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Análise da Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais, na Constituição Federal do Brasil de 1988, sob a lente de Ingo Wolfgang Sarlet1.
Aleksandro Cavalcanti da Silva2, Caroline Bráulio de Carvalho Sá3 e Jesuína Aparecida Coral de Andrade Lins de Albuquerque4
“Prometer não existe, nem faz sentido quando é um fato isolado. Viver sim é importante, é o sentido, é o encontro. Tentarei viver... (...) não quero cair na utopia das palavras, pois minha causa é maior que um pensamento. Prometo apenas acreditar no ser humano, na intenção dos meus valores com a dos outros, tirar do gesto o melhor produto e não perder o dinamismo da vida de um juramento”.
Sigmund Freud ABSTRACT
1 SARLET, Ingo Wolfgang. é Juiz de Direito no Rio Grande do Sul, Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Munique (Ludwig-Maximillians-Universität), Alemanha, Professor Titular de Direito Constitucional na Faculdade de Direito e no Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Puc/RS, autor da obra A Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. 2 SILVA, Aleksandro Cavalcanti da, Advogado. Mestrando do curso de mestrado em Derecho Del Trabajo y Relaciones Internacionales - Universidad Tres de Febrero - UNTREF - Buenos Aires - Argentina. 3 CARVALHO SÁ, Caroline Bráulio de.Advogada. Mestranda do curso de mestrado em Derecho Del Trabajo y Relaciones Internacionales - Universidad Tres de Febrero - UNTREF - Buenos Aires - Argentina. 4 ALBUQUERQUE, Jesuína Aparecida Coral de Andrade Lins de. Advogada. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB/SP). Mestranda em Direito do Trabalho e Relações Internacionais do Trabalho da Universidad Nacional de Tres de Febrero – UNTREF.Argentina.
Trata o respectivo paper, sobre a obra de Ingo Wolfgang Sarlet, e sua visão quanto
ao que pertine o título em questão, explorando o campo da dignidade da pessoa humana,
onde apresenta várias indagações concernentes a sua evolução histórica, conceituação,
efetivação e distinções entre os direitos dos homens, humanos e fundamentais; tanto na
esteia jurídica-constitucional do Brasil como no entendimento internacional, sob o prisma de
diversos e conceituados estudiosos da área.
1- INTRODUÇÃO
Os primeiros comentários a respeito do significado da dignidade da pessoa humana,
deu-se com os pensamentos clássicos e com as idéias cristãs. O pensamento filosófico e
político da antiguidade clássica, compreendia que a dignidade (digntas) da pessoa humana,
era relacionada à posição social e ao grau de reconhecimento do indivíduo perante os
demais membros da sociedade, formando a idéia de que havia diferenciação de dignidade
entre os indivíduos, isto é, quanto mais respeitado pelos demais, mais digna seria a pessoa.
De outra forma, o pensamento mais austero, dos seguidores e estudiosos do
estoicismo, entendiam que a dignidade era uma qualidade, e que por ser inerente ao ser
humano, o diferenciava das demais criaturas, onde todos os seres humanos possuíam a
mesma dignidade, não havia aqui nenhum grau ou proporcionalidade de dignidade.
Esse pensamento estava ligado à noção de liberdade pessoal de cada indivíduo,
(onde o homem é livre e responsável por seus atos), e a de que todos os seres humanos,
com relação a sua natureza, são iguais em dignidade; pensamento este que coaduna com o
entendimento do político, jurisconsulto e filósofo romano Marco Túlio Cícero, citado por Ingo
Wolfgang Sarlet (2011, p.35), o qual afirmava que:
“ É a natureza quem prescreve que o homem deve levar em conta os
interesses de seus semelhantes, pelo simples fato de também serem
homens, razão pela qual todos estão sujeitos às mesmas leis naturais, de
acordo com as quais é proibido que uns prejudiquem os outros.” 5
5 Cf. M.T. Cícero, Dos Deveres, Livro III, VI. 27, p. 137. Apud
Assim, no pensamento de Cícero e no pensamento greco-romano, a dignidade
apresenta-se com duplo significado, por um lado como dote (dádiva), por outro como
“conquista”, como resultante de um fazer e agir na esfera social.
