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SEMANA ACADÊMICA DE HISTÓRIA “História: Definições, métodos e ensino”. ANAIS 1 a Edição Semana Academica de Historia.indd 1 26/10/2011 15:10:46

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SEMANA ACADÊMICA DE HISTÓRIA“História: Definições, métodos e ensino”.

ANAIS

1a Edição

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Reitor da UFV: Luiz Cláudio Costa

Diretor do CCH/UFV: Walmer Faroni

Chefe do Departamento de História: Jonas Marçal de Queiroz

Coordenadora do Curso de História: Maria da Conceição Francisca Pires

Comissão Organizadora

Profa. Patrícia Vargas Lopes Araújo

Taiane Silva

Darlan Santos

João Marcos Paiva

Mateus Andrade

Tatiana Fontes

Bruna Menezes

Priscilla Valente

Thiago Mota

Thaís Ferreira

Glauber Miranda

Márcio de Carvalho

Walter Alves

Regina Gomes

Sara Souza

Samuel Pacheco

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APOIO

PRÓ-REITORIA DE ENSINO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

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APRESENTAÇÃO

A Semana Acadêmica de História – “História: Definições, métodos e ensino” – tem por finalidade proporcionar aos estudantes de graduação em História da Universidade Federal de Viçosa um espaço de debate, de interlocução e de troca de experiências acadêmicas, tanto com docentes e discentes da própria Universidade, quanto de outras Instituições, permitindo-lhes a reflexão sobre o fazer do historiador e suas práticas.

Neste sentido, a Semana organizou-se de modo a oferecer ao corpo discente, diferentes atividades – palestras, mesas-redondas, minicursos, sessões temáticas – que lhes permitisse a interação com pesquisadores, professores e estudantes, o aprofundamento do debate acadêmico a partir de temáticas com vasto leque de questões e recortes cronológicos e a reflexão sobre os percursos historiográficos constituídos a partir de pesquisas de docentes, de estudantes vinculados a programas de pós-graduação e a pesquisas de iniciação científica, de ensino e extensão, bem como pesquisas autônomas e trabalhos de monografia concluídos ou em andamento do Departamento de História.

Comissão Organizadora

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Sumário

A narrativa de exílio em desmundo, de Ana Miranda.................................................11

Adaptar-se para converter: métodos missionários na Índia portuguesa (séculos XVI-XVII)..........................................................................................................................17

A imprensa e seus métodos de análise: uma contribuição de Chartier e Bakhtin..........25

Dote, Relações Matrimoniais e Alianças Familiares em Guarapiranga (1780- 1880)...34

As relações estabelecidas, por meio de redes sociais, entre migrantes e remanescentes da Microrregião da Zona da Mata de Viçosa e mudanças sociais e econômicas nesta localidade...................................................................................................................43

Relações agrário-escravista na Freguesia de Guarapiranga (1822-1872)...................55

Mulher, sindicalismo rural e relações de poder..........................................................57

Um olhar de August de Saint-hilaire sobre as cidades brasileiras: entre paisagens e populações..................................................................................................................67

Historiografia e perspectivas de um estudo político...................................................75

Cultura Negra e Educação: o ensino por perspectivas e práticas libertárias.................83

O Teatro Experimental do Negro (TEN) e o Movimento Negritude: encontros e de-sencontros na afirmação de uma “nova” estética cultural..........................................96

“Sacrum convívium”: clérigos e leigos em minas setecentista..................................101

A mulher no discurso contra-hegemônico da Arte Cerâmica de João Alves - Vale do Je-quitinhonha-MG.......................................................................................................111

Os porquês do matrimônio: Os principais motivos para a constituição das famílias em Guarapiranga entre 1750- 1850..........................................................................117

Tradição e Modernidade no Congado de Airões Paula Cândido, MG......................125

Padre Antônio Ribeiro Pinto: A trajetória de um prelado milagreiro na cidade de Uru-cânia em Minas Gerais..........................................................................................135

A Família Escrava nos Plantéis de Guarapiranga: uma análise da transferência de bens (1807-1855)..............................................................................................................145

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O padroado e a “crítica ultramontana”: tensões entre a Igreja e o Estado na segunda metade do século XIX..............................................................................................153

A organizaçao da esquerda miltar na guerrilha do caparaó (1966-1967): movimento de resistencia a ditadura militar................................................................................159

A religiosidade na Colônia e a apropriação de signos aleatórios nas práticas de feiti-çaria a partir do processo inquisitorial de Maria Gonçalves (1591-1593)...............167

Wood&Stock em Algum Lugar do Presente: moral autoritária, utopia com colesterol e contracultura na obra de Angeli (1985-1995)........................................................177

A abordagem do movimento “Mascarenhas, meu amor” pela imprensa de Juiz de Fora..................................................................................................................................187

O resgate da memória afrodescendente e o espaço escolar dos alunos da Rua Nova de Viçosa – MG: uma possibilidade de efetivação da Lei nº. 10.639.......................193

Patrimônio histórico e legislação de tombamento...................................................199

O Brasil: Redes e circuitos náutico-mercantis do Império Português no Atlântico Sul durante o século XVII..............................................................................................207

Dom Vasco Mascarenhas, vice-rei e governador geral do Estado do Brasil (1663 – 1667): trajetória de serviços e ações de governo......................................................213

O resgate de passado no presente para discussão das consequências da Revolução dos Cravos e Guerra Colonial em As Naus....................................................................223

Imagens e discursos da modernidade: A construção da ordem em Viçosa-MG (1894- 1950)........................................................................................................................233

Educação patrimonial do campo: guardiões da paisagem e da cultura....................241

O ensino de história e seus desafios.........................................................................249

Estátua Arthur Bernardes: memória ou esquecimento?............................................251

Sociedade Vice-reinal da Nova Espanha: cerimonial e a vida cotidiana da corte dos vice-reis durante a monarquia dos Habsburgos........................................................259

Que História é essa? O ensino de História Local como alternativa à História de um Brasil desconhecido..................................................................................................265

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Tráfico Atlântico, Composição Demográfica e Estrutura de Posse de Escravos, Gua-rapiranga (1780 -1820).............................................................................................275

O povo no poder: A eleição de 2002 e suas reflexões no retorno da história política......................................................................................................................................285

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A narrativa de exílio em desmundo, de Ana Miranda

Ana M. de Gouvêia Almeida

Introdução

Este estudo problematiza a colonização do Brasil em Desmundo, da pesquisadora cearense Ana Miranda. Trata-se da viagem/exílio de Oribela e algumas companheiras ao Brasil, atendendo à solicitação do Padre Manuel da Nóbrega, que, preocupado com a miscigenação da raça europeia com os nativos e escravos da colônia, pede ao rei que envie moças brancas para se casarem com os lusitanos que viviam sós na terra recentemente encontrada.

Desmundo insere-se na literatura pós-modernista, que, segundo Hutcheon (1988, p. 20), é contraditória, deliberadamente histórica e inevitavelmente política. Suas contradições manifestam-se na presença do passado. Não é um retorno nostálgico. É uma reavaliação crítica, um diálogo irônico com a arte e o passado da sociedade.

Nesse romance, desconstroem-se antigas crenças e narrativas históricas amplamente difundidas pelos meios oficiais sobre a relação do colonizador português com o colonizado nativo das terras brasileiras. É uma forma de revelar o projeto de construção da identidade brasileira a partir de fragmentos velados no discurso do colonizador e desmistificar a grandeza do movimento expansionista português.

Essa tentativa de tornar conhecidas passagens obscuras nos relatos históricos da colonização do Brasil pode ser percebida na viagem/exílio de Oribela e seis companheiras órfãs e pobres levadas pelas desventuras ao Brasil por um mar que acreditam ser cheio de mistérios e perigos sobrenaturais. Cheias de sonhos e fantasias, superstições e medo, o Brasil se descortina para elas como a possibilidade de escapar da rudeza a que são submetidas em Portugal. O mundo que as aguarda, porém, é em tudo diferente daquele que criaram em seus sonhos. Os homens são rudes e a condição feminina não é melhor do que aquela dos nativos escravizados. Ao contrário dos “deleitos, folganças do corpo, louvores, graças prazentes” sonhados (MIRANDA, 2003, p.11), o Brasil parece-lhes uma ameaçadora realidade, já que ficam entregues literalmente.

*Graduação em Letras e Especialização em Linguística e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

à voracidade dos homens. A visão do paraíso cantada pelos cronistas lusitanos desaparece enquanto elas deparam com a brutalidade das relações entre homens e mulheres. O império do homem branco é brutal: derruba matas, abre caminhos, apropria-se de terras, desvirgina mulheres, aprisiona, vende e compra nativos.

Oribela, a protagonista-narradora, sente em sua pele o peso dessa violência, já que em seu corpo experimenta toda a brutalidade imposta às mulheres, dentro e fora

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do casamento. Ao desembarcar na nova terra, ela se descreve como uma mercadoria, jogada no porto diante dos olhares cobiçosos dos homens: “fôramos cargas de uma azêmola (...) feros animais, uma cutilada, uma estocada, tomando a cosso para nos possuir, o que lhes nascia de sua cobiça” (MIRANDA, 2003, p.25).

Os limites impostos pela sua inferioridade social e o destino reservado a ela e suas companheiras fazem com que Oribela não aceite ser “domesticada” pelo marido nem pela força física nem com presentes e declarações de amor. Os castigos que sofre são uma violência enorme: fica acorrentada, por dias, no pé da cama como se fosse um bicho. Para o colonizador, Oribela não é muito diferente de um animal que se pode doar ou vender.

Esse romance oferece ao leitor a refllexão sobre os discursos dominantes que historicamente validam a pacífica colonização das terras brasileiras.

Literatura e História

A Literatura pós-moderna, conforme Hutcheon (1988, p. 19), é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte os próprios conceitos que desafia. No entanto, não deve ser entendida como movimento de negação ou rompimento total desses conceitos pré-estabelecidos ou, ainda, uma tentativa de modificá-los. O que o pós-modernismo faz (...) é confrontar e contestar qualquer rejeição ou recuperação modernista do passado em nome do futuro. Ele não sugere nenhuma busca para encontrar um sentido atemporal transcendente, mas sim uma reavaliação e um diálogo em relação ao passado à luz do presente.

Os romances que promovem o diálogo entre literatura e história, ao repensarem os fatos do passado, foram chamados de metaficção historiográfica, que não o rejeita nem o aceita simplesmente, porém modifica definitivamente todas as noções simples de realismo ou referência por meio da confrontação direta entre o discurso da arte e o discurso da história (HUTCHEON, 1988, p.39 ).

Tais romances, além do valor literário, são documentos na medida em que os autores fazem vir à tona fatos que, durante algum tempo, ficaram esquecidos.

Exílio no Brasil Colonial

A experiência do exílio, a tristeza da quebra de laços com a terra natal tornaram-se recorrentes na atualidade. Vários são os exemplos que tornaram a imagem do exilado um arquétipo da cultura ocidental, visto que uma das características do romance pós-moderno é justamente a relação problemática entre o herói e seu mundo.

O exílio como marca cultural recorrente pode ser explicado também através dos escritores, pois, como afirma Said (2003, p.46), “ a moderna cultura ocidental é, em larga medida, obra de exilados, emigrantes, refugiados”. Para esse crítico, vários escritores conferiram dignidade à condição de exilado, mas não se pode esquecer

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do caráter ético do tema, pois ele representa “multidão sem esperança, a miséria das pessoas `sem documentos`, subitamente perdidos, sem uma história para contar” (SAID, 2003, 46).

Nas narrativas históricas que comumente apresentam marcos geográficos, bravos pioneiros e vitórias sobre os inimigos, há quase sempre histórias de exilados, como ocorre em Desmundo, de Ana Miranda. Esse romance discute, além da colonização brasileira, o exílio de mulheres marginalizadas na corte portuguesa, enviadas para povoar o Brasil. Entre elas está Oribela, que sofre com o estranho mundo para o qual foi enviada.

Em Portugal, em fins da Idade Média, havia uma forma de banir os indesejáveis ou criminosos do convívio social. Eles eram enviados a lugares chamados coutos e homízios, normalmente pouco povoados e localizados em territórios fronteiriços. A ida para esses lugares lhes rendia o perdão do crime cometido, proteção contra possível vingança das pessoas ofendidas, e isenção de impostos. A partir dos descobrimentos, essa população de desajustados sociais foi remanejada para os novos territórios portugueses, como África, Índia e Brasil. Dessa forma, a coroa promovia o povoamento, construindo a defesa de suas fronteiras.

Em Desmundo, a narrativa de Oribela é angustiada, cheia de crenças e medos. O exílio deixou-a mais desamparada do que vivia em Portugal. A dor da solidão e o desespero revelam um discurso de revolta e rebeldia. Cada vez mais Oribela se vê perplexa com a inumanidade do mundo que a cerca. O vazio, o medo e a necessidade de sobreviver são característicos dessa situação e a impotência do ser humano diante das estruturas estabelecidas leva ao sentimento de fracasso. A presença do outro é a sua salvação. E este outro é Ximeno Dias, o mouro, por quem se apaixona e em quem encontra a cumplicidade necessária para enfrentar as dificuldades que a ameaçam naquela selva humana.

As vozes ficcionais e históricas se misturam à de Oribela, revelando um universo dialógico em que se entrecruzam fatos históricos, ficção e imaginário popular. Esse conjunto de vozes que emanam do texto e se combinam para reconstruir a ideologia e a atmosfera contextual do período compõe o plurilinguismo de Bakhtin (1993, p.98-99), que afirma

“todas as linguagens do plurilinguismo, qualquer que seja o principio básico de seu isolamento, são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas de sua interpretação verbal [...] que podem ser confrontadas, podem servir de complemento mútuo entre si ou oporem-se umas às outras e se corresponderem dialogicamente. “

Em Desmundo, a voz da personagem narradora, Oribela, conflita com a voz do colonizador, com a dos “naturais” e com a da Velha ex-freira, também exilada. Francisco Albuquerque, como português e marido de Oribela, tenta dominá-la com castigos brutais, como se fosse um animal. Subjugá-la até que se submeta à sua vontade é sua intenção, como faz com os índios que captura e escraviza em sua fazenda. Oribela, porém, tem uma personalidade determinada e rebelde. Suas crenças

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cristãs não permitem que ela ame um homem que a forçou sexualmente, que escraviza os índios e que os mata para tomar suas terras.

Oribela é aconselhada pela Velha a aceitar o marido como sua salvação, já que não tem permissão para voltar a Portugal. Seu exílio não tem fim. Respeitar e acatar as regras de uma boa esposa é o que deve ser feito, preocupada com a inocência das futuras esposas: “Ora, ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve jurar que o disse em um acesso de cólera; nunca mais deixar os cabelos soltos, mas atados, não morder o beiço, que é sinal de cólera “ (MIRANDA, 2003, p. 67).

Oribela recusa-se a obedecer, principalmente quando se lembra do pai que a culpava pela morte da mãe. O pai dizia que ela era “coisa ruim” e lançava sobre ela todo o seu ódio pelas mulheres, o símbolo da queda do homem. A beleza e o poder de sedução femininos fazem com que o homem se afaste de Deus. É o mito do pecado original de Adão e Eva: “Meu pai mandava turvar a água do banho com leite para não ver o meu corpo de criança, uma vez alevantei da gameleira e ele me castigou com tantas vergastadas que verti sangue pela boca (MIRANDA, 2003, p. 43).

A solidão de Oribela na fazenda torna-se insuportável. Ela foge várias vezes e sempre é castigada. No período de castigo é que Oribela convive mais com os naturais, entre elas Temericô. O discurso plurilíngüe revela-se também aí. Entre elas, há uma troca de cultura: Oribela narra histórias de fidalgas, rainhas e costumes da corte portuguesa, e Temericô lhe ensina a língua e lhe fala da vida das naturais: “Muitas mais coisas ensinou a natural, de sua fala, kuarasy sem’lanondé, xemo-mbak-i, que dizia Antes do nascer do sol ele me acordou...” (MIRANDA, 2003, p. 127).

Nesse relacionamento, Oribela começa a se desarmar contra o novo mundo. Ela se abre para conhecer melhor o que há naquelas terras e como são aquelas pessoas estranhas. Aos poucos seu passado e seu modo de ser, suas convicções vão dando chance a outros pensamentos e outro modo de ver aquele lugar.

Quando ocorre uma guerra na fazenda de Francisco, Oribela foge novamente e recebe ajuda do mouro Ximeno, a quem temia por acreditar que era feiticeiro e a encarnação do mal. É junto dele que ela descobre a si mesma, pois ele também foge para não se desfazer de suas crenças, de sua identidade e não se entregar àqueles que querem dominá-lo.

Apaixonada por Ximeno e grávida dele, Oribela é recapturada pelo marido, que fica feliz por se tornar pai. Quando a criança nasce, Francisco descobre a traição da esposa ao ver que a criança é ruiva com o mouro. Assim, ele tenta voltar para Portugall com a criança, abandonando Oribela. Ximeno recupera o filho e o traz de volta para a mãe. Oribela pode finalmente realizar seu sonho de liberdade.

Aspectos Linguísticos

A narrativa de Desmundo subverte a linguagem tradicional. Para criar uma imagem de “novo mundo”, autora lança mão de estratégias como as epígrafes no início do romance, que remetem às viagens portuguesas do século XVI:

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Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas. Levado, como a poeira, pelos ventos, pelos vendavais. (Fernando Pessoa)

Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra ha de mulheres, com quem os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos pecados, em que agora vivem, mande Vossa Alteza muitas orphãs, e si não houver muitas, venham de mistura dellas e quaesquer, porque são mulheres brancas cá, que quaesquer farão cá muito bem à terra, e ellas se ganharão, e os homens de cá apartar-se-hão do peccado.(Manuel de Nóbrega)

Ana Miranda usou palavras não dicionarizadas, como o título do romance, desmundo, para expressar o “desrumo” de Oribela. Frases e expressões incomuns foram empregadas também para retratar a linguagem da época: alenternas, alembrar, inlegal, inreal, esmagrecer; geriza, lambique, licate, nimigo, menagem”; preguntar, interter, intrevalo, percurar; a mais vossa mercê em idade inocente; água fresca água fresca águafrescaáguafresca; ru, ru, menina, ru, ru; pelos corpos os filhos de Iúcife; qui, si si mela, mela, qui, hi hi hi, aça, açu; água nas mãos e na fuça, fidalga, água no mais, puta; esperando esperandesperando, de dosar os pés, uxte; etc.

O dialogismo e os recursos lexicais revelam a habilidade e a liberdade da autora na manipulação do texto, dando à colonização do Brasil uma versão diferente da oficial. Impressões, conflitos e expectativas na nova terra são mostrados em toda sua crueza, subvertendo a versão de paraíso propagada pelos cronistas portugueses sobre a convivência na colônia.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: UNESP/HUCITEC,1993.

HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

MIRANDA, Ana. Desmundo. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. In: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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Adaptar-se para converter: métodos missionários na Índia portuguesa

(séculos XVI-XVII).Ana Paula Sena Gomide

Em tempos da expansão marítima européia no início da época moderna, modelos de ações evangelizadoras, dirigidas por diferentes ordens religiosas, foram um dos aspectos mais interessantes desse período. E entre essas diferentes ordens religiosas, a então recém formada Companhia de Jesus se destacaria na missão de evangelizar os diversos campos de descoberta resultantes de tal expansão. O Oriente, recorte do presente trabalho, tornar-se-ia local de vivências múltiplas entre os mais variados métodos missionários e uma sociedade, como veremos adiante, complexa nos seus diversos elementos existentes.

Evangelizar o Oriente traria à tona novas questões acerca da cristianização que muitas vezes a Igreja em si não estava preparada para lidar. Segundo Ana Cannas da Cunha, a Companhia de Jesus teria melhores meios de se lidar com tais questões. A organização do projeto missionário, a visão acerca das diferenças locais por parte dos jesuítas, uma organização militante e dinâmica, fez da Companhia de Jesus um papel importante na relação da Igreja com a diversidade religiosa da Índia (CUNHA,1995: 177-120). Como o próprio Charles Boxer também demonstra, é importante perceber que os superiores gerais da Companhia de Jesus em Roma, desde o início da atuação da Ordem, tiveram a preocupação em conceder à Companhia um caráter internacional na sua evangelização e também sendo militante em prol da salvação das almas (BOXER, 2006:105), tornando, assim, o interesse de Portugal em se expandir seus domínios coerente com a proposta católica em se fazer presente também nas novas possessões. Idéia também presente em John W. O’Malley, que aponta que as atividades jesuíticas se voltavam para aqueles que não eram cristãos ou aqueles que podiam cair nas garras da heresia. Desse modo, os jesuítas muitas das vezes serviam como um verdadeiro soldado cristão e sua vocação era, de acordo com as Constituições1 “viajar através do mundo e viver em qualquer parte dele, onde houvesse esperança de maior serviço a Deus e de ajudar às almas” (O’MALLEY,2004: 118).

Antes da chegada do jesuíta Francisco Xavier no ano de 1542 em Goa, havia um numero reduzido de clérigos, missionários, vigários, apostólicos e bispos atuando no Oriente. Esse quadro só iria tomar novos contornos a partir da chegada do jesuíta, onde um número considerável de diversas ordens religiosas marcaria presença no Oriente. Expandir a fé e construir uma integração religiosa

1 Documento jesuítico que se refere aos princípios gerais e normas que os jesuítas deveriam alcançar e seguir.

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exigia um novo tipo de evangelizadores, com mais preparo e uma formação religiosa elevada. Os jesuítas vieram preencher tais exigências. Além de fazerem voto de pobreza, castidade e obediência, os jesuítas se comprometiam a deslocar-se para onde quer que o Sumo Pontífice ordena-se, o que era uma característica chave para, segundo Anna Cunha da Cunha, enfrentar no Oriente o desconhecido e diverso (CUNHA,1995: 118).

Cristina Pompa considera que os jesuítas possuíam características únicas e especificas nas missões. Uma dessas marcas apontada pela autora é a questão da “tolerância das violações”, onde se sacrificava o respeito às normas para a obtenção de algo maior, a conversão de fato, como veremos nas análises acerca da metodologia missionárias proposta e praticada pelo jesuíta italiano Roberto di Nobili (POMPA,2003:68). Outras particularidades dos jesuítas foram citadas pela Célia Cristina Tavares, como a capacidade de se adaptar a cultura local, como é o caso do jesuíta Henrique Henriques onde aplicou formas de adaptações à cultura hindu na costa da Pescaria na Índia (TAVARES,2004:129). Havia também uma preocupação em se aprender a língua local, considerada de grande importância para a ação missionária, pois seria possível estabelecer uma comunicação com os gentios, bem como transmitir a doutrina do catolicismo (TAVARES, 2004:130).

Entretanto, na percepção de Boxer, havia duas alternativas principais referentes às práticas dos jesuítas que estavam associadas diretamente com a vivência junto aos nativos. Por um lado, o autor apresenta o fato de que durante séculos o que teria predominado na ação da Igreja seria um discurso que pregava que todos eram irmãos, mas onde ficavam implícitas atitudes de preconceito para com as diversas realidades que os missionários encontravam (BOXER, 2006:12). Na própria Goa do XVI e do XVII, houve iniciativas da coroa portuguesa, baseada no Padroado, em se montar um clero nativo que abrangesse toda a região goense. O seminário, fundado em 1541, ficaria sob a égide dos jesuítas até o período pombalino no qual a Companhia fora abolida (BOXER, 2006: 23-24). No entanto, tal iniciativa acabaria esbarrando na própria desconfiança das autoridades, devido ao fato de que muitas das praticas nativas de Goa coexistiam juntamente com a cristianização presente. A outra saída que o missionário poderia possuir diante de uma cultura adversa à sua seria a de se ter o trabalho de estudar tal cultura, de modo a ter uma percepção melhor acerca da comunidade a ser evangelizada. Entretanto, tal atitude, de acordo com Boxer, fora raramente utilizada em alguns casos na America hispânica e na Ásia (BOXER,2006:25). É o caso do jesuíta Roberto de Nobili, que através da apropriação de alguns costumes locais, fez com que a sua estratégia missionária se tornasse numa verdadeira mediação cultural, implícita, porém, existente nos seus atos.

“Os defensores da tolerância a essas formas de religião eram geralmente acusados pelos críticos, então e depois, de promover a assimilação do cristianismo ao hinduísmo ou ao confucionismo, e não o inverso. As posições do papa na acalorada discussão desses problemas, que contou com a adesão dos círculos eruditos da Europa, oscilavam consideravelmente”

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De acordo com Adriano Prosperi, o trabalho de um missionário era de caráter lento e paciente, onde a difusão da fé se daria não através do uso de violência, mas sim por escolha de meios brandos (PROSPERI, 1995:147-150). A aproximação cultural com os povos a serem evangelizados, portanto, seria uma importante ferramenta de conversão para os inacianos. A atuação do missionário por meios pacíficos exigia um esforço de aproximação, de adaptação à cultura local, onde, “adaptar-se aos outros, na interpretação corrente da Companhia de Jesus, era o meio necessário para atingir o objetivo de os “ganhar para Cristo [...] [sendo] um meio, [e] a conquista religiosa era o fim: e o fim justifica os meios [...]” (PROSPERI, 1995:158). Assim, de acordo com John W. O’Malley, havia um aconselhamento aos jesuítas de que usassem uma abordagem positiva em sua missão evangelizadora, onde os padres da Companhia de Jesus promoviam consideráveis esforços para “desculpar os hereges comuns como pessoas mal orientadas” (O’MALLEY: 2004: 123). A estratégia adotada por alguns missionários não era o choque direto com a cultura local, mas sim uma aproximação com essas culturas. Portanto, pensar nos métodos de conversão de Nobili é pensar o jesuíta como sendo um mediador cultural. Rui Manoel Loureiro, por exemplo, defende a noção de mediadores culturais da seguinte forma:

“[...] facilmente se entenderá a fulcral importância dos ‘mediadores’, precisamente aqueles que estabeleceram ligações entre mundos, povos e culturas, aqueles que efetuaram a passagem, o salto ou transferência de um universo intelectual, material ou religioso para outro” (MANOEL, 1999: 5)

Em contato com outra civilização, o mediador cultural se tornaria capaz de construir relações concretas entre as culturas, buscando, por exemplo, encontrar pontos em comuns entre as sociedades, através do uso de analogias. Matteo Ricci, jesuíta com missão em Macau, recorria a analogias que pudessem ajudá-lo a construir um sistema de mediação2. O trabalho do jesuíta é o de criar um espaço comum e sincrético, capaz de incluir todos os aspectos diversas culturas. (REBOLLO,1999:345-349). É nesse sentido que merece destaque a atuação do jesuíta italiano Roberto di Nobili de modo compreender os métodos por ele adotados durante sua presença em Maduré, possessão portuguesa, numa perspectiva mais ampla, inseridos dentro dessa lógica de adaptação e de aproximação cultural utilizada por seus antecessores.

Roberto de Nobili nasceu em Roma no ano de 1577 e se juntou a Companhia de Jesus na região de Nápoles aos 20 anos. Após completar seus estudos e ser ordenado, deixou Lisboa e partiu para Goa em 1604. Devido a seu talento lingüístico, foi designado para a província de Malabar- sul da Índia. Após um breve período em Cochim, Nobili foi enviado a Costa da Pescaria e depois de seis meses foi trabalhar na missão de Maduré, junto com seu companheiro de ordem religiosa, Gonçalo Fernandes, em 1606. (ALDEN, 1996: 151). Durante o período em que esteve em

2 Para saber mais a respeito do método de Matteo Ricci em sua missão na China, ver O Palácio da Memória de Matteo Ricci de Jonathan D. Spencer.

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Maduré, Nobili desenvolveu seus métodos missionários no qual se tornou famoso e polêmico.

Além de dominar três importantes idiomas indianos, o tâmil, telug e sânscrito, Nobili procurou se aproximar da casta mais alta indiana- os brâmanes. Não só se aproximou, mas viveu o estilo de vida dos brâmanes, como por exemplo, fez uso do traje amarelo dos brâmanes, se restringiu a fazer apenas uma refeição vegetariana por dia além de viajar com os pés descalços. Em carta para Paulo V, o jesuíta italiano explica o seu “disfarce” ao dizer que “professava ser um brâmane italiano que tinha renunciado a este mundo, quando estudava sobre a sabedoria em Roma e rejeitou todos os prazeres e confortos do mundo” (ALDEN, 1996: 152). Assim, Nobili se adaptou a situação e passou a viver como um brâmane, com o objetivo de pregar e converter os indianos pertencentes à casta mais alta da Índia. Para Nobili, converter os brâmanes para atingir as outras castas era necessário. Os brâmanes, no entender do jesuíta, representam a inteligência, a suprema autoridade e exemplo para as demais castas. Sendo assim, tornou-se costume para todas as castas recorrer aos brâmanes a fim de buscar algum conselho, particularmente nos assuntos relacionados a religião. Nobili escreve que :

“[...] e a partir dessa atitude popular que surge o nosso maior obstáculo concentrado no caminho da conversão. Sentimos isso na nossa comunidade religiosa. Quase todos aqueles a quem nos propormos ao ensino catequético de Cristo, manda imediatamente consultar os brâmanes, ou trazemos a nossa casa, já que eles mesmos estão conscientes de sua ignorância em tais assuntos [...]” CLOONEY; AMALADASS, 2000)

Assim, não é de se estranhar que para o jesuíta, se aproximar e converter os brâmanes era considerada a chave para a conversão na Índia, pois somente com o sucesso da conversão dos brâmanes que as demais castas, no entender de Nobili, iram aceitar a conversão ao cristianismo.

Porém uma das mais importantes idéias defendidas pelo jesuíta diz respeito aos costumes e práticas indianas. No ano de 1613, Nobili escreveu em um relatório, que é composto por onze capítulos, sua compreensão dos costumes da nação indiana, detalhando como se dava a estrutura social da sociedade, as suas tradições intelectuais, e as principais escolas do pensamento hindu, além de defender seus métodos de aproximação contra aqueles que consideravam a sua abordagem e até mesmo sua compreensão básica da religião e da cultura indiana como atos que poderiam tornar uma ameaça de fato para a afirmação do catolicismo no Oriente3. Neste relatório, Nobili defenderia a sua principal premissa de que alguns costumes indianos seriam de caráter fundamentalmente civil, e não a nível religioso, sendo assim, não devendo ser proibidos após a conversão. Nobili partia da idéia de que:

3 O estudo sobre o Nobili pode analisado a partir de seus tratados em latim, a Apologia, A Narração e O relatório. Nesses tratados Nobili se defende de seus críticos que dizem que o jesuíta era favorável aos costumes pagãos, além de descrever seus conhecimentos acerca da sociedade e da cultura indiana.

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“[...] grande é a urgência de permitir que o povo da Índia viva de acordo com as tradições sociais de seus antepassados, particularmente em relação aos trajes

ancestrais dos indianos que vivem no interior, na medida em que estas são realmente compatíveis com a religião cristã [...]”.(CLOONEY; AMALADASS, 2000:209)

Ao analisar o uso da pasta de sândalo, o uso do tufo de cabelo – denominado Kutumi- dos indianos, o jesuíta compreende que estes e outros costumes são puramente usados em seu caráter social e ornamental, não possuindo nenhuma evidencia de idolatria, assim, não devem ser proibido. Para Roberto de Nobili se os demais missionários consideram todas as práticas e costumes indianos como sinal de idolatria, “torna-se absolutamente impossível para os cristãos a viver na Índia”, como podemos observar no trecho em que defende o uso do Kutumi pelos indianos:

“[...] Eu quero que seja entendido que, assim como proibindo o uso do fio, toda a esperança (e, normalmente, humanamente falando) de conversão da aristocracia de Cristo se foi, assim também proibindo o uso do tufo de cabelo que resta absolutamente nenhuma esperança de converter qualquer seção da população em que a semente da doutrina celeste poderia ser proveitosamente elenco. Como os indianos têm repetidamente jogado em minha cara, fazemos isso, sem qualquer razão plausível, uma vez que é impossível apresentar qualquer evidência de um caráter superstição neste ou usos semelhantes em geral [...]”(CLOONEY; AMALADASS, 2000:173)

Desse modo o que podemos observar através desses relatos do jesuíta Roberto de Nobili, é que para promover a conversão na Índia, era preciso ser tolerante com alguns costumes que, de acordo com o mesmo, não causaria nenhum escândalo ao cristianismo. Consideramos dessa forma, que os métodos de conversão adotados por Nobili vão de encontro com o que Cristina Pompa denominou de “tolerância das violações”, como já citado acima. Nobili considerava de primeira importância admitir o uso de certas práticas indianas para o sucesso da conversão em toda a Índia.

É importante, entretanto, destacar aqui que Nobili não foi o primeiro nem o único a fazer um estudo sobre outra cultura e procurar se adaptar a ela, como fez Matteo Ricci em sua missão na China citado acima. Ao analisar as missões da Companhia de Jesus na Índia podemos notar que não havia uma heterogeneidade no próprio interior da ordem religiosa a respeito dos modelos de conversões. Maria de Deus Beites Manso nos aponta que desde o início do trabalho evangelizador jesuítico no Oriente coexistiam métodos violentos de conversão na tentativa de erradicar os “emblemas do culto gentílico”, com os métodos que buscavam uma aproximação com a cultura local.

Também para o historiador português João Paulo de Oliveira e Costa, as atividades missionárias jesuíticas, sejam na América, África ou no Oriente, não se dariam de maneira uniforme. Segundo o autor, nas regiões onde a coroa se fazia presente, os jesuítas usaram da "força" para catequizar, já nas áreas fora desse domínio português, os jesuítas puderam usar estratégias brandas, abordagens novas, que são denominados pelo

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historiador de "acomodação cultural” (COSTA, 2000: 279). Assim, podemos citar as experiências missionárias de Henrique Henriques, que durante os anos de 1548 a 1600 serviu na região da Costa da Pescaria, região que se tornou um dos maiores centros de sucesso missionário na Índia. Uma de suas maiores contribuições foi ter escrito a primeira gramática européia toda na língua indiana, o Tâmil, no ano de 1549, sendo revisada em 1566 pelo próprio jesuíta, além de ter publicado uma série de trabalhos em Tâmil. (ALDEN,1996:50). Segundo Célia Cristina Tavares, foi o próprio Francisco Xavier que ordenara a Henrique Henriques o aprendizado da língua Tâmil, demonstrando, segundo Tavares, que o trabalho do referido jesuíta era uma clara tarefa de mediação cultural, já que aprender a dominar a língua local era de grande importância, pois poderia formar missionários capazes de estabelecer comunicação direta com os cristãos da terra sem a necessidade de interpretes, além de divulgar a doutrina cristã por meio de catecismo e manuais. (TAVARES,2004:130).

Outro inaciano que procurou estudar sobre a cultura e a sociedade indiana foi Alessandro Valignano, um dos maiores responsáveis pela formação jesuíta no Oriente. Valignano escreveu volumosos livros detalhando as condições administrativas da Igreja e do Estado português no Oriente. O jesuíta também escreveu de forma detalhada transcrição dos usos e dos costumes chineses e japoneses.

Além desses e de outros jesuítas que buscaram aliar seus métodos missionários com uma aproximação cultural, é importante destacamos aqui, que devido a essa nova abordagem de conversão, não foi apenas a diversidade dentro de tal modelo que foi possível destacar nos estudos aqui promovidos, mas também elementos de distinção a respeito do modo como desenvolver a conversão religiosa, distanciando por vezes da defesa de uma aproximação cultural, como apontada pelo jesuíta Roberto de Nobili. Nesse sentido podemos destacar o conflito aberto entre Nobili e seu companheiro de missão em Maduré, Gonçalo Fernandes Trancoso4. No entender de Fernandes, o que Roberto de Nobili fazia era interpretar de forma errônea as tradições indianas, onde religião e cultura eram distintas. Desse modo, os ritos que os brâmanes praticavam, na interpretação “equivocada” de Nobili, não seriam nada mais que significação política. Entretanto, no entender de Gonçalo Fernandes a conversão deveria ser acompanha de uma mudança de comportamento por parte do convertido. O uso de sândalo, das linhas, era sinal evidente de que a conversão não tinha sido realizada por completo. Dessa forma, na compreensão do jesuíta português, os métodos de Nobili se pareciam mais com outra seita do que necessariamente uma forma de evangelização (CLOONEY; AMALADASS, 2000:29).

Outro opositor dos métodos missionários de Nobili foi o inquisidor de Goa, João Delgado Figueira, Como já explicitado no presente trabalho, um dos posicionamentos do jesuíta italiano residia na defesa de que os ritos gentílicos dos indianos não eram

4 Gonçalo Fernandes Trancoso escreveu o Tratado do padre Gonçalo Fernandes Trancoso sobre o hinduísmo no qual descreveu de forma exaustiva as práticas dos brâmanes, além de contestar as oito proposições do P. Roberto de Nobili, escrito entre 1615 a 1616. Cf: . José Wicki, Tratado do padre Gonçalo Fernandes Trancoso sobre o hinduísmo (Maduré,1616), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1973.

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nada mais que “sinais exteriores e inofensivos à fé católica” (TAVARES, 2004:55), onde o converso poderia “continuar a apreciar e valorizar a cultura sem cair nas superstições (CLOONEY; AMALADASS, 2000). O trabalho de João Delgado Figueira foi ao sentido de enfatizar o caráter diabólico de tais ritos hindus, que eram formas de se aproximar da antiga religião dos conversos, não sendo conveniente para a Cristandade a continuidade de tais rituais praticados pelos neófitos. Assim, o inquisidor considerava o modelo de conversão adotado por Nobili como sinal de escândalo para a Cristandade (TAVARES, 2004: 8).

Ao refletir sobre a atuação jesuítica no Oriente, bem como os modelos de conversão que eram adotados pelos seus membros, podemos observar que muitos jesuítas optaram pelo método evangélico de accommodatio (ZUPANOV,1998). Adotar o modelo de aproximação com o outro a ser evangelizado permitiu que muitos desses jesuítas obtivessem sucesso em sua missão de converter os pagãos e trazê-los para junto da fé católica1. Como mostrarmos no decorrer do texto, a mediação cultural não foi colocado em pratica por todos os membros da Companhia de Jesus, uma vez que tal ordem não é homogenia. Em espaços que não se encontravam sob a jurisdição portuguesa, como é o caso da região do Malabar, onde os jesuítas Henrique Henriques e Roberto de Nobili atuaram, foi possível identificar a prática da aproximação cultural. Tal questão da aproximação cultural, especialmente em se admitir certas práticas indianas, se fez presente no relatório escrito por Nobili em 1613. O jesuíta chega a alegar que:

“[...] em locais sujeitos ao domínio Português, os inconvenientes que esta mudança de costumes culturais implica talvez não seja tão formidável, uma vez que os neófitos podem ser defendidos e protegidos pelos governadores Português. Mas a situação é bem diferente nestas regiões do interior da Índia inteiramente sob o domínio de reis. Aqui pagãos não pode, abandonar os costumes estabelecidos social de seu clã especial, a menos que ele está preparado, como já disse, assim que perder - tanto para si mesmo e para seus filhos, não só a sua alta posição social anterior, mas absolutamente todos os tipos de apoio humano para a preservação da vida.” (CLOONEY; AMALADASS, 2000:220).

Podemos assim, pensar que Nobili conhecia as dificuldades que a região de Maduré implicava para as conversões. Ali, onde o poder português não se fazia presente, abandonar suas antigas práticas poderia causar uma exclusão social e até mesmo a preservação da própria vida, como alegou Nobili em seu relatório. Aproximar-se, adaptar-se, admitir certos costumes e práticas indianas – como no caso do jesuíta Roberto de Nobili- se tornaram elementos importantes para desenvolver o processo missionário no Oriente português, especialmente através das ações desses jesuítas que atuarem em áreas distantes do poder administrativo português.

5 Alguns historiadores informam que Nobili converteu cerca de 4.183. Dauril Alden já nos fornece o número de trinta mil conversões atri-buídas a Roberto de Nobili. Cf: Célia Cristina Tavares Mediadores Culturais: Jesuitas e missionação na Índia (1542-1656). In: Acervo: Revista do Arquivo Nacional. Vol 16. No 2.2003.

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Bibliografia

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MANSO, Maria de Deus Beites. A companhia de Jesus na Índia: atividades religiosas, poderes e contactos culturais (1542-1622). Universidade de Macau e Universidade de Évora. 2009.

O’MALLEY, John W. Os primeiros Jesuítas. Editora Unisinos; Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004.

POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial Bauru, SP: EDUSC, 2003.

TAVARES, Célia da Silva. Jesuítas e inquisidores em Goa: a cristandade insular(1540-1682). Lisboa: Roma Editora, 2004.

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VILLARI, Rosário (dir) O Homem Barroco. Presença. 1995. XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: Poder Imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008.

ŽUPANOV, Inês. Disputed Mission: Jesuit experiments in brahmanical knowledge in seventeenth century India. New Delhi: Oxford University Press, 1999.

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A imprensa e seus métodos de análise: uma contribuição de Chartier e Bakhtin

Bárbara Figueiredo SoutoRoger Aníbal Lambert da Silva

Introdução

A década de 1970 foi um momento importante para a produção do conhecimento nas ciências humanas. Essa época foi marcada por uma “reviravolta” na utilização de fontes, métodos e abordagens, sendo relevante a contribuição da história cultural, que privilegiou as identidades coletivas de variados grupos, como operários, camponeses e pessoas comuns. Nessa pluralização dos objetos de estudo, as mulheres e os escravos foram incluídos como importantes atores sociais, bem como houve a valorização do uso da imprensa enquanto fonte de estudos.

Tendo isto em vista, nosso objetivo nessa apresentação é discutir como a imprensa pode ser um valioso material para os estudiosos de fins do século XIX, caso tomem os devidos cuidados metodológicos. Para tanto, damos especial atenção aos conceitos de “representação” e “dialogicidade”, cunhados respectivamente por Roger Chartier e Mikhail Bakhtin.

Atores sociais em foco

Mulheres

Vale ressaltar que mesmo antes dessa “reviravolta” da história, alguns estudiosos haviam produzido trabalhos que destacaram as mulheres em suas análises. Geralmente, menciona-se Michelet como pioneiro, quando produziu La Femme, em 1859. Nessa obra, o historiador entendia o movimento da história como resultado das relações entre os sexos, no qual entrava em conflito a mulher – relacionada à natureza – com o homem – ligado à cultura (DEL PRIORE, 1997: 12).

Em fins do século XIX, o fortalecimento da história positivista fez com que as atenções voltadas para o estudo das mulheres sofressem uma recessão, devido ao privilégio dado à história política e ao espaço público (SOIHET, 1997: 278) – na época, muito limitados à mulher.

No final da década de 1920, a Escola dos Annales iniciou uma nova abertura à história dos homens e de seu cotidiano. Apesar de não ter voltado o olhar diretamente para a mulher, os Annales deixaram as portas abertas para a concretização da História das Mulheres. Na década de 1960, os revisionistas marxistas também contribuíram,

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ao proporem como objeto de análise as massas populares e as mulheres do povo (SOIHET, 1997: 278).

Com o desenvolvimento dos campos da história das mentalidades e da história cultural, o interesse em relação ao feminino entrou em voga. A psicanálise, a literatura, a lingüística e, principalmente, a antropologia foram importantes para os estudos sobre as mulheres (SOIHET, 1997: 278).

Não podemos negligenciar a influência dos movimentos feministas, para a concretização das linhas de pesquisas sobre as mulheres. De acordo com Rachel Soihet, as reivindicações em prol das mulheres iniciaram nos Estados Unidos e logo se espalharam no mundo. Tais reivindicações mostraram a necessidade de adquirir informações, pelos estudantes, sobre os debates que estavam ocorrendo. Nesse momento, professores se uniram, propondo a instauração de cursos nas universidades empenhados nos estudos sobre as mulheres. De acordo com a autora, na França, Inglaterra e Estados Unidos foram criados cursos, colóquios e grupos de reflexão sobre o tema, ainda na década de 1960. No Brasil, tais idéias chegaram por volta da década de 1970 (SOIHET, 1997: 276-277).

Escravos

A partir dos anos 1970, e principalmente da década de 1980, surgiram estudos no Brasil que, em contraposição àqueles que deram ênfase às mudanças estruturais para explicar o processo de abolição da escravidão6, procuraram enfatizar as ações políticas dos sujeitos históricos em suas negociações e estratégias cotidianas, e não apenas as formas institucionalizadas de luta7.

Este deslocamento de enfoque guarda relação com o “grande impulso sofrido pela história social no Brasil dos anos 70 para a frente que, por sua vez, abrigou a curiosidade dos estudiosos pelos marginalizados” (QUEIROZ, 1987: 16). Nesse sentido, esta vertente historiográfica que confere maior atenção aos sujeitos históricos “também expressa as amplas tendências internacionais dos estudos da escravidão, bem como as tendências gerais dentro da disciplina da história” (SCHWARTZ, 2001: 27).

A história passava, neste momento, por uma “mutação maior que é o apagamento dos modelos de compreensão” – dentre eles, o paradigma estruturalista – que tinham sido aceitos pela maioria dos historiadores a partir de 1960. A partir das décadas de 1970 e 1980 “os historiadores quiseram restaurar o papel dos indivíduos na construção dos laços sociais” (CHARTIER, 2002: 82-84).

No entanto, se os estudos históricos guardam relação com estas tendências gerais pela qual passava a disciplina história, eles não são meros reflexos desta “mutação maior”. Em outras palavras, é necessário ressaltar que nem todos os

6 Essa vertente estruturalista se situa no contexto historiográfico mais amplo do final da década de 1950 e da década de 1960, no qual houve um grande interesse pelos estudos sobre a escravidão. Sobre esta e outras vertentes historiográficas, ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Op. Cit..7 Dentre os estudiosos que desenvolveram estudos nessa direção, podemos citar, dentre outros: AZEVEDO, Célia. Op. Cit.; CHALHOUB, Sidney. Op. Cit.

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estudiosos deixaram de se concentrar nas explicações estruturais e passaram a abordar a ação dos sujeitos históricos, pelo contrário, esta última tendência não é bem recebida por alguns acadêmicos.8

Imprensa

A professora Constância Lima Duarte conclui um de seus artigos afirmando que a imprensa teve papel fundamental na “formação de consciências” e como “testemunha” das mudanças ocorridas na vida das mulheres, de fins do século XIX (DUARTE,1999:430). Segundo Jonas Marçal de Queiroz, “os jornais se constituem numa fonte importante para compreendermos as repercussões das atitudes de protesto dos escravos”, no entanto “requerem certos cuidados por tratar-se de empresas organizadas com o objetivo de expressar os interesses e a visão de mundo dos grupos dominantes” (QUEIROZ, 2008: 36-37). Porém, a nosso ver, nem sempre os estudiosos perceberam a relevância da imprensa para a produção de conhecimento, bem como não se atentaram para os cuidados que esta fonte demanda.

De acordo com Tânia Regina de Luca, até a década de 1970, ainda eram escassas no Brasil as pesquisas que utilizavam os jornais e revistas como fonte para produzir conhecimento histórico. Entretanto, a imprensa era um campo valorizado, assim, era comum escrever “História da imprensa”, mas não escrever “História por meio da imprensa”. Desta forma, os impressos só foram utilizados com credibilidade nos trabalhos de história após a terceira geração dos Annales e a mudança de concepção de documento proposta por Jacques Le Goff. Ainda assim, lançar mão da imprensa como fonte para o conhecimento histórico gerou alguns equívocos nos procedimentos do historiador, como encarar os periódicos como meros receptáculos de informações a serem selecionados, nos quais o pesquisador extraía da fonte o que ele quisesse confirmar, ou seja, a imprensa era utilizada para complementar informações, quando outras fontes não supriam as necessidades do historiador (LUCA, 2005: 111-116). Nesse trabalho, a imprensa é nossa fonte principal de análise, ou seja, não a utilizamos com o intuito de complementar informações colhidas em fontes de outra natureza.

A maioria dos jornais publicados nas últimas décadas do século XIX, apesar de às vezes reivindicarem ser órgãos neutros, estavam vinculados a algum partido ou facção política. Tendo isso em vista, consideramos que os jornais “requerem um extremo cuidado ao serem compulsados”. Referimo-nos aos “procedimentos básicos que o pesquisador deve adotar para melhor aproveitar as qualidades do material que dispõe”, dentre os quais destacamos a importância de conhecer a posição política do jornal e de confrontar conteúdos de dois ou mais jornais, principalmente entre jornais vinculados a partidos diferentes (QUEIROZ, 1995: 10). É justamente desta questão que trataremos a seguir, no sentido de demonstrar a aplicação de dois procedimentos metodológicos na análise da posição assumida por periódicos em situações concreta.

8 Ver, por exemplo: CARDOSO, Ciro F. Op. Cit.

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Representação

Segundo Roger Chartier, as representações se constituem em uma área de formulações mentais e de atitudes baseadas nas vivências dos grupos que as forjam na sociedade (CHARTIER, s/d: 17). Desta forma, as representações nos oferecem muito sobre a visão que alguns agentes, em determinado momento histórico, constroem sobre si mesmos, sobre os grupos com os quais dialogam e sobre a sociedade em que vivem.

A título de exemplo, observe as representações formuladas no seguinte trecho:

Incontestavelmente é tristissimo o papel da mulher brazileira, quando se entrega ao cultivo das letras; ella é olhada com certa desconfiança; fallam de suas produções com ironia; fazem pouco de seu pensar, zombam das suas mais innocentes palavras; julgam-na incapaz até de por algum momento ter um pensamento serio, e, o que é peior, seu proprio esposo muitas vezes julga-a sem capacidade para confiar-lhe qualquer de seu s negocios, de cujos resultados máus ou bons dependem a sua felicidade e a de seus filhos! (...)Os homens não querem dar ao trabalho de discutir com ella os negocios de importancia, porque consideram-na insufficiente e arreceam-se de receber em resposta essas futilidades que por ahi abundam.(...)Mas tudo isto, digamos com franqueza, é resultado da nossa educação; não depende certamente do organismo da mulher. (...)9

Nessa parte do artigo publicado por D.P.10, percebemos a construção de duas representações femininas. A primeira refere-se à representação que os homens construíam sobre as mulheres, na qual o sexo feminino era por “natureza” inferior intelectualmente, por isso devia se limitar às atividades domésticas, deixando para o sexo masculino as produções literárias e os negócios da família. A segunda representação se apresentou enquanto resistência, ao argumentar que a ignorância da mulher em relação aos negócios da família, e talvez a qualidade inferior de suas produções literárias, não eram frutos de uma “natureza feminina”, mas resultado da falta de instrução.

Esse é apenas um breve exemplo das representações femininas que homens e mulheres veicularam na imprensa em fins do século XIX. Num trabalho mais amplo, observamos que determinados grupos ou indivíduos formulavam representações sobre as mulheres, de acordo com suas concepções e interesses. Porém, vale ressaltar que em nenhum grupo – seja político, religioso, de um órgão da imprensa ou de acordo com o sexo – possuíam caráter homogêneo. Por exemplo, alguns homens defenderam as capacidades intelectuais das mulheres e sua participação na esfera pública, outros repudiavam completamente seus dotes intelectuais e o rompimento da esfera do lar. No caso das mulheres o mesmo ocorria, havia mulheres que possuíam visível militância em seus escritos e outras que eram indiferentes

9 D.P. A educação da mulher. A Provincia de São Paulo, São Paulo, 23/01/1876, seção Questões Sociaes, p.1-2.10 Sugerimos ser Damiana Pestana, mulher de Rangel Pestana – um dos proprietários do jornal A Província de São Paulo – , os quais eram donos de um colégio para moças em São Paulo.

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(e até mesmo repudiavam) as idéias emancipadoras e a ampliação das atividades femininas (SOUTO, 2009:62).

Portanto, analisar “representações” em materiais cujo objetivo é transmitir informações – mas também concepções de mundo – é um trabalho fundamental, porém, ao mesmo tempo, delicado. As representações são importantes, pois através das mesmas podemos perceber idéias compartilhadas por determinados grupos. Tais concepções, ao circularem pela imprensa, podem construir o imaginário de uma época, mas também gerar resistências, e conseqüentemente, a formulação de novas representações. Portanto, para o pesquisador perceber o jogo de representações, através da imprensa, é preciso realizar leituras minuciosas de certa rede de periódicos.

Talvez, o maior desafio de se trabalhar as representações seja a dificuldade de encontrarmos representações homogêneas, ou seja, mesmo dentro de um grupo – gênero, raça, classe, periódico – encontramos formulações mentais variadas. Entretanto, é possível mapear blocos de representações que se comunicam ou se opõem. Desta forma, o historiador consegue perceber a construção do imaginário sobre um objeto, em determinada época, utilizando o conceito de “representações”.

A dialogicidade do discurso

O conceito de dialogicidade, desenvolvido por Mikhail Bakhtin, pode ser um referencial metodológico muito rico para aqueles que trabalham com a imprensa. De acordo com este autor, o discurso não se contrapõe apenas ao seu objeto. Existem entre ambos, discursos de outrem, ou seja, discursos “alheios” sobre o mesmo objeto e sobre o mesmo tema. Assim, orientado para o seu objeto, o discurso penetra num “meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações”, entrelaçando-se com eles em “interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros”. Enunciado num dado momento social e histórico, “o discurso não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social” (BAKHTIN, 1998: 86).

Tendo isso em vista, faremos referência a partir de agora à discursos veiculados em dois jornais publicados na segunda metade do século XIX, a fim de que possamos demonstrar a importância de tal fundamentação metodológica ao se trabalhar com a imprensa.

No dia 15 de dezembro de 1887, o Jornal do Commercio publicou, na seção intitulada “Publicação a Pedidos”, um editorial do jornal Novidades,11 no qual o redator não se limitou a tratar das supostas fugas dos escravos, mas através dela aproveitou para criticar os abolicionistas e elogiar a intervenção do governo no sentido de manter a ordem pública. Neste mesmo dia em que foi publicado este editorial do jornal Novidades na “Publicação a Pedido”, o tema da fuga de escravos

11 SUBLEVAÇÃO de escravos. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15/12/1887, seção Publicações a Pedido, p. 4.

