analisando pontos cantados da umbanda

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1 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História ISSN 2178-1281 ANALISANDO PONTOS CANTADOS DA UMBANDA HIBRIDAÇÕES E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS André Luiz Monteiro de Almeida * Ana Guiomar Rêgo Souza ** RESUMO Os Pontos Cantados são cânticos ritualísticos acompanhados por percussão em atabaques consagrados e entoados pelos sacerdotes músicos da Umbanda, os Ogans. Estes cânticos possuem informações sobre o passado colonial brasileiro, a história da Umbanda, o imaginário de seus praticantes etc. Através de pesquisa bibliográfica e da análise qualitativa dos dados, foram apreciados os processos de hibridação e representações sociais presentes nos Pontos Cantados. Concluiu-se que estes cânticos, em suas poéticas e musicalidades, possuem um alto grau de hibridação de elementos provenientes do Candomblé, do Catolicismo e do Kardecismo. O modo como estes elementos são expressos nos Pontos Cantados indica que a Umbanda tem sua gênese a partir de processos de hibridação e circularidade cultural, como também indica que a alta permeabilidade à hibridação de elementos das culturas religiosas e nichos sociais circundantes é uma característica identitária da religiosidade umbandista. PALAVRAS-CHAVE: brasilidade; circularidade cultural; música sacra; etino-musicologia. INTRODUÇÃO Nas religiões da matriz afro-brasileira são utilizados pelos sacerdotes e praticantes versos musicais denominados Pontos Cantados. De maneira geral, consistem em poemas de caráter mitológico e/ou épico que rememoram no imaginário dos praticantes os feitos de heróis, divindades e reis do passado ou os fundamentos de sua religião. Os pontos cantados trazem marcas do passado colônia, da gênese histórica da Umbanda e do imaginário que permeia os praticantes desta religião (MOREIRA 2008). Estes cânticos são um fator indispensável para a execução das práticas umbandistas. Os Pontos Cantados são entoados para iniciar a sessão, para a purificação do terreiro com o uso de defumadores, para a saudação dos Orixás, para professar a fé. Este emprego constante da música aliada à poesia nos rituais é, segundo Rosafa (2008), o elemento condutor e o ‘combustível’ dessa manifestação religiosa. As temáticas expressadas nestes * André Luiz Monteiro é bacharel e licenciado em Biologia pela PUC-GO e mestrando em Música na Contemporaneidade pela Escola de Música e Artes Cênicas, UFG. ([email protected]) ** Dra. Ana Guiomar Souza, musicóloga, é diretora da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (EMAC-UFG). ([email protected] )

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Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.

Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

ANALISANDO PONTOS CANTADOS DA UMBANDA – HIBRIDAÇÕES E

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

André Luiz Monteiro de Almeida*

Ana Guiomar Rêgo Souza**

RESUMO

Os Pontos Cantados são cânticos ritualísticos acompanhados por percussão em atabaques

consagrados e entoados pelos sacerdotes músicos da Umbanda, os Ogans. Estes cânticos

possuem informações sobre o passado colonial brasileiro, a história da Umbanda, o

imaginário de seus praticantes etc. Através de pesquisa bibliográfica e da análise qualitativa

dos dados, foram apreciados os processos de hibridação e representações sociais presentes nos

Pontos Cantados. Concluiu-se que estes cânticos, em suas poéticas e musicalidades, possuem

um alto grau de hibridação de elementos provenientes do Candomblé, do Catolicismo e do

Kardecismo. O modo como estes elementos são expressos nos Pontos Cantados indica que a

Umbanda tem sua gênese a partir de processos de hibridação e circularidade cultural, como

também indica que a alta permeabilidade à hibridação de elementos das culturas religiosas e

nichos sociais circundantes é uma característica identitária da religiosidade umbandista.

PALAVRAS-CHAVE: brasilidade; circularidade cultural; música sacra; etino-musicologia.

INTRODUÇÃO

Nas religiões da matriz afro-brasileira são utilizados pelos sacerdotes e

praticantes versos musicais denominados Pontos Cantados. De maneira geral, consistem em

poemas de caráter mitológico e/ou épico que rememoram no imaginário dos praticantes os

feitos de heróis, divindades e reis do passado ou os fundamentos de sua religião. Os pontos

cantados trazem marcas do passado colônia, da gênese histórica da Umbanda e do imaginário

que permeia os praticantes desta religião (MOREIRA 2008). Estes cânticos são um fator

indispensável para a execução das práticas umbandistas.