Na primeira fase do cristianismo, destaca-se o pensamento do Papa São Leão
Magno, o qual sustentava que o ser humano possuía dignidade, pelo fato de que Deus os
criou a sua imagem e semelhança.
Já no período da Idade Média, Anício Manlio Severino Boécio, com pensamento
sustentado posteriormente por São Tomás de Aquino, ao afirmar que a “pessoa” possuía
natureza racional e de substância individual, acabou por influenciar diretamente o conceito
de dignidade da pessoa humana.
A primeira referência expressa de dignidade da pessoa humana, “dignitas humana”,
foi feita por São Tomás de Aquino, construindo o pensamento de que a dignidade encontra
seu fundamento na circunstância de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de
Deus, e que por força de sua dignidade, o ser humano, é livre por natureza, existindo por
sua própria vontade, exteriorizando-se aqui a condição de liberdade.
Ao final da Renascença e início da idade Moderna, o humanista italiano Pico della
Mirandolla, entendendo que a racionalidade é uma característica típica do ser humano,
tomou esta característica, como a chave mestra que possibilita ao ser humano, construir de
forma livre e independente sua própria existência e seu próprio destino.
No século XVI, no início da expansão colonial espanhola, o espanhol Francisco de
Vitoria, contribuiu muito com a formação da idéia de dignidade humana, ao comentar a
aniquilação, exploração e escravização indígena. Baseando-se no pensamento estóico e
cristão, sustentava que os indígenas, em razão de sua natureza humana e em função do
direito natural, eram a princípio livres e iguais, devendo ser respeitados como sujeitos de
direitos, proprietários e na condição de signatários dos contratos firmados perante a coroa
espanhola.
Porém, dentre vários estudos filosóficos, a filosofia kantiana, desenvolvida por
Immanuel Kant, foi responsável por uma importante contribuição a respeito da conceituação
de dignidade da pessoa humana.
Kant parte do princípio, que a concepção de dignidade advém da autonomia ética do
ser humano, entendendo-se que a pessoa é mais que um objeto, vista como valor absoluto
e insuscetível de coisificação.
Kant, citado por Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p.40), sustenta que:
“ o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como
um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso
arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas
ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se
dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como um fim...Portanto, o valor de todos os objetos
que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os
seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade,
mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um
valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo
que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza
os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que
não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte,
limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito) “.6
O entendimento Kantiniano, influenciou decididamente o pensamento filosófico e por
conseguinte o jurídico, valorizando a racionalidade da pessoa e aprofundando o conceito de
pessoa, a ponto de se encontrar um sujeito tratado como “um fim em si mesmo” e nunca
como meio a atingir determinada finalidade.
Apesar da influência Kantiniana, sempre houveram contrapontos quanto seu
entendimento, valendo destacar a noção desenvolvida por Hengel, em sua Filosofia do
Direito, onde defendia que a dignidade constitui também uma qualidade a ser conquistada.
1.1 A noção de dignidade da pessoa na perspectiva jurídico-constitucional: tentativas de aproximação e concretização
Pode-se notar até então, que mesmo diante das inúmeras concepções sobre a
dignidade da pessoa humana, traçadas no decorrer de sua evolução histórica, tem-se como
uma tarefa difícil conceituá-la, sobretudo a respeito da delimitação e abrangência de sua
proteção como norma jurídica fundamental.
Nesse sentido, José de Melo Alexandrino, citado por Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p.
50) comenta:
6 KANT, Immanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes, in: Os Pensadores, p.134-35.Apud.
“o princípio da dignidade da pessoa humana parece pertencer àquele
lote de realidades particularmente avessas à claridade, chegando a
dar a impressão de se obscurecer na razão directa do esforço
despendido para o clarificar.”7
Sarlet, afirma ainda, que uma das maiores dificuldades para conceituar a dignidade
da pessoa humana, tomando a lição de Michaels Sachs, está na questão que a dignidade
da pessoa, não diz respeito aos aspectos inerentes a existência humana ( integridade física,
intimidade, vida, propriedade, etc..), diz respeito a qualidade inerente, ou como outros
preferem, atribuída a todo e qualquer ser humano, o que de fato não ajuda muito para uma
compreensão do que realmente é o âmbito de proteção da dignidade, em sua condição
jurídico-normativa.