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foi abordado nas seções “Telegrammas”12 e “Gazetilha”13 do mesmo jornal. Desse modo, nos parece que havia certa interligação, em uma mesma edição do jornal, de conteúdos de diferentes seções, de modo a se complementar, reforçando o seu discurso e legitimando as medidas que se pretendiam que fossem tomadas. Além disso, a questão parece não envolver apenas um conflito entre senhores e escravos, mas sim disputas entre diferentes personagens e diversos interesses.

Fundamentando-nos no conceito de dialogicidade, concebemos que os discursos veiculados pelos jornais não se referem apenas ao seu objeto, mas se contrapõe também a outros discursos. Sendo assim, é interessante observarmos o que outro jornal tem a dizer acerca do tema da fuga de escravos.

O jornal A Provincia de São Paulo, nos dois últimos meses de 1887,14 publicou editoriais e artigos nos quais se notam diferenças significativas em relação àqueles do Jornal do Commercio, pois procura chamar a atenção para questões como: o fato de a notícia do levante de escravos coincidir com a luta eleitoral, o abandono do governo, o caráter pacífico das fugas etc. Não queremos com isso sugerir que as informações do primeiro jornal são mais verdadeiras que as do segundo, tirando conclusões extra-discursivas sem os devidos cuidados metodológicos, mas chamar atenção para o fato de que as supostas fugas dos escravos podem servir a diferentes finalidades por parte imprensa, não sendo adequado privilegiar uma destas versões em detrimento da outra, mas sim tentar compreendê-las a partir dos diferentes interesses envolvidos na questão.

Cabe observar que no próprio Jornal do Commercio, no dia 17 de dezembro de 1887,15 ou seja, dois dias após a publicação do editorial do Novidades, foi publicado, na seção “Publicações a Pedido”, um artigo do Liberal Paulista, em que se coloca em questão a própria veracidade das informações acerca das revoltas de escravos, afirmando-se que as “imaginarias revoltas de escravos” coincidiriam sempre com as batalhas eleitorais, fazendo parte, assim, de um “plano politico”. É possível perceber que as questões sociais e as políticas não aparecem dissociadas, talvez porque assim como o regime de trabalho, o destino político do Brasil também estava em pauta. Desse modo, parece que o processo da Abolição não se refere unicamente a um conflito travado entre dois setores da sociedade, senhores e escravos, mas também à divisões intra-classes.

Estes artigos permitem que chamemos a atenção para o risco de se estabelecer uma “identificação imediata e linear entre a narração do acontecimento e o próprio acontecimento, questão, aliás, que está longe de ser exclusiva do texto da imprensa”(LUCA, 2006: 139). Em outras palavras, estes artigos são indícios do quanto seria equivocado, em termos metodológicos, nos limitarmos a registrar a ocorrência das revoltas de escravos, sem fazermos uma análise mais cuidadosa do

12 S. PAULO, 14 de Dezembro. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15/12/1887, seção Telegrammas, p.2.13 PROVINCIA de S. Paulo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15/12/1887, seção Gazetilha, p. 2.14 Ver, por exemplo: LEVAM máu rumo....A Provincia de São Paulo, São Paulo, 13/12/1887, seção A Provincia de São Paulo, p. 1; OS ABOLICIONISTAS e Jacarehy.A Provincia de São Paulo, São Paulo, 06/12/1887, seção A Provincia de São Paulo, p. 1; A FUGA de escravos e o governo. A Provincia de São Paulo, São Paulo, 30/11/1887, Secção Livre, p.2.15 O SENADOR Prado e a emancipação. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 17/12/1887, seção Publicações a Pedido, p. 4.

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papel desempenhado pela imprensa nos processos históricos no qual está inserida, pois correríamos o risco de utilizá-la meramente como um veículo imparcial de transmissão de informações a serem transformadas em teses historiográficas.16 Desse modo, percebemos que é preciso estar atentos para que o conhecimento histórico que produzimos não reproduza apenas uma versão acerca do objeto estudado, ao tomar os artigos publicados em um determinado jornal como um texto meramente informativo. A nosso ver, devemos tentar apreender os múltiplos discursos acerca do mesmo objeto, bem como o conflito de interesses nos quais se inserem, tendo em vista a dimensão política dos discursos veiculados na imprensa.

Considerações Finais

Nessa apresentação em parceria, os dois autores tentaram convergir suas experiências de pesquisa, com o intuito de trazer à tona a riqueza do uso da imprensa enquanto fonte para a construção de conhecimento sobre determinado período. Buscamos ressaltar a relevância de dois conceitos que achamos fundamentais na utilização de nossa documentação: representação e dialogicidade.

A imprensa participou ativamente dos debates sobre o processo de abolição, mantendo diálogo entre si, pois era comum um artigo caracterizar-se como resposta a outro, ou seja, a leitura de discursos publicados em um jornal estimulava a produção de discursos em outro jornal. Ao que parece, os discursos sobre o tema da “rebeldia dos escravos”– que foram utilizados por estudos historiográficos para sustentar teses de que os escravos foram os sujeitos históricos da abolição – mereceu espaço nos jornais não em função da preocupação em manter os leitores informados sobre o fenômeno, mas devido ao fato de ser uma boa oportunidade de fazer política, tirando proveitos da sua discussão, tendo em vista as disputas político-partidárias.

A imprensa também foi elemento ativo na construção de representações femininas, pois homens e mulheres oitocentistas veicularam suas idéias em artigos, crônicas e folhetins. Desta forma, os periódicos foram um dos responsáveis por divulgar modelos ideais sobre as mulheres no século XIX. Esses modelos foram recebidos de forma variada pelos homens e mulheres leitores e colaboradores de jornais. Alguns grupos reforçavam as representações do ideal burguês de mulher. Entretanto, esse discurso impresso também deu espaço para a resistência.

Portanto, as redes jornalísticas mantiveram um intenso diálogo, criando uma intrincada rede de discursos capaz de veicular idéias e representações convergentes e divergentes, formulando e reformulando o imaginário social do século XIX.

16 Referimo-nos aqui ao risco de uma integração entre o discurso produzido na época e o conhecimento histórico, numa espécie de “diálogo convergente”. Sobre esta questão ver: JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Op. Cit.. p. 121.

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Bibliografia

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BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. Trad. De Aurora Fornoni Bernadini e outros. 4. ed., São Paulo: Hucitec, 1998.

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A história entre narrativa e acontecimento. In: À Beira da Falésia. A história entre certezas e inquietudes. Trad. de Patrícia C. Ramos. Por to Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

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JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O Diálogo convergente: políticos e historiadores no início da República. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.

LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

QUEIROZ, Jonas Marçal de. Da Senzala à República: Tensões Sociais e Disputas Partidárias em São Paulo (1869-1889). Campinas: IFCH/UNICAMP, 1995. (Dissertação de Mestrado).

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Escravidão, crime e poder: a “rebeldia negra” e o processo político da abolição, Revista de História Regional, 13(2): Inverno, 2008.QUEIROZ, Suely Robles Reis de. “Rebeldia Escrava e Historiografia”, Estudos Econômicos, v. 17, no especial, pp. 7-35, São Paulo, 1987.

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SOUTO, Bárbara Figueiredo. Feminismo tipográfico, identidades e representações: a mulher na imprensa de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro (1870-1890). Monografia de conclusão de curso, apresentada no Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa, no dia 10 de dezembro de 2009.

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Dote, Relações Matrimoniais e Alianças Familiares em Guarapiranga

(1780- 1880) Débora Cristina Alves

Resumo: Com base na história social e na demografia histórica, o presente projeto analisou o processo sucessório de herança e partilha na região de Guarapiranga, enfatizando a relevância e o processo de concessão de dotes pelas famílias da região. Abalizado nos inventários post-mortem localizados na Casa Setecentista de Mariana o trabalho procurou compreender o privilégio dado as filhas em detrimento dos filhos na partilha dos bens. Conceder dote às filhas em vias de contrair matrimônio era a postura comumente utilizada pelos pais para escolher os genros adequados. Com a finalidade de manter e/ou ampliar os bens materiais da família, os pais definiam os cônjuges de suas filhas, que eram em sua maioria, portugueses, membros de outras famílias de elite ou parentes próximos. O interesse primordial era fixar arranjos matrimoniais vantajosos para os dois lados. Desta forma, ao adiantar as filhas o futuro quinhão a ser recebido na herança, o dote representou a forma inigualitária do sistema de partilha e sucessão da sociedade mineira.

Palavras-chave: dote, padrões de herança e alianças matrimoniais.

Introdução

Nos últimos anos tem havido crescente reconhecimento dado a historiografia mineira e, particularmente, à área de estudos da família e a demografia histórica. O presente projeto baseado em inventários post-mortem da região de Guarapiranga do período de 1780 a 1880, aos quais arrolam detalhadamente os bens materiais do indivíduo e de sua família, presentes nos cartórios do 1º. e 2º. Ofício da Casa Setecentista de Mariana, o trabalho analisou as redes sociais, de sucessão e herança da região, especificando a relevância do dote como partícipe da divisão iniguilatária característica dessa sociedade.

Desde 2008 quando o projeto Redes Sociais, Sucessão e Herança em Guarapiranga foi aprovado foram identificados 624 inventários pertencentes à região de Guarapiranga nos Cartórios do 1º. e 2º. Ofício da CSM, entre 1716 e 1850. A partir de 1841, quando se cria a Vila e Comarca de Piranga, escasseiam os inventários da região no acervo da CSM. Cerca de 80% dos inventários foram digitalizados até o momento, e passaram a constituir um enorme banco de imagens.

Dentre os inventários digitalizados, transcritos e não-transcritos, foram identificados no período de 1780 a 1840, 47 inventários que foi concedido dotes. Com base nos mesmos e na metodologia aplicada à demografia histórica e história

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social, o projeto procurou compreender o papel do dote na relação familiar e social da elite regional. Os regulamentos expressos nas Ordenações do Reino de Portugal, estabeleceram que o sistema de heranças deveria ser igualitário entre todos os filhos, excetuando o sistema de morgadio, onde só o herdava o filho mais velho (Bacellar, 1997). Com a análise dos inventários, pode-se perceber que a região de Guarapiranga, assim como outras regiões brasileiras, se diferenciava de Portugal, já que possuía um sistema inigualitário de heranças, expresso de forma contundente na dotação das filhas em vias de contrair matrimônio.

O dote, então, considerado como um sistema de privilégios demonstra o papel central do genro dentro das estratégias familiares, voltado sempre para a manutenção da integridade da propriedade fundiária. Os cônjuges, em sua grande maioria, eram portugueses ou parentes próximos que consolidavam trocas matrimoniais vantajosas ou a manutenção das fortunas e do “sangue”.

Desenvolvimento

Com base nas teorias de demografia histórica e história social, o presente trabalho se atém a compreender as estratégias de alianças matrimoniais e sucessão hereditária através da prática de concessão de dotes, da região de Guarapiranga no período de 1780 a 1880. Fundamentado em uma base de aproximadamente 19 inventários post-mortem e testamentos localizados na Casa Setecentista de Mariana, que arrolam detalhadamente bens, objetos, escravaria e bens dotais de uma parcela da população dessa região, o trabalho analisa como se processa o padrão de transmissão de herança e se há divergência entre herança e sucessão.

A concessão de dotes, como ressalta Muriel Nazzari foi uma prática constante desde o século XVII e eram, em sua grande maioria, conferidas às filhas em vias de contrair matrimônio. Geralmente os bens destinados ao dote se distinguiam em escravos, roupas, móveis, imóveis e algumas vezes moedas. O escravo era o bem mais valorizado, pois representava uma respeitável reserva de capital e permitia um deslocamento geográfico por parte do seu novo proprietário. Dessa forma, destinar escravos para o dote era uma prática definidora do status social, pois delimitava o grupo de proprietários ricos o bastante para dotar seus filhos com um bem tão precioso. (Bacellar, 1997).

Os dotes eram repassados às filhas como meio de impulsioná-las em suas vidas independentes e também servir de atrativo aos futuros pretendentes. Mas o dote não era exclusividade feminina, muitos pais dotaram seus filhos como meio de “adiantar” o futuro quinhão a ser recebido ou para compeli-los a se tornarem futuros padres. (Bacellar, 1997). Entre os inventários analisados pode-se perceber certa freqüência na dotação aos porvindouros clérigos, como por exemplo, no inventário de 1787 de Manoel Leitão de Almeida17 em que ele doa determinados bens ao filho:

17 ACSM, 2 ofício, 75, 1626.

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Declarou ella inventariante que ella / com o dito seu marido doarão ao coher/deiro Padre Bento Leitão de Almei/da para este se ordenar hua terras com / Mattas virgens e capoeiras citas nas / Margens de [ilegível] Xopotó e dous escra/vos por nomes Caetano e Domingos e / hum Cavallo sellado e emfreyado. (ACSM, 2 ofício, 75, 1626, p. 16)

Na pesquisa realizada por Muriel Nazzari ela afi rma que os dotes concedidos em São Paulo se diferenciavam entre os que continham meios de produção e meios de consumo. Terras agrícolas, ferramentas, maquinaria, gado e mulas eram considerados como meios de produção. Já casa, enxoval de noiva e jóias eram meios de consumo, que geralmente eram vendidos para obtenção de dinheiro. Os escravos eram classifi cados como meio de produção ou, quando prestavam serviços domésticos a seus donos, como facilitadores do consumo destes. (Nazzari, 2001)

Gráfi co 1 Composição dos dotes – de 1780 a 1840(Dos 47 inventários, 38 deles possuem dotação e 79 indivíduos no total

receberam dote)

Fonte: Inventários post mortem, Casa Setecentista de Mariana

No gráfi co acima é possível observar que dentre os inventários analisados os escravos eram o item predominante dos bens dotados, seguido por dinheiro, terras e animais, considerados pela historiografi a como bens de produção. Os bens considerados de consumo, tais como jóias, enxoval e ouro são doados em menor escala em Guarapiranga. Assim, nesta região predominava o interesse dos pais em manter ou ampliar as riquezas produtivas do porvindouro casal. A preocupação se mantinha então, no marido, ao qual controlaria e conservaria os bens recebidos.

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O escravo assim como em São Paulo também era em Guarapiranga o bem mais importante dos componentes que eram doados às nubentes. Nas palavras de Bacellar, “o escravo era talvez a forma mais natural, prática e valorizada, dentro dos quadros do sistema, de se apoiar o esforço do fi lho ou do genro que buscava se estabelecer com sua recém-formada família”. (Bacellar, 1997, Apud Brugger, 2007)

Gráfi co 2Escravos concedidos ao dote, por gênero e idade no período de 1780 a 1840(Dos 47 inventários, 38 deles possuem dotação e 79 indivíduos no total

receberam dote)

Fonte: Inventários post mortem, Casa Setecentista de Mariana

Ao analisar o gráfi co é possível perceber que o número de escravas dadas em dote é maior que o número de escravos. Em seu trabalho Nazzari afi rma que os escravos doados “podem também ser classifi cados ou como meio de produção ou, quando prestam serviços domésticos a seus donos, como facilitadores do consumo destes”. (Nazzari, 2001) Para a autora, incluir no dote uma escrava, era dar a mulher o controle do bem recebido, tal como doar jóias ou enxoval. Ressalta, ainda que a composição dos dotes ao longo do tempo se modifi cou de bens de produção para os de consumo. (Nazzari, 2001)

Para Guarapiranga, entretanto, tal conclusão não é válida, já que os meios de produção ainda eram peremptórios, apesar do número de escravas e crianças serem predominantes nas doações. É importante ressaltar, então que mesmo sendo consideradas de melhor valor, as escravas e crianças, poderiam sim ser consideradas como bens de produção.

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Grafi co 3Composição dos Plantéis Escravos, Guarapiranga, 1740-1888

Fonte: Inventários post-mortem, Casa Setecentista de Mariana.

Ao comparar o gráfi co 2 com o gráfi co 3 é possível perceber que o número de escravos com menos de 15 anos na região de Guarapiranga foi crescendo continuadamente ao longo do anos, o que sugere que a reprodução natural desses indivíduos era frequente nos plantéis. Assim, as escravas e crianças doadas em dote provavelmente advêm das famílias escravas que eram constituídas no seio desses plantéis. Pode-se propor, então, que havia uma ligação direta entre as famílias escravas e as famílias de elite.

O que não exclui do arranjo matrimonial a doação de jóias e enxovais.No inventário de Catarina Martins Campos18 do ano de 1821, esta dota suas fi lhas com escravos, jóias e enxoval:

Declarou elle inventariante que quan/do se casou a herdeira Dona Anna/ com o Alferes Manoel Joze Coelho fora/ dotada por Juiz de Pais com João Bengue/la em cento e vinte e mil reis Maria ben/guella em setenta e seis mil reis hú laço / e brincos de ouro em desenove mil e dusentos/ hú par de fi vellas de prata em quatro mil / e oito centos reis, enxoval em quatorze mil / e quatro centos reis que tudo formou dusen/tos e trinta e quatro mil reis. (ACSM, 1 ofício, 76, 1627, p. 21)

18 ACSM, 1 ofício, 76, 1627

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Nazzari em sua pesquisa observa que nos séculos XVII e XVIII a prática de dotar as filhas com o enxoval era frequente, o que não ocorre no século XIX. Para a autora este item não desapareceu por completo neste século, ao contrário, ele teria se tornado um bem equivalente a outras despesas envolvidas na criação dos filhos, tais como as relativas à educação. (Nazzari, 2001)

Não se pode, porém, aferir tal conclusão para a região de Guarapiranga, já que casos de dotes que são doados enxovais são raros nessa sociedade. Entretanto, é importante ressaltar que os únicos dois casos encontrados até o presente momento em que há doação de enxoval, ao contrário de São Paulo, ocorrem no século XIX.

Entre os bens que eram frequentemente doados a terra, como já foi ressaltado por Nazzari, favorecia um maior controle da família da noiva sobre o estabelecimento do novo casal e sob certa medida, impedia a dissolução das grandes propriedades territoriais.

Como já foi ressaltado satisfatoriamente pela historiografia, os casamentos como bem se sabe eram arranjados pelas famílias, de modo a resguardar e/ou estender suas fortunas e prestígio social e econômico. Os dotes, então, eram um dos meios salvaguardados pela elite para adquirir às filhas um “bom” casamento. Como ressalta Nazzari, o matrimônio era arranjado não só pelo pai da noiva, mas por ambos os genitores. As famílias de elite jamais iam para o casamento de suas filhas de mão abanando (Nazzari, 2001). Em alguns casos, porém, os pais não eram os únicos a imporem o casamento; a família como um todo se envolvia na questão. Em Guarapiranga, por exemplo, Francisco Dias dos Anjos19 ao morrer sem herdeiros diretos, deixa especificado em seu inventário que sua afilhada Maria Antônia só receberia a herança a ela concedida, caso se casasse com o pretendente imposto por seus pais:

E com / maior coantidade e a ditta munha afi/lhada Maria Antonia na ditta erança bem / entendido nalguma destas erdeiras casara / com pessoa di igual, ou contra a vontade / de seus Pais, ou quem as dominar quero / que não tinha parte nesta herança, so / serão herdeiras ou obdientes, e que não [?/]

Os casamentos arranjados, como já foi enfatizado, estabelecia alianças matrimoniais que favoreciam ambas as famílias. Essas coligações geralmente ocorriam entre membros de uma mesma família, no intuito de preservar os bens materiais existentes ou entre indivíduos de duas famílias. Como ressalta Bacellar (1997) existiam dois tipos de trocas matrimoniais: as unilaterais e as bilaterais. As primeiras ocorriam quando dois ou mais irmãos casavam-se com duas ou mais irmãs. Um lado só cedia os homens e o outro cedia as mulheres. Nas trocas bilaterais são aquelas em que haviam reciprocidade: um homem e uma mulher, irmãos entre si, casavam-se, respectivamente, com uma mulher e um homem igualmente irmãos entre si. Tais fatos tão característicos para a sociedade brasileira em geral, também foi

19 ACSM, 2 ofício, 59, 1337 (de 1821).

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evidente na sociedade de Guarapiranga. Duas das famílias mais importantes dessa sociedade os Gomes Sande e os Badaró se vincularam em uniões unilaterais. Os filhos de Antônio Pedro Vidigal de Barros com Francisca Cândida Oliveira Sande e Tereza Altina Sande se casam respectivamente com as filhas de Francisca Candida Lima Duarte Badaró e Francisco Coelho Duarte Badaró20, ampliando e sustentando uma das mais importantes alianças matrimoniais da região.

Outra característica predominante na composição dos dotes foi o caráter inigualitário da divisão de heranças, fator já ressaltado por Silvia Maria Jardim Brugger, Sheila de Castro Faria, Carlos Prado Bacellar, dentre outros.

Como ressalta Brugger, o dote se tornaria efetivamente um poderoso mecanismo de privilégio de determinados filhos. (Brugger, 2007) Tal atributo não foi exclusividade da região estudada por Brugger. Em Guarapiranga pode-se notar com clareza que a divisão de herança era um processo desigual entre todos os filhos ou até mesmo entre as filhas dotadas, como se observa no inventário de Antonio da Silveira Gomes21 de 1803.

Declarou mais a dita viúva que jun/ta com seo marido dotarão a herdeira/ Joanna para se casar com Paulo Jorge/ de Miranda com secenta e tres mil sete /Sete cento e cinco reis em dinheiro e com / dous escravos [Aniceta] Crioula que foi avalia/da pellos louvados do inventario em seten/ta mil reis e Maria Crioula tão bem a/valiada em setenta mil reis que tudo / emporta em dusentos e tres mil sete cen/tos e cinco reis com que a Marge sahe. Declarou mais a dita viúva que ella e seo falescido marido dotarão a herdei/ra Anna Roza para se casar com Ber/nardino Jose Alves Gondim com dous / escravos Joaquim Antonio Crioulo que / foi avaliado pellos louvados do inven/tario em oitenta mil reis e Domin/gas Crioula em quarenta mil reis e am/bos em cento e vinte mil reis e sahe. (ACSM, 1 ofício, 85, 1803, p.08 e 09)

Ao contemplar os casos supracitados compreende-se nitidamente que a herdeira

Joanna foi privilegiada em detrimento à sua irmã Anna Roza. O que se pergunta é quais foram os fatores que levaram esse pai a privilegiar uma de suas filhas? Talvez o genro Paulo Jorge de Miranda no mercado matrimonial teria mais valor, pois possuiria mais posses e, consequentemente, descenderia de uma família importante, ou manteria algum cargo de alto escalão para a sociedade da época ou até mesmo pelo simples fato de ser português, já que no período procurava-se “embranquiçar” a população brasileira. Mas todas essas respostas são hipóteses que podem ou não serem confirmadas através da análise dos inventários dessas filhas e desses genros com a interlocução de outras fontes, tais como as dispensas matrimoniais e/ou listas nominativas.

Desta forma, as uniões matrimoniais do período analisado não só eram pré-determinadas como selavam alianças entre grupos familiares que tinham algo a oferecer, reciprocamente, fosse prestígio social, riqueza, acesso a redes de poder, entre outras tantas possibilidades. Os casamentos também em sua grande maioria

20 Com base nos inventários post-mortem da Casa Setecentista de Mariana.21 ACSM, 1 ofício, 85, 1803.

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eram realizados entre parentes, ampliando e fortalecendo as alianças matrimoniais e mantendo em família os bens patrimoniais e as riquezas adquiridas. (Brugger, 2007)

Portanto, com os dados fornecidos até então se pode concluir que a região de Guarapiranga não se diferencia em larga escala de outras regiões brasileiras no que se refere aos padrões de herança e alianças matrimoniais. Entretanto, a base de inventários analisados tendem a aumentar e outras hipóteses e conclusões podem ser obtidas.

Por enquanto, o que se sabe é que o dote era um dos meios mais recorrentes daquela sociedade para aumentar os laços parentais e favorecer as redes sociais tão importantes para a manutenção da ordem agrária.

Bibliografia

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistemas sucessórios entre os senhores de engenho do Oeste Paulista, 1765-1855. Campinas: Centro de Memória-Unicamp, 1997.

BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: Família e Sociedade, São João Del Rei, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2007.

FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600 – 1900. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Campanhia das Letras, 2001.

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As relações estabelecidas, por meio de redes sociais, entre migrantes e remanescentes da Microrregião da Zona da Mata de Viçosa e mudanças sociais e

econômicas nesta localidade.22

Eduardo Filipe de Resende

Introdução

As migrações internas ocorridas no Brasil entre as décadas de 1930 a 1970, devido ao êxodo rural e ao acelerado processo de urbanização, foram alvo de um intenso interesse e de uma considerável bibliografia acerca de como e por que as pessoas migraram, além das conseqüências destes deslocamentos populacionais para as regiões receptoras. O presente texto redireciona o foco dessa análise para as regiões que perderam população, mais especificamente, para os municípios da microrregião da Zona da Mata de Viçosa23, do começo de 1960 até o final da década de 1970, uma vez que este trabalho tem por objetivo principal compreender como as relações que os migrantes mantiveram com os indivíduos que permaneceram na região e com a própria localidade podem ter causado mudanças sociais e econômicas nesta, além do que representou tal processo para quem, de algum modo, esteve envolvido neste. Para tanto, este trabalho faz uso da noção de redes e do emprego da história oral.

Pelo fato de nossa pesquisa ainda estar em andamento e termos apenas resultados parciais a respeito da temática por nos estudada não faremos neste texto um apanhado geral sobre este assunto e sim teremos nosso foco as situações que envolvam as redes entre os migrantes e a localidade de origem.

As motivações para migrar

Primeiramente iremos dissertar a propósito das diferentes concepções a respeito de quais seriam as motivações para migrar.

Para discutirmos sobre como e porque as pessoas adquirem a vontade de migrar começaremos por Itamar de Souza que apresenta uma idéia, que apesar de parecer simplista, faz muito sentido, e esta, de certa maneira, presente em todos os autores trabalhados neste texto. A idéia de que, na opinião dessas populações migrantes, partir é melhor que ficar. Como se pode ver em:

22 Este trabalho é fruto de uma bolsa de iniciação cientifica patrocinada pela FAPEMIG e orientada pelo professor Douglas Mansur da Silva. 23 A Micro Região da Mata de Viçosa corresponde a uma das microrregiões da Zona da Mata Mineira.

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Sair do meio social de origem é a idéia dominante desta ideologia, cujos grupos sociais que a aceitam, agem na certeza de que ¨sair é melhor”. O sucesso dos que já foram tem uma força de persuasão superior ao fracasso dos que regressaram derrotados24. (SUUZA, 1980, p37.)

A idéia de que os migrantes acreditavam em uma vida melhor no lugar de destino, também é percebida em João M. Cardoso de Mello e Fernando A. Novais, quando estes se referem à migração do campo para a cidade, como é explicitado em:

A vida da cidade atrai e fixa porque oferece melhores oportunidades e acesso a um futuro de progresso individual, mas também, porque é considerada uma forma superior de existência. A vida no campo , ao contrário, repele e expulsa. (MELLO, 1998, p.574-586.)

Fontes (FONTES, 2008, p.43) faz observações interessantes, somando a nossa discussão outros dois argumentos que podemos entendê-los, se assim podemos dizer, como aprovadores e incentivadores da migração. O primeiro é de que a partir de 1930 houve em São Paulo uma política oficial que incentivava a migração de nordestinos.O segundo é de que, segundo Fontes (FONTES, 2008, p.27), nos anos de 1950 e 1960 houve uma série de trabalhos a respeito das mudanças que o país estava sofrendo desde a década 1930, entre estas o grande número de pessoas que estavam migrando das zonas rurais para as urbanas. Este autor argumenta que estes estudos transmitem uma concepção de que estes indivíduos estariam passando para um estagio superior de vida, em poucos dias transpondo várias épocas de “evolução social”, deste modo estes autores estariam reforçando o estigma de uma sociedade rural atrasada e de certo modo inferior em contra posição a uma sociedade urbana, se assim podemos, dizer “superior e civilizada”.

Algo que não poderíamos deixar de comentar é que em todos os demais estudos por nós analisados, este raciocínio é presente, mas são, segundo seus autores, os próprios migrantes e a sociedade que os circundam que o defende e não os estudiosos do tema, tal como estes autores citados por Fontes.

Pode-se perceber no trabalho de Eunice R. Durham (DURHAM, 1984, p 222.), apesar de esta autora concordar com o argumento no qual os migrantes acreditavam que estavam realizando uma ação que os traria benefícios, há uma singularidade interessante, Durham diferencia e coloca sobre patamares distintos as forças que atraem os migrantes ao seu destino e as que os levam a sair de seu local de origem. Sua argumentação, referindo-se especificamente aos migrantes de origem rural, é de que o meio urbano, mesmo oferecendo benefícios, muitas vezes é hostil aos migrantes. Deste modo, os benefícios isoladamente não seriam suficientes para gerar tamanho deslocamento de pessoas, sendo assim, o que geraria a migração seria uma situação insuportável no campo que fariam as pessoas migrarem, uma situação de miséria que os expulsam.

Esta postura também foi adota em uma obra escrita por diversos autores, na qual D. Angélico Sândalo Bernardino responsabiliza-se por sua apresentação. Este

24 SOUZA, Itamar de. Migrações Internas no Brasil. Petrópolis:: Vozes Ltda, 1980.p37.

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autor afirma que o migrante é um sujeito que se encontra em uma circunstância delicada em que este sente-se obrigado a sair de sua terra por se encontrar em situação de miséria em que é colocado injustamente.

Somos um Povo migrante. O brasileiro- aos milhões- vive um êxodo forçado . Habitantes de país rico, de imensas extensões, o brasileiro, sem casa, nem terra, vai atravessando desertos, em busca da “terra prometida”, que o egoísmo de poucos lhe rouba. (...) “ninguém abandona onde estão fincadas suas raízes, se ali existem as condições elementares para uma vida digna e a satisfação das necessidades materiais para tanto”. (BASSEGIO, 1980, p. 7)

Não poderíamos deixar de fazer uma observação a respeito da obra Migrações:

Êxodo forçado(BASSEGIO, 1980), ao contrário do que podemos observar nos demais trabalhos, este livro demonstra claramente que não busca apenas analisar as migrações, mas sim se manifestar contra a situação que leva a este processo, pelo menos no brasileiro, pois, segundo seus autores, ele é resultado de processos injustos que expulsam as pessoas de sua terra e na grande maioria das vezes traz malefícios e estas.

Outros dois autores que devemos tratar a respeito das motivações para migrar são: Sérgio Buarque de Hollanda Filho e Douglas H Graham, que no livro Migrações Internas no Brasil: 1872-1970(GRAHAM & HOLLANDA FILHO, 1984), apesar do titulo, analisam tanto as migrações internas durante os anos de 1950-1970 quanto os diversos processos migratórios internacionais para o nosso país da segunda metade do século XIX a primeira metade do XX. Estes tratam das motivações para migração como estritamente econômicas, neste sentido, os migrantes são pessoas que estão passando por dificuldades, eles são desempregados ou pequenos produtores que perderam suas terras.

Eunice R. Durham (DURHAM, 1984, p. 55-57) também discute estas dificuldades, que trataremos como ́ ´econômicas,`` lembrando que esta autora trabalha especificamente com o migrante de origem rural, sendo que esta temática é abordada com uma problemática com maior complexidade uma vez que, de acordo com ela, não se trata apenas de perdas de terras ou desemprego, e sim de mudanças na sociedade nacional com um todo que impossibilita ou pelo menos dificulta um modo de viver próprio. Esta autora argumenta que parte considerável da população rural brasileira vivia em uma economia próxima da subsistência com padrões de consumo bastante baixos, e com pouco uso direto de dinheiro, modo de vida este que com as mudanças ocorridas na sociedade como um todo se torna impossível ou muito mais difíceis. (a entrevista que fiz trata a respeito disto)

Na obra de Durham (DURHAM, 1984, p.104) podemos perceber que as dificuldades que levaram a um abandono do meio rural e a migração para os centros urbano podem ser divididas em dois eixos: o primeiro se deve a própria dificuldade de se poder produzir o mínimo necessário para se manter o padrão de vida anterior, pois este modo de produção tem como necessidade uma grande quantidade de terras disponíveis por valores muito baixos ou ate mesmo de graça, mas com o aumento da população e a valorização monetária da terra este padrão de vida se torna impraticável.

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O segundo se refere à atração que o meio urbano exerce sobre o meio rural causando admiração a um padrão de consumo que é inalcançável pela economia de subsistência mesmo antes desta passar pela crise já citada. (DURHAM, 1984, p. 105)

Juarez Rubens Brandão Lopes na obra Crise do Brasil Arcaico(LOPEZ, 1967) na qual este autor discute como certas concepções capitalistas ao chegarem ao campo modificaram a relação do homem rural com a terra causando mudanças no modo de trabalho, criando uma espécie de ´´proletário rural`` e uma migração para o meio urbano. Outro autor que apresenta este mesmo raciocínio é Curado(BASSEGIO & CARVALHO, 1980, p.34)que argumenta que o novo homem rural proletarizado tem como principal materialização a figura do bóia fria.

Paulo Fontes evidencia o papel da influência dos migrantes sobre seus iguais na decisão de migrar e na disseminação de expectativas em relação ao meio urbano, no caso São Paulo, tal como fica claro em:

Lima recorda-se que era um acontecimento ver “chegar um baiano (...) metido num terno bacana e gravata. Naquele tempo [ em São Paulo], tinha que usar mesmo”. Aquilo chamava a atenção das “garotas, enquanto nós, lá, tínhamos que sair naquela roupinha. Isso ai trouxe um bocado de vontade humana do caboclo correr para São Paulo”. As historias sobre a cidade, sua grandiosidade, a abundancia de trabalho, as opções de lazer, tudo isso também seduzia Lima. (FONTES, 2008. p.42)

Sobre as expectativas que os migrantes apresentavam em relação à cidade

grande discutidas pela bibliografia podemos perceber a esperança de encontra no meio urbano direitos que não lhe são concedidos no campo tais como: serviços de saúde, educação e uma independência em relação ao poder dos grandes senhores rurais da região. (FONTES, 2008. p.47-48)

Quem é o migrante e o que é necessário para ser assim caracterizado

O que até agora discutimos, e da maneira como o fizemos, pode dar a falsa impressão de que a bibliografia por nós pesquisada apenas considera o migrante com aquele sujeito o qual esteja passando por dificuldades econômicas e pertença a classe desprivilegiada, o que não procede-se, como podemos perceber em:

Sustentamos que participam do processo migratório pessoas de todas as classes sociais. A falta de identificação da posição que os migrantes ocupavam na estrutura social do seu lugar de origem ou de residência, bem como a concentração de estudos migratórios em torno dos migrantes de classe operária contribuíram para a formação de uma idéia parcial do processo migratório. (SOUZA, 1980, p. 34).

Durham (DURHAM, 1984, p.228-229) deixa claro em seu trabalho que

considera como migrantes não somente os ditos desprivilegiados, mas também os

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abastados, que por ventura tenha se deslocado para reinvestir seu capital, apesar de não estar preocupada com estes últimos em sua pesquisa, sendo que esta autora deixa claro que seu enfoque recai nos que sofreram mais diretamente com a crise da economia de subsistência que podemos considerar de certo modo desprovidos .

Após discutirmos as divergências a respeito de qual a classificação econômica dos migrantes, faz-se necessário debatermos qual a concepção de migrante e migração adotada nos trabalhos por nós utilizados, ou melhor, quais e como são os deslocamentos necessários para caracterizar uma ação com migratória e seus participantes como migrantes.

Souza (SOUZA, 1980, p.33) entende migração interna como um processo que, entre outras características, necessita que ocorra o abandono de um município e a entrada em outro. Eunice R. Durham, (DURHAM,1984) se alinha com a opinião de Novais e Mello(MELLO & NOVAIS, 1998) em considerar migrante não apenas aquele que deslocou-se de um município ao outro, mas também aquele que sai do meio rural e entra no urbano independente do perímetro municipal.

Durham, (DURHAM, 1984) no entanto, em seu trabalho faz a escolha de tratar apenas com os migrantes que foram para os grandes centros metropolitanos, principalmente São Paulo e que tenham saído, de preferência, direto da zona rural.

Paulo Fontes(FONTES, 2008, p.27-28) diz que nas décadas de 1950 e 1960 havia uma grande bibliografia sociológica que classificava as migrações internas como algo positivo para o país, mas quando esta mesma literatura refere-se a respeito dos indivíduos que fizeram parte deste processo não conservam a mesma opinião. Os migrantes seriam, devido aos seus costumes anteriores, inadequados ao modo de vida urbano, destinados aos serviços com menor qualificação deste modo estariam num estagio social inferior.

O caminho

Consideramos que tratamos suficientemente a respeito das motivações que levaram as pessoas a migrarem. Passaremos agora a tratar sobre como ocorre o processo migratório, ou seja, como a bibliografia discute o processo de deslocamento físico das pessoas.

José de Souza Martins,(MARTINS, 1973, p.20) baseado no pensamento Weberiano, diz que a migração consiste em três etapas. Primeiro surge a decisão de migrar baseado nas motivações e necessidades que o migrante passa, depois as possibilidades físicas da realização deste fenômeno e por último a absorção ( ver Eisensinos 1954) do migrante nas novas regras sociais e culturais do lugar para onde migrou.

Eunice Durham ( DURHAM, 1984, p.53-57) refere-se a uma tradição de migrar, ou seja, uma prática recorrente das sociedades rurais de se deslocar para cultivar novas terras quando as existentes já não estão muito produtivas ou quando a divisão de um terreno entre herdeiros é insuficiente para que cada um tenha uma quantidade de terra satisfatória para sustenta-se e a sua família de acordo com seus padrões. Prática esta

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que se torna cada vez mais complicada com a valorização monetária da terra e o aumento da população rural.

Fontes. (FONTES, 2008, p.49) também relata que a migração de pessoas do sertão e agreste do nordeste para a região da Zona da Mata na época da colheita alem de migrações temporárias ou definitivas dentro do próprio nordeste para cidades médias o grandes já era comum antes mesmo de 1930.

Ao tratarmos propriamente da migração para os centros urbanos, principalmente São Paulo, podemos perceber nos dois últimos autores já citados, duas características interessantes. A primeira é de que os deslocamentos geralmente não ocorrem em grandes grupos, mas sim, na sua maioria, por pessoas sozinhas ou em pequenas associações de indivíduos por vez, sendo que estes geralmente foram influenciados por outros pequenos grupos os quais já haviam feito esta trajetória e provavelmente impingirão outras pessoas, caso forem bem sucedidos, formando uma espécie de rede. (DURHAM, 1984, p.130-132 & FONTES, 2008, p.54) A segundo era que a migração fazia parte de uma estratégia familiar, a vinda de um familiar levava a de outro, juntamente com redes de amigos e conhecidos, mas sem a desvinculação com a estratégia familiar. (DURHAM, 1984, p.130-134 & FONTES, 2008, p.58)

Durham( DURHAM, 1984, p.132-134.) e Fontes (FONTES, 2008, p.52) também argumentam que a migração de indivíduos jovens, masculinos e solteiros é a mais comum e a migração de pessoas com idade avançada ou mulheres e crianças depende do sucesso destes que vem primeiro.

De acordo com Fontes(FONTES, 2008, p.51-52), que se refere ao caso específico dos migrantes nordestinos que viam para São Paulo, mas acreditando que esta observação tem grande semelhança com boa parte dos processos migratórios neste período, a maioria dos migrantes que viajavam longas distancias vinham em condições de transporte precárias, viajavam milhares de quilômetros por vários dias em condições de extremo desconforto e insegurança.

Fazendo uma relação com o item anterior, este autor argumenta que o próprio imaginário a respeito de quem era o migrante, caracterizando-o como um individuo forte e sofrido, tem uma estreita relação com as dificuldades que este teve que passar para chegar ate seu destino, como percebemos em:

Mesmo considerando algum exagero nas comparações, é certo que a associação entre migração nordestina e escravidão, no que toca ao sofrimento e dificuldades comuns às duas situações, foi uma das imagens mais fortemente disseminada naquele período. (...)

As péssimas condições de transporte e viagem enfrentados por grande parte dos migrantes nordestinos tiveram papel na composição deste imaginário. Trens abarrotados, paus-de-arara, vários dias de jornada em circunstâncias precárias, todos esses fatores compunham uma dramática imagem dos migrantes em busca da “terra prometida” paulista25. (dar uma olhada na idéia de forte)

25 Ibidem, p. 53.

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Fontes26 também diz que para alem das “precariedades e dificuldades” decorrentes do processo físico da migração, há pontos positivos a serem ressaltados, tais como a integração social entre os migrantes que ocorria nestes meios de transporte precários, estes indivíduos se relacionavam, faziam amizade, trocavam experiências a respeito do local de destino e de acordo com Vilaça27 com o tempo ate os sacos de comida dos migrantes passam a ser comunitários.

De acordo com Duhram não se pode entender as migrações do meio rural para o urbano, apenas como uma mudança geográfica, mas sim, como um deslocamento social:

Nenhuma migração pode ser compreendida exclusivamente como um deslocamento geográfico. As migrações representam também uma movimentação no universo social e é desde ponto de vista que elas nos interessam de modo particular. Mesmo porque, a própria definição do espaço e do ambiente geográfico é condicionada culturalmente. Para uma população analfabeta e sem escolarização a migração não pode ser concebida como um deslocamento no mapa28.

A Migração e suas conseqüências para as cidades e os migrantes

Outro ponto, que não podíamos deixar de tratar neste trabalho é a respeito de como a bibliografia lidou com as conseqüências dos processos migratórios para as localidades que receberam este contingente de migrantes. Braido passa uma imagem bastante negativa a respeito das conseqüências deste fenômeno tal como podemos notar em:

Da forma como vêm se processando, as migrações contribuem para o aumento das periferias das cidades a da favelização, tornam mais grave os problemas da violência, da prostituição, do abandono dos menores, do desemprego ou do subempregado29.

Fazendo referência a uma pesquisa da década de 1980 Bassegio e Gonçalves30 argumentam que entre 50 meninos de rua da cidade São Paulo entrevistados 70% não haviam nascidos na cidade e mais de 95% dos seus pais são de outros Estados.

Fontes31 ao tratar dos problemas causados pela migração, mas referindo-se ao caso especifico do bairro de São Miguel Paulista - São Paulo dos anos de 1940-1960, que é caracterizado por sua forte presença migrante diz que esta região sofria com dois graves problemas inseparáveis, a violência e a falta de assistência tanto no sentido material quanto social. De acordo com este autor o bairro sofria com diversos problemas tais como falta de iluminação, de pavimento, recursos diversos tais com

26 Ibidem. p53-5427 VILAÇA IN: FONTES APUD28 DURHAM, Eunice R.1984. p.136. Op.cit29 BRAIDO, Jacyr F. As Migrações na Atualidade Brasilera. In: BASSEGIO, Luiz e CARVALHO, Izabel de, p.21-22. Op.cit.30 Ibidem,p.66.Op.cit.31 FONTES, Paulo, p.158-175. Op.cit.

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postos de saúde e etc alem de falta de policiamento e este quando havia muitas vezes era violento e era mais motivo de preocupação do que de segurança para os moradores.

Também não poderíamos deixar de tratar das transformações ou adaptações pelas quais os migrantes foram impingidos a passar para poder lhe dar de uma maneira que estivessem mais de acordo com as novas características exigidas pelos locais os quais ele se diria.

O trabalho urbano, de acordo com Eunice R. Durham32, exige conhecimentos, atitudes e valores distintos daqueles que seriam necessários para o meio rural, que era o meio de origem de boa parte dos migrantes . O trabalho urbano é individualizado, e exige regularidades e disciplinas inexistentes nas economias de subsistência, alem de uma remuneração individual e não concentrada em uma única pessoa, geralmente o chefe de família.

Ainda de acordo com esta mesma autora e se referindo aos migrantes de origem rural que se deslocam para o meio urbano, apesar da imprescindível mudança de postura em relação ao trabalho, os migrantes tendem a transferir para as possibilidades de trabalhos urbanos valorizações advindas das sociedades de economia de subsistência. Deste modo, tais padrões podem ser observados na valorização das possibilidades de independência do trabalhador, que leva a tentativa de trabalhar por conta própria, autônima33, sem a obrigação de seguir uma disciplina rígida e sistemática levando a casos, nos quais, o trabalhador prefiram ganhar menos a ter que trabalhar de um modo muito distinto de seu ideal de trabalho34. ( tentar verificar isto no questionário)

Deste modo, as relações familiares também são alteradas com a ida para o meio urbano, apesar de a família continuar como o principal centro de referencia. As remunerações35 se tornam pessoais, adquiridas por meios individuais e não mais por um esforço coletivo, o chefe da família não é o único a receber remuneração e sua sabedoria, que era muito valorizada, não tem o mesmo valor no mundo urbano, uma vez que se relaciona a práticas que não se refere a este contexto36.

A magnitude dos processos migratórios

A magnitude dos processos migratórios é uma das sub-temática mais abordadas nos trabalhos por nós estudados e é um dos meios pelos quais se justifica a importância destes estudos. Itamar de Souza argumenta, em seu livro Migrações Internas no Brasil que no censo de 1970 29,5 milhões de pessoas moravam em cidades diferentes das que teriam nascidos37, e utilizando outro autor para isso, diz que “um de cada

32 DURHAM, Eunice R, 1984.p.146-160. Op.cit.33 Não podemos confundir autonomia com um trabalho individualista, o que é valorizado pelo migrante não é a ausência de trabalho coleti-vo, mas sim a possibilidade de se adequar as suas atividades produtivas a valores e ritmos próprios de sua cultura e que não sejam controlados e impostos por um individuo exterior a seu meio que lhe impõe regras das quais este não as reconhece34 DURHAM, Eunice R, 1984, p.161-171. Op.cit.35 Não que este fosse na economia de subsistência o único a trabalhar, mas quando realizava-se pagamentos era apenas este que recebia diretamente o dinheiro. In:DURHAM, Eunice R, 1984.36 DURHAM, Eunice R, 1984, p.201-208. Op.cit.37 SOUZA, Itamar de, 1980. p10 Op.cit.

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três brasileiros já realizou durante sua vida pelo menos um movimento migratório no país¨38. Ainda quanto a estes valores, mas agora nos restringido a apenas um tipo de migração, a que ocorre do campo para a cidade, Novais e Mello apresentam dados que impressionam, como:

Foi assim que migraram para as cidades, nos anos 50, 8 milhões de pessoas (cerca de 24% da população rural do Brasil em 1950); quase 14 milhões, nos anos 60 (cerca de 36% da população rural de 1960); 17 milhões, nos anos 70 (cerca de 40% da população rural de 1970). Em três décadas, a espantosa cifrade 39 milhões de pessoas39.

A diferença entre estes autores justifica-se, tal como já foi tratado anteriormente, por concepções dispares a respeito do que se caracteriza como migração, sendo que para o primeiro é necessário que se saia de uma cidade e vá para outra, já para os dois últimos o deslocamento da zona rural em direção á urbana é suficiente para caracterizar como processo migratório.

Por ultimo, se faz necessário, afim de não passarmos à falsa impressão de que estes autores são dicotômicos, deixar claro suas similaridades. Como podemos perceber pelos dados que estes nos apresentaram, estes autores fazem uso de métodos quantitativos como meio de realizar suas pesquisas alem de estarem interessados em alcançar analises estruturais da sociedade.

Fontes40 aproxima-se mais de Novais e Mello41 do que de Souza42 quando diz que estima-se a migração de mais de 38 milhões de pessoas do campo para a cidade de 1950-197043, entretanto este autor não se aprofunda muito nesta questão, pois não é seu enfoque, esta mais interessado na migração especifica de nordestinos para São Paulo e sobre isto diz:

Certamente na cidade de São Paulo a velocidade deste processo impressiona. Nos 20 anos que separam 1950 de 197043, a capital paulista triplicou seu tamanho enquanto, no mesmo período, a população de origem nordestina cresceu 10 vezes44

.Além disto, este autor faz uso de dados estatísticos apenas no intuito de

contextualizar a situação na qual esta inserido seu principal objeto de interesse corresponde em entender como se deu a relação entre migração interna e a constituição de uma comunidade nordestina dentro de um bairro na cidade de São Paulo. Esta comunidade surge como reflexo da política de uma fabrica que se localiza dentro deste bairro e neste contexto é trabalhado os conflitos sociais, políticos e econômicos deste grupo com a fabrica, a “cidade” e no seu próprio interior.

38 COSTA, Manuel Augusto (editor).Migrações Internas no Brasil. Rio de Janeiro, IPEA\INPS, 1971. p.109.Apud SOUZA, Itamar de, 1980. Op.cit.39 MELLO, João Manuel Cardoso de ; NOVAIS, Fernando A, In: Fernando A (org geral) SCHWARCZ, Lilia Moritz (org volume). História da Vida Privada no Brasil; v4. São Paulo: companhia das Letras, 1998. p.581. Op.cit.40 FONTES, Paulo, 2008.Op.Cit.41 MELLO, João Manuel Cardoso de ; NOVAIS, Fernando A, In: Fernando A (org geral) SCHWARCZ, Lilia Moritz (org volume). História da Vida Privada no Brasil; v4. São Paulo: companhia das Letras, 1998. Op.cit.42 SOUZA, Itamar de, 1980. Op.cit43 FONTES, Paulo, 2008. p.46. Op.Cit.44 Ibidem.

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O Migrante na Sociedade de destinoConsiderações (?)

Por último acreditamos que devemos realizar um pequeno apanhado a respeito do que foi discutido neste breve texto, realizar um conciso comentário sobre os trabalhos discutidos e opinarmos a respeito das possibilidades a serem trabalhadas que este tema nos permite.

Eunice R Durham45, Juarez Rubens Brandão Lopes46 e Paulo Fontes47 fazem um trabalho qualitativo, com base em estudos de casos, através de entrevistas para entender como as mudanças na sociedade brasileira, que decorreram no êxodo rural, de uma maior urbanização do país e da perda de população de cidades pequenas para grandes e médias, afetaram as relações sociais e econômicas de uma população tanto em âmbito público quanto privado. Acreditamos que este tipo de análise possibilita estudos sobre certas temáticas de maneira que não seria possível com uma pesquisa baseada apenas em dados quantitativos, apesar de ter a desvantagem de não possibilitar a analise de um grande número de casos, realizando algumas vezes generalizações através de casos específicos.

Ao analisarmos os trabalhos aqui apresentados a respeito das migrações internas, podemos perceber que estes levaram a reflexões de muita relevância a respeito dos processos migratórios, sendo que foram tratados diversos aspectos deste fenômeno tais como: as mudanças ocorridas nas localidades de origem que levaram as pessoas migrarem, como que se procedeu este deslocamento, quais as suas conseqüência e como foi a adaptação deste contingente populacional na localidade de destino.

No entanto, acreditamos que existam aspectos ainda não trabalhados a respeito deste assunto e cremos que merecem ganhar atenção em estudados posteriores, tais como as conseqüências deste processo para as localidades que perderam população. Se o modo pelo qual as migrações ocorreram, os motivos que levaram a ela e o destino destes migrantes nas localidades nas quais eles pretendiam penetrar foram tão dignos de serem estudados pensamos que também seria pertinente entender o que ocorreu com as regiões que perderam população.

Ainda nesta linha de raciocínio, acreditamos ser interessante para posteriores pesquisas a respeito das migrações internas estudar como o contato entre os que foram e os que ficaram, alem da possível regresso de parte deste contingente populacional, pode ter modificado as localidades que perderam população. Dentro deste contexto, poderíamos pensar a respeito de como estes indivíduos percebem-se enquanto agentes destas mudanças, uma vez que estamos tratando de pessoas que devem ter passado

45 DURHAM, Eunice R, 1984. Op.Cit.46 LOPES, Juares Rubens Brandão, 1967. Op.cit.47 FONTES, Paulo, 2008.Op. cit.

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por mudanças drásticas, pois teriam saídos de pequenos municípios ou ate mesmo meios rurais com lógicas de organização do trabalho e relações sociais completamente distintos das grandes e médias cidades em que se inseriram.

Não encontramos nem mesmo um trabalho que se refira ao olhar de quem fica na bibliografia a respeito da migração interna, a única produção que encontramos que trata do ponto de vista dos que ficam não diz respeito às migrações internas, mas sim a internacional (para os E.U.A) e em um período bastante posterior aos tratados pelos outros autores (2007). Estamos nos referindo ao trabalho de Eunice G. S Coelho48 que trata a respeito de como as relações entre os imigrantes que foram para os Estados Unidos da América com seus familiares que permaneceram na cidade de Ipaba-MG causaram transformações econômicas e sociais por meio das remessas de dinheiro mandadas e da transferência de valores distintos dos das sociedades de origem através das visitas, telefonemas e demais meios de comunicação.

Na introdução deste texto tentamos deixar claro que não tínhamos a pretensão de fazer uma analise de toda a produção existente sobre este tema, nem mesmo foi possível tratar de todos os aspectos abordados nas obras por nos escolhidas. Nossa intenção pode ser definida como a de realizar um breve apanhado sobre parte da produção a respeito deste assunto, quais as sub-temáticas tratadas nestas obras e como seus respectivos autores as tratam.

48 COELHO, Luciene Germano Simões. Op. cit.

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Relações agrário-escravista na Freguesia de Guarapiranga (1822-1872)

Eliane Aparecida Duarte Batista

Introdução

Este trabalho de caráter demográfico utiliza de métodos e dados seriais para compreender a dinâmica das relações sociais sucedidas na então freguesia de Guarapiranga situada na zona da mata mineira, cuja denominação originou-se em função da densa floresta da Mata Atlântica que ainda cobria o território na virada do século XVIII.

Esta região foi mais intensamente povoada, segundo Waldemar Barbosa, nos anos de 1753 a 1756 dispondo de inúmeras sesmarias concedidas nesses anos49. No ano de 1841 foi criada à vila do Piranga com instalação do município desmembrado do de Mariana, sendo apenas em 1870 Piranga elevada à categoria de cidade.

