
recuperar sua pureza, enquanto outras aceitam que são sujeitas ao plano da história, da
política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam
imutáveis ou puras.
Segundo Huntington (1997), a religião é um dos elementos centrais da civilização, no
entanto, dificilmente surgiria uma religião universal. No final do século XX notou-se
um ressurgimento global da religião em todo o mundo. Tal fato desdobrou-se na
intensificação da consciência religiosa e na ascensão de movimentos fundamentalistas,
assim como houve um reforço das diferenças entre as religiões.
O ressurgimento islâmico, especificamente, é um movimento intelectual, cultural, social
e político que predomina no mundo muçulmano. De acordo com Huntington (1997), o
“fundamentalismo” islâmico seria apenas mais um componente numa revitalização
39
extensa de idéias, práticas e retóricas islâmicas e no próprio engajamento no Islamismo
pelas populações muçulmanas. Esse ressurgimento é a última fase do ajuste da
civilização islâmica ao Ocidente, uma espécie de tentativa de encontrar a solução no
Islamismo, funcionando como um agente de aceitação da modernidade, rejeição do
ocidentalismo e no reengajamento do Islã como um guia cultural.
Esse processo de islamização tende a ocorrer inicialmente no âmbito cultural,
deslocando-se, então para as áreas sociais e políticas. Na maioria dos Estados, um dos
elementos centrais foi o desenvolvimento de uma organização social islâmica e a
captura de organizações preexistentes por grupos islâmicos. Nesse caso, os grupos
fundamentalistas voltaram seus esforços na área da educação, investindo na abertura de
escolas públicas islâmicas com o intuito de divulgar o islamismo. Os governos
expandiram o ensino religioso nas escolas controladas pelo Estado, sendo os professores
divulgadores da doutrina fundamentalista islâmica. Essas ações são maneiras de
confirmar a dedicação dos governos ao Islã. Além dos estudantes, outros indivíduos
também eram levados a aprender os valores islâmicos, fazendo-os mais abertos aos
chamamentos fundamentalistas islâmicos, além de formar militantes que se lançam ao
trabalho em favor do fundamentalismo.
Os governos dos países islâmicos também tomaram providências para islamizar suas
legislações, através da incorporação de símbolos e utilização de práticas islâmicas nos
seus regimes. Para Huntington (1997) pode-se apontar alguns fatores como sendo os
principais impulsionadores do ressurgimento islâmico: a urbanização, mobilização
social, alfabetização e educação, comunicações e consumo da mídia intensificados e
uma interação expandida com outras culturas. As manifestações políticas do
40
ressurgimento têm sido menores que as manifestações sociais e culturais. Nesse caso, os
principais adeptos desses movimentos são pessoas mais jovens, com grande mobilidade
e orientadas para a modernidade, tais como estudantes e intelectuais e que, logo
formarão o quadro de militantes e as tropas de choque dos movimentos
fundamentalistas.
Nas décadas de 1970 e 1980 ocorreu uma onda de democratização mundial. Esta causou
impacto nas sociedades muçulmanas, embora com menor intensidade. Nesse momento,
o Islamismo surgiu como um substituto funcional da oposição democrática ao
autoritarismo nas sociedades cristãs. A força dos movimentos fundamentalistas
islâmicos era, em parte, função da debilidade das alternativas de oposição, tais como os
movimentos esquerdistas e comunistas que ficaram desacreditados após o colapso da
União Soviética (Huntington, 1997).
As taxas de crescimento populacional, por sua vez, são também responsáveis pelo
ressurgimento. O autor afirma que no início do processo, a proporção de jovens (entre
15 e 24 anos de idade) cresceu de modo significativo nos principais países muçulmanos,
chegando a ultrapassar vinte por cento do total da população. Esses jovens fornecem os
recrutas para as organizações e os movimentos políticos fundamentalistas islâmicos.
São os jovens os protagonistas dos protestos, da instabilidade, da reforma e da
revolução. Além disso, populações maiores, por sua vez, necessitam de mais recursos e,
por conseguinte, populações densas, tendem a ocupar territórios e a exercer pressão
sobre outros povos menos dinâmicos demograficamente. Dessa forma, percebe-se que o
crescimento populacional islâmico é um importante fator que contribui para os conflitos
41
das fronteiras do mundo. Os israelenses, por exemplo, estão preocupados com as altas
taxas do crescimento dos palestinos.
Cabe ressaltar que os jovens são sempre alvos de interesse quando existe o interesse em
disseminar idéias e valores. Nesse sentido, Mearsheimer e Walt (2006) defendem a idéia
de que o cerne da política americana no Oriente Médio é resultado de uma articulação
de indivíduos e entidades ligadas à Israel, criando a ilusão de que os interesses dos
Estados Unidos são os mesmo de Israel. Dessa forma, todo o apoio material e
diplomático pelos EUA a Israel estaria justificado.
Os autores demonstram que o lobby não se limitava a questões de assistência direta
econômica e militar concedidas pelos Estados Unidos da América a Israel, mas galgava
o seu espaço dentro das universidades, com o monitoramento sobre o que os professores
escrevem e ensinam. Um exemplo seria a criação de um website por dois
neoconservadores pró-Israel no qual postavam dossiês acadêmicos suspeitos e
estimulavam estudantes a relatar observações sobre comportamento que pudesse ser
considerado hostil a Israel. Ainda nas universidades, grupos lobistas fazem pressão
sobre determinados acadêmicos e universitários, levando até a demitir aqueles
considerados hostis aos seus interesses. Alguns filantropos judeus criaram grupos de
estudos israelenses com o intuito de aumentar o número de acadêmicos simpáticos a
Israel no campus (Mearsheimer, Walt, 2006).