Os Pontos Cantados são entoados para iniciar a sessão, para a purificação do

terreiro com o uso de defumadores, para a saudação dos Orixás, para professar a fé. Este

emprego constante da música aliada à poesia nos rituais é, segundo Rosafa (2008), o elemento

condutor e o ‘combustível’ dessa manifestação religiosa. As temáticas expressadas nestes

* André Luiz Monteiro é bacharel e licenciado em Biologia pela PUC-GO e mestrando em Música na

Contemporaneidade pela Escola de Música e Artes Cênicas, UFG. ([email protected]) **

Dra. Ana Guiomar Souza, musicóloga, é diretora da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal

de Goiás (EMAC-UFG). ([email protected])

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versos extrapolaram os terreiros hibridando-se a diversas práticas musicais da cultura

brasileira, estando presentes no samba, na MPB, nas parlendas etc, e assim contribuem para a

formação das identidades culturais vinculadas à brasilidade (ALMEIDA & SOUZA 2008).

Cada Terreiro de Umbanda possui seu próprio cânone de Pontos Cantados, e

dentro deste cânone são encontrados Pontos que, no consenso dos membros da comunidade

do terreiro, expressão de maneira mais cabal os fundamentos de sua fé. Vale pontuar que as

religiões afro-brasileiras não possuem textos sagrados e se valem da tradição oral para

perpetuarem seus mitos e crenças, assim é de se supor que os Pontos Cantados possuem papel

de agregação e transmissão de tradições e conhecimentos iniciáticos semelhantes ao papel

atribuído aos livros sagrados das religiões abraânicas, zoroastras, budistas, hinduístas, dentre

outras.

Identificada a importância dos Pontos Cantados para a religiosidade afro-

brasileira e suas contribuições para a construção da brasilidade, são levantados os seguintes

questionamentos de pesquisa: I- Quais as principais características melódicas presentes nos

Pontos Cantados? II- Qual o aparato organológico utilizado para sua execução? III – Quem os

executa? IV – Como as entidades sobrenaturais são representadas e quais relações sociais

podem ser identificadas em tais representações? V – O que as respostas das perguntas

anteriores podem revelar sobre a importância dos processos de hibridismo cultural para a

formação dos cultos umbandistas?

Este artigo tem como objetivo analisar os processos de hibridação e

representações sociais relacionados á manifestação dos Pontos Cantados da Umbanda.

O método empregado foi o levantamento bibliográfico da literatura publicada e

revisada por pares a cerca dos Pontos Cantados da Umbanda e posterior analise qualitativa

dos dados coletados. Esta pesquisa justifica-se pela necessidade de compreender melhor os

papeis dos cânticos ritualísticos nas expressões religiosas afro-brasileiras. Também se justifica

por serem necessárias mais pesquisas que venham a colaborar para a geração de dados e

subsídios fundamentais para o entendimento das identidades afro-brasileiras e suas

manifestações poéticas e musicais de cunho sacro.

DESNVOLVIMENTO:

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Nas religiões afro-brasileiras o terreiro funciona como um local de encontro de

indivíduos que transitam dentre diversas nichos de identidades culturais (FONSECA 2001).

Este trânsito não é caracterizado apenas pela movimentação de “massas biofísicas”, é também

caracterizado pelo trânsito e confluência de ideias e elementos culturais pertencentes aos

indivíduos que compõe estas massas. Isto faz com que o ambiente do terreiro seja catalisador

de trocas simbólicas e sociais. Estas trocas se fixaram paulatinamente nas expressões artísticas

e crenças religiosas da cultura umbandista e esta cultura se demonstra mais permeável à

hibridação de elementos provindos de matrizes religiosas externas.

Ao contrário do que ocorre com as principais religiões da matriz abraânica, as

religiões da matriz afro-brasileira não possuem instituições oficiais que regulam seus

parâmetros litúrgicos. É extramente comum serem encontradas variações entre as práticas de

terreiros diferentes (ALMEIDA & SOUZA 2012). Mesmo terreiros que mantém uma

proximidade geográfica podem utilizar-se de um cânone diferente de Pontos Cantados, ou

cantarem o “mesmo cântico” com letras levemente ou intensamente alteradas. Outro fator de

importante pontuação é que as religiões afro-brasileiras não possuem seus fundamentos

baseados em um ou mais livros tidos como sagrados e sim nas tradições orais com origens

predominantemente coloniais e subsaarianas. Na Umbanda associada a estas tradições orais

há a presença de elementos tradicionais de origem indígena, das crenças do rito latino da

