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ANÁLISE DA INTERLOCUÇÃO
EM ELEMENTOS PROVOCADORES
DO EXAME ORAL CELPE-BRAS
Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF)
Na perspectiva pragmática, a linguagem é consi-
derada como uma forma de ação; cada ato de fala
(batizar, permitir, mas também prometer, afirmar,
interrogar, etc.) é inseparável de uma instituição,
aquela que este ato pressupõe pelo simples fato de
ser realizado. (MAINGUENEAU, p. 29)
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar, sob o ponto de vista da encenação dis-
cursiva no gênero “prova oral”, dois elementos provocadores da interação face a face
entre o aplicador e o candidato no exame CELPE-BRAS. O objetivo da tarefa do
exame é avaliar a compreensão e produção oral, instaurando uma conversa sobre o
tema dos textos propostos (aspectos verbais e não verbais). Focalizaremos os procedi-
mentos linguístico-discursivos do contrato de comunicação (o ato de linguagem como
encenação), com especial atenção ao modo enunciativo (CHARAUDEAU, 2009), bem
como algumas marcas dos comportamentos alocutivo, delocutivo e elocutivo na inter-
locução instaurada pelos textos para a conversa, em correlação com o comportamento
presumível na fala do examinando. Com base na concepção de que todo discurso é
marcado por uma interatividade constitutiva, verificaremos a eficácia dos textos
sugeridos para a prova oral, destacando as marcas da presença do locutor, suas estra-
tégias para seduzir o leitor e aspectos da cultura brasileira identificados nos textos
escolhidos. O suporte teórico-metodológico que fundamenta a análise contempla,
portanto, o componente linguístico e o discursivo.
Palavras-chave: Interlocução. Provocação. Exame oral. CELPE-BRAS.
1. Apresentação
Este trabalho tem como objetivo analisar, sob o ponto de vista da
encenação discursiva no gênero “prova oral”, dois elementos provocado-
res da interação face a face entre o aplicador e o candidato no exame
CELPE-BRAS. O objetivo da tarefa do exame é avaliar a compreensão e
produção oral, instaurando uma conversa sobre o tema dos textos propos-
tos (aspectos verbais e não verbais). Focalizaremos os procedimentos
linguístico-discursivos do contrato de comunicação (o ato de linguagem
como encenação), com especial atenção ao modo enunciativo (CHA-
RAUDEAU, 2009), bem como algumas marcas dos comportamentos
alocutivo, delocutivo e elocutivo na interlocução instaurada pelos textos
para a conversa, em correlação com o comportamento presumível na fala
do examinando.
O suporte teórico-metodológico que fundamenta a análise con-
templa, portanto, o componente linguístico e o discursivo.
2. Exame CELPE-BRAS
O certificado de proficiência em língua portuguesa para estrangei-
ros (CELPE-BRAS) é conferido aos estrangeiros com desempenho satis-
fatório em teste padronizado de português, desenvolvido pelo Ministério
da Educação. O exame é aplicado no Brasil e em outros países com o
apoio do Ministério das Relações Exteriores. O CELPE-BRAS é aceito,
internacionalmente, em firmas e instituições de ensino como comprova-
ção de competência na língua portuguesa. É o único certificado brasileiro
de proficiência em português como língua estrangeira reconhecido ofici-
almente pelo governo brasileiro. É conferido, pelo MEC, em quatro ní-
veis: intermediário, intermediário superior, avançado e avançado superi-
or. O primeiro teste foi aplicado em 1998.
A parte oral consiste em uma interação face a face de 20 minutos
entre o examinando e o entrevistador. A primeira parte da interação, com
duração de aproximadamente 5 minutos, consiste em uma conversa sobre
interesses pessoais do examinando, a partir das informações dadas por
ele no formulário de inscrição. A parte seguinte, com duração de aproxi-
madamente 15 minutos, consiste em uma conversa a partir de elementos
provocadores – pequenos textos e imagens de temas variados que circu-
lam na imprensa escrita brasileira. (Informações: Manual do Candidato)
Esse material funciona como elemento provocador da interação
face a face entre o aplicador e o examinando. O objetivo da tarefa é ava-
liar a competência comunicativa em PLE (português língua estrangeira),
não havendo apenas uma resposta correta. Há sugestão oficial de enca-
minhamento da entrevista de acordo com o elemento provocador.