Administradores acadêmicos ressaltam os valores pedagógicos desses programas: o que
não se sabe é para qual fim esses programas são usados. Tal situação mostra a
preocupação dos grupos interessados em controlar a esfera educacional, comprovando
42
que a orientação do indivíduo exerce papel fundamental na condução das políticas, seja
de um grupo de indivíduos ou de um Estado.
1.11 HUNTINGTON: FRONTEIRAS E CONFLITOS
Huntington (1997) relembra que os conflitos humanitários e as guerras de linha de
fratura2 fazem parte da história. Durante a Guerra Fria, por exemplo, ocorreram trinta e
dois conflitos étnicos, inclusive as guerras de linha de fratura entre árabes e israelenses,
indianos e paquistaneses e outros.
É possível listar alguns fatores responsáveis pelo surto, no final do século XX, das
guerras de linha de fratura que envolveram os muçulmanos. Primeiramente, essas
guerras teriam suas raízes na história. Há um legado histórico de matanças intermitentes
que ainda geram temores e inseguranças nos envolvidos. No entanto, a história não
pode, por si só, explicar o desmoronamento da paz, devendo-se considerar outros
fatores como as mudanças na balança demográfica. A expansão quantitativa de um
grupo gera pressões políticas, econômicas e sociais entre outros grupos e induz reações
para contrabalançá-las. Além de produzir pressões militares sobre grupos menos
dinâmicos geograficamente, esse se torna um terreno fértil para o surgimento de
temores e idéias nacionalistas que podem desencadear conflitos futuros. A expansão
étnica de um leva à limpeza do outro.
2 A linha de fratura é uma espécie de divisão que desde o renascimento europeu separaria a Cristandade Ocidental do mundo Eslavo Ortodoxo e Turco-Muçulmano. Nesta perspectiva, o autor propõe que o universo Latino-Americano constitua uma civilização à parte do Ocidente, separado do mundo Anglo-Saxão das Américas, caracterizada pela sua latinidade, catolicidade e cultura política específicos.
43
As guerras de fratura, de acordo com Huntington (1997), seriam as guerras locais com
conexões mais amplas e, portanto, promoveriam as identidades civilizacionais entre os
que delas participam. No curso da guerra, as identidades múltiplas se desvanecem e a
identidade mais relevante em relação ao conflito passa a predominar. Essa identidade,
de acordo com o estudioso, quase sempre é definida pela religião. Uma possível
explicação seria dizer que, psicologicamente, a religião proporciona a justificativa mais
tranqüilizadora para a luta contra as forças de “sem Deus”, consideradas ameaçadoras.
À medida que um conflito assim se intensifica, cada lado passa a enxergar os seus
adversários como subumanos, tornando-se, assim, legítimo matá-los. Explica-se então,
o fato dos símbolos e artefatos fundamentais da cultura adversária passaremm a ser
alvos. Como repositórios de cultura, os museus e as bibliotecas são vulneráveis. Nesse
sentido, “na guerra entre culturas, a cultura perde” (Huntington, 1997, p.346).
1.12 FIM DAS GUERRAS
Convencionalmente, toda guerra tem que terminar. Embora essas guerras de fratura
sofram hiatos proporcionados por cessar-fogos, tréguas e armistícios, tratados
abrangentes de paz não são usados para solucionar definitivamente os conflitos. Assim,
“os conflitos, por sua vez, provêm de proximidade geográfica, religiões e culturas diferentes, estruturas sociais separadas e recordações históricas das sociedades envolvidas. No decurso de séculos, tudo isso pode evoluir e o conflito subjacente pode evaporar. Ou o conflito pode desaparecer de forma rápida e brutal se um grupo extermina o outro. Entretanto, se nenhuma dessas hipóteses acontecer, o conflito prossegue, bem como os repetidos períodos de violência.” (Huntington, 1997, p 371).
A exaustão dos participantes primários nas guerras pode ocasionar uma parada na
mesma. Um segundo fator seria o envolvimento de participantes de outro nível que não
o primário, com o interesse e a força para obrigar as partes em luta a dialogarem. Há
também a possibilidade de resolução através da mediação por uma terceira parte
44
desinteressada que compartilhe dessa cultura, com legitimidade reconhecida no âmbito
dessa cultura e que conte com a confiança de ambas as partes para a solução do conflito.
De acordo com Huntington (1997), para se evitar tantos conflitos, seria necessário
reforçar a Civilização. Tal civilização se refere a uma mescla complexa de níveis
superiores de moralidade, religião, conhecimento, arte filosofia, tecnologia, bem-estar
material e provavelmente outras coisas mais. O ponto, então, se torna, investir na
modernização e no desenvolvimento moral humano produzido pela educação, percepção
e compreensão da sociedade e de seu meio ambiente natural, gerando um movimento
continuado rumo a níveis cada vez mais elevados de Civilização, cada uma dentro de
sua realidade. Nesse sentido, Pearson (1955) advertiu:
“...os seres humanos estão entrando numa fase em que as diferentes civilizações terão que aprender a viver lado a lado num intercâmbio pacífico, aprendendo umas com as outras, estudando a história e os ideais e a arte e a cultura umas das outras, enriquecendo-se mutuamente com as vidas umas das outras. A alternativa, nesse pequeno mundo superpovoado, é a incompreensão, a tensão, o choque e a catástrofe.” (Pearson, 1955, PP83-84).
