analise das politicas publicas vidas secas
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ANLISE DAS POLTICAS PBLICAS PARA O SERTO SEMI-RIDO:PROMOO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL OU FORTALECIMENTO
DA POBREZA?
Suely Salgueiro Chacon1Marcel Bursztyn2
RESUMO
O artigo analisa a influncia das polticas pblicas para o alcance do desenvolvimentosustentvel no Serto Semi-rido do Nordeste do Brasil, estudando especificamente o caso doestado do Cear. Os resultados da pesquisa aqui apresentados demonstram que as polticaspblicas historicamente tm um papel fundamental para o desenvolvimento das comunidadeslocais, visto que estas so muito dependentes dos recursos do Estado. Contudo, isto nosignifica que as polticas efetivamente implantadas tenham obtido sucesso. Pelo contrrio, ascomunidades do Serto esto se esvaziando e empobrecendo e o objetivo de alcanar odesenvolvimento para essa regio parece se perder em meio a uma profunda crise de auto-estima do sertanejo. Ao mesmo tempo, uma outra concluso se associa a esta: o uso pelodiscurso poltico dos preceitos relacionados ao desenvolvimento sustentvel legitimam aespblicas que mais se prestam a manter grupos no poder do que de promover de fato oesperado desenvolvimento.
Palavras-chave: Desenvolvimento Sustentvel; Polticas Pblicas; Serto Semi-rido;Pobreza
INTRODUO
Toda a histria do Serto Semi-rido do Nordeste do Brasil marcada pela
interferncia do Estado, comumente pautada no tema que a espinha dorsal das polticas
pblicas para a regio: a seca. A escassez de gua ajudou a justificar inmeras aes
governamentais e todo um arcabouo econmico e poltico se cristalizou a partir desse
fenmeno ambiental, o que condicionou historicamente as relaes sociais nesse espao. A
seca , nesse sentido, estruturante da vida social e poltica regional. E, por conta disso,
suscetvel de ser apropriada como vetor de uma nova forma de perpetuar e regular as
relaes na regio. O fato novo que a seca um elemento cabvel no discurso ambiental, no
mbito do conceito de desenvolvimento sustentvel. Quando o mundo em geral, e o Brasil em
particular, se inclinam diante do apelo ambientalista, a seca mais uma vez serve de base e
1 Doutora em Desenvolvimento Sustentvel. Coordenadora do Curso de Economia da Universidade de Fortaleza UNIFOR. E-mails: [email protected]; [email protected] Doutor em Socioeconomia. Diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentvel CDS/UnB
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fundamento para uma aclimatao do discurso. Uma aparente mudana ocorre, para que no
mude de mos o poder.
No momento que o conceito de desenvolvimento sustentvel se fortifica e se insere
cada vez mais no discurso poltico no Brasil, no que se refere ao Nordeste, a seca passa a ser
tratada paulatinamente como um problema ecolgico, mudando o enfoque secular das
polticas pblicas que viam a seca como uma calamidade natural sem soluo. O discurso
poltico fala agora de convivncia com a seca e no mais de combate seca, preconizando a
necessidade da gesto dos recursos hdricos para a promoo do desenvolvimento sustentvel,
e a diminuio da fome e da misria no Serto. Parece um pequeno detalhe, mas representa
grande diferena. um deslocamento paradigmtico, da tica da negao das caractersticas
ecolgicas da regio, para um enfoque de aceitao. Isso bsico para uma efetiva
convivncia do homem com o seu meio ambiente.
E sobre essa forma de ver a relao do homem com seu meio no Serto, a idia de
convivncia com os fenmenos naturais significa um novo status que permite um tratamento
mais adequado ao problema que marca toda a histria do Serto. Por outro lado, ao se
apropriarem dos novos conceitos, os polticos e elites que detm o poder passaram a us-los
indiscriminadamente. Mesmo com novos mecanismos de controle e com o incentivo
organizao e participao da sociedade, aos poucos as prticas politiqueiras se adaptaram e
foram forjadas novas formas de apropriao dos recursos financeiros destinados para projetos
e programas que envolvem o alcance do desenvolvimento sustentvel no Serto.
Partindo dessas premissas, o principal objetivo da pesquisa aqui apresentada foi
responder por que as polticas pblicas no conseguem reverter o processo agudo de pobreza e
excluso social e promover um processo sustentvel de desenvolvimento para o Serto.
O Serto semi-rido do Cear, situado no Nordeste do Brasil, foi o local escolhido para
empreender a pesquisa. Ali os aspectos geogrficos, climticos, sociais, culturais, econmicos
e polticos se apresentam em um cenrio de pobreza e espoliao social, que agora se agrava
com a crescente e contnua descaracterizao cultural.
A pesquisa emprica focou a distncia entre o discurso e a prtica, e identificou os
elementos que constituem as polticas voltadas para o Serto e suas conseqncias para o
sertanejo. Foram realizadas viagens aos Sertes do Cear entre 2003 e 2005. Os municpios de
Quixad e Quixeramobim foram escolhidos para as entrevistas. Alm da pesquisa de campo,
dados secundrios relativos ao espao estudado e populao foram coletados e organizados e
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compem o quadro analtico da regio pesquisada. Os dados quantitativos foram analisados
em conjunto com os depoimentos colhidos e com as observaes diretas da realidade estudada
durante a pesquisa de campo. A perspectiva das anlises parte do conceito de
desenvolvimento sustentvel e de suas dimenses.
1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL IDIAS NORTEADORAS
O significado do desenvolvimento uma questo polmica, com diversas definies,
invariavelmente ligadas ao crescimento econmico e aos territrios. Uma das abordagens
mais comuns v a dicotomia crescimento versus desenvolvimento nos seguintes termos: o
crescimento ocorre em termos eminentemente econmicos, detectado pelo aumento da
quantidade produzida em um certo perodo de tempo, em um dado espao territorial; enquanto
o desenvolvimento se manifestaria pela distribuio eqitativa dos resultados do crescimento
para a populao (FURTADO, 1974b).
A histria recente revela vrias tentativas da cincia em reformular o conceito de
desenvolvimento em busca de uma definio que enseje aes eficazes no alcance do bem-
estar social. Contudo, a humanidade mergulha hoje cada vez mais profundamente em uma
crise sem precedentes, que envolve aspectos sociais, ambientais, culturais e econmicos. Na
segunda metade do sculo XX o homem alcanou patamares nunca antes imaginados de
evoluo cientfica e tecnolgica e, ao mesmo tempo, produziu nveis nunca antes registrados
de misria e de degradao ambiental (BUARQUE, 1994).
A capacidade do homem de se perceber diante das mudanas no foi suficiente para
que produzisse mecanismos compensatrios que garantissem que a vida na terra seria digna
para todos e no apenas para alguns que conseguissem acumular com mais eficincia as
riquezas e os resultados da evoluo. Ou seja, o modelo de explorao inaugurado quando o
homem comeou a vida sedentria e a produo de excedentes ainda se reproduz na
atualidade, s que agora com mecanismos mais sofisticados de dominao e excluso.
No atual modelo de desenvolvimento globalizado o homem apenas mais um
elemento, assim como tambm a natureza, que devem ser preservados, teis que so para a
definio e reproduo de um modelo de explorao que se sustenta h sculos, desde que o
homem passou a se julgar acima da natureza, desde que achou que a dominava e ela estava ao
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seu dispor. Nessa lgica, ele incluiu tambm a dominncia de seus semelhantes, achando-se
tambm acima deles, e assim perdendo aos poucos a noo do que ser humano.