Os exemplos seguintes foram retirados do Manual do Candidato
(BRASIL, CELPE-BRAS, INEP, 2011).
Etapa 1:
O aplicador diz ao examinando: Por favor, leia este texto
(O examinando faz isso silenciosamente)
Etapa 2:
Após aproximadamente um minuto, o aplicador inicia as pergun-
tas da entrevista ao examinando.
ELEMENTO PROVOCADOR 1:
O que faz alguém se tornar seu amigo?
Etapa 3:
Para dar ao examinando oportunidade de prosseguir com sua pro-
dução oral, o aplicador faz perguntas como:
1. Você tem muitos amigos? Fale um pouco sobre eles.
2. Existe alguém que você considere seu melhor amigo? Por quê?
3. Como vocês se conheceram?
ELEMENTO PROVOCADOR 2
(BRASIL, CELPE-BRAS, INEP, 2002).
Etapa 1:
O aplicador diz ao examinando: Por favor, leia este texto
(O examinando faz isso silenciosamente)
Etapa 2:
Após aproximadamente um minuto, o aplicador inicia as pergun-
tas da entrevista ao examinando.
Como é o trânsito na sua cidade?
Etapa 3:
Para dar ao examinando oportunidade de prosseguir com sua pro-
dução oral, o aplicador faz perguntas como:
1. Quais são os principais problemas de trânsito na sua cidade?
2. Você já presenciou uma situação em que o desrespeito às leis de trân-
sito tenha causado um acidente? Conte o que ocorreu.
3. No caminho que faz diariamente para o trabalho, você enfrenta engar-
rafamentos? O que faz para suportar esta situação da melhor maneira
possível?
3. Gênero textual “prova oral”
A situação comunicativa do gênero ¨prova oral” implica que os
parceiros estão face a face e mantêm suas identidades psicológicas e
sociais. Segundo Charaudeau (2008), esses parceiros estão envolvidos
em um contrato de comunicação que implica um ritual sociodiscursivo
em que o eu-comunicante e o tu-interpretante devem conhecer seus pa-
péis. No exame oral, esse fato evidencia aspectos essenciais de produção/
interpretação do ato de linguagem: a) a relação do professor/aplicador
(sujeito comunicante) com o candidato/examinando (sujeito interpretan-
te) de acordo com o propósito linguageiro; b) a relação assimétrica des-
ses dois sujeitos, um diante do outro. (CHARAUDEAU, 2008)
Isso implica um conjunto de liberdades e restrições resultantes
desse tipo de enunciação do ato de linguagem, tais como: o espaço da
sala do exame; a possibilidade que o candidato possui de reestruturar a
fala/resposta; a interferência do aplicador que pode fazer paráfrases para
verificar a compreensão do candidato; a escolha de algum trecho para
destaque e a relevância do assunto, entre outros fatores. Assim, verifica-
-se a margem de manobra para o projeto de fala (atitude do eu-comuni-
cante) e a construção de sua interpretação (atitude do tu-interpretante)
que, ao responder também desenvolverá um projeto de fala pessoal.
Atualmente, de acordo com os estudos bastante difundidos sobre
gênero (BAKHTIN, 2010; MARCUSCHI, 2003; BAZERMAN, 2006),
podemos entender que os gêneros, mais do que formas, são modos de
atuação social. São aqueles textos que se produzem em sociedade e per-
mitem a circulação não só de ideias, mas de atuação social. Tem-se por
pressuposto que não há comunicação verbal a não ser por meio de gêne-
ros que se caracterizam como formas de ação social incontornáveis. Po-
demos, pois, considerar a “prova oral” como um gênero que reflete as
condições específicas e as finalidades do ato de comunicação não só por
seu conteúdo (temático), pelo estilo da linguagem (seleção de recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais) mas, especialmente, por sua cons-
trução composicional. (BAKHTIN, 2010).
Um dos pontos produtivos da análise do elemento provocador re-
lacionada às sugestões de encaminhamento das perguntas pelo avaliador
é alavancar uma reflexão sobre questões de interação em uma situação
específica e em um gênero representativo de uma atuação sociodiscursi-
va. Mesmo com base em dados concretos e aspectos da realidade do dia a
dia vivenciada de modo bem amplo em sociedade, os interlocutores “sa-
bem” que a situação promove a “ficção” de uma conversa espontânea.
