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    Anais do III Congresso Internacional de Histria da UFG/ Jata: Histria e Diversidade Cultural. Textos Completos.

    Realizao Curso de Histria ISSN 2178-1281

    ANALISANDO PONTOS CANTADOS DA UMBANDA HIBRIDAES E

    REPRESENTAES SOCIAIS

    Andr Luiz Monteiro de Almeida*

    Ana Guiomar Rgo Souza**

    RESUMO

    Os Pontos Cantados so cnticos ritualsticos acompanhados por percusso em atabaques

    consagrados e entoados pelos sacerdotes msicos da Umbanda, os Ogans. Estes cnticos

    possuem informaes sobre o passado colonial brasileiro, a histria da Umbanda, o

    imaginrio de seus praticantes etc. Atravs de pesquisa bibliogrfica e da anlise qualitativa

    dos dados, foram apreciados os processos de hibridao e representaes sociais presentes nos

    Pontos Cantados. Concluiu-se que estes cnticos, em suas poticas e musicalidades, possuem

    um alto grau de hibridao de elementos provenientes do Candombl, do Catolicismo e do

    Kardecismo. O modo como estes elementos so expressos nos Pontos Cantados indica que a

    Umbanda tem sua gnese a partir de processos de hibridao e circularidade cultural, como

    tambm indica que a alta permeabilidade hibridao de elementos das culturas religiosas e

    nichos sociais circundantes uma caracterstica identitria da religiosidade umbandista.

    PALAVRAS-CHAVE: brasilidade; circularidade cultural; msica sacra; etino-musicologia.

    INTRODUO

    Nas religies da matriz afro-brasileira so utilizados pelos sacerdotes e

    praticantes versos musicais denominados Pontos Cantados. De maneira geral, consistem em

    poemas de carter mitolgico e/ou pico que rememoram no imaginrio dos praticantes os

    feitos de heris, divindades e reis do passado ou os fundamentos de sua religio. Os pontos

    cantados trazem marcas do passado colnia, da gnese histrica da Umbanda e do imaginrio

    que permeia os praticantes desta religio (MOREIRA 2008). Estes cnticos so um fator

    indispensvel para a execuo das prticas umbandistas.

    Os Pontos Cantados so entoados para iniciar a sesso, para a purificao do

    terreiro com o uso de defumadores, para a saudao dos Orixs, para professar a f. Este

    emprego constante da msica aliada poesia nos rituais , segundo Rosafa (2008), o elemento

    condutor e o combustvel dessa manifestao religiosa. As temticas expressadas nestes

    * Andr Luiz Monteiro bacharel e licenciado em Biologia pela PUC-GO e mestrando em Msica na

    Contemporaneidade pela Escola de Msica e Artes Cnicas, UFG. ([email protected]) **

    Dra. Ana Guiomar Souza, musicloga, diretora da Escola de Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal

    de Gois (EMAC-UFG). ([email protected])

    mailto:[email protected]

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    versos extrapolaram os terreiros hibridando-se a diversas prticas musicais da cultura

    brasileira, estando presentes no samba, na MPB, nas parlendas etc, e assim contribuem para a

    formao das identidades culturais vinculadas brasilidade (ALMEIDA & SOUZA 2008).

    Cada Terreiro de Umbanda possui seu prprio cnone de Pontos Cantados, e

    dentro deste cnone so encontrados Pontos que, no consenso dos membros da comunidade

    do terreiro, expresso de maneira mais cabal os fundamentos de sua f. Vale pontuar que as

    religies afro-brasileiras no possuem textos sagrados e se valem da tradio oral para

    perpetuarem seus mitos e crenas, assim de se supor que os Pontos Cantados possuem papel

    de agregao e transmisso de tradies e conhecimentos iniciticos semelhantes ao papel

    atribudo aos livros sagrados das religies abranicas, zoroastras, budistas, hindustas, dentre

    outras.