Com o fim do feudalismo e com o cercamento dos campos, j no surgimento do
capitalismo, a ocupao urbana se intensificou e com ela surge uma srie de novos problemas,
gerados pela concentrao populacional e pelas novas atividades produtivas. O advento da
Revoluo Industrial vem consolidar esse quadro. No incio da industrializao so
importadas tcnicas organizacionais dos exrcitos para as fbricas. Com as duas Grandes
Guerras, no sculo XX, isso se inverte. E mais: a cincia passa a dar subsdios tecnolgicos
para fins militares. Bartholo Jr. (1986: 121) verbaliza bem esse movimento: As sociedades
industriais modernas apresentam uma notvel possibilidade de traduzir seus meios de
produo em meios de destruio e vice-versa.
O grande salto dado com a automao proporcionou uma nova revoluo para a
produo, o que levou a humanidade a acreditar que estava prxima realizao de uma
utopia: libertar o homem do trabalho e permitir que vivesse aproveitando o resultado da sua
evoluo. Contudo, o que se v no a libertao pelo consumo e sim a excluso da maioria,
que apenas arca com as conseqncias malficas desse consumo desenfreado que, como
previa Marx, revisto por Arendt (1997), parece ter se tornado o novo senhor da espcie
humana.
Os pontos rapidamente levantados aqui refletem as principais motivaes que levaram
a uma ampla discusso sobre o futuro da Terra e da humanidade, que se intensificou nas
ltimas dcadas do sculo XX. As reflexes, constataes e preocupaes dos cientistas,
polticos e ambientalistas envolvidos encontraram a melhor traduo no termo
desenvolvimento sustentvel.
Apesar de muitas discusses que datam da dcada de 1950, o conceito de
desenvolvimento sustentvel foi lanado em 1987, pela World Commission on Environment
and Development (BRUNTLAND, 1987). A gesto ambiental, a conscientizao da sociedade
para o seu papel como agente de transformao da realidade, bem como o fortalecimento da
participao de cada um na tomada de deciso so os pontos que constituem a proposta de
mudana inerente ao conceito. Isto teria como conseqncia, caso posto em prtica o conceito, a
busca de um crescimento econmico eficiente, racional e que respeita os limites da natureza,
alcanado por meio de aes que supririam as necessidades da humanidade no presente, sem tirar
das geraes futuras o direito de tambm terem as suas necessidades supridas.
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Mesmo suscitando controvrsias quanto sua ambigidade e abrangncia, que poderiam
dar margem s mais variadas interpretaes, a idia de se conquistar o desenvolvimento
sustentvel foi posta em prtica e vem sendo repetida como um verdadeiro dogma por inmeros
programas e projetos, que visam melhorar as condies de vida de diversas populaes pelo
mundo afora. Notadamente as aes pblicas tm se pautado por esses preceitos.
Algumas idias de trs autores consagrados podem contribuir para a melhor
compreenso das dimenses do desenvolvimento sustentvel. Esses autores discutiram em
suas obras o conceito ou os elementos constituintes do desenvolvimento sustentvel .
O primeiro Celso Furtado, considerado um dos maiores economistas do Brasil. Seu
livro de 1959, Formao Econmica do Brasil (1998a), uma referncia obrigatria para
quem quer entender a gnese do desenvolvimento no Brasil. Celso Furtado se antecipou s
discusses sobre a sustentabilidade do processo de desenvolvimento no seu livro O mito
do desenvolvimento econmico, de 1974. Lanado em pleno Milagre Econmico do
Brasil, e no meio da crise internacional gerada pelo primeiro choque do petrleo, este texto
tornou-se um marco para quem estuda o desenvolvimento no Brasil.
Para Furtado (...) o mito congrega um conjunto de hipteses que no podem ser
testadas, e (...) os mitos operam como faris que iluminam o campo de percepo do
cientista social (...) (FURTADO, 1974a: 15). Uma primeira premissa que pode ser
considerada um mito que o desenvolvimento econmico pode ser universalizado pelo
consumo, o que coaduna com o mito do progresso: economistas trabalham em funo da
confeco de esquemas complexos do processo de acumulao de capital que tm como
fundamento (impulso dinmico) o progresso tecnolgico.
As conseqncias culturais da crena no mito do progresso (crescimento exponencial
do estoque de capital) levaram ao surgimento de grandes metrpoles modernas que tm o ar
irrespirvel, uma alta taxa de criminalidade e baixa eficincia dos servios pblicos, que no
conseguem atender populao sempre crescente. Estes sintomas surgem como um pesadelo
no sonho do progresso linear. E as conseqncias ambientais se traduzem pelo (...) impacto
no meio fsico de um sistema de decises cujos objetivos ltimos so satisfazer interesses
privados (FURTADO, 1974a: 17). Nesse sentido, as elites demonstravam irritao com o
relatrio do Clube de Roma - Limites ao crescimento3, lanado quela poca. Os governos de
muitos pases subdesenvolvidos (que depois passaram a ser chamados eufemisticamente em
3 Estudo coordenado por Denis Meadows, do Massachusetts Institute of Technology - MIT The Limits toGrowth.
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desenvolvimento) chegaram a afirmar que tudo no passava de um embuste, com o objetivo
de frear o seu crescimento e a sua participao no comrcio internacional.
O mito do progresso que o desenvolvimento econmico, tal qual vem sendo
praticado pelos pases que lideraram a revoluo industrial, no pode ser universalizado. No
so discutidas as conseqncias de um crescimento exponencial do estoque de capital, pelo
contrrio, alimenta-se a iluso de que todos podem alcanar impunemente o mesmo padro de
consumo dos pases desenvolvidos, para tanto basta a submisso s regras do sistema
produtivo hegemnico.
Hoje clara a importncia de pases como o Brasil, chamados de perifricos poca
desta anlise de Furtado, pela sua base de recursos naturais e tambm pela mo-de-obra barata
de que dispe. Porm, esses trunfos no foram usados estrategicamente nos anos 70 do
sculo XX, nem o so nos dias atuais, perpetuando um estado de dependncia secular.
Segundo Furtado h uma dificuldade de coordenao das economias perifricas no plano
interno, devido debilidade do Estado, o que permite a concentrao da renda e o aumento da
misria das massas. Esta anlise continua atual e a instabilidade leva ao crescente controle
internacional. O colonialismo antigo substitudo pelo novssimo.
Um espao de autonomia dos pases perifricos seria a defesa dos seus recursos
naturais no renovveis frente dependncia do centro, mediante uma articulao entre
pases, e a defesa do valor real do trabalho. Estabelecer prioridades em funo de objetivos
sociais coerentes e compatveis com o esforo de acumulao seria a nica forma de liberar a
economia da tutela das grandes empresas e do capital internacional. Esta uma anlise que
pode ajudar a compreender as dificuldades enfrentadas hoje internamente e no cenrio
internacional.
Furtado (1974a) toca ainda em outro ponto importante para anlises do quadro atual de
desenvolvimento. Ele afirma que o sistema capitalista tende a excluir nove pessoas em dez
dos principais benefcios do desenvolvimento e, nos pases perifricos, dezenove pessoas em
vinte: os excludos so um fator de peso na evoluo do sistema. Essa constatao s se
agravou com o tempo e hoje a misria atinge populaes inteiras dos pases em pior situao
econmica. No Brasil, comunidades carentes do meio rural, especialmente no Serto
nordestino, comprovam a gravidade desta questo. Mesmo com todos os esforos promovidos
em nome do desenvolvimento sustentvel, regies extensas so excludas do progresso e
continuam a exportar pessoas para os centros urbanos, onde passam a viver, via de regra, em
condies ainda piores, agravando seu estado de misria.
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Em resumo, para Furtado, as formas de consumo dos pases centrais no so possveis
dentro das possibilidades evolutivas aparentes desse sistema, e s uma minoria privilegiada.