Com base na Lista Nominativa de Piranga e seus distritos, de 1831, a economia através das variadas ocupações apresentadas se diversificava convergindo com a população que crescia na região. Tendo em vista que o crescimento demográfico de Minas no século XIX, embora nada esplendido foi constante.

O recorte temporal escolhido tem como fronteiras os anos de 1822 e 1872, tendo no ano de 1822, durante a regência de D. Pedro, a suspensão da concessão de sesmarias. Entretanto terminou o instituto jurídico da sesmaria, e não a categoria social dos sesmeiros.

Já a data final foi tomada com base no primeiro Recenseamento brasileiro de 1872 o qual registrou que a população mineira cativa constituía o maior plantel de escravos de todas as províncias do Império. Dados que demonstram a importância do trabalho escravo para a Província e afastam qualquer hipótese sugerindo que a escravidão teria se tornado residual ao conjunto sócio-econômico mineiro, após a cessação do tráfico negreiro internacional50.

Tomamos como embasamento a historiografia a qual enfatiza o grande sustentáculo da economia mineira do século XIX, a agricultura mercantil de subsistência, ou seja, a produção de alimentos básicos destinados ora ao autoconsumo, ora ao mercado interno, dentro e fora da província, sendo que os fazendeiros senhores de escravos se inseriam regularmente nestas relações.

Entendendo que os aspectos da história de Minas Gerais no século XIX foram profundamente marcados pelo escravismo, ou seja, o trabalho compulsório como forma predominante e a abundância de terras.

49 BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte. Ed. Saterb, 1971, p.363.50 LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista Minas Gerais no século XIX. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1988, p.46..

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Segundo Douglas Cole Libby no recenseamento de 1872 é importante constatar o considerável plantel de escravos localizado na Zona da Mata. Sendo quase um quinto da força de trabalho mineira composta por escravos, apenas a Zona da Mata possuía um plantel de escravos ativos correspondendo a pouco mais de um quarto da força de trabalho51.

No processo de povoamento mineiro Angelo Carrara considera que houve duas ordens de concessão de terras na região das minas, sesmarias e datas de minerais, eram formalmente distintas, assim como as formas de registro e controle da posse. Sendo as unidades escravistas responsáveis pela maior parte da produção mercantil da Província, e maximamente concentradas na Zona da mata até o 13 de maio de 188852.

Para entendermos a importância relativa dos ativos em terras e escravos é preciso termos em mente que a terra possuía se comparada aos escravos um valor modesto, de acordo com a totalidade do monte mor analisado nos inventários.

Fontes e métodos

Utilizamos como base empírica os seguintes documentos manuscritos: Registros Paroquiais de Terras, Inventários post-mortem, Lista Nominativa de Piranga e seus distritos de 1831, do século XIX, referentes à freguesia de Guarapiranga.

O Registro Paroquial de Terras foi produzido como desdobramento legal da Lei de Terras de 1850, criado pelo Decreto nº1318, de 30 de janeiro de 1854, que mandava executar aquela lei (601, de 1850). Sendo que desde 1822, com a revogação do instituto de sesmarias, a posse se transformara na única forma possível de apropriação da terra no Brasil. Tendo como objetivo que a terra devoluta não poderia ser ocupada por outro título que não o de compra. Dessa forma, os registros foram realizados em quase todas as paróquias do Império, como tentativa de controle53.

Estes registros tornaram-se obrigatórios para todos os possuidores de terras,

qualquer que fosse o título de sua propriedade ou possessão. Ficando os vigários de cada freguesia encarregados de receber as declarações para o registro de terras54.

Motta nos indica que de acordo com o Relatório da Repartição Geral das Terras Públicas de 1856 havia terrenos devolutos em várias partes do país, sendo que na Província de Minas havia terrenos devolutos em várias comarcas entre elas a de Ouro Preto, Piracicaba e Rio das Velhas.

Em relação aos inventários a feitura estava prescrito nas Ordenações Filipinas, que determinavam que o mesmo deveria arrolar e atribuir valor a todos os bens do

51 Idem., p.55-5652 CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais: produção rural e mercado interno em Minas Gerais 1674-1807. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2007, p.149,273.53 CASTRO, H. M. M. Ao Sul da História: Lavradores Pobres na Crise do Trabalho Escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.9.54 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas Fronteiras do Poder: Conflito e Direito à Terra no Brasil do Século XIX. 2a Ed. Revisada e ampliada por Márcia M. M. Motta. Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p.168.

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falecido, definir o rol de herdeiros e a partilha dos bens. Dessa forma, ouro, dinheiro, objetos domésticos, animais, escravos, terras e créditos, entre outros, são arrolados nos inventários do século XIX, permitindo analisar a composição e volume da riqueza nessa sociedade.

Os inventários analisados estão sob guarda dos Arquivos da Casa Setecentista de Mariana e do Fórum de Piranga. Sendo que os processos de digitalização e codificação destes inventários estão ainda em curso, não permitindo que tenhamos acesso à totalidade dos inventários existentes para a listagem de nomes que aparecem no registro paroquial de Piranga.

A Lista Nominativa tem sido base de uma série importante de estudos da demografia histórica de Minas Gerais, por conseguinte, oferecem um conjunto rico de informações, em geral, arrolam nome, idade, sexo, estado civil, condição, cor e naturalidade dos membros do domicílio, inclusive escravos e agregados. Indicam, ainda, a situação familiar dos membros do fogo em relação ao chefe, e eventualmente, as ocupações dos membros

Na metodologia de pesquisa utilizamo-nos do registro paroquial da freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Piranga, realizado em 1855-1856, totalizando 375 assentos. Em uma ficha de coleta registramos às seguintes variáveis: nome da(o) proprietária(o), tipo de propriedade (fazenda, sítio, porção de terra, fresta, terreno, chácara), localização, extensão/porção, o meio de obtenção/posse, tipos de cultivo, demarcação da localização informada por meio da relação das propriedades vizinhas (divisas/vizinhos), quem assinou o documento, ou seja, se foi assinatura própria ou alguém de “relações” com a pessoa. Após esta análise cruzamos os dados obtidos com as descrições de bens contidas nos inventários post-mortem.

Obtivemos nos registros paroquiais informações importantes para a análise das formas de acesso a terra na freguesia. Pois, os assentos indicam trajetórias variadas não restritas apenas ao caráter de compra individual, mas relacionadas ainda pela via da herança, dádiva, barganha, dote, da troca e anteriormente a concessão sesmarial.

Esta variedade de meios de acesso a terra indica que diferentes grupos sociais e diferentes estratégias de acesso a recursos produtivos estão em jogo nessa região, moldando padrões de movimentação de riqueza. O gráfico abaixo apresenta os diversos meios de acesso a terra nesta região, de acordo com os registros paroquiais.

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Gráfico 1Meios de acesso a terra na Freguesia de Guarapiranga (1855-56)

0

20

40

60

80

100

120

REGIS TRO P AROQUIAL DE TERRAS (1 8 5 5 -1 8 5 6 )

CO M P RA

HERANÇA

NÃO INFO RM A

HERANÇA E CO M P RA

DÁDIV A

DO AÇÃO E M EAÇÃO

DO TE E CO M P RA

TÍTULO DE S ES M ARIA

BARG ANHA

Os registros paroquiais indicam ainda a extensão da propriedade declarada, geralmente mensuradas em alqueires, o que nos permite entender mais claramente as desigualdades da estrutura agrária local.

Gráfico 2Concentração fundiária na Freguesia de Guarapiranga (1855-56)*

*Este gráfico possui informações referentes à média ponderada, somamos toda extensão declarada e dividimos pelo total de proprietários a partir deste valor atribuímos a média de alqueires para esta freguesia dos 375 assentos.

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O ano de 1857 era o ano do término do prazo de entrega das declarações nos registros paroquiais.

Gráfico 3

0102030405060708090

0escravos

0 1 a 10 11 a 30 31 a 57

Plantel de Escravos (1822-1872)

Escravos

No gráfico acima temos 10 como a média do plantel de escravos na freguesia nos 153 inventários analisados (1822-72), totalizando 1609 escravos arrolados.

Algumas considerações

O cruzamento das informações do Registro Paroquial de Terras com as Listas Nominativas e os Inventários parece indicar a presença de uma relação direta entre o tamanho dos plantéis de escravos e a dimensão das propriedades territoriais.

Para além das informações sobre a estrutura agrária, os registros e os inventários apresentam pistas interessantes para a compreensão da composição das atividades agrícolas nestas propriedades. Através dos inventários observamos cultivos, roças e paióis, em que se planta ou se armazena o feijão, arroz, mandioca, fumo, e cana-de-açúcar, que no início do século XIX era realizada com elevada utilização de mão-de-obra escrava, e não apenas o milho como nos registros podemos encontrar.

Após esta análise dos dados obtidos com as descrições de bens contidas nos inventários post-mortem observamos que os escravos e a terra, com seus cultivos e benfeitorias agrícolas, eram as principais fontes de renda na freguesia de Guarapiranga. Sendo diversas as formas possíveis de aquisição na freguesia de Guarapiranga revelam uma estrutura agrária dinâmica.

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Referências

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CASTRO, H. M. M. Das Cores do Silêncio. Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista – Brasil, Séc. XIX. 2aed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista Minas Gerais no século XIX. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1988. MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Cedeplar, 1980.

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas Fronteiras do Poder: Conflito e Direito à Terra no Brasil do Século XIX. 2a Ed. Revisada e ampliada por Márcia M. M. Motta. Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.

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Mulher, sindicalismo rural e relações de poder. Érika Oliveira AmorimAna Louise de Carvalho Fiúza

Resumo

A expansão dos estudos sobre a mulher está relacionada à luta pela inserção no mercado de trabalho, aos movimentos feministas e também a novos paradigmas associados às dinâmicas das relações entre os sexos. Até a década de 1980 o movimento sindical rural era majoritariamente formado por homens. Nos últimos anos a participação de mulheres na direção dos sindicatos tem aumentado conjuntamente com a organização de movimentos sociais como o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e MMTR (Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais). A partir dos anos 1990 a assunção de mulheres nas direções dos sindicatos se torna mais efetiva. Esse engajamento é decorrente do sindicalismo surgido na década de 1970 com a formação de lideranças católicas a fim de construir um novo sindicalismo no campo (meados dos anos 1980). A visibilidade da mulher rural no espaço público representa rupturas com o nosso passado patriarcal e a estrutura androcêntrica que persiste há tempos e pode contribuir para a construção de novas identidades femininas no campo. O presente trabalho pretende analisar a construção das relações de poder no âmbito da participação da mulher rural em instituições de representação coletiva, partindo do pressuposto de que a atuação política representa fator gerador de novas perspectivas de poder para trabalhadoras rurais nos âmbitos público e privado. A discussão do tema foi construída através do referencial teórico e das abordagens oferecidas pelas disciplinas do programa de Mestrado em Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa, que dentre outros autores, traz as contribuições de Deere (2002), Carneiro (1995), Fischer (2006), Pinto (2002) que abordam as questões de democracia de gênero, empoderamento e participação no espaço público. Visa contribuir para os debates acerca do engajamento de mulheres em sindicatos e movimentos de representação coletiva e as implicações no processo de mudança das relações no espaço doméstico.

Introdução

Até a década de 1980 o movimento sindical rural era majoritariamente formado por homens. Nos últimos anos a participação de mulheres na direção dos sindicatos tem aumentado conjuntamente com a organização de movimentos sociais como o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e MMTR (Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais).

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A partir dos anos 1990 inicia-se participação mais efetiva por parte das mulheres nas direções dos sindicatos, que em grande maioria tiveram militância iniciada em movimentos sociais, partidos políticos, movimentos organizados pela Igreja Católica (catequeses, pastorais) ou associações de agricultores. Esse engajamento é decorrente do sindicalismo surgido na década de 1970 com a formação de lideranças católicas voltadas para a mobilização dos agricultores e do maior número de trabalhadores a fim de construir um novo sindicalismo no campo (meados dos anos 1980) rompendo com a estrutura assistencialista presente na organização dos sindicatos. A participação de mulheres nos sindicatos tem aumentado nos últimos anos, inclusive na direção dos mesmos. O fato de as mulheres terem ocupado cargos na diretoria e presidência dos sindicatos não significa que não haja discriminação quanto à participação, tomadas de decisão e reivindicação por igualdade de gênero e poder. A oposição binária dos gêneros masculino e feminino proporciona a dicotomização de outros conceitos como público e privado, produção e reprodução, razão e sentimento, forte e fraco e a cultura da dominação masculina (Bourdieu, 2005) ainda é muito presente em nossa sociedade, alcançando instituições, organizações e sindicatos.

Mulher rural: relações de poder e participação no espaço público

O mecanismo de atuação das mulheres em organismos de participação representa uma forma de reconstruir esse processo cultural de dominação masculina que ainda permeia nossa sociedade. O movimento feminista tem obtido fortalecimento com o direcionamento de movimento de mulheres voltadas para a questão rural. Segundo Fischer (2006) esses grupos discutem especialmente a condição da mulher e seu direito a terra como parceira (a mulher casada figurava como dependente do homem) e como solteira a quem era vedada a posse da terra. Paralelamente, buscam formas de organização no órgão da classe e aderem a movimentos sociais para reivindicar o direito ao acesso aos meios de produção, terra e capital.

Através do engajamento nos movimentos, as mulheres rurais alcançam novas significações tanto no âmbito privado quanto no público e essa nova posição se dá logo no momento de sua adesão. Pinto (2002) considera que a adesão pode ser pensada como um rito de passagem do mundo privado para o mundo público, colocando o sujeito frente a novas relações de poder e, conseqüentemente, de tensão no interior da família, do local de trabalho, nas relações de afeto e vizinhança. De fato, tal atitude rompe tabus e preconceitos e coloca em voga novos valores e comportamentos desafiando relações de poder, principalmente em locais resistentes à participação da mulher no espaço público. Além disso, a autora nos diz que a participação das mulheres em movimentos sociais não as torna necessariamente feministas, mas modifica sua inserção na rede de poderes de sua comunidade:

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“A presença da mulher, feminista ou não, é modificadora das práticas sociais, quer pela presença em si e seu explícito contraste com a presença dos homens, quer por constituir, pelo menos potencialmente, um canal de aproximação com os movimentos feministas, que tanto pode acontecer por uma mútua procura, como pelo próprio surgimento das indagações que norteiam o feminismo no interior de grupos de mulheres no sindicato, independente de qualquer contato efetivo com o feminismo organizado.” (Pinto, 1992: P. 143)

Valdete Boni (2004) analisa a instauração da cota mínima de 30% de participação feminina nos sindicatos estabelecida pela CUT sob várias perspectivas e argumentos, dentre eles o que sustenta que a política de cotas pode representar uma formalidade para conquistar espaços, não significando poder. Apesar disso, considera as cotas o primeiro movimento significativo que motivou a organização das mulheres rurais no mundo sindical. A autora destaca que as mulheres agricultoras têm diferentes militâncias, que vão desde a comunidade, passando pela Igreja, até os movimentos sociais. Essas tarefas na esfera pública se acumulam com as atribuições da esfera privada, ou seja, conciliar atribuições de militância, educação dos filhos, afazeres domésticos, a criação de animais e o trabalho na lavoura, não é nada fácil, além de serem atividades tradicionalmente mais cobradas por serem consideradas atividades femininas de reprodução.

Bourdieu (2005) trata das relações de dominação à partir do conceito de habitus, como sistema socialmente constituído no qual a divisão entre os sexos se incorpora nos “habitus dos agentes” e é continuamente realimentada e reforçada em relações sociais de dominação e exploração dentro de uma organização social baseada na divisão de gênero. A noção de habitus internalizada pelo indivíduo na forma de comportamento corporal e esquemas de percepção e ação representa um mecanismo estruturante na dinâmica social e na construção das categorias homem e mulher. Dessa forma, a construção social do significado de homem e mulher é entendida como efeito de uma ordem social masculina que é objetivada, inscrita na ordem das coisas, na organização da vida social e absorvida pelos atores sociais como um sistema de interpretação na rotina da divisão do trabalho e nos rituais coletivos e privados. A cultura de dominação masculina que reserva ao homem o espaço público e os cargos de direção funciona também nas instituições e sindicatos rurais.

Nessa perspectiva de dominação a divisão social dos sexos se fez legítima ao longo dos tempos. Na Europa, no começo do século XX, influenciada pelas idéias do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, a sociedade busca uma definição para o espaço ocupado pelas mulheres através de uma perspectiva essencialista, na qual o diferencial entre homem e mulher baseia-se no fato de que “um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco” (Rousseau, 1995). No Brasil não foi diferente. A mulher brasileira também deveria se restringir ao ambiente privado evitando qualquer contato com o mundo público e esse discurso recebia amplo apoio de diversos setores da sociedade (Igreja, industriais, médicos e operários). Uma das matrizes teóricas que explicam essa dominação é a teoria do patriarcado. Weber (1977) define o patriarcado como uma situação em que a dominação econômica e familiar é exercida normalmente

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por uma só pessoa, uma forma de dominação fundada nas crenças, nas tradições, na autoridade, na obediência que se faz de forma espontânea, sem relação com princípios jurídicos. No Brasil, Freire (2004) faz uma análise da história patriarcal do país e aponta como um dos vícios de nossa cultura a atmosfera da monocultura escravocrata e da família patriarcal, que interferia diretamente no mando político e estende-se a outras esferas da vida social, como a família. Sob a concepção do patriarcado a mulher é vista como patrimônio e juntamente com os bens da família, deve ser administrado pelo patriarca.

O acesso à reivindicação pela igualdade de direitos e a visibilidade da mulher rural no espaço público representa uma ruptura com nosso passado patriarcal e o movimento feminista tem ampliado discussões sobre a importância da participação da mulher no espaço público como forma de legitimar a ação política na qual somente elas serão capazes de derrubar o mecanismo de subalternidade feminina.

Analisando a repercussão do estabelecimento de cotas para a participação das mulheres nos sindicatos, Boni (2004) pesquisou a opinião de homens e mulheres a respeito e observou que tanto entre os dirigentes homens quanto entre as dirigentes mulheres há quem concorde e quem discorde das cotas mas todos assumem que ela é um forte instrumento de garantia para a democratização dos sindicatos, partidos políticos e demais movimentos. A assunção de mulheres na direção de sindicatos envolve mudança no habitus e na incorporação de outros papéis além dos que lhe são tradicionalmente atribuídos, como esposa e mãe, mas como trabalhadora politicamente atuante capaz de discutir a desigualdade de gênero e, dessa forma, entendendo e superando outras desigualdades como a redistribuição de renda e o acesso à terra e à políticas públicas voltadas para a agricultura familiar.

Transformar a mulher em sujeito coletivo atuante, através da mobilização é uma necessidade para se construir uma nova identidade da mulher rural conferindo visibilidade e participação nos processos de produção, gerando o empoderamento55. Através dessa perspectiva o empoderamento pode ser considerado, segundo perspectivas feministas, como uma mudança radical dos processos e das estruturas que reproduzem a posição subordinada da mulher como um gênero, e no âmbito do desenvolvimento, o termo é sinônimo de participação ou integração das pessoas no planejamento e desenvolvimento (Deere, 2002). A autora também considera que implícita nos diferentes usos da palavra está a noção de pessoas obtendo poder sobre suas próprias vidas.

É preciso destacar que a contestação dessa ruptura dominante que alimenta a invisibilidade feminina, seja no âmbito público ou privado, pode trazer algumas conseqüências, como relações de tensão na família e na comunidade. Como bem

55 O conceito de empoderamento passou a ser utilizado, no movimento de mulheres, na II Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada pela ONU em 1985 na cidade de Nairóbi, no Quênia, onde aparece para designar uma estratégia conquistada por mulheres do Terceiro Mundo para mudar as próprias vidas. Em 1987, no 4º. Encontro Feminista Latino-Americano, em Taxco, no México foi iniciado um processo de movimento das mulheres na América Latina que permitiu um pensamento construtivo sobre outras formas de poder: poder para, poder com e poder de dentro (Deere e Léon, 2002) e atualmente, o termo tem sido usado em múltiplos sentidos, tanto na abordagem no campo ideológico de desenvolvimento quanto nas relações sociais, como econômicas, políticas e cognitivas.

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destaca Fischer (2006) essa contestação é encarada como desvio de identidade e mesmo com conquistas obtidas através de movimentos pagam um preço alto pela iniciativa de implementar mudanças nas regras sociais:

“Estão inseridas no conservadorismo do mundo rural em que romper os preconceitos pode custar perdas de apoio, de afetividade, de amizades e de relacionamentos que antecederam sua própria existência, como a vinculação com os pais. (...) confrontam-se e rompem relações com os parentes mais próximos, e recebem um tratamento diferenciado na sociedade.” (Fischer, 2006: p.16)

Mas é na elaboração dessas experiências que se dá o processo de construção de sujeitos inseridos no espaço coletivo. Não há mudança sem ruptura e as relações sociais estão impregnadas de valores objetivos e subjetivos nos quais, através deles, a sociedade é continuamente reelaborada e dessa forma, a ação das mulheres em movimentos de representação coletiva fornecem ferramentas para seu empoderamento capaz de expressar demandas, reivindicar direitos e ampliar sua cidadania. Assim as mulheres abrem possibilidades de ganharem visibilidade política construindo espaços de autonomia, inserindo-se nas relações de mercado, reorientando a divisão sexual do trabalho tanto no espaço privado quanto no público dividindo com o marido a condição de provedor do lar, conquistando pequenos espaços de liberdade para fazer escolhas, expor opiniões, traçando metas, enfim reconstruindo identidades.

Reflexões finais

Embora ainda tenha um longo caminho a ser percorrido, as mulheres têm conquistado avanços em termos de participação nos espaços públicos. Algumas medidas vêm surgindo para melhorar as condições de vida das trabalhadoras rurais e tais medidas representam respostas às inúmeras reivindicações feitas através de movimentos sociais de mulheres rurais em suas diferentes formas de manifestação e organização.

O engajamento em movimentos sociais abre espaço para o processo de ressignificação de sua posição nas relações familiares, matrimoniais, comunitárias, enfim, no espaço público, rompendo estruturas patriarcais impregnadas em nossa sociedade. Esses mecanismos proporcionam à mulher a reconstrução de sua identidade, facilitando a superação de conflitos, desenvolvendo novas perspectivas, valores e relações sociais, questionando a visão subalterna nas relações de gênero.

Assim, as mulheres rurais se constituem como sujeitos de transformação das estruturas objetivas e subjetivas da realidade, tornando-se condutoras de suas próprias vidas, incorporando novos valores, tradições e formas de vida, abrindo caminho para uma nova concepção de gênero, enfim, intervindo no processo histórico.

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Bibliografia

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Um olhar de August de Saint-Hilaire sobre as cidades Brasileiras: entre paisagens e populações

Flávio Teixeira da Costa Júnior

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo discutir as observações e representações de August de Saint-Hilaire sobre as cidades e populações brasileiras. Para isto utilizaremos a obra Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil como fonte de análise.

Já de inicio, cabe destacarmos que os debates sobre civilização x barbárie eram freqüentes no século XIX, sendo que neste período a cidade era vista como o espaço de civilidade em oposição ao campo que era visto como lugar bárbaro e selvagem a ser domado pela ação do homem.

Lembramos que Saint-Hilaire discute questões relacionadas ao urbanismo e a arquitetura das cidades de modo superficial. Alguns fatores podem ter contribuído para isso, sendo eles: a sua profissão de naturalista, o fato de sua viagem ter como finalidade a catalogação e o envio de plantas a Europa e a crença do autor que existiam relatos suficientes que tratam de questões relacionadas às cidades.

Assim sendo, pretendemos discutir quais temas eram privilegiados por Saint-Hilaire quando o viajante se encontrava nas cidades brasileiras. Procuraremos entender como estão descritas as populações das mesmas em seu relato. Também buscaremos compreender quais os pontos privilegiados no espaço urbano do Brasil sobre a ótica do botânico-naturalista e como o autor estudado relatou as diferenças regionais das populações que habitavam as cidades brasileiras. O que podemos notar através de nossa leitura do relato citado é que as urbes eram tratadas de uma maneira secundária pelo viajante francês, uma vez que o naturalista privilegiava assuntos ligados a natureza e as populações que se encontravam no espaço urbano.

Um olhar sobre as cidades: as referências a certos lugares e a paisagem urbana.

Os relatos de viajantes são uma importante fonte de estudo para o historiador, sendo que este tipo de material permite o trabalho de vários temas, tais como: geografia, etnografia, urbanização, antropologia, política, administração, natureza e civilização.

Neste quadro, destacamos o viajante francês August de Saint-Hilaire e suas considerações sobre o espaço urbano brasileiro, pois mesmo essa não sendo sua prioridade, uma vez que sua viagem tinha por finalidade o envio de plantas a Europa, o botânico não deixou de observar a vida e a paisagem das cidades brasileiras.

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De acordo com Maria Stella M. Brescianni as cidades se constituem como uma experiência visual podendo ser entendidas como um “espaço saturado de significações acumuladas através do tempo, uma produção social sempre referida a alguma de suas formas de inserção topográfica ou particularidades arquitetônicas (BRESCIANNI, 1998).”

Em escritos de viajantes podemos encontrar descrições bastante extensas das cidades. Para Brescianni, “referências a certos lugares, descrições de bairros ou de transformações em determinadas áreas são constantes nos relatos de memorialistas e textos de literários (BRESCIANNI, 1998).”

Sendo assim, destacamos um trecho da obra de Saint-Hilaire em que o autor nos diz que:

“Uma das igrejas de Sabará de que não posso deixar de falar é a do Carmo, situada abaixo da intendência, no mesmo monte. É construída de pedra, bonita no interior, muito limpa, ornada de muitos dourados e muito clara. Pode dizer-se que em geral as Igrejas da Província de Minas são mantidas mais asseadas que as nossas e se vê as artes não apresentam nenhuma obra prima, em compensação não se vê nada bizarro nem ridículo (SAINT-HILAIRE, 1974)”

No trecho acima percebemos a Igreja do Carmo como ponto de referência a um lugar, neste caso a comarca de Sabará, sendo destacada pelo autor a beleza dessa Igreja e a forma pela qual foi construída.

Uma questão que merece destaque é o reconhecimento por parte do viajante de alguma coisa no Brasil melhor do que algo da França - neste caso a condição de limpeza das Igrejas mineiras. Destacamos que o Brasil, suas populações e suas instituições foram vistos no geral pelo viajante naturalista como um mundo semi-civilizado, sendo que além da missão científica - que era enviar espécies de plantas a Europa - o viajante acreditava que seus relatos e ensinamentos iriam educar e instruir o povo brasileiro, afim de que este pudesse atingir os benefícios da civilização.

Outra observação feita por Saint-Hilaire quando esteve em Sabará se refere à sede da intendência do ouro. De acordo com o viajante esta se localizava em um “velho edifício de um andar, (que) acha-se em ruínas”. O naturalista descreve o pomar situado junto ao prédio, dizendo que “é notável em relação a esta região. É atravessado, em seu comprimento por uma aléia guamecida, de cada lado, por uma fileira de laranjeiras cujos circundados por um vaso de barro cheio de água.” Segundo o botânico essa medida era tomada “para impedir às formigas, muito comuns em Sabará, de subir às árvores e devorar as folhas (SAINT-HILAIRE, 1974).”

Percebe-se uma observação, mais não uma postura crítica quanto o estado de conservação da sede da intendência do ouro. Aliás, o que podemos entender através do relato, que o autor se encontra mais preocupado com a situação do pomar que se situa as margens da sede do que com a situação em ruínas do velho edifício.

Uma postura mais crítica do viajante francês pode ser encontrada no trecho em que o naturalista descreve a hospedaria de São João Del-Rey:

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“A hospedaria onde parei em São João me havia sido indicada como sendo a melhor, e era suja e infecta. Estrebarias descobertas circundavam o pátio dessa hospedaria. Os quartos não tinham outro mobiliário além de uma cama, uma mesa, um tamborete coberto de couro; o odor da minha cama era absolutamente o mesmo de um hospital mal cuidado. Essa descrição adapta-se, de resto a quase todas as hospedarias da Província de Minas, e mesmo às do Rio de Janeiro, mantidas nessa época por portugueses da Europa e por brasileiros (SAINT-HILAIRE, 1974).”

O que notamos nessa descrição é uma forte crítica ao sistema de hospedaria de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. A partir do trecho acima podemos compreender as deficiências da pousada em que Saint-Hilaire se hospedou, sendo que de acordo com autor aquele não era apenas um problema específico da pousada em que se encontrava.

De acordo com Maria Augusta Ramos, os relatos de viajantes muitas vezes se apresentam como desabafos zangados depois de um dia duro de trabalho (RAMOS, 2008). Desse modo, percebemos uma crítica por aos donos de hospedaria daquele período tanto os europeus quanto os brasileiros, esta crítica pode ter sido fruto de um dia de trabalho árduo, além da própria condição da hospedaria.

Desta maneira, uma vez apresentadas e discutidas as observações de Saint-Hilaire sobre as qualidades e defeitos de certos lugares nas cidades brasileiras tais como Igreja, casa da intendência e hospedarias, passaremos a discutir como este viajante percebeu a paisagem urbana luso-brasileira, lembrando que por paisagem urbana compreendemos a integração entre cidade e natureza.

Conforme Amilcar Torrão Filho, a mudança do século XVIII para o XIX, representou uma mudança radical na percepção da paisagem urbana luso-brasileira, que viria “a tornar-se uma das imagens mais paradigmáticas deste tipo de narrativa” (TORRÃO FILHO, 2008).

É curioso notarmos a forma na qual Saint-Hilaire descreve a sua chegada ao Rio de Janeiro depois de sua viagem pelo distrito dos diamantes:

“Comecei a descer, e logo o mais majestoso espetáculo se ofereceu aos meus olhos. Ao redor de mim altas montanhas, cobertas de espessas florestas, dispunham-se em semicírculo. Abaixo da cadeia minha vista mergulhava-se numa imensa extensão de colinas onde as matas são entremeadas de plantações; à esquerda avistei quase toda a Baía do Rio de Janeiro e uma parte das ilhas; enfim, à entrada da Baía via a montanha pitoresca chamada Pão de Açúcar e, apesar de não poder distinguir a cidade reconhecia sem dificuldade o ponto onde se acha situada. O céu mais brilhante e os efeitos de luz mais variados aumentavam a beleza dessa vista imensa. Não pude,confesso, contemplá-la sem profunda emoção. Após tão longa viagem, tantas canseiras e privações, revia o porto onde um dia eu devia embarcar para França; as duas mil léguas que me separavam da pátria podiam ser transportadas em menos tempo que o que empreguei em percorrer a província de Minas,e,se me decidisse a prolongar meu exílio, iria ao menos ter prazer indizível de receber notícias de minha família e de minha pátria (SAINT-HILAIRE,1974).

No longo trecho apresentado acima podemos perceber em primeiro lugar o fascínio do autor diante a paisagem descrita. Outro ponto a ser destacado é a descrição minuciosa do caminho até do Rio de Janeiro, sendo que o céu é descrito como uma extensão da paisagem natural da cidade.

Percebemos também uma emoção do autor ao chegar a um lugar que ele

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considera mais próximo da França e seus entes queridos. Desta maneira, nota-se uma forma romântica de narrar no trecho descrito em que o cansaço e a dificuldade das viagens realizadas até então foram superados em prol do conforto em receber notícias da sua pátria e de sua família

Segundo Torrão Filho, no período em que Saint-Hilaire esteve no Brasil, “temos um maravilhamento da paisagem que é crescente e que não tem relação com a paisagem propriamente dita, que não mudou, mas com a forma com a qual os viajantes a vê e descreve” (TORRÃO FILHO, 2008).

Assim, compreendemos a partir de nossa leitura da fonte, que o viajante francês, em referências a certos lugares, não teve o mesmo posicionamento crítico que teve com relação a outros. Dito de outro modo, suas atitudes e relatos variavam de acordo com o objeto urbano encontrado e com as suas necessidades. Em outro ponto, percebemos a atração do naturalista diante a paisagem urbana luso-brasileira, em nosso caso analisado a cidade do Rio de janeiro.

No próximo tópico discutiremos as observações de Saint-Hilaire sobre as populações das cidades, uma vez que essas podem ser compreendidas como parte do espaço urbano.

Um olhar francês sobre as populações: especificidades regionais e denúncia de males

Neste trecho discutiremos a visão de August de Saint-Hilaire sobre as cidades

brasileiras a partir de suas populações, ou seja, como a população urbana e suas atitudes se apresentam nos relatos do viajante naturalista francês.

Em um estudo sobre a relação centro e periferia no mundo colonial luso-brasileiro, Russel-Wood afirma que Portugal era visto pelos habitantes do Brasil como a marca legítima de ortodoxia religiosa, de civilidade, de civilização, sendo que os portugueses refletiam atitudes que percebiam a América portuguesa e suas populações como marginalizadas e situadas na periferia. Desse modo, havia uma desvalorização da população do Brasil, na medida em que esta se distanciava dos ideais metropolitanos. De acordo com o autor, “isto era baseado em uma combinação de nascimento e raça, aprofundando-se caso a pessoa possuísse algum ancestral de origem escrava (RUSSEL-WOOD, 1998).”

Os discursos sobre a civilização e progresso estiveram presentes em todo o século XIX, sendo que estes modelos eram fornecidos pela Europa. Por outro lado os costumes conflitantes com essa perspectiva eram combatidos e considerados “bárbaros” e “selvagens”. Neste processo, do velho continente partiram várias projeções do que se entendia e se desejava como significado da civilização. Enquanto isso, “no Brasil, desejava-se não apenas outro lugar diferente, mas outro lugar melhor, isto é, o mundo europeu, civilizado (NAXARA, 2004).”

Lembramos que o botânico naturalista não deixou de relatar hábitos e costumes

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das populações rurais que encontrou em suas viagens, contudo o nosso objetivo é compreender como o viajante relatou a população brasileira nas cidades.

À luz de Patrícia Vargas Araújo as relações entre viajantes e brasileiros eram díspares. Para essa historiadora, “na ‘qualidade de estrangeiro’ esse viajante transformava-se em um observador privilegiado e atento aos aspectos, incoerências e contradições da vida cotidiana que os habitantes, ao dá-la como natural e permanente, encontravam-se incapazes de perceber.” Segundo a autora, na tentativa de entender os grupos visitados, os viajantes estrangeiros “foram responsáveis por estereótipos que vigoravam por todo século XIX (ARAÚJO, 2005)”.

Um ponto a ser destacado e que pode ser percebido através da leitura do relato de Saint-Hilaire são as diferenças regionais da população brasileira, dito de outro modo, o botânico não relatou a população brasileira em um todo homogêneo, mais sim em suas regionalidades e especificidades de seus costumes e atitudes.

O naturalista francês não esconde a sua admiração com os costumes, a educação e a polidez dos habitantes do Arraial do Tejuco.

“Em toda a província encontrei homens de costumes delicados, cheios de afabilidade e hospitaleiros; os habitantes de Tijuco não possuem tais qualidades em menor grau,e,nas primeiras classes da sociedade elas são ainda acrescidas por uma polidez sem afetação e pelas qualidades de sociabilidade. Encontrei nesta localidade mais instrução do que em todo o resto do Brasil desejo mais vivo de se instruir. Os habitantes de Tijuco são principalmente notáveis naarte caligráfica e podem a esse respeito rivalizar com os mais hábeis ingleses. Tanto quanto pude julgar eles não são menos hábeis na arte musical que os outros habitantes da Província, e uma missa cantada que assisti na Igreja de S. Antônio não me pareceu inferior à que assisti alguns meses na Vila do Príncipe (SAINT-HILAIRE, 1974).”

O que podemos perceber a partir do trecho acima é um reconhecimento e um fascínio do autor com o nível de afabilidade e educação dos habitantes da região, também percebemos o destaque do viajante com o desejo de se instruir dos moradores daquela localidade, sendo esta a região mais culta que o autor teve contato até o momento em que escreveu aquele relato (1818).

Destacamos também a ligação feita pelo autor entre a região e a Europa. Essa ligação pode ser percebida quando o naturalista compara a caligrafia dos moradores da região com a dos ingleses e a qualidade da missa que lembrou o naturalista a sua terra natal. Dessa forma, acreditamos que o autor faz essas aproximações para ressaltar as qualidades aqui encontradas, uma vez que essas aproximações são feitas com o mundo europeu, dito civilizado.

Contudo, no relato do viajante francês pode ser notada a diferença regional quanto à educação e a instrução. Sendo assim, destacamos o seguinte trecho, em que autor descreve a ignorância da população de São João Del Rei:

“Como esses emigrados portugueses que aumentam sem cessar a população da comarca de Rio das Mortes e sobretudo a de S. João D’El Rei, não receberam nenhuma educação, e como sua ignorância não os impede de gozar, quando enriquecem , dessa consideração que infelizmente

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se dá aos ricos, eles não pensam em dar instrução aos seus filhos. Os costumes grosseiros favorecidos ainda pelos hábitos rurais, perpetuam-se nas famílias. Observa-se na comarca de Rio das Mortes menos conhecimentos, menos polidez e mesmo menos hospitalidade que nas outras ) partes da província (SAINT-HILAIRE, 1974).”

O que podemos perceber é uma forte crítica quanto a falta de educação e a ignorância dos habitantes de São Del Rey, sendo que o viajante vê os emigrados portugueses como ignorantes e critica o fato destes não instruírem seus filhos, mesmo depois de enriquecerem.

Desse modo, o que o viajante observa é uma ignorância dos moradores da região, sendo ela a mais ignorante da província. Neste mesmo trecho se observa uma critica aos hábitos rurais e a falta de hospitalidade dos moradores da região.

Neste quadro, se Saint-Hilaire viu a região do Tejuco como civilizada e ficou fascinado com a educação e a afabilidade de seus moradores; o mesmo não aconteceu quando ele entrou em contato com os habitantes da comarca de São João Del Rey, uma vez que o naturalista classificou a população da região como grosseira e ignorante. Sendo assim, de acordo com o relato podemos observar uma diferença regional muito grande, uma vez que essas duas populações faziam parte da província de Minas Gerais.

Assim, uma vez feitas considerações sobre algumas diferenças regionais das populações observadas pelo naturalista, discutiremos como o viajante francês observou as situações da mendicância e da vagabundagem na obra estudada.

Dito isso, observemos o trecho em que Saint-Hilaire relata a situação da mendicância na região de São João Del Rey:

“Esses pobres são constituídos por negros e mulatos velhos, aleijados e em más condições para o trabalho. Senhores bárbaros tudo tiram da mocidade de seus escravos, abreviando-a muitas vezes um trabalho forçado e, quando não podem mais tirar partido desses infelizes, desembaraçam-se deles, dando-lhes alforria. Então eles não terão outro recurso que pedir esmola, tornando-se um peso morto para a população (SAINT-HILAIRE, 1974).”

Através do trecho descrito percebemos qual parte da população daquele período, de acordo com o viajante, se encontrava na mendicância: a população negra. Também podemos perceber uma forte crítica a ação dos senhores que aproveitariam o máximo do trabalho de seus escravos, e quando os cativos não estariam mais em condições de serviço os alforriariam o que conseqüentemente os lançavam na mendicância na cidade.

Desta forma, os viajantes olharam para a “população pobre de forma preconceituosa.” Segundo Márcia Naxara, freqüentemente os viajantes emitiram juízos ambíguos sobre os brasileiros. “Os elogios mesclam-se à críticas, alternando aprovação e admiração por suas habilidades com reprovação pelo que se lê como incapacidade ou inferioridade (NAXARA, 2004).”

Em outro ponto Saint-Hilaire observa a situação da vagabundagem e as medidas contra as mesmas:

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“Quando estive no rancho de José Henriques comentavam-se as sábias medidas que o governo vinha de tomar para reprimir a vagabundagem, e as ordens que haviam sido dadas aos comandantes de visar os passaportes dos viajantes que atravessavam as aldeias e cidades. Várias vezes, tentaram, já, diminuir o número de vagabundos (vadios), que são o flagelo da província de Minas; mas bando de ociosos aparecem a cada dia, favorecidos pela condescendência dos proprietários; quero crer que as ordens dadas ao tempo em que viajei, terão o mesmo resultado que as anteriores; aliás quando passei um ano mais tarde pela província de Minas não se dizia haver menos vadios que antes (SAINT-HILAIRE, 1974).”

Nota-se que o autor se mostra contra a suposta vagabundagem ao elogiar as

medidas tomadas pelo governo. Entretanto o viajante se mostra descrente quanto ao cumprimento dessas medidas, uma vez que ele percebe que medidas tomadas um ano antes não diminuíram o número de vadios.

Desta forma, vimos as considerações de Saint-Hilaire sobre as populações urbanas, sendo que procuramos nos atentar para as diferenças regionais dessas populações. Também procuramos atentar para as críticas que o autor fez a suposta mendicância e a vagabundagem.

Considerações finais

Procuramos entender o olhar August de Saint-Hilaire sobre as cidades e populações brasileiras, sendo que buscamos compreender algumas especificidades relatadas pelo botânico em suas viagens a algumas cidades brasileiras.

Conforme Torrão Filho, “o discurso não é a cidade, o discurso não reconstrói a cidade, ele edifica uma nova cidade, cujos alicerces estão fincados na memória, na biblioteca e na teoria (TORRÃO FILHO, 2008).”

No primeiro ponto estudamos a visão de Saint-Hilaire sobre as cidades, sendo que analisamos as referências feitas pelo autor a certos lugares localizados nas urbes e as referências à paisagem urbana das cidades, pois como já dissemos anteriormente seu objetivo era o de colher e enviar plantas a Europa. Desta maneira, concluímos que devemos analisar o relato do viajante em suas especificidades, na medida em que suas opiniões variam de acordo com o objeto encontrado.

Analisamos também as populações urbanas e suas especificidades regionais de acordo com o viajante. Também foram feitas algumas análises sobre a vagabundagem e mendicância, sendo que procuramos explorar as críticas do autor a esses males presentes nas cidades brasileiras. Destarte, compreendemos que as atitudes quanto a população brasileira foram ambíguas, uma vez que o francês admirou certos aspectos e determinadas atitudes dessa população, no entanto ressaltou e recriminou a vagabundagem e mendicância que encontrou no espaço urbano.

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Lembramos que o encontro do viajante com o outro o coloca frente a uma situação extremamente diferente, ou seja, quando o viajante relata populações e cidades é possível conhecer os objetos relatados tanto quanto às concepções que guiam os escritos do autor.

Fonte analisada:

HILAIRE, August de Saint. Viagem pelos distritos dos diamantes e litoral do Brasil. Tradução de leonam de Azevedo Pena. São Paulo: Edusp, 1974

Bibliografia citada:

ARAÚJO, Patrícia Vargas L. de. Representações do Brasil: natureza, civilização e espaço urbano. 2005. (Apresentação de Trabalho/Comunicação).

BRESCIANNI. Maria Stella M. História e historiografia das cidades, um percurso. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.) Historiografia brasileira em perspectiva. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1998. p. 237-258. NAXARA, Márcia Regina Capellari. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil do século XIX. Brasília: Editora universidade de Brasília, 2004.

RAMOS, Maria Augusta. O Sertão Mineiro nas observações de Spix e Martius. Revista eletrônica de história. Disponível em: http://www.ichs.ufop.br/cadernosdehistoria/download/CadernosDeHistoria-05-Completo.pdf. 2008.

RUSSEL-WOOD, A.J.R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808. Revista brasileira de história, 1998, vol.18,no.36.

TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquitetura da alteridade: a cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). Campinas, SP, 2008.

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“Fareis guardar o Regimento...”: Jurisdição e poderes dos governadores gerais do Estado do

Brasil na segunda metade do século XVII.

Hugo André Flores Fernandes Araújo

A historiografia brasileira e portuguesa tem desenvolvido nas últimas décadas um intenso debate sobre as relações de poder entre a Monarquia e as suas conquistas. Observamos que os avanços nesse campo do conhecimento têm contribuído para mudanças na interpretação da administração portuguesa no Ultramar.

Um autor importante nesse debate é António Manuel Hespanha, pois esse vem produzindo desde meados dos anos 80 a partir de sua tese de doutoramento (Cf: HESPANHA, 1994.), suas reflexões em mais de duas décadas têm contribuído para a uma melhor compreensão da organização institucional do Império Português, onde a “uniformidade e poder político ilimitado característico de Estados centralizados não existiram nesse tipo de império. Mas, sim, justaposição institucional, pluralidade de modelos jurídicos, diversidade de limitações constitucionais do poder régio e o conseqüente caráter mutuamente negociado de vínculos políticos.” (HESPANHA, 2010. p. 57.)

Como um historiador do direito, António Manuel Hespanha busca os mecanismos de justiça de que essa sociedade se valia; para ele o fato do direito português ser pluralista significa que “longe de um cristalino império da lei, o que podemos extrair das fontes é uma humilde e confusa colcha de retalho de situações jurídicas e soluções jurídicas ad hoc, que a historiografia tradicional muitas vezes descreve como abuso, ignorância jurídica e confusão”, (HESPANHA, 2010. p. 58.) assim interpretações como a de Manuel Araújo, em seu livro Teatro dos vícios, se mostram insuficientes; em seu capítulo “Mandar, favorecer e prevaricar”, onde o autor se propõe a discutir como a justiça operava na América portuguesa, ele define os oficiais da monarquia como “funcionários”, termo anacrônico para o período, e projeta para aquela sociedade dos séculos XVI e XVII os termos “corrupção” e “patrimonialismo” (Cf:ARAÚJO, 1997. p.283-284); enfatizamos que por não haver distinção entre público e privado falar em “corrupção” seria no mínimo equivocado. Nesse sentido concordamos com a afirmativa de Francisco Cosentino, pois

os estudos a respeito dos servidores que compõem o ordenamento político-administrativo das monarquias européias durante a Época Moderna, particularmente a monarquia portuguesa, têm-se mostrado insuficientes nas suas caracterizações sobre a sua natureza no contexto do Antigo Regime. O emprego do termo/conceito burocracia e sua vinculação com o patrimonialismo ou o conceito de classes dominantes, por si só, não atendem a uma precisa conceituação dos servidores que cerceavam os monarcas europeus durante os Quinhentos e o Seiscentos. A esse respeito, consideramos que ofício é o termo adequado, por ser utilizado no Antigo Regime,

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para identificar o exercício de qualquer função, fosse ela pública ou privada, manual ou não. (COSENTINO, 2009. p.73.).

Portanto, inferimos que a necessidade de estudar as jurisdições dos altos ofícios, como os governadores gerais e vice-reis, é chave fundamental para a compreensão da dinâmica de organização de Portugal como uma monarquia pluricontinetal, onde há apenas um reino (Portugal), “uma só nobreza de solar, mas também diversas conquistas extra-européias” (FRAGOSO; GOUVEA, 2009. p.55), caracterizando um poder demasiadamente fraco para se legitimar pela coerção, mas extremamente eficiente capaz de conciliar a miríade de interesses tanto do reino como das conquistas (Cf: FRAGOSO; GOUVEA, 2009. p.54-55.), ou seja, o que António Manuel Hespanha denominará de “pluralismo constitucional do império, em que cada nação submetida podia usufruir o privilégio de preservar sua lei, concedida por tratado ou mesmo pela doutrina do direito comum sobre a autonomia jurisdicional natural das comunidades políticas”. (HESPANHA, 2010. p. 59)

Governadores gerais: seus poderes e jurisdições em uma administração centrífuga

As considerações que apresentaremos a seguir são balizadas para a compreensão da administração na América lusa, no século XVII, após a restauração da dinastia bragantina.

Os governadores gerais recebiam suas instruções de governo no Regimento, documento que definia os poderes e as jurisdições do ofício, estes “combinavam instruções que procuravam atender a necessidades conjunturais com orientações que eram permanentes”. (COSENTINO, 2009, p. 69.) Os Regimentos eram um instrumento de atuação da vontade régia, uma vez que estes “regulamentam as obrigações dos tribunais, dos magistrados ou dos ofícios.” (COSENTINO, 2009, p.72-73.) Estes como representantes do monarca, recebiam funções que permitiam ao rei português se fazer presente, ainda que distante, ou seja, os poderes delegados aos governadores gerais permitiam que estes intermediassem a vontade do rei para com seus súditos. Como Francisco Cosentino constatou, o governo geral é “um ofício régio superior que detinha delegações de jurisdição inferior.” (COSENTINO, 2009. p. 78.) É considerado um ofício superior, pelo fato do governador geral exercer funções próprias do monarca; sua jurisdição é de qualidade inferior por ter suas ações submetidas à decisão do rei e por ser mantido no ofício pelo tempo que este determinasse como é possível observar no segundo item do Regimento de Governador do Brazil António Teles da Silva, “enq. durar o vosso governo não sahireis daly p.a. nenhuma parte salvo se tiverdes expresa ordem minha p.a. fazerdes” (Projeto Resgate – Avulsos da Bahia. AHU_ACL_CU_005.Cx.1; D.40.).

O regimento que analisamos para estas reflexões foi enviado ao governador geral António Teles da Silva, que governou o Estado do Brasil entre 1642 e 1647,

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porém, este Regimento, como observou Francisco Cosentino, é uma cópia do mesmo que foi entregue a Diogo de Mendonça Furtado (1621-1624). Cosentino infere que o “modelo” de Regimento de Diogo de Mendonça Furtado foi sendo usado até a emissão do Regimento de Roque da Costa Barreto (1678-1682), sendo que “a partir daí, os governos passaram a se orientar através desse Regimento, adotando sucessivamente inclusive pelos governantes que vieram com o título de vice-rei, até o início do século XIX.” (COSENTINO, 2009, p. 69.).

Francisco Cosentino atenta que os governadores gerais possuíam regalia¸ que segundo a definição de D. Raphel Bluteau é “hum sinal exterior, demonstrativo da authoridade & Magestade Real. As Regallias essenciaes são fazer leys, investir Magistrados, eleger Ministros dignos, & beneméritos, b.ter moeda, por tributos, & a seus tempos publicar guerra, & fazer pazes” (BLUTEAU, vol. VII, s/d. p.193.), funções essas que encontramos nos Regimentos dos governadores gerais, bem como as indicadas por António Manuel Hespanha ao afirmar que “lhes eram confiados poderes do príncipe, tais como o poder de dispensar lei ou de administrar a graça real.” (HESPANHA, 2010, p.61.).

Justiça, fazenda e milícia eram campos de poder e atuação do ofício de governo geral, assim identificamos como referentes às funções militares os seguintes itens do Regimento: “12º.; 13º.; 14º.; 15º.; 16º.; 17º.; 18º. ; 19º. ; 20º. ; 21º. ; 22º. ; 23º. ; 25º. ; 26º. ; 53º. ; 60º, que especificam funções como inspecionar fortalezas e armazéns de armamentos; se assegurar prover munições e armas às praças e fortalezas; fazer o recrutamento e distribuir os homens entre os locais de mais necessidade; pagar em dia o soldo da gente da guerra.” (ARAÚJO, 2010, p.60.) Como funções de fazenda identificamos os itens: 9º.; 10º.; 11º.; 28º.; 29º.; 30º.; 31º.; 32º.; 33º.; 34º.; 35º.; 36º.; 54º, tratando de assuntos como os preços das mercadorias “q. há na terra e assy das q. elles vão destes Rn.os. ou de outras partes” ; a realização de feiras de comércio com os “gentios”; o povoamento e o cultivo das terras, para estabelecimento de novos engenhos e para “os q. não cumprirem se tirarão e darão a quem as cultivar”; pesca de baleias; pagamento em dia dos oficiais, bispos e clérigos; fazer todo ano uma folha de receita e despesa; arrecadação dos dízimos; concessão de mercês de até 1000 cruzados por ano. Trataremos das funções relativas à justiça nos parágrafos seguintes e quando analisarmos o Regimento do Tribunal da Relação do Estado do Brasil.

Os governadores gerais gozavam de relativa autonomia de decisão, a despeito do excesso de detalhes dos Regimentos (Cf: HESPANHA, 2010, p. 60.), as instruções dos Regimentos indicam que “os casos omissos delas deveriam ser decididos pelo governador, depois de consultar o bispo, o chanceler da Relação da Bahia e o provedor da Fazenda Real” (HESPANHA, 2010, p. 61.); como consta no 57º. item do Regimento, onde percebemos que apesar de ser recomendado ao governador geral se aconselhar com as outras jurisdições presentes no Estado do Brasil, cabia a este a decisão final sobre o procedimento:

provereis nellas como ouverdes mais por meu serviço e sendo as tais couzas de qualidade q.

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convenha ter se nellas segredo, as praticareis com quais quer das ditas pessoas q. for prezente q. vos melhor parecer e se nas couzas assy praticardes a tal pessoa ou pessoas fordes differentes nos pareceres se fará cumprir o em q. vós vos resolverdes e as couzas q. assy comunicardes fareis por escrito com declaração dos pareceres das pessoas com quem os praticardes e assente q. sobre ellas tomardes (Projeto Resgate – Avulsos da Bahia. AHU_ACL_CU_005.Cx.1; D.40.)

Como tem ficado claro na nossa exposição, a existência de diversas jurisdições demandava um ofício que preservasse os poderes e espaços de atuação das mesmas, cabia, portanto, ao governador geral essa intermediação nos conflitos que surgissem; e se o governador estava envolvido no conflito, as instancias superiores como o Conselho Ultramarino, davam parecer ao monarca sobre a situação e remetiam a decisão de volta à América lusa. Nesse sentido percebemos um dos campos de poder que pertenciam ao ofício, a Justiça, pois “cada uma das partes constituintes dos corpos sociais deveria ser conferida a autonomia necessária, para que pudessem desempenhar o seu papel sem comprometimento da articulação natural dos corpos; ou seja, a cada um, de acordo com a sua ordem, aquilo que lhe competia.” (COSENTINO, 2010, p.408.) Essa instrução é claramente apresentada no 37º. item:

A Justiça he de tão grande e particular obrigação minha e tão necess.ria. para a conservação e acrescentam.to. dos estados q. tudo o q. na administração della vos encomendar e encaregar será mto. menos do q. desejo porem confio de vos q. com tal cuidado procurareis se faça inteiram.te. q. não se me haja de vos por bem servido mas por satisfeito em tudo o q. toca a esta obrigação e seja meyo com q. aquelo estado va cada vês em augmento.(Projeto Resgate – Avulsos da Bahia. AHU_ACL_CU_005.Cx.1; D.40.)