    Identificada a importncia dos Pontos Cantados para a religiosidade afro-

    brasileira e suas contribuies para a construo da brasilidade, so levantados os seguintes

    questionamentos de pesquisa: I- Quais as principais caractersticas meldicas presentes nos

    Pontos Cantados? II- Qual o aparato organolgico utilizado para sua execuo? III Quem os

    executa? IV Como as entidades sobrenaturais so representadas e quais relaes sociais

    podem ser identificadas em tais representaes? V O que as respostas das perguntas

    anteriores podem revelar sobre a importncia dos processos de hibridismo cultural para a

    formao dos cultos umbandistas?

    Este artigo tem como objetivo analisar os processos de hibridao e

    representaes sociais relacionados manifestao dos Pontos Cantados da Umbanda.

    O mtodo empregado foi o levantamento bibliogrfico da literatura publicada e

    revisada por pares a cerca dos Pontos Cantados da Umbanda e posterior analise qualitativa

    dos dados coletados. Esta pesquisa justifica-se pela necessidade de compreender melhor os

    papeis dos cnticos ritualsticos nas expresses religiosas afro-brasileiras. Tambm se justifica

    por serem necessrias mais pesquisas que venham a colaborar para a gerao de dados e

    subsdios fundamentais para o entendimento das identidades afro-brasileiras e suas

    manifestaes poticas e musicais de cunho sacro.

    DESNVOLVIMENTO:

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    Nas religies afro-brasileiras o terreiro funciona como um local de encontro de

    indivduos que transitam dentre diversas nichos de identidades culturais (FONSECA 2001).

    Este trnsito no caracterizado apenas pela movimentao de massas biofsicas, tambm

    caracterizado pelo trnsito e confluncia de ideias e elementos culturais pertencentes aos

    indivduos que compe estas massas. Isto faz com que o ambiente do terreiro seja catalisador

    de trocas simblicas e sociais. Estas trocas se fixaram paulatinamente nas expresses artsticas

    e crenas religiosas da cultura umbandista e esta cultura se demonstra mais permevel

    hibridao de elementos provindos de matrizes religiosas externas.

    Ao contrrio do que ocorre com as principais religies da matriz abranica, as

    religies da matriz afro-brasileira no possuem instituies oficiais que regulam seus

    parmetros litrgicos. extramente comum serem encontradas variaes entre as prticas de

    terreiros diferentes (ALMEIDA & SOUZA 2012). Mesmo terreiros que mantm uma

    proximidade geogrfica podem utilizar-se de um cnone diferente de Pontos Cantados, ou

    cantarem o mesmo cntico com letras levemente ou intensamente alteradas. Outro fator de

    importante pontuao que as religies afro-brasileiras no possuem seus fundamentos

    baseados em um ou mais livros tidos como sagrados e sim nas tradies orais com origens

    predominantemente coloniais e subsaarianas. Na Umbanda associada a estas tradies orais

    h a presena de elementos tradicionais de origem indgena, das crenas do rito latino da

    Igreja Catlica e do sistema de necromancia kardecista hibridados aos elementos provenientes

    das tradies africanas. Embora ocorra esta no unificao e ausncia aparente de

    regulamentaes universais nas religies afro-brasileiras, diversos aspectos so recorrentes

    nos ritos umbandistas bem como nos cnticos sagrados entoados por seus adeptos. Dentre os

    aspectos principais esto o uso funcional da msica para o controle das entidades msticas, a

    correspondncia entre Orixs e santos catlicos, o culto aos espritos indgenas (caboclos),

    escravos (Pretos Velhos e Pretas Velhas), espritos de ciganos, boiadeiros, baianos etc.

    Segundo o antroplogo Vagner Rosafa (2008), os pontos cantados podem ser

    classificados em seis categorias: Pontos de louvao; pontos de segurana; pontos de

    chamada; pontos de trabalho; pontos de partilha e pontos de encerramento e gira. Embora esta

    classificao tambm possa ser aplicada aos Pontos utilizados no Candombl, nesta ultima o

    cntico , na maioria das vezes, praticado em lnguas africanas (principalmente o iorub)

    enquanto na Umbanda os Pontos so cantados quase que exclusivamente em portugus

    podendo conter algumas expresses de lngua africana. Os pontos de louvao so entoados

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    no incio da sesso, tem a funo de homenagear os Orixs e as linhas auxiliares1 que,

    segundo o imaginrio umbandista, prestam servios ao terreiro e aos seus frequentadores.