O custo, em termos de depredao do meio fsico, desse estilo de vida, de tal forma
elevado que toda tentativa de generaliz-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda a
civilizao, pondo em risco as possibilidades de sobrevivncia da espcie humana. Por
isso a idia de desenvolvimento econmico, tal como vendido pelo sistema produtivo
hoje hegemnico um simples mito. Essa anlise foi comprovada pelo tempo e se mostra
vlida trs dcadas depois.
Celso Furtado foi tambm responsvel por aes polticas que mudaram o cenrio do
Nordeste nas dcadas de 50 e 60 do sculo XX, quando criou a SUDENE e promoveu um
amplo programa de desenvolvimento regional, com nfase para a industrializao. Essas
contribuies de Furtado tiveram grande impacto sobre o Serto.
Outro autor que contribui para essa discusso Enrique Leff. O autor apresenta
anlises amplas, destacando fortemente os componentes ecolgicos e sociais do conceito de
desenvolvimento sustentvel, o que inclui o ambiente natural e a ao histrica do homem. A
reviso do prprio processo de produo para ele uma das condies para o alcance do
desenvolvimento sustentvel. To importante quanto a preocupao com a degradao
ambiental a preocupao com a pobreza e a excluso. E para se reverter esse quadro de crise
um passo fundamental o resgate do saber ambiental, promovido por um amplo dilogo de
saberes, conjugando-se as tradies e o novo, numa hibridao cultural que permita se
reformular a prpria maneira de pensar e agir do ser humano. Leff vem defendendo com
veemncia a reviso de teorias econmicas e sociais para que estas possam incorporar os
princpios do saber ambiental.
O discurso da sustentabilidade apropriado e confundido com um simples processo de
crescimento econmico sustentado, que no leva em conta a necessidade do prprio sistema
internalizar as condies ecolgicas e sociais que deveriam ser priorizadas para o alcance real
da sustentabilidade, o que de fato beneficiaria a todos, sem distino.
A apropriao e vulgarizao da noo de sustentabilidade pelo discurso oficial
sentida em todo o mundo e se reflete em diversas instncias de poder, desde aquelas
responsveis por acordos internacionais sobre a biodiversidade at as que decidem que tipos
de programas devem ser implementados nas comunidades rurais mais carentes do Serto,
passando pela elaborao das leis e a definio de prioridades acerca do uso dos recursos
naturais, como a gua, por exemplo.
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Leff enftico em sua crtica forma de conduo do processo de crescimento
econmico mundial, especialmente s propostas neoliberais, que em grande parte respondem
pela forma de organizao mundial da produo e pela frgil conduo das aes dos Estados.
Mesmo com o enfraquecimento das propostas liberais na tnica do discurso oficial,
constatamos que as preocupaes de Leff encontram eco, principalmente pela forma de tratar
com distncia os problemas ambientais e sociais, j arraigada e incorporada no dia-a-dia de
fazedores de poltica e de empresrios.
A conquista da alteridade, o respeito s diferenas e o fortalecimento de identidades
culturais devem ser elementos essenciais a um processo legtimo de desenvolvimento
sustentvel. E este tambm o cerne da questo para Leff, que identifica esses elementos ao
longo de sua obra e vai sintetiz-los quando prope a formao do saber ambiental.
O processo para se alcanar a sustentabilidade envolve elementos complexos e passa
pelos detentores do poder. Questes polticas e econmicas devem ser contrapostas a valores
culturais e ticos, resgatando saberes perdidos e reformulando conceitos para de fato
transformar o mundo para melhor. A racionalidade econmica deve dar espao
racionalidade ambiental, que implicaria na formao de um novo saber e na integrao
interdisciplinar do conhecimento, o que possibilitaria a compreenso dos sistemas
socioambientais em toda a sua complexidade.
A emergncia do saber ambiental como forma de transformao s pode ocorrer com o
fortalecimento das instncias locais de poder, especialmente com a participao real de cada
um, de forma consciente e comprometida, por meio de uma mobilizao social e de mudanas
institucionais. O acesso informao livre de pr-conceitos e de falsos sonhos e mitos
consumistas imprescindvel para isto.
Leff (2001) ressalta um ponto fundamental: a gesto ambiental local parte do saber
ambiental das comunidades. E esse saber se forma ao longo da histria, a partir de formas
de manejo sustentvel dos recursos locais, alm das formulaes simblicas e das prticas
sociais apreendidas pela troca de saberes entre geraes. Esses valores no podem ser
perdidos sob pena de se perder a chance no s de valorizar adequadamente a biodiversidade,
como tambm de redefinir o papel de cada um nesse processo, dando o devido valor para a
diferena cultural.
Como ressalta Leff (2001), o poder hegemnico de um sistema econmico comanda
hoje as decises que afetam a todos e determinam os caminhos do desenvolvimento. Este
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sistema tem priorizado o ganho de poucos, que seriam mais capazes, em detrimento de uma
parcela cada vez maior da populao mundial que excluda, por ser supostamente menos
eficiente e incapaz de vencer a luta concorrencial com seus semelhantes pela
sobrevivncia. Ou seja, populaes residentes em zonas de menor acesso informao e
educao formal e tecnolgica, esto excludas dos benefcios do desenvolvimento, j que no
esto capacitadas para competir. E deveria parecer normal que estas pessoas assim
permanecessem. Quanto muito, os vencedores podem tentar minimizar as conseqncias da
excluso em certos locais, sem, no entanto produzir condies de transformao verdadeira.
Programas assistencialistas como os que proliferam no Serto so um exemplo de como no
se muda a realidade excludente e ainda se pode refor-la, mantendo toda uma populao em
condio de dependncia perene de decises e recursos externos, sem tir-los efetivamente da
condio de excludos para o sistema.
Assim, uma mudana concreta nesse quadro passa pela valorizao de novos conceitos
como o saber ambiental e, basicamente, pela vontade poltica de incorporar novos valores e
permitir que populaes hoje excludas se percebam como detentoras de poder, do poder de
transformar suas prprias vidas a partir de seus saberes. Saberes estes que no precisam
necessariamente seguir a racionalidade do sistema econmico, mas sim a racionalidade da
vida.
Antes do conceito de desenvolvimento sustentvel virar moda, o termo
ecodesenvolvimento foi bastante discutido na dcada de 70 do sculo XX. Ignacy Sachs foi
um dos autores que participou desse momento histrico, ao reformular esse conceito e definir
suas dimenses. Na verdade essa foi uma antecipao da formalizao das intenes
promovidas com a disseminao da idia de sustentabilidade.
Com Sachs, a importncia do espao para o desenvolvimento bem percebida. As
peculiaridades econmicas, naturais, sociais e culturais de um lugar devem ser entendidas e
respeitadas para o alcance de um real processo de desenvolvimento sustentvel. Ou seja, no
possvel promover o desenvolvimento de um local sem perceber atentamente suas
caractersticas, conhecer sua histria e respeitar sua organizao social e idiossincrasias
culturais.
Toda a obra de Sachs reflete suas preocupaes com o desenvolvimento e o papel do
homem nesse processo, como protagonista ou como vtima. Ele revela claramente a
complexidade que envolve a vida humana na Terra, e as inmeras interaes entre a ao
humana e a natureza. Assim, o conceito de desenvolvimento est ligado esfera da tica e
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no da economia. A idia de que a tica deve comandar as escolhas relativas ao
desenvolvimento se torna mais forte quando so lembradas as conseqncias para humanidade
resultantes de cada empreendimento ligado obteno das condies para o desenvolvimento.
Se as prioridades que comandam as decises se restringem ao campo econmico, o que se v
a agudizao do processo de excluso e no a melhoria da qualidade de vida em geral.