Contudo, a dignidade é algo real, visto não encontrar-se maiores dificuldades em
constatar situações em que ela é agredida, motivo de já ter sido comentado que é mais fácil
dizer o que a dignidade não é do que expressar o que ela é.
Tanto a doutrina como a jurisprudência, encarregou-se ao longo do tempo, de
estabelecer alguns requisitos básicos, não fixista (visto o constante processo de construção
e desenvolvimento sobre o tema), que conceituam e concretizam a dignidade da pessoa
humana.
A dignidade, como qualidade integrante e irrenunciável da condição humana, deve
ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo ser criada, concedida ou
retirada (apesar de poder ser violada), já que reconhecida e atribuída a cada ser humano
como algo que lhe é inerente, inseparável.
Conforme entendimento de José Afonso da Silva, comentado por Sarlet, até a
dignidade da pessoa que comete o ato mais indigno e infame, não poderá ser objeto
de desconsideração
Relembrando, que a dignidade não existe apenas onde o Direito a reconhece.
Entretanto, não se pode esquecer que o Direito poderá exercer papel decisivo em
favor de sua proteção e promoção, não sendo totalmente sem fundamento, a
7 ALEXANDRINO, José de Melo. ”Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir da variedade de concepções”, in: Estudos em Honra ao Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Coimbra: Almedina, 2008, p.481. Apud.
sustentação que desnecessária a fundamentação jurídica de dignidade da pessoa humana,
uma vez que trata-se do valor inerente a natureza do ser humano.
Contudo, quando se fala em apontar quais as ofensas à dignidade da pessoa
humana, não há como dispensar maior clareza quanto ao entendimento de dignidade da
pessoa, principalmente para que se possa constatar e inibir casual violação.
Ingo Wofgang Sarlet (2011, p. 55), comenta a bem lembrada lição de Jorge
Miranda :
“o fato de que todos os seres são dotados de razão e
consciência representa justamente o denominador comum a
todos os homens, expressando em que consiste sua
igualdade”.8
Nesse mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p.55), apresenta o entendimento
do doutrinador Alemão, Güther Düring, principal comentador da Lei Fundamental da
Alemanha da segunda metade do século XX. Para ele a dignidade da pessoa humana tem-
se no fato de que “cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da
natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se
consciente de si mesmo, de auto-determinar sua conduta, bem como de formatar a sua
existência e o meio que o circunda”.9
Contudo, há os que pensam diferentemente, isto é, entendem que a dignidade da
pessoa humana, não deve ser considerada apenas, como algo pertinente à natureza
humana (no sentido de uma qualidade inata pura simplesmente). Afirmam que a dignidade é
também fruto do trabalho de diversas gerações, atribuindo à dignidade da pessoa humana,
uma natureza então cultural.
Apesar da dignidade não ser uma fórmula pré-estabelecida, mas diante de tudo que
já foi tecido a respeito do conceito da dignidade da pessoa humana, pode-se afirmar com
certeza, que esta possui caráter multidimensional, diante de sua dimensão histórico-
cultural e sua dupla dimensão negativa e prestacional, bem como pela sua dimensão
objetiva e subjetiva (vista como princípio e norma norteadora dos direitos
fundamentais).
8 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. vol.IV, p. 183. Apud. 9 DÜRIG,Günter. Der Grundsatz der Menschenwürde...in: AÖR nº 81. 1956, p.125. Apud.
Ingo Wolfgang Sarlet, (2011, p.73) apresenta proposta de conceituação
jurídica da dignidade da pessoa humana, relembrando que este conceito está
sempre em reconstrução, justamente pela sua concepção multidimensional:
“ a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e
da vida em comunhão com os demais seres que integram a rede da vida.” 2- DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO NORMA (VALOR, PRINCÍPIO E REGRA) FUNDAMENTAL NA ORDEM JURÍDICO-CONSTITUCIONAL BRASILEIRA - Algumas notas sobre a normatização jurídico-positiva da dignidade no âmbito do direito constitucional
Nossa Constituição atual, acabou por seguir caminho parecido com o percorrido por
outras ordens Constitucionais, como por exemplo a Lei Fundamental da Alemanha e
posteriormente pelas Constituições de Portugal e da Espanha.