2.1 HISTÓRICO CONFLITO PALESTINA
Os judeus, também chamados de israelitas ou hebreus, são um povo de origem semita
que teria migrado para a região da palestina, ocupando-a por um longo tempo até que
uma seca grave os teria forçado a migrar para a região do Egito. Para lá eles retornam
por volta do ano de 1200a.C, no episódio conhecido como “Êxodo”, conquistando a
região que eles acreditavam ser-lhes prometida por Deus e subjugando toda a Palestina.
Mais tarde o reino é dividido, num episódio chamado “Cisma”, dando origem aos
Reinos de Israel ao norte e de Judá ao sul, com capital em Jerusalém. Essa cisão acaba
enfraquecendo os dois reinos e os deixando vulnerável à dominação dos Assírios
quando os hebreus são levados à Babilônia. Anos depois, o rei dos Persas, Ciro, permite
45
que os hebreus voltem à Palestina onde ainda seriam governados pelos Persas, pelo
Império Helenístico, Egito e finalmente pelos Romanos que os expulsaram da Palestina
intensificando o processo de dispersão.
No início do século XX, viviam na Palestina sob o domínio do Império Otomano cerca
de quinhentos mil muçulmanos e cinqüenta mil judeus. Após a Primeira Guerra (1914-
1919), a Palestina passou para o poderio britânico, cujo chanceler Arthur Balfour,
declarou, em 1917, apoio à “instalação de um lar nacional judeu” no local.
Assim, em 1917, todo o território da palestina, tornou-se área de influência da Grã-
Bretanha após a queda do Império Otomano. Neste período, os interesses ingleses
convergiam com os ideais do Movimento Sionista 3 , que visava a criação de um Estado
Judeu soberano, local onde todos os judeus dispersos pelo mundo poderiam se reunir
novamente. Em dois de novembro de 1917, a Inglaterra expede a Declaração de
Balfour, cujo conteúdo assegurava o apoio britânico de estabelecimento de um Estado
Judeu através da colonização de Palestina. No entanto, o projeto não mencionava
iniciativas de salvaguardar os direitos da população existente. Nessa época, a população
contava com 92% de não-judeus, mas, ainda assim, o Governo Britânico não se
intimidou. A esmagadora maioria de árabes é tratada como "outro setor da população".
3 O sionismo é muito antigo. Desde a expulsão da Judéia pelos romanos (início da Diáspora – 135 d.C.), os judeus aspiravam a voltar a seu lar nacional. Seus textos religiosos evocavam frequentemente a volta a Sion (em português Sião). Mas foi só no século XIX. Com o “despertar das nacionalidades”, que o movimento ganhou força, sob a forma de uma colonização agrícola. A primeira colônia judaica na Palestina surgiu em 1878. O sionismo foi ativado no final do século, graças a Theodor Herlz, cujo livro O Estado Judeu (1890) e o jornal Die Welt (O mundo) provocaram a reunião em 1897, do Primeiro Congresso Sionista Mundial, que deu origem à Organização Sionista Mundial. Em 1901 foi criado o Fundo Nacional Judeu para a compra de terras na Palestina. A imigração aumentou, sobretudo depois da declaração de Balfour (1971) – que via favoravelmente a criação de um centro judeu na Palestina e que foi ratificada pela conferência de San Remo (1920) – cuja aplicação foi muito difícil, pois as relações entre judeus, árabes e ingleses na Palestina provocaram lutas sangrentas. Somente depois da II Guerra Mundial, quando seis milhões de judeus foram sacrificados por Hitler, o sionismo pôde encontrar uma solução concreta: a formação do estado de Israel (1948). (LAROUSSE, VOL. 27).
46
Através do apoio do Governo Britânico, os sionistas passaram a buscar o cumprimento
da Declaração de Balfour. Em 1922 a Liga das Nações confiou à Grã-Bretanha O
mandato de administrar a Palestina, sendo que a mandatária se responsabilizava pela
efetuação da Declaração de Balfour. Além disso, a Grã-Bretanha teria poderes e
responsabilidades pela administração de Jerusalém e Terra Santa, baseadas nos artigos
13-15, que definiam que o mandatário seria o responsável pela preservação dos lugares
santos, permitindo o acesso e a livre adoração aos templos das várias religiões. Ainda, o
mandatário deveria criar uma comissão especial que estudaria, definiria e demarcaria
uma série de regras e reclamações relacionadas aos lugares santos de Jerusalém; sujeita
a aprovação da Liga das Nações. No entanto, essa comissão nunca se estabeleceu.
O período de estabilidade que se seguiu, pode ser justificado, em parte, pelo mandato
britânico que estabeleceu a sede de todas as entidades administrativas em Jerusalém.
Dessa forma, foi permitido às comunidades judaica e árabe o direito de gerirem seus
próprios assuntos internos. No entanto, essa relativa harmonia encontrou obstáculos
com a quantidade imensa de judeus que chegavam vindos, principalmente, da Rússia,
Polônia e Alemanha, possibilitando o estabelecimento da comunidade judia. Diante
desse aumento considerável de judeus na região, a oposição por parte dos nacionalistas
árabes extremistas iniciou suas ofensivas violentas em 1920, 1921 e 1936-1939. A
partir daí, o sionismo e o nacionalismo árabe se polarizaram em uma situação
potencialmente explosiva.
Já em 1930, a população judia na Palestina havia apresentado um crescimento
considerável, chegando a trezentos mil. Esse aumento populacional levou a uma reação
violenta dos árabes, que por sua vez, pressionaram Londres. Logo a imigração judaica à
região foi restringida mesmo com o avanço nazista na Europa. Em 1937, os ingleses
47
recomendaram uma nova partilha do território situado a oeste do rio Jordão em dois
Estados, um judaico e outro árabe, ficando Jerusalém e os lugares Santos sob tutela
britânica. No entanto, a população minoritária deveria se transferir e a corrente
imigratória seria limitada. Os palestinos ficaram perplexos com o desmembramento de
sua pátria, e com a retirada forçada da sua população do virtual Estado judaico,
enquanto os judeus estavam dispostos a negociar com o governo.