Em outros itens do Regimento observamos instruções claras: preservar a jurisdição dos donatários e oficiais de justiça para que estes não acumulem mais do que lhes é de direito (39º.); não invadir o espaço da jurisdição do Bispo nem qualquer outra jurisdição eclesiástica (43º.); a suspensão de letrados e outros que faltem com suas obrigações expressas em seus próprios Regimentos, podendo até serem castigados de acordo com as “calidades de suas culpas” (44º. , 45º.)

O Regimento especifica como deve se dar a comunicação do governador geral com o monarca, através de seus altos conselhos, dessa forma como está no 56º. item:

Das matérias do estado deq. me ouverdes de dar conta tocantes a vossa obrigação me avizareis por via da secretaria da fazenda por via de meu conselho della e as da justiça pello Desembargado do Paço e das ecclesiasticas pella Meza da Consciência e ordens e assy o cumprireis enteiramente tendo particular cuidado de dividir os negócios de maneira q. não venhão dela encaminhados differentem.te. o q. neste capitulo se vos ordena. (Projeto Resgate – Avulsos da Bahia. AHU_ACL_CU_005.Cx.1; D.40.)

A instrução do monarca no 59º. item do Regimento indica o que se espera de um bom governo: a constante comunicação entre o governador e o monarca, assim como a liberdade assegurada de que os demais vassalos possam se comunicar com o rei: “não empidireis escreverem me as Camaras e nem os mais ministros e mais off.es.

e ainda q. sejão queixas porq. a meu serv.o. convem haver nisto a liberdade necess.ria. e

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as informações q. se vos pedirem virão com a clareza q. puder ser.” (Projeto Resgate – Avulsos da Bahia. AHU_ACL_CU_005.Cx.1; D.40.)

O Regimento de António Teles da Silva data de 1642, como dissemos anteriormente é uma cópia do Regimento de Diogo de Mendonça Furtado originalmente escrito em 1621. Essa explicação se faz necessária, pois uma vez que encontramos diversos itens do Regimento de 1642 fazendo referência ao Tribunal da Relação da Bahia, tribunal esse que foi extinto em 1626 e recriado em 1652 (com o nome de Tribunal da Relação do Estado do Brasil); o que nos possibilita atestar esse status de cópia do Regimento anterior (Cf: COSENTINO, 2009. p.206.), e mais do que isso, esse fato nos indica uma das práticas administrativas do império português desde a instituição do governo geral no Brasil, a repetição de instruções; para tanto Francisco Cosentino afirma que os Regimentos trazidos pelos governadores gerais: Tomé de Sousa (1549-1553), Francisco Giraldes (1588), Gaspar de Sousa (1612-1616), Diogo de Mendonça Furtado (1621-1624) e Roque da Costa Barreto (1678-1682), “serviram de modelo para todos os governadores que foram enviados ao Brasil” (COSENTINO, 2009. p.205.); nesse sentido um Regimento era repetido até que outro fosse enviado.

Entre 1650 e 1651 encontramos pedidos de reativação do Tribunal da Relação remetidos ao Monarca, via Conselho Ultramarino (Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.11. Doc. 1390 e 1391), nestes a Câmara da Bahia e o Governador geral, D. João Rodrigues de Vasconcelos e Souza, o 2º. Conde de Castelo Melhor, pedem ao Rei, D. João IV, a criação de um tribunal da relação “de seis ministros, ou se semelhante a que já nos annos passados ouve, e se Extinguio”. (Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.11. Doc. 1390). Estes apresentam como justificativa para tal pedido “a necessidade, que naquelle Estado há de ministros, que administrem justiça as partes, por não ser creivel a quantidade de delictos que ficão sem castigo, sem culpa do ouvidor geral, que não pode acodir a tantos negócios o que serve de os delinqüentes se animarem a continuar em seus vícios, e de outros os imitarem.” (Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.11. Doc. 1390).

Os membros do Conselho Ultramarino emitiram um parecer favorável a criação do referido Tribunal, e segundo Stuart Schwartz a Câmara da Bahia já vinha encaminhando pedidos de restituição desde 1642, sendo importante ressaltar que a mesma câmara pediu pela extinção do tribunal em 1626. (Cf: SCHWARTZ, Stuart B, 1979. p.192-193.) Segundo o parecer emitido pelo Conselho Ultramarino o novo Tribunal deveria ser aos moldes do antigo:

Pareceo como VMg.de. della mandar aver que devia ser servido de com comunicaçaõ do Dez.o. do Paço, mandar criar na Bahia hua nova Relação de seis ministros, com pouca ou nenhua despeza de sua faz.a. E o mesmo parece denovo a este Conselho p.las. causas Razões referidas nas Cartas do Gov.or. e Cam.ra. da Bahia E isto, não julgando VMg.de. por mais serviço seu E boa administraçaõ da justiça E como os officiaes da Camara pedem Enviar aly hua Relaçaõ semelhante a dos annos passados, e com a mesma jurisdiçaõ. (Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.11. Doc. 1391)

No Regimento do Tribunal da Relação do Estado do Brasil, enviado em 1652,

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encontramos poucas diferenças, segundo indicam os autores que estudaram os dois Regimentos (Cf: MENDONÇA, 1972. p. 657-658. e SCHWARTZ, 1979. p. 199.), uma vez que muitos itens foram repetidos, alguns com acréscimos. Como itens novos identificamos: 5º., 11º., 12º. (que está contido no Regimento anterior, mas sofre acréscimos significativos, por isso o consideramos como novo); 21º; inferimos também que as mudanças significativas de um Regimento para o outro residem no que toca as atribuições do Governador geral e do Chanceler da Relação, nos deteremos na análise das atribuições referentes ao primeiro ofício.

É possível perceber que dos 71 itens presentes, os 22 destinam-se ao que está indicado como “TÍTULO da ordem que o Governador do Estado do Brasil há-de-ter nas cousas da Justiça, na Relação do dito Estado” (o Regimento foi publicado em MENDONÇA, 1972, p. 659-670.; encontramos o mesmo Regimento em: Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.12. Doc.1486, porém este está incompleto). Percebemos na análise que algumas funções de justiça são atribuídas ao Governador geral, como: ser informado antes da execução de sentenças, tendo que aprovar as mesmas para se efetivarem (5º.); pagar os ordenados aos Desembargadores (9º.); analisar as petições de alvarás de fiança (10º.); receber “petições de perdões” e comutar as condenações ou penas, salvo uma série de casos específicos em que não se podia tomar “petições de perdões” (12º.); provimento das “serventias de Ofícios de Justiça e Fazenda” quando estas tiverem vagas, cuidando para que sejam providas “pessoas beneméritas e aptas para os ditos Oficios” (13º.); mandar tirar residências a cada três anos dos Capitães, de modo que apenas com a provisão régio voltem a exercer o ofício (14º.); “o Governador mandará fazer um rol de todos os ditos feitos,” e o mandará ao Conselho Ultramarino todo ano (16º.); ordenar devassas a serem tiradas de todos os Oficiais de Justiça e Fazenda da cidade de Salvador (17º.); conservar a paz com os “Gentios” (21º.)

Regimentos e situações de governo

Após a caracterização dos Regimentos e dos poderes investidos no ofício do governo geral, passamos a análise de uma situação de governo, onde o Regimento é uma referência para a tomada de decisão e procedimentos de governação. Temos que ter em vista, como dissemos anteriormente, que a utilização dos Regimentos é uma característica fundamental do viés jurisdicional da monarquia portuguesa, uma vez que não compreendemos as jurisdições na América Portuguesa como rigidamente hierarquizadas, mas como justapostas institucionalmente, conforme o modelo sugerido por António Manuel Hespanha, de modo que cabia ao Governador geral zelar pelo respeito e coexistência das mesmas.

Encontramos uma consulta do Conselho Ultramarino, datada de 5 de outubro de 1651, onde António Camelo, morador da cidade de Salvador, fazia petição de provimento no ofício de escrivão da ouvidoria geral. Este apresentava como justificativas para seu pedido o fato de “que há mais de vinte e quatro anos que serve a VMg.de. no estado do Brazil, asy nos cargos de guerra, como em muitos officios, e

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comissões, de importância (...) ser parente do defunto e de seus filhos, e para favorecer a viúva” (Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.12. Doc. 1440-1441.), este ainda afirma em sua petição que o governador geral não teria “Jurisdição para prover propriedades de officios, nem as serventias” (Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.12. Doc. 1440-1441.), uma vez que António Camelo estando provido no referido ofício, foi impedido de exercê-lo pelo governador geral Conde de Castelo Melhor, este último afirmando que já havia provido “Joaõ Pereira Bacelar, em vertude de hua carta de VMg.de. de recomendaçaõ” (Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.12. Doc. 1440-1441.). António Camelo pedia, portanto, a restituição da mercê que lhe fora revogada pelo Conde de Castelo Melhor, fato que teve lugar de discussão entre os conselheiros e gerou um parecer que fazia referência ao Regimento.

O parecer formulado pelo Conselho Ultramarino era favorável a António Camelo:

Ao cons.o. parece que o Regim.to. de q. huzão os gov.res. do Brazil, naõ da lugar ao que o Conde fes, nem a poder dizer com certeza, como disse, que o provim.to. das serventias dos off.os. lhe pertence a privativamente, por q.to. como Vmg.de. sendo servido mandar ascer dos cap.os. 8 e 41 de que se imviaõ a Vmg.de. as copias com esta cons.ta., He concedido por elles som.te., poderem os gov.res. prover as serventias em quanto VMg.de. naõ mandar o contr.o. e ainda com obrigação de avizarem das q. provem, p.a. VMg.de.

(Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.12. Doc. 1440-1441)

Ao que se seguia no final do parecer cópia dos itens 8º. e 41º. do Regimento do governador geral, onde estavam especificadas as questões sobre o provimento de ofícios; o 8º. item indica que o governador geral ao constatar que houvessem vagas do ofícios de justiça e fazenda, poderia prover pessoas qualificadas para aquela função “ate se prézentarem pessoas q. tenhaõ provizões minhas para haverem de servir os taes officios” (Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.12. Doc. 1440-1441), fato que o governador parece ter negligenciado e por conseqüência originado essa discussão no Conselho Ultramarino. O 41º. Item repete basicamente a instrução, acrescentando que o governador deveria prover no ofício as pessoas mais aptas, com ênfase de que ao fazê-lo deveria dar conta ao rei “dizendo o cargo q. vagou, e porquem, se deixou filhos, e em que o provestes” (Projeto Resgate – Luisa da Fonseca. AHU_ACL_CU_Cx.12. Doc. 1440-1441). Não encontramos documento que comprovasse a efetivação da ordem régia remetida, mas consideramos salutar identificar os procedimentos que a Monarquia utilizava para resolver questões do governo: a referência ao que estava previsto no Regimento, bem como o cumprimento desta.

Finalmente, buscamos ao longo desse texto delimitar os poderes e funções que os governadores gerais possuíam na segunda metade do século XVII, através da análise do Regimento, importante compilação de instruções que delimitava a jurisdição, poderes e procedimentos a serem adotados pelos governadores gerais. Nosso intuito é confrontar as explicações tradicionais sobre o ofício, que é considerado como basicamente militar, e por vezes essas não são satisfatórias para uma melhor análise

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do governo geral. Inferimos que as recentes contribuições no campo historiográfico sobre a organização da monarquia e suas conquistas permitem que os estudos possam avançar em melhores caracterizações das práticas políticas e administrativas, tanto da América Lusa como do Reino e seus outros territórios ultramarinos.

Bibliografia

ARAÚJO, Emanuel. Teatro dos vícios: Transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

ARAÚJO, Hugo André F. F. “Conde de Castelo Melhor: Carreira e trajetória militar do governador geral do Estado do Brasil.” In: Anais da XXVII Semana de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. “O Brasil em Conflitos Armados: guerras, revoltas e revoluções.”. Juiz de Fora, 2010.

COSENTINO, Francisco Carlos C. Governadores Gerais do Estado do Brasil Séculos (XVI-XVII): Ofício, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: Fapemig. 2009.

“Governo-Geral do Estado do Brasil: governação, jurisdições e conflitos (séculos XVI e XVII)” In: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs.) Na Trama das Redes: Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FRAGOSO, João; GOUVEA, Maria de Fátima Silva. “Monarquia Pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII”. In: Tempo. Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro. vol. 14, n.o 27, 2009.

HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: Instituições e poder político – Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994.

“Antigo Regime nos trópicos? : Um debate sobre o modelo político do império colonial português.” In: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs.) Na Trama das Redes: Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil. IHGB. Conselho Federal de Cultura. 1972.

SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial: A Suprema corte da Bahia e seus Juízes: 1609-1751. São Paulo: Editora Perspectiva. 1979.

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Capoeira Angola, Educação e Cultura: o ensino por perpectivas e

práticas libertáriasIrene Chada Ribeiro Mariana Castro Teixeira Dashiell Dayer

Cultura e sistemas de significação

A sociedade como sistema de significação estipula códigos e valores vividos de forma consciente e/ou inconsciente pelos indivíduos da mesma cultura. O sentido da vida social reside, muitas vezes, onde não existe - aparentemente - sentido algum.

“A cultura, distintivo das sociedades humanas, é como um mapa que orienta o comportamento dos indivíduos em sua vida social. Puramente convencional, esse mapa não se confunde com o território: é uma representação abstrata dele, submetida a uma lógica que permite decifrá-lo. Viver em sociedade é viver sob a dominação dessa lógica e as pessoas se comportam segundo as exigências dela, muitas vezes sem que disso tenham consciência” (RODRIGUES, 1986, p. 11, grifo nosso)”

As representações são a relação simbólica dos indivíduos entre si e com o meio, ela se dá através de signos e significações construídos historicamente. A vida social é constituída por elementos que têm como função significar e é na relação entre esses elementos que ocorre a significação. Através da linguagem esses elementos adquirem sentido socialmente.

“A comunicação é um processo cultural. Mais explícitamente, a linguagem humana é um produto da cultura, mas não existiria cultura se o homem não tivesse a possibilidade de desenvolver um sistema articulado de comunicação oral56”(LARAIA, 1997, p. 52).

O processo de significação estrutura a construção referencial da própria

realidade. É na cultura e na mediação entre indivíduos que o processo de significação do mundo faz sentido. Através da linguagem e da vida social a construção simbólica do mundo é feita pelos indivíduos e por seus corpos, por sujeitos ativos na produção da cultura. Santos destaca “o corpo como signo importante de expressão e apreensão da realidade. Corpo constituinte e construtor de cultura e que, nesse processo, institui o acervo de conhecimentos corporais decorrentes da história humana”, compreendendo que uma dimensão de significação só é possível corporalmente.

56 Ressaltamos que não é apenas a linguagem oral que dá sentido aos elementos inseridos na cultura.

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Assim, todos os humanos produzem a cultura ao mesmo tempo em que por ela são produzidos. E a educação se constituiu como um pilar no qual essas lógicas simbólicas são introjetadas na sociedade. (GOMES, 2003)

O homem é um ser cultural. A Cultura orienta o comportamento dos indivíduos na vida social, de forma que o comportamento humano é simbólico, e assim, o corpo carrega simbologias de seu tempo e de sua cultura (SANTOS):

“As significações são construídas corporalmente, logo há as marcas de nossa estrutura simbólica em nossos corpos, em nossa relação com o mundo. Da mesma forma como a estrutura social marca a regulação moral do individuo, a cultura orientando a vida social, a relação com o outro, os sentidos das suas representações.” (GOMES, 2003, p. )

A conquista da América inaugura o processo da modernidade e a organização colonial do mundo, com uma construção simbólica sob o referencial Ocidental:

“Com o início do colonialismo na América inicia-se não apenas a organização colonial do mundo mas –simultaneamente– a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória (Mignolo, 1995) e do imaginário (Quijano, 1992)” (LANDER, 2005)

Um imaginário impregnado pela visão de modernidade, que, segundo Lander, impregna a visão de mundo das ciências sociais modernas, trazendo a cosmovisão modernidade a partir de quatro concepções:

“1) a visão universal da história associada à idéia de progresso (a partir da qual se constrói a classificação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências históricas); 2) a “naturalização” tanto das relações sociais como da “natureza humana” da sociedade liberal-capitalista; 3) a naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade; e 4) a necessária superioridade dos conhecimentos que essa sociedade produz (“ciência”) em relação a todos os outros conhecimentos.” (LANDER, 2005)

A ciência ocupa assim o lócus de produção de verdades, influenciando e reproduzindo os valores culturais na e da sociedade moderna. Há um paradigma de ciência que valoriza uma suposta objetividade e neutralidade, especializando e hierarquizando o conhecimento com separações e reducionismos vários, buscando a demonstrabilidade e a “Lei Científica”. Nega a validade dos saberes não científicos, assim como os conhecimentos das ciências humanas que não são demonstráveis nem reproduzidos para serem comprovados. Há também uma negação às experiências corpóreas na construção de saberes na modernidade que busca verdades universais e nega subjetividades.

A modernidade, junto com a consolidação dos Estados Nacionais e das cidades modernas, é marcada pela criação de instituições, sob responsabilidade do Estado, que oferecem serviços de educação, saúde e segurança. Instituições que vão ser responsáveis por dar ordem à sociedade, ora formando pessoas, a partir

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da transmissão de valores e conhecimentos, com as escolas, ora enquadrando os “loucos”, a partir do referencial do que seja ser “normal”, com os hospitais psiquiátricos; e vão reproduzir no plano microssocial valores modernos.

Essa episteme surge na Europa, mas se afirma como um conhecimento universal, naturalizando preceitos modernos. Este artigo vem no sentido de entender a educação convencional, eurocêntrica, centrada no professor, com transmissão do conhecimento como alicerce para a ordem social moderna cujos sistemas de representação - principalmente os vinculados através da educação – se encontram dentro de uma lógica subjetiva e simbólica de dominação garantindo, dessa maneira, uma ordenação para a sociedade.

A partir da discussão supracitada, analisaremos a influência da cultura hegemônica na escola, com a naturalização de um sistema histórico de dominação, na construção da representação simbólica do negro no Brasil. Representação essa que traz consigo um valor negativo, diluído na idéia de que o Brasil é democraticamente racial.

Destacamos que é preciso no ensino das escolas brasileiras uma análise crítica e política sobre os negros enquanto um grupo sociocultural específico, cuja valorização da produção cultural e da história permitam a construção de uma identidade que não esteja arraigada no mito da democracia racial e, ao contrário, possibilite o posicionamento do negro frente a essa representação historicamente construída, no sentido de que a cultura negra só pode ser pensada na relação de alteridade com outras culturas.

Considerando que “se há em cada gesto, de certa forma, a história da humanidade, qual o impacto dessa historicidade no processo de incorporação de sentidos/significados pelo sujeito?” (SANTOS), procuramos entender, como uma identidade individual pode ser redimensionada para a sociedade, construindo uma história e uma representação simbólica a partir dos próprios atores.

Educação e modernidade

De acordo com Todorov (1900), a modernidade é inaugurada com a chegada de Colombo na América. Assim, é a partir da descoberta que o eu faz do outro que nossa identidade presente é fundada. Para o autor, esse “mal encontro” é inédito e se diferencia das outras chegadas dos europeus nos outros continentes na medida em que é a primeira vez que o homem tem a percepção da totalidade da qual fazem parte.

A necessidade moderna da ordem nasce e está intimamente ligada com o esforço de classificação e ordenação do mundo. É preciso classificar loucamente:

“Classificar significa separar, segregar. (...) Em outras palavras, é dar ao mundo uma estrutura: manipular suas probabilidades, tornar alguns eventos mais prováveis que outros, comportar-se como se os eventos não fossem casuais ou limitar ou eliminar sua casualidade” (BAUMAN, p. 9).

Entendemos a modernidade como um modo de se pensar a história; como a inauguração de um pensar em si e no mundo; de um como ser. Então, a alteridade

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e o modo como o outro e o eu foram interpretados pelos modernos estão na base para o entendimento da nossa identidade e da cultura que chamamos hegemônica e dominante.

Se entendermos a cultura dentro da sua lógica subjetiva de representação individual e social, com sua reprodução/transgressão, entendemos também como as estruturas modernas escola, hospital, Estado-nação se “apoderam” dos códigos morais para sua construção e consolidação.

Porém, essas estruturas, através da classificação e da vontade de verdade modernas, ao mesmo tempo em que criam a ordem, criam seu irmão gêmeo, o caos. Sendo assim, os códigos morais contribuem para a construção, consolidação e o medo das estruturas. “A luta dos poderes modernos pela ordem artificial precisa de uma cultura que explore os limites e as limitações do poder do artifício” (BAUMAN, p. 17).

Desse modo, a construção histórica da nossa identidade, das nossas culturas e de nossas estruturas está baseada na prática moderna de criação de uma ordem artificial e, consequentemente, de intolerância ao que é outro: “a construção da ordem coloca os limites à incorporação e à admissão. Ela exige a negação dos direitos e das razões de tudo que não pode ser assimilado – a deslegitimação do outro” (BAUMAN, p. 16).

Entendendo a escola como estrutura fundamental da reprodução dos valores e significaçoes sociais, este artigo faz uma Crítica da modernidade enquanto fundadora de moldes educacionais cujos padrões são baseados na física newtoniana, na ciência descartiana, na manutenção da ordem. No Brasil temos na escola a construção simbólica de sistemas de representação negativos sobre o negro. Isto se dá a partir da lógica da colonialidade do saber: com “um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes próprias (PORTO-GONÇALVES, 2005)”.

A eficácia do pensamento científico moderno está na

“naturalização das relações sociais, a noção de acordo com a qual as características da sociedade chamada moderna são a expressão das tendências espontâneas e naturais do desenvolvimento histórico da sociedade. A sociedade liberal constitui – de acordo com esta perspectiva – não apenas a ordem social desejável, mas a única possível (LANDER, 2005, grifo do autor).”

Na naturalização dos preceitos modernos é de suma importância a existência de instituições, como a família, a escola e o trabalho para a manutenção dessa ordem social através de mecanismos morais.

A escola tradicional é um espaço importante de formação e socialização dos valores morais e de boa conduta da sociedade, conflito entre o indivíduo e o que a sociedade espera que ele seja. Essa educação reproduz a dicotomia moderna homem e natureza, com mensagens “sobre o que é certo e o que é errado, o que é considerado

57 Com mecanismos como “bom comportamento”, bem como medo a julgamentos, culpa, vergonha e sensação de pecado. Para esse assunto ver MOTA, Maria Veranilda Soares. Princípios Reichianos fundamentais para a educação: base para a formação do professor. Piracicaba-SP, 1999.

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‘coisa dos homens’ e o que é ‘coisa dos bichos’” (GOMES, 2003), nesse sentido domesticando o comportamento, o corpo e as mentes, destruindo a autenticidade e criatividade das crianças, desenvolvendo a passividade do caráter57.

É relevante que “nesse processo de significação, parece que a palavra, mais que outros signos, centraliza o processo de interação com a realidade” (SANTOS), de maneira que a educação tradicional negligencia o corpo no processo de aprendizagem. Mas também a visão é valorizada – no sentido da imagem como realidade, traduzida na expressão de Barthes como “uma imagem vale mais que mil palavras”. A linguagem do corpo é reduzida numa questão puramente estética, com valores de um corpo ideal.

Há uma relação intrínseca entre essas instituições e a construção simbólica de significação, naturalizando a estrutura social. A educação articula a relação esfera individual e coletiva, tornando cultural a vivência coletiva, podendo naturalizar, através do legado eurocêntrico, ou problematizar, através de referenciais próprios.

A identidade brasileira foi outrora construída tendo como referência representações negativas do negro, as quais influenciam sua inserção da sociedade. A primeira simbologia está arraigada a imagem do negro escravo, seguida por mecanismos de (não)inserção dos negros nas instâncias sociais variadas, e também pela invisibilização da identidade e cultura negra a partir do mito da democracia racial. Os anos de escravidão deixam um legado histórico-social que não é suprido com o simples fim da escravidão, eles têm conseqüências para a atual conformação da sociedade, de forma que na educação escolar, “ao tentarmos compreender, debater e problematizar a cultura negra, não podemos desconsiderar a existência do racismo e da desigualdade entre negros e brancos em nossa sociedade” (GOMES, 2003, p. 77).

Nesse processo histórico e cultural brasileiro o negro constrói uma corporeidade em um movimento tenso de rejeição/aceitação, negação/afirmação do corpo. Faz-se necessário assim, mais que a valorização da riqueza cultural, mas um aceitar-se negro, envolvendo questões identitárias complexas e de pertencimento étnico/racial individual e coletivamente. (GOMES, 2003, p. 81)

Cultura negra e o mito da democracia racial

A história do povo brasileiro, numa analise cultural, se integra de forma intrínseca com a cultura do povo africano um dia escravizado por Portugal. Algumas classificações (significações) contribuíram para a estruturação de alicerces negativos sobre a história e cultura dos afro-descendentes no Brasil. Na perspectiva predominante, ainda hoje, há uma super-valorização das questões apresentadas pela cultura européia, branca e a desqualificação dos elementos da cultura afro-descendente, que desencadeia uma vedação institucionalizada da historia e identidade negra. Tal preceito ocorre não apenas pelas políticas publicas de “branqueamento” ou pelas necessidades econômicas conjunturais, mas também e principalmente na efervescência das relações sociais balizadas pelo enraizamento da inferiorização do negro em nossa sociedade, sendo introjetado inconscientemente pela educação.

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A institucionalização do preconceito se dá a partir da formulação da idéia de democracia racial, ou seja, a visão de que no Brasil, diferentemente de outros países segregados racialmente, se dá uma interação pacífica e igual das diferentes raças, constituindo-se em um país mestiço. As políticas públicas na área da educação balizam-se na idéia de que nós nascemos de um caldeamento de raças, “quem não tem um sangue um pouco português, de africano, de indígena?” Essa idéia dilui na mesma problemática, a questão biológica e a questão do preconceito concebido socialmente. Para Tatiane Cosentino, daí originam quatro proposições:

“ primeiro, o entendimento de que o processo de miscigenação teria dissolvido o elemento negro, apagando a idéia de raça inclusive na consolidação das desigualdades sociais, atribuídas à pobreza; segundo, raça aparece como uma categoria subsumida à classe; terceiro a idéia de mérito, de que o individuo é o único responsável por seu fracasso ou sucesso e por ultimo o tratamento dispensado pelo movimento negro, de cunho eminentemente cultural.” (2008, p.9)

Dessa forma, o que nos separa de outros povos não seria propriamente a tolerância racial, mas sim o fato de que no processo de transformação do Brasil.

“(...)rumo a nos tornarmos uma Europa Tropical, as origens étnicas e raciais de cada um não seria levado em consideração, ou tanta consideração. A partir desse entendimento, cada um estaria devidamente limpo de suas marcas, físicas e culturais, negras ou indígenas mais ostensivas.” (Paixão,2008, p.24)

Portanto, para essa visão hegemônica construída, não há a necessidade de políticas ou classificações positivas sobre o negro, uma vez que essa classificação ou segregação de raça não existe em nosso país “mestiço”. Tal visão se alterou a partir da entrada do movimento negro na cena pública construindo o debate a partir da desigualdade racial. Porém, continua prevalecendo: as religiões africanas são obscurizadas; o espaço no mercado de trabalho ou nos espaços de poder é reduzido; o preconceito policial contra o negro é latente, assim como os canais pelos quais estes buscam se reorganizar e dialogar com um passado que os une são negativamente significados.

A análise que busca integrar de forma homogênea toda a cultura brasileira, miscigenada, não pode ser desconsiderada. Não seria esse o fim ideal? Um país integrado horizontalmente com todas as culturas e ritos que a compõem? Devem ser respeitados os espaços nos quais as culturas se expressam.

“Uma sociedade multicultural reconhece e, mais do que isso, valoriza as diferentes culturas que se desenvolvem em seu meio. E, numa situação de igualdade de direitos, a tendência é o diálogo e a troca entre as diversas culturas, enriquecendo a sociedade.” (REIS, 2002, p. 19)

Reconhecer e valorizar a identidade negra não é, como argumenta César Benjamim58, uma fragmentação da realidade em subgrupos (no caso aqui, a raça).

58 Na revista Caros amigos (2002), num debate sobre a questão das ações afirmativas, César Benjamim analisa a questão do negro enquanto raça.

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Não há a intenção de desmiscigenar ou desculturizar o Brasil, mas reconhecer, que nem todas as vozes que introjetaram-se aqui por diferentes origens culturais foram positivamente ouvidas. A construção de um país realmente igualitário no que diz respeito à diversidade cultural, passa exatamente pela necessidade de desconstruir racismos já arraigados no subconsciente.

César Benjamin problematiza o reconhecimento do racismo como uma construção de “identidades reativas”. Seria a tentativa de desconstruir a idéia de miscigenação a partir da radicalidade, ou seja, a contra ofensiva do movimento negro ao analisar a sociedade se daria no sentido de negativizar o processo brasileiro em vez de exaltá-lo.

”... o mito da ausência de racismos encontrou sua resposta no contramito de uma sociedade essencial e visceralmente racista. Construiu-se assim um olhar carregado de negatividade – pois as identidades reativas são, por definição, negativas. A negatividade, por sua vez, se apresenta como radicalidade.” (Benjamin, 2002, p.22)

Ao contrário do que supõe Benjamin, a proposta é assumir a nossa história, reconhecer o pé de desigualdade a qual estamos inseridos, verificadas no dia-a-dia, e que foram camufladas e ornamentadas pelas mais belas flores retóricas, para daí re-contar a nossa história a partir do olhar dos atores sociais que a viveram. Explicitar então os meios mais sutis pelos quais a cultura negra é desqualificada, como a educação, sendo reproduzida socialmente e construindo simbolicamente uma representação negativa do negro.

Identidade e pertencimento étnico/racial

É necessário pensar epistemologicamente sobre a questão da identidade e da cultura negra. Este é um movimento de questionamento da construção histórica, social e cultural sobre o papel dos negros descendentes dos escravos africanos na formação da identidade do próprio brasileiro, bem como na inserção em práticas cotidianas, na vida em sociedade e em políticas públicas.

Embaçada no mito da democracia racial e na ideologia do branqueamento, essa representação do negro - que de certa forma é hegemônica em nossa sociedade (em termos institucionais como a educação, do senso comum ou do terreno do inconsciente e do impalpável) – é aquela que o coloca como um elemento camuflado, que precisa ser escondido ou maquiado, da história do Brasil.

A negritude e suas representações, o ser negro, sentir-se negro, enfim, aceitar-se negro está para além das condições de classe59, fazem parte de um processo identitário dos sujeitos envolvidos, bem como para os negros enquanto semelhantes. Identidade que está no plano individual, mas que é redimensionada na vida em sociedade e nas estruturas dessa sociedade, e esse redimensionamento é que pode ter uma função política na vida social. E a educação está aqui.

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Se é na escola onde as representações negativas do negro são reproduzidas, é nela também onde essas representações podem ser superadas. Faz-se então importante uma descolonização do pensamento e do pensar. “Ressignificar e construir representações positivas sobre o negro, sua história, sua cultura, sua corporeidade e sua estética” (GOMES, 2003, p. 81) a partir das epistemes que lhe são próprias, como propõe Porto-Gonçalves.

A preocupação em um estudo sistêmico sobre esse tema tem o caráter político bem acentuado, pois defende a importância da afirmação de um grupo étnico-racial60 enquanto grupo possuidor de identidade e cultura próprias. Construídas e afirmadas socialmente, culturalmente e historicamente, as representações do negro devem ser o ponto de referencia para a construção da alteridade em nossa sociedade, bem como papel constituidor da própria identidade brasileira.

Portanto, o ato próprio da ressignificação, a transgressão juntamente com a reprodução da cultura, permite a construção da identidade negra no encontro com a diferença:

“É na vida cotidiana que os sujeitos se vêem diante do dilema da reprodução cultural e da transgressão cultural, articulando a sua identidade no encontro com as diferenças. Assim, quando a vida cotidiana adquire novos contornos, mudam também os processos de construção da identidade cultural. Mudando as identidades muda também a cultura, pois os sujeitos mudam a cultura e a cultura muda os sujeitos” (BACKES, 2006, p. 430).

Ressignificada simbolicamente através de suas práticas cotidianas e corporais enquanto negro, essas representações mudam a cultura, em um movimento recíproco.

Vemos no reconhecimento da individualidade do negro a possibilidade de um se reconhecer e ampliar, contextualizando sua história e contemporaneidade. Nesse sentido, manifestações culturais e da corporeidade afro-descentes, como capoeira, jongo, tambor de crioula, ao mesmo tempo em que possuem uma memória imbricada, trazem signos e significados desse legado da história.

O reconhecimento e visibilidade dessas manifestações trazem um espaço de valorização do ser negro, tanto no campo simbólico como valores históricos, rituais, bem como no jogo da identidade e consciência corporal, com uma re-existência da negritude.

BibliografiaBACKES, José Licínio. Articulando raça e classe: efeitos para a construção da identidade afrodescendente. Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 95, mai/ago, 2006.

59 Sempre, porém, sem perder de vista o corte econômico neste processo. Sobre esse assunto ver BACKES, p. 434-435.60 Entendemos essa diferenciação racial não pelo viés genético, mas como construção cultural ao longo da experiência histórica e social: forma de classificação do humano associada à questão da alteridade. Sobre esse assunto ver GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação. Maio/Jun/Jul/Ago, 2003, n. 23. p. 75-85.

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BENJAMIN, César. Racismo não. Revista Caros Amigos, n66, ano VI, set/2002.GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação. Maio/Jun/Jul/Ago, 2003, n. 23. p. 75-85.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 11 edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

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O Teatro Experimental do Negro (TEN) e o Movimento Negritude: encontros e desencontros

na afirmação de uma “nova” estética cultural Jacinto Santana Lima

Neste estudo trabalhamos com os conceitos de estética e cultura: entendendo a estética como uma elaboração social, que busca definir ou caracterizar a “beleza” e os modos de percebê-la ou senti-la; e a cultura enquanto simbologia ou significado, em contraposição à perspectiva que sobrepõe a prática em detrimento a interpretação simbólica da cultura (SAHLINS, 2003, p.205).

Ao definirmos estética como uma elaboração social empreendida, conscientemente ou não, por uma coletividade humana em um determinado contexto histórico-cultural, afirmamos também que a mesma se encontra permeada por um conjunto de valores simbólicos e justificativas ideológicas, capazes de serem analisados para além do campo artístico. Assim, não pensamos a estética como um conceito exclusivo do campo das artes, mas de maneira mais ampla.

As premissas platônicas que afirmam a existência de uma “beleza em si” (ainda que para Platão só existisse no mundo das idéias) influenciaram gerações de pensadores europeus, que a partir dessas premissas buscaram classificar a estética (o belo e a beleza). Deste modo, portanto, foi no pensamento platônico, de acordo com Mikel Dufrenne, que o classicismo buscou referências “para conceber uma estética normativa, fundada sobre a idéia de que há, de fato, uma idéia ou uma essência do Belo” (DUFRENNE, 1972, p.37). Ainda de acordo com Dufrenne, esta crença na existência do “Belo”, justificando suas normas estéticas como se fossem imposições da natureza, absolutizou (ou universalizou) – mesmo não tendo consciência disso – “uma idéia do Belo que é relativa” (DUFRENNE, 1972, p.38). Conquanto, tal concepção tenha se consolidado na Europa, entre os séculos XVI e XVIII, ela foi, no declinar do período iluminista, criticada em sua essência por Emmanuel Kant. Segundo argumenta Dufrenne, Kant teria inclinado-se para:

A negação de toda objetividade do belo; o belo não [seria para ele] nem uma idéia em si, nem uma idéia no objeto, nem um conceito objetivamente definível, nem uma propriedade objetiva do objeto; [seria] uma qualidade que atribuímos ao objeto para exprimir a experiência que fazemos de certo estado de nossa subjetividade atestada pelo nosso prazer (DUFRENNE, 1972, p.40-41).

Fernando Bastos, reforçando este ponto, afirma que Emmanuel Kant – em seu livro Crítica do Julgamento (1790) – ao analisar “os juízos estéticos” teria percebido que nós “julgamos as coisas segundo a impressão agradável ou desagradável que exercem sobre o nosso sentimento” (BASTOS, 1987, p.176). Sendo esta impressão, até certo

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ponto, determinada por condicionamentos e valores a priori, concluí-se que nossas concepções do Belo ou do estético são fenômenos subjetivos, parciais e temporais.

Apesar de Emmanuel Kant ter trazido à luz esses questionamentos, acerca da subjetividade que se encontrava atrelada às concepções dos homens sobre o Belo, o que prevaleceu no pensamento ocidental foi a idéia de que um modelo estético racional e universal existiria.

Já o conceito antropológico de cultura sempre foi tema de debates, dadas às excessivas definições e significações que o acompanham. Desde a sua transposição, no século XVIII – do campo ligado à cultura do plantio agrícola e do trato com os animais, para o campo da experiência social humana, passando desde então a significar o acúmulo intelectual de conhecimentos ligados às manifestações artísticas, espirituais, científicas, etc. – o termo cultura ganhou variadas significações e abordagens. No século XIX, entretanto, a noção de cultura foi utilizada associada à idéia de civilização, a partir daí foi um passo para que germinassem as crenças de que um povo tido por civilizado era portador de cultura e que, ao contrário, aquele tido por incivilizado não a portaria. Elisa Larkin Nascimento afirma que “a negação da capacidade civilizatória dos africanos” foi um elemento discursivo fundamental para a elaboração das teorias sobre a inferioridade dos negros africanos (e seus descendentes) (NASCIMENTO, 2003, p.163-164), e que a filosofia e a ciência desenvolvidas na Europa deram suporte ao desenvolvimento de uma “identidade cultural européia”, que forjou-se “em contraposição a seu oposto absoluto, a imagem negativa dos povos africanos”(NASCIMENTO, 2003, p.160).

Assim como a unidade cultural de uma nação se constitui “através do exercício de diferentes formas de poder cultural” (HALL, 2006, p.62), não importando quão diferentes seus membros sejam em termos de origem, classe ou gênero, a construção de uma unidade estética cultural européia se fez mediante a amplos dispositivos discursivos. Dispositivos estes, nos quais a beleza, o gosto e os referenciais simbólicos europeus foram situados como sinônimos de bom, adequado e civilizado, enquanto as bases de referências simbólicas dos povos não-europeus – em particular a dos povos negros – foram, por esses mesmos dispositivos, enquadrados como exemplos de feiura, mal gosto e barbárie.

Esses dispositivos discursivos, ressaltando uma suposta superioridade eurocêntrica, tiveram sua dimensão prática nas políticas imperialistas, engendradas pelas potências européias no século XIX. A dinâmica imperialista, portanto, para além das justificativas de ordem econômica, erigiu-se sobre a crença de que a “civilização européia” – como portadora de valores, não somente científicos e tecnológicos, mas também morais, culturais e estéticos – teria por missão conduzir os povos não-europeus a estágios mais elevados de civilidade. Assim, portanto, segundo Albert Memmi, quando o colonizador europeu dizia que o colonizado era “um débil” ou “um retardado perverso, de maus instintos, ladrão [e] um pouco sádico”, sugeria, em última análise, que este necessitava de “proteção”, no caso da debilidade, e de “polícia”, no segundo caso (MEMMI, 1977, p.79).

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Foi em oposição a essa visão ideológica européia, portanto, que desenvolveu-se na França, nos anos de 1930, o Movimento Negritude e no Brasil, dos anos de 1940, o Teatro Experimental do Negro. Nesse aspecto, ambos surgiram com o objetivo inicial de valorizar a estética cultural do negro africano e de seus descendentes, que por anos tinha sido distorcida e esmagada pela dominação cultural eurocêntrica.

Segundo indicações do historiador Petrônio Domingues, a trajetória do Movimento Negritude se deu em torno de três publicações: a revista Légitime Défense (1932), que teve apenas um edição (DOMINGUES, 2005, p.27-28); a revista L'étudiant Noir (1934), que teve como diretores Aimé Césaire (da Martinica), Léon Damas (da Guiana Francesa) e Léopold Sédar Senghor (do Senegal) (DOMINGUES, 2005, p.28); a revista Présence Africaine (1947), que teria sido a herdeira ideológica do Movimento Negritude, após seu auge (DOMINGUES, 2005, p.42). Segundo o antropólogo Kabengele Munanga, em geral os objetivos do Movimento Negritude se resumiriam a três pontos principais:

buscar o desafio cultural do mundo negro (a identidade negra africana), protestar contra a ordem colonial, lutar pela emancipação de seus povos oprimidos e lançar o apelo de uma revisão das relações entre os povos para que se chegasse a uma civilização não universal como a extensão de uma regional imposta pela força – mas uma civilização do universal, encontro de todas as outras, concretas e particulares (MUNANGA, 1986, p.43-44).

Já o Teatro Experimental do Negro surgiu, no Rio de Janeiro (Brasil), em outubro de 1944, quando esse Estado ainda era a capital nacional. Segundo seu idealizador e fundador, Abdias do Nascimento, a idéia de se criar um teatro “aberto ao protagonismo do negro”, teria nascido em 1941, quando de sua passagem pela capital do Peru (Lima), ele presenciou, no Teatro Municipal desta cidade, a apresentação da peça “O Imperador Jones” – de Eugene O'Neill – cujo protagonista deveria ser um personagem negro (Brutus Jones), mas que ali no Peru era encenado por “um ator branco tingido de preto”, se viu tomado de questionamentos em relação ao Brasil, onde ainda era igualmente comum “[brochar-se] de negro um ator ou atriz branca quando o papel contivesse certo destaque cênico ou alguma qualificação dramática” (NASCIMENTO, 2004, p.209). O Teatro Experimental do Negro teria sido constituído, portanto, com o objetivo de:

resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-africana, degradados e negados por uma sociedade dominante que, desde os tempos da colônia, portava a bagagem mental de sua formação metropolitana européia, imbuída de conceitos pseudo-científicos sobre a inferioridade da raça negra (NASCIMENTO, 2004, p.210).

Sabemos, a partir do jornal “Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro”, publicado entre 1948 e 1950, que membros do TEN tinham conhecimento da publicação Présence Africaine, herdeira ideológica do Movimento Negritude francês, e que, em abril de 1949, estabeleceram, através de uma carta, contato direto

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com o redator-chefe desta revista, o Sr. J. Schwder-Oriol (Jornal Quilombo, Rio de Janeiro, jun. 1949, p.2). Diante de tal fato, entendemos que elementos da ideologia do Movimento Negritude internacional chegaram ao Brasil, e mais precisamento ao Teatro Experimental do Negro, ainda na década de 1940. Embora constatando este fato, interessa-nos aqui analisar – no contexto pós Segunda Guerra Mundial – os pontos de encontros e divergências, que permearam as práticas discursivas destes dois movimentos negros contemporâneos.

A proposição de uma “nova” estética cultural, tanto pelo Movimento Negritude quanto pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), se deram basicamente em torno de duas posições teóricas: 1) a da inversão valorativa do lugar ocupado pelos referenciais estéticos negros, em termos linguístico e fenotípico, no interior da cultura ocidental; 2) a da aceitação de pressupostos eurocêntricos em relação aos negros e sua condição (ou posição) diante da cultura universal.

No plano da inversão valorativa, um dos ponto em comum em ambos foi a tentativa de inverter, no plano discursivo ou prático, a negatividade associada ao paralelismo cor preta/fenótipo negro. Sabendo que na simbologia das cores preconizada pela “civilização” ocidental “a cor preta representa uma mancha moral e física, a morte e a corrupção, enquanto a branca remete à vida e à pureza” (MUNANGA, 1986, p.15) e que essa cor preta encontra, no imaginário social, correspondência nas nuances da cor da pele das populações negras, tanto o Movimento Negritude quanto o Teatro Experimental do Negro direcionaram suas forças no sentido de positivar esse binômio cor (preta)/fenótipo (negro).

O Movimento Negritude utilizando-se, principalmente, do instrumento linguístico literário, procurou inverter e valorizar simbolicamente, a cor e a estética negra. Uma das lideranças e referência do Movimento Negritude, o poeta senegalês Léopold Sédar Senghor, em seu poema “Mulher Negra”, dá-nos uma mostra desta inversão:

Mulher nua, mulher negraVestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza! [...]E tua beleza me atinge em pleno coração, como o golpe certeirode uma águia.Fêmea nua, fêmea escura.Fruto sazonado de carne vigorosa, êxtase escuro de vinho negro,boca que faz lírica a minha boca (...) [...]Gazela de adornos celestes, as pérolas são estrelas sobrea noite da tua pele.

Outra inversão simbólica, levada à frente pelo Movimento Negritude, foi em referência ao próprio significado do termo négritude adotado pelo movimento. De acordo Petrônio Domingues, “a palavra négritude em francês deriva de nègre, termo que no início do século XX tinha um caráter pejorativo, utilizado normalmente para

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ofender ou desqualificar o negro”. Entretanto, diante dos membros do Movimento Negritude ele assumiria uma outra conotação, que ia desde a positivação linguística do termo, passando pela evocação de seu aspecto militante, indo até a afirmação do orgulho racial negro. Aimé Césaire, no seu poema Cahier d'un Retour au Pays Natal, exemplifica parte desta nova conotação:

Minha negritude não é uma pedra, surdez que é lançadacontra o clamor do dia,Minha negritude não é catarata de água morta sobreo olho morto da terraMinha negritude não é nem torre nem catedralela mergulha na carne rubra da terraela mergulha na ardente carne do céuela fura o opaco desânimo com sua precisa paciência.

Já o Teatro Experimental do Negro adotou como tática de inversão desta simbologia – cor/fenótipo – os concursos de beleza, que ressaltavam (entre outras coisas) a beleza da mulher mulata e da mulher negra. Segundo a principal liderança do TEN, Abdias do Nascimento:

Os concursos de beleza Rainha das Mulatas e Boneca de Pixe foram concebidos como instrumento pedagógico buscando realçar o tipo de beleza da mulher afro-brasileira e educar o gosto estético popular, pervertido pela pressão e consagração exclusiva de padrões brancos de beleza (NASCIMENTO, 2004, p.223).

O sociólogo Guerreiro Ramos, que teve importante participação nas atividades do TEN (ministrando Seminários de Grupoterapia), afirmava que os brasileiros (de cor ou claros) tinham um caráter patológico ao adotarem critérios artificiais de padrão de beleza baseados na estética européia e ao negarem a especificidade estética local (RAMOS, 1995, p.153). Neste sentido, segundo ele, os concursos de beleza, promovidos pelo TEN, funcionariam como elementos irônicos de superação da alienação estética, na qual se viam mergulhados os brasileiros; ou seja, onde “os preconceituosos viram (...) ódio. Não era. Era apenas sorriso inteligente, um processo brando, cordial, de “desencantamento” da brancura e da reeducação dos nossos brancos” (RAMOS, 1995, p.140-141).

Outro ponto, de inversão de critérios valorativos, em comum entre o Movimento Negritude e o Teatro Experimental do Negro na proposição de uma “nova” estética cultural, foi a evocação positiva, no cenário artístico, de uma suposta essência emocional negra que, devido ao supremacismo estético cultural eurocêntrico, se via impedida de manifestar-se ou, quando manifestava-se, era relegada à degradação cômica.

O Movimento Negritude, nesse aspecto, insistiu na afirmação da emoção como sendo uma especificidade negra positiva, frente à racionalidade européia. Foi de acordo com esta perspectiva que Léopold Sédar Senghor declarou: “a emoção é negra como a razão é helena” (MUNANGA, 1986, p.72); e Aimé Césaire, estabelecendo

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um distanciamento (questionável) entre os negros e os conhecimentos científicos e tecnológicos, afirmou em linguagem poética que:

Aqueles [os negros] que não inventaram nem a pólvoranem a bússolaAqueles que nunca souberam domar o vapornem a eletricidadeAqueles que nunca exploraram nem os maresnem o céuMas aqueles sem os quais a terra nãoseria a terra.

Para Petrônio Domingues, o problema que acompanha essa perspectiva que, de certa forma, enclausura os negros em uma natureza essencialmente emocional, é que ela consolida as idéias preconceituosas que enfatizam que “a raça negra é incapaz de atingir níveis de inteligência e de promover autonomamente o desenvolvimento de uma nação, ou seja, a raça negra seria incapaz de alcançar determinado estágio do conhecimento científico e tecnológico” (DOMINGUES, 2005, p.30-31).

O Teatro Experimental do Negro, por sua vez, reivindicava para o negro a participação em papéis cênicos dramáticos, afirmando que a dramaticidade negra possuía elementos próprios impossíveis de serem expressos “convenientemente”, por atores brancos (NASCIMENTO, 1961, p.9-10). Abdias do Nascimento, reportando-se ao teatro africano, chegou mesmo a afirmar que “o africano [era] um ator congênito devido à sua extraordinária emotividade em busca de expressão” (NASCIMENTO, 1961, p.11). Vemos assim, que tanto o Movimento Negritude quanto o TEN resvalaram na evocação e afirmação de uma emotividade e sensibilidade negra, e ambos também reivindicaram um espaço de expressão dessa particularidade.

Já os pontos de divergências entre o Movimento Negritude e o Teatro Experimental do Negro, na trajetória de enfrentamento dos valores eurocêntricos, definiram-se mais claramente no campo da organização das estratégias discursivas.

O Movimento Negritude, por exemplo, estabeleceu uma estratégia discursiva aberta, na qual afirmava, de forma clara e objetiva, a existência de uma identidade negra africana e combatia entre outras coisas o capitalismo e o cristianismo. De acordo com Petrônio Domingues, o Movimento Negritude, após 1945, além de propagar a negritude como princípio central de sua ação, direcionou suas forças para “a luta pela conquista do poder, pela independência [das colônias africanas subjugadas pela dominação européia] e assume, igualmente, um discurso de repudio ao imperialismo e ao racismo” (DOMINGUES, 2005, p.31).

O Teatro Experimental do Negro, por outro lado, estabeleceu uma estratégia discursiva ambígua e, por vezes, pouco clara, ao tratar da afirmação racial em um país como o Brasil, afeito à defesa da mestiçagem como elemento definidor do típico “homem” nacional. Com relação a este aspecto, Victor Hugo Adler Pereira afirma que foi a partir da “necessidade de encontrar apoio e legitimação imediatos”, juntos à uma elite intelectual nacional que defendia a tese de um Brasil mestiço, que se explica a

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ambiguidade estratégica (no sentido de não afirmar com clareza uma identidade negra específica em contraposição ao ideal mestiço) adotada pelo TEN (PEREIRA, 1988, p.67).

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“Sacrum convívium”: clérigos e Leigos em minas setecentista

Josimar Faria DuarteKarla Denise Martins

INTRODUÇÃO

Este ensaio é uma pequena amostra das reflexões que temos desenvolvido para a confecção de um trabalho monográfico. Tal trabalho tem como proposta analisar a forma e o funcionamento do Clero secular mineiro entre os anos de 1745 e 1800, período considerado pela historiografia de Caio Prado Júnior e Celso Furtado como de “decadência” e “estagnação61”. Elegemos o governo episcopal de Dom Frei Manoel da Cruz (1748-1764) como ponto de partida de nossas análises por ter sido este o primeiro governo do Bispado de Mariana, criado em 1745, com a autorização do Papa Bento XIV62.

Nosso objetivo central é tentar perceber as alterações no cotidiano63 religioso da população das Minas setecentista com a instalação do Bispado de Mariana, com vista a demonstrar que a vivência católica era marcada pelos conflitos de poderes entre os clérigos. Que a tentativa de centralização do poder na Santa Sé Apostólica, a partir do Concílio de Trento, acabou por fragmentar o poder do pontifício, criando forças locais a partir de uma hierarquização eclesiástica, que era atrativo aos clérigos, desse modo era prestigioso ter destaque dentro do próprio Clero, em uma “distinção” pela fé64.

Além da fragmentação do poder pontifício, na figura dos bispos, o Direito do Padroado, em vigor em todo o Império Ultramarino Português, revelou-se outro ponto de discordância da centralização do poder da Igreja Romana65. Desse modo, os bispos concentravam sob as suas retóricas a voz do pontifício e do poder régio, sendo discursos legitimadores de práticas vivenciadas nas vilas e freguesias de Minas setecentista66.

As fontes privilegiadas deste estudo são os relatórios das visitas pastorais, cartas pastorais, os relatos de viagem de Auguste Saint-Hilaire, Inventários post-mortem e o cerimonial dos sacramentos católicos da igreja de N. S. da Conceição de Ouro Preto. Permitindo-nos perceber a atuação do primeiro bispo e do seu cabido nas Minas.

61 A premissa de que havia uma “decadência” e “estagnação” das Minas, no período que seguia ao ciclo minerador do século XVIII, reforçou durante anos a ideia da existência de uma sociedade desclassificada, desmobilizada e em decadência populacional. C.F: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de Famílias: mercado, terra e poder na formação da cafeicultura mineira 1780-1870. Bauru: EDUSC, 2005, p. 29-37.62 BULA INAUGURAL DA DIOCESE DE MARIANA de 06 de janeiro de 1745. In: RODRIGUES, F. C. As visitas pastorais do século XVIII no bispado de Mariana. Caderno histórico do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana n. 3. Mariana: Dom Viçoso, 2004, p. 25.63 O termo cotidiano aqui empregado deve ser entendido como o local da normalidade, no qual a vida segue o seu percurso poroso, opondo-se aos momentos de conflitos, locais em que o poder, que ocupa o local das divisões sociais, esta subjetivados.64 BOXER. C. R. A Igreja e a expansão na América Latina (1440-1770). Lisboa: Edições 70, 1981, p. 53.65 AZZI, Riolando. A instituição Eclesiástica durante a primeira época colonial. In: HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil: ensaios de interpretação histórica a partir do povo. 3 ed. Petrópolis: Vozes; Paulinas, 1983, p. 65.66 HESPANHA, Antônio Manuel. “A Igreja”. In: MATTOSSO. História de Portugal. IV. Lisboa: Estampa, 1993, p. 294.