Nossa Constituição foi a pioneira na história do constitucionalismo pátrio, a prever
um título destinado aos princípios fundamentais, atribuindo significado e funções a estes.
Nosso constituinte deixou clara sua intenção, em atribuir aos princípios fundamentais, a
qualidade de normas embasadoras, informativas e definidoras de direitos e garantias
fundamentais, sendo estas, também previstas expressamente em outros capítulos de nossa
Lei Fundamental.
Tais previsões apresentam-se quando nossa constituição estabeleceu que: a) a
ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna (artigo 170,
caput); b) na esfera social fundou o planejamento familiar nos princípios da dignidade da
pessoa humana e da paternidade responsável (artigo 226, §6º ); c) assegurar à criança e ao
adolescente o direito à dignidade (artigo 2 27, caput); d) consignou que “ a família, a
sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua
participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o
direito à vida” (artigo 230).
A positivação do princípio da dignidade humana é relativamente recente, pois só ao
longo do século XX e a partir da Segunda Guerra Mundial, é que a dignidade da pessoa
humana, passou a ser reconhecida expressamente nas Constituições, notadamente logo
após ser consagrada pela Declaração Universal da ONU de 1948.
Têm-se como exemplo no direito comparado, no que concerne os países da União
Européia, as Constituições que consagraram expressamente o princípio, as Constituições
da Alemanha (artigo 1º, inc. I), Espanha (preâmbulo e artigo 10.1), Grécia (artigo 2º, inc. I),
Irlanda (preâmbulo), e Portugal (artigo 1º), bem como da Itália (artigo 3º) a qual faz
referência expressa à dignidade na passagem em que se reconhece a todos cidadãos a
mesma dignidade social- apesar de não haver referência expressa à dignidade da pessoa
humana. A Constituição da Bélgica (artigo 23) assegura aos belgas e estrangeiros que se
encontrem em território belga, o direito de levar uma vida de acordo com a dignidade
humana.
No que diz respeito ao âmbito do Mercosul, apenas nossa Constituição e a do
Paraguai atribuem à dignidade, o status de norma fundamental. Nesse contexto, apesar de
incompleta a demonstração comparativa, os exemplos acima mencionados demonstram que
a dignidade da pessoa ainda não foi integrada de forma definitiva à totalidade das
Constituições, mas tendenciosa a futura integração.
Estando consagrado expressamente, no título dos princípios fundamentais, a
dignidade da pessoa humana como um dos Fundamentos do nosso Estado democrático (e
social) de Direito (artigo 1º, inc. III, da CF/1988), nosso Constituinte reconheceu que é o
Estado que existe em função da pessoa humana, e não ao contrário, já que o ser humano
constitui a finalidade principal, e não meio da atividade estatal. Sendo assim, verifica-se que
a dignidade da pessoa humana, foi reconhecida pela ordem jurídica estatal, passando a
integrar o direito positivo vigente, não desconsiderando com isso a fundamentação filosófica
da dignidade.
2.1 Dignidade da pessoa humana como norma jurídica (princípio e regra) e valor fundamental
Consoante as considerações a respeito da definição e conteúdo de dignidade da
pessoa humana, necessário precisar seu status jurídico-normativo na esfera de nosso
ordenamento constitucional.
Visto a dignidade da pessoa humana, estar sediada no Título I dos Princípios
Fundamentais, nota-se que o nosso constituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da
pessoa humana junto ao rol dos direitos e garantias fundamentais, elevando-a à condição
de princípio (e valor) fundamental (artigo 1º, inc. III).
Por outro lado, apesar do reconhecimento da dignidade da pessoa pelo
ordenamento-jurídico positivo, não se deve afirmar que a dignidade da pessoa humana (na
condição de valor ou atributo) exista apenas onde e na medida que o Direito a reconhece.
Contudo, sua efetiva realização e promoção, irá depender do grau de
reconhecimento e proteção outorgado à dignidade da pessoa por cada ordem jurídico-
constitucional e pelo Direito Internacional.
Muito embora a qualificação da dignidade da pessoa humana, vista como princípio
ou direito fundamental não deva ser substanciada, deve-se entender que apesar dos direitos
fundamentais encontrar seu fundamento, ao menos em regra, na dignidade da pessoa
humana e tendo em conta que do próprio princípio da dignidade da pessoa podem ser
deduzidos direitos fundamentais autônomos, não específicos, não há como reconhecer que
exista um direito fundamental destinado apenas à dignidade.