Um outro ponto ressaltado por Sachs a importncia do planejamento, mas um
planejamento realista e realizador. Isto , para Sachs o planejamento deve permitir o estudo
srio e aprofundado das condies que envolvem um dado projeto que vise desenvolver um
espao em um certo tempo, ressaltando no s os trunfos possveis, mas tambm todas as
debilidades encontradas, permitindo assim a antecipao de falhas e no apenas prometendo
um timo utpico. Alm disso, um bom planejamento deve ser flexvel, pois a realidade
dinmica.
A idia de planejamento casa perfeitamente com a idia de fortalecer o local, a
participao, o engajamento da populao alvo da tentativa de desenvolvimento. E este um
processo eminentemente poltico e que exige um tratamento interdisciplinar por parte dos
planejadores. O planejamento do desenvolvimento deve tambm considerar a solidariedade
entre geraes, com isso ter em mente as restries ecolgicas.
J em 1986 Sachs discutia a importncia de um novo ordenamento urbano no Brasil, o
cuidado com as fontes energticas, com o lixo e com o desemprego j crescente. Um novo
estilo de vida surgia e j gerava srias conseqncias para a natureza e para a sociedade e ele
j alertava sobre as dificuldades que o pas enfrentaria se no tomasse as rdeas da situao e
promovesse um desenvolvimento mais voltado para as necessidades de seu povo e no para as
imposies internacionais.
Esses pontos levantados inicialmente sobre o pensamento de Sachs, mostram a
essncia do ecodesenvolvimento, termo criado por Maurice Strong4 e reelaborado por Sachs,
em 1973, utilizado muito antes do termo desenvolvimento sustentvel virar moda.
- Para Sachs (1994), ecodesenvolvimento significa um desenvolvimento scio-econmico
eqitativo e implica em escolher um processo de desenvolvimento que seja sensvel ao
meio ambiente, colocando-o no lugar devido sua importncia, reconhecendo-o como
base de qualquer sistema vital ou econmico. Suas dimenses so: social, econmica,
ecolgica, espacial e cultural.
4 Maurice Strong foi o organizador das Conferncias sobre desenvolvimento sustentvel em Estocolmo e no Riode Janeiro.
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As cinco dimenses propostas por Sachs so complementares e inseparveis, contudo
as duas ltimas dimenses devem ser agora ressaltadas, pois estiveram margem das demais
ao longo do processo de divulgao e implementao do conceito de sustentabilidade. Com o
fortalecimento das dimenses espacial e cultural o alcance desse ideal parece ficar mais
prximo, especialmente para as comunidades mais carentes, sem as condies mnimas de
insero.
Os problemas relacionados com a pobreza e a degradao ambiental no sero
solucionados no curto prazo e exigem um crescimento econmico mais consistente, o que
sustentaria as estratgias de transio para o desenvolvimento (apresentadas mais adiante).
Porm, esse crescimento no pode agravar as desigualdades j existentes e para tanto no
pode se basear apenas nas regras do mercado. Nesse sentido Sachs destaca alguns pontos
como a excluso social, sentida em todo o mundo e resultado do processo equivocado de
crescimento baseado no livre mercado; e a necessidade de criao de novos sistemas de
contabilidade que levem em conta externalidades e fatores humanos no captados pelos
mecanismos da economia de mercado.
Em suma, preciso cuidar da raiz do problema e no de seus sintomas. Para se passar
da teoria ao, Sachs (1994) diz que (...) o que se necessita criatividade ecolgica que
subsidie uma forma de pensar de cunho desenvolvimentista. E ele ressalta que so as
populaes locais as mais indicadas para empreender essa nova forma de pensar, pois
essas populaes normalmente agem de forma mais saudvel do ponto de vista ambiental; e se
forem removidos os obstculos polticos e institucionais que as impedem de ter uma viso de
longo prazo, elas podero alcanar um nvel de vida muito mais digno.
A idias destes estudiosos servem de reforo para o que defendido ao longo de toda
esta tese: o desenvolvimento do Serto deve passar pelo sertanejo, sua histria, seus valores,
sua cultura, seu saber.
2 ESTADO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL
Um ponto que se destaca quando se trata de desenvolvimento o papel do Estado. Se
de uma maneira geral o Estado ocupa uma posio fundamental na implementao de
polticas que viabilizem o desenvolvimento sustentvel, no Serto semi-rido esse papel
ainda mais importante. Sendo o Estado ainda o grande provedor de recursos, tambm o
grande responsvel pelo alcance ou no de uma melhor qualidade de vida para o sertanejo.
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O processo civilizatrio vem sendo comandado pela racionalidade econmica,
amparada pela cincia, que gera tecnologia e mais produo, pelo individualismo concorrente
e pela subordinao aparente da natureza. Para regular essas relaes, o sistema conta com o
Estado e as polticas pblicas. Particularmente em regies de grande excluso, onde as
pessoas pouco sabem das nuances do mundo em que habitam, e menos ainda tm condies
de acesso s riquezas geradas e aos novos conhecimentos, o Estado ainda o grande indutor
da mudana ou da permanncia do atraso e as polticas pblicas so fortemente responsveis
pela reproduo ou pela superao do modelo de poder.
A ascenso do neoliberalismo no final dos anos 70 do sculo XX levou exacerbao
do poder do mercado, e tentativa de dissoluo da maioria das funes do Estado,
determinando que este deveria ter agora uma participao mnima na economia, restringindo-
se s suas funes sociais e regulao dos servios pblicos que seriam privatizados
(ANDERSON, 1995).
Essas premissas levadas a cabo por vrios pases mostraram-se inadequadas, mesmo
para os pases chamados desenvolvidos, e especialmente para pases como o Brasil, com um
mercado desorganizado, altamente imperfeito, e carente de recursos financeiros externos para
garantir os processos de crescimento econmico e desenvolvimento.
Nesses pases, as polticas pblicas so essenciais para garantir a adoo de medidas
necessrias reverso do quadro de crise ambiental e social. Alm disso, o cenrio econmico
desfavorvel e as bases polticas e institucionais ainda frgeis no permitem que se deixe a
cargo das foras de mercado a gerao das possveis solues para os problemas apresentados.
Particularizando para o Brasil a anlise do papel do Estado como indutor de novas
prticas sustentveis, Bursztyn (1994) mostra que, do ponto de vista institucional, as polticas
ambientais no Brasil so caracterizadas por alguns problemas bsicos relativos degenerao
das instituies pblicas, cultura burocrtica do aparelho do Estado, fragilidade dos
instrumentos e carncia de meios, e problemas de natureza poltica. Um levantamento
rpido de como o Estado encaminhou as questes ambientais nacionalmente atesta a
fragilidade das instituies diante do poder poltico. Conforme a viso momentnea de um
governo, as instituies so extintas, mutiladas ou modificadas, enfraquecendo a continuidade
de polticas.
Nos pases em desenvolvimento como o Brasil, o desenvolvimento sustentvel chegou
como um novo dever de casa, imposto pelos organismos internacionais de financiamento do
desenvolvimento, e passou a constar primeiro como base obrigatria para os planos de
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governo, sendo depois incorporado por todas as instncias da sociedade. Inmeros
desdobramentos desse fato podem ser observados em todo o territrio nacional.
A pesquisa aqui apresentada destaca as conseqncias da implementao desse
conceito nos projetos que tm como beneficirios os habitantes das comunidades carentes do
Serto do Cear. No possvel entender a atual realidade dessas localidades sem percorrer o
caminho que levou at elas este conceito. E para isto necessrio compreender bem a prpria
construo poltica desse conceito, especialmente no Brasil.
A reviso da construo do conceito de desenvolvimento sustentvel desemboca na
formulao de parmetros necessrios para o alcance deste, o que promoveria o ataque direto
degradao ambiental e pobreza, e garantiria a distribuio equnime dos resultados da
evoluo do homem, proporcionando uma qualidade de vida adequada para todos, sem distino,
e com respeito diversidade cultural.