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Embora os estudos eclesiásticos tenham abertos novos caminhos para compreensão da Arquidiocese de Mariana, com os esforços de Cônego Raymundo Trindade, em seu clássico trabalho da década de vinte: Archidiocese de Marianna: subsídios para a sua história67, algumas questões nos parece ter necessidade de serem refletidas, entre estas a própria atuação dos padres nas vilas e freguesias de Minas setecentista, pois Trindade tinha como intenção reconstruir as memórias da Arquidiocese, trabalho feito durante o governo episcopal de Dom Helvécio Gomes de Oliveira. Este estudo foi feitos com estreitas ligações institucionais, visando recuperar os grandes nomes do Clero secular marianense para exaltar a grandiosidade da Arquidiocese, sem preocupações puramente acadêmicas.

Trabalho mais gerais como do CEHILA-Brasil, que se propunha escrever uma história geral da Igreja pelo povo, sem uma ligação direta com a Igreja Católica, chamou a atenção para os conflitos de poderes que se configuravam nos Impérios Ultramarinos Português e Espanhol.

Para Hoornaert, houve a partir da dominação colonial a imposição de modelos homogêneos, onde o Rei Português pelo Direito do Padroado organizava a administração do Clero de acordo com os cíclicos econômicos68. Nas regiões mineradoras no Brasil e na América Espanhola a forma de dominação colonial impunha que se afastassem as ordens religiosas, temendo o enriquecimento e a independência financeira destas. Já os clérigos seculares, pouco preparados para disseminar um catolicismo tridentino, eram limitados a celebração de alguns sacramentos, como batismo, casamentos, enterros e festejos marcados pela liturgia cristã69. Por esta atuação estes homens recebiam da coroa as côngruas, que naquele período não eram elevadas, muitos destes em busca de uma vida de maiores confortos ou a independência financeira se dedicaram a atividades lucrativas, como a criação de gado ou algum tipo de comércio70.

Apesar da estreita ligação do CEHILA-Brasil com a teologia da libertação71, estes estudos são de grande aceitação no meio acadêmico, em seus esforços de escrever uma história geral da Igreja. No entanto, estes perderam de vistas questões regionais, assim como deixaram de pensar os conflitos de poderes dentro do próprio Clero, se centrando nas relações Igreja e Estado.

Na aurora da década de 80, uma tese de doutorado se propôs inovar a historiografia brasileira, seja pela temática ou pela inovadora metodologia, que era embasada pela moderna historiografia social européia e pela microfísica do poder de Michael Foucault. Laura de Mello e Souza renunciou a ideia de riqueza e mergulhou no universo dos desclassificados, para pensar a própria pobreza moral. Procurando ao mesmo tempo desvendar a diferença entre sabãs e calandus72.

67 TRINDADE, C. Raymundo. Archidiocese de Marianna: subsídios para a sua história. Tomo I. São Paulo: Alameda Barão de Piraci-caba, 1928.68 HOORNAERT, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro (1500-1800). 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 88-90.69 AZZI. Op cit. 1983, p 65-68.70 Ibidem, p. 70.71 COUTINHO, Sérgio Ricardo. “Para uma História da Igreja no Brasil”: os 30 anos de Cehila e sua contribuição historiográfica. In: Siepierski, P. e Gil, B. (org.). Religiões no Brasil: Enfoques, dinâmicas e abordagens. São Paulo: Paulinas, 2003, p.67.72 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1986. Inferno Atlântico: demonologia e colonização (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Cia das Letras, 1993.

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Para Laura de Mello e Souza, o Clero no Brasil colonial era uma alegoria da “religiosidade colonial”, que é o traço marcante da vida religiosa no Brasil, Portugal, Goa, Moçambique e nas demais regiões que sofreram a influência do catolicismo Português. A “religiosidade Colonial” é marcada pelo culto exterior da fé, de acordo com uma mentalidade medieval73. Por espetaculares manifestações públicas, marcadas por práticas pagãs, superstições e festejos. Estas expressões têm os leigos como principais agentes, tipicamente organizados em irmandades e ordens terceiras dedicadas a um santo protetor, as comunidades leigas serviam para disfarçar as práticas politeístas dos negros e índios74.

A história da Igreja no Brasil Colônia pode ser aqui classificada em três momentos. Primeiramente com os escritos eclesiástico, uma história memorialista, com evidências mais impressionistas. Segundo com o CHEILA-Brasil, em formulações mais gerais, perdendo de vista questões regionais. Por fim, com Laura de Melo e Souza, que desenha um espaço regional, traçando similitudes e divergências entre o local e o global.

Nos últimos anos, com as mudanças de escalas, a partir da recepção da historiografia brasileira das formulações de Giovane Levi e Jaques Revel75, tem se privilegiado os estudos micro-analíticos. Cada vez mais desagregar o objeto, incorporando fontes mais locais tornasse a solução dos pesquisadores para a qualificação das suas hipóteses. As mudanças nas escalas nos permitem analisar de forma mais detalhada a trajetórias individuais para pensarmos como queria Lucien Febvre, “o homem, nunca o Homem”76.

Assim, analisar emoções, desejos e pensamentos de padres no Bispado de Mariana, a partir da figura de Dom Frei Manoel da Cruz e o seu cabido, é a forma que encontramos para pensarmos os conflitos de poderes que se instauraram com a centralização da Igreja Católica na figura Papal, analisando o Clero por dentro. Permitindo-nos perceber a vivência católica, que era legitimada na retórica dos bispos, sendo este porta-voz do pontifício e do poder régio.

MATERIAL E MÉTODOS

Para a construção de um modelo interpretativo historicamente adequado as realidades do Clero secular de Mariana77, temos adotado critérios de analises para o conjunto de fontes, ao qual nos debruçamos. Estas fontes são os relatórios das visitas pastorais, cartas pastorais e o cerimonial dos sacramentos católicos da igreja de N. S. da Conceição de Ouro Preto78, da documentação avulsa do Arquivo Eclesiástico da

73 SOUZA, Op cit. 1986,p. 86.74 Ibidem, p. 151-152.75 LEVI, Giovanni. “Sobre a Micro-História”. In: BURKE, Peter.(org) . A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. REVEL, Jacques (org). Jogos de Escalas: A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.76 FEBVRE, Lucien. O Problema da Incredulidade no século XVI: A Religião de Rabelais. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 15.77 CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 143-144.78 Todos os documentos eclesiásticos que temos utilizados são feitos sobre a supervisão de Dom Frei Manoel da Cruz.

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Arquidiocese de Mariana – AEAM – estas documentações encontram-se transcritas, traduzidas e editadas, ou seja, disponível para pesquisa, trabalho feito pelo Mons. Flávio Carneiro Rodrigues. Sem o qual parte de dados relativos à Igreja Católica do século XVIII estaria perdido para grande parte dos pesquisadores, pois em grande parte esta documentação foi originalmente escrito em latim, poucos são os historiadores que lêem neste idioma. Em nosso caso tais fontes estariam totalmente perdidas79.

As visitas pastorais ocorriam anualmente, sendo que em caso de grande extensão, poderiam ser concluídas em um prazo maior de até cinco anos80. Sendo uma espécie de inquisição itinerante, composta pelo visitador geral, um escrivão e um meirinho. Algumas vezes o bispo estava presente em outras ele nomeava um padre de seu cabido. Durante a sua permanência na localidade ele ouvia a população em especial as acusações morais. As vilas e freguesias eram sempre revisitadas, principalmente os locais em que havia grande incidência de irregularidade81.

Outras fontes que temos utilizados em nossas analises são os inventários post-mortem, do Arquivo Histórico Casa Setecentista de Mariana, que são um conjunto de documentos oficiais, descritivos e objetivos, depositados em arquivos públicos e privados, feitos para divisão de bens de um indivíduo, mas que também nos auxilia na (re)construção do clero secular de Mariana, pois estes documentos foram feitos por padres, conforme as constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, os homens que se dedicavam a este oficio eram os menos preparados dentro do Clero, assim estes documento são importantes peças nas analises da hierarquia eclesiásticas82.

As constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, em nosso caso a publicada em 1707, também é fonte primordial ao nosso estudo. Esta obra traduz as tendências teológicas daquele momento, assim como normatizava a prática religiosa, no que chamamos de “desejáveis condutas”. Ditando regras pedagógicas e religiosas para toda a sociedade colonial.

Os métodos que tem sido empregado são inspirados nos modelos teóricos da micro-História. Temos utilizados da leitura das fontes retirando delas dados que nos permita pensar o cotidiano religioso em Minas setecentista. Assim como levantando dados mais gerais nas constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, para efeito de comparação do comportamento dos padres em Minas e as condutas “desejáveis” destes homens no Brasil Colônia.

Numa primeira análise buscamos nas cartas pastorais de Dom Frei Manoel da Cruz encontrar as suas disposições em relação ao comportamento dos clérigos, que aparecem com maiores freqüências. Seja na repetição aos desejos dos mineiros em relação ao ouro, que ele afirma que encanta até mesmo os padres, ou nas cartas falsas, que circularam durante o seu Bispado, sendo severamente condenado pelo mesmo.

79 RODRIGUES, F. C. As visitas pastorais do século XVIII no bispado de Mariana. Caderno histórico do Arquivo Eclesiástico da Ar-quidiocese de Mariana n. 1, 2 e 3. Mariana: Dom Viçoso, 2004.80 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. (impressas em Lisboa no ano de 1719, e em Coimbra em 1720.) Transcrito e impresso pela editora do Senado referencias de citação não costa. Fl. 1056.81 FIGUEREDO, Luciano Raposa. Barrocas Famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997, 41-49.82 VIDE. Op cit. Título LIX

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RESULTADOS E DISCUSSÃO

No século XVII, as expedições das bandeiras em busca de índios que servissem ao trabalho involuntário e metais preciosos percorreram extensas áreas, encontrando em 1695, na região de Caeté e Sabará as primeiras minas de ouro. Estes achados auspiciosos, que tradicionalmente são atribuídos aos exploradores paulistas Borba Gato e seu genro Fernão Dias Pães Lene83, motivaram um grande fluxo populacional “durante os primeiros sessenta anos do século XVIII, chegando de Portugal e das ilhas do Atlântico cerca de 600 mil pessoas”84. Um significativo processo migratório também ocorreu dentro da Colônia, partiram

das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos, pretos e muitos índios de que os paulistas se servem. A mistura é de toda condição de pessoas; homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos; nobres e plebeus; clérigos seculares e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm, no Brasil, convento nem casa85.

A iniciativa da mineração modificou rapidamente a paisagem deste lado do Atlântico. Sendo criadas arraias e vilas que se organizavam em torno do desejo de enriquecimento fácil. No dia 16 de julho de 1696, a descoberta de metais preciosos as margens de um ribeirão, que em honra a festa do Carmo passou a ser chamado Ribeirão do Carmo, levou a criação do primeiro vilarejo das Minas86. Rapidamente a população desta região se tornou enorme. Os reinóis que deixavam principalmente o norte de Portugal e vinha em busca do enriquecimento fácil, não tinha como alternativa se não deixarem a região mineradora de primeira ocupação e partir para outras terras, algumas léguas de distancias. Guiados pela esperança de uma vida melhor, estes homens, em regiões ainda não ocupadas, formavam os núcleos populacionais que sobreviviam, sobretudo da produção agropastoril e do comércio87.

A atuação da Igreja na vida desta nova população inicialmente foi feita pelo Bispado do Rio de Janeiro, por clérigos regulares e seculares fluminenses. Entre estes estava a figuras de D. Frei Antônio de Guadalupe e D. Frei João da Cruz88.

O crescimento populacional desta região fez com que a vila do Carmo fosse elevada a categoria de cidade: a Leal cidade de Mariana, que tinha seu termo dividido em região metalúrgica e mata. Em fins do século XVIII a cidade foi elevada a categoria de centro administrativo, religioso e educacional das Minas89. Sendo também sede do

83 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 1995, p. 95-98.84 Ibidem, p. 98.85 VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. 4 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. Vol. 2, p. 26.86 Breve descrição geográfica, física e política da Capitania das Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro (Centro de estudos históricos e culturais), 1994, p. 123-124.87 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Trajetórias imperiais: imigração e sistema de casamentos entre a elite mineira setecentista. In: ALMEIDA, C. M. C. de (Org.); OLIVEIRA, M. R. (Org.). Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006, p.76-77.88 TRINDADE. Op cit. 1928, p. 74.89 ALMEIDA, Carla Maria de Carvalho de. Alteração na unidade produtiva mineira: Mariana – 1750-1850. Niterói: UFF, 1994, p. 49. (dissertação de mestrado).

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90 Ibidem, p. 33.91 BULA INAUGURAL DA DIOCESE DE MARIANA de 06 de janeiro de 1745 Op cit.92 TRINDADE. Op cit. 1928, p. 84.93 Ibidem, p. 141-142, a data de 1746 é relativa, Souza (nota que segue 35.) considera a nomeação dete bispo para o mesmo ano da criação do Bispado, em 1745.94 SARNEEL, Pe. Pedro. Poema de data desconhecida. In: RODRIGUES, F. C. Op cit. Vl 1. 2004, p. 90.95 SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: a pobreza minera no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 2004, p. 33-6996 Ibidem, p. 597 Ibidem.

primeiro Bispado90, criado com a divisão do Bispado do Rio de Janeiro em 1745, pela bula do Papa Bento XIV: A bula Candor Lucis Aeternae90.

No entanto somente em 1748, com a posse do primeiro bispo de Mariana: Dom Frei Manoel da Cruz é que houve realmente a separação das 40 paróquias das Minas sob um governo episcopal distinto do fluminense92.

Dom Frei Manoel da Cruz era de família nobre em Portugal, nascido em 1690, na Freguesia de Santa Eulália. Tornou-se monge regular do mosteiro de Santa Maria de Alcobaça. Doutor em teologia pela Universidade de Coimbra. Sendo consagrado bispo em 1738. No Brasil iniciou a sua carreira eclesiástica com o governo episcopal do Maranhão. Em 1746, com a criação do Bispado de Mariana foi eleito bispo por Bento XIV. O fausto para a recepção do primeiro bispo se espalhou pelas Gerais93.

Maximus fama numeroque Primus O maior em notoriedade, o primeiro na ordem,De maragonis regione venit; Veio da terra maranhenseIn via longos subiit labores Sofreu na viagem muito incômodaFactus et aeger E até mesmo adoeceuUrbe profusa roseis corollis Inaugurou o seu pastoreio,Plebe salatu módulos cannete Trazido em carro triunfal pela cidadeEt triumplali spatiane curru Enfeitada de rosas e grinaldaPascere coepit94. E animada com cantos e danças populares

O poema acima escrito pelo Padre Pedro Sarneel, ilustra este momento de recepção do bispo. Onde a sua chegada fora triunfal na cidade, sendo esperado com festas: em ruas enfeitadas de rosas e grinaldas, por cantos populares e danças.

Segundo Laura de Melo e Souza, o fausto era um traço comum naquela sociedade. Mesmo em fase de “decadência” os festejos eram marcados pelo luxo, onde os atores sociais tentavam afastar boatos de crise, mostrando-se prósperos, reafirmando a riqueza das Gerais95 porém, a pobreza estava por toda parte, pois poucos eram os grandes proprietários de escravos e lavras96. No entanto os jogos de “aparência” marcavam os princípios estratificadores, aliando status e honra a valores ditados pelo cabedal e o mérito. Tendo-se em Minas homens soltos, desenraizados e sem memória “(...) a quem a riqueza permitia inventar um passado e um nome” por terem a “honra de ricos”, ostentando títulos de poderosos: brigadeiros, mestres de campo e coronéis97.

Em relatório decenal, enviado ao conselho tridentino no ano de 1757, o bispo fala da população das Gerais:

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O território desta região aurífera, não inferiorizado a outra multidão de habitantes e adventícios (...) atrai os mineiros para extração do ouro (...) Daí, vários iludidos e apegados aos vícios são dominados pela ganância ao ouro. Nem digas que alguns eclesiásticos ficam imunes nesta desonra (...)98

O encanto do ouro e a condenação ao desvio moral da população aventureira, contrabandista, que vive no luxo, inclusive alguns clérigos, é uma característica evidente na retórica do primeiro bispo das Minas, visíveis em suas cartas pastorais, que representavam não só a descrição das ordens do Sumo pontifício e do endoso régio, revelando também as emoções, os desejos e os pensamentos que motivavam os clérigos naquela época. Isto fica claro na repressão do bispo aos pedidos dos seculares de legitimar seus filhos: “(...) que teve depois de sacerdote, três filhos (...) os quais pela qualidade de espúrios não são herdeiros do Reverendo suplicante, e, como por ser abundante dos bens temporais [apetevelhe] constituílos por herdeiros, o que não pode fazer sem que Vossa Majestade lhe permita a graça de os legitimar (...)”99

Naquele período o desenho espacial da cidade de Mariana era aos moldes do Antigo Regime.100 Ou seja, o poder era tripartido entre Clerical, Real e Individual, correspondendo a Igreja, Estado e Casa. Sendo a cidade um espaço comum a toda cristandade católica.101 Neste espaço, o trabalho urbano estava dividido pelo cabedal dos privilégios, onde alcançar o status de nobre significava gozar de prestigio e honra. No entanto, isto não configurava algo simples, sendo as principais vias de acesso: nascimento (mais importante), riqueza (secundário), e sorte, por meio de estratégias de casamentos mercês de cargos administrativos ou postos militares.102 O Clero era também um local de promoção social, para certo número de pessoas, dentro das honrarias eclesiásticas, formando um pequeno grupo social: os “intelectuais”.103

Os clérigos, assim como os comerciantes eram “vendedores de palavras”, pois aí estavam os seus sustentos. No entanto, em suas retóricas as palavras eram entendidas como dádivas de Deus, não eram para ser vendidas.104 Segundo Antônio Manuel Hespanha, “Aquilo que os bispos pediram (...)105 foi à difusão dos saberes através da palavra. O seu saber teológico mais cuidado, a sua maior preparação oratória e o domínio mais convicto das técnicas da retórica sagrada (...)” assim, o discurso dos bispos tinham por função legitimar a “distinção” destes homens, em relação aquela sociedade, sendo o Clero o espaço dos estudiosos, dos homens de “distinta” fé.

98 RELATIO EPISCOPATUS MARIANESIS AD SACRAM CONGREGATONEM CONCILII TRIDENTINI. In: RODRIGUES, F. C. Op cit. Vl 3. 2004, p. 7399 MARIANA. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Carta de Dom Frei Manoel da Cruz ao Rei de Portugal em 02.06.1747, cx. 48, doc. 10.100 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens ricos, homens bons: produção de alimentos e hierarquização social em Minas Gerais, 1750-1822. Niterói: UFF, 2001, p. 247-248. (tese de doutoramento)101 LE GOFF, J. Os Intelectuais na idade média. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, 20-21.102 FURTADO, Júniar Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. 2. Ed. São Paulo: HUCITEC, 2006, p. 57.103 LE GOFF, J. Op cit, 1995, 56-57.104 Ibidem, p. 8.105 HESPANHA, Op cit. 1993, p. 294

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Apresentar a importância da Igreja como celeiro do saber fez parte do discurso de Dom Frei Manoel da Cruz, que em sua retórica tentava mostrar a função do trabalho intelectual, responsável na condução do comportamento social, pois toda a população das Gerais deveriam ser servos da Igreja e do Estado, em um “santo convívio”. Em sua pastoral Ad Limina ele relata seus esforços em regular o comportamento social, conservando as antigas práticas de sociabilidade. Segundo ele:

De quando em vez aparecem leigos com novidades, interessados em incitar agitações facciosas na jurisdição eclesiástica. Donde derivou anualmente uma carga nada leve de incômodos a serem por mim suportados e, com as cartas ameaçadoras do Sereníssimo Rei, promulgadas contra os autores destas perturbações e com os castigos públicos por ele impostos aos responsáveis mais culpados, a tormenta armada se abateu sobre minha pessoa. Restabelecido agora 31 com em mais serena liberdade, esforçome por orientar o leme da Igreja Marianense de modo mais tranqüilo. Para amar sempre esta Beleza da Paz e navegar para o porto de verdadeira felicidade com a plena alegria de Deus e com o bem espiritual do Rebanho a mim confiado, gostaria de implorar humildemente a Proteção e a Bênção da Sé Apostólica.106

Aqui ficam evidentes os conflitos de poderes no Bispado de Mariana. O bispo apresenta a Sé às dificuldades que tem enfrentado com leigos que desrespeitam as leis eclesiásticas, tentando implantar ideias que ferem as antigas práticas de sociabilidade, mas com o uso até mesmo da força ele tem conseguido manter o “santo convívio” católico. Os conflitos de poderes enfrentados pelo bispo eram também internos, principalmente com seu cabido:

No que respeita ao Mestre de Cerimônias manda este dar pela satisfação os ductos nas formas das Cerimônias e Estilo desta Catedral, ainda [que por erro] do Mestre de Cerimônias [n]os ductos aos camaristas, tanto que soube destas inadvertências o Mestre das Cerimônias a emendou, e nunca mais, exceto aquela vez, se deram os ductos aos camaristas, sendo na forma dos cerimoniais e estilo desta Catedral. Isto é o que me parece.107

Como se observa, o bispo impõe normas para conduzir o comportamento dos cônegos. Revelando traços de irregularidades destes, demonstrando zelo pastoral, na condução e regulamento dos sacramentos, tentando ser um bom governo episcopal.

CONCLUSÕES

Nossa proposta neste texto foi apresentar, ainda que de forma superficial, algumas reflexões sobre o governo episcopal de Dom Frei Manuel da Cruz. Tentando demonstrar que há em sua retórica a tentava de legitimar a “distinção” de um pequeno grupo da sociedade colonial, formado por um espaço cultural comum aos estudiosos:

106 AS VISITAS AD LIMINA. In: RORIGUES, F. R. Op cit, V. 3, 2004, p. 85.107 MARIANA. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Carta de Dom Frei Manoel da Cruz ao Rei de Portugal em 04.05.1755, cx doc .68, cx. 63.

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os “intelectuais”, que correspondiam principalmente aos clérigos. Sendo um espaço atrativo aos homens coloniais desejosos em gozar de certas honrarias eclesiásticas. Sendo este bispo representante da coroa e da Sé percebesse em seus “escritos” a tentativa de legitimar um bom governo: um sacrum convívium na cristandade católica.

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A mulher no discurso contra-hegemônico da Arte Cerâmica de João Alves - Vale do Jequitinhonha-MG.Juliana Pereira RamalhoSheila Maria DoulaDouglas Mansur da Silva

“O barro é cada gesto,Cada sentido.O barro é o feto explodidoDo útero da terra.

Cláudio Bento, poeta da cidade de Jequitinhonha-MG.

O Vale do Jequitinhonha, durante o período militar, foi foco de investimentos estatais que tiveram como propósito integrar a região ao desenvolvimento geoeconômico do país, através de sua autarquia, a CODEVALE – Comissão de Desenvolvimento para o Vale do Jequitinhonha, criada em 1964. Sob a égide do discurso modernizador, o Jequitinhonha foi representado como “Vale da Miséria” e “Vale da Fome”. A partir dessa concepção, estratégias de modernização nos âmbitos econômico, social e cultural foram justificadas e implementadas na região. Como forma de reação a estas ações, discursos contra-hegemônicos provenientes de alguns grupos sociais se configuraram como elementos de resistência e de preservação das tradições locais. Um destes discursos pode ser identificado nas imagens de cerâmica confeccionadas por artesãos do Vale do Jequitinhonha, objeto empírico deste estudo. Na pesquisa foram entrevistados vinte artesãos provenientes das cidades de Almenara, Caraí, Itinga, Itaobim, Jequitinhonha, Minas Novas, Ponto dos Volantes, Taiobeiras, Turmalina e Santo Antônio do Jacinto, contemplando desta forma o alto, médio e baixo Jequitinhonha.

Apesar da riqueza dos diversos depoimentos coletados, focalizamos neste texto o trabalho de João Alves, da cidade de Taiobeiras. A escolha deste artesão está pautada no fato de que, mesmo inserido em contexto de mercado, João Alves consegue encontrar no conflito entre a tradição e a inovação um equilíbrio que revitaliza a cada dia a cerâmica do Vale do Jequitinhonha. O discurso contra-hegemônico da atividade deste artesão está presente na manutenção e valorização das formas tradicionais presentes no saber fazer do ofício ceramista, que não utiliza o torno ou qualquer forma de modelagem de suas peças; manifesta, também, na preocupação em manter a originalidade de sua arte através da recusa da produção em série e, finalmente, pela crítica ao moderno identificada na temática de suas peças que privilegiam cenas do cotidiano.

A temática das peças modeladas por João Alves gira em torno de cenas do mundo rural, presentes ou passadas, que evocam não só a importância da observação visual do artesão, mas também a importância da história oral, evocando a oralidade e

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a memória, na construção do seu imaginário. Vamos ouví-lo: São cenas do cotidiano, do dia-a-dia da vida dos escravos, da vida rural, da cultura negra. E conta muitas histórias da roça, que eles fazem, né? Que cada um faz uma coisa, cada um tem sua história: fiando, socando milho, socando café, catando piolho, porque na minha cidade, nas calçadas, as mulheres ficavam catando piolho nos meninos.

O que João Alves nos revela é que suas peças não são apenas esculturas, mas que elas projetam ações. Uma destas ações está em aceitar o legado histórico cultural dos antepassados, que pode ser visualizado nas peças que representam atividades domésticas e cotidianas de escravos e escravas; a outra ação implica em valorizar estas mesmas cenas rurais do passado nas peças modeladas que representam o mundo rural no presente. Há que se ressaltar que as esculturas relacionadas à vida tradicional jequitinhonhesa são todas modeladas na cor negra, o que denota esse elo de continuidade entre passado e presente. Quando este artesão modela alguma peça que não seja relacionada ao cotidiano rural e regional muda-se a cor.

As vezes eu faço outras peças diferentes que o pessoal encomenda ...a mulher e o médico né, fazendo parto, dentista. Umas peças diferentes que o pessoal quer dar de presente pra um médico, aí eles encomendam. E o senhor faz eles negros ou não? Não. Aí é outra cor, porque é peça diferente.

Ao identificar as peças referentes ao Jequitinhonha a partir da cor negra em rememoração aos escravos, João Alves capta por meio da memória a ancestralidade vivida pela comunidade.

Nas fotos abaixo, verifica-se como o artesão enaltece a presença das mulheres negras em cenas tradicionais de fiar, modelar e cozinhar evidenciando um hibridismo temporal demarcado pelos trajes femininos de escravas do passado, mas também pela importância das tarefas manuais que ligam as mulheres do Jequitinhonha em uma

Figura 1: Mulher fiando. Pesquisa de campo, 2009. Fonte: Juliana Pereira Ramalho.

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extensa linha do tempo.Valorizar as mãos como mecanismo de transformação (dos fios em tecido, dos

alimentos em comida, do barro em utensílios) deixa implícito uma concepção contrária à valorização das tecnologias industriais e ao consumismo do mundo contemporâneo. No entanto longe de querer valorizar a pobreza ou perpetuar a visão dominante sobre o Jequitinhonha como um “Vale da Miséria”, o que o ceramista parece estar mostrando é uma outra forma de se situar no mundo e no tempo. Trata-se, portanto, de uma concepção artística e de uma arte local, como diria Geertz (1997).

Para analisarmos a cerâmica do Jequitinhonha é necessário, antes de mais nada, procurarmos contextualizar a produção artesanal da cerâmica para além de uma perspectiva técnica, que entenda a arte como uma correlação de formas entre sons, gestos, cores e imagens. Por outro lado, não se pode entender a arte como algo que reflete ou descreve uma dinâmica social, sem a contextualizarmos dentro da experiência coletiva da qual é parte. A arte neste sentido deve ser encarada como mais um texto da experiência humana que ao lado de outros textos, ou seja, ao lado de outras expressões humanas tem seu espaço no percurso da vida social. A arte é, portanto, um processo cultural e por isso mesmo, “um processo local” (GEERTZ,

Figura 2: Mulher modelando. Pesquisa de campo, 2008.Fonte: Juliana Pereira Ramalho.

1997, p. 146). O local é que nos possibilita entender o sentido do texto.As peças de barro e o modo como elas são modeladas, bem como seus

significados, estão dentro de um modo de viver, de uma experiência coletiva. Como afirma Mattos, “no mundo da arte do barro, não se entra de imediato” (MATTOS, 2007, p. 187). A porta, no caso do Jequitinhonha, é sempre aberta a partir de uma matriz cultural local, que faz do barro um elemento do cotidiano possibilitando que todos, desde a infância, adquiram a experiência, a intimidade e o sentido estético que a modelagem pode assumir. A aprendizagem começa ainda muito cedo, nas brincadeiras infantis com a confecção de peças para sua própria distração, o que se faz a partir da observação de alguém da família ou da comunidade. João Alves nos conta sua história

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com o barro: o meu avô, minha avó trabalhavam em olaria e meu pai também. E eu ia levar almoço pra eles, na volta trazia um pouco de barro e comecei brincando com o barro. Até que comecei a aprender a fazer cavalinhos, galinhos e cachorrinhos. E o pessoal da minha cidade começou a me incentivar: - João, por que você não faz presépio? E naquela época a tradição do presépio era forte. Todo mundo fazia um presépio. Era tradição mesmo de cada um. E comecei a fazer o presépio, né?

É a partir desta matriz cultural local que alguns indivíduos seguindo a tradição tornam-se artesãos. Nesse momento, a expressão da individualidade artística pode levar o artesão a dois caminhos: confeccionar peças cerâmicas que reproduzam uma visão de mundo que interpreta e valoriza a história e a realidade locais ou uma visão de mundo que abarca ou mesmo valoriza a cultura do “outro” hegemônica, sendo que neste último caso, o artesão pode estar mais direcionado à atender as pressões do

Figura 3: Mulher cuidando das galinas. Pesquisa de campo, 2009.Fonte: Juliana Pereira Ramalho.

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consumidor dos grandes centros urbanos do país e mesmo do exterior.É justamente no primeiro caminho que se encontram as esculturas negras

produzidas em Taiobeiras, sendo uma marca da matriz cultural local e da qual João Alves é o representante mais conhecido. No entanto, para além da identificação com o passado ligado aos escravos, as imagens de João Alves remetem à cenas de uma ruralidade que, como mencionamos anteriormente, conecta o passado e o presente. O sucesso das peças de João Alves reside justamente nesse apelo à memória e à afetividade que as cenas cotidianas do mundo rural evocam tanto para as pessoas que ainda convivem com aquela realidade no seu cotidiano no presente como também naquelas pessoas que, embora vivendo atualmente em contextos urbanos, podem através das peças cerâmicas rememorar o seu passado rural. João Alves explica:

é uma cena muito legal a mulher assando biscoito. Geralmente o pessoal chega e vê o forninho e lembra do passado, né? E fala: Nossa, a minha vó, a minha mãe assou tanto biscoito num forninho assim quando a gente morava na roça. E acha legal e fica fascinado ... acaba levando aquela peça do forninho pra recordação. E compra pra dá de presente à mãe. E chega lá, eles

Figura 4: Mulher fazendo biscoito. Pesquisa de campo, 2009. Fonte: Juliana Pereira Ramalho.

me liga: Oh, minha mãe, eu dei de presente pra ela o forninho. Ela chorou. Ficou emocionada. Porque lembra do tempo dela. Então isso é uma coisa muito importante, chama a atenção.

É importante porque elas carregam a memória de um modo de ser, por isso emocionam. O biscoito assado no forno relembra os “tempos da roça”, em que as mãos das mulheres da família moldavam os biscoitos e quando o tempo também era outro e que se podia esperar o longo tempo do processamento no forno a lenha.

Desta forma, as esculturas realizam um trabalho mnemônico não apenas relacionado às ações, mas também aos sabores, ao modo de comer, de plantar, de preparar os alimentos, de ser coletividade no mundo. Interpretando livremente a ligação que Le Goff (2003) estabelece entre a memória e o monumento, não poderíamos

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sugerir que as peças cerâmicas de João Alves representam um monumento da cultura local nas quais estão modelados o passado, o presente e a identidade do grupo?

Bibliografia

GEERTZ, C. O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

LE GOFF, J. História e Memória. Campinas-SP: editora UNICAMP, 2003.

MATTOS, S. M. Mãos criadoras de vida: Ceramistas do Vale do Jequitinhonha. Habitus, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 187-207, jan/jun. 2007.

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Os porquês do matrimônio: Os principais motivos para a constituição das famílias em

Guarapiranga entre 1750- 1850Léo Gomes de Moraes Neto

Introdução - Questão, empecilhos e metodologia.

Por que as pessoas casam? Esta certamente não é uma questão simples, pois ao nos depararmos com ela encontramos vários empecilhos concernentes à complexidade da natureza humana que nos dificultam quiçá nos impedem de responder a questão. Apresentaremos resumidamente ao menos quatro desses problemas: o primeiro é que as razões ao casamento tendem ao infinito. Além disso, apenas um casal pode possuir n motivos para almejar o matrimônio. Já o terceiro diz respeito ao inconsciente, muitas vezes nós não conseguimos explicar racionalmente o que nos faz gostar e escolher certa pessoa e não outra. Por fim, temos o fato muito de que os indivíduos podem esconder suas verdadeiras intenções.

Nos esforçamos, ao máximo, para reduzir ou contornar tais problemas, a partir do instrumental analítico da micro-história de Giovanni Levi (LEVI, 2000). Isto é, procuramos englobar o maior número de informações possíveis sobre as famílias de Guarapiranga e adjacências entre 1750-1850, através do cruzamento das dispensas e dos processos matrimoniais, com os dados das listas nominativas de 1831 e 1839 e as informações dos inventários e dos testamentos post-mortem. Com isso, desvendamos vários fatores que influenciaram na decisão dos contraentes, ou descobrimos até possíveis mentiras que tenham contado nos depoimentos do processo matrimonial. Entretanto, algumas vezes não conseguimos encontrar nenhum motivo explícito para o casamento, mas encontramos indícios de que alguns fatores que poderiam influenciá-lo não o fizeram.

Dessa forma, procuramos responder nossa questão, e contribuir significativamente para o conhecimento histórico, principalmente, com os casos em que o afeto, e os quadros de referência cultural influenciam fortemente as decisões dos contraentes, pois estes são pouco explorados pela historiografia, a qual evidência na maioria das vezes a racionalidade econômica e social dos cônjuges e suas famílias. Dentre os mais influentes trabalhos deste viés realçamos: As Mulheres, o poder e a família (SAMARA, 1989); Os senhores da terra (BACELLLAR, 1997); e História do Amor no Brasil (DEL PRIORI, 2006).

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Apresentação dos casos

a) Os casamentos permeados por inclinações econômicos e sociais.

Como dito são n os motivos para o matrimônio, neste sub-tópico enfatizaremos os matrimônios que sofrem fortes motivações econômicas e sociais. Sendo assim, destacamos em primeiro lugar a importância do dote, tal instituição era tão significativa que podia determinar por si só um matrimônio. No conjunto de clássicos da literatura brasileira, José de Alencar em seu romance Senhora faz uma crítica social a essa instituição, a partir de um triangulo amoroso, ambientado no Rio de Janeiro, no qual Aurélia, a protagonista após ficar rica através de uma herança inesperada, compra com um alto dote seu grande amor (ALENCAR, 2005).

Na freguesia de Guarapiranga no ano de 1810 encontramos um caso bem semelhante no qual Caetana Fernandes de Oliveira, casa-se com João Carneiro Flores, no lugar de sua irmã Francisca Fernandes de Oliveira, porque possuía um escravo.

E sendo perguntado ella contraente pello conteúdo do mandado de comissão dice que he verdade que o contraente João Carneiro Flores contrahio esponsais com sua irmam Francisca Fernandes alegando julgando que ella possuía hum escravo como condição, e como ella não o tinha, não quis mais casar com ella, e livre espontaneamente sem constrangimento de pessoa algua os contrahio comigo. [...] Do mais que sabe por ver e conhecer que o contrahente vive de seo offício de alfaiate e não possue mais couza algua e eu possuo hum escravo que me deu o falescido Coronel Ventura Fernandes e eu não me cazando com o dito ficarei exposta as misérias do mundo por ser pobre e tudo o que tem deposto he a mesma verdade pública e notória

Este depoimento de Caetana Francisca Fernandes de Oliveira é ratificado pelo depoimento de sua irmã, a qual também alega que de mútuo consentimento com João Carneio Flores desfez o noivado. Mas tal casamento não durou muito, pois um ano e sete meses depois, o mesmo João Carneiro Flores estava se casando novamente com Maria de São José, todavia neste novo processo não há dados sobre possíveis dotes, nem qualquer outro tipo de motivação, mas inferimos que o contraente esta mentido, pois alega que nunca prometerá casamento a mulher alguma e, que é solteiro, livre e desimpedido.

Outro caso muito significativo para a nossa análise é o da família Sande/Vidigal cuja genealogia observa-se na figura:

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Tal família apresenta arranjos matrimonias com o intuito de manterem o patrimônio e o status social. Notamos que o Cirurgião Mor Antônio Pedro Vidigal de Barros casou com duas das quatro filhas do Capitão Antônio Gomes Sande, respectivamente com Fransisca Cândida de Oliveira e Tereza Altina Sande. A partir de tais casamentos o dito Cirurgião Mor manteve o patrimônio de seu genro, praticamente intacto, apesar de duas partilhas sucessivas, a do inventario do próprio Antônio Gomes Sande e, a do inventário de sua esposa Francisca Clara Umbelina de Jesus. Tal patrimônio era constituído, essencialmente, pela fazenda Pirapetinga, composta por duas sesmarias, dois moinhos de engenho de cana, lavras do morro, e seus 52 escravos. Soma-se a esses matrimônios o fato de o único herdeiro do sexo masculino, homônimo de seu pai, Antônio Gomes Sande, ter sido destinado ao sacerdócio, o que anularia a possibilidade do padre reclamar maior quinhão na sua herança, ou mesmo de querer disputar pelo posto de sucessor da fazenda Pirapetinga, já que não constituíra uma família. Todavia, ele aparece na Lista Nominativa de 1839 como um dos maiores proprietários escravistas do arraial de Guarapiranga, com um plantel de mais de 20 escravos.

Por conseguinte, inferimos que os planos desta família tiveram um resultado satisfatório, nesta sucessão de gerações visto que, além de manter a propriedade indivisa nas mãos de um dos herdeiros, garantira uma vida confortável para o outro.

Mas a história não termina aí, pois os netos de Francisca Clara Umbelina de Jesus, Joaquim Pedro Vidigal de Barros, João Pedro Vidigal de Barros e Fortunato Vidigal de Barros, se casaram respectivamente com Constância Augusta Badaró, Olímpia Francisca Badaró e Maria Adelaide Badaró, netas do Capitão Mor José Coelho Oliveira Duarte, irmão de Francisca Clara Umbelina de Jesus. Todavia, existem apenas as dispensas referentes aos dois últimos casais e nelas não há nenhuma referência quanto a possíveis dotes ou rendas dos cônjuges, mas suspeitamos que

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esses casamentos, foram arranjados, pois as dispensas correm no mesmo intervalo de tempo [17/08/1848 - 23/08/1848], possuem as mesmas testemunhas e o mesmo pároco.

Além disso, um fator que deve ter pesado para todos os casamentos dessa família foi à condição social, pois os casamentos consangüíneos dos netos de Francisca Clara Umbelina com as netas de seu irmão José Coelho de Oliveira Duarte impediram a entrada de indivíduos estranhos na família. Já nos casamentos de Antônio Pedro Vidigal de Barros com as filhas de Antônio Gomes Sande, percebemos que o genro adveio do mesmo meio social de seu sogro, visto que ambos eram provenientes do norte de Portugal. A partir disso, nos é muito sugestivo um artigo da historiadora Carla Maria de Carvalho Almeida sobre a formação de redes sociais entre migrantes portugueses e seus descendentes em Minas Gerais no século XVIII (ALMEIDA, 2006).

Todavia, existem casamentos que são influenciados por razões econômicos, mas ao contrário da busca por dotes ou da tentativa de manutenção e ampliação dos patrimônios, eles decorrem de situações trágicas, ou de dificuldades econômicas em que, geralmente, as mulheres correm o risco de ficarem desamparadas.

Dizem o Alferes Antonio José Bastos e D. Bernardina Caetana de Oliveira Lopes, que se achão justos para se receber em Matrimônio; mas obsta-lhes impedimento por que D. Ignacia Barbosa de Mattos, avó Materna do suplicante he irman de D. Bernardina Caetana do Sacramento sendo esta avó da oradora; sendo portanto os oradores primos segundos; e longe de abusarem da Graça que esperão, tractarão deste casamento por que a mãe da oradora preciza de pessoa hábil que se encarregue dos arranjos da caza por ser uma viúva cansada de annos, deixando seu finado marido Manoel Caetano Lopes de Oliveira a casa envolta em muitas responsabilidades pelo que he hoje considerada pouco livre, e o suplicante ainda que não seja opulento por estar os bens que possue sugeitos ao Juízo de Ausentes pela meação da mulher falescida, com quem outrora foi cazado, he capaz de reger, e governar os bens da caza da sogra, sendo também certo que este cazamento se tem divulgado, e já se conta como certo: Em cujos termos humildemente reccorrem a Vossa Excelência se digne dispensá-los do impedimento com a mulcta correspondente aos seus poucos teres: declara o Orador ser filho de Jose Bastos e D. Anna Maria da Assumpção, e a oradora filha legítima do Guarda Mor Manoel Caetano Lopes de Oliveira e D. Anna Jacinta de Jesus moradores na freguesia de Guarapiranga.

O auto da dispensa do Alferes Antônio José Bastos e de D. Bernardina Caetana de Oliveira Lopes em 1827, descrito acima, é bem peculiar, pois na maioria das vezes são mulheres viúvas que se casam novamente para não passarem necessidade junto de seus filhos. No entanto, o que encontramos aqui, é uma sogra desesperada com o casamento da filha para que seu genro a auxilie com os pagamentos das dívidas deixadas por seu finado marido.

b) Os casamentos permeados pelo afeto e pelos quadros de referência cultural.

A relevância da instituição do dote é indiscutível, mas muitas uniões conjugais ocorriam sem seu uso dela. Um exemplo é a união de Antonio Silveira Gomes e D.

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Rufina Maria de Jesus em 1828, a qual não teve dote em virtude da pobreza do pai da noiva, que vivia no sertão e tivera seis filhas para cuidar. Outro é a união de Antônio Pereira dos Santos e Gertrudes Bernarda Rosa em 1751.

[...] Ao primeiro disse que sabe pello grande conhecimento que tem da oradora e por ser público e notório que a oradora he mulher branca, donzella e athe agora foi sempre de boa fama. Ao segundo disse que sabe por certeza em ser público e notório que o orador se ajustou a casar com a oradora e que já deu publicaçam na matris desta freguesia o seu banho retro, assim dice que sabe que o orador muitas vezes tem hido a casa de Manoel Jorge cunhado da oradora em cuja companhia assistia ella na ditta caza tem comido alguns dias tem dormido algumas noites, o que sabe elle testemunha por assim lho a verem dito e sertificado além de que quando o orador foi huma vez, onde esteve onze dias, disso deu elle parte a elle testemunha, como irmam mais mosso, e que vive junto com elle dizendo que hia a fazer huas obras pello offício de alfaiate na dita caza retro. Assim disse que sabe pello ver que os oradores sam moços e que sabe como couza certa por muitas circunstâncias que os oradores se amam muito donde facilmente poderão julgar muitos que elles tenham tido alguns ocelos, amplexos e tocamentos ao menos. [...] Ao terceiro item disse que sabe pello grau de conhecimento que tem da oradora que he ella pobre e que he tam pobre que nenhuma escrava tem de seu e que he necessário que o orador lhe de roupas para o dia de seu noivado retro [...] Ao quarto disse que sabe por haver a sentença que os esponsais entre a oradora e elle testemunha Manoel Pereyra da Silva já estavam dissolvidos [...] Ao quinto disse que a oradora não foi raptada pello orador, e mais nam disse.

O depoimento de Manuel Pereira da Silva irmão do orador, nos fornece dados valiosos. Isto porque não bastasse à noiva não conceder nenhum o dote, o orador iria lhe dar o vestido de noiva, além de prometer ajustes na casa do cunhado. No mais, ele contraente em seu depoimento não parece dar relevância aos antigos esponsais de seu irmão com a contraente.

Todavia há ainda casais que além de não terem motivações econômicas para o casamento, quebram barreiras sociais. No processo matrimonial da crioula forra Rita Francisca de Ramos e do crioulo Domingos da Silva em 1772, após o contraente não apresentar seu assento de batismo ou uma carta de alforria a ex-escrava para poder se casar é obrigada a afirmar que seguiria seu marido mesmo que ele fosse escravo em frente a duas testemunhas

Ao primeiro dia do mês de fevereiro de mil sete centos e setenta e dous annos nesta cidade Marianna, em cazas de morada do Muito Reverendo Doutor Vigário Geral deste Bispado aonde eu adiante nomeado me achava e sendo ahi appareceo presente a contrahente a qual em presença do dito Muito Reverendo Ministro e duas testemunhas abaixo assignadas disse que por este termo se obrigava a seguir seu marido no caso do contraente ser escravo e de dar por cedido o matrimônio que pretende celebrar com o contraente Domingos da Silva e de como assim o disse se obrigou por este termo [?] o dito Muito Reverendo Ministro referido assignou por ella não saber escrever com as testemunhas seguintes. Reverendo Padre Ignácio da Silva Adjudicador da Camara Episcopal que o escrevy.

Ass: Joseph Baptista da Silva - Muito Reverendo Ministro. Ass: Manoel [?] de Araujo Delgado e Manoel Jose da Rosa Xavier – testemunhas.

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É inegável que este termo tornava possível o casamento entre indivíduos de condições sociais divergentes um escravo e uma liberta, mas não é certo que ele o fez, pois não há como termos certeza quanto à condição do contraente. Contudo, obtivemos, claramente, o contraponto das condições na união entre o crioulo forro Antônio Pires e a crioula escrava Eva Mendes em 1797.

Aos dous dias do mes de mayo de mil sete centos e noventa e sette em esta leal cidade de Marianna, o cartório da Camara Episcopal e sendo ahi presente o contraente Antônio Pires crioulo forro e liberto por elle foi dito que se obrigava a seguir a contraente Eva Mendes para onde quer que seu senhor a mandar [?] mesmo matrimônio não obstante a sua escravidão e de como assim o disse e se obrigou e assignou com huma cruz signal que usa por nam saber escrever, sendo tudo prezentes por testemunhas Manoel Ignácio [Valadam?] e o [?] / João Gonçalves Gomide moradores nesta cidade de mim reconhecidos pelos próprios de que dou fé eu José Joaquim de Santa Anna / escrivão da Câmara Episcopal que o escrevi.

A não presença de dotes e as declarações, as quais afirmam que os contraentes seguiram seus parceiros mesmos que eles fossem escravos, neste sub-tópico, não especificam as razões os cônjuges para se unirem, mas expõe as fragilidades de análises que concebem os matrimônios apenas como arranjos econômicos e, ou sociais. No mais, encontramos mais dois casamentos, os quais nos ampliam o escopo da análise, já que eles enfatizam uma variável diferente, a honra feminina, ligada ao tabu da virgindade. Vejamos o auto da dispensa de um dos casais:

Dis Antônio Soares Ferreira natural da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga filho legítimo de Antônio Soares Ferreira e de sua mulher Catherina Teixeira, que elle se acha contratado para receber em matrimônio com Maria Clara Teixeira, filha legítima do Alferes José Alex Moreira e de sua mulher Clara Maria Teixeira, natural da dita freguesia de Guarapiranga, o que não pode conseguir sem que Vossa Excelentíssima Reverendíssima faça agração de os dispensar no segundo grau de consanguinidade em que se achão impedidos

- Item que Catherina Teixeira e Clara Maria Teixeira são irmãs em razão de serem ambas filhas legitimas do Sargento Mor Domingos Teixeira e de sua mulher Maria Soares Ferreira

- Item que o orador por fragilidade humana teve cópula carnal com a oradora, em rasão de frequentar a casa desta, se acha a mesma infamada e a dita copula não fes para facilitar a dispensa.

- Item que a oradora em rasão de estar infamada com o orador não achará pessoa de sua qualidade que com ella queira casar vindo assim a estar inepta, e exposta a todas as misérias humanas

- Item que o orador por bem só possui hum escravo, contudo pela sua agilidade, e trabalho pode sustentar a oradora com descencia necessária segundo a sua qualidade.

- Item que os paes da oradora [?] são senhores de sua rossa, e des escravos entre grandes e pequenos, contudo tem nove filhos e por sua morte repartidos estes bens, pouco ou nada pode pertencer a oradora, depois de pagas as dividas de casal.

- Item que a oradora não foi raptada nem esta em poder do orador, mas sim na companhia de seus pais.

- Item que não se effectuando este cazamento corre risco de vida o orador pelos irmãos da oradora já o haverem ameaçado, e serem capazes de o porem em execução.

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Os suplicantes Antônio Soares Ferreira e Maria Clara Teixeira pedem exoneração do impedimento de 2° grau em linha transversal igual e dentre os itens relacionados na dispensa o que nos chama mais atenção e o último, uma ameaça de morte ao orador feita pelos irmãos da oradora caso ele se recuse a casar, pois a oradora já estava infamada em virtude de uma cópula ilícita. Ao longo da dispensa em seu depoimento Antônio Soares Ferreira alega verdadeira a dita cópula e que esta de forma alguma foi premeditada, pois não tinha a intenção de se casar com a contraente Maria Clara Teixeira, o que também é ratificado por outra cópula ilícita do orador com uma prima em comum com a oradora. Além disso, ele faz questão de repetir que esta sendo coagido, mesmo assim, o reverendo não levanta nenhuma questão sobre o assunto, e valida o casamento.

Enquanto isso, na segunda união entre o cabra Antônio Oliveira e a crioula Ana Silva Lima em 1765, notamos que o contraente não se importa com a virgindade de sua noiva. Isto, porque casa-se com ela, após seu primo no período de banhos denunciar ter tido uma cópula com a mesma.

Certifico se publicarão estes banhos em três dias festivos de preceito [?] em pública estação de missa conventual, e nelles me sahiu hum João Barbosa de Andrade com impedimento dizendo que elle tivera consumado cópula com a contrahente: sendo que elle dito João Barbosa he primo do contrahente pela razão de que sua may mulher parda era filha natural [?] por tal havido de Martinho de Oliveira Couto avô legítimo de João Barbosa por cuja; razão vem a ser consanguineo do contraente em segundo grau [...].

Conclusão

Os singelos exemplos deste artigo podem ser considerados uma parcela ínfima dos matrimônios em Guarapiranga entre 1750-1850. E apesar de nosso empenho para reunirmos o maior número de dados sobre os contraentes, muitas vezes pela inexistência, ou pelas parcas informações contidas nos documentos de caráter cartorário não obtivemos sucesso. Ainda assim, a partir da dita, parcela ínfima, almejamos ter tido êxito em mostrar o quão diverso e complexo pode ser o universo de decisão dos contraentes. A partir disso, não pretendemos ignorar a produção historiográfica, a qual vê os matrimônios como arranjos econômicos e, ou sociais, queremos sim complementá-la, diversificando e multiplicando as variáveis que permeiam a escolha dos cônjuges.

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Tradição e modernidade no Congado de Airões Paula Cândido, MG.

Lucia Goulart Travaglia

Apresentação do tema

O objetivo da pesquisa é analisar a manifestação do Congado de Airões, município de Paula Cândido no estado de Minas Gerais, enfocando a tradição e as possíveis inovações incorporadas entre os anos de 2006 e 2010. Leva-se em conta o ano de fundação deste grupo de Congo, em 1888, afim de que se compreenda a trajetória, as crenças e os elementos que compõe atualmente o Congado nesta localidade.

Influências e constituição dos congados do Brasil

Os Congos, Congados e Congadas no Brasil compreendem uma grande variedade de folguedos populares expressivos da cultura afro-brasileira, em que se destacam de maneira predominante tradições históricas e costumes tribais de Angola e Congo. Constituindo o que é chamado por estudiosos de “cortejo real”, trata-se de festas brasileiras de coroação dos Reis de Congo, geralmente associadas às irmandades religiosas, em que comunidades negras escravizadas elegiam seus reis como forma de organização social e expressão cultural.

Segundo Marina de Mello e Souza, estas festas são realizadas desde o século XVI na Península Ibérica, existindo na América espanhola, portuguesa e na Nova Inglaterra. No Brasil, onde teve maior disseminação, este fenômeno persiste até os dias de hoje e pode ser encontrado em diversas regiões, mas principalmente na região sudeste.

Formas remanescentes de tais festas de coroação dos Reis de Congo, os Congos, Congados e Congadas, são hoje divididas em duas classes, uma constituída pelos grupos organizados como simples desfiles, e a outra, também pela representação dramática que recebe o nome de Embaixada. De acordo com Alfredo João Rabaçal (1976), os folguedos se assemelham entre si por apresentarem uma representação de tipo dramático, categorizada em seus entrechos por bailados de espadas ou bastões, precedidos por um desfile ou cortejo dos personagens hierarquizados na marcha segundo os papéis que desempenham como membros do grupo de dança, e, também podem indicar simples andanças de grupos instrumentais pelas ruas de algumas cidades brasileiras.