Frisando-se, que a condição de princípio é totalmente compatível com o
reconhecimento da plena eficácia da dignidade da pessoa humana em sua dimensão
jurídica normativa.
3- DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS : ALGUNS PONTOS DE CONTATO- Dignidade da pessoa, unidade axiológica (e aberta!) e legitimidade da ordem jurídico-constitucional e do sistema dos direitos fundamentais
O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, também desempenha
função de atribuir unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem
constitucional. Valendo ressaltar que nossa Constituição, considerando seu texto, pode ser
vista como uma Constituição da pessoa humana.
Em comentário à lição de Martinez, Ingo Wofgang Sarlet (2011, p. 92), menciona:
“...ainda que a dignidade preexista ao direito, certo é que o seu reconhecimento e
proteção por parte da ordem jurídica constituem requisito indispensável para que esta
possa ser tida como legítima.”10
Assim, possui inteira razão, os que afirmam que a dignidade da pessoa humana,
tem-se como critério para aferir a legitimidade substancial de uma determinada ordem
jurídico-constitucional.
Se por um lado, podendo se considerar que todos os direitos e garantias
fundamentais apresentam seu fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa
humana, admite-se também que o grau de vinculação destes direitos, podem ser
diferenciados quanto a sua ligação com a dignidade, isto é, uns constituem explicitações de
primeiro grau com a dignidade, o que nos leva a conclusão, que nem todos os direitos
fundamentais tenham seu fundamento direto na dignidade da pessoa humana.
Necessário ressaltar que a função instrumental integradora e hermenêutica do
princípio, serve de parâmetro à interpretação e integração não só dos direitos fundamentais
e das demais normas constitucionais, mas de todo nosso ordenamento jurídico.
Pois cada vez mais, nossos Tribunais valem-se da dignidade da pessoa humana
como fundamento, para solucionar controvérsias, interpretando a normativa
infraconstitucional à luz da dignidade da pessoa humana. Contudo, referem-se à violação
da dignidade, sem qualquer argumento que demonstre qual a natureza e conduta que
demonstra a ofensa.
Vale ainda ressaltar, que os direitos fundamentais, assim como a dignidade da
pessoa humana, nas palavras de Alexandre Pasqualini, citado por Ingo Wolfgang Sarlet
(2011, p. 100), apresentam traços semelhantes:
“ atuam, no centro do discurso jurídico constitucional, como um
DNA, como um código genético, em cuja unifixidade mínima,
convivem, de forma indissociável, os momentos sistemático e
heurístico de qualquer ordem jurídica verdadeiramente
democrática”.11
10 MARTINEZ, Alegre. La dignidad de La persona..., p.29. Entre nós e dentre outros, v. E. Pereira de Farias, Colisão de Direitos, p.51, afirmando que o respeito pela dignidade da pessoa constitui elemento imprescindível para a legitimação da atuação do Estado. Apud. 11 PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e Sistema Jurídico. p. 80-81. Apud.
3.1 Os direitos fundamentais como exigência e concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana
É inseparável a relação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos
fundamentais, não podendo ser negado o seu valor informador de toda ordem jurídica.
Nesse sentido, temos que a dignidade da pessoa humana, como valor fundamental,
exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as
dimensões, apesar de que nem todos os direitos fundamentais, tenham um fundamento
direto na dignidade da pessoa humana.
Primeiramente, cabe relembrar, que a noção de dignidade repousa na autonomia
pessoal, na liberdade, visto o ser humano poder esculpir e formatar sua própria existência,
configurando-se como sujeito de direitos e assim entende-se que a dignidade estará
diretamente ligada a liberdade e esta aos direitos fundamentais, pois sem liberdade não há
dignidade, ou pelo menos esta não estará reconhecida e assegurada pelos direitos
fundamentais.
Além das conexões da liberdade pessoal, reconhece-se a proteção da identidade
pessoal, exteriorizando-se então outras dimensões, como o respeito pela privacidade,
intimidade, honra, imagem, direito ao nome, o que demonstra que as demais dimensões
estão interligadas à dignidade da pessoa humana.