A adoo do conceito de desenvolvimento sustentvel como algo positivo e necessrio
revolucionou a forma de gerenciar recursos em todo o mundo. Porm, esse conceito foi
apropriado pelo discurso poltico como uma frmula mgica que abre portas, consegue
recursos e tudo justifica, legitimando e revestindo de modernidade o antigo jogo do poder que
define as polticas, seja em termos de governo mundial ou nacional, ou em termos locais,
nas mais recnditas localidades.
Promover o desenvolvimento sustentvel virou moda, e um discurso ou plano poltico
para o desenvolvimento que no contivesse essa expresso, j nos anos 1990, no teria chance
de ser levado adiante. Em seguida, foi o combate pobreza e excluso social que se tornou a
ordem do dia. O que tambm cabe como uma luva para o Serto pobre.
Misturando tudo, proliferaram textos expressivos em diversas instncias de poder.
Contudo essas cartas de intenes de polticos, instituies, organizaes e governos no
tm se traduzido em melhorias verdadeiras e permanentes para a grande parte da populao
mundial. Pelo contrrio, informaes recorrentes atestam o aumento da pobreza, da fome, do
desemprego, da violncia e, o que pior, da desesperana em todo mundo, especialmente para
os pobres dos pases chamados em desenvolvimento, como o Brasil.
Questes sociais e ambientais, por sculos sobrepujadas pelas questes econmicas,
passaram da noite para o dia a fazer parte fundamental da vitrine do desenvolvimento.
Apesar do alcance ainda limitado e das distores evidentes desse novo discurso, inegvel
que ele representa um passo frente, uma evoluo na forma da humanidade pensar sobre sua
-
prpria existncia na Terra. Aos poucos a palavra sustentabilidade, ainda que desgastada
pelo uso exacerbado, chegou para dar nova tonicidade s questes socioambientais, e
proporcionar novas perspectivas para as populaes carentes, como as que vivem no Serto
semi-rido do Nordeste do Brasil.
3 DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL, POLTICAS PBLICAS E POBREZA
COMO SE D ESSA COMBINAO NO SERTO
O Serto semi-rido do Cear, situado no Nordeste do Brasil, foi o local escolhido para
empreender esta pesquisa. Ali os aspectos geogrficos, climticos, sociais, culturais,
econmicos e polticos se apresentam em um cenrio de pobreza e espoliao social, que
agora se agrava com a crescente e contnua descaracterizao cultural. Foram estudados os
municpios que compem a Bacia Hidrogrfica do rio Banabui, no Serto Central do Cear,
regio mais representativa do bioma Caatinga e da prpria histria poltica, social e
econmica do estado. Para as entrevistas foram escolhidos apenas os municpios de Quixad e
Quixeramobim.
BOX 1 Meio ambiente
Mais de 90% do territrio do estado do Cear est inserido no semi-rido nordestino, contando comprecipitaes que variam de 500 a 2000 mm por ano, nas estaes chuvosas, que duram de 3 a 5 meses, e queso caracterizadas pela irregularidade temporal e espacial (CEAR, 2003a).
O Serto semi-rido encontra-se no Bioma da Caatinga, que o nico ecossistema exclusivamente brasileiro considerada uma das 37 regies naturais do planeta, isto ainda abriga pelo menos 70% de sua coberturavegetal original e por isso a Caatinga considerada estratgica no contexto das mudanas globais(TABARELLI e SILVA, 2003).
O mais recente projeto poltico no Cear, e que aparece na mdia como sendo pioneiro
e transformador, comeou com o chamado Governo das Mudanas, em 1987, protagonizado
por Tasso Jereissati, com o aval das elites empresariais locais, que o forjaram dentro de uma
linguagem tida como moderna. Esse projeto que entra pelo sculo XXI, bem como suas
conseqncias, aos poucos so reveladas sem o vu da aparncia miditica. Esse Governo
um ponto de ruptura, que d incio a uma nova forma de fazer poltica e que desloca o eixo do
poder. Ele promove um projeto que eminentemente de cunho urbano-industrial e tem como
objetivo precpuo a manuteno do poder conquistado. Isto comum aos demais projetos,
ento considerados como causadores do atraso do povo cearense. Tal deslocamento espacial
do poder que uma novidade traz srias conseqncias para o meio rural cearense, como
visto ao longo desta anlise.
-
A histria poltica do estado do Cear se desenrola em paralelo com a do meio
ambiente. Embora s ao final do sculo XX este tenha se evidenciado como elemento
constituinte dos discursos polticos e objeto direto das polticas pblicas, sempre foi o grande
mote para atos e campanhas polticas, sendo usado de vrias maneiras. A mais clara usar a
seca como uma determinante ambiental para a pobreza. O que fica pouco evidente seu uso
como instrumento de controle da populao e dos recursos financeiros e naturais do estado,
isto ocorrendo com todos os grupos polticos que j detiveram o poder.
Com o discurso da mudana veio o discurso da sustentabilidade e da modernidade
administrativa. Nesse ponto so identificados claramente dois conceitos chaves para o
entendimento desse projeto: modernidade e sustentabilidade, que passam a ser palavras
facilmente encontradas nos pronunciamentos polticos. Contudo, seu significado varivel,
conforme os interesses em jogo, e pouco tem a ver com os significados elaborados em
profundidade por diversos estudiosos. Os conceitos so apropriados pelo discurso poltico
para legitimar seus interesses prprios, baseados no modelo global de acumulao de riquezas
e excluso social.
Com o desenrolar desse projeto governamental modernizante, o meio ambiente vai se
revelando no seu papel usual. Agora, evidenciado e valorizado, passa a ser pea chave na
poltica preconizada pelo governo, usado como smbolo de um novo tempo para o estado.
Embora a gua, ou falta dela, sempre tenha sido a maior motivao para as polticas
pblicas para a regio Nordeste e para o Cear em particular, o novo enfoque ambiental
trazido pela valorizao do conceito de desenvolvimento sustentvel, coloca a gesto racional
da gua como o novo e grande objetivo do governo. H uma superao de antigos discursos;
no se enfatiza mais o combate seca, e mesmo a idia de convivncia com a seca se
enfraquece diante de uma nova perspectiva: a construo das condies para viabilizar um
projeto urbano-industrial que tira o Serto de foco e desvia toda a ateno e recursos para
garantir um novo cenrio de progresso e crescimento econmico. A urbanizao da capital do
estado, transformada em metrpole, traduz a idia de modernidade perseguida pelo governo.
Essa postura traz graves conseqncias para o Serto e para os sertanejos, que perdem
importncia no mbito das aes governamentais, que concentram esforos nas medidas que
garantiriam o fortalecimento de atividades eminentemente urbanas, como a indstria, o
turismo e o comrcio. As atividades agropecurias e os recursos para o desenvolvimento rural
so grandemente prejudicados nesse novo cenrio.
O controle dos aspectos ambientais, como o uso da gua, passou a ser uma prioridade
para o governo, inserida dentro de um novo contexto, e agora justificada pela necessidade de
-
gerar a infra-estrutura para a construo do novo Plano de Desenvolvimento Sustentvel
para o Cear. Este plano promovido no segundo mandato do Governador Tasso Jereissati,
em 1995, logo aps, portanto, ECO-92. Este governo tem como carro chefe a
industrializao, incentivada por subsdios, renncia fiscal e investimentos pblicos. Tal
estratgia atrairia as empresas, que gerariam emprego e renda e mudariam o perfil produtivo
do estado, acabando assim com a sina de dependncia e pobreza do povo, advinda dos
aspectos climticos. Contudo, os dados socioeconmicos demonstram que essa promessa no
foi cumprida devidamente.