    Aps a abertura so entoados os pontos de segurana, estes tem a funo de evocar as

    entidades espirituais que do segurana aos mdiuns e participantes dos rituais. Para evocar os

    Caboclos, Pretos Velhos, Crianas, Exus e Pombagiras2 so entoados cnticos evocativos

    especiais, tambm chamados de giras ou pontos de chamada. Os pontos de trabalho so

    utilizados em rituais de trabalhos especficos, como os de descarrego de pessoas. Aps o

    trabalho da noite so cantados os pontos de partida, estes so responsveis por declarar

    encerrada a atuao das entidades sobrenaturais de determinada classe. Por fim, com os

    pontos de encerramento da gira agradecem a Deus e aos protetores do terreiro e pedem paz

    e proteo.

    As melodias empregadas nos cnticos ritualsticos umbandistas possuem

    peculiar relao esttica para com as melodias vinculadas religiosidade popular dos adeptos

    do Catolicismo Romano. No importando qual terreiro ou tipo de ponto, todos os Pontos

    Cantados so entoados de forma mondica semelhante a uma ladainha catlica, embora

    costumem ser um pouco mais celerados e animados tendendo a contar com mais saltos

    meldicos. No parece haver o apego a linhas meldicas tristes e que expressem um

    excruciante sofrimento, como ocorre nas ladainhas dos praticantes do catolicismo, o que no

    significa que no encontremos Pontos com melodia triste, lamentosa e suplicante. Outra

    caracterstica destes pontos a semelhana de suas linhas meldicas para com as linhas de

    parlendas e outras manifestaes musicais folclricas brasileiras. As melodias so sempre

    entoadas na ausncia de suporte harmnico e na presena de uma estrutura percussiva de

    carter polirrtmico executada por trs atabaques consagrados (ALMEIDA & SOUZA 2012).

    Segundo Biancardi (2000 p. 31), nos ritos umbandistas so utilizados trs

    atabaques consagrados e denominados, do mais grave ao mais agudo, Rum, Rumpi e L. A

    msica neles tocada caracterizada por rgidos padres polirrtmicos construdos a partir do

    paradigma somativo3. Cada padro de acompanhamento musical denominado toque. Os

    1 Uma linha um grupo de entidades msticas e de carter sobrenatural presente no imaginrio umbandista.

    2 Caboclos so as almas de indgenas, Pretos Velhos so os negros sbios que foram martirizados na poca da

    escravido, Crianas so almas de infantes, Exus e Pombagiras so entidades masculinas e femininas,

    respectivamente. 3 O padro rtmico somativo de origem africana subsaariana e contrasta para com o padro europeu, ou padro

    divisivo. No primeiro os valores temporais dos eventos sonoros so obtidos atravs da soma de um valor menor

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    toques auxiliam os participantes dos rituais a entrarem em contato com as entidades

    sobrenaturais por eles invocadas. Devido a predominncia do sistema somativo na percusso,

    as linhas meldicas entoadas podem ser construdas a partir da aglutinao tanto de valores

    divisivos quanto somativos. Desta forma comum serem encontrados clulas rtmicas na

    melodia que se enquadrem no sistema rtmico europeu (divisivo) e/ou clulas construdas a

    partir de paradigmas hbridos afro-europeus com nfase no uso do paradigma do Estcio4.

    O emprego destes paradigmas no encontrado apenas na msica ritualstica umbandista, mas

    em outras formas musicais pertencentes s culturas brasileiras, caso do samba e diversas

    parlendas (SANDRONI 2001). Atravs desta combinao de fatores poticos e musicais, os

    sacerdotes msicos exercem controle sobre os eventos que formam um rito umbandista.