Igreja Católica e do sistema de necromancia kardecista hibridados aos elementos provenientes

das tradições africanas. Embora ocorra esta “não unificação” e ausência aparente de

regulamentações universais nas religiões afro-brasileiras, diversos aspectos são recorrentes

nos ritos umbandistas bem como nos cânticos sagrados entoados por seus adeptos. Dentre os

aspectos principais estão o uso funcional da música para o “controle” das entidades místicas, a

correspondência entre Orixás e santos católicos, o culto aos espíritos indígenas (caboclos),

escravos (Pretos Velhos e Pretas Velhas), espíritos de ciganos, boiadeiros, baianos etc.

Segundo o antropólogo Vagner Rosafa (2008), os pontos cantados podem ser

classificados em seis categorias: Pontos de louvação; pontos de segurança; pontos de

chamada; pontos de trabalho; pontos de partilha e pontos de encerramento e gira. Embora esta

classificação também possa ser aplicada aos Pontos utilizados no Candomblé, nesta ultima o

cântico é, na maioria das vezes, praticado em línguas africanas (principalmente o iorubá)

enquanto na Umbanda os Pontos são cantados quase que exclusivamente em português

podendo conter algumas expressões de língua africana. Os pontos de louvação são entoados

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no início da sessão, tem a função de homenagear os Orixás e as linhas auxiliares1 que,

segundo o imaginário umbandista, prestam serviços ao terreiro e aos seus frequentadores.

Após a abertura são entoados os pontos de segurança, estes tem a função de evocar as

entidades espirituais que dão segurança aos médiuns e participantes dos rituais. Para evocar os

Caboclos, Pretos Velhos, Crianças, Exus e Pombagiras2 são entoados cânticos evocativos

especiais, também chamados de giras ou pontos de chamada. Os pontos de trabalho são

utilizados em rituais de trabalhos específicos, como os de “descarrego de pessoas”. Após o

trabalho da noite são cantados os pontos de partida, estes são responsáveis por declarar

encerrada a atuação das entidades sobrenaturais de determinada classe. Por fim, com os

pontos de encerramento da gira agradecem a Deus e aos protetores do terreiro e pedem paz

e proteção.

As melodias empregadas nos cânticos ritualísticos umbandistas possuem

peculiar relação estética para com as melodias vinculadas à religiosidade popular dos adeptos

do Catolicismo Romano. Não importando qual terreiro ou tipo de ponto, todos os Pontos

Cantados são entoados de forma monódica semelhante a uma ladainha católica, embora

costumem ser um pouco mais celerados e animados tendendo a contar com mais saltos

melódicos. Não parece haver o apego a linhas melódicas tristes e que expressem um

excruciante sofrimento, como ocorre nas ladainhas dos praticantes do catolicismo, o que não

significa que não encontremos Pontos com melodia triste, lamentosa e suplicante. Outra

característica destes pontos é a semelhança de suas linhas melódicas para com as linhas de

parlendas e outras manifestações musicais folclóricas brasileiras. As melodias são sempre

entoadas na ausência de suporte harmônico e na presença de uma estrutura percussiva de

caráter polirrítmico executada por três atabaques consagrados (ALMEIDA & SOUZA 2012).

Segundo Biancardi (2000 p. 31), nos ritos umbandistas são utilizados três

atabaques consagrados e denominados, do mais grave ao mais agudo, Rum, Rumpi e Lé. A

música neles tocada é caracterizada por rígidos padrões polirrítmicos construídos a partir do

paradigma somativo3. Cada padrão de acompanhamento musical é denominado “toque”. Os

1 Uma “linha” é um grupo de entidades místicas e de caráter sobrenatural presente no imaginário umbandista.

2 Caboclos são as almas de indígenas, Pretos Velhos são os negros sábios que foram martirizados na época da

escravidão, Crianças são almas de infantes, Exus e Pombagiras são entidades masculinas e femininas,

respectivamente. 3 O padrão rítmico somativo é de origem africana subsaariana e contrasta para com o padrão europeu, ou padrão

divisivo. No primeiro os valores temporais dos eventos sonoros são obtidos através da soma de um valor menor

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toques auxiliam os participantes dos rituais a entrarem em contato com as entidades

sobrenaturais por eles invocadas. Devido a predominância do sistema somativo na percussão,

as linhas melódicas entoadas podem ser construídas a partir da aglutinação tanto de valores

divisivos quanto somativos. Desta forma é comum serem encontrados células rítmicas na

melodia que se enquadrem no sistema rítmico europeu (divisivo) e/ou células construídas a

partir de paradigmas híbridos afro-europeus com ênfase no uso do “paradigma do Estácio”4.