A primeira notícia conhecida sobre os Congos, Congados e Congadas no Brasil, data de seis de junho de 1760, quando nas festas realizadas em Santo Amaro, na Bahia, em regozijo pelo casamento de D. Maria I de Portugal com o Príncipe D. Pedro, foram realizados famosos

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festejos, entre os quais constava um reinado dos Congos que se compunha de mais de oitenta máscaras, com farsas do seu modo de trajar riquíssimas. (Alfredo João Rabaçal,1976, p.12)

Nota-se que o registro de ocorrência das variadas festas dos Congos, datam em seu calendário oficial de acordo com as festas religiosas estabelecidas tradicionalmente em cada comunidade, onde se realizam homenagens aos santos padroeiros específicos cultuados em cada grupo, e podem também aparecer em festas profanas. Em geral, essas homenagens traduzem a motivação interna que leva os grupos a se apresentarem, porém, em festas de caráter profano, convocadas por poderes oficiais ou entidades particulares segundo pretextos os mais variados, o que lhes dá um caráter extremamente móvel, refletem uma motivação externa ao próprio grupo, mas que não impede que estes usem do pretexto para homenagear os santos de sua devoção ao mesmo tempo em que tem seu prestígio aumentado frente aos demais membros da coletividade a que pertencem. “Nossa Srª. do Rosário e São Benedito constituem o denominador comum da devoção da maioria dos congadeiros.” (RABAÇAL,1976). No estado de Minas Gerais, mais precisamente na região da Zona da Mata, as festas de Congado são realizadas principalmente no mês de outubro, em louvor à Nossa Srª. do Rosário. No entanto, na microrregião de Viçosa, há menção, também, à Santa Ifigênia, ainda que em posição secundarizada, como a de São Benedito.

Estudos de Marina de Mello e Souza a respeito dos fundamentos da monarquia contribuem para esclarecer o sentido da coroação dos Reis Congos.

A monarquia tem sempre, em todo tempo e lugar, algum grau de sacralidade. Se o rei simboliza toda a sociedade e não pode identificar-se com nenhuma parte dela, deve estar ao mesmo tempo dentro e fora da sociedade, o que só será possível com a localização de seu cargo num plano místico. O que é divino é a monarquia e não o rei. (Marina de Mello e Souza, 2002, p.27)

Focando o reino do Congo, nota-se a sacralidade do rei na região da África Centro-Ocidental, em que o rei revive em si a divindade suprema, o deus criador. Sendo assim, a monarquia eletiva do Congo reflete a necessidade de se destacar, entre os possíveis sucessores do rei, pertencentes à linhagem geral, a personalidade mais adequada para harmonizar e representar em sua pessoa as aspirações e anseios de todos os membros da comunidade. “Seria por meio da realeza, da qual o rei é o símbolo mais visível, que o povo construiria uma identidade coletiva e se reconheceria enquanto comunidade solidária e coerente.” (Souza, 2002, p.27)

Já na Península Ibérica, a coroação de reis era prática usual desde a época visigótica e pode ter ocorrido até o século XI. O rei apresentava-se como sagrado e as cerimônias que inauguravam o novo reinado compreendiam coroações, levantamentos e aclamações. É importante atentar para as cerimônias que elevavam o indivíduo a posição de rei e para as entradas reais, estas que são cerimônias geralmente ligadas a itinerância dos reis, compostas de uma recepção do rei e sua corte por parte da cidade. As entradas compunham-se de uma procissão do clero e de um cortejo da nobreza que passavam por ruas limpas e decoradas; danças, folias, touros, cana e distribuição

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de comida faziam parte da festa, sendo atividades organizadas pelos ofícios e que podiam durar vários dias. A partir de então, as cerimônias reais tornaram-se mais complexas e os cortejos “superlativamente ricos”, havendo uma presença crescente de cenas teatrais. “Teatralização do poder real, o cortejo régio apresenta agora, além dos atributos do rei de Portugal, os símbolos do seu projeto imperial”(Souza, 2002, p.43). As entradas passaram a ser desfiles da grandiosidade régia, em que ocorria a presença de folias, jogos diversos, participação de músicos, danças populares que acompanhavam o batel do rei em batéis floridos, emboscadas galantes feitas por fidalgos vestidos à mourisca, constituíam passeios que terminavam em uma merenda. “Tais descrições nos levam a pensar que representações antes feitas por nobres para entretenimento da corte em seus passeios foram incorporadas às danças populares realizadas pelos ofícios por ocasião de festas reforçadoras do poder real.” (Souza , 2002, p. 35)

A origem da designação de Congado.

Marina de Mello e Souza (2001) afirma que em Minas Gerais, os reis eleitos eram sempre provenientes da região do Congo africano, e que foi pelo nome de Congada que as danças realizadas por ocasião dos festejos em torno dos reis e dos santos padroeiros ficou conhecida a partir do século XIX.

Olhando com vagar para o processo de constituição dessa festa, amplamente disseminada pelo país, percebemos que as comunidades negras que se agrupavam e elegiam reis a partir de identidades baseadas em características culturais e históricas dos povos que as compunham, e em determinações do tráfico de escravos, pouco a pouco se despiram de suas particularidades, passando todos os reis a serem identificados como rei do Congo, desaparecendo os reis de outras nações. (Souza, 2002, p.251)

Alguns registros, como uma correspondência do Conde Assumar em 1719, mostram que estes reis muitas vezes estavam associados à frente de tentativas de levantes de escravos rebeldes. No entanto, foi nas irmandades religiosas de “homens pretos” que os reis negros tiveram maior destaque. Segundo Marina de Mello e Souza (2002), o costume era elegerem reis de determinadas irmandades, coroá-los em missa na igreja, acompanhá-los em cortejos por determinados circuitos da comunidade, fazer com que presidissem danças apresentadas em lugares públicos, tudo em homenagem ao santo padroeiro da irmandade, que ainda era festejado com música e banquetes. Sempre acompanhados de suas cortes, esses reis festejavam pelas ruas da cidade, com músicas e danças de marcada origem africana. Sendo uma manifestação tradicionalmente católica, as irmandades dos homens pretos buscavam consolidar laços de solidariedade, garantir a assistência aos necessitados, o enterro dos mortos, o alcance da paz além da vida, mas também adorar e festejar seus santos de devoção.

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Congado: fusão de elementos culturais

A assimilação da cultura cristã pelos negros no Brasil é visivelmente percebida nas manifestações dos Congados. Ao integrarem-se na sociedade colonial através do cristianismo, os africanos foram pouco a pouco minimizando suas diferenças de etnias. A nova identidade assumida mesclava a cultura cristã com elementos que destacavam as características em comum das diferentes culturas africanas. Nesse processo, o rei congo teve o papel aglutinador das comunidades negras, remetendo à terra natal, ao mesmo tempo em que esta era despida de suas particularidades concretas, passando a ser sentida como um lugar mítico do qual vieram todos os africanos escravizados.

Este simbolismo ao redor do rei de Congo, assim como a valorização do culto aos ancestrais, explica a cultura dos congados no Brasil. Tais características se apresentam em todas as manifestações de Congado, independente da região de origem do grupo; podem ser reconhecidas assim, como a maior ligação representativa da memória da cultura africana.

O congado representa uma recriação mítica de fragmentos da história da África e desenvolve rituais que reafirmam algumas características da comunidade envolvida. A coroação do rei congo no âmbito da celebração festiva do santo padroeiro, na qual o grupo representava danças que dramatizavam episódios da sua história, remetia a um passado africano, resgatado pela vivência do catolicismo. (SOUZA, 2001, p.252)

Alguns relatos de viajantes do século XIX, como Spix e Martius (1818), testemunham as festas de coroação de rei congo em diversas regiões do país. Reis e rainhas eram coroados pelo padre, uma corte era eleita, estes eram acompanhados por grupos de tocadores e dançadores que apresentavam dramatizações, cantavam versos, representando embaixadas entre os reinos distantes e o Congo, quase sempre envolvendo guerras, após as quais os adversários do Rei Congo eram vencidos pelo seu exército e adotavam sua religião: o catolicismo.

Essas danças dramáticas – como foram chamadas por Mário de Andrade – não sofreram uma repressão tão intensa como os ritos religiosos de origem marcadamente africana, como os calundus, antepassados dos candomblés. Segundo Paulo Dias (2001), tais manifestações, designadas como batuques negros, eram qualificadas como diversão “desonesta”, ao passo que o congado, recheado de aspectos culturais próprios dos europeus, era incentivado pelos senhores brancos como uma forma de ordenar as comunidades negras; considerados como “diversão honesta” para os escravos. Trata-se de dois aspectos complementares da festa negra no Brasil: no terreiro, a celebração intracomunitária, noturna, onde se reforçam sem grande interferência ou participação do homem branco, os valores de pertencimento a uma matriz cultural e religiosa africana; na rua, a festa extracomunitária, em que o negro, por meio das danças de cortejo, busca inserir-se nas festividades dos brancos e ganhar certa visibilidade social, mediante a adoção de valores religiosos e morais da classe dominante.

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Marina de Mello e Souza (2001) defende que, no entanto, apesar de os congadeiros adotarem padrões da cultura lusitana e valores católicos, reforçaram também os laços com a África natal.

Com as festas de reis congos, os ritos que as compunham, os mitos que veiculavam, e os símbolos que exibiam, as comunidades negras construíram e consolidaram uma identidade formada a partir da escravização e da integração à sociedade colonial e na qual elementos de origem portuguesa, como o catolicismo e as irmandades religiosas, foram recheados de simbolismos e significados que uniam os africanos e seus descendentes a seus ancestrais e a suas terras natais. (SOUZA, 2001, p. 255)

Referências teóricas

Tratando-se de um fenômeno cultural/social, a análise histórica do Congado deve ser inserida na especificidade da História Cultural. Deve-se levar em consideração que a cultura se trata de um fenômeno múltiplo, diversificado e não homogêneo, ou seja, ocorre em diferentes formas dando voz a variados grupos sociais. Partindo deste pressuposto, a análise micro-histórica aplica-se perfeitamente aos propósitos desta pesquisa, pois busca, através da redução da escala de observação, a caracterização de perfis individuais para compreender o fenômeno social em questão: o Congado. “A micro-história diz respeito ao sujeito e simultaneamente ao objeto, no caso os enredos e conflitos protagonizados por agentes anônimos da realidade histórica.” (VAINFAS, 2002, p.117)

A valorização da História Cultural no cerne do debate historiográfico ganhou notoriedade a partir da década de 1970, quando a descrença com relação às certezas históricas leva a uma redefinição do fazer história. Nessa perspectiva insere-se a relação com outras ciências sociais, como a antropologia, o que confere um diálogo interdisciplinar para o entendimento da cultura.

O cultural é o lugar de encontro de diversos campos teóricos e de setorizações muito particulares que correspondem às diferentes ciências humanas, sendo impossível tudo reduzir a um fator ou a um conceito ou modelo... Cabe então ao historiador não ignorar que o campo cultural não lhe pertence com exclusividade e que tampouco é possível considerá-lo como território fora da sociedade como um todo. Existe, ou pelo menos é possível uma abordagem historiográfica desse campo, mas não é nem poderá jamais ser a única. Daí a importância crucial que possui a perspectiva interdisciplinar para o conhecimento do cultural. (FALCON, 2002, p.64)

De acordo com Francisco Falcon, a História Cultural busca diferenças, especificidades e a valorização do “individual”, sendo a interdisciplinaridade fundamental para sua análise e para o método analítico da micro-história. O autor defende que o auxílio de tais ciências, longe de ser supérfluo, contribui para a caracterização da cultura de um determinado local e época. Assim, a perspectiva histórica passa a levar em conta os aspectos culturais de uma determinada sociedade em sua especificidade, contrapondo análises mais generalizantes.

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Alguns teóricos apontam para certas dificuldades em se delimitar objetos e métodos de análise para a História Cultural. Segundo Jacques Le Goff (2002), a História Cultural carece de conceitos específicos e operatórios. Na verdade essa história não logrou construir ou aparelhar um domínio no qual o “quantitativo se imponha”, nem conseguiu “teorizar convenientemente o lugar que cabe ao qualitativo.

Para Francisco Falcon, tal delimitação torna-se dificultosa devido à amplitude que esta corrente de pesquisa pode abranger.

Verifica-se que o avanço da História Cultural, em extensão apresenta-se como rápido e incessante movimento de descoberta e incorporação de uma variedade quase ilimitada de objetos e abordagens descritos ou rotulados, genericamente, de novos ou, em certos casos esquecidos. Assim, uma vez concebida como um campo de múltiplos temas e saberes, a História Cultural ora é pensada como um leque disciplinar, ora como área de investigação interdisciplinar ou mesmo metadisciplinar, capaz de dar conta de todas as práticas e representações sociais. (FALCON, 2002, p.105)

O intuito de se estudar o Congado de Airões em uma delimitação temporal de quatro anos (2006-2010) está calcado na pesquisa da tradição e inovação cultural, através da busca por valores transmitidos ou que possam ter desaparecido entre gerações.

Para a realização desta pesquisa é fundamental a utilização da micro-história como método analítico visto que esta se preocupa em estudar o pormenor, ou seja, personagens periféricos a luz de uma história geral. Apesar de ser encontrado em muitas regiões do país, o Congado é uma manifestação muito específica de cada localidade e do tempo em que ocorrem, já que cada grupo apresenta história e elementos próprios.

A micro-história propõe a redução da escala de observação em seu objeto de pesquisa, e concentra sua análise partindo da investigação do sujeito. De acordo com Ronaldo Vainfas:

O recorte microanalitico, longe de ser simplesmente uma particularidade minúscula de um todo mais amplo reconhecido pelo pesquisador, constitui, em grande medida, o resultado de uma opção analítica que opera em escala reduzida. Uma opção que se recusa, portanto, a ver as totalidades a priori, e só as vê quando diluídas no particular. (VAINFAS, 2002, p.120)

Neste sentido, o uso da antropologia contribui no estabelecimento de características particulares que representam um grupo social. Em A Interpretação das Culturas, Clifford Gueertz defende a antropologia interpretativa através da descrição densa do objeto e da proposição do relativismo cultural. Nesta perspectiva a cultura se constitui como universo fechado e auto-explicativo.

Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível- isto é, descritos com densidade. (GUEERTZ, 2008, p.10)

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Desta forma, esta pesquisa está inserida na vertente da História Cultural e da micro-história, apoiadas sobretudo nas proposições de Francisco Falcon e de Ronaldo Vainfas. A interdisciplinaridade, reconhecida como fundamental nesta corrente de estudo ocorrerá principalmente na utilização da antropologia defendida por Clifford Gueertz. Esta perspectiva se justifica na necessidade de uma abordagem histórica que se preocupe em penetrar em um contexto popular, na história do homem comum, sem que para isso, limite-se a análises generalizantes.

Metodologia e fontes

Esta pesquisa utiliza a história oral como método para a produção da fonte histórica. A fonte oral é construída através de entrevistas realizadas com membros-chave da localidade, afim de que se compreenda a tradição do Congado de Airões e suas possíveis inovações culturais, ocorridas entre os anos de 2006 e 2010. Segundo Lucília de Almeida Neves Delgado:

A história oral é um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais. Não é, portanto, um compartimento da história vivida, mas sim, o registro de depoimentos sobre essa história vivida. ( DELGADO, 2006, p.15)

As entrevistas deverão ser realizadas com pessoas da comunidade que de alguma forma possam relatar suas experiências e lembranças ao vivenciarem o Congo. Tratam-se de membros-chave, como os idosos e os atuais congos. Pretendo realizá-las por meio de filmadora e ou gravador; as questões desenvolvidas deverão relacionar-se às lembranças das festas, bem como suas dificuldades de realização, o culto aos santos, o enredo e a dramatização das apresentações, assim como o valor e a presença do Congo no cotidiano do entrevistado. As entrevistas propiciarão, também, um meio de descobrir escritos e fotografias que, de outro modo, não teriam sido localizados, podendo ser estes documentos e registros das festas. Segundo Paul Thompson:

A vantagem deste método é sua flexibilidade, a capacidade de dominar a evidência exatamente onde ela é necessária. Assim que o historiador começa a entrevistar, se vê inevitavelmente trabalhando com outras pessoas. E para ser um entrevistador bem-sucedido é necessário um novo conjunto de habilidades, entre as quais uma certa compreensão das relações humanas. (THOMPSON, 2002, p.29)

Thompson e Delgado afirmam que a singularidade é uma característica fundamental desta metodologia, visto que no momento da entrevista, ocorre a valorização do sujeito e da sua visão particular a respeito do processo coletivo em questão. “A história oral situa-se no terreno da contra generalização e contribui para relativizar conceitos e pressupostos que tendem a universalizar e a generalizar as

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experiências humanas.” (DELGADO, 2006, p.18). Prevalece aqui a “caracterização de perfis individuais no interior de determinado grupo ou classe, mais do que a definição geral da classe ou do grupo ao qual pertence.” (VAINFAS, 2002, p. 117). Por sua vez, a busca pela memória sob diferentes óticas e versões, possibilita a construção de evidências via o entrecruzamento de depoimentos. Desta forma, informações sobre o Congado que não se encontram registradas em outros tipos de documento, podem ser recuperadas.

Portanto, a pesquisa recorre à memória dos sujeitos entrevistados como subsídio principal para a produção da fonte histórica. Para Delgado, a maior contribuição da História e da memória é de:

[...] buscar evitar que o ser humano perca referências fundamentais à construção das identidades coletivas, que, mesmo sendo identidades sempre em curso, como afirma Boaventura Santos (1994), são esteios fundamentais do auto-reconhecimento do homem como sujeito de sua história. (DELGADO, 2006, p. 36)

Esta memória deve se inserir como parte do patrimônio histórico e cultural de Minas Gerais, que vai além da consciência e das ações institucionais limitadas à preservação de conjuntos arquitetônicos. Esta é uma preocupação contemporânea e, neste sentido, demonstra muito bem a importância deste estudo para a localidade.

A pesquisa sobre a tradição e as inovações ocorridas na festa do Congado de Airões, entre os anos de 2006 e 2010, justifica-se pelo fato de que este tem como fundamento a capacidade de ser muito espontâneo, de narrar tradições e costumes do cotidiano local. A capacidade de improvisação dos versos é grande e o processo de mediação é intenso. Enquanto o Congado perde algumas características ancestrais, cede espaço a novas influências da sociedade em que vivemos e as vai revertendo em seu benefício.

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Padre Antônio Ribeiro Pinto: A trajetória de um prelado milagreiro na cidade de Urucânia em

Minas Gerais. Luciano Conrado Oliveira

IntroduçãoA figura de Padre Antônio Ribeiro Pinto tornou-se destaque nos idos de 1947,

quando passou a atrair para o então distrito de Urucânia – MG, uma leva de fiéis em busca de curas para seus males. Nosso trabalho tem como objetivo a análise de alguns elementos que consideramos importantes na trajetória sacerdotal de Padre Antônio e que podem contribuir para os debates relacionados a questões ligadas ao Catolicismo brasileiro.

A questão relacionada aos milagres atrelados à figura de Padre Antônio é o ponto fundamental de nosso trabalho, porém a partir do mesmo tentaremos entender as possíveis relações que poderiam existir entre elementos culturais marcadamente ligados a aspectos da cultura popular, principalmente relacionados a um Catolicismo de cunho devocional e por outro lado a elementos relacionados a uma orientação ultramontana. Dessa forma, a partir da análise das ações promovidas por Padre Antônio, procuraremos compreender as possíveis relações entre elementos culturais díspares e em alguns casos até mesmo julgados como inconciliáveis.

Ultramontanismo no Brasil do século XIX e início do XXInicialmente é importante destacarmos algumas considerações acerca do

ultramontanismo no século XIX e início do XX. No Brasil o ultramontanismo toma corpo na segunda metade do século XIX, porém os ideais ultramontanos já estavam em voga na Europa desde o século XVIII e remontavam aos ditames do Concílio Tridentino do século XVI. Sobre a origem do termo ultramontano, o pesquisador Riolando Azzi nos fornece a seguinte argumentação:

Na realidade, não é possível analisar a característica da catolicidade desvinculando-a da romanidade. Como a partir de meados do século XVIII, parte expressiva do clero francês aderira à ideologia liberal, veiculada pelos enciclopedistas, o grupo fiel à Santa Sé passou a ser designado como ultramontano, ou seja, aquele que se alinhava ao lado do Pontífice Romano, o qual residia, a partir da ótica francesa, além dos Alpes, ou seja, ultra-montes. (AZZI, 1992).

Riolando Azzi também nos apresenta os elementos caracterizadores do ultramontanismo, destacando o respeito à hierarquia eclesiástica, que tinha na figura do Papa seu agente principal. (AZZI, 1992). O movimento ultramontano também se

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destacava por sua característica moralizante, pois visava uma reforma não apenas do clero, mas também da sociedade. (LUSTOSA, 1977). Também não podemos deixar de fora os elementos caracterizadores do ultramontanismo que tinham como objetivos os ataques às idéias liberais, racionalistas e comunistas. (MANOEL, 2003). Tais elementos caracterizadores do ultramontanismo estiveram presentes principalmente nos debates da segunda metade do século XIX, principalmente com relação às questões relacionadas à separação entre a Igreja Católica e o Estado, que culminaram na chamada Questão Religiosa. De acordo com Karla Denise Martins a Questão Religiosa pode ser entendida da seguinte forma:

Entre 1872 e 1875, os jornais maçônicos divulgavam o nome de dois Bispos que atuavam respectivamente no Pará e em Olinda, D. Macedo Costa e D. Vital Maria Gonçalves. Eles eram alvos de notícia porque proibiram a presença maçônica em Irmandades religiosas nas suas respectivas dioceses. Contrariando as ordens do Imperador, que mandou suspender suas interdições, os Bispos comandaram uma luta contra os chamados pensamentos maçônicos e isso teria sido suficiente para que o Supremo Tribunal de Justiça solicitasse, em nome do Imperador, a abertura de processo contra os diocesanos. Julgados e levados à prisão, na Ilha das Cobras, em 1874, os Bispos se mantiveram firmes à condenação do que eles chamavam de idéias satânicas. Várias foram as versões sobre estes fatos, conhecidos à época como Questão Religiosa, tornando os Bispos personagens deste conflito cujo período marcou as relações entre a Igreja e o Estado. (MARTINS, 2009).

Após o acontecimento da Questão Religiosa, a Igreja Católica no Brasil caminhou para sua separação com relação ao Estado, porém no início do século XX os ideais ultramontanos de seus prelados ainda se faziam presentes na formação de jovens seminaristas. De acordo com Alípio Casali a Igreja Católica no início do século XX se viu às voltas com dois projetos distintos. De um lado o projeto restaurador do Catolicismo, liderado por D. Leme e que objetivava a formação de lideranças católicas intelectualizadas. Por outro lado, o projeto do Pe. Júlio Maria visava uma aproximação da Igreja com as massas. (CASALI, 1995). Tais projetos demonstram que a Igreja encontrava-se dividida, porém não abandonara por completo os ideais ultramontanos de uma parte e alguns resquícios permaneceram ao longo do século XX. De outra parte, surge paralelamente um Catolicismo mais desbatinado, ou seja, alguns membros da Igreja procuraram uma aproximação com as massas o que redunda num apelo por mudanças menos intelectuais e mais factíveis do estilo de vida dos brasileiros.

Autores como Ivan Aparecido Manoel defendem a idéia de uma presença dos ideais ultramontanos até meados do século XX. De acordo com Manoel:

Entre 1800 e 1950, a Igreja Católica desenvolveu uma política, tanto interna como externa, que a historiografia denomina Ultramontana, cuja marca fundamental foi rejeição à modernidade e cujo emblema era a 80ª Proposição do Syllabus que anunciava ser pecado mortal julgar que o ... ‘Romano Pontífice pode e deve conciliar0se e transigir com o Progresso, com o Liberalismo e com a Civilização Moderna.’ (Pio IX, 1861:11). (MANOEL, 2003).

Partindo da idéia apresentada por Ivan Aparecido Manoel, da existência de uma

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política ultramontana até meados do século XX e também das idéias de Alípio Casali sobre as divergências existentes na Igreja Católica na primeira metade do século XX, entendemos ser possível a coexistência, por um lado de elementos ultramontanos e por outro de elementos da cultura popular, nas ações promovidas por Padre Antônio em sua prática sacerdotal.

A formação sacerdotal no seminário de Mariana

É impossível realizarmos um trabalho de pesquisa sobre Padre Antônio sem fazermos qualquer menção ao seu período de formação sacerdotal. Porém, antes de passarmos às considerações sobre a sua formação sacerdotal, é importante apresentarmos algumas informações sobre sua origem. De acordo com Margarida Drummond de Assis:

Foi nesse contexto que Fábia Maria de Jesus, cujos genitores eram Antônio Ribeiro Pinto e Maria Luiza da Conceição, também os dois de Rio Piracicaba, deu à luz no dia 2 de abril daquele distante 1879, o menino que herdou o mesmo nome do avô, Antônio Ribeiro Pinto, menino este que trinta e três anos depois, ordenar-se-ia sacerdote e que em seu ministério atrairia multidões pelos seus diversos dons e pela vida em prol dos menos favorecidos. Em sua inocência de criança, mas, de certa forma na presença da mãe, que vivia em meio às dificuldades de um modesto lar e sob a discriminação por ser filha de escravos e mãe solteira, crescia o pequeno Antônio. (ASSIS, 2004).

As informações contidas no livro de Margarida Drummond de Assis nos dão conta das dificuldades enfrentadas por Padre Antônio, para que conseguisse atingir seus objetivos. Apesar da questão relacionada à origem dos futuros sacerdotes ser um ponto relevante para a ordenação dos futuros sacerdotes católicos, os chamados defeitos de nascença a muito já encontravam solução no interior da organização católica.

Antes de tratarmos da questão relacionada às dificuldades para se tornar um sacerdote é importante destacarmos a possibilidade de Padre Antônio ter tido uma formação marcada por forte orientação ultramontana, tendo em vista sua ordenação sacerdotal ter ocorrido no período no qual a então Arquidiocese de Mariana encontrava-se sob os cuidados do Arcebispo D. Silvério Gomes Pimenta. Ao tratar da posição ultramontana defendida por D. Silvério, Maurílio José de Oliveira Camello o define como “... o protótipo mais acabado dessa postura eclesiástica.” (CAMELLO, 1986).

E foi D. Silvério um dos inspiradores de Padre Antônio. De acordo com Carolina Boechat Martins, responsável pela elaboração de um trabalho biográfico sobre Padre Antônio, o mesmo foi um grande admirador do então Arcebispo de Mariana, D. Silvério Gomes Pimenta, sendo este o responsável por ordená-lo padre. (MARTINS, 2000). Também a autora Margarida Drummond de Assis nos trás informações sobre a relação de Padre Antônio com D. Silvério. De acordo com a autora “Com a orientação permanente de Dom Silvério, o seminarista piracicabense continua seus

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estudos, apesar de todas as dificuldades, tanto devido a fatores de ordem financeira quanto à sua humilde origem.” (ASSIS, 2004). Dessa forma, observamos que padre Antônio teve como um de seus orientadores um membro do clero diretamente ligado ao pensamento ultramontano.

Com relação aos estudos no seminário Padre Antônio teve aulas de Latim, Grego, Português, Teologia, Direito Canônico, entre outras, e tudo aprendido de modo a respeitar a obediência e hierarquia da Igreja. (MARTINS, 2000). Segundo Sergio Miceli os párocos ordenados no início do século XX, receberam a influência de bispos ligados a uma orientação de moralização e organização clerical. (MICELI, 1986). O autor também destaca características da rotina dos seminaristas: “Horários rígidos para refeições, estudos, aulas, exercícios físicos, orações.” (MICELI, 1986).

Após anos de estudos no Seminário de Mariana, Padre Antônio ordenou-se em 1912, tendo que pedir dispensa do certificado de batismo e também da irregularidade proveniente ex defectu natalium, para o recebimento da tonsura. Tais pedidos de dispensa a muito já ocorriam em solo brasileiro. Só para citarmos um exemplo, Álvaro Kassab nos mostra o caso de Jesuíno do Monte Carmelo, que se ordenou em 1797, mesmo com ex defectu natalium (defeito de nascença), por ser mulato. (KASSAB, 2003). O caso que nos apresenta Álvaro Kassab ilustra algo que já acontecia no seio da Igreja Católica Brasileira e não foi um empecilho para que Padre Antônio se tornasse sacerdote. Mesmo porque, no próprio processo De genere et moribus do seminarista Antônio, encontramos informações elogiosas do então Juiz Comissário Mons. João Grossi.109

Por outro lado, com relação ao traço marcadamente ultramontano no que se refere à formação sacerdotal de Padre Antônio, já citado anteriormente, encontramos em seu processo De genere et moribus o juramento que os sacerdotes ordenados no início do século XX deveriam fazer, por determinação do Papa Pio X e que tinha como objetivo impedir a contaminação de idéias modernistas no seio do clero.110

E foi com esses traços ultramontanos, provenientes de sua formação sacerdotal, que Padre Antônio teve de conviver, fazendo com que os mesmos coexistissem com fortes elementos da cultura popular do interior de Minas Gerais.

A atuação sacerdotal

Antes de falarmos da atuação sacerdotal de Padre Antônio, é de fundamental importância a exposição sobre o nosso entendimento com relação a algumas terminologias adotadas em nosso trabalho. Procuramos fazer referência à figura de Padre Antônio como sendo um “ultramontano popular”. Como já dissemos anteriormente tais terminologias representariam um conjunto de idéias que poderiam

108 DE GENERE et moribus de Padre Antônio Ribeiro Pinto. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM).109 Ibidem.110 Ibidem.

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ser consideradas inconciliáveis no final do século XIX e início do século XX. Entendemos a utilização da terminologia “ultramontano popular” de acordo com os argumentos apresentados por Peter Burke ao analisar as possibilidades de interações entre a alta cultura e a cultura popular. (BURKE, 2005). Advindo de uma tradição ultramontana, que podemos relacionar aos aspectos de uma cultura erudita, o pároco de Urucânia acabou por se aproximar do imaginário popular de forma contundente. Ao tratar da cultura popular, Peter Burke mostra as dificuldades de se relacionar cultura erudita e popular, porém destaca a importância da interação de ambos os campos de análise. Segundo Burke:

Um futuro possível para a história cultural – pelo menos no futuro próximo – é a renovação da ênfase na história da alta cultua. Afinal, a alta cultura é uma ausência conspícua dos ‘estudos culturais’ tal como ensinados e estudados em muitos lugares hoje. Se essa renovação ou retorno ocorrer, é improvável que a história da cultura popular definhe, mesmo que o conceito de ‘cultura popular’ já esteja sendo questionado. Os dois tipos de história cultural provavelmente vão coexistir, juntamente com um interesse crescente em suas interações. (BURKE, 2005).

Com relação aos traços ultramontanos existentes nas ações de Padre Antônio, é

possível observarmos o respeito à hierarquia eclesiástica. Em carta recebida por Padre Antônio do então Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Mariana, D. Daniel Baeta Neves, o mesmo agradece a carta enviada pelo pároco de Urucânia e também o dispensa da recitação do Santo Breviário111, em virtude de sua impossibilidade física.112 Sabemos que o respeito à hierarquia eclesiástica por si só não é sinal evidente de um prelado ultramontano, porém associado a outros elementos podemos de certa forma entendê-lo como seguidor de determinados preceitos.

Carolina Boechat Martins também destaca a postura de Padre Antônio em relação à obediência hierárquica: “Durante toda sua vida, Padre Antônio foi fiel cumpridor de todas as ordens emanadas da Arquidiocese de Mariana.” (MARTINS, 2000). A autora também apresenta parte de um documento que demonstra a obediência hierárquica do padre: “Aos 19 dias do mez de março de 1938 pelo Reverendíssimo Padre Antônio Ribeiro Pinto, foi fundado nesta Parochia de Santo Antônio do Grama a Congregação Marianna para os moços, com a devida auctorização da Auctoridade Eclesiastica...”113

Além da preocupação com o respeito à hierarquia eclesiástica, os ultramontanos tinham suas idéias direcionadas principalmente ao combate dos ideais liberais, encabeçados pelos maçons, principalmente na segunda metade do século XIX. Também, em um momento seguinte, a preocupação dos mesmos estava direcionada ao combate dos protestantes e comunistas. (MANOEL, 2003). Com relação ao final

111 “Livro que contém o Ofício divino que o Beneficiado, o Clérigo, desde a sua ordenação para Subdiácono, e o Religiosos com votos solenes deve rezar todos os dias.” In: RÖWER, Frei Basílio. Dicionário litúrgico. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1947, p. 53.112 D. Daniel Baeta Neves. Carta enviada a Padre Antônio Ribeiro Pinto. 27 de agosto de 1954. Museu Padre Antônio Ribeiro Pinto, Urucânia – MG.113 PARÓQUIA de Santo Antônio do Grama. Tombo I. p. 236. In: MARTINS, Carolina Boechat. Pro populo – vida e obra de Padre Antônio Ribeiro Pinto. Editora: N/consta. Rio de Janeiro, 2000. p. 143.

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da primeira metade do século XX, a preocupação da Igreja Católica em combater os grupos destacados anteriormente, não era tão diferente. O Padre José Henrique escreve sobre a conversão de maçons, espíritas e protestantes que chegavam à Urucânia a procura de Pe. Antônio, o que demonstra uma preocupação da Igreja no combate a esses grupos: “Afirmo ‘de visu’ as conversões inúmeras de maçons, espíritas, protestantes... pois em quase 2 anos, ouvi 65.000 confissões.”114

Com relação ao traço ultramontano de combate às idéias comunistas, encontramos nas palavras de Pe. Antônio sua preocupação com a questão do trabalho e o combate às idéias comunistas, a partir do momento que o mesmo recomendava aos trabalhadores que seguissem as encíclicas dos Papas Leão XIII e Pio XI. De acordo com a mensagem de Pe. Antônio, dirigida aos trabalhadores do Brasil, presente no livro do jornalista Alvaro Gonçalves, é possível encontrarmos elementos que confirmam a preocupação anteriormente apresentada, senão vejamos:

Basta atentarmos nos grandiosos documentos representados pela luminosa Encíclica ‘De Rerum Novarum’ preconizada pelo Santo Padre Leão XIII e na memorável Encíclica ‘Quadragésimo Ano’, preconizada pelo Santo Padre Pio XI, para nos convencermos que a resolução do verdadeiro problema social, está dentro da Igreja Católica apostólica Romana. Por isto, trabalhadores do Brasil, deveis impregnar a vossa alma com os estupendos ensinamentos destas maravilhosas encíclicas.115

Por outro lado, com relação à aproximação de Padre Antônio com elementos da cultura popular, é possível observarmos que desde cedo o pároco se viu envolvido nas questões cotidianas das paróquias pelas quais passou. Sua proximidade com o povo o fez de certa forma distanciar-se dos ideais de erudição da formação ultramontana. Adotamos o conceito de cultura popular no sentido de conseguirmos uma maior abrangência das ações empreendidas por Padre Antônio, que não estavam ligadas apenas à religião. Dessa forma, entendemos como Peter Burke ao pensarmos a idéia de se entender a cultura popular não por estar relacionada a uma homogeneidade do que se entende por “povo”, daí a necessidade de se pensar em culturas populares no plural. (BURKE, 2005).

Em Santo Antônio do Grama, Padre Antônio esteve próximo e até mesmo envolvido com questões do cotidiano do então distrito. No livro do Tombo da paróquia de Santo Antônio do Grama116, encontramos informações sobre a fundação de um clube de futebol. Padre Antônio relata os nomes dos sócios fundadores, além de escrever sobre o primeiro amistoso do time. Isso pode demonstrar a aproximação de Padre Antônio com elementos da cultura popular. Também encontramos informações sobre a fundação da banda de música do distrito. Padre Antônio foi escolhido como presidente da banda.

Outro traço de ligação de Padre Antônio com elementos da cultura popular

114 Ibidem.115 PINTO, Pe. Antônio Ribeiro. “Mensagem do Padre Antônio a todos os trabalhadores.” In: GONÇALVES, Alvaro. Os milagres da fé: A vida e a obra do Padre Antonio Ribeiro Pinto. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores. 1948. p. 152.PARÓQUIA de Santo Antônio do Grama. Tombo I. p.24-25.116 PARÓQUIA de Santo Antônio do Grama. Tombo I. p.24-25.

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está relacionado aos festejos do Congado. Margarida Drumond de Assis destaca a participação de Padre Antônio e o gosto do mesmo pelas festas populares como o Congado, ao apresentar os relatos do Sr. Jésus Delfino, da cidade de Santo Antônio do Grama, nos quais ele fala sobre o amor do padre pelo Congado, além da ajuda que o mesmo dava para a realização das festas na cidade. (ASSIS, 2004).

Por último, não poderíamos deixar de fazermos citação à questão dos milagres ligados à figura de Padre Antônio. Tal questão demonstra a existência de um Catolicismo devocional, com práticas exteriorizadas diferente do que pregavam as orientações ultramontanas. Com relação à busca por milagres, Assis destaca que foi em Santo Antônio do Grama que as peregrinações começaram: “Era assim, nesse comportamento familiar e bem próximo dos gramenses, que vivia Pe. Antônio, quando, no silêncio de suas orações e no seu pastoreio humilde, já recebia fiéis que o procuravam de muitas outras cidades, solicitando graças espirituais e curas por intercessão de Nossa Senhora das Graças.” (ASSIS, 2004). Por outro lado, foi em Urucânia que as romarias se tornaram freqüentes e aumentaram de proporção. Com relação aos romeiros que iam a Urucânia procurar por Padre Antônio, encontramos informações que estão no livro do Tombo da igreja da cidade de Urucânia e que foram escritas pelo Pe. José Henrique de Sousa Carvalho, padre responsável por receber padre Antônio naquela vila. Nos registros do padre José Henrique, encontramos informações sobre a chegada dos primeiros romeiros em 1947, destacando entre os mesmos a presença de alcoólatras e aleijados. Segundo o padre José Henrique:

Em abril chega o 1º caminhão procedente do Espirito Santo, creio, de Castelo, trazendo aproximadamente 50 pessôas. A maior parte, era alcoólatra, outros doentes e aleijados. Obtiveram a graça, segundo fui informado, daí o inicio da romaria. Urucania jamais viu tamanha multidão, tamanha miseria física e moral. Urucania era pequena para suportar dez, quinze a vinte mil pessoas diariamente; todos ansiosos por um lenitivo ao menos aos seus grandes males: todos desejavam ver, falar, tocar em Pe. Antonio...117

Sobre a questão da cura através de milagres, Marc Bloch no livro Os reis taumaturgos, nos mostra sobre questões relacionadas ao poder curativo do sagrado, existentes na Idade Média, que de alguma forma podemos utilizar em nosso trabalho. Segundo Bloch: “...os atos, os objetos ou os indivíduos sagrados eram imaginados não apenas reservatórios de forças aptas a atuar no outro mundo mas também fontes de energia suscetíveis de influência imediata sobre a vida cá na terra.” (BLOCH, 1993). Em uma continuação, Bloch mostra como a população dava a praticamente tudo que participasse de uma consagração o poder curativo:

... existe benefício maior e mais perceptível que a saúde? Facilmente se atribuía poder curativo a tudo o que, em qualquer grau, participasse de uma consagração. A hóstia, o vinho da comunhão, a água do batismo, a água em que o oficiante molhara as mãos depois de ter tocado as santas

117 PADRE José Henrique de Sousa Carvalho. Paróquia de Urucânia. Tombo I. p. 49 e 49v.

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espécies, os próprios dedos do padre foram também remédios; ainda em nossos dias, em certas províncias se supõe que o pó e o musgo das igrejas possuam essas mesmas propriedades. (BLOCH, 1993).

No caso de Padre Antônio, também encontramos os elementos apresentados por Marc Bloch, como caracterizadores de um poder curativo do sagrado. Apesar de o autor trabalhar com os reis do período medieval, ele deixa claro nessa parte do livro, a ideia de caracterização de curas pelo sagrado. As pessoas que procuravam Padre Antônio queriam que o mesmo intercedesse por elas junto a Nossa Senhora das Graças, e outras queriam estar próximas a ele para alcançarem uma graça a partir de suas palavras, de seu toque. Porém, Padre Pinto sempre dizia que as graças eram ofertadas por Nossa Senhora e não por ele.

Conclusão

A efeito de conclusão é importante destacarmos que nosso trabalho tem como objetivo a demonstração de coexistência entre elementos culturais diferentes, nas ações promovidas por Padre Antônio. Dessa forma, entendemos ser possível a existência de um prelado que soube organizar sua atuação sacerdotal, por um lado seguindo as orientações de seus superiores, e por outro não deixando de lado sua relação com o cotidiano da sociedade.

Bibliografia

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AZZI, Riolando. O altar unido ao trono: um projeto conservador. São Paulo: Edições Paulinas, 1992.

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CASALI, Alípio. Elite intelectual e restauração da Igreja. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.GONÇALVES, Alvaro. Os milagres da fé: A vida e a obra do Padre Antonio Ribeiro

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LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A presença da Igreja no Brasil: história e problemas 1500-1968. São Paulo: Editora Giro, 1977.

MANOEL, Ivan Aparecido. “Cidadãos para a terra e para o céu: o projeto educacional do Catolicismo ultramontano (1850-1950)”. Fronteiras: revista de História. N. 13. Campo Grande, MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, jan/jun 2003, v. 7.

MARTINS, Carolina Boechat. Pro populo – vida e obra de Padre Antônio Ribeiro Pinto. Editora: N/consta. Rio de Janeiro, 2000.

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MICELI, Sergio. “A produção organizacional dos prelados na República Velha”. Disponível em:http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_02/rbcs02_08.htm Acessado em: 27/04/2010.

RÖWER, Frei Basílio. Dicionário litúrgico. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1947.

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A Família Escrava nos Plantéis de Guarapiranga: uma análise da transferência de bens (1807-1855)

Lucilene Macedo da Costa

Resumo

Tendo como base os métodos nominativos da demografia histórica e história da família, nosso trabalho analisa os padrões de organização da família escrava na região de Guarapiranga, através de inventários post mortem e listas nominativas. Acompanhamos a trajetória dos plantéis de famílias senhoriais dos quais dispomos de inventários de vários membros da família, e que reaparecem também nas listas nominativas de 1831 e 1839. Procuramos analisar as mudanças na composição dos plantéis, assim como os laços de parentesco no interior de suas escravarias.

Palavras-chave: Família escrava; escravidão; transferência de bens.

Introdução

A demografia histórica e a quantificação são métodos importantes para a reconstituição de redes familiares. O cruzamento de dados entre as listas nominativas e os inventários pode nos possibilitar a reconstituição de redes de relações entre os indivíduos de uma comunidade e entre os plantéis desses personagens (AMORIM, 2003).

A temática da família escrava ganhou maior consistência no Brasil a partir da década de 1980, quando começam a surgir vários estudos dando outro olhar para a escravidão e as relações dos cativos, entre eles os trabalhos de Iraci del Nero da Costa, Francisco Vidal Luna, Horácio Gutiérrez, Stuart Schwartz e vários outros.

Para a desconstrução de teses que viam dentro das senzalas uma total anomia social, autores como Manolo Florentino, José Roberto Góes e Robert Slenes realizaram suas pesquisas, procurando explicitar a formação da família escrava e suas características.

Florentino e Góes procuram abordar a família escrava detendo-se, sobretudo, em suas relações entre o tráfico atlântico. Classificando as uniões matrimoniais ou mesmo consensuais como um elemento pacificador das senzalas. Pois, ao fim do tráfico essas uniões iriam possibilitar ao senhor um aumento de seu plantel através da reprodução natural e uma maior estabilidade na vida dos cativos, mesmo após a divisão da herança, caso o casamento fosse legítimo (FLORENTINO e GÓES,).

Para Slenes, o casar-se, podia dar esperanças aos escravos de melhorar sua vida de várias maneiras e para os africanos, também, poderia ser uma forma de recordar os seus costumes. Mas o autor aponta o fortalecimento dos laços comunitários como

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algo que poderia trazer insegurança ao sistema escravista, sendo ambígua a sua contribuição para a pacificação nas senzalas (SLENES,).

Com base nos métodos nominativos da demografia histórica e história da família, nosso trabalho analisa os padrões de organização da família escrava na região de Guarapiranga, através de inventários post mortem e listas nominativas.

Nos inventários colhemos os dados referentes às famílias escravas através de um processo de transcrição da fonte, que contêm além do arrolamento de bens, dados como herdeiros, monte-mor e partilha dos bens. As Listas Nominativas é um recenseamento onde podemos encontrar os nomes de todos os indivíduos de um fogo, como também ofícios e condição.

Acompanhamos a trajetória dos plantéis de famílias senhoriais dos quais dispomos de inventários de vários membros da família, e que reaparecem também nas listas nominativas. Procuramos analisar as mudanças na composição dos plantéis, assim como os laços de parentesco que se formavam em seu interior.

Com esse trabalho pretendemos analisar os inventários escolhidos, buscando a reconstrução dos plantéis dos inventariados e o acompanhamento das famílias escravas nos autos de partilha, bem como as características principais desses laços. Assim, além da reconstrução do plantel do senhor escravista, conseguimos saber o destino que sua escravaria toma após sua morte, as características dos laços e das relações de parentesco entre os escravos, como a reprodução natural dos cativos influenciava no plantel do senhor. O cruzamento de dados com as Listas Nominativas também será importante para repararmos as mudanças nos planteis dos herdeiros.

Análise das fontes

Nesse trabalho optamos por analisar alguns grupos familiares. A primeira família analisada foi a família Sande. Através da análise de quatro inventários, Antonio Gomes Sande (1807), Francisca Candida de Oliveira Sande (1820), Francisca Clara Umbelina de Jesus (1833) e Antonio Pedro Vidigal de Barros (1839) conseguimos ter uma noção de como se deu a transferência de bens e como os plantéis foram se formando.

Antonio Gomes Sande era casado com Francisca Clara Umbelina de Jesus, e entre seus cinco filhos podemos identificar o inventário de Francisca Candida de Oliveira Sande que contraiu laços matrimoniais com Antonio Pedro Vidigal de Barros, que após o falecimento de sua primeira mulher, casa-se novamente, fortalecendo ainda mais seu elo com a família Sande, através do matrimônio com Teresa Altina Sande Barros.

Antonio Gomes Sande possuia 59 escravos, mas cinco deles foram citados como falecidos no acréscimo de bens. Em seu plantel podemos identificar 6 famílias cativas. Das quais, 4 eram compostas apenas pelos casais e podemos pressupor que, apesar de não estar explícito, quase todos esses tinham filhos ou haviam mães sem referência aos cônjuges que não foram citadas. Pois é possível a identificação de nove crianças cuja idade varia de 0 a 13 anos.

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A diferença de idade entre cônjuges era uma característica desse plantel, e, esse fato era expressivo em dois casais, João Benguella com Apolonea Crioula e Salvador Congo junto à Theodosia Crioula, os homens apresentam uma diferença de 20 e 27 anos de idade, respectivamente.

Também é importante destacar que dentro desse plantel não identificamos nenhuma cativa de origem africana o que ocasiona casamentos de africanos com crioulas. Ainda é preciso destacar que a taxa de masculinidade era alta (66,6%) e que a maioria dos homens, 24 (sem contar as crianças) eram de origem africana.

Na partilha de bens do inventário de Antonio Gomes Sande podemos perceber que ele deixa um escravo para sua filha Francisca Candida de Oliveira Sande. Além do escravo herdado de seu pai, ela possuía mais 5 escravos, dos quais apenas uma era mulher. E por ser um plantel pequeno, não conseguimos identificar possíveis relações familiares.

Encabeçando a lista nominativa de 1831 temos o Cirurgião Mor Antonio Pedro Vidigal de Barros. Sua sogra, Francisca C. U. de Jesus, aparece como uma agregada ao seu fogo, nos possibilitando a explicação da presença de dois casais, e, ainda, a presença de outro escravo (que agora fazia parte de um dos casais do novo plantel) de Antonio Gomes Sande.

No inventário de Francisca Clara Umbelina de Jesus, identificamos vários escravos que foram de seu marido, dos quais dois casais que se repetem: Salvador Congo e Theodosia Crioula que conseguimos identificar tanto no inventário de Antonio Gomes Sande quanto no plantel de Antonio Pedro Vidigal; João Crioulo e Placida Rebola, que temos referência ao João no inventário de Antonio Sande e ambos encontram-se no plantel de Antonio de Barros já casados.

Assim, podemos induzir que havia uma preocupação com a manutenção das famílias e também com a formação de novos laços de parentesco dentro dos plantéis.

Na escravaria de Francisca C. U. de Jesus, temos a repetição de vários escravos, tanto dos de seu falecido marido como dos que constavam no plantel de seu genro na lista nominativa de 1831. Porém, a família escrava aparece muito timidamente, tendo-se apenas presença de casais ou de um dos cônjuges sem a identificação de possíveis filhos.

Comparando as listas nominativas de 1831 e 1839 vimos que o plantel de 44 escravos de Antonio de Barros sofre um aumento de 4 cativos. Porém, o que conseguimos perceber é uma grande renovação do plantel, pois apesar da repetição de alguns cativos, não se nota nenhum núcleo familiar antes identificado. Além disso, alguns dos mesmos escravos que na lista nominativa de 1839 aparecem como solteiros, logo depois, no mesmo ano, em seu inventário são identificados como casados.

No plantel de Antonio de Barros identificamos 4 casais sem referência aos possíveis filhos e outro casal, Thomaz Moçambique e Anna Rita, que a cativa não aparece como uma integrante do plantel, mas só na partilha de bens. Além disso, a cativa Placida, que era casada com João Crioulo e constava na lista nominativa de 1831 como integrante do plantel de Antonio de Barros e posteriormente no inventário de Francisca C. U. de Jesus, aparece sozinha.

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Contudo, o que podemos notar através da análise dos inventários e das listas nominativas é que as famílias escravas foram se tornando cada vez menores. Talvez a explicação para o desaparecimento das famílias nucleares de cativos e redução dos demais grupos dentro dos plantéis, possam se dar pelas características de seus componentes, como, sexo e idade.

A taxa de masculinidade nos plantéis se apresentou alta desde o início. Esse pode ter sido um dos fatores que contribuíram para a diminuição do número de famílias escravas dentro dos plantéis analisados.

Outro indicador significativo é a proporção de crianças entre a escravaria. Em alguns dos plantéis, tivemos referência apenas dos casais. Mas ao mesmo tempo, a fonte indicava crianças nascidas na própria escravaria, o que nos leva à hipótese da presença de significativa reprodução natural no interior dos plantéis, assim como de relações consensuais como estratégia dos escravos para formar laços de parentesco.

O Segundo grupo de inventários a ser analisado nos mostra um pouco da família Moreira. Utilizamos três inventários para essa análise, Jose Alves Moreira (1804), Clara Maria Teixeira (1821) e Antonio Alves Moreira (1828).

Jose Alves Moreira era casado com Clara Maria Teixeira. Desse matrimônio tiveram 8 filhos, dentre eles Antonio Alves Moreira.

Ao analisarmos o plantel de Jose Alves Moreira notamos a presença de 10 cativos, dos quais os homens representam uma porcentagem de 50%, as mulheres 20% e as crianças 30%. A taxa de africanos dentre estes também era bem significativa, sendo possível a identificação de apenas três crioulos.

Apesar de não haver referência a casais, temos indicação de uma cativa com seus dois filhos, Marianne Benguella e os crioulos Emerenciana e Justino. Há também a presença de outra criança, Camilo Pardo, sem referência aos pais.

Esses dados nos indicam que mesmo tendo um plantel relativamente pequeno, os cativos de Jose Alves Moreira buscaram estabelecer algum tipo de relação de parentesco, sendo possível induzir, pela mãe sem referência ao cônjuge e a criança sem indicação de seus possíveis pais, que houve o estabelecimento de relações consensuais que gerou uma reprodução natural dentro do plantel.

Clara Maria Teixeira possuía apenas dois escravos que havia herdado de seu marido, Joaquim benguela e Mariana benguela. Apesar de ser um plantel muito pequeno e não trazer dados sobre família escrava, podemos perceber que os laços de parentesco do plantel de seu marido, Jose Alves Moreira, não foram respeitados no momento da partilha, pois a Mariana benguela aparece sem seus filhos na nova escravaria.

Ao passarmos para análise do inventário de Antonio Alves Moreira, podemos constatar a presença de 6 escravos, dos quais um fora herdado do seu pai e outra de sua mãe. A Marianne Benguela, que fora de seu pai, passara por sua mãe, agora lhe pertencia e, ainda, formava com o cativo Felizardo Crioulo o único casal do plantel.

Porém, mesmo tendo a indicação de um casal, no plantel de Antonio Alves Moreira, não conseguimos identificar nenhuma criança, o que nos indica que a reprodução natural não foi uma das características dessa escravaria.

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Contudo, nesse grupo familiar percebemos que a família escrava aparece timidamente, sendo possível a identificação de reprodução natural apenas no primeiro plantel e no último a presença de uma relação legítima entre dois cativos. Mas, podemos relacionar esses dados com as características dos plantéis, como a quantidade de cativos, a predominância do sexo masculino sobre o feminino, a baixa taxa de reprodução natural.

O terceiro e último grupo familiar analisado foi a família Carneiro. Utilizamos três inventários dessa família: Antonia Teresa do Carmo (1814), Jose Justiniano Carneiro (1841) e Jose Carneiro (1855).

Antonia Teresa Maria do Carmo foi a primeira esposa de Jose Justiniano Carneiro, ao falecer deixou apenas um filho de seu matrimônio (Francisco). Jose Carneiro foi casado com Maria Jose Carneiro, uma das filhas do segundo matrimônio de Jose Justiniano Carneiro com Josefa Luiza de Figueiredo.