O direito geral de igualdade, princípio isonômico, também encontra-se diretamente
ligado na dignidade da pessoa humana, motivo da Declaração Universal da ONU, telo
consagrado ao proclamar que todos os seres humanos são iguais em dignidade e diretos.
A dignidade da pessoa humana engloba ainda a proteção da integridade física e
emocional (psíquica) da pessoa, quando por exemplo depara-se com a proibição da pena de
morte, penas corporais e utilização da pessoa em experiências científicas.
Até o direito de propriedade, face seu conteúdo social proclamado em nossa
Constituição, apresenta ligação com a dignidade da pessoa, uma vez que a falta de moradia
decente ou mesmo de um espaço físico adequado para o exercício de uma atividade
profissional, acaba em muitos casos, por comprometer gravemente os pressupostos para
uma vida com dignidade.
Tem-se ainda, os denominados direitos sociais, econômicos e culturais, seja na
condição de direitos de defesa (negativos), seja na sua dimensão prestacional (direito
positivo), onde também apresentam - se como exigência para concretização da dignidade
da pessoa humana. O reconhecimento jurídico-constitucional da liberdade de greve e de
associação e organização sindical, trabalho razoável, direito ao repouso, bem como no que
se refere a proibição de discriminação nas relações trabalhistas, cuida-se em boa parte de
direitos fundamentais de liberdade e igualdade outorgados aos trabalhadores, onde o direito
ao trabalho constitui um dos principais direitos fundamentais da pessoa humana.
O grupo de direitos inerentes as garantias processuais, também são ligados com a
dignidade da pessoa humana, atendo-se a intensidade de sua vinculação. O Supremo
Tribunal Federal em inúmeras hipóteses, em especial no que tange os direitos e garantias
de cunho processual penal, deu ênfase a conexão entre a garantia da razoável duração do
processo ( artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal ) e a dignidade da pessoa
humana, bem como em questão envolvendo a anulação de processo da competência do
Tribunal do Júri em virtude de constrangimento derivado da falta de esgotamento de todos
os meios disponíveis para a citação do réu.
Diante de todos exemplos apresentados, tanto os denominados direitos de defesa (
ou direitos negativos), mas também os direitos a prestações fáticas e jurídicas ( direitos
positivos ) correspondem, via de regra, às exigências e constituem em maior ou menor grau
à concretização e exteriorização da dignidade da pessoa humana.
3.2- A abertura do catálogo constitucional dos direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana como norma de direitos fundamentais
É de suma importância a compreensão do cumprimento do princípio da dignidade da
pessoa humana, diante de sua conexão com os direitos fundamentais e com sua função
como critério para a construção de um conceito materialmente aberto de direitos
fundamentais na nossa ordem constitucional.
Além dos direitos e garantias expressamente reconhecidos como tais pelo
constituinte, há outros direitos fundamentais assegurados fora do Título II de nosso texto
Constitucional, onde o princípio da dignidade humana serve como diretriz material à
intensificação de direitos implícitos, que são sediados em outras partes de nossa carta
magna.
A relação existente entre a dignidade da pessoa humana e as demais normas de
direitos fundamentais, não pode ser qualificada como sendo de cunho subsidiário, mas sim,
caracterizada por uma substancial fundamentalidade que a dignidade assume em face dos
demais direitos fundamentais.
3.3. Dignidade como limite e tarefa do Estado, da comunidade e dos particulares
O princípio da dignidade da pessoa apresenta limites para a atuação Estatal, com o
objetivo de impedir que o poder público viole a dignidade pessoal, tornando necessário que
o Estado tenha como meta permanente, a proteção, promoção e realização de uma vida
com dignidade para todos.
Conforme a lição de Pérez Luño, citado por Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p.131):
“ a dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia
negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou
humilhações, mas implica também, num sentido positivo, o pleno
desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo”.12
Assim, não restam dúvidas que todos os órgãos, funções e atividades estatais, estão
vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo-lhes imposto o dever de
respeito e proteção a esta. Impondo não apenas um dever respeito, mas também a
aplicação de atos tendentes a efetivar e proteger a dignidade dos indivíduos.