O sionismo, movimento político e religioso pela fundação de um Estado judeu, surgido
no final do século XIX em reação ao anti-semitismo4, ganhou força após o Holocausto,
que matou cerca de seis milhões de judeus europeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Os judeus passaram a migrar para a Palestina formando os Kibutzim, colônias agrícolas.
A princípio, o Sionismo é tido como loucura até mesmo entre os judeus, mas a idéia de
reunir todos os judeus dispersos pela diáspora (processo de dispersão dos judeus
iniciado com a conquista da Palestina pelos Assírios) acaba conquistando a todos.
Em 1947, a ONU, então presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, aprovou um plano
de divisão da Palestina que, nessa época, já contava com 1 milhão e 300 mil palestinos e
600 mil judeus. A proposta era a divisão da região em dois Estados: 57% da área para
os judeus e 43% para os palestinos. O projeto, no entanto, não obteve a adesão de
nenhum grupo. Já em 1948, a Grã-Bretanha retirou suas tropas da região, uma vez que o
acordo que concedia o território aos britânicos chegara ao fim. Logo após a saída
4 Na Antiguidade pagã, a hostilidade aos judeus foi suscitada pela fidelidade ao Deus único, Javé, e à mensagem da Bíblia. Os primeiros cristãos, ainda confundidos com os judeus, sofreram os efeitos da mesma intolerância. Mas, quando o cristianismo tornou-se religião oficial do Império Romano, os judeus começaram a ser, pouco a pouco, considerados como a “raça maldita”, responsável pela morte sangrenta de Jesus Cristo. Daí as medidas cada vez mais rigorosas para excluí-los da sociedade cristã. Esta segregação, manifestada pela multiplicação dos guetos, favoreceu a eclosão e o desenvolvimento de falsas acusações: profanações de hóstias, crimes cultuais, envenenamento de fontes, etc. Foi só depois da Revolução Francesa que se normalizou um pouco a condição dos judeus nos países cristãos. Em 27 de setembro de 1791, a Assembléia Constituinte concedeu aos judeus franceses a cidadania plena e total (Larrouse, vol 2).
48
inglesa, foi proclamada a criação do Estado de Israel. No mesmo dia, os exércitos da
Jordânia, Egito, Síria, Iraque e Líbano atacaram o recém fundado país. Os palestinos
receberam refúgio temporário dos outros países árabes durante a ofensiva, enquanto
outros fugiram amedrontados por ações israelenses.
A ONU, que exerceu um papel importante na criação do Estado de Israel, tentou atender
as reivindicações dos judeus que almejavam um território soberano, aparentemente, sem
prejudicar os interesses dos palestinos. O projeto era a criação de dois Estados, um para
cada povo, sendo que Jerusalém seria dividida entre os dois (parte ocidental para os
judeus e oriental para os muçulmanos). No entanto, Israel nunca aceitou dividir
Jerusalém nem a existência de um Estado palestino, e os palestinos, tampouco, se
conformaram com a existência de um Estado judeu, opinião compartilhada com uma
poderosa aliança de países árabes que atacou Israel mais de uma vez.
Essa partilha, no entanto, têm gerado muita violência e controvérsia, assim como vários
processos de negociação de paz que ainda estão em andamento. O não-reconhecimento
do novo Estado pela Liga Árabe (Egito, Síria, Líbano e Jordânia) levou à Primeira
Guerra Árabe-Israelense (1948-1949) resultando na ocupação israelense das áreas
cedidas pela ONU aos palestinos, principalmente na Galiléia. Gaza ficou sob o domínio
egípcio, e a Cisjordânia, sob o domínio da Jordânia. Os palestinos se organizaram em
milícias e atacaram Israel do Líbano, da Cisjordânia e de Gaza.
A guerra ocasionou a fuga de novecentos mil palestinos das áreas incorporadas por
Israel, gerando um ponto vital no conflito entre árabes e israelenses conhecida como
Questão Palestina. Em 1956 explodiu a Guerra do Suez, motivada pelos choques na
fronteira Egito/Israel e a nacionalização do canal de Suez pelos egípcios. Israel, apoiado
49
pela França e Inglaterra, atacou o Egito e conquistou a península do Sinai. A pressão
dos Estados Unidos e União Soviética fez com que os judeus abandonassem o Sinai e
recuassem até a fronteira de 1949. A península foi ocupada por uma força de paz da
ONU.
O conflito se agravou com a criação com a criação da Organização para a Libertação da
Palestina (OLP), liderada por Yasser Arafat, em 1964, como objetivo de fundar um
Estado palestino. Para isso, a OLP iniciou uma ação de guerrilha contra Israel para
retomar seus territórios ocupados, o que levou à Guerra dos Seis Dias em 1967. Israel
fez uma ofensiva que terminou com a tomada de Gaza, Cisjordânia, Colinas de Golan
(da Síria) e do deserto (do Egito). O êxodo palestino aumentou com mais essa conquista
de Israel e alcançou, em 1968, 1 milhão e 600 mil refugiados.
O Conselho de Segurança da ONU pediu a retirada de Israel das áreas ocupadas. Em
troca, os países árabes reconheceriam o Estado judeu. Israel, no entanto, contrariou as
leis internacionais e, após instalar uma administração militar nos territórios palestinos,
começou a implantar colônias judaicas na região. Os palestinos passaram então a
intensificar as ações terroristas contra Israel e em 1973 eclodiu a Guerra do Yom Kipur
que terminou com uma intervenção dos Estados Unidos. Durante esse período, Israel
ganhou apoio dos Estados Unidos que haviam emergido como potência mundial desde a
Primeira Guerra, enquanto os árabes contavam com o apoio russo.