O Estado, capturado por interesses dos diferentes grupos que assumem o poder,
tambm no capaz de fortalecer o Serto como um espao diferenciado, com organizao
social e produtiva prprias. As polticas pblicas no se preocupam em olhar este lugar e
escutar com ateno seu povo, apenas repetem h dcadas uma postura de
descomprometimento, justificada na maioria das vezes por uma suposta inviabilidade
econmica e produtiva da regio.
Os dados apresentados a seguir so parte de uma pesquisa ampla5 que avaliou todas as
dimenses do desenvolvimento sustentvel no Serto do Cear. Aqui so ressaltados apenas
os aspectos relacionados diretamente com a pobreza da populao. Apesar da melhoria
relativa de alguns indicadores sociais, como sade e educao, os nveis de pobreza e de
indigncia entre a populao do Serto continuam elevados. Alm disso, o baixo nvel de
renda, bem como sua composio, deixam os indivduos ainda mais vulnerveis e
dependentes.
BOX 2 Pobreza moderna
A modernizao do Cear promovida pelo governo no foi suficiente para reverter o fato do estado ser um dosmais pobres do Brasil. Segundo dados da PNAD, 53,4% da populao cearense considerada pobre, e 26,3%indigente (CEAR, 2004). A maior parte dos habitantes do Cear, cerca de 42%, est concentrada na RegioMetropolitana de Fortaleza RMF, que corresponde a apenas 3,46% do espao do estado. O mais grave que71% dessas pessoas se encontram na capital do estado, Fortaleza, que ocupa 6,30% da RMF. A RMF concentraainda 62% do PIB do estado, sendo que 85% dos seus empregos so gerados em Fortaleza, que tambm responsvel por 86% da arrecadao da RMF (CEAR, 2003).
A Tabela 1 apresenta dados preocupantes. Embora o percentual de indigentes e de
pobres tenha cado de 1991 para 2000, esses ndices so muito elevados e se agravam quando
comparados com os indicadores que mostram que a intensidade da pobreza quase no variou,
permanecendo alto e que a intensidade da indigncia se elevou mais ainda de 1991 para 2000.
Considerando que esses indicadores foram calculados apenas para os indivduos que moram
em domiclios particulares permanentes, esse quadro pode ser ainda mais grave. 5 A pesquisa mais ampla foi realizada para o trabalho de tese de doutorado defendida pela autora no CDS (verCHACON, 2005).
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Tabela 1 - Municpios da bacia do Banabui Percentual de indigentes, percentual depobres, intensidade da pobreza6 e intensidade da indigncia7 (1991 e 2000).
Municpio % de indigentes % de pobresIntensidade da
pobrezaIntensidade da
indigncia1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
Banabui 64,78 48,40 88,27 70,80 62,51 60,80 46,82 56,36Boa Viagem 63,50 51,53 86,10 74,48 63,66 62,81 50,88 60,38Ibicuitinga 55,17 47,32 82,53 73,39 59,23 59,93 49,28 58,34Madalena 68,29 50,19 89,48 71,34 65,22 61,98 51,27 56,94Mombaa 70,66 55,91 86,23 77,71 70,73 67,66 59,32 70,81Monsenhor Tabosa 73,37 54,15 90,46 77,27 71,02 64,15 58,82 61,17Morada Nova 50,21 33,73 78,94 64,95 55,73 50,05 40,90 46,97Pedra Branca 65,75 45,58 88,97 71,26 61,56 60,61 44,53 60,94Piquet Carneiro 60,16 50,24 85,45 73,27 61,51 66,98 48,30 73,20Quixad 47,03 38,67 73,15 63,48 56,95 56,52 43,69 54,55Quixeramobim 55,49 43,21 83,48 67,64 58,40 59,49 45,81 58,73Senador Pompeu 52,76 37,30 79,77 62,33 57,23 54,96 42,89 52,33Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2003. Elaborao prpria.
Complementando essa anlise os dados do PNUD/IPEA/FJP (2003) revelam que o
percentual de crianas e de pessoas que se encontram na categoria de indigentes e na categoria
de pobres alarmante, pois mostram que as crianas esto muito mais vulnerveis, com um
percentual de crianas pobres que chega a quase 90% em alguns municpios. Os dados do
PNUD/IPEA/FJP (2003) revelam ainda que o percentual da renda domiciliar que apropriado
segundo as faixas da populao, classificadas segundo o grau de pobreza e riqueza. Fica clara
a elevao da desigualdade e da concentrao de renda nas classes de maior poder aquisitivo.
De 1991 para 2000 todos os municpios apresentaram uma diminuio no nvel de renda dos
mais pobres, enquanto os 20% mais ricos passaram a se apropriar de um percentual maior da
renda em todos o municpios. Para a faixa dos 10% mais ricos tambm houve uma elevao
da renda em quase todos os municpios. A comparao entre o percentual de renda mdia dos
10% mais ricos em relao aos 40% mais pobres se elevou de 1991 para 2000 em todos os
municpios pesquisados. O mesmo ocorre para a razo entre os 20% mais ricos e os 40% mais
pobres. Naturalmente, os ndices que medem a desigualdade apontam para um crescimento
significativo desta, entre os anos de 1991 e 2000.
6 A intensidade da pobreza medida pela distncia que separa a renda domiciliar per capita mdia dosindivduos pobres (definidos como os indivduos com renda familiar per capita inferior a R$ 75,50 ou 1/2 dosalrio mnimo vigente) do valor da linha de pobreza medida em termos de percentual do valor dessa linha depobreza.7 A intensidade da indigncia medida pela distncia que separa a renda domiciliar per capita mdia dosindivduos indigentes (definidos como os indivduos com renda familiar per capita inferior a R$ 37,75 ou 1/4 dosalrio mnimo vigente) do valor da linha de pobreza medida em termos de percentual do valor dessa linha depobreza.
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A economia do Serto ainda est baseada nos produtos primrios, altamente
dependentes dos ciclos hidrolgicos e climticos. Nesse sentido, os habitantes do Serto
inevitavelmente se organizam em funo da gua, ou da falta dela. Entre os agricultores
tradicionais que ainda se mantm no Serto praticamente no h excedentes. O modo de
produo pr-capitalista ou marginal ao capitalismo. O capitalismo s toma conhecimento
da regio quando de seu interesse (eleies, por exemplo). As principais culturas ainda so as
culturas de sequeiro, arroz, milho, feijo e mandioca, dependentes das precipitaes
pluviomtricas para produzir. Depois da agricultura, as outras fontes de renda so raras e
irregulares. Alm de se ocuparem como professoras ou em cargos ligados sade, as mulheres
tambm contribuem para a renda familiar, em algumas comunidades, costurando ou fazendo
trabalhos de artesanato em renda ou barro.
Antes, a maioria da populao do Serto cearense vivia apenas dos rendimentos da
agricultura e de pequenas criaes, que podiam ser desenvolvidas em terra prpria ou atravs de
contratos com fazendeiros locais. Hoje esse cenrio tem novos componentes. Do ponto de vista
da renda, uma constatao fundamental para entender a nova conformao do Serto: boa
parte dos idosos aposentada. Conforme j foi assinalado mais acima, so estas
aposentadorias, juntamente com as transferncias de vrios programas governamentais de
poltica compensatria, que garantem a maior parte da renda no Serto.
A Tabela 2 mostra como o peso das transferncias aumentou na dcada de 1990 nos
municpios que compem a bacia do Banabui. No municpio de Quixeramobim, por exemplo, o
percentual da renda advinda do trabalho era de 82,18% em 1991, baixando para apenas 47,07%
em 2000, enquanto a renda proveniente de transferncias governamentais pulou de 12,68% para
25,88%, no mesmo perodo.