    Nas religies afro-brasileiras encontrada uma classe de sacerdotes

    denominados Ogans (ALMEIDA & SOUZA 20012), estes so responsveis pelo toque dos

    atabaques sagrados e por puxar os Pontos Cantados dentre outras funes. Conceio

    (2010) informa que o Ogan mais experiente responsvel pelo toque do Rum, chefe dos

    outros Ogans e coordena a sequncia de pontos a serem emitidos. Este sacerdote pode se valer

    tanto de um roteiro pr-programado quanto improvisar intuitivamente quais toques e pontos

    devem ser executados a cada momento. Cada toque puxado ser responsvel pela

    manifestao de um Orix e a forma da dana que este executar ou pela manifestao de

    outro tipo de entidade. Em outros casos os toques no induziram s manifestaes

    sobrenaturais diretas, sendo apenas puxados para expressar louvores, pedidos de proteo e

    curas etc.

    Tanto a potica quanto a expresso sonora umbandista indicam um intenso

    processo de hibridao de elementos culturais de matrizes aparentemente dispares e, do ponto

    de vista conservador, contraditrias. Embora Canclini (2006) alerte para os fatos de que todas

    as culturas so hibridas e que a alegao de pureza cultural denote, na melhor das hipteses,

    ignorncia por aquele que a afirma, de se notar que os umbandistas no s construram um

    padro cultural hibrido como consideram o gosto pela hibridao algo natural sua

    religiosidade. Neste aspecto podemos perceber contrastes para com os paradigmas do

    Candombl, que aboliu o sincretismo entre santos e Orixs e utiliza, com maior frequncia,

    enquanto no segundo um valor maior dividido para a obteno dos valores empregados para a construo das

    linhas musicais. 4 Os chamados paradigmas so padres de agregao de clulas rtmicas e acentuaes das mesmas

    (SANDRONI 2001).

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    lnguas africanas em seus Pontos; do Catolicismo institucional, que possuiu um incinerante

    histrico de intolerncia religiosa e social; e do Kardecismo que abomina e inferioriza toda e

    qualquer prtica necromante, com exceo de suas prprias prticas de nigromancia. A

    Umbanda expressa, atravs de suas artes e ritos, que no s admite ser resultado de

    hibridaes como o ato de hibridar por ela celebrado. Para o umbandista a miscigenao das

    crenas regra ptrea.

    Este gosto pelo hibrido encontrado nas temticas das poesias ritualsticas.

    Os Pontos Cantados, unidos base musical e dana, competem para a constante atualizao

    das narrativas de ancestralidades e viso cosmolgica imaginada pelos praticantes. Elisabete

    Nascimento (2008) aponta que a aliana entre a linguagem musical e a poesia oral destes

    Pontos promove o reavivamento, na mente dos adeptos, das histrias dos reis, das famlias

    nobres e dos heris ancestrais, o que indica o uso de temticas picas e trgicas. Desta forma

    os Pontos Cantados auxiliam na assimilao e manuteno, por parte dos praticantes, dos

    elementos de identidade de crena partilhados por estes indivduos. Em sua anlise sobre os

    temticos presentes nestes cnticos sagrados, Moreira (2008) afirma que comum nos Pontos

    Cantados de Pretos Velhos5 serem encontradas temticas relativas vida do escravo, bem

    como padres que expressam as crenas mgicas trazidas pelos africanos para o Brasil. Nos

    pontos que usam esta temtica possvel perceber a viso do escravo em relao a sua

    condio em meio sociedade em que vivia. Outro temtico presente a da magia, nela o

    indivduo escravizado se vale dos conhecimentos trazidos da frica para lanar feitios contra

    os malfeitores que tanto podem ser outros escravos como cidados livres. Slenes (2007, p.

    128) aponta a utilizao de temtica cmica nos Pontos de Prestos Velhos, nestes o

    protagonista do Ponto um escravo que satiriza seus senhores.

    As temticas expostas acima: pica, do cotidiano do escravo, mgicas e

    satricas remetem atualizao da memria histrica. Um mesmo Ponto pode abordar mais de

    uma delas ao mesmo tempo, isto significa que no so excludentes uma para com a outra.