Já no ano de 1977, Israel, após extensas conversações, acabou devolvendo o deserto do
Sinai para os egípcios. Em 1979, Egito e Israel estabeleceram um acordo de paz,
embora a violência entre grupos israelenses e palestinos tenha continuado.
50
Em 1993, após seis meses de negociação, OLP e Israel chegaram a um primeiro acordo.
A princípio, a discussão considerava uma autonomia palestina transitória. Foi prevista a
retirada gradual de Israel dos territórios em troca de reconhecimento palestino do estado
de Israel. Gradativamente, Israel passou a se retirar dos centros urbanos palestinos, mas
continuou expandindo suas colônias em Gaza e Cisjordânia, enquanto palestinos
seguiam cometendo atentados. Em 12 de julho de 2000 iniciaram-se nos Estados Unidos
mais uma série de negociações entre o então, primeiro-ministro israelense Ehud Barak e
o líder palestino Yasser Araft. Os líderes não chegaram a um acordo, uma vez que Israel
recusou a proposta de Arafat, que exigiu plena soberania nos locais sagrados de
Jerusalém e a volta dos refugiados.
Atualmente, o impasse das negociações se deve à resistência do governo palestino que é
liderado pelo movimento radical islâmico Hamas. Lembrando que, para os Estados
Unidos e Israel, o Hamas é um grupo terrorista, e por isso, em 2006, a comunidade
internacional iniciou um bloqueio financeiro à Aliança Nacional Palestina, gerando uma
grave crise nos territórios palestinos. Enquanto o Hamas não reconhece Israel, a
comunidade internacional também rechaça o reconhecimento de legitimidade do
movimento islâmico como representante dos palestinos.
Fontes do histórico:
FOLHA de São Paulo: Veja cronologia do conflito entre israelenses e palestinos. 15
de março de 2007.
GRACIOSA, Karina da Silva. Jerusalém: centro de disputas. Disponível em: <http://www.iribr.com/rdei/1_ed/karina_da_silva_graciosa_01.asp> Acesso em 07/11/2007.
KARAN, Christian. Causa Palestina e Conflito Árabe-Israelense. Do Imperialismo Clássico à Criação de Israel (1880-1948): A Palestina britânica e a criação do Estado de
51
Israel (1920-1948). Disponível em: <http://www.icarabe.org/CN02/artigos/arts_det.asp?id=115> Acesso em 15/03/2007.
LAROUSSE – Grande Enciclopédia Larousse Cultural . Volume 2.
2.2 ANÁLISE DO DOCUMENTÁRIO “PROMESSAS DE UM NOVO MUNDO”
O documentário “Promessas de um novo mundo” acompanha a vida de sete crianças,
três palestinas e quatro judias que vivem em Jerusalém e nos campos de refugiados no
entorno da cidade. Os pensamentos e sentimentos dessas crianças são captados nesse
vídeo, assim como o olhar de ódio que as distancia uma das outras.
O cotidiano delas se divide entre as atividades e brincadeiras de qualquer criança entre
oito e treze anos, como joguinhos de computador, jogos de vôlei e até mesmo ajudando
seus pais no comércio local. Ao longo da narrativa as crianças comentam a difícil
situação que as fez perder amigos durante atos terroristas, tanto promovidos pelos
radicais árabes como pelo exército israelense. Também discorrem sobre o medo de
atentados à bomba dentro do ônibus a caminho da escola até da ausência do pai
arbitrariamente preso.
O pano de fundo do documentário retrata a dominação israelense na Palestina, sobre a
qual detém o poder político e militar, exercendo sua autoridade de forma plena. Do
outro lado, os grupos esparsos de palestinos desterritorializados, expulsos de sue lugar
de origem e estocados em campos de refugiados ou pequenas comunidades cercadas
pelo domínio israelense.
52
Sob uma perspectiva geográfica, pode-se iniciar a análise pela observação da paisagem.
Prédios, edifícios e arranjos espaciais típicos da era moderna industrial-ocidental que
remetem às metrópoles do mundo capitalista: este é o espaço ocupado pelos judeus.
Esta área contrasta com as construções precárias, irregulares, num cenário árido e seco
onde foram confinados os muçulmanos.
A apropriação do espaço pelos palestinos não se dá de forma completa, ou seja, não é
acompanhada pela gestão total do espaço, tornando a idéia de uma territorialidade
palestina plena distante da realidade desse povo.
Em meio a esse contexto, a água, o petróleo, assim como os alimentos de boa qualidade,
se tornam elementos de disputa. Esse interesse geopolítico acaba por envolver outras
Nações (asiáticas, européias e americanas). Assim, esse fator se configura como o cerne
das desavenças nesta região, desdobrando-se em desentendimentos de cunho étnico-
religioso-identitário.
A fragmentação e a descontinuidade territorial das porções de terra destinadas aos
palestinos dificultam uma unidade material e concreta, uma mobilização maciça que
implique poder de negociação dos indivíduos de uma mesma identidade histórica,
religiosa e cultural. Tal dispersão espacial reflete na falta de coesão política e, por isso,
um enfraquecimento organizacional.
As crianças judias e muçulmanas são levadas a refletir sobre a questão da Palestina e a
defender seus pontos suas convicções acerca do tema. Inicialmente, algumas crianças,
apesar de estarem imersas em um imaginário religioso e munidas do conhecimento
ensinado nas escolas e famílias, discursavam sobre as possibilidades de uma trégua
entre os grupos. Para elas a paz era uma esperança real.