A dignidade da pessoa humana, impõe ainda ao Estado, a obrigação deste
apresentar condições que auxilie na remoção de todos os empecilhos que possam impedir
as pessoas de viverem com dignidade. Além da dupla função de proteção e defesa, possui
ainda o dever apresentar medidas de precaução procedimentais e organizacionais no
sentido de evitar uma lesão da dignidade e dos direitos fundamentais.
Considerando o princípio da dignidade humana como limite, é justificável a
imposição de restrições a outros bens constitucionalmente protegidos. Ingo Wolfgang Sarlet
(2011, p. 137) exemplifica este comentário, frisando a decisão da Corte de Apelação de
Paris :
“ ...ao reconhecer a existência de um direito à moradia (droit au logement),
por sua vez reconduzido ao princípio da dignidade da pessoa humana,
admitiu restrições ao direito de propriedade, que – de acordo com a Corte –
não autoriza o abuso por parte do proprietário, notadamente quando
12 LUNO, Perez. Derechos Humanos...p. 318, arrimado em conhecida obra de Ernst Bloch sobre o direito natural e a dignidade humana. Apud.
configurado o abandono, de tal sorte que, nestas circunstâncias, deverá
prevalecer o direito à moradia, já que exigência para uma vida com
dignidade.” 13
Comenta ainda Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p.138), julgado do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, onde restou consignada:
“ ...a impenhorabilidade de rendimentos oriundos de locativos, quando
estes, à falta de outros rendimentos substanciais, assumem cunho alimentar
e, portanto, caráter essencial para a própria dignidade da pessoa humana,
prevalecendo em face dos direitos creditícios, notadamente quando
eminentemente patrimoniais.”14
Salientando que há a necessidade da ponderação dos bens em causa, com o intuito
de proteger-se a dignidade da pessoa, aplicando-se também o princípio da
proporcionalidade que por sua vez encontra-se ligado ao princípio da dignidade.
4. PROTEÇÃO PELA DIGNIDADE E O PROBLEMA DOS LIMITES DA DIGNIDADE - A dignidade como limite à restrição dos direitos fundamentais
Usamos a expressão proteção pela dignidade, para nos referirmos à função do
princípio da dignidade da pessoa humana, dentro dos limites dos direitos fundamentais,
admitindo-se a possibilidade de traçar limites aos direitos fundamentais, vez que inexiste
direito absoluto.
Nesse sentido, a doutrina germânica denominou de limites dos limites (Schranken-
Schranken), determinadas restrições à atividade limitadora no âmbito dos direitos
fundamentais, objetivando inibir possível abuso que pudesse levar ao seu esvaziamento ou
até mesmo sua supressão, chegando ao consenso de que, em princípio, nenhuma restrição
de direito fundamental poderá ser desproporcional ou afetar a essência do direito objeto da
restrição.
Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p.143), contrapõe-se ao entendimento de que há uma
identificação da dignidade da pessoa humana e o nebuloso núcleo essencial dos direitos
fundamentais, em razão de que nem todos os direitos fundamentais ( pelo menos na
13 M.L.Pavia. Le príncipe de dignité... - p. 109-10. Apud. 14 Acórdão nos Embargos Infrigentes nº 70000296053, julgados pelo 10º Grupo Cível do Tribunal de Justiça do RS, em 25.02.2000, tendo por relator o eminente Des. Carlos Rafael dos Santos Júnior.
Constituição de 1988) apresentam um conteúdo de dignidade, apesar de todos direitos
fundamentais apresentarem um núcleo essencial.
Exemplificando a idéia da dignidade da pessoa como limite à atividade restritiva do
legislador, Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p.144), apresenta o Aresto do Tribunal
Constitucional de Portugal, relatado pelo Conselheiro Vítor Nunes de Almeida, onde restou
julgada inconstitucional a previsão legal da penhora de parte da pensão do devedor, vez que
para o Tribunal : “ em tais hipóteses, o encurtamento através da penhora, mesmo de uma
parte dessas pensões – parte essa que, em outras circunstâncias, seria
perfeitamente razoável, como no caso das pensões de valor acima do
salário mínimo nacional -, constitui um sacrifício excessivo e
desproporcionado do direito do devedor e pensionista, na medida em que
este vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo
considerado necessário para uma existência com dignidade que a
Constituição garante.”15
Percebe-se que o princípio da dignidade da pessoa humana cumpre dupla função,
ora como instrumento de proteção dos direitos contra medidas restritivas, ora como
justificativa para a imposição de restrições a direitos fundamentais, atuando aqui como
elemento limitador destes.