    Este papel de atualizao da memria histrica visa erguer uma narrativa contada a partir

    do ponto de vista no do euro-descendente civilizado, letrado e possuidor do escravo, mas

    do humano que se encontra na situao de ser escravizado. Expressam uma outra verso da

    histria, no uma histria escrita pelos brancos, e sim a histria passada oralmente atravs dos

    5 So os Pontos cuja letra se refere classe espiritual dos Prestos Velhos.

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    antepassados negros e miscigenados. Porm os Pontos Cantados no se limitam a tais

    temticas, estes cnticos podem abordar assuntos msticos narrando as caractersticas e

    afazeres de entidades sobrenaturais, seus poderes e funes cosmolgicas. Dentre os entes

    sobrenaturais pertinentes ao imaginrio umbandista, destacam-se os de origem nas religies

    africanas, so eles: os Exs e Pomba-Giras; os ancestrais Pretos e Pretas-Velhas(os); e as

    divindades supremas, os Orixs. Vale lembrar que, embora os Exus sejam considerados na

    Umbanda espritos mensageiros, nas religies africanas (e ainda em diversas seitas do

    Candombl brasileiro) h apenas um Exu e este o Orix mensageiro6. Cada grupo de

    entidades possui formas prprias e recorrentes de serem representados que, alm de

    expressarem seus poderes sobrenaturais, do pistas sobre suas personalidades e elegem os

    padres de comportamento individuais e sociais vistos como aprazveis pelos praticantes da

    Umbanda.

    Os padres de representaes empregados na Umbanda tem origem provvel

    na tentativa de preservar e moralizar comportamentos considerados imorais para os padres

    judaico-cristos predominantes na sociedade brasileira. Jodelete (2001) assertiva ao afirmar

    que atravs das representaes sociais que as culturas se impem e organizam sua prpria

    realidade. Esta realidade, quando comparada de outra cultura, pode se opor

    qualitativamente, mesmo que ambas utilizem representaes semelhantes ou mesmo

    elementos representativos que transitam entre ambas. Este papel inclusivo para com aquilo

    que imoral na sociedade normativa crist bastante evidente quando analisamos as

    representaes de identidades e papeis scias associados aos Exus e Pomba-Giras nos Pontos

    Cantados.

    A partir da anlise de 221 letras de Pontos de Exu e Pomba-Gira, Nascimento

    et al (2001), informa que 31.6% dos pontos de Exu so descritivos, isto , descrevem os

    poderes e funes atribudos a estas entidades e 22,4% so de saudao, ou seja, contm

    apenas o nome e/ou uma saudao ao ser sobrenatural. J os pontos de Pomba-Gira so

    descritivos em 30,23% dos casos analisados e de caracterizao (descrio fsica e da

    aparncia da entidade) em 30,23% do espao amostral. Os Exus so geralmente associados

    liberdade, fora e ao trabalho enquanto as Pombas-Giras so representadas atravs de

    atributos estticos femininos, como a beleza, sensualidade e, tambm, ao trabalho. Alm

    6 Funo similar atribuda a Hermes Psicopompo.

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    destas estruturas foram encontradas em menor frequncia expresses de relaes hierrquicas,

    descries da personalidade do ser sobrenatural, caracterizao das indumentrias vestidas

    pelas entidades, pedidos de proteo e referencias aos locais onde tais entidades habitam

    (encruzilhadas, ruas, etc.). Ainda segundo os autores, atravs dessas giras7 possvel observar

    a formao de modelos de identidades de gneros, sendo os Exus representantes do gnero

    masculino e as Pomba-Giras do feminino. Esta formao de modelos de identidade no se

    restringe to somente as representaes encontradas nos Pontos dedicados a estas duas classes

    de entidades, mas se fazem presentes nos Pontos dedicados aos Pretos Velhos e Pretas Velhas,

    bem como nos dos Orixs. Enquanto Exus e Pombas-Giras so associados boemia, trapaas

    e intensa sexualidade, podendo esta transitar livremente pela escala Kinsey, bem como a

    ausncia de laos familiares tradicionais (numa tica crist), os cantares dedicados aos

    Pretos(as)-Velhos(as) enfatizam a sabedoria, bondade, honradez e os laos familiares. Assim,

    comum serem encontrados vocativos familiares e afetivos para se referir aos Pretos-Velhos,

    como tio, tia, vov, pai etc (NASCIMENTO et al Idem).

    J os termos utilizados para representarem os Orixs costumam enfatizar seu

    poder divino, j que estes so as entidades de mais alta hierarquia no imaginrio umbandista.