Ambos têm consciência de que estão sendo avaliados no desempenho de
suas falas.
Entra, portanto, também em jogo a competência comunicativa que
requer dos participantes da encenação, além do conhecimento de mundo
partilhado, a habilidade no uso da língua em registro adequado ao con-
texto – situação social/familiar dos participantes, os propósitos da intera-
ção, normas e convenções linguístico-discursivas do gênero textual, para
a criação dos sentidos que se deseja.
Vejamos, a seguir, a descrição dos valores de notas apresentada
pela tabela de avaliação do professor/aplicador. Destaque-se que há uma
grade de avaliação da interação dividida nos seguintes itens e com a
pontuação 5, 4, 3, 2, 1, 0: compreensão, competência interacional, fluên-
cia, adequação lexical, adequação gramatical, pronúncia. (BRASIL,
CELPE-BRAS, INEP, 2011).
Avaliação valorativa:
A breve leitura da tabela demonstra a expectativa de sucesso de
uma comunicação verbal oral, em dada situação específica, em que as
competências básicas do falante necessárias à comunicação são postas à
prova.
Segundo Widdowson (1991):
(...) não é muito satisfatório tratar objetivos de cursos de língua em termos de habilidades de falar, compreender, escrever e ler palavras e estruturas de uma
língua. Melhor seria pensarmos em termos da habilidade de usar o idioma para
fins comunicativos.
Essa abordagem de ensino centrada na habilidade de usar o idio-
ma para fins comunicativos promove a associação do ensino da língua
estrangeira ao “mundo real”, garantindo que o ensino de português língua
estrangeira está sendo orientado para questões de comunicação, de uso
real da língua, por meio de tarefas de compreensão, interlocução e cria-
ção textual. Como decorrência, destaca-se a importância do desenvolvi-
mento de competências no ensino de língua. A competência comunicati-
va engloba, como sabemos, a competência gramatical, a sociolinguística,
a discursiva e a estratégica. A competência gramatical relaciona-se ao
código linguístico, às regras da linguagem como a formação de palavras
e de frases, à pronúncia, à ortografia, à semântica. A competência socio-
linguística diz respeito à adequação das expressões linguísticas aos dife-
rentes contextos, isto é, à situação dos participantes, propósitos da intera-
ção, normas e convenções da interação, adequação entre significado e
forma, significado e função comunicativa. A competência discursiva
refere-se ao modo como se combinam formas gramaticais e significado
para a criação de textos de gêneros diferentes, de acordo com a situação
específica de comunicação. A competência estratégica refere-se ao do-
mínio das estratégias de comunicação verbal e não verbal que se usam
para compensar falhas momentâneas da comunicação (por exemplo,
através de paráfrases, mímica etc.). A competência em uma segunda
língua, com fins de interação social, implica a subordinação de regras
gramaticais à função comunicativa em situações discursivas, implica, em
uma palavra, o desempenho adequado do papel de falante na mise en
scène proposta por Charaudeau (2008).
Podemos observar que os elementos provocadores do exame
CELPE-BRAS têm por base diversas modalidades de textos escritos
(verbais ou não verbais) e que a proposta de avaliação está centrada no
desempenho adequado da competência comunicativa. Em resumo, desta-
camos que a competência comunicativa implica: a) conhecimento de
mundo partilhado; b) habilidade no uso da língua em registro adequado
ao contexto; c) propósitos definidos da interação; d) domínio de normas
e convenções linguístico-discursivas do gênero textual.
4. A prova oral do exame CELPE-BRAS e os modos de organização
do discurso (CHARAUDEAU, 2008)
Um discurso, para cumprir sua função social, se organiza em
“modos” (CHARAUDEAU, 2008, p. 74)1 que consistem no emprego de
determinada categoria de língua, ordenados em função das finalidades do
1 Indispensável a leitura dos capítulos “O ato de linguagem como encenação” e “Os modos de organização do discurso”
ato de comunicação. Os “modos de organização do discurso” compreen-
dem o enunciativo, o descritivo, o narrativo e o argumentativo.