O emprego destes paradigmas não é encontrado apenas na música ritualística umbandista, mas

em outras formas musicais pertencentes às culturas brasileiras, caso do samba e diversas

parlendas (SANDRONI 2001). Através desta combinação de fatores poéticos e musicais, os

sacerdotes músicos exercem controle sobre os eventos que formam um rito umbandista.

Nas religiões afro-brasileiras é encontrada uma classe de sacerdotes

denominados Ogans (ALMEIDA & SOUZA 20012), estes são responsáveis pelo toque dos

atabaques sagrados e por “puxar” os Pontos Cantados dentre outras funções. Conceição

(2010) informa que o Ogan mais experiente é responsável pelo toque do Rum, é chefe dos

outros Ogans e coordena a sequência de pontos a serem emitidos. Este sacerdote pode se valer

tanto de um roteiro pré-programado quanto improvisar intuitivamente quais toques e pontos

devem ser executados a cada momento. Cada toque “puxado” será responsável pela

manifestação de um Orixá e a forma da dança que este executará ou pela manifestação de

outro tipo de entidade. Em outros casos os toques não induziram às manifestações

sobrenaturais diretas, sendo apenas “puxados” para expressar louvores, pedidos de proteção e

curas etc.

Tanto a poética quanto a expressão sonora umbandista indicam um intenso

processo de hibridação de elementos culturais de matrizes aparentemente dispares e, do ponto

de vista conservador, contraditórias. Embora Canclini (2006) alerte para os fatos de que todas

as culturas são hibridas e que a alegação de “pureza cultural” denote, na melhor das hipóteses,

ignorância por aquele que a afirma, é de se notar que os umbandistas não só construíram um

padrão cultural hibrido como consideram o “gosto pela hibridação” algo natural à sua

religiosidade. Neste aspecto podemos perceber contrastes para com os paradigmas do

Candomblé, que aboliu o sincretismo entre santos e Orixás e utiliza, com maior frequência,

enquanto no segundo um valor maior é dividido para a obtenção dos valores empregados para a construção das

linhas musicais. 4 Os chamados “paradigmas” são padrões de agregação de células rítmicas e acentuações das mesmas

(SANDRONI 2001).

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línguas africanas em seus Pontos; do Catolicismo institucional, que possuiu um “incinerante”

histórico de intolerância religiosa e social; e do Kardecismo que abomina e inferioriza toda e

qualquer prática necromante, com exceção de suas próprias práticas de nigromancia. A

Umbanda expressa, através de suas artes e ritos, que não só admite ser resultado de

hibridações como o ato de hibridar é por ela celebrado. Para o umbandista a miscigenação das

crenças é regra pétrea.

Este “gosto” pelo hibrido é encontrado nas temáticas das poesias ritualísticas.

Os Pontos Cantados, unidos à base musical e à dança, competem para a constante atualização

das narrativas de ancestralidades e visão cosmológica imaginada pelos praticantes. Elisabete

Nascimento (2008) aponta que a aliança entre a linguagem musical e a poesia oral destes

Pontos promove o reavivamento, na mente dos adeptos, das histórias dos reis, das famílias

nobres e dos heróis ancestrais, o que indica o uso de temáticas épicas e trágicas. Desta forma

os Pontos Cantados auxiliam na assimilação e manutenção, por parte dos praticantes, dos

elementos de identidade de crença partilhados por estes indivíduos. Em sua análise sobre os

temáticos presentes nestes cânticos sagrados, Moreira (2008) afirma que é comum nos Pontos

Cantados de Pretos Velhos5 serem encontradas temáticas relativas à vida do escravo, bem

como padrões que expressam as crenças mágicas trazidas pelos africanos para o Brasil. Nos

pontos que usam esta temática é possível perceber a visão do escravo em relação a sua

condição em meio à sociedade em que vivia. Outro temático presente é a da magia, nela o

indivíduo escravizado se vale dos conhecimentos trazidos da África para lançar feitiços contra

os malfeitores que tanto podem ser outros escravos como cidadãos livres. Slenes (2007, p.