53
Cinco anos depois, já na segunda parte do documentário, essas mesmas crianças
defendem novas perspectivas. Algumas, aspirantes da paz, já estão engajadas numa
causa, na qual o outro é o inimigo responsável pela dor a qual eles estão submetidos.
Outras, já reintegradas numa nova sociedade, nesse caso a norte-americana, questionam
a existência dos conflitos. Acreditam que, como nos Estados Unidos, povos de raças e
identidades diferentes podem conviver em relativa paz. Afinal, a sociedade americana,
hoje em dia, não mais convive com o racismo violento, quando o branco defendia a sua
supremacia de uma maneira que marginaliza a população negra ao seu redor, como
acontecia no sul dos Estados Unidos no passado. Cabe ressaltar que os EUA não devem
ser entendidos como uma democracia racial: ainda hoje, o país apresenta um cenário de
desigualdade e preconceito em relação aos negros, árabes e latinos, porém pouco
assumido. O racismo sulista foi derrotado pelos movimentos de direitos civis nos EUA,
mas isso não quer dizer que o racismo tenha sido erradicado na sociedade, já que esse
“outro” racismo é marcado por mecanismos sutis e ambíguos de preconceito e
desigualdade. Ainda assim, os Estados Unidos divulgam o seu mito de democracia
racial apoiados no fato dos negros não serem mais linchados ou confinados nos fundos
dos ônibus, o que leva a maioria branca da sociedade a acreditar que não há mais
preconceito ou discriminação. A realidade sugere uma sociedade incapaz de desvendar
e, principalmente, de desafiar os mecanismos da discriminação velada.
Tomando como referência o documentário, a análise proposta se detém ao que se
passou nesse lapso de cinco anos e que contribuiu para alterar a maneira de pensar
desses indivíduos.
2.3 POLÍTICAS PÚBLICAS E CONSEQUÊNCIAS
54
A identidade, conforme citada anteriormente, não é algo estático. Ao contrário, ela é
construída ao longo do tempo, é dinâmica. Nesse caso, a questão identitária não seria o
causador dos conflitos, mas sim a resposta ao agravamento de conflitos gerados a partir
de políticas públicas mal implementadas.
Tais políticas seriam responsáveis pela discrepância de condições de vida dos judeus
“abastados” e dos muçulmanos “subjugados”. Utilização de água tratada, comida de
qualidade e infra-estrutura seriam elementos aos quais os palestinos não teriam acesso,
criando uma situação de injustiça social, logo, um terreno propício a conflitos. Nesse
caso, as políticas públicas podem ser consideradas um agravante para uma hostilidade
que teve início ainda nos primórdios do século XX, com a chegada maciça de judeus na
região da Palestina. Conforme mencionado no histórico do conflito, mesmo quando a
Grã-Bretanha era a responsável pela administração local, através da Declaração de
Belfour, a intenção era estabelecer um território soberano para os judeus, mesmo que
isso significasse a desocupação da área pelos palestinos.
Não cabe a esse estudo apontar culpados ou vítimas pela violência que vem ocorrendo
na Palestina. A idéia é pensar o possível agravamento do conflito ao longo dos anos a
partir das conseqüências que as políticas públicas podem ter desencadeado, ao
privilegiar um povo em detrimento de outro. O autor Edward Miguel (2004), em seu
artigo “Tribe or Nation? Nation Building and Public Goods in Kenya versus Tanzania”,
aborda a importância dessas políticas para a construção de uma nação.
Em seu artigo, Edward Miguel (2004) discorre sobre como as políticas públicas afetam
a cooperação interétnica entre dois Estados africanos: Quênia e Tanzânia. A opção por
55
tais países é justificada pela semelhança entre eles, desde o processo histórico, passando
pela descolonização até as características geográficas e de diversidade populacional.
Quênia e Tanzânia abrigam diversos grupos étnicos, apresentam renda per capita baixa,
assim como crescimento econômico inferior aos países mais homogêneos e, ainda,
contavam com políticas públicas que não privilegiavam a educação, saúde e infra-
estrutura básica da população. Após analisar quais medidas governamentais foram
tomadas e os seus resultados, Miguel percebe o avanço que Tanzânia apresentou em
relação ao seu vizinho.
Miguel (2004) observa que grupos podem optar por políticas públicas que beneficiem
grupos em particular. No caso do documentário, essa preferência era facilmente notada
até mesmo pelo cenário que abrigava os judeus beneficiados por instalações modernas e
os palestinos refugiados em campos áridos.
Miguel (2004) ressalta a importância de políticas públicas na construção dessa coesão
da sociedade ao promoverem a interação, divulgarem a informação e contribuírem para
a abertura de espaços para diálogos, amenizando as diferenças entre grupos distintos ou
dispersos. Em “Promessas de um Novo Mundo”, é possível constatar a dificuldade do
povo palestino em manter sua coesão. A questão territorial é fundamental para se
entender essa dispersão do povo palestino. O problema é que, aliado a isso, essa
população de refugiados palestinos acaba sendo prejudicada por políticas públicas que
favorecem somente aos judeus. Então, nesse cenário de injustiça social, líderes radicais
encontram espaço para divulgar suas idéias fundamentalistas e então, acirrar os
conflitos.