O modo enunciativo dá conta da posição do locutor em relação ao
interlocutor, a si mesmo e aos outros. O modo enunciativo é uma catego-
ria de discurso que constrói a maneira pela qual o sujeito falante (locutor)
age na encenação do ato de comunicação. Charaudeau (2008) denomina
“encenação” (mise-en-scène) a interação entre os participantes de um ato
de comunicação.
Para a análise da pergunta (que traz implícito o modo de organiza-
ção do discurso da resposta), interessam, especificamente, os procedi-
mentos linguísticos, que se evidenciam nos comportamentos alocutivo,
elocutivo e delocutivo.
Especificando: a) alocutivo que estabelece uma relação de in-
fluência entre locutor e interlocutor (o locutor age sobre o interlocutor,
impondo-lhe uma reação); b) elocutivo que revela o ponto de vista do
locutor (o locutor enuncia seu ponto de vista, modalizando subjetivamen-
te o enunciado); c) delocutivo que retoma a fala de um terceiro (o locutor
se apaga no ato de comunicação e não implica o interlocutor, sua enunci-
ação é aparentemente objetiva).
Nessa comunicação, focalizaremos o modo enunciativo de manei-
ra particular, já que nos interessa apontar o comportamento do sujeito
falante (examinando) na interação face a face. Tal opção não nos impede
de, quando oportuno, fazer comentários quanto às construções descritiva,
narrativa e argumentativa.
Do elemento provocador nº 1
1. Você tem muitos amigos? Fale um pouco sobre eles.
2. Existe alguém que você considere seu melhor amigo? Por quê?
3. Como vocês se conheceram?
Pode-se perceber que as perguntas 1 e 2, do ponto de vista da res-
posta do examinando, deverão apresentar predominantemente compor-
tamento elocutivo (destaca-se o ponto de vista do sujeito falante sobre o
mundo, é uma relação do locutor consigo mesmo, não há marcas do
interlocutor.), mas também aspectos do comportamento delocutivo (falar
sobre outros, em uma enunciação aparentemente objetiva). Do ponto de
vista do professor avaliador, fica implícito em toda a entrevista o com-
portamento alocutivo, já que o locutor se revela numa posição de ‘supe-
rioridade’ em relação ao interlocutor. Para isso ele usa categorias de lín-
gua próprias, impondo ou pedindo algo, o que pode ser feito pela interpe-
lação, pela injunção, pela autorização, pelo aviso, pelo julgamento, pela
sugestão, pela proposta, pela interrogação ou pela petição. A pergunta 3
espera do interlocutor comportamento elocutivo, mas também fica evi-
dente a presença do modo narrativo.
Do elemento nº 2
1. Quais são os principais problemas de trânsito na sua cidade?
2. Você já presenciou uma situação em que o desrespeito às leis de trânsito tenha
causado um acidente? Conte o que ocorreu. 3. No caminho que faz diariamente para o trabalho, você enfrenta engarrafamentos?
O que faz para suportar esta situação da melhor maneira possível?
As perguntas levam as respostas para comportamento predomi-
nantemente delocutivo (fatos concretos devem ser o centro da resposta),
mas implicam também os modos descritivo e narrativo. No desdobra-
mento da pergunta 3, espera-se o comportamento elocutivo (o locutor
enuncia seu ponto de vista sobre o mundo subjetivamente).
5. Considerações finais
Não há como negar o valor pedagógico do exame que se tornou
um modelo de orientação para o ensino/aprendizagem de português lín-
gua estrangeira (PLE). Assim, com esta breve reflexão sobre os procedi-
mentos da prova oral do exame CELPE-BRAS, exemplificamos uma
abordagem de ensino de língua estrangeira que sugere para a sala de aula
a discussão de questões vinculadas à realidade dos alunos, tendo em vista
a produção de sentido nos diversos modos de organização do discurso.
Com base nesse pressuposto, as ações pedagógicas visam ao crescimento
dos alunos numa matriz de relações interativas cujo foco é o desenvolvi-
mento da competência comunicativa, ressaltando a relação necessária
entre a linguagem e o mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, tipificação e interação. São
Paulo: Cortez, 2006.
BRASIL, Celpe-Bras. INEP, 2011.
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso. Modos de organização.
São Paulo: Contexto, 2008.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discur-
so. Campinas: Pontes, 1989.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionali-
dade. In: DIONÍSIO, Anna Rachel Machado, BEZERRA, Maria Auxilia-
dora. (Orgs.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.