4.1. A discussão em torno do caráter absoluto da dignidade e da possibilidade de sua eventual relativização.
Dentro dos comentários até aqui expostos, há ainda um problema a ser comentado,
a possibilidade de estabelecer limites à própria dignidade da pessoa, além de estabelecer
quais direitos fundamentais possuem um conteúdo de dignidade da pessoa humana.
Ao considerar a dignidade como fator limitador-protetivo dos direitos fundamentais,
pode-se perfeitamente indagar até que ponto a dignidade da pessoa, na condição de
princípio e direito fundamental, pode efetivamente ser tida como absoluta, ou seja,
totalmente acima de qualquer tipo de restrição. Portanto, permanecendo o questionamento
absoluto da dignidade da pessoa e da possibilidade de se admitir limitações à dignidade
pessoal.
15 Acórdão nº 318/99 do Tribunal Constitucional de Portugal, 1ª Secção, Rel. Conselheiro Vítor Nunes de Almeida, 26.05.1999.
Em termos ilustrativos, temos a situação que dificilmente, se poderá questionar,
como por exemplo, o encarceramento de condenado pela prática de homicídio qualificado
pela utilização de meio cruel, em prisão com problemas de superlotação, (como violação de
sua liberdade e dignidade pessoal), bem como, questionar a sanção imposta ao condenado,
no caso a prisão temporária (privação temporária da liberdade - como ofensiva à dignidade)
.
Ainda, no que diz respeito ao caráter absoluto da dignidade, pode-se apresentar
como exemplos os casos de: proibição de tortura (pois não se justifica a prática de tortura,
mesmo que objetive salvar vidas de terceiros), do mesmo modo a questão do abate de
avião com seqüestradores a bordo, e ainda como objeto de extenso debate é o caso de
doente em fase terminal (com respeito a legitimidade da prática da eutanásia ou morte
assistida), justificando-a com base no argumento que mais vale morrer com dignidade, ou
ao contrário, fazer prevalecer (mesmo que haja vontade expressa do doente), o direito à
vida.
E é nesse contexto, que Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 158), relembra Alexy:
“...que até mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana
(por força de sua própria condição principiológica) acaba por
sujeitar-se, em sendo contraposto à igual dignidade de
terceiros, a uma necessária relativização.”16
Se por um lado, a dignidade da pessoa é assegurada por princípios e regras, sendo
que na condição de princípio é possível admitir-se a existência de interpretações e
aplicações, por outro lado na condição de regra, atua como fundamento para proibir
determinadas condutas, das quais nossa norma jurídica não admite exceções.
Vale ressaltar, que a própria dignidade da pessoa, acaba por admitir certa
relativização, em prol da proteção da dignidade de terceiros; o que não significa que esteja
negligenciando, transigindo com a função da dignidade como regra impeditiva de condutas
que violam a salvaguarda da dignidade.
Portanto, no que tange a eventual relativização da dignidade, necessário distinguir o
princípio jurídico-fundamental (a dignidade como norma) da dignidade da pessoa
propriamente dita (objeto de reconhecimento e proteção pela ordem jurídica), visto que cada
16 Consoante já restou consignado, para Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 108-9, também o princípio da dignidade da pessoa (justamente na) sua condição de princípio admite uma realização em diversos graus. Entre nós, recentemente, e entre outros. Apud.
ser humano é em virtude de sua dignidade, merecedor de igual respeito e consideração
diante de sua condição de pessoa.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em que pese todas as argüições apresentadas, reconhece-se de plano a dificuldade
em estabelecer um conceito universal a respeito da dignidade da pessoa humana, a não ser
no que se refere sua circunstância, ou seja, de que se trata da própria condição humana, e
que desta condição, reconhecimento e proteção pela ordem jurídico-constitucional, obtêm-
se um complexo de posições jurídicas fundamentais.
A efetiva exteriorização da dignidade como referencial normativo (político, moral e
jurídico), depende acima de tudo, do grau de comprometimento com a dignidade de cada
uma e de todas pessoas por parte do Estado, da comunidade, e dos indivíduos.