56
Edward Miguel (2004) comenta que literaturas sobre construção de nações e políticas de
socialização concentram-se na maneira como as idéias políticas individuais, opiniões e
preferências são criadas. O autor observa que há uma utilização, por parte dos líderes,
de meios de comunicação de massa e do sistema educacional para embutir no sujeito
ideais políticos “desejáveis”. Dessa forma, essas políticas de construção de identidade
nacional seriam mais investimentos no capital-social. No caso da Palestina, retratado
por meio do documentário, também se percebe a utilização da mídia e da educação na
construção dos pensamentos e opiniões das crianças. A orientação educacional recebida
pelas crianças que permaneceram em Jerusalém e nos campos de refugiados acabou por
agravar e até mesmo criar um sentimento de hostilidade em relação ao outro. Por outro
lado, aquelas que saíram desse foco de conflito, tiveram a oportunidade de ver a
situação de uma perspectiva diferente, levando-as até mesmo a não encontrar real
motivo para tanta disputa e a defender a paz entre os povos envolvidos nesse conflito.
Miguel (2004) diferencia algumas políticas adotadas nos dois países para mostrar como
os desdobramentos dessas medidas afetaram o contexto de cada um. No Tanzânia, por
exemplo, o governo que se seguiu após a descolonização era baseado em idéias
socialistas e pan-africanas e voltou seus esforços para que houvesse mudanças no
legado colonial. O currículo escolar valorizava a história e buscava criar um senso de
identidade. Além disso, ampliaram e fortificaram as instituições governamentais locais e
desmantelaram as autoridades tribais. Já no Quênia, os governos que se seguiram foram
liderados por indivíduos oportunistas que, com o intuito de manter seu poder,
incentivavam milícias e obtenção de armamentos. O currículo nas escolas não
incentivava coesão identitária. Ao contrário, a educação e a infra-estrutura básica eram
privilégios de apenas um grupo. As tribos e o sentimento de pertencimento a elas foram
fortalecidos, e não houve abertura para a construção de um sentimento de nação.
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Cabe ressaltar que Miguel (2004) não ignora as armadilhas que as políticas públicas
podem oferecer no caso de uma maioria impor sua cultura, gerando grupos de
resistência e podendo levar à violência. No caso da Tanzânia, os dialetos locais não
foram substituídos, passando apenas a coexistir com o oficial. Além disso, corre-se o
risco de, ao reforçar o sentimento nacionalista, pode-se levar um Estado a entrar em
conflito com outro por questões de identidade.
Desse modo, a construção de uma identidade nacional exige reestruturação cultural,
educacional e de linguagem, no entanto, ressalta que apesar dos riscos de cair em uma
armadilha, esse tipo de política pública deve fazer parte da agenda dos governos,
mesmo ciente de que os benefícios dessa construção podem demorar décadas para se
concretizarem.
2.4 CONCLUSÃO
A partir do documentário, foi possível observar a transformação das crianças ao final da
narrativa, cuja gravação se estendeu ao longo de cinco anos. Cabe lembrar que esse
tempo intermediário não foi registrado, para que o espectador pudesse acompanhar as
influências e orientações pelas quais essas crianças foram submetidas para mudarem
suas posições em relação ao conflito da Palestina e aos envolvidos neste.
Conforme Miguel (2004) analisou, a educação se constitui em um fator primordial na
construção da identidade. Assim como o setor educacional, outras esferas do setor
público podem contribuir para o agravamento ou a solução de um conflito identitário,
mesmo que de forma paliativa. No caso do documentário, as crianças palestinas
habitavam assentamentos de refugiados localizados no Estado de Israel. Assim, a
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diferença do tratamento dado aos judeus e palestinos era uma realidade muito próxima
do cotidiano dessas pessoas.
A adoção de políticas públicas preferenciais no Estado de Israel pode ser, a partir dessa
perspectiva, um dos fatores de estímulo para as que as diferenças entre as crianças
árabes e judias se reforçassem. Durante os cinco anos que não foram gravados pelos
documentaristas, essas crianças podem ter recebido influências de uma educação que
reforçava as diferenças entre os povos. Tal suposição baseia-se na comparação entre os
discursos proferidos pelas mesmas nas duas fases da narrativa. Se no início elas
brincavam juntas e questionavam as razões do conflito, passados os cinco anos essas
crianças, agora adolescentes, enxergam o “outro” como um inimigo responsável pela
violência que assola a região. Nesses momentos, o discurso de legitimidade do uso do
território emerge. Judeus evocam o direito de utilização da terra por serem os primeiros
ocupantes, antes mesmo da dispersão desse povo devido à grande seca em 1.200 a.C.
No entanto, Palestinos também legitimam a sua reivindicação ao remontar ao início do
século XX, quando viviam na região quinhentos mil palestinos e cinqüenta mil judeus
de forma pacífica.
Ainda em “Promessas de um novo mundo” pode-se observar a discrepância da
paisagem que serve de cenário para abrigar esses dois povos. A aridez dos
assentamentos palestinos contrasta com a modernidade das cidades judias em Israel. Os
palestinos, nesse novo Estado, são uma minoria que ocupa a posição de refugiada, sem
acesso às mesmas condições de vida desfrutadas pelos judeus.
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A falta de interesse ou atenção que os refugiados palestinos recebem por parte do
governo de Israel ilustra uma situação onde políticas públicas são adotadas de maneira
em que um grupo é subjugado em relação ao outro.
De acordo com Horowitz (1985) a adoção de políticas preferenciais em situações como
essa representada no documentário é uma possibilidade para a redução dos conflitos. No
entanto, essas políticas devem ser temporárias e limitadas com o intuito de não gerar
dependência das mesmas. Um dos pontos positivos que o citado autor aponta em
relação à adoção dessas medidas é o baixo custo de implementação que elas exigem.
Outro ponto que deve ser considerado são as políticas públicas comuns, cujo objetivo é
atender a todos em áreas como educação, economia e emprego. A idéia é proporcionar
oportunidade para todos, principalmente para os grupos mais necessitados.