    Estes deuses frequentemente so identificados pelas foras naturais e arquetpicas por eles

    personificadas. Por exemplo, Iemanj comumente referida como sendo o prprio mar,

    Omulu8 a doena e a cura, Ians o prprio vento e a tempestade. Na Umbanda outro

    padro pelo qual um Orix pode estar expresso num Ponto Cantado caracterizado pelo uso

    do santo catlico a ele associado. Dentre todas as classes de entidades apenas a dos Orixs

    possuem associao quase que direta para com um santo. So encontrados Pontos que no

    possuem o nome do deus africano, sendo usando apenas o nome do santo catlico. Em outros

    ocorre a mistura do nome do Orix com smbolos mitolgicos do santo correspondente a este.

    Tomando como exemplo, Iemanj pode usar vu como a Virgem Maria e Ogum pode montar

    um cavalo branco como So Jorge. Por fim, os atributos familiares associados a estas

    divindades tem sempre um carter mais universal, isto significa que um determinado Orix

    o pai de todo um grupo tnico ou de religiosos. Devido a isto comum ouvir, entre os

    adeptos, termos como Filhos de Xang, Filhos de Omulu para se referir a todos os membros

    de uma determinada comunidade que possua relaes com estes Orixs. Outra possibilidade

    7 Aqui esta palavra tem significado sinnimo ao de Ponto Cantado.

    8 Tambm conhecido como Obaluai, comumente referido como o mdico dos pobres.

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    ser referenciada ao Orix a gerao de toda uma classe de vegetais, animais ou objetos e

    eventos da natureza. Um exemplo deste padro expresso pela crena na qual Iemanj e a

    me de todos os animais do oceano.

    Desta forma, representaes automaticamente vinculadas comportamentos

    malvolos na sociedade crist so expressadas de forma neutra ou mesmo boa atravs dos

    Pontos Cantados de Exu e Pomba Gira. Os antigos negros deixam de ser vistos como seres

    moralmente e intelectualmente inferiores, como eram vistos no perodo colonial e mesmo

    depois deste, sendo representados como detentores de bondade, sabedoria e honradez. Esta

    outra historia promove o resgate da dignidade dos ancestrais escravos e desafia a chibata

    simblica dos nichos mais conservadores e protofascistas da sociedade brasileira. Por fim os

    Orixs e santos passam a coexistir como entidades unas no imaginrio umbandista. Ao

    contrrio do Candombl a Umbanda no utilizou o sincretismo apenas para disfarar o culto

    s divindades africanas, mas atravs da hibridao absorveu os deuses do opressor cristo e os

    domesticou tendo como resultado divindades que, assim como os prprios umbandistas,

    transitam entre os universos culturais afro-pago e cristo.

    COSIDERAES FINAIS:

    Os Pontos Cantados apresentam caractersticas estticas e poticas provindas

    de diversos nichos culturais atuantes na sociedade brasileira. Atravs destes cnticos

    possvel entender a forma com que a Umbanda utiliza a hibridao para construir

    representaes de identidades e sociais que contrastam tanto para com as representaes

    empregadas nas religies da matriz abranica quanto religies da prpria matriz afro-

    brasileira, em especial os cultos do Candombl. Os umbandistas parecem ter evitado fazer a

    eleio de um tronco principal, seja ele europeu ou africano, para construrem seus ritos e

    mitologias de ancestralidade. Ao contrario, construram um sistema no qual ambas as matrizes

    so hibridadas sem enfatizar uma suposta superioridade de uma ou outra. Apesar da aparente

    nfase nos Pontos de Pretos Velhos, Exus, Pomba-Giras e Orixs presentes na bibliografia

    consultada para esta anlise, existem Pontos para os mais diversos modelos sociais

    marginais, como os Boiadeiros, Marinheiros, Caboclos. Isto sugere que, enfaticamente, os

    Pontos Cantados da Umbanda tendem a sacralizar uma ampla gama de modelos sociais

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    mundanos e a representa-los como pertencentes a uma ampla teia scio-identitria nem

    africana, nem europeia, mas, e to somente, brasileira e miscigenada.

    BIBLIOGRAFIA

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