Tabela 2 - Municpios da bacia do Banabui Percentual da renda proveniente dotrabalho e percentual da renda proveniente das transfernciasgovernamentais (1991-2000).
Municpios
Renda proveniente dos rendimentosdo trabalho (%)
Renda Proveniente das transfernciasgovernamentais (%)
1991 2000 1991 2000Banabui 81,87 41,27 13,24 26,71Boa Viagem 84,39 52,12 11,96 22,93Ibicuitinga 78,94 44,86 9,63 25,8Madalena 83,79 52,12 12,5 23,76Mombaa 81,64 36,25 14,18 28,25Monsenhor Tabosa 85,55 52,15 12,00 20,94Morada Nova 83,62 60,5 12,24 22,74Pedra Branca 84,55 49,87 11,82 23,22
-
Piquet Carneiro 79,22 34,74 13,76 29,84Quixad 81,82 53,88 15,1 21,56Quixeramobim 82,18 47,07 12,68 25,88Senador Pompeu 80,64 48,35 16,63 27,52
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2003. Elaborao prpria.
O que foi observado pela pesquisa torna ainda mais relevante o papel do idoso no
Serto. Alm de estar garantindo a renda da casa com a aposentadoria, so os idosos que ainda
continuam trabalhando, mesmo aposentados, para melhorar a condio de sustento da famlia
que cresce com os netos. Vrios agricultores entrevistados se encontram nessa situao. Todos
os aposentados continuam trabalhando em seus roados, chova ou no. Entre eles foi comum
escutar sua preocupao com o destino das famlias quando eles se fossem.
BOX 3 Aposentadorias garantem a renda do Serto
No caso da populao, o peso das transferncias est nas aposentadorias e tambm nos programas sociais dogoverno, sendo que a maior parte dos rendimentos do Serto vem mesmo das aposentadorias. Os trabalhadoresrurais tm o direito de solicitar este benefcio mesmo sem terem contribudo para a Previdncia antes.
Os dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) revelam que o nmero de trabalhadores ruraisatendido pela Previdncia Social no Cear cresceu 24,99% entre 2000 e 2004. A quantidade de benefciospagos no estado passou de 459.499 para 574.360 nesse perodo e em 2004 os aposentados rurais receberam R$1,85 bilho do INSS no Cear (DIRIO DO NORDESTE, 2005).
Segundo o IBGE, a pobreza no Brasil seria ainda maior se as aposentadorias no fossem concedidas aos idososmesmo os que nunca contriburam para a Previdncia. A pesquisa sobre os Indicadores Sociais Municipais(IBGE, 2004) indica que 44% da populao com mais de 60 anos no Brasil responsvel por garantir mais dametade da renda dos domiclios onde vivem. O rendimento de 27% dos idosos brasileiros que garante osustento do domiclio onde vivem, pois chegam a responder por mais de 90% do dinheiro que entra em casa.
A pesquisa constatou in loco que as atividades econmicas que geram emprego e renda
so escassas hoje no Serto. O comrcio se restringe a pequenas vendas, normalmente com
uma mesa de bilhar, um lugar que serve mais de ponto de encontro para os desocupados do
que para uma venda significativa de mercadorias. A maioria dos habitantes dessas pequenas
vilas faz suas compras na sede dos municpios quando recebem sua aposentadoria ou os
rendimentos de programas assistencialistas do governo.
A maior parte do comrcio na sede dos municpios s funciona de fato do dia 1 at o
dia 10 de cada ms, ltimo dia de pagamento de aposentadorias. Especialmente as feiras, to
comuns no Serto e um dos pontos mais tradicionais de encontro das pessoas, no tm como
funcionar alm desse perodo.
BOX 4 O desenvolvimento no chega ao Serto
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Os programas de interiorizao do desenvolvimento do governo do estado no chegaram ao Serto e a geraode emprego e renda ainda muito precria.
As indstrias, que seriam o carro chefe do desenvolvimento do Cear segundo o governo capitaneado porTasso Jereissati, no apareceram com fora nos municpios pesquisados. Por outro lado, as poucas fbricas quese instalaram no Serto, apesar de empregar muitos jovens do local, no absorvem um nmero grande de mo-de-obra. Alm disso, poucos esto preparados para esses cargos tcnicos, inclusive pelo baixo nvel escolar.
Tambm a pouca instruo e as poucas opes de emprego levam a que a explorao da populao seja muitogrande pelos donos dessas fbricas. A maioria no contrata os funcionrios, mas sim cooperativas detrabalhadores. Dessa forma os empresrios driblam os impostos trabalhistas e os empregados ficam semquaisquer garantias.
O peso da indstria na composio do PIB dos municpios pesquisados ainda muito
baixa. Com base em dados do IPECE (2004), constatou-se que o comrcio o setor com
maior participao no PIB (71% em mdia) para o conjunto dos municpios da bacia do
Banabui, seguindo a tendncia estadual. Apesar de uma participao maior da indstria em
Morada Nova e em Quixeramobim, esse setor ainda perde para a agropecuria no conjunto
dos municpios. Enquanto a agropecuria responde em mdia por 21% do PIB, a indstria s
chega a 8% em mdia.
No que diz respeito ao emprego no Serto, o maior nmero de empregos formais ainda
se concentra na agropecuria em todos os municpios pesquisados, segundo os dados do
Censo Demogrfico de 2000 do IBGE. Ainda sobre a composio do emprego, um dado
relevante que nos municpios pesquisados, assim como na ampla maioria dos municpios do
Cear, a prefeitura ainda o grande empregador (RAIS/MTE, 2002). Tambm os programas do
governo estadual respondem por muitos empregos tanto nas sedes quanto no meio rural dessas
cidades, o que agrava ainda mais o grau de dependncia financeira dos moradores em relao ao
Estado.
Essa regio se destacou historicamente pela produo de algodo e criao de gado,
contudo as dificuldades recentes levaram a uma mudana desse perfil. Municpios dessa
regio tm tentado revitalizar a cultura de algodo, principalmente Quixad, mas de forma
ainda muito incipiente. L havia 4 fbricas de beneficiamento, restam 3 que no funcionam
por falta de matria-prima. Tambm em Quixeramobim as fbricas e fazendas foram
abandonadas.
BOX 5 A populao do Serto semi-rido vai para o Cerrado
Muitos homens tm migrado definitiva ou temporariamente para o interior da regio Centro-Oeste, para ondeforam os fazendeiros do Serto. Os dados do Censo 2000 do IBGE demonstram que o nmero de nordestinosque est indo para esta regio vem crescendo e j chega a 15,1% das migraes, o que representa uma parcelade 12% do total da populao ali residente.
A pobreza e os anos de descaso e manipulao pelo poder pblico, esto levando o
sertanejo a uma perda de sua auto-estima, deixando-os confusos acerca de sua prpria cultura,
-
colocando de lado o modo de vida aprendido com seus antepassados. A acomodao e a
dependncia das polticas governamentais de cunho compensatrio cada vez maior. Ou seja,
criou-se um crculo vicioso de dependncia que no permite a superao destes vnculos e
ainda promove a desmobilizao social, produtiva e cultural nesse espao.
As polticas continuam representando instrumentos de controle, que permitem a
continuidade de grupos no poder e, de forma imbricada, da dependncia poltica. Embora a
poltica comande todo esses processo, ao longo dos ltimos anos do sculo XX e incio do
sculo XXI novos fatores vm surgindo e se incorporando. So novas instituies e novos
discursos, com novos nomes, porm um objetivo permanece: poder. E com conseqncias
graves e constantes: a excluso social, a degradao ambiental e a continuao de conflitos
diversos, agora escamoteados pelo discurso oficial. A gua continua chegando para muitos
sertanejos no lombo de jumentos puxados por crianas, ou ainda nos velhos carros-pipas dos
polticos, quando a coisa aperta. E o sertanejo, cada vez se sentido menos integrado a um
modo de vida desestruturado, abandona o Serto seguindo o caminho das guas para o litoral,
onde lhe parece estar uma vida melhor.