Naturalmente, a opção por esse tipo de medida para solucionar conflitos não tem o
tempo como aliado, uma vez que os seus resultados só poderão ser conferidos em longo
prazo. Horowitz (1985), no entanto, acredita que essas políticas preferenciais são apenas
medidas atenuantes, uma vez que não são capazes de resolver a questão estrutural que
sustenta o conflito. Para sanar esse problema de estrutura, os refugiados palestinos, por
exemplo, deveriam ser reconhecidos como cidadãos e terem um representante na arena
política para defender seus interesses. Lembrando que, de acordo com Horowitz (1985),
diante de um quadro de urgência, a adesão a esse tipo de decisão pode até encontrar um
terreno mais fértil mais prosperar.
Horowitz (1985) aponta três motivos que justificam a adoção de políticas preferenciais.
O primeiro, já citado, está associado aos gastos, considerados baixos para uma
estratégia de redução de conflitos. O segundo aponta para a real necessidade de adesão a
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essas políticas, principalmente se elas proporcionarem, mesmo que futuramente, uma
competição em termos igualitários. O terceiro motivo acusa as disparidades econômicas
entre os grupos étnicos como causa dos conflitos, sendo que essas diferenças podem ser
eliminadas com a adoção de políticas que atinjam diretamente essas disparidades. Por
fim, Horowitz pontua que o pensamento que sustenta essas políticas preferenciais
enxerga os conflitos étnicos como produto de diferenças econômicas e a harmonia
étnica como resultado da distribuição proporcional de todos os grupos em diferentes
níveis e funções de uma sociedade.
Sob essa perspectiva, o conflito étnico-religioso abordado no documentário seria uma
seqüela provocada pela diferença de tratamento com que as políticas israelenses tratam
os judeus e os palestinos refugiados em seu território. De acordo com Horowitz (1985)
diante disso, a tendência é o enrijecimento das identidades envolvidas, ou seja, a
cristalização de estereótipos. Assim, ao se compararem, cada uma das identidades se
fortalece e as diferenças são potencializadas. A relação estabelecida entre os grupos
passa a ser de competição e não de cooperação.
Horowitz (1985) identifica dois grupos nessa competição: os backwards e os advances.
Os primeiros seriam caracterizados, a partir de sua auto-referência como tradicionais,
preguiçosos, submissos, feudais, pobres e preguiçosos; enquanto os segundos se vêem
como inteligentes, trabalhadores, industriais, bem-sucedidos, sérios e eficientes. E é na
relação desses grupos que se dá a comparação e as conseqüentes disputas. Tendo essa
classificação como referencial, os judeus seriam os advances e os palestinos os
backwards. Então, ao evocar essas diferenças, um grupo pode subjugar o outro e inferir
que as características próprias de cada povo são as responsáveis pela condição
desprivilegiada em que esses se encontram. As pequenas diferenças são potencializadas
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e as comparações se tornam inevitáveis. Horowitz (1985) retorna às políticas
preferenciais para lidar com as conseqüências que esse tipo de classificação ocasiona.
As crianças exibidas no documentário e as transformações pelas quais passaram
ilustram um pouco a importância das políticas públicas enquanto instrumento de
solução ou agravamento de conflitos. Elas seriam as responsáveis pelo enrijecimento
das identidades dos grupos e a hostilidade que é gerada a partir da relação de
competição que é estabelecida entre eles. As questões da legitimidade do território, das
diferentes identidades, culturas e religiões apontadas como causas desse conflito,
perdem seu status como gêneses do problema. A questão sai da esfera subjetiva de
diferenças culturais e acaba se direcionando para um caminho de caráter mais prático
como a implantação de políticas preferências, que por sua vez, vai contribuir para a
construção das identidades. A maneira como essa construção é realizada talvez seja a
chave do entendimento dessa problemática.
Ainda sob essa perspectiva, o argumento de Huntington (1997) sobre a “islamização”
pelo qual os indivíduos são submetidos não parece ser tão irreal. Nesse caso, a
orientação educacional divulgada por grupos fundamentalistas teria um papel
fundamental na formação da identidade das crianças árabes e na hostilidade que elas
aprendem a ter em relação, por exemplo, aos judeus. Assim como as políticas públicas
implantadas em Israel que desprivilegiam os refugiados palestinos acabam
intensificando as diferenças e hostilidades entre os povos. Huntington também aponta
os governos como agentes responsáveis pela reafirmação e fortalecimento da cultura
islâmica em detrimento de quaisquer outras.
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Os meios de comunicação também são instrumentos de orientação ideológica e que são
exploradas vastamente por governos que buscam orientar a sua população para
determinada ideologia, ajudando a moldar as identidades e a reforçar a cultura, por isso
o controle estatal severo sobre os mesmos, para que esses não instiguem nada que fuja
dos interesses dos governantes. Conforme visto no documentário, as crianças não
tinham acesso irrestrito à mídia ou outros meios onde pudessem adquirir informações
passíveis de discussão. O resultado dessas condições pôde ser observado com o passar
dos anos e a transformação na opinião desses jovens.
Por fim, como Herz (1997) apontou, as relações internacionais têm incorporado temas
mais subjetivos como cultura e identidade para o entendimento das novas questões que
emergem. O que proponho, talvez, seja um olhar mais atento para esses objetos de
análise. No caso das crianças do documentário “Promessas de um novo mundo”, esses
temas foram cruciais para entender o conflito, mas por trás deles, há uma realidade
prática representada pelas políticas públicas que podem ser mais exploradas tanto para
entender os conflitos tanto quanto para solucioná-los.
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