Antonia Teresa Maria do Carmo possuía 8 escravos, dos quais 7 eram homens. Em seu plantel não conseguimos identificar nenhum laço de parentesco entre os escravos, talvez podemos encontrar a explicação para isso na alta taxa de masculinidade, sendo possível a identificação de apenas uma mulher cativa.

Outro fato interessante, que merece ser ressaltado, é que a maioria de seu cativos tinham origem africana e com idades bem elevadas.

Na sua partilha de bens, podemos observar que 4 de seus cativos são herdados por seu marido.

Ao analisarmos os dados do inventário de Jose Justiniano Carneiro, conseguimos a reconstituição de seu plantel que era formado por 50 escravos, um número alto de cativos para média da região de Guarapiranga.

No entanto, é importante observar que grande parte desse plantel era formado por homens (82,1%). As crianças e mulheres representavam, respectivamente, 10,7% e 7,14%. Outro fato relevante é que 58% da escravaria era em sociedade, sendo todos estes homens, o que gera uma dificuldade para a reprodução natural e relações entre os cativos.

Não foi possível a identificação de nenhum escravo que ele recebera de sua primeira esposa. Por outro lado, em sua partilha de bens, conseguimos perceber que 24 escravos de seu plantel foram transferidos a sua segunda esposa, Josefa Luiza de Figueiredo. Talvez esse inventário pudesse nos mostrar algo a mais dos cativos que foram de seu marido, como formação de laços de parentesco ou até mesmo relações consensuais, mas não dispomos dele para análise.

Na escravaria de Jose Justiniano Carneiro não temos a identificação de nenhum núcleo familiar ou de cônjuges entre os cativos, mas temos a presença de algumas crianças que nos leva a inferir a existência de algum tipo de relação consensual e uma pequena reprodução natural no plantel.

Na partilha de bens de Jose Justiniano Carneiro sua filha, Maria Jose (segundo matrimônio), herda apenas um escravo, mas ao analisarmos o inventário de seu marido não conseguimos identificá-lo.

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Jose Carneiro possuía 12 escravos, dos quais não temos indicação de nenhum laço de parentesco. Mas, a presença de crianças era notável, 33,3%.

Esse grupo familiar, a primeira vista, nega o que temos tentado sustentar nesse artigo, a formação de laços familiares dentro das escravarias de Guarapiranga. Mas se analisarmos bem, podemos perceber que as configurações desses plantéis dificultaram a formação de laços de parentesco entre os cativos e também devemos considerar a probabilidade de relações que não foram explicitadas nas fontes, devido ao número de crianças nos plantéis.

No entanto, o acesso a outros inventários desse grupo familiar poderia nos possibilitar novos resultados.

Conclusões

Os três grupos familiares analisados apresentam características diversificadas com relação aos plantéis. No primeiro grupo, podemos perceber que as escravarias, com exceção de Francisca Candida de Oliveira Sande, são bem grandes e nos possibilita a visualização dos laços de seus cativos, que são bem variados e nos indica uma certa preocupação em se manter os laços cativos.

No segundo grupo, os plantéis são bem menores, mas isso não nos impede de perceber as relações entre os cativos. Através da partilha de bens conseguimos perceber a transferência desses e até mesmo a formação de um casal na escravaria do último inventário analisado.

No último grupo familiar que analisamos os inventários não conseguimos identificar laços entre os escravos e também não há cativos que se repetem, mas como já mencionamos, talvez a análise de inventários mais próximos ao Jose Justiniano Carneiro, nos possibilitasse novos resultados e hipótese.

Contudo fica claro que através dos laços de parentesco entre os inventariados livres podemos acompanhar a formação dos plantéis em Guarapiranga e como se estabelece a organização das famílias escravas. Através dessa análise, observamos que as características dos laços entre os cativos está relacionada com a composição do plantel e com a redes familiares de seus senhores.

Referências

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GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro; PINTO, Fábio Carlos Vieira & MALAQUIAS, Carlos de Oliveira. Famílias escravas em Minas Gerais nos inventários e registro de casamento: ocaso de São José dos Rio das Mortes, 1743-1850. Varia História, 23 (37): 184-207.

PAIVA, Eduardo França. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século XVIII: estratégias de resistências através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995.

SHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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& FARIA, Sheila de Castro. Família Escrava e Trabalho. In: Tempo, vol.3 – nº 6, Dezembro de 1998.

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O padroado e a “crítica ultramontana”: tensões entre a Igreja e o Estado na segunda metade do

século XIXMarcella de Sá Brandão

Na Idade Média encontramos uma concepção de sociedade cristã que se

estabeleceria a partir de uma forte aliança entre o poder político dos reis e a influência da Igreja Romana. Em Portugal, a monarquia era vista como um reino sagrado fundado por Deus, em que os súditos deviam fidelidade a Coroa e deveriam expressar, ao mesmo tempo, sua fé em Cristo. (AZZI, 1991:5) Dessa estreita união, concedida pela própria Igreja ao Trono Real dos países Ibéricos surge o padroado que, de acordo com C. R. Boxer, “pode ser vagamente definido como uma combinação de direitos, privilégios e deveres [do rei] como patrono das missões católicas e instituições eclesiásticas na África, Ásia e Brasil”. (BOXER, s/d:99) Na concepção de Thomás C. Bruneau, o padroado “é a outorga, pela Igreja de Roma, de certo grau de controle sobre a Igreja local ou nacional, a um administrador civil, em apreço de seu zelo, dedicação e esforços, para difundir a religião”. (BRUNEAU, 1974:31) Mais ainda, com a autorização de uma série de bulas Papais, o monarca estava autorizado:

“a erigir ou permitir a construção de todas as catedrais, igrejas, mosteiros, [...] na esfera dos respectivos patronatos; apresentar à Santa Sé uma curta lista dos candidatos mais convenientes para todos os arcebispados, bispados e abadias coloniais [...]; administrar jurisdições e receitas eclesiásticas e a rejeitar as bulas e breves papais [...]” (BOXER, s/d:100)

Isso que dizer que, a partir dessas concepções acerca do padroado entendemos que todos esses deveres, que foram delegados à Coroa, nos indicam que um sacerdote, seja ele da mais alta hierarquia ou não, estava subordinado as decisões e ordens do monarca. Desse modo, a partir do século XV a união entre a Igreja e o Rei passava por vias de consolidação:

“D. João I, subindo ao throno [...] de Portugal, obteve do papa Bonifácio IX a outorga, por si e seus successores, do exercício pleno do padroado, pela bula ‘Eximiae vestrae devotionis’, de 1 de agosto, o que representava em 1481 a união pessoal e perpetua do grão-mestrado à coroa”. (DORNAS FILHO, s/d:40)

Portanto, entendemos que na visão de João Dornas Filho, essa concessão, que dava ao monarca português poderes ilimitados para interferir nas decisões eclesiásticas, deu início ao regalismo118 que, para o autor, teve no Brasil uma forte expressão. Essa

118 De acordo Riolando Azzi, o regalismo pode ser entendido como uma “concepção teórica e prática de uma vinculação mais forte da Igreja local ao poder do Estado, mediante maior independência com relação a Santa Sé [...]. Na península Ibérica, o regalismo encontrou amparo nos direitos do Padroado, com isso havia um sentimento de maior autonomia do Estado com relação a influência da Igreja Romana.” Cf. AZZI, Riolando. A crise da cristandade e o projeto liberal. São Paulo: edições Paulinas, 1991. p. 136-138.

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situação fazia com que os sacerdotes nas colônias fossem considerados funcionários da coroa; isso quer dizer, também, que a Igreja, naquele período, estava sob o controle direto do rei, exceto em assuntos dogmáticos e doutrinários. (BOXER, s/d:100) Além disso, a partir das prerrogativas do padroado, todas as bulas, cartas e quais quer documentos eclesiásticos passavam pelo “placet” real ou beneplácito, isto é, direito da coroa de censurar todas os tais documentos antes de sua publicação na colônia. (BRUNEAU, 1974:34) No entanto, retomaremos essa questão nas próximas discussões.

Doravante, no Brasil o padroado foi reconhecido com a criação da primeira diocese em 1551, através da bula Super Specula. De acordo com Bruneau, no período colonial, sobretudo após a reforma pombalina em 1755, a Igreja Católica passou por um processo de enfraquecimento de sua influência. Nesse momento, encontramos uma Igreja que contava com mais apoio da política do Estado do que com a influência papal. Para esse autor, pode até ter havido boas razões para a aliança da Igreja com o Estado na época da colonização, pois nesse momento, os reis estavam sim preocupados com a difusão da fé; no entanto, já a partir do século XIX e, principalmente na sua segunda metade, embora a ligação fosse a mesma o monarca não parecia mais interessado nessa premissa. (BRUNEAU, 1974:48-52)

Desse modo, D. Pedro I com os objetivos de consolidação da Independência do Brasil, institui uma missão ao monsenhor Vidigal para conseguir a transferência do grão-mestrado da Ordem de Cristo para a coroa brasileira, reconhecendo dessa forma, o Império brasileiro. Por sua vez, esse monsenhor estava encarregado de, na visão de Dornas Filho, evitar qualquer concordata que cerceasse o poder imperial sobre a Igreja nas dependências do Império. (Cf. DORNAS FILHO,s/d:40-41) No entanto, algumas divergências entre os objetivos do monarca e as prerrogativas da bula do Papa Leão XII, que “conferia ao Imperador e seu sucessores o grão-mestrado das três Ordens Militares de Christo, de Santiago e de Aviz” (DORNAS FILHO, s/d:44), esta não foi aprovada pela Comissão Eclesiástica do Brasil pois, na concepção dos componentes da Comissão esta bula continha disposições que ofendiam a Constituição de Império. De acordo com Dornas Filho, foi com a Bula da Fundação que se institui a Ordem de Cristo delegada ao rei de Portugal D. Diniz em 1319. Desse modo, para esse autor, não há inventário que indique que o rei do Brasil tenha conseguido o grão-mestrado da Ordem, e dessa maneira, no seu entendimento, o padroado não teve no Brasil direito, por não ter, como mencionava a referia bula, edificado nenhuma Igreja no Brasil. Portanto, João Dornas Filho conclui que o padroado no Império foi “uma palavra sem sentido e sem validade”. (DORNAS FILHO, s/d:47)

De qualquer modo, com a Constituição do Império, que dá plenos poderes ao monarca, ficou decidido pelo art. 102 § 2, “nomear bispos e prover os benefícios eclesiásticos”119. Isso fez com que, na concepção de Dornas Filho, o conflito entre a Igreja e o Império no Brasil começasse desde os primeiros dias de sua independência.

119 CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRAZIL (DE 25 DE MARÇO DE 1824). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm.

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(DORNAS FILHO, s/d:53) Desse modo, como mostrou Nilo Pereira, havia um artifício das prerrogativas da constituição, que herdava o direito português do padroado, impondo uma religião ao Estado. Nesse sentido, na concepção do autor, a dita “proteção” do padroado era antes submissão que ajuda, e conclui dizendo que é “precisamente ai, nesse entendimento da posição do Estado em relação à Igreja, é que o problema começava a se fazer sentir doloroso. Porque o Governo trazia consigo, emanada da legislação portuguesa, a tradição do Padroado.” (PEREIRA, 1982:29)

A partir dessas reflexões e, sob a concepção desses autores, entendemos que muitos problemas na relação Igreja e o Estado estavam ligados à questão do padroado e suas respectivas determinações. O direito do padroado, como já dissemos, concedia poderes ao monarca para interferir nos assuntos da Igreja; já no entendimento religioso, o poder Imperial por vezes ultrapassava os limites do padroado, causando insatisfação dentro da facção ultramontana, uma vez que os prelados viam suas determinações ignoradas pelo Império. De qualquer modo, Riolando Azzi mostrou que não havia entre os prelados, até meados do século XIX, um desejo de separação total com o Estado.120 Ou seja, a união entre os dois poderes – espiritual e temporal – seria a melhor forma de promoção da ordem social, desse modo a Igreja era vista como um sustentáculo do Trono. Para a alta hierarquia eclesiástica, havia um esforço em elevar o prestígio da Instituição e de construí-la ao lado do Estado, no entanto, o interesse maior não estava na separação com o poder político, o clero desejava “romper com as rígidas amarras do Padroado, que reduzia a instituição eclesiástica à função de departamento do Estado”. (AZZI, 1992:34) Desse modo, conseguimos concluir que dentro do pensamento eclesiástico tradicionalista havia críticas pontuais e muito mais sutis ao padroado régio em relação ao pensamento dos prelados da facção ultramontana121, principalmente a partir dos anos de 1872, com o advento da Questão Religiosa.122

120 Ao analisarmos a documentação dos chamados ultramontanos, como Viçoso, percebemos críticas pontuais à relação com o Império, como no caso da Questão Roussim, porém essas críticas não eram claras quanto à extinção do regime de Patronato Régio.121 Segundo David Gueiros, é difícil estabelecer em que data o pensamento chamado “ultramontanismo” entrou no Brasil, no século XIX. No entanto, o autor mostra que o termo foi “usado desde o século XI, para descrever cristãos que buscavam a liderança de Roma ou que defen-diam o ponto de vista dos papas [...].” Já no século XIX, o termo apareceu para designar uma “série de conceitos e atitudes do lado conservador da Igreja Católica [...]”. Podemos entender ainda, que o ultramontanismo desse século “colocou-se, não apenas numa posição a favor da uma maior concentração do poder eclesiástico nas mãos do papado, mas também contra uma serie de coisas que eram consideradas erradas e perigo-sas para a Igreja. Entre esses ‘perigos’ estavam o galicanismo, o jansenismo, todos os tipos de liberalismo, o protestantismo, a maçonaria [...]”. VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: editora da UNB, 2ª edição, s/d. p. 32-33.Na concepção do RIolando Azzi, o ultramontanismo surge no Brasil, durante o Segundo Reinado, com força significativa e, de certo modo, contrapondo algumas idéias dos tredicionalistas. Pouco a poucos, os bispos, nesse período, “trocam a ênfase na defesa do Trono por expressões sempre mais explicitas de fidelidade ao Pontífice Romano”. AZZI, Riolando. O altar unido ao trono. Um projeto conservador. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 114.122 A chamada Questão Religiosa aconteceu a partir de 1872, em função de um discurso proferido pelo Pe. Almeida Martins na loja maçôni-ca, Grande Oriente, devido a aprovação da lei do Ventre Livre. Esse discurso representou um desacato ao Bispo do Rio de Janeiro D. Lacerda, que considerou uma afronta a atitude do referido padre. A partir de então, uma série de restrições foram feitas para o Pe. Almeida Martins, que recorreu ao grão-mestre da maçonaria. Este, por sua vez, não concorda com as decisões do bispo, iniciando uma série de reações entre os reformadores da Igreja e os políticos adeptos da maçonaria no Brasil. Ver: AZZI, Riolando. O altar unido ao trono. O altar unido ao trono. Um projeto conservador. São Paulo: Paulinas, 1992. e PEREIRA, Nilo. Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil. 2a. Edição. Recife: Editora Massangana – Fundação Joaquim Nabuco, 1982.

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Nesse sentido, a crítica ultramontana à intervenção do Estado foi crescendo à medida que a política imperial assumia posturas de tendência liberal123; visto isto, a hierarquia eclesiástica brasileira considera que os liberais e suas idéias traziam prejuízos ao Catolicismo. (MARTINS, 2008:73) Sobre o Bispado de D. Macedo Costa, Karla Martins menciona que:

Ao pensar na discussão política ou no princípio de autoridade, D. Macedo Costa deixava claro que o clero deveria conduzir as leis civis ou pelo menos aconselhar os atos dos governos temporais, sem que isso significasse uma subjugação radical do Estado à Igreja [...]. (MARTINS, 2008:76)

A autora ainda complementa mostrando que na concepção do Bispo do Pará as autoridades políticas e sociais deveriam observar a autoridade da Igreja, uma vez que representava o poder divino na Terra. Mesmo assim, ela lembra que grande parte dos liberais no Brasil não era de ateus e não estavam envolvidos com questões anticlericais como na Europa. De qualquer modo, os ultramontanos, a partir da segunda metade do século XIX, combatiam mais abertamente liberalismo; com isso, Martins nos leva a concluir que nesse momento houve um enfraquecimento dos laços com o poder do Estado e um crescimento das críticas às atitudes do Império. (Cf. MARTINS, 2008:77-78)

Outro ponto de discordância entre o clero ultramontano e o poder civil dizia respeito ao beneplácito ou placet, estabelecido pela Constituição do Império art. 102, que dizia respeito ao consentimento ou negação do Imperador à circulação no país de bulas, breves, encíclicas, decretos dos Concílios e letras Apostólicas e qualquer outra constituição eclesiástica.124 Entendemos dessa forma, que tal prerrogativa constitucional foi um dos principais motivos crítica e insatisfação do episcopado brasileiro. Desse modo, a alta hierarquia eclesiástica através da imprensa, que por sinal foi o principal veículo usado para as discussões entre Igreja e Estado, começa a publicar artigos e editoriais com argumentos contrários à política e à intervenção imperial nas questões de cunho religioso. Assim, o jornal católico O Apostolo, publicado sob a direção de D. Lacerda na província do Rio de Janeiro, lançou um artigo em Março de 1875, escrevendo sobre a questão do placet:

Pergunta-se: os Bispos fazem um acto illicito, publicando sem licença do governo as Lettras apostolicas? Houve quem respondesse: “sim; não é licito aos Bispos fazer, sem licença do governo, essas publicações!” E a Santa Sé disse: “É errada essa doutrina, e como tal eu a condemno.” [...]

123 O liberalismo, segundo David Gueiros Vieira, “cobre um sem-número de conceitos [...] O termo, em geral, significava uma crença difusa no valor do indivíduo, e na convicção de que a base de toso o progresso era a liberdade individual. [...] Idéias liberais tinham chegado primeiro ao Brasil vindas da França, por meio de jornais e livros importados para a colônia [...] A segunda fase do liberalismo brasileira (século XIX) foi influenciada pelo pensamento liberal inglês [...]. Esse período começou cerca de 1808, depois que a corte portuguesa refugiou-se no Brasil e abriu os portos do país ao comércio internacional.” VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: editora da UNB, 2ª edição, s/d. p. 38-39.124 Cf. CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRAZIL (DE 25 DE MARÇO DE 1824). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm

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Por ventura a nossa Constituição prohibe aos nossos Bispos publicar, sem licença do governo, as Bullas pontificias, ou outras quaes-quer Constituições ecclesiasticas? [...]O § 4º do art. 179 da Constituição, que invocaes contra nós, diz: “Todos podem communicar seus pensamentos por palavras, escriptos e publical-os pela imprensa, sem dependencia de censura...” [...].

E o artigo continua definindo o que para a religião Católica significava o beneplácito real:

O beneplacito que a Egreja condemna, e que nenhum catholico póde acceitar, é esse beneplacito entendido e explicado pelo governo maçônico do Sr. Paranhos: beneplacito que consiste em tornar a publicação dos breves dependentes de licença do governo; [...] beneplacito, emfim, que se traduz em nada menos do que na SUBORDIÇÃO DO REINO DE DEUS AO DE CESAR.”125

A partir desse trecho, entendemos um pouco o pensamento da vertente ultramontana e o tipo de crítica que se fazia a política do Império e suas interferências. Na concepção dessa facção, as restrições e intervenções que o Estado impunha sobre a religião subordinavam, como o próprio artigo menciona, o “reino de Deus ao de Cesar”. Para a Igreja, como dissemos anteriormente, o problema maior estava na interferência do Estado nos assuntos religiosos, fazendo com que as decisões do clero fossem deslegitimadas. Para o clero, a religião estaria para o Estado como um freio ordenador da sociedade. Acreditamos que os jornais da época foram, de fato, um importante veículo de divulgação das querelas entre os dois poderes. No norte do país “o combate moral estava em toda a parte nos jornais eclesiásticos. Com publicações nos jornais A Estrela do Norte e A Boa Nova, o Bispo do Grão-Pará procurou ‘moralizar’, ‘enquadrar’ e ‘controlar’ a população da Amazônia”. (MARTINS, 2005:9) Em Minas Gerais, D. Viçoso utilizou-se de dois jornais importantes naquela região como O Romano e O Bom Ladrão, e Nilo Pereira mostrou que no Recife D. Vital contou com o periódico A União para os esclarecimentos dos problemas da Igreja. (PEREIRA, 1982:169) Acreditamos, portanto, que na concepção dos ultramontano havia uma forte afinidade quanto às criticas voltadas à política brasileira.

Portanto, todas as reflexões feitas até esse momento, visam perceber quais os pontos de discordância e conflito entre os dois poderes. A partir do entendimento de autores como Azzi, Pereira e Dornas concluímos que para eles, que tomam uma tendência partidária ao posicionamento dos prelados, o padroado e todas as suas prerrogativas, que foram herdadas de Portugal, foram prejudiciais a boa convivência entre os poderes. Esses autores nos levam a entender que os Bispos apenas reivindicavam aquilo que lhes era de direito, ou seja, o pleno exercício das jurisdições eclesiásticas. No entanto, esse exercício de poder nunca fora plenamente praticado, pois, havia algo que os impedia e os consideravam funcionários do Estado,

125 O PARTIDO CATHOLICO E A “REFORMA (DA UNIÃO). O Apostolo, 11/03/1875, nº 55. Rio de Janeiro, p. 2/c. 1.

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isto é, o art. 5º da Constituição do Império, o padroado herdado da coroa lusitana e, por conseguinte, o placet real. Dessa forma, consideramos que houve sim muitos momentos de tensão entre a Igreja e o Estado e que esses momentos poderiam ser frutos das questões levantadas por esses autores, mesmo que seus posicionamentos teóricos privilegiem a visão eclesiástica.

Mesmo assim, mesmo que saibamos das tendências nas representações de parte desses autores acerca da História da Igreja Católica no Brasil, acreditamos que a Questão Religiosa descortina o problema do padroado para os prelados de modo intenso. Isso significaria dizer que, após aquele momento, não foi só os liberais que começaram a questionar a separação Igreja-Estado. Mesmo que de forma muito desconexa, os clérigos começaram a ver a necessidade de se posicionarem quanto a essa questão.

Bibliografia

AZZI, Riolando. A crise da cristandade e o projeto liberal. São Paulo: edições Paulinas, 1991.

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BOXER, C. R. A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770). Lisboa: Edições 70, s/d. p. 99.

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DORNAS FILHO, João. O Padroado e a Igreja Brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, s/d.

MARTINS, Karla Denise. Cristóforo e a Romanização de Inferno Verde: as propostas de D. Macedo Costa para a civilização da Amazônia (1860-1890). Tese de doutorado. Campinas: SP, 2005.

O sol e a Lua em tempo de eclipse: a reforma católica e as questões político-religiosas na Província do Grão-Pará (1863- 1878). Campinas, SP: (s.n.), 2001.

Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus: relações entre a Igreja e o Estado no Pará oitocentista. In: Revista de História Regional. 13(2): 70-103, Inverno, 2008. p.73

PEREIRA, Nilo. Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil. 2a. Edição. Recife: Editora Massangana – Fundação Joaquim Nabuco, 1982.

VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: editora da UNB, 2ª edição, s/d.

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A organização da esquerda militar na guerrilha do caparaó (1966-1967): movimento de

resistência a ditadura militarMárcio Francisco de Carvalho

A apresentação do painel tem como finalidade apresentar uma das fontes utilizada no projeto de monografia Guerrilha do Caparaó: a organização da esquerda militar em resistência a ditadura militar (1966-1967).Este projeto tem como objetivo abordar a historia de um grupo da esquerda militar em resistência a ditadura militar brasileira(1964-1985),cuja organização se da na região da Zona da Mata Mineira,na divida dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo: A Guerrilha do Caparaó(1967-1967). A organização da esquerda militar se compreende em todo o território nacional e tem como um de seus para a atuação a Serra do Caparaó. Uma das fontes utilizadas neste projeto e o método fontes orais.

No Brasil, esta metodologia foi introduzida na década de 1970, quando foi criado o Programa de História Oral do CPDOC. A partir dos anos 1990, o movimento em torno da história oral cresceu muito. Em 1994, foi criada a Associação Brasileira de História Oral, que congrega membros de todas as regiões do país, reúne-se periodicamente em encontros regionais e nacionais, e edita uma revista e um boletim. Dois anos depois, em 1996, foi criada a Associação Internacional de História Oral, que realiza congressos bianuais e também edita uma revista e um boletim. No mundo inteiro é intensa a publicação de livros, revistas especializadas e artigos sobre história oral. Há inúmeros programas e pesquisas que utilizam os relatos pessoais sobre o passado para o estudo dos mais variados temas.126

Para Alessandro Portelli, as lembranças não constituem um núcleo compacto e impenetrável para o pensamento e para a linguagem, mas resultam de um processo elaborado no tempo histórico.127 Assim, lembrar proporciona a reinvenção de um passado em comum, fornecendo-nos elementos para a compreensão do presente. De acordo com Maurice Halbwachs, a memória deve ser entendida, sobretudo como um fenômeno coletivo e social, que é estruturado coletivamente e está sujeito a flutuações, transformações e constantes mudanças. A memória seria uma recriação do passado a partir de quadros sociais definidos por aspectos estruturantes como a língua e a cultura e por aspectos conjunturais como o contexto histórico.128

Esse processo é concebido num espaço sócio-político historicamente datado, conferindo especificidade e temporalidade à rememoração das representações e dos

126 Programa de História Oral pelo CPDOC.127 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p 109.128 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Editora Revista dos Tribunais, 1990.

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fatos. Segundo Henry Rousso, a memória é uma reconstrução psíquica e intelectual que confere uma representação seletiva do passado, que não é apenas aquele do indivíduo, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Para tanto, Rousso, com Halbwachs, define que toda memória é coletiva e, acrescenta, deve ser compreendida como um elemento primordial da construção da identidade e da percepção de si e dos outros. De acordo com Jacques Le Goff, a memória tem como função conservar determinadas informações, que nos remetem a um conjunto de funções psíquicas, às quais os indivíduos podem atualizar informações passadas ou que eles representam como passadas. Deste modo, a memória como fundamento da identidade reporta-se aos comportamentos e às mentalidades coletivas, na medida em que o relembrar individual está relacionado à inserção histórica de cada indivíduo. Segundo Le Goff, a memória coletiva pode ser compreendida como um importante elemento na luta das forças sociais pelo poder. A disputa por esse tipo de poder – ou seja, pela posse e pela interpretação da memória – está enraizada no meio do conflito e do jogo de interesses e valores sociais, políticos e culturais do presente.

A História Oral, ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, ressaltou a importância de memórias subterrâneas, como denomina Michael Pollak131. Para o autor, essas memórias subterrâneas são compreendidas como elementos de subversão do silêncio, e elas emergem de maneira quase imperceptível em momentos de crise. Para tanto, a História Oral cumpre um importante papel na percepção das representações dos atores sociais sobre a própria história.

O recurso à fonte oral, além de uma necessidade metodológica imposta pela escassez de outras fontes, surge como método privilegiado para o tipo de trabalho que desenvolvemos, pois possibilita novas versões da história ao dar voz a múltiplos e diferentes narradores. Desta forma, ela permite estruturar a história a partir das próprias palavras daqueles que vivenciaram e participaram de um determinado período, através de suas referências e também de seu imaginário. Nas palavras de Jorge Eduardo Aceves Lozano:

“Dessa forma, a história oral, ao se interessar pela oralidade, procuradestacar e centrar sua análise na visão e versão que dimanam do interior e domais profundo da experiência dos atores sociais. (...) A consideração do âmbitosubjetivo da experiência humana é a parte central do trabalho desse método depesquisa histórica, cujo propósito inclui a ampliação, no nível social, dacategoria de produção dos conhecimentos históricos.”132

A utilização das fontes orais ainda recebe severas críticas por alguns acadêmicos quanto à sua credibilidade. Segundo alguns historiadores, os depoimentos são mencionados como fontes subjetivas por proverem-se da memória individual, que às vezes pode ser falha e fantasiosa. Entretanto, a subjetividade está presente em

131 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 2 (3), p .3-15, 1989.132 LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: FERREIRA e AMADO (orgs.), Op. Cit., p. 16.

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todas as fontes históricas, sendo elas orais, escritas ou visuais. Michael Pollak ao ser indagado a respeito da crítica à história oral como método apoiado na memória, capaz de produzir representações e não reconstituições do real, responde que:

“Se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. Nem a fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se apresenta.133”

A veracidade do narrador não é a nossa preocupação, o interessante é saber por que o entrevistado foi seletivo ou omisso, pois essa seletividade certamente tem o seu significado. Portanto, esta subjetividade nos remete a um universo de representações, e que através do confronto do conteúdo das diferentes entrevistas temos a recriação da trajetória coletiva de um grupo historicamente datado.

A relação estabelecida entre entrevistado e entrevistador é um dos elementos mais ricos na metodologia da História Oral. Esta relação tem colaborado com a produção historiográfica na medida em que relativiza posturas mais rígidas sobre a separação entre sujeito e objeto no campo da pesquisa. Grande parte da força deste procedimento vem do fato de que a utilização do testemunho oral oferece ao pesquisador o acesso a perspectivas e nuances que podem estar fora do seu alcance a partir de outras fontes documentais. O diálogo estabelecido com o entrevistado muitas vezes não se dá de forma facilitada.

Nesta pesquisa optarei por trabalhar com a entrevista aberta, calcada na história de vida do/a depoente, que consiste no relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, com a intermediação de um pesquisador. Trata-se portanto de um trabalho coletivo de um narrador-sujeito e de um intérprete.134 Por ser baseada no diálogo, a história de vida permite explorar melhor determinados elementos, como por exemplo aspectos da intimidade, da vida cotidiana e processos de tomadas de decisões; além de permitir maior controle sobre as informações. Conduzindo a conversação, o pesquisador estimula o entrevistado a lembrar-se e pode voltar diversas vezes ao tema de seu interesse, colocando questões de controle, ou ajudar o depoente a se rememorar de fatos e eventos.

A opção de trabalhar com trajetórias de vida está relacionada com o fato de esta oferecer maiores possibilidades ao pesquisador de explorar as relações da história individual com o contexto social, permitindo apreender a influência mediadora dos pais, dos grupos de igreja, de vizinhança, da escola e de outros grupos primários. Segundo Elizabeth F. Xavier Ferreira:

133 POLLAK, “Memória e identidade social”, Op. Cit., p. 207.134 PEREIRA, Lígia Maria Leite. Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e autobiografias. História Oral: Revista da Associa-ção Brasileira de História Oral, São Paulo, n. 3, jun. 2000. p. 118.

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“A entrevista aberta é sem dúvida, um procedimento difícil pelas complicações que traz para sua transcrição e para a ordenação dos dadoscolhidos, mas por outro lado, é incomparavelmente mais rica pelascontradições que incorpora, pela contribuição espontânea dos participantes,revelando aspectos insuspeitados pelo entrevistador, como também pelossilêncios e hesitações – sempre carregados de significado – que são maisfreqüentes num discurso livre de certos controles externos.”135

O trabalho com a metodologia de História Oral proporciona o processo de rememorar e relembrar sujeitos históricos, ou mesmo de testemunhas da história vivida por uma coletividade. Sendo assim, os depoimentos coletados tendem a demonstrar que a memória pode ser identificada como processo de construção e reconstrução de lembranças nas condições do tempo presente. Ecléa Bosi atribui à memória uma função decisiva no processo psicológico total, já que ela permite a conexão do presente com o passado e, simultaneamente, interfere no processo atual das representações. “Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, ‘desloca’ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência.”136

Para Maurice Halbwachs toda memória é socialmente construída, sendo esta construção o resultado de uma reconstituição do passado inserido num quadro de recordações comuns a um determinado grupo histórico, ou seja, o que é lembrado apenas possui sentido em relação a um conjunto do qual se faz parte.137 Partindo desse princípio, torna-se necessário em nossa pesquisa situar as ex-militantes que entrevistamos no tempo e no espaço, tanto os evocados por suas recordações quanto os que as ensejam. De acordo com Giovanni Levi “a época, o meio e a ambiência também são muito valorizados como fatores capazes de caracterizar uma atmosfera que explicaria a singularidade das trajetórias.”138 Segundo o autor, o contexto nos remete a duas perspectivas diferentes. Por um lado, a reconstituição do contexto histórico e social em que se desenrolam os acontecimentos propicia a compreensão num primeiro momento do que parece inexplicável e desconcertante. “Portanto não se trata de reduzir as condutas a comportamentos–tipos, mas de interpretar as vicissitudes biográficas à luz de um contexto que as torne possíveis e, logo normais.”139 Por outro lado, o contexto preenche as lacunas documentais por meio de comparações com outros indivíduos cuja vida apresenta alguma analogia com a do entrevistado estudado.

No próximo capítulo faremos um breve panorama dos acontecimentos no Brasil no final da década de 60, além de uma discussão historiográfica acerca da opção da luta armada pela esquerda brasileira. Assim poderemos nos aproximar do significado do engajamento dessas mulheres no projeto de oposição ao regime militar para melhor analisar suas trajetórias de vida.

135 FERREIRA, Op. Cit, p. 18.136 BOSI, Ecléa. Sociedade e memória: lembranças de velhos. São Paulo: T..A Queiroz, 1979. p. 46-47.137 HALBWACHS, Op.Cit.138 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA e AMADO (orgs.), Op. Cit., p. 175.139 Idem, ibidem. p. 176.

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Finalizando com as palavras de Giovanni Levi:

“(...) qualquer que seja a sua originalidade aparente, uma vida nãopode ser compreendida unicamente através de seus desvios ou singularidades,mas, ao contrário, mostrando-se que cada desvio aparente em relação àsnormas ocorre em um contexto histórico que o justifica.”140

Metodologia

Após este entendimento de Historia Oral podemos então pensar como se daria a metodologia de trabalho no Projeto Guerrilha do Caparaó: a organização da esquerda militar em resistência à Ditadura Militar Brasileira (1966-1967).

Muitas pessoas acreditam que o fato de se fazer entrevista já seja a Historia Oral, porém isto não é verdade, pois a entrevista é parte e não o todo da Historia Oral.

O trabalho com a metodologia de história oral compreende todo um conjunto de atividades anteriores e posteriores à gravação dos depoimentos. Exige, antes, a pesquisa e o levantamento de dados para a preparação dos roteiros das entrevistas como também a escolha da colônia e a formação de rede. Posterior a pesquisa é necessário cuidar das transcrições e da conservação desse material.

O projeto de Historia Oral então dentro do projeto terá que apresentar os seguintes pontos: justificativa, hipótese, escolha da colônia e formação da rede.

JustificativaA pesquisa procura compreender as crises dentro da corporação militar,

apresentando elementos históricos desta crise militar no período republicano, portanto a uma preocupação historiográfica acerca deste.

HipóteseParto da hipótese de que não havia uma homogeneidade dentro do corpo militar,

por este motivo muitos militares que não concordam com a postura hierárquica da corporação optaram pela esquerda. Em outras palavras, supomos que há uma fissura militar interna que antecedeu o golpe de 64, e prosseguiram nos anos seguintes.

Escolhas da colôniaNo caso da Guerrilha temos duas escolhas de colônia: Guerrilheiros e militantes

da esquerda militar e moradores da região da Serra do Caparaó.Formação de redesA metodologia utilizada para a formação de redes poderá ser feita a partir de

uma ou duas pessoas inicialmente, porém no caso de haver dificuldades pode se partir do ponto 0,e a partir de uma pessoa que pelo conhecimento da historia do grupo ira indicar outras pessoas.Este método do ponto 0 é interessante pois valoriza a visão do outro,ou seja a visão do próprio grupo sobre sua historia.

140 Idem, ibidem. p. 176.

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Definidos a escolha da colônia e a rede podemos partir então para a entrevista que necessita de alguns cuidados como a negociação prévia da entrevista, escolher um bom lugar, conseguir objetos biográficos (ex: fotos, livros, etc.), definir um teto para o horário da entrevista, apresentar o projeto da entrevista da pessoa para o projeto. Temos também em uma entrevista que nos atentarmos as questões operacionais, como por exemplo, conferir o gravador antes da entrevista e gravar o nome do projeto, a identidade do entrevistado, o local e a data de encontro em cada fita.

Posterior a entrevista é imprescindível evitar o acumulo de gravações e o tempo prolongado entre uma fase e outra (transcrição).

Ainda sobre a entrevista existem dois segmentos de Historia Oral: a História Oral de Vida e a Temática. Acredito que existe a possibilidade de se trabalhar com as duas linhas, na historia oral de vida o entrevistado ira narrar a historia de sua vida já na temática é necessário um roteiro e perguntas de corte, lembrando que estas perguntas devem ser utilizadas para todo o grupo. No caso do roteiro este pode ser apresentado antes para o entrevistado e a partir do roteiro a hipótese de se trabalhar o método indutivo (do especifico para o geral) ou dedutivo (do geral para o especifico). É necessário uma convivência maior com os colaboradores deste projeto para o maior desenvolvimento das entrevistas. Mais o que realmente faz um pesquisador procurar um indivíduo para fazer dele um entrevistado? Existem alguns campos de pesquisa em que a Historia Oral pode ser útil: Historia do cotidiano, Historia política, História das experiências, História das memórias, Registros de tradições culturais, etc.

No caso da utilização metodológica para o estudo da história política, entendendo não como historia dos grandes homens e grandes feitos, e sim como estudo das diferentes formas de articulação de atores e grupos, trazendo à luz a importância das ações dos indivíduos e de suas estratégias. Através de entrevistas de historia oral, é possível reconstituir redes de relação e formas de socialização.141

141 CAMARGO, Aspásia- 1994-“Historia oral e política”, in: Ferreira, Marieta de Moraes (org.), Historia oral e multidisciplinaridade: Rio de Janeiro, Diadorim/Finep,p75-99.

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Cronograma

ETAPAS DAS ENTREVISTAS 2010 2011 2012Levantamento de dados para a preparação dos roteiros das entrevistas

X

Entrevistas: Guerrilheiros e militantes da esquerda e moradores da região da Serra do Caparaó.

X

Transcrição X XRevisão final X

Referencias Bibliográficas

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CAMARGO, Aspásia- 1994-“Historia oral e política”, in: Ferreira, Marieta de Moraes (org.), Historia oral e multidisciplinaridade: Rio de Janeiro, Diadorim/FINEP, p75-99.

FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro:Fundação Getúlio Vargas, 1996.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Editora Revista dos Tribunais, 1990.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, s/d. pp. 423-477.

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA e AMADO (orgs.), Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. pp.167-182.

LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

PEREIRA, Lígia Maria Leite. Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e autobiografias. História Oral: Revista da Associação Brasileira de História Oral, São Paulo, n. 3, jun. 2000

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 5 (10), p. 200-212, 1992.

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POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio deJaneiro, 2 (3), p .3-15, 1989

PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. pp. 103-130

ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA e AMADO (orgs), Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. pp. 93-102.

SOARES, Maria Inez Lemos Soares – 1998- “A historia oral como principio educativo ou a memória como valor no ensino de historia”, in: Conferencia Internacional de Historia oral.

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A religiosidade na Colônia e a apropriação de signos aleatórios nas práticas de feitiçaria

a partir do processo inquisitorial de Maria Gonçalves (1591-1593)

Marcus Vinícius Reis

O século XVI não é palco de descrenças e incredulidades. Cada época, sendo esta de caráter bastante turbulento – como veremos adiante -, produz determinadas visões e interpretações acerca do mundo vigente. Cada sociedade assume importância em tais interpretações a partir do momento em que análises acerca do imaginário de determinada época são promovidas no intuito de se compreender, por parte do pesquisador, o modo como uma determinada sociedade se apropriou de elementos diversos para constituir uma visão de mundo coerente com suas vivências múltiplas e, no caso do século XVI, complexas. Portanto, pensar o modo como se constituiu e se vivenciou o imaginário correspondente ao século XVI, é ter em mente que o domínio do imaginário extrapola limites de análise previamente propostos, sendo parte de todas as sociedades, sendo inviável, para o século XVI, separar o que é real do que se torna imaginário, sendo campo inteiro da experiência humana (PATLAGEAN,2005:p.391). Analisar o campo da experiência humana, perceber os elementos de apropriação utilizados por determinada sociedade de modo a se tornarem coerentes com uma vivência de mundo em questão; eis a proposta inicial do presente trabalho.

Entretanto, a proposta nos é muito ambiciosa, de fato. Como mencionado, analisar o século XVI é ter em mente toda uma gama de acontecimentos complexos que influenciaram decisivamente nos rumos tomados por tal época. Ressalta-se, inicialmente, que o campo de análise no qual nos propusemos a discutir refere-se diretamente ao modo como a religiosidade no século XVI se tornou elemento importante para se entender o imaginário de determinada sociedade. Aliás, como mencionara Lucien Febvre, pensar as sociedades do XVI é ter em mente o fato de que os indivíduos não possuíam o senso do impossível, onde o mundo natural e sobrenatural possuíam relações próximas e tangíveis para tais homens(FEBVRE,2009:p.2). Desse modo, é impossível separar a religiosidade e a vivência humana em um período onde as duas instâncias viviam em constante comunicação. Todavia, por se tratar de um recorte inimaginável para a proposta do presente trabalho, o modo como nos propusemos a verticalizar a discussão a respeito do imaginário que se constituiu no século XVI se direcionou aos estudos referentes às práticas de feitiçaria recorrentes durante tal período a partir dos processos inquisitoriais resultantes do Santo Ofício português – estabelecido a partir de 1536 -, especialmente o tribunal lisboeta que exercia controle direto sobre as ações inquisitoriais na América portuguesa. A partir de tal temática, as análises aqui propostas terão como recorte espacial os anos de 1591

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a 1595, período onde ocorreu a primeira visitação inquisitorial na colônia portuguesa e onde um processo contra práticas de feitiçaria se faria presente por meio da atuação de Heitor Furtado de Mendonça, então visitador, bem como dos indivíduos responsáveis por promoverem as denúncias que resultariam no processo da cristã-velha Maria Gonçalves, em 1593.

Pensar as práticas de feitiçaria na Colônia do XVI só se torna coerente a partir da própria reconstrução dos contextos sociais e culturais inseridos em tal periodicidade, como menciona Laura de Mello e Souza (SOUZA,1986:17). Desse modo, se por um lado pode se tornar inviável partir de uma análise tão específica, que será o caso da processada por feitiçaria Maria Gonçalves, para se buscar reconstruir todo um imaginário que circulou pelo século XVI, principalmente na América portuguesa, por outro lado, tal objetivo se tornará viável a partir do momento em que as análises a respeito dos elementos que envolveram todo o processo de acusação que envolveu a dita feiticeira se relacionaram a todo um aparato de signos religiosos - considerados aqui de caráter aleatório - presentes nos diversos casos de feitiçarias do século XVI que assumiram diversas relações com o referido processo, não sendo, desse modo uma análise que pretenda tornar a religiosidade seiscentista colonial uma ilha cultural isolada de contextos maiores. Trata-se de uma possibilidade de análise histórica que tentará problematizar a respeito do modo como a colônia, mesmo em estágio inicial de presença portuguesa, era capaz de produzir suas próprias demandas, seus diversos contextos que estariam diretamente relacionados com as práticas de feitiçaria utilizadas por Maria Gonçalves, não sendo mero espaço de continuidade de sua metrópole.

No intuito principal de se fazer de modo mais incisivo sua presença na vida dos fiéis, a Igreja Católica envolvida na Reforma que começava a tomar suas formas nas primeiras décadas do XVI, teria na atuação do Tribunal do Santo Ofício – este estabelecido em Portugal oficialmente em 1536 – um poderoso instrumento de “disciplinamento do homem moderno” capaz de detectar os desvios de doutrinas caracterizados como uma afronta direta aos dogmas católicos e, assim, considerada heresia (VAINFAS,1997:p.199). Dessa forma, não tardaria ocorrer um prolongamento das ações inquisitoriais, já presentes na metrópole portuguesa, na colônia, se fazendo de modo mais concreto a partir da primeira visitação promovida no ano de 1591, tendo como representante maior o visitador Heitor Furtado de Mendonça.

Poucos meses após a chegada do então visitador, seria promovida a primeira denúncia contra a “nossa” dita feiticeira, Maria Gonçalves, acusada pela cristã-velha Isabel Monteira Sardinha. Porém, antes de iniciarmos de fato as análises a respeito de todo o rol de culpas que envolveram a presença de Maria Gonçalves no processo inquisitorial promovido em 1593, é interessante analisar inicialmente o próprio perfil que a denunciada adquiriu a partir das denúncias promovidas, de modo a perceber os possíveis estereótipos que se fizeram presentes em tais relatos e que, a nosso ver, revelam o modo como a presença inquisitorial tornava nítida diversas intolerâncias que só tomavam forma mediante as ameaças de penas espirituais ou mesmo a partir do

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exame de consciências que o discurso do visitador promovia (SIQUEIRA,1978:p.218), evidenciando o que Siqueira aponta como uma grande rede de denúncias existente ao longo do período de visitação.

Os primeiros indícios a respeito das origens da processada Maria Gonçalves podem ser identificados a partir de duas denúncias feitas no mês de agosto, promovidas respectivamente por Isabel Monteira Sardinha e Catherina Fernandes, sendo a última por meio de uma confissão. É possível destacarmos dois aspectos consideráveis a respeito do modo como Maria Gonçalves viera para a Colônia, onde, de acordo com Catherina Fernandes, a dita feiticeira teria vindo degredada do Aveiro para Pernambuco, região de Portugal. Por outro lado, a menção ao degredo também é apontada por Isabel Sardinha, no entanto, enquanto referência a um episódio no qual Maria Gonçalves teria passado por penitências na matriz de Pernambuco por ordem do então vigário, tendo que ficar de “carocha” – espécie de mitra comumente utilizada pelos condenados da inquisição – e, por fim, degredada para a Bahia como pena final. Entretanto, será no próprio processo de argüição que a mesa inquisitorial, tendo em Heitor Furtado de Mendonça a sua maior autoridade, promoveria com Maria Gonçalves, que as motivações para a promoção de tais penitências nos seriam esclarecidas. Conforme questionamento do visitador, Maria Gonçalves responderia em 9 de setembro de 1592 - período onde uma série de questões seria promovidas pelo visitador de modo a esclarecer as denúncias promovidas contra a ré – acerca do caso das penitencias em Pernambuco, dizendo que teria sido condenada pela suposta promoção de práticas de feitiçarias que a ré se utilizava.

Por se tratar de um mecanismo punitivo utilizado amplamente pela Inquisição portuguesa para se coibir a presença de práticas heréticas, a Colônia acabaria se tornando um dos palcos principais para que inúmeros condenados por degredo em Portugal se fizessem presentes em suas terras. Sodomitas, ladrões, cristãos-novos e feiticeiros seriam alguns dos componentes dessa vasta gama de degredados que desembarcariam em terras brasílicas, ainda no século XVI (PIERONI,2000:p.17). E Maria Gonçalves - conforme registros encontrados nas denúncias promovidas contra ela – não fugiria à regra a partir do momento em que se incluiria no rol de afrontas ao Estado e à Igreja, sendo por meio da queima de duas casas ainda em Aveiro, no reino (NOVINSKY,2009:243), ou das práticas de feitiçaria supostamente promovidas pela cristã-velha em Pernambuco anos antes da visitação ser promovida. O degredo, como vimos, marcaria diretamente a trajetória da feiticeira colonial durante os anos em que permaneceria na Terra de Santa Cruz.

O próprio fato de se tratar de uma degredada já poderia fazer de Maria Gonçalves uma mulher de status não muito vantajoso perante a sociedade colonial, mesmo que esta ainda estivesse em desenvolvimento recente. Fato este que pode ser identificado a partir das sete denúncias promovidas contra a dita feiticeira; número considerável se analisarmos as outras denúncias contra práticas de feitiçaria que se fazia de modo esporádico. Conforme aponta Geraldo Pieroni, o degredo enquanto punição para a América portuguesa poderia ser considerado como tendo um caráter amplamente rígido,

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tanto na questão de uma possível escala de punições da Inquisição lusitana quanto no que o autor mencionara como sendo o “estigma da condenação” que tais condenados traziam consigo para a colônia (PIERONI,2000:p.33-36). Para Laura de Mello e Souza, o Brasil do XVI poderia ser comparado a um Purgatório, onde as almas que mereciam punição eram enviadas de modo a terem a purificação espiritual que tanto necessitavam (SOUZA,1986:p.80). Associado a um contexto de colônia e metrópole, o degredo para o Brasil a partir do século XVI acabaria sendo interpretado com um mecanismo de purgação dos pecados e de penas graves, onde os “homens danados podiam alcançar os céus através do esforço honesto, do trabalho diário, da sujeição à vontade metropolitana” (SOUZA,1986:p.84). Era, pois, um desafio para o degredado que chegava ao Brasil inserir-se na sociedade vigente de modo que o “estigma do condenado” não se tornasse o centro das atenções. Poderia contar como ponto a favor para Maria Gonçalves, por exemplo, o próprio fato de que a sociedade colonial ainda caminhava a passos lentos em sua formação, mas poderia ser um elemento complicador o fato de Maria Gonçalves ter sido degredada por feitiçaria, Já que, como aponta José Pedro Paiva, ser feiticeira era fazer parte de uma rede complexa de alianças e inimizades, onde em um dado momento recorria-se a tais de modo a sanar algum problema cotidiano, mas que em outra situação um processo de acusação poderia ser feito contra a mesma feiticeira (PAIVA,1997:p.295). Assim, consideramos tal assertiva a mais coerente em relação ao caso de Maria Gonçalves, onde em algumas denúncias são apontadas relações próximas entre a acusada e quem denuncia142 devido à própria recorrência de termos como “vagabunda”, e a alcunha de “arde-lhe-o-rabo”, tornando claro ao pesquisador o modo como se fazia tênue a linha de tolerâncias existentes numa sociedade onde a presença da inquisição se concretizava.

O termo “feiticeira” assume contornos oficiais na visitação – nesse caso, relacionado com Maria Gonçalves - a partir da denúncia promovida pela cristã-velha e moradora da Bahia, Isabel Maria Sardinha em 7 de agosto de 1591. Entretanto, como será possível perceber no decorrer das denúncias que serão analisadas no presente trabalho, a construção do caráter de feiticeira associado com as práticas de Maria Gonçalves, não se restringira apenas ao período em que a visitação fora promovida, pelo contrário, tratava-se de uma fama pública que a dita feiticeira assumira durante vários anos anteriores à presença do Santo Ofício, podendo ser evidenciado através de suas próprias afirmações presenciadas por aqueles que participaram de determinados ritos e que posteriormente denunciaram143, ou através das confissões promovidas por Maria Gonçalves no processo e que possuíam correspondências com as práticas mencionadas

142 A denúncia de 9 de agosto de 1591, promovida por Caterina Fernandes, demonstra claramente que a feiticeira, como aponta Paiva, só assumira um caráter reprovatório na sociedade a partir da acusação diante do inquisidor. Caterina Fernandes dizia ser vizinha e conhecida de Maria Gonçalves, onde a própria denunciante teria participado de rituais com a ré.Cf; Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denun-ciações da Bahia 1591-593. São Paulo: Paulo Prado, 1922-1929, 3 vols.p298-299.143 Casos como o de Tareja Roiz (Tereza Rodrigues) ou de Margarida Carneira que denunciaram Maria Gonçalves por práticas de fei-tiçaria e de pactuar com demônios deixam nítida a inserção da ré na sociedade em questão a partir da sua fama pública de feiticeira.Cf: Idem.p.400-401;424.

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nas denúncias. Nesse sentido, vale apontar, primeiramente, que tais correspondências apontam de fato para o entendimento de que a própria Maria Gonçalves se via enquanto uma feiticeira, não sendo apenas um caractere imposto pela sociedade em que se inseria. Acreditamos que havia todo um esforço por parte da Inquisição, nesse caso o visitador, de tornar as práticas heterodoxas às doutrinas da Igreja próximas dos esquemas pré-concebidos acerca do que se entendia por feitiçaria e pacto demoníaco. Entretanto, como afirma Bethencourt, tal esforço acaba por se direcionar a um certo reducionismo onde por muitas vezes o que era interpretado pelo processo estava relacionado a uma parcela mínima do imaginário construído por quem denunciava ou, principalmente, por quem era de fato processado (BETHENCOURT,2004:p.9). Assim, não significa dizer que optamos por anular tais interpretações acerca do que seria feitiçaria por parte da inquisição, mas sim de ampliar tais interpretações no âmbito dos que necessariamente vivenciavam tais práticas, ou seja, identificar num universo de imaginário maior os elementos que contribuíram para que tanto os doutores da Igreja, bem como a própria sociedade contribuíssem para a construção do estereótipo da “feiticeira”. Desse modo, a “fama pública” amplamente mencionada pelas denúncias contra Maria Gonçalves de modo a corroborar com a aproximação da cristã-velha com rituais de feitiçaria e de pactos demoníacos é, a nosso ver, aspecto importante para considerarmos o entendimento das pessoas de que a denunciada era de fato uma feiticeira, não dependendo necessariamente dos monitórios afixados pela visitação para que tal estereótipo viesse à tona. A visitação contribuiria para aflorar possíveis tensões existentes na sociedade, levando à denunciada Maria Gonçalves ao caráter de “bode expiatório”144, bem como contribuir, também, para o reducionismo das práticas denunciadas, deixando de lado diversos elementos considerados também importantes para se entender o imaginário pelo qual a sociedade colonial compartilhava. Elementos que passarão a ser analisados de modo mais minucioso a partir de então.

Em 26 de agosto de 1592 se daria a primeira aparição da denunciada por feitiçarias, Maria Gonçalves, diante da mesa do então visitador inquisitorial Heitor Furtado de Mendonça. Trata-se de um relato curto, onde a ausência de uma argüição mais completa fora justificada pela condição de enferma que a ré se encontrava no período.