Para alm da comparao dos nmeros, o Serto, apesar da melhora relativa no acesso
educao e sade, tornou-se mais vulnervel e mais dependente. Alm do esvaziamento
cada vez mais intenso, o Serto tambm est perdendo sua identidade cultural e at mesmo
produtiva. O trabalho na roa que sempre garantiu a sobrevivncia dessas pessoas est sendo
esquecido, e, ao mesmo tempo, no esto sendo criadas condies reais para o surgimento de
novas atividades que garantam uma renda produtiva suficiente para a regio.
Uma regio pobre como o Serto, ao receber efetivamente recursos que antes eram
dispersos em destinos escusos, naturalmente responde com uma melhoria relativa. A natureza
dessa melhoria que deve ser analisada com cuidado. A simples entrada de novos recursos
financeiros, como o caso das transferncias governamentais via polticas compensatrias
continuadas, ou dos investimentos pontuais, como a construo de cisternas domsticas,
embora garanta um fluxo de renda constante, diferente das frentes de emergncia que eram
episdicas, no pode ser garantia de desenvolvimento sustentvel. A no preocupao com
investimentos que garantam a gerao de emprego e renda no Serto pode levar total
inviabilidade dessa regio, que tende a se tornar uma espcie de economia sem produo.
A desmobilizao do modo de vida do Serto ocorre em funo da continuada
excluso desse espao. Esta excluso no ocorre somente do ponto de vista da gerao de
riquezas. Ela se traduz pela no participao efetiva dos sertanejos nas decises que
-
interferem no seu prprio destino, bem como pela persistente sensao de que seu lugar no
tem valor diante do progresso e da modernidade, que a ele se apresentam com uma roupagem
urbana. O Serto surge para os novos sertanejos como um lugar sem possibilidades, distante
das boas oportunidades de acesso aos empregos e a um modo de vida aparentemente mais
fcil.
A persistncia de mostrar o Serto como um lugar marcado pelas adversidades
relacionadas gua acaba por escamotear esta grave realidade: o sentimento de no
pertencimento e a baixa auto-estima do sertanejo. Essa condio a traduo de um conflito
que perpassa todos os problemas do Serto do incio do sculo XXI: o sertanejo j no
consegue ter certeza de sua prpria identidade. J no parece valer a pena reproduzir velhos
costumes, e nem mesmo permanecer no Serto. Este conflito tem razes histricas to fortes
quanto o conflito gerado pela escassez relativa de gua. E, como este, tambm foi criado e
alimentado por dcadas de polticas pblicas equivocadas, que no tinham como objetivo
promover o desenvolvimento do Serto, mas apenas usar esse espao e seus habitantes em
prol dos projetos das elites no poder. O sertanejo no foi sujeito, no discutiu essas polticas
que iriam atingir sua vida, foi apenas um objeto mal desenhado e pouco conhecido para os
fazedores de polticas.
Uma viso simplificada do Serto leva a crer que seu principal conflito gira em torno
da gua. At mesmo os sertanejos confirmariam isso, j que as dificuldades do cotidiano so
as que se sobressaem em uma anlise superficial. Contudo, os conflitos relativos gua so na
verdade a ponta visvel de um conflito que maior e mais complexo do que aparenta. Este
conflito que se esconde est na prpria essncia do sertanejo e se estabelece a partir da sua
perda de identidade. Isto ocorre em funo da manipulao poltica que se desenrola ao longo
da histria, e vem tirando deste a sua condio de sujeito, alm de convencer-lhe da no
viabilidade de seu lugar. Embora o sertanejo tenha clareza quanto sua condio de
explorado, ele no consegue ainda visualizar a extenso da desarticulao social sofrida pelo
Serto.
mantida a condio de cabresto das populaes remanescentes no Serto, que
seguem merc dos favores pblicos, mediados por atravessadores do Estado, que repetem
os velhos hbitos e faturam em eleies. E a condio ambiental do Serto continua servindo
de justificativa para aes polticas que subordinam esse espao e seus habitantes.
Para ir alm dessa repetio em torno da gua, para que os polticos e as polticas no
continuem se restringindo ao uso da escassez da gua como justificativa da pobreza, ou para
-
conseguir recursos de usos duvidosos, preciso ver esse conflito em relao gua como uma
camuflagem histrica de um processo contnuo de destruio da condio de ser no Serto.
CONCLUSES
Este trabalho de pesquisa partiu do pressuposto de que as polticas pblicas para o
Serto esto desmobilizando esse espao e que o sertanejo, perdendo seu referencial social e
cultural, se desloca maciamente para o meio urbano. Isto agrava a pobreza, e no permite que
se criem as condies para o desenvolvimento sustentvel. O Serto se mostra vulnervel do
ponto de vista econmico, ambiental, social, cultural e poltico.
As polticas pblicas, quando no ignoram completamente a importncia do Serto,
apenas fortificam a sua condio de dependncia e partem da idia de que esse espao, como
um todo, no vivel economicamente. Essas polticas esto desarticulando o modo de vida
do Serto, transformando-o verdadeiramente em uma espcie de viveiro macabro, onde se
criam os futuros excludos das periferias urbanas. Velhas prticas assistencialistas se
sofisticam, agora reforadas por polticas sociais compensatrias, que tm substitudo as
polticas necessrias para a construo de condies que levem ao surgimento de atividades
produtivas geradoras de renda.
O principal objetivo desta pesquisa foi responder por que as polticas pblicas no
conseguem reverter o processo agudo de excluso social e promover um processo sustentvel
de desenvolvimento para o Serto. A resposta est na base de formulao dessas polticas.
Elas partem do pressuposto que o Serto um espao invivel economicamente e que o
principal conflito nesse espao relativo ao acesso gua, imputando aos aspectos ambientais
o no desenvolvimento da regio. Ignoram a histria, os valores e a cultura do Serto e ainda
tm contribudo para agravar o verdadeiro conflito que norteia os sertanejos: a perda de
identidade, que os desmobiliza, paralisa-os e expulsa-os de seu lugar. As modernas polticas
de guas no fogem tradio do modo de fazer poltica no Serto: a condio de sujeio das
populaes trabalhadoras no se modifica. Os sertanejos seguem submetidos a um estado de
coisas em que a poltica (no sentido de politics) e a poltica (no sentido de polcy) se
entrelaam de forma promscua. Ao invs de modernizarem, servem para manter o que de
mais perverso tem na tradio da regio: o coronelismo. Ao desprezar aspectos como a
cultura, a prtica do discurso da sustentabilidade tem mostrado a falcia da preeminncia da
-
dimenso econmica de mercado, que apenas uma das faces do desenvolvimento
sustentvel.
O cenrio apreendido pela pesquisa indica uma tendncia de esvaziamento do Serto.
Os idosos, que hoje garantem a renda de suas famlias com a aposentadoria, desaparecero aos
poucos. As crianas crescero e iro para as cidades em busca de condies de sobrevivncia.
Mesmo que alguns permaneam, a desmobilizao do Serto parece irreversvel, a persistirem
as tendncias atuais. Essa constatao leva a um dilema: ou as polticas pblicas revem seus
princpios, adaptam-se realidade descrita e adotam mecanismos de emergncia para evitar a
morte social do Serto, ou simplesmente continuam a ignorar esse espao e suas necessidades,
confirmando o cenrio do esvaziamento fatal.
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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