128) aponta a utilização de temática cômica nos Pontos de Prestos Velhos, nestes o

protagonista do Ponto é um escravo que satiriza seus senhores.

As temáticas expostas acima: épica, do cotidiano do escravo, mágicas e

satíricas remetem à atualização da memória histórica. Um mesmo Ponto pode abordar mais de

uma delas ao mesmo tempo, isto significa que não são excludentes uma para com a outra.

Este papel de “atualização da memória histórica” visa erguer uma narrativa contada a partir

do ponto de vista não do “euro-descendente” civilizado, letrado e possuidor do escravo, mas

do humano que se encontra na situação de ser escravizado. Expressam uma “outra versão” da

história, não uma história escrita pelos brancos, e sim a história passada oralmente através dos

5 São os Pontos cuja letra se refere à classe espiritual dos Prestos Velhos.

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antepassados negros e miscigenados. Porém os Pontos Cantados não se limitam a tais

temáticas, estes cânticos podem abordar assuntos místicos narrando as características e

“afazeres” de entidades sobrenaturais, seus poderes e funções cosmológicas. Dentre os entes

sobrenaturais pertinentes ao imaginário umbandista, destacam-se os de origem nas religiões

africanas, são eles: os Exús e Pomba-Giras; os ancestrais Pretos e Pretas-Velhas(os); e as

divindades supremas, os Orixás. Vale lembrar que, embora os Exus sejam considerados na

Umbanda espíritos mensageiros, nas religiões africanas (e ainda em diversas seitas do

Candomblé brasileiro) há apenas um Exu e este é o Orixá mensageiro6. Cada grupo de

entidades possui formas próprias e recorrentes de serem representados que, além de

expressarem seus poderes sobrenaturais, dão pistas sobre suas personalidades e elegem os

padrões de comportamento individuais e sociais vistos como “aprazíveis” pelos praticantes da

Umbanda.

Os padrões de representações empregados na Umbanda tem origem provável

na tentativa de preservar e moralizar comportamentos considerados imorais para os padrões

judaico-cristãos predominantes na sociedade brasileira. Jodelete (2001) é assertiva ao afirmar

que é através das representações sociais que as culturas se impõem e organizam sua própria

realidade. Esta realidade, quando comparada à de outra cultura, pode se opor

qualitativamente, mesmo que ambas utilizem representações semelhantes ou mesmo

elementos representativos que transitam entre ambas. Este papel inclusivo para com aquilo

que é imoral na sociedade normativa cristã é bastante evidente quando analisamos as

representações de identidades e papeis sócias associados aos Exus e Pomba-Giras nos Pontos

Cantados.

A partir da análise de 221 letras de Pontos de Exu e Pomba-Gira, Nascimento

et al (2001), informa que 31.6% dos pontos de Exu são descritivos, isto é, descrevem os

poderes e funções atribuídos a estas entidades e 22,4% são de saudação, ou seja, contém

apenas o nome e/ou uma saudação ao ser sobrenatural. Já os pontos de Pomba-Gira são

descritivos em 30,23% dos casos analisados e de caracterização (descrição física e da

aparência da entidade) em 30,23% do espaço amostral. Os Exus são geralmente associados à

liberdade, força e ao trabalho enquanto as Pombas-Giras são representadas através de

atributos estéticos femininos, como a beleza, sensualidade e, também, ao trabalho. Além

6 Função similar à atribuída a Hermes Psicopompo.

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destas estruturas foram encontradas em menor frequência expressões de relações hierárquicas,

descrições da personalidade do ser sobrenatural, caracterização das indumentárias vestidas

pelas entidades, pedidos de proteção e referencias aos locais onde tais entidades “habitam”

(encruzilhadas, ruas, etc.). Ainda segundo os autores, através dessas giras7 é possível observar

a formação de modelos de identidades de gêneros, sendo os Exus representantes do gênero

masculino e as Pomba-Giras do feminino. Esta formação de modelos de identidade não se

restringe tão somente as representações encontradas nos Pontos dedicados a estas duas classes

de entidades, mas se fazem presentes nos Pontos dedicados aos Pretos Velhos e Pretas Velhas,

bem como nos dos Orixás. Enquanto Exus e Pombas-Giras são associados à boemia, trapaças

e intensa sexualidade, podendo esta transitar livremente pela escala Kinsey, bem como a

ausência de laços familiares tradicionais (numa ótica cristã), os cantares dedicados aos

Pretos(as)-Velhos(as) enfatizam a sabedoria, bondade, honradez e os laços familiares. Assim,

é comum serem encontrados vocativos familiares e afetivos para se referir aos Pretos-Velhos,

como tio, tia, vovó, pai etc (NASCIMENTO et al Idem).

Já os termos utilizados para representarem os Orixás costumam enfatizar seu

poder divino, já que estes são as entidades de mais alta hierarquia no imaginário umbandista.

Estes deuses frequentemente são identificados pelas forças naturais e arquetípicas por eles

personificadas. Por exemplo, Iemanjá comumente é referida como sendo o próprio mar,

Omulu8 é a doença e a cura, Iansã é o próprio vento e a tempestade. Na Umbanda outro

padrão pelo qual um Orixá pode estar expresso num Ponto Cantado é caracterizado pelo uso

do santo católico a ele associado. Dentre todas as classes de entidades apenas a dos Orixás

possuem associação quase que direta para com um santo. São encontrados Pontos que não

possuem o nome do deus africano, sendo usando apenas o nome do santo católico. Em outros

ocorre a mistura do nome do Orixá com símbolos mitológicos do santo correspondente a este.

Tomando como exemplo, Iemanjá pode usar véu como a Virgem Maria e Ogum pode montar

um cavalo branco como São Jorge. Por fim, os atributos familiares associados a estas

divindades tem sempre um caráter mais universal, isto significa que um determinado Orixá é

o pai de todo um grupo étnico ou de religiosos. Devido a isto é comum ouvir, entre os

adeptos, termos como “Filhos de Xangô, Filhos de Omulu” para se referir a todos os membros

de uma determinada comunidade que possua relações com estes Orixás. Outra possibilidade é

7 Aqui esta palavra tem significado sinônimo ao de “Ponto Cantado”.

8 Também conhecido como Obaluaiê, comumente é referido como “o médico dos pobres”.

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ser referenciada ao Orixá a geração de toda uma classe de vegetais, animais ou objetos e

eventos da natureza. Um exemplo deste padrão é expresso pela crença na qual Iemanjá e a

mãe de todos os animais do oceano.

Desta forma, representações automaticamente vinculadas à comportamentos

“malévolos” na sociedade cristã são expressadas de forma neutra ou mesmo boa através dos

Pontos Cantados de Exu e Pomba Gira. Os antigos negros deixam de ser vistos como seres

moralmente e intelectualmente inferiores, como eram vistos no período colonial e mesmo

depois deste, sendo representados como detentores de bondade, sabedoria e honradez. Esta

“outra historia” promove o resgate da dignidade dos ancestrais escravos e desafia a “chibata

simbólica” dos nichos mais conservadores e protofascistas da sociedade brasileira. Por fim os

Orixás e santos passam a coexistir como entidades unas no imaginário umbandista. Ao

contrário do Candomblé a Umbanda não utilizou o sincretismo apenas para disfarçar o culto

às divindades africanas, mas através da hibridação absorveu os deuses do opressor cristão e os

“domesticou” tendo como resultado divindades que, assim como os próprios umbandistas,

transitam entre os “universos culturais” afro-pagão e cristão.

COSIDERAÇÕES FINAIS:

Os Pontos Cantados apresentam características estéticas e poéticas provindas

de diversos nichos culturais atuantes na sociedade brasileira. Através destes cânticos é

possível entender a forma com que a Umbanda utiliza a hibridação para construir

representações de identidades e sociais que contrastam tanto para com as representações

empregadas nas religiões da matriz abraânica quanto religiões da própria matriz afro-

brasileira, em especial os cultos do Candomblé. Os umbandistas parecem ter evitado fazer a

eleição de um tronco principal, seja ele europeu ou africano, para construírem seus ritos e

mitologias de ancestralidade. Ao contrario, construíram um sistema no qual ambas as matrizes

são hibridadas sem enfatizar uma suposta superioridade de uma ou outra. Apesar da aparente

ênfase nos Pontos de Pretos Velhos, Exus, Pomba-Giras e Orixás presentes na bibliografia

consultada para esta análise, existem Pontos para os mais diversos modelos sociais

“marginais”, como os Boiadeiros, Marinheiros, Caboclos. Isto sugere que, enfaticamente, os

Pontos Cantados da Umbanda tendem a sacralizar uma ampla gama de modelos sociais

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mundanos e a representa-los como pertencentes a uma ampla teia sócio-identitária nem

africana, nem europeia, mas, e tão somente, brasileira e miscigenada.

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