Prometendo, sob a presença dos “Sanctos Evangelhos”, responder com a verdade todas as questões promovidas pela mesa da visitação, a ré Maria Gonçalves compareceria quatro dias após ter mencionado suposta doença, à presença da inquisição na Bahia. Seus relatos - acompanhados de lágrimas e pedidos por misericórdias145 - podem ser descritos como sendo uma mescla de tentativas de se desmistificar, por parte da ré, todo aparato de elementos que compunham o quadro de práticas de feitiçarias

144 Já que, como afirma Jean Delumeau, o fato de uma mulher estar associada à prática de feitiçaria não era considerada como raridade na modernidade, pelo contrário, inúmeros estudos, manuais teológicos foram confeccionados de modo a corroborar tal relação. Assim, tais tensões mencionadas estariam dentro do próprio imaginário que a sociedade colonial vivenciava acerca das diversas maldades contra a humanidade que a mulher trazia consigo. Cf: DELUMEAU,2009:p.476-477.145 ANTT,Inquisição de Lisboa, Processo no10748.

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supostamente exercidos por ela, além de deixar claro ao pesquisador as tentativas de investigação por parte das autoridades inquisitoriais de modo a perceber a veracidade, ou não, das denúncias promovidas contra Maria Gonçalves.

Com relação aos momentos em que Maria Gonçalves comparecera à mesa inquisitorial de modo a esclarecer para as autoridades as denúncias promovidas contra ela, é possível perceber a recorrência dos termos “enganos”, “falsidades” e “fingimentos” nas tentativas de se redimir das acusações apresentadas pela visitação. Tais enganações, conforme apresentara a ré, seriam no intuito de se iludir as pessoas que a procuravam, e que sabiam de sua fama pública de suposta feiticeira, acerca da eficácia em se atingir objetivos amorosos, financeiros ou mesmo para se atingir inimizades existentes. Desse modo, por precisar de dinheiro, ou mesmo de ter algo para seu sustento, Maria Gonçalves, de acordo com o que relatara, se utilizava da fama de se encontrar com os diabos, ou mesmo de ter poderes para se alcançar determinado objetivo, de modo a garantir sua própria sobrevivência na sociedade em que se inserira.

A presença do Diabo, a crença de que se aliar aos seus poderes seria uma tentativa de se atingir determinados objetivos, não se tratavam de especificidade do século XVI colonial, pelo contrário, o Diabo se inserira, desde o período da cristianização européia, num poderoso “sistema de conteúdos simbólicos” (NOGUEIRA,2002:p.11) no qual diversos setores da sociedade compartilhavam no intuito de promover uma interpretação coerente de mundo naquele período. Entretanto, o modo como tais setores, os indivíduos, se apropriaram das inúmeras crenças a respeito dos poderes do Diabo, ou mesmo dos elementos que constituíam todo um aparato de crenças acerca da feitiçaria, se tornou, a nosso ver, distinto nos diversos espaços a partir da diferenciação entre o modo como tais signos aleatórios foram apropriados no intuito de atender as mais diversas demandas existentes nas sociedades. O mágico, dessa forma, ao assumir o caráter de mediador entre o mundo natural e o sobrenatural, seria capaz, também, de intermediar diversos “sistemas de classificação e combinação de elementos com alguma complexidade, estabelecendo correspondências entre os signos produzidos aleatoriamente146 e as situações possíveis do destino individual” (BETHENCOURT,2004:p.59). Desse modo, acreditamos que a intermediação promovida por Maria Gonçalves assumiria duas vias de interpretação a respeito dos sistemas simbólicos que, não apenas a dita feiticeira, mas também a própria sociedade colonial no qual a ré se inserira compartilhava a partir da crença na eficácia de tais signos aleatórios.

Resultado de crenças e tradições religiosas das mais diversas inseridas em campos históricos distintos – como a crença no Diabo -, a religiosidade colonial do século XVI teria uma aproximação considerável de um passado europeu, e mesmo de um presente coexistindo na própria sociedade. Fato este que pode ser identificado

146 Nesse caso, os signos mais recorrentes encontrados no processo de Maria Gonçalves eram a crença no Diabo, o pacto demoníaco, conseqüentemente, a simbologia do mar e o uso das botijas – pequenos tesouros enterrados.

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na própria trajetória de vida da processada Maria Gonçalves, que fora, como vimos anteriormente, degredada do reino. Acreditamos desse modo, que a dita feiticeira pode ter se tornado um importante meio de intermediação entre os signos aleatórios compartilhados em Portugal e os novos campos de sociabilidade que a Colônia já se tornava capaz de construir, embora, acreditamos que esta fosse prolongamento constante de sua metrópole, mas um “prolongamento modificado do imaginário europeu”, como apontara Laura de Mello e Souza (SOUZA,1986:p.31). Como aponta Paiva, tais mediações apontam para a existência de uma “fusão cultural de elementos de crenças e tradições com raízes profundamente distintas”, mas que o sincretismo religioso ia se apropriando a partir das demandas existentes na sociedade (PAIVA,1997:p.99). Entretanto, o caráter de mediação aqui apontado não se restringiria apenas ao objetivo de se apoderar de elementos sobrenaturais e aplicá-los em algum contexto específico. Como aponta Francisco Bethencourt, o principal rol de atuação que a feitiçaria se apoderaria e, assim, conquistaria considerável sucesso entre os que a procuravam, se relacionava diretamente ao interesse imediato da sociedade em se apoderar dos destinos individuais, de decifrar o futuro que os esperava, e à capacidade do mágico, segundo essa mesma sociedade, em se apropriar de tais destinos e, assim, manipulá-los de acordo com os objetivos existentes (BETHENCOURT,2004:p.57). Como mencionado ao longo do presente trabalho, não negamos o fato de que os elementos mencionados no processo de Maria Gonçalves acerca das práticas de feitiçarias utilizada pela ré poderiam se resultar não apenas de um imaginário compartilhado pela sociedade colonial, mas sim de demandas materiais, como a própria garantia de sobrevivência em um espaço por vezes inóspito e sem garantias maiores de enriquecimento. Entretanto, torna-se incoerente pensar o século XVI sem reconstruir suas especificidades a partir da relação entre imaginário e tais condições materiais. A linha é tênue, ou mesmo inexistente. Desse modo, como aponta Paiva, é necessário que as análises acerca do universo que permeava a atuação do mágico não compreenda os sistemas simbólicos nele inserido, como atos de caráter irracionais ou ilógicos pelo historiador, de modo a evitar estudos de caráter superficial. É necessário perceber que a vivência desse mágico, e também da sociedade que se inseria, era permeada de um “conjunto de regras e de significações simbólicas” que tornavam determinada visão de mundo coerente para tais indivíduos.

Assim, se por um lado são um tanto evidentes as diversas demandas materiais que a colônia quinhentista vivenciava devido ao seu próprio momento de colonização portuguesa ainda recente e sua influência direta nas ações promovidas por Maria Gonçalves, servindo a esta como justificativa para tais práticas que, na sua defesa, não passavam de enganações e fingimentos, por outro lado, é de se perceber a estreita relação que todos os envolvidos no processo – inclusive as autoridades - possuíam com o mundo sobrenatural, com os signos aleatórios que se faziam presentes também na Colônia. Desse modo, o modo como Maria Gonçalves se utilizaria para se inserir na sociedade em que vivia de modo a não cair à margem desta, seria por meio das práticas de feitiçaria utilizadas. O caráter de mediadora

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entre os mundos naturais e sobrenaturais, bem como sua capacidade assumida de gerir determinados destinos individuais, serviriam de poderosos instrumentos para que um reconhecimento da sociedade perante sua existência se fizesse presente, já que a própria sociedade compartilhava do interesse em se apoderar de destinos individuais ou mesmo coletivos147. Entretanto, tal suposto reconhecimento ruiria com a chegada da visitação inquisitorial em 1591, onde as tensões existentes na sociedade bem como a “pedagogia do medo”, apontada por Vainfas, serviriam para que uma mulher, antes considerada de importância para se alcançar os mais diversos objetivos, se tornasse uma das primeiras a serem processadas pela inquisição por feitiçaria. Em relação às autoridades, acreditamos que o interesse em ir com mais profundidade nas investigações a respeito das denúncias promovidas contra Maria Gonçalves já se torna evidência importante de aceitação do imaginário religioso existente na Colônia. Embora, ao ser enviado o processo para o Conselho Geral do Santo Ofício em Lisboa, o parecer final dos inquisidores seria o de considerar as denúncias promovidas contra Maria Gonçalves e as práticas mencionadas enquanto embustes e enganações, não sendo um caso de análise inquisitorial, o fato da investigação por parte do visitador ter se resultado em um processo oficial, mostra ao pesquisador o modo como um imaginário de determinada sociedade poderia ser compartilhado independente de posições sociais ou níveis culturais. A Colônia era diabólica, a sociedade se tornava feiticeira e a visitação perseguia tais casos.

Referências Bibliográficas

BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras, saludadores e nigromantes no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras,2004.

DELUMEAU, Jean.História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo,Companhia das Letras,2009.

FEBVRE,Lucien.O problema da incredulidade no século XVI.A religião de Rabelais.Tradução de Maria Lúcia Machado.São Paulo:Companhia das Letras,2009.

MELLO E SOUZA, Laura de.O Diabo e a Terra de Santa Cruz.São Paulo:Companhia das Letras, 1986.

147 Exemplo que pode ser apontado a partir da denúncia de Catharina Frois, no qual a própria denunciante teria recorrido à fama pública de feiticeira de Maria Gonçalves de modo que a ré “lhe fizesse huns feitiços pêra que hun seu genro Gaspar Martins [...] morresse ou matassem ou não tornasse da guerra de Ceregipe[...]”. O objetivo maior de se apoderar do destino de Gaspar Martins residia no fato de que ele, segundo a denunciante, não era capaz de “dar boa vida a sua molher moça filha della confessante”. Cf: Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações da Bahia 1591-593. São Paulo: Paulo Prado, 1922-1929, 3 vols.p.68-69.148 ANTT,Inquisição de Lisboa, Processo no10748.

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NOGUEIRA,Carlos Roberto.O Diabo no imaginário cristão.2ª Ed.Bauru,SP:EDUSC,2002.

NOVINSKY,Anita.

PAIVA,José Pedro.Bruxaria e superstição num país sem ‘caça às bruxas’.1600-1774.Lisboa:Editorial Notícias,1997.

PATLAGEAN,Evelyne.O História do Imaginário.In:LE GOFF,Jacques.A História Nova.são Paulo: Martins Fontes,2005.pp.391-425.

PIERONI,Geraldo.Vadios e Ciganos, Heréticos e Bruxas. Os degredados do Brasil -Colônia.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2000.

Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio.Denunciações da Bahia 1591-593.São Paulo:Paulo Prado,1922-1929,3 vols.

SIQUEIRA,Sônia A.A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial.São Paulo: Editora Ática,1978.

VAINFAS,Ronaldo.Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil.2ªed.Rio de Janeiro:Nova Fronteira,1997.

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Wood&Stock em Algum Lugar do Presente: moral autoritária, utopia com colesterol e

contracultura na obra de Angeli (1985-1995) Mariana Castro Teixeira

Resumo

Tomando a revista Chiclete com Banana e os personagens Wood&Stock, do cartunista Angeli, como objeto de investigação, este trabalho pretende uma análise sobre a sociedade brasileira entre os anos de 1985 e 1995. Será iniciada a tentativa de construção do conceito moral autoritária através do movimento localizado da contracultura (anos 60/70) e da contracultura de um modo mais geral, nos quadrinhos udigrudi.

Palavras chave: moral autoritária, contracultura, cultura, política, quadrinhos

Introdução

Wood&Stock são dois personagens que simbolizam um determinado momento da História - as famosas décadas de 1960 e 1970 - característico pela atuação de uma nova força social – os jovens – enquanto forte contestadora de valores centrais da cultura ocidental. No entanto, os já velhos amigos vivem tomados pela nostalgia dos “anos rebeldes” e não conseguem ou não querem entender o mundo em que vivem, embora este mundo, de alguma forma, faça parte deles também. O humor das tirinhas está no desajustamento dos personagens em relação aos novos tempos.

Estes dois são personagens - entre outros tantos - lançados pela revista Chiclete com Banana, publicada durante as décadas de 1980 e 1990, pelo cartunista Arnaldo Angeli Filho. Em 1973, Angeli foi contratado pelo jornal Folha de São Paulo (onde trabalha até hoje) e, através de suas publicações diárias, apresentou pela primeira vez ao grande público os personagens que mais tarde iriam se cristalizar com o sucesso da revista Chiclete com Banana.

A revista contou com colaboração de outros cartunistas e humoristas como Laerte, Glauco Mattoso, Luis Gê, Roberto Paiva, Glauco, entre outros. Lançada em outubro de 1985, Chiclete com Banana original teve 24 edições regulares, 10 edições especiais e mais 10 edições da série Tipinhos Inúteis, numa trajetória que se estendeu até 1995, somando mais de três milhões de exemplares vendidos.

Em 2006 os velhos hippies ganharam as telonas com o filme Sexo, Orégano e Rock’n’Roll, dirigido por Otto Guerra. O enredo do filme gira, fielmente, em torno da dupla Wood&Stock e de outros personagens consagrados de Angeli, como por exemplo: Rê Bordosa, Meia-oito e Nanico, e o guia espiritual Rhalah Rikota.

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Em junho do ano seguinte é lançado o primeiro exemplar de uma Antologia Chiclete com Banana: “Esta coleção de 16 fascículos da revista Chiclete com Banana reúne o melhor das 24 edições normais, dos 10 Chicletes especiais e dos 10 títulos da série Tipinhos Inúteis publicados entre 1985 e 1995”149.

A sátira do Angeli ao movimento da contracultura dos anos 60 e 70 é entendida neste trabalho mais como uma crítica à sociedade brasileira e a sua herança autoritária - a moral autoritária – do que ao próprio movimento. De fato, elementos da contracultura são ridicularizados por ele, assim como a utopia do Flower Power demonstrou inconsistência política como movimento de caráter transformador. No entanto, esta crítica acontece de dentro, vem de uma pessoa que já esteve afinada com estes ideais do rock e que ainda hoje compartilha de parte deles. As décadas de 80/90 foram marcadas no Brasil pela sensação de que o sonho acabou: a questão da redemocratização se mostrava cada vez mais desacreditada e sonho da democracia mostrava-se irrealizável.

Esta pretende ser uma análise que não seja a de enxergar os personagens Wood & Stock como estando apenas “presos” aos anos 60, mas sim de maneira que suas atitudes e peripécias ao longo das tirinhas exprimam um significado da contracultura que não está somente nas décadas de 1960 e 1970 e que, transcendendo-as, abarque a amplitude deste movimento contestatório a partir do entendimento do que é cultura.

“A cultura, distintivo das sociedades humanas, é como um mapa que orienta o comportamento dos indivíduos em sua vida social. Puramente convencional, esse mapa não se confunde com o território: é uma representação abstrata dele, submetida a uma lógica que permite decifrá-lo. Viver em sociedade é viver sob a dominação dessa lógica e as pessoas se comportam segundo as exigências dela, muitas vezes sem que disso tenham consciência” (RODRIGUES, 1986, p. 11, grifo meu)

Wood&Stock, portanto, representam uma geração que passou pelo movimento da contracultura ativamente e sobreviveu a tudo isso. Eles trazem na bagagem uma experiência de luta alternativa contra uma tradição “careta” que, embora tenha trazido mudanças boas e significativas, é vista hoje pela geração de seu filho como caduca.

Os tempos seguiram, a caretisse prevaleceu, John Lennon morreu e os hippies esclerosados viraram peça de museu. Agora, já velhos, carecas e barrigudos, eles remetem a conflitos que no passado foram materializados e contestados pelo movimento da contracultura, mas que hoje ainda não foram totalmente resolvidos e estão diluídos na sociedade e cultura brasileiras na forma de uma moral autoritária. Talvez os hippies de Angeli, com uns fiapos de cabelo a menos e uns quilinhos a mais, possam não estar tão esclerosados assim e significar alguma contracultura.

Por ser este um artigo cujo objeto da investigação será abordado através da análise de fontes visuais, faz-se necessário uma discussão - ainda que sucinta - a respeito destes instrumentos de pesquisa e seus usos.

149 Revista Antologia Chiclete com Banana. n. 1. São Paulo: Sampa/Devir.

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As fontes visuais são inseridas no plano mais amplo da visualidade, não nos limites de uma “História Iconográfica’, de fôlego curto e de interesse antes de mais nada documental”150. Seu uso não descarta o uso de outros tipos de fontes, já que as imagens servem, nessa perspectiva, para auxiliar o historiador a produzir conhecimento, ou seja, “formulação de problemas históricos, para serem encaminhados e resolvidos por intermédio de fontes visuais, associadas a quaisquer outras fontes pertinentes151”.

Nesse sentido, a posição de Sandra Jatahy Pesavento a respeito das imagens orienta o tratamento que este artigo pretende dar às tirinhas de Angeli:

A imagem é portadora de significados que são construídos e/ou descobertos por aquele que pensa, enquanto olha. Da visão ao olhar - que constitui o ver, mas estabelecendo significados e correlações -, uma operação mental introduz-se. Nessa instância da percepção, a imagem visual será complementada por uma imagem mental, que classifica, qualifica e confere sentido àquilo que é visto. Para tanto, a imagem visual entra em contato com outras imagens, presentes no “arquivo de memória” que cada um traz consigo (...). Esse verdadeiro museu imaginário de representação do mundo varia em extensão e qualidade de acordo com os referenciais de tempo e espaço, importando em experiência de vida, formação profissional, universo cultural, geração, territorialidade, etc...152

O interesse em trabalhar com as tirinhas do Wood&Stock surgiu da expectativa de realizar um estudo histórico que transcendesse o uso de fontes “oficiais”, ao mesmo tempo em que possibilitasse uma análise da sociedade brasileira no contexto da redemocratização (anos 80/90), a partir das críticas de Angeli aos costumes dominantes.

Para essa finalidade é necessário pensar nos quadrinhos enquanto objeto de estudo, com suas peculiaridades e ambigüidades em relação ao modo como eles estão inseridos no mercado e também como são apropriados por seus leitores; pensar ainda como as críticas de Angeli, formuladas nesses quadrinhos, se inserem no domínio cotidiano do público jovem urbano através do consumo da revista Chiclete com Banana.

Ao tomar estes personagens e a revista como uma proposta de investigação faz-se necessário compreender o quê do caráter contestador da Imprensa Alternativa brasileira está representado na revista Chiclete com Banana, publicada no período da redemocratização brasileira e o que pode se dizer sobre esta sociedade. Podemos nos indagar então: no caso de Angeli, a crítica aos costumes dominantes de uma sociedade que passava por uma transição, que implicava certa continuidade e cuja cultura política não escondia seus traços conservadores, autoritários e patrimonialistas fazem sentido para a realidade brasileira dos anos 80/90 e servem como um contraponto aos costumes dominantes? É possível falar em uma moral autoritária permeada por essa

150 MENESES, Op Cit, p. 25-26.151 Idbem, p. 26.152 PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo da imagem: território da história cultural. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy, ROSSINI, Miriam de Sousa, SANTOS, Nadia Maria Weber. (orgs.). Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em história cultural. Ed. Asterisco, p. 99-122.

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cultura política brasileira e ainda dizer que reproduzimos nas relações interpessoais as dimensões macro de estruturas sócio-políticas e culturais?

O modo como tem sido interpretado o processo de redemocratizão brasileiro e a idéia de democracia é transpassado pelo modo como as memórias, culturas e identidades sobre a ditadura e história do Brasil entraram em negociação. A moral autoritária corta transversalmente esses três elementos. A modernidade enquanto episteme153 inaugurou - através da idéia de progresso e civilização baseados em modelos europeus - um imaginário que, segundo Lander, impregna a visão de mundo das ciências sociais modernas, trazendo a cosmovisão modernidade a partir de quatro concepções:

“1) a visão universal da história associada à idéia de progresso (a partir da qual se constrói a classificação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências históricas); 2) a “naturalização” tanto das relações sociais como da “natureza humana” da sociedade liberal-capitalista; 3) a naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade; e 4) a necessária superioridade dos conhecimentos que essa sociedade produz (“ciência”) em relação a todos os outros conhecimentos.” (LANDER, 2005)

O enfrentamento da moral autoritária propriamente dita seria o caráter contracultural dos quadrinhos: a relação entre suas características peculiares de um produto da indústria cultural e o contato com o público na construção de uma nova episteme.

UDIGRUDI

As histórias em quadrinhos propriamente ditas só começaram a ser estudadas de modo mais sistemático nos meios acadêmicos a partir do final da década de 1950 e início de 1960, embora tenham surgido, nos EUA, no final do século XIX.

Este produto nascido no berço da cultura de massa possui características intrínsecas de produção e distribuição que inaugurou o que Nadilson da Silva chamou de “a época do reprodutível inserido na dinâmica do consumo”154. Porém, mesmo submetido ao mercado155, alguns quadrinhos continuavam tratando de temas considerados imorais.

As histórias em quadrinhos deste tipo que, nas décadas de 60 e 70, circulavam nos meios alternativos ao “grande mercado”, estão ligadas ao surgimento de um novo tipo de quadrinho: o underground - vinculado às prerrogativas de contestação dos costumes dominantes e influenciado pelo norte-americano Robert Crumb, principal autor do gênero.

153 Sobre esse assunto ver LANDER: “Com o início do colonialismo na América inicia-se não apenas a organização colonial do mundo mas –simultaneamente– a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória (Mignolo, 1995) e do imaginário (Quijano, 1992)” (LANDER, 2005).154 SILVA, Nadilson Manoel da. Fantasias e cotidiano nas histórias em quadrinhos. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult, 2002, p. 17155 É imposto em 1950 nos EUA (com o macarthismo) um código de ética que previa a não utilização de elementos imorais nas HQs..

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Importado para o Brasil, este novo estilo – traduzido para o português como udigrudi – consolidar-se-á por aqui com a publicação da revista Chiclete com Banana, de Angeli, na metade da década de 1980. Apesar do conteúdo contestatório da revista, vale ressaltar, nas palavras de Nadilson da Silva, que “essa é uma fase em que houve amadurecimento do mercado e de seus autores. Diluiu-se a oposição entre o que é ‘alternativo’ e o que é ‘consumível’, ou esses dois elementos se fundiram”. Esse fato é importante na medida em que a revista - que tem como alvo de suas críticas a esfera dos costumes urbanos - vai se inserir na vida cotidiana do público através do seu consumo .

Contracultura & Utopia com Colesterol - Wood&Stock: Angeli e os hippies barrigudos

A contracultura datada das décadas de 60/70 é, portanto, uma forma de contestação primordialmente jovem que agrega elementos novos que se encontram fora da cultura dominante. Seu estilo informal rejeita os valores das gerações paternas e com isso os jovens passam a buscar meios de lidar com o mundo para o qual as regras e valores dos mais velhos não são válidos.

O movimento da contracultura nasceu nos EUA, nas décadas de 60 e 70 – e é encarnado aqui pelos hippies fora de época Wood&Stock. A sociedade ocidental foi questionada pelos jovens que tiveram na tríade Drogas, Sexo e Rock’n’Roll sua expressão mais clara.

Na tirinha abaixo Wood parece não se conformar com os rumos do mundo e com seus próprios valores “corrompidos” (valores esses que aparecem atrelados ao fato dele estar velho e careca). Ele conversa com o pôster do Jimmy Hendrix como se estivesse perante a um altar:

Wood refere-se aqui a três importantes elementos da contracultura da década de 1960: o rock; a construção de uma sociedade alternativa; e a juventude. Sua indignação está relacionada com a morte do rock’n’roll enquanto questionador de uma época, com o fato de seu filho querer ser economista e não estar interessado em romper com o chamado establishment e, no último quadro, com o fato dele não ser mais jovem e estar viciado em tônicos para calvice.

Cultura e política, tanto no plano individual como no coletivo, em cujas bases se assentam a moral autoritária, legitimam uma hegemonia epistêmica moderna que se diz universal. Contracultura, neste novo sentido, é a construção de uma episteme brasileira própria que não esteja arraigada nos modelos eurocêntricos e ilumine pontos chaves dos nossos discursos cotidianos e oficiais que, por não serem explicitados nem serem

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objetos de reflexão sistêmica, tornam-se naturalizados e internalizados pela sociedade. Nesse ponto de vista, os hippies representam, portanto, simultaneamente,

a contestação e absorção da moral autoritária. Significam que o movimento contracultural das décadas de 60/70 (e aqui há um entendimento de contracultura sexo, drogas e rock’nroll pelo prisma brasileiro da memória da ditadura), apesar de significativas “vitórias”, “perdeu” enquanto movimento transformador - eles foram “englobados” pela moral autoritária, e, pior, ficaram velhos.

No quadrinho abaixo, os amigos remetem à juventude e aos cabelos compridos como um aspecto relevante “daqueles tempos” e de seus ideais. Hoje, no momento localizado da reabertura “democrática” e da memória de resistência ao golpe, esses ideais - velhos, barrigudos, carecas e com colesterol - foram incorporados na sociedade na forma de uma moral autoritária.

Os hippies remetem ao enfrentamento dessa mesma moral na medida em que põem em cheque e ridicularizam discursos oficiais e práticas cotidianas relacionadas intrinsecamente com a moral autoritária, que, paradoxalmente, estão presentes neles mesmos.

Na tira na pagina seguinte, o enfrentamento da moral autoritária está atrelado

ao fato dela existir nos próprios amigos: de um lado, não existe mais a contracultura datada, a rebeldia, a juventude; de outro, a fala de Stock sobre a existência da rebeldia vendida no mercado mostra como a moral autoritária se faz presente. A crítica de Angeli se dá através do humor construído sobre os recíprocos “deslocamento” e “pertencimento” dos amigos ao mundo inteligível pela moral autoritária.

Os costumes dominantes, neste olhar contracultural mais amplo da moral autoritária, estão nas relações sociais de forma que não podemos a excluir de nós apenas por a percebermos, atribuindo sua existência as gerações de nossos pais e avós. Não mais. Angeli e os hippies são contraculturais (neste momento de consolidação da chamada democracia política no recorte de 1985 a 1995) pois o humor das tirinhas está na crítica à moral autoritária. Os hippies embora não se ajustem aos tempos “caretas” sabem que fazem parte do establishment e de que envelheceram.

É uma visão pessimista a de Angeli? Na perspectiva deste trabalho não, pois é a problematização dessa forma de cultura hegemônica que subjetivamente e objetivamente se faz presente nos discursos oficiais e do senso comum que pode

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vir a desnaturalizá-los e questioná-los. Utopia com colesterol aqui não significa um horizonte pessimista, pois é a partir da percepção de que reproduzimos esta moral é que podemos transgredi-la.

-A ditadura no Brasil e a “redemocratização” O debate em torno dos significados da ditadura civil-militar instaurada no Brasil em 31 de março de 1964 que vem sendo travado pela historiografia recente, cada vez mais, caminha no sentido do questionamento da complexidade das relações sociais envolvidas neste processo.A herança do regime militar - entendida através de sua relação com a sociedade, através da construção de uma memória da abertura que silenciou sobre expressivos segmentos civis de direita que respaldaram e legitimaram os governos dos golpistas - ilumina certas questões do presente que ainda hoje são obstáculos para a construção de uma sociedade justa e plenamente “democrática”, questionando até se é possível ainda em falar democracia. Apesar das significativas transformações a favor da “democracia" ocorridas desde o fim da ditadura, as questões como “reformas de base (em especial, a agrária), o papel do Estado na condução da economia, a questão nacional e a luta antiimperialista” – que, remetidas ao governo de Jango, foram o principal alvo dos militares - “são temas [ainda hoje] atualíssimos repostos numa nova configuração histórica”158. Para Hélio Gaspari, o regime foi desmontado com tamanha precisão que até hoje não se pode dizer quando acabou, admitindo, assim, que ele talvez não tenha sido nunca desmontado, mas sim camaleonicamente transformado.159 A aproximação da contracultura datada dos hippies com as memórias de abertura que defenderam a construção se uma sociedade democrática e justa permitem falar sobre outra contracultura que seria aquela crítica à moral autoritária, algo maior do que nossa pretensa democracia cujas lutas “contraculturais” políticas em prol de uma democracia que cada vez mais demonstrou-se irrealizável, no Brasil, foram resgatadas por uma memória coletiva de resistência à ditadura.

158 FREDERICO, Celso. 40 anos depois. In: AARÃO REIS FILHO, Daniel; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe militar e a ditadura: quarenta anos depois (1964-2004). São Paulo: EDUSC, 2004, p. 103.159 GASPARI, Elio. Alice e o camaleão. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em Trânsito: da repressão à abertura. Ed. Aeroplano. p. 12. Grifo meu.

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Bibliografia

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BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência. [introdução; capítulo 2].RJ: Zahar, s/d.FREDERICO, Celso. 40 anos depois. In: AARÃO REIS FILHO, Daniel; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe militar e a ditadura: quarenta anos depois (1964-2004). São Paulo: EDUSC, 2004.

GASPARI, Elio. Alice e o camaleão. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em Trânsito: da repressão à abertura. RJ: Ed. Aeroplano, 2000. HOBSBAWN, Eric. Revolução Cultural. In: A Era dos Extremos.

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LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. En libro: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas.Edgardo Lander (org.) Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Bueno Aires, Argentina, setembro 2005, p. 21-53.

LARAIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. 11 edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual: Balanço provisório, propostas cautelares. Revista brasileira de História, vol. 23, número 45. São Paulo: Anpuh/Humanitas, 2003.

PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é Contracultura. Ed. Brasiliense, 1983. (Coleção Primeiros Passos).PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo da imagem: território da história cultural. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy, ROSSINI, Miriam de Sousa, SANTOS, Nadia Maria Weber. (orgs.). Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em história cultural. Ed. Asterisco, p. 99-122.

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RIDENTI, Marcelo. O fantasma da Revolução Brasileira. SP: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.

SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In: ?

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RevistasRevista Chiclete Tipinhos Inúteis n.3. São Paulo: Circo/Sampa.Revista Chiclete Tipinhos Inúteis n.6. São Paulo: Circo/Sampa.Revista Chiclete Tipinhos Inúteis n.10. São Paulo: Circo/Sampa.Revista Antologia Chiclete com Banana. n. 1. São Paulo: Sampa/Devir.

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A abordagem do movimento “Mascarenhas, meu amor” pela imprensa de Juiz de Fora

Mateus da Rocha Reis

O objetivo do presente artigo é analisar a abordagem pela imprensa de Juiz de Fora do movimento “Mascarenhas, meu amor” ocorrido no ano de 1983. Ao analisar a cobertura dada pela mídia impressa foram analisados os jornais Diário Mercantil e Tribuna de Minas ambos pesquisados no Arquivo Histórico da Prefeitura de Juiz de Fora e setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes.

A cidade de Juiz de Fora nos anos 80 presenciava uma grande produção cultural envolvendo diversas classes artísticas como atores de teatro, grupos musicais, poetas, pintores que produziam a nível local e nacional e que reivindicavam um espaço na cidade para abrigar toda a classe artística. A falta de um espaço impedia o desenvolvimento da produção cultural:

“Ao fazer uma análise crítica da virada cultural da cidade no ano de 1982, muita coisa deveria ser levada em conta: as dificuldades que cada setor artístico encontra no decorrer de suas produções, o apoio – ou falta de – por parte das autoridades competentes; o retorno ou “feedback” por parte do público – os maiores interessados160”

Pretendendo solucionar esse problema, os artistas iniciaram uma campanha para a utilização da antiga fábrica da Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas. Criada no ano de 1888 por Bernardo Mascarenhas, a fábrica representava o símbolo do desenvolvimento industrial de Juiz de Fora ao produzir zeferins e brins de algodão e linho161:

“[...] foi com Bernardo Mascarenhas, [...] com o objetivo de aqui instalar a sua fábrica e explorar o serviço de iluminação pública, foi que este setor da cidade tomou impulso e desenvolveu-se.162”

A fábrica apresentava um amplo espaço e estava abandonada desde o encerramento de suas atividades ao falir sendo suas instalações repartidas entre a União e ao Estado:

“-Atualmente, o prédio se encontra em lastimável estado de abandono. Toda aquela área de aproximadamente 10 mil metros quadrados, sem uso nenhum. É urgente recuperá-lo, resgatando-o para uma utilização que será plenamente voltada para a coletividade.163”

160 Jornal Diário Mercantil: 02 de janeiro de 1983. Matéria intitulada: “Manifestações culturais: a difícil (vida fácil) do ser artista.”161 PASSAGLIA, Luiz Alberto do Prado. A preservação do patrimônio histórico de Juiz de Fora: medidas iniciais. Edição: Prefeitura de Juiz de Fora. p. 44.162 PASSAGLIA, Luiz Alberto do Prado. A preservação do patrimônio histórico de Juiz de Fora: medidas iniciais. Edição: Prefeitura de Juiz de Fora. p. 47.163 Jornal Tribuna de Minas: 29 de maio de 1983. Matéria intitulada “No Calçadão, ontem, uma festa cultural em apoio à Mascarenhas.”

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No ano de 1982, é decretado o tombamento da fábrica pelo prefeito Mello Reis:

“Segundo o decreto do Prefeito, a antiga Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas representa no, quadro geral do processo de industrialização, “um referencial significativo do desenvolvimento do núcleo histórico de Juiz de Fora164’’.”

Após falir e ficar abandonada, a classe artística de Juiz de Fora inicia um movimento chamado “Mascarenhas, meu amor” com o intuito de abrigar todos os grupos culturais de Juiz de Fora e resgatar a memória de Bernardo Mascarenhas pela sua importância histórica ao ser o pioneiro no desenvolvimento industrial da cidade. O movimento contou com a participação de jornalistas, artistas, poetas, escritores, pintores, músicos que pretendiam mobilizar a comunidade para a importância de se criar um espaço cultural na cidade. Foram várias as manifestações nas ruas da cidade para mostrar ao público a importância dessa campanha:

“Quem passava ontem pela rua Halfeld, parava para observar a movimentação de vários grupos e artistas da cidade em prol da transformação da antiga fábrica Bernardo Mascarenhas em um centro cultural. Megafone, distribuição de panfleto “Mascarenhas, meu amor”, tinta para as crianças pintar e muita gente, cada uma com uma opinião165.”

O movimento se mostrava articulado realizando reuniões com representantes do poder público, debates na universidade, espalhando panfletos pelas ruas, carta-programa no qual foi entregue propostas ao então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves para tentar adquirir a parte que pertencia ao Estado e até mesmo uma música:

“Masca, masca, masca, Mascarenhas/Mascarenhas meu amor/Masca, masca, masca, mascarenhas/mascarenhas a todo o vapor./Primeiro a história/o ciclo industrial/agora a vanguarda/a era espacial./ Te cuida Mascarenhas/pois vou fazer.../um lindo centro cultural166.”

Mesmo a luta ganhando repercussão nacional, cabe destacar as opiniões dos leitores e as reportagens de ambos os jornais Diário Mercantil e Tribuna de Minas assim como a ideia de cultura daqueles que presenciaram o movimento. Um exemplo é uma opinião de um anônimo publicada no Tribuna de Minas no dia 13 de maio intitulada “Visão intelectual”:

“O barulho que alguns grupos intelectuais de Juiz de Fora estão fazendo em torno da velha fábrica Bernardo Mascarenhas [...] só se entende em períodos economicamente saudáveis. O que está se pedindo de uma cidade que não tem recursos sequer para recuperar uma rua, chega a ser excessivo, quando não imprudente167.”

164 Jornal Diário Mercantil: 22 de janeiro de 1983. Matéria intitulada “Prefeito decreta tombamento de quatro prédios.”165 Jornal Diário Mercantil: 29 de maio de 1983. Matéria intitulada “Artistas fazem movimento pela B. Mascarenhas”166 Jornal Tribuna de Minas: 29 de maio de 1983. Matéria intitulada “No Calçadão, ontem, uma festa cultural em apoio à Mascarenhas.”167 Jornal Tribuna de Minas: 13 de maio de 1983. Matéria intitulada “Visão Intelectual.”

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A cidade naquele momento, segundo o autor carecia de alguns recursos como a falta de saneamento básico que deveriam ter investimentos para sanar esses problemas e não investir em uma fábrica para ser um Centro Cultural:

“Acredita-se, entretanto, que este não é o tempo para investir eventuais reservas municipais em adaptações de uma velha fábrica, enquanto nos bairros mais pobres a falta de saneamento básico continua provocando doenças e mortes de crianças. [...] que este movimento “pró-Bernardo Mascarenhas” seja considerado uma semente, que deverá germinar apenas em seu devido tempo. Agora, é época de outros tipos de realizações, de outros tipos de benefícios que possam ser traduzidos em melhores dias para toda uma população marginalizada e que há anos amarga o absoluto abandono168.”

Opinião semelhante é encontrada no jornal Diário Mercantil que ao abordar as pessoas na rua perguntava o que achava do movimento. Esse relato foi dado foi dado no mesmo dia da manifestação e distribuição de panfletos na rua Halfeld, como já citado anteriormente:

“a Mascarenhas devia continuar como fábrica, a gente está precisando de mais empregos, e não de cultura, neste município cheio de pobreza169.”

O que percebemos nesses trechos são opiniões contrárias ao movimento expressas por esses leitores abordados pelos jornais. Esses relatos mostram a falta de conhecimento em cultura, como se a cultura não gerasse emprego para a cidade e até mesmo a relação do indivíduo com a comunidade ao se mostrar contrário ao movimento pela preservação e o direito a memória coletiva ao tentar resgatar a imagem de Bernardo Mascarenhas.

Vale notar os grandes destaques dado pelo Diário Mercantil sobre o movimento e da preocupação com o patrimônio em Juiz de Fora. No Diário Mercantil, por exemplo, na edição de 25 de junho pedia um manifesto aos participantes do movimento, já na edição de 17 de julho foi publicada uma longa entrevista com os líderes, intitulada “Centro de Criação Mascarenhas: Quando é? Quando é?170”, além de reportagens especiais sobre a história de Bernardo Mascarenhas e a sua fábrica. É no mês de julho, inclusive que o movimento atinge repercussão nacional. Vários artistas fizeram uma passeata no dia 30 de julho como o objetivo de “fazer as pessoas avaliarem as transformações sofridas pela cidade”.

“O evento contou com a participação de escritores Rubem Fonseca, Rachel Jardim e Marina Colassantti; o poeta Affonso Romano de Sant’ Anna e os artistas plásticos Carlos e Fani Bracher e João Guimarães Vieira, além do deputado João Batista dos Mares Guia, presidente da Comissão do Patrimônio Histórico da Assembléia Legislativa171.”

168 Jornal Tribuna de Minas: 13 de maio de 1983. Matéria intitulada “Visão Intelectual.”169 Jornal Diário Mercantil: 29 de maio de 1983. Matéria intitulada “Artistas fazem movimento pela B. Mascarenhas”170 Jornal Diário Mercantil: 17 de julho de 1983. Matéria intitulada “Centro de Criação Mascarenhas: Quando é? Quando é?”171 Jornal Diário Mercantil: 31 de julho de 1983. Matéria intitulada: “Cerca de 800 pessoas na passeata pró-Mascarenhas.”

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A respeito das diferentes opiniões, pretendo destacar uma intitulada “O Bem Cultural” publicada no Diário Mercantil em janeiro. Não há menção ao movimento, mas acredito que mostra o perfil do jornal, mesmo a cidade enfrentado diversos problemas sociais, se mostrava preocupada com a questão da cultura e do patrimônio:

“Um teatro, para um povo é, tão importante como uma enorme galeria de águas pluviais, levar música para o parque é missão tão séria para aplicar bem os impostos e implantar indústrias: o apoio ao maestro da banda é quando o administrador olha para a cidade como uma comunidade que necessita tanto de bens materiais como do exército do espírito, uma tarefa tão séria como cuidar da saúde, como abrir escola172.”

Ambos os jornais, abordaram o movimento “Mascarenhas, meu amor” enfatizando a importância desse movimento para a cidade de Juiz de Fora e divulgando as opiniões contrárias a essa campanha. Inclusive o jornal Tribuna de Minas, divulgou nomes que eram favoráveis a criação de um Centro Cultural. O que pretendia discutir neste artigo, é a abordagem da mídia no movimento, cabe ressaltar que esse é um trabalho ainda em andamento, pois é preciso estudar melhor esse movimento dentro do contexto local quanto nacional, o conceito de cultura dos participantes e a questão da memória e do patrimônio.

Refêrencias

Obras bibliográficas

NICOLINE, Humberto. JF anos 80: fotografias. Juiz de Fora: Funalfa, 2009. Este livro contém fotos sobre o movimento.

PASSAGLIA, Luiz Alberto do Prado. A preservação do patrimônio histórico de Juiz de Fora: medias iniciais. Edição: Prefeitura de Juiz de Fora.

Fontes Periódicas

DIÁRIO MERCANTIL - Juiz de Fora. 1983. Semanal

Edições: 22/01/1983, 23/04/1983, 04/05/1983, 05/05/1983, 25/05/1983, 27/05/1983, 29/05/1983, 31/05/1983, 04/06/1983, 05/06/1983, 25/06/1983, 12/07/1983, 15/07/1983, 17/03/1983, 31/07/1983, 31/07/1983, 13/09/1983, 14/09/1983, 28/09/1983, 07/10/1983, 07/10/1983, 22/10/1983, 06/11/1983.

172 Jornal Diário Mercantil: 23 de janeiro de 1983. Matéria intitulada “O Bem Cultural”

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TRIBUNA DE MINAS – Juiz de Fora. 1983. Semanal

Edições: 01/01/1983, 08/02/1983, 20/02/1983, 12/03/1983, 17/04/1983, 23/04/1983, 24/04/1983, 29/04/1983, 30/04/1983, 03/05/1983, 04/05/1983, 13/05/1983, 25/05/1983, 27/05/1983, 29/05/1983, 09/06/1983, 02/08/1983, 12/08/1983, 27/08/1983, 30/08/1983.

Fontes Arquivos

Arquivo Histórico da Prefeitura de Juiz de Fora

Biblioteca Municipal Murilo Mendes – Setor de Memória

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O resgate da memória afrodescendente e o espaço escolar dos alunos da Rua Nova de Viçosa – MG: uma possibilidade de efetivação da Lei nº. 10.639

Núbia Bastos Reis

Em janeiro de 2003 foi sancionada a Lei nº. 10.639 que torna obrigatório o ensino da História e Cultura da África e Afrodescendentes nos estabelecimentos de ensino em todo país. As dificuldades de execução de tal lei ainda se fazem presentes na prática escolar, levantando discussões e debates sobre a temática em vários âmbitos sociais. A proposta que é discutida neste trabalho é de associar a pesquisa que vem se desenvolvendo na Rua Nova173, bairro do município de Viçosa – MG, aos saberes presente no espaço escolar que atendem aos moradores desta localidade. O trabalho situa-se no campo da História sócio cultural, utilizando-se como metodologia a história oral, pesquisa documental e intervenção pedagógica. As fontes para o desenvolvimento deste amparam-se em relatos e entrevistas realizadas com moradores da localidade, pesquisa em Arquivos Públicos do município e dados do IBGE. A proposta a ser desenvolvida e explicitada neste trabalho, pretende compartilhar experiências que contribuam para a área das Ciências Humanas, uma vez que envolvem questões voltadas para campos da história, cultura, sociedade e ensino.

Segundo relatos registrados em entrevistas com os moradores da localidade, esta teria surgido de um processo de doação de terras feita a uma ex-escrava. Está por sua vez repassou as suas terras aos seus descendentes, que as dividiu com as futuras gerações. O núcleo familiar foi se expandindo e permanecendo quase que totalmente na mesma localidade. Porém, sobre a doação formal de terras ainda não se tem certeza da oficialização ou não desta. Em 1983, o poder público municipal174 regulamentou a situação dos moradores, por meio da documentação que lhes garantiam direitos sobre a propriedade.

A primeira parte do trabalho realizada foi analisar, através de coleta informal de dados com a comunidade, o perfil desta por critérios como: conhecimento sobre seu histórico, faixa etária, escolaridade, religiosidade, práticas culturais, entre outros questionamentos. Essa coleta de dados foi realizada nos domicílios dos moradores por meio de um questionário de caráter sócio cultural. Por ser uma comunidade pequena foi possível ir a quase todos os domicílios e através deste é possível identificar detalhes da realidade desta comunidade por meio de índices comparativos.

De posse destes dados é possível indicar informações mais precisas sobre a comunidade como: é composta por 38 residências, destas cinco não tem laços de

173 Pesquisa em desenvolvimento realizada pela discente Núbia Bastos Reis (Matricula – 53748) para a conclusão do Bacharelado em História na Universidade Federal de Viçosa - MG.174 Fonte disponibilizada no Arquivo da Prefeitura Municipal de Viçosa – MG.

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parentesco com o núcleo familiar de formação. O total de moradores das casas visitados é de 119, sendo que, 40,3 % são do sexo masculino e 59,6 % e do sexo feminino. Deste total, 36 são estudantes que se distribuem nas instituições de ensino público e particular do município de Viçosa da seguinte forma: 75% são alunos do Ensino Fundamental, 8,3 % são alunos do Ensino Médio, 2,7 % Escola Técnica, 13,8 % cursam o Ensino Superior e 2,7 % cursam a Pós-Graduação.

Por meio destes índices é aceitável intervir nos espaços escolas, primeiramente analisando as práticas pedagógicas realizadas nas escolas, mais especificamente nas salas de aula em que os alunos da Rua Nova estudam. Priorizando a análise dos conteúdos que envolvem práticas culturais e sociais desenvolvidas em sala de aula do Ensino Fundamental, dentro de uma proposta de interdisciplinaridade.

A partir da análise das práticas exercidas nas escolas, se estas incluem os estudos étnicos e culturais como propõe a Lei nº. 10.639 ou não? Com uma visão desta análise é possível intervir nas salas de aula, que atendem membros de tal comunidade, e fazer deste, um espaço que proferi a cultura oriunda da afordescendencia dos integrantes da Rua Nova e/ou práticas afrobrasileiras compartilhadas pela sociedade.

O resgate e a valorização da memória deste grupo que mantêm o seu legado perpetuado pela prática de atividades culturais e/ou oralidade a várias gerações, bem como, de afrodescendentes que também freqüentam os locais de ensino, torna-se uma proposta de alternativa de ensino condizente com a realidade e associada a uma discussão mais ampla sobre a temática. A associação de tais conhecimentos que identificam as características, identitárias, culturais que (re) significam a história afro, a memória ligada a ancestralidade familiar e territorial, poderá se tornar, no contexto escolar uma intervenção pedagógica que concretiza a Lei nº. 10.639 e contribui de forma significativa para questões sobre estudos étnicos, sociais e culturais.

Dentro de tal temática de discussões a historiografia nos apresenta uma série de contribuições significativas que colaboram para o sansão de tal lei, bem como os questionamentos advindos desta. O trabalho tem como indicador associar o debate acadêmico e social, o conhecimento produzido na pesquisa em desenvolvimento na comunidade com as práticas pedagógicas realizadas nos espaços escolares. A partir desta perspectiva a escola torna-se um campo de debate e questionamento sobre a realidade, história e cultura da localidade. Contribuindo para a formação de um aluno crítico, consciente e atuante no seu meio social.

A realização deste trabalho só é possível através de uma escolha de pesquisa que propicie arcabouço teórico e metodológico, que neste foi selecionado a história oral que aqui é utilizada a definição de Schwarztein que afirma que história ora:

‘‘... Se trata de um método que crea sus próprios documentos, documentos que son por definicion diálogos explícitos sobre la memória, com el entrevistado triangulando entre lãs experiências pasadas y el contexto presente y cultural em el que se recuerda.’’ (SCHWARZTEIN, Dora: 2001)

É a partir dessa triangulação de experiências associada a pesquisa documental, que se pode reunir evidências sobre os integrantes desta comunidade. Tentado entender

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a constituição de cultura, que neste trabalho segue uma definição antropológica que afirma uma relação do homem e o significado de cultura, em que Geertz defende:

‘‘...que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como ciência interpretativa, à procura do significado.’’ (GEERTZ, Clifford: 2008)

A conceituação antropológica traz um questionamento: até que ponto as pessoas, ou comunidade escolar, interpretam, (re) significam a história da Rua Nova, em âmbito social, escolar e cultural. Outro questionamento é sobre a definição de identidade, que segundo o teórico cultural Hall, por um viés sociológico, está pode ser entendida como:

‘‘...a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‘‘interação’’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘‘eu real’’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘‘exteriores’’ e as identidades que esses mundos oferecem. ’’ (HALL, Stuart: 2004)

Através desta conceitualização a identidade pode associa-se a oralidade

perpetuada e difundida socialmente que é possível por meio da (re) memória que pode ser transposta do campo da cultura oral para os padrões da cultura letrada. Não fazendo parâmetros de valores entre uma e outra, mas associando tais conhecimentos que objetivam o enriquecimento as áreas de estudos sobre cultura, sociedade e história. Assim, a memória ou rememoração é conceitualizada pela historiografia como:

‘‘... a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si... Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essenciais de uma pessoa ou de um grupo. ’’ (POLLACK, Michael: 1992)

‘‘A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente a história, uma representação do passado. ’’ (NORA, Pierre, 1987)

Portanto, a busca desta memória ‘‘restrita’’ a um núcleo familiar como um elemento constituinte e representante de uma identidade ligada a afrodescendencia, ancestralidade e territoriedade, pode torna-se uma fonte de pesquisa e questionamentos sobre a perpetuação das tradições, cultura, identidade e valores que herdamos socialmente, rupturas, entre outros, quando associamos a história desta comunidade a um contexto maior. A historiografia interpreta tal tendência de pesquisa como relações

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entre os campos da micro-história e da macro-história. O debate no espaço escolar poderá estabelecer essa relação entre estes campos da pesquisa histórica.

É importante ressaltar que o que se pretende desenvolver nas salas de aula está em consonância com as proposta apresentada nos Parâmetros Curriculares Nacionais, que indicam para o terceiro Ciclo do Ensino Fundamental a história da localidade e do cotidiano, em que apontam critérios e domínios que os alunos deverão discutir, questionar e associar a sua realidade, como:

‘‘...Reconhecer características da cultura contemporânea atual e suas relações com a História mundial nos últimos séculos. Este critério pretende avaliar se o aluno identifica, em perspectiva histórica, a sua vivência cultural, cotidiana, e se a relaciona com o sistema dominante e seus valores. ’’(BRASIL: 1998)

As propostas de intervenção partindo do pressuposto dos Parâmetros Curriculares Nacionais permitem utilizar estratégias de trabalho em que possibilite o aluno interagir com a sua realidade por meio de entrevistas, análise de hábitos e costumes, análise fotográfica, práticas culturais, semelhanças entre povos, entre outras. É importante observar que o cronograma para a realização da proposta de trabalho apresentada neste, depende da escolha de intervenção por meio de fontes e metodologias, que se realizará em cada sala de aula. Portanto, não foi explicitado neste, por se tratar de um trabalho em desenvolvimento. Após a coleta de informações (citada no início do parágrafo); poderá propor um diálogo em que seja possível verificar as percepções e definições que os alunos tem das ações desenvolvidas em um meio social.

De posse desta análise inicial, questionar os valores que: objetos, tradição, costumes, crenças, relatos de vidas, entre outros, tem para um grupo, uma comunidade e uma sociedade. E como podemos interagir com diferentes culturas respeitando suas peculiaridades e interpretando os seus valores, significados e semelhanças com outras. Os alunos também poderão identificar mudanças ou rupturas que ocorrem nos espaços sociais pesquisados. Discutir as formas que os componentes destas comunidades fazem para manter seus traços culturais e identitários.

Nesta etapa de intervenção os alunos poderão fazer levantamento juntamente com seus grupos familiares e depois em sala de aula comparar as características que cada um compartilha com seu núcleo familiar e social.

Pode se usar como fonte para as intervenções, discussões e o desenvolvimento desta proposta de trabalho o uso de fotografias, análise etimologia das palavras de origem afro, músicas, características alimentícia, literatura, religião, atividades culturais, entre outras. Enfatizando neste as peculiaridades advindas da cultura Africana, é que, por processo histórico foi incorporada a outras culturas que aqui permaneceram. Estabelecendo uma relação de identificação, aceitação e/ou rejeição, modificações temporais e o resgate destas características por meio da pesquisa e do diálogo.

Toda atividade desenvolvida poderá ser dividida em quatro etapas:

• Pesquisa temática realizada pelos alunos (desenvolvida com seu núcleo familiar ou social);

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• Exposição das informações e dialógo sobre a pesquisa temática;• Atividade de registro (os alunos transcrevem e/ou realizam atividades

sobre as informações dos conhecimentos adquiridos através da pesquisa);• Parte avaliativa em que constará do relato de todas as etapas desenvolvidas

(realizada pelo professor ou pesquisador).

Considerações finais

Portanto, a pesquisa associada ao espaço escolar torna-se uma alternativa de ensino, uma experiência que parte da localidade na tentativa de resgate da história de uma comunidade, relacionando esta a uma esfera maior de debates étnicos, sociais e culturais. A proposta apresentada neste, propõe a articulação de saberes alheios aos manuais didáticos. Tendo como iniciativa os conteúdos curriculares relacionados a uma proposta de alternativa de aula com base na Lei nº. 10.639, que pretende levantar uma discussão sobre cultura, identidade, memória, oralidade, diversidade étnica, entre outras em salas do Ensino Fundamental. Vale ressaltar que o trabalho enfatiza a cultura afro, porém, dentro de um contexto de pluralidade cultural. Resgatando valores e identificando características dos afrodescendentes que por muito tempo foram silenciadas e/ou tiveram pouca visibilidade. Sendo assim, o trabalho se insere numa proposta de contribuição para a área das Ciências Humanas.

BibliografiaGEERTZ, Clifford, A interpretação das culturas. 1ª ed., 13. reimpr., Rio de Janeiro: LTC, 2008.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu d Silva e Guacira Lopes Louro 9ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC / SEF, 1998.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996.NORA, Pirre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projetos História. São Paulo: PUC-SP, 1987.

POLLACK, Michael. ‘‘Memória e Identidade Social’’. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5. nº. 10, 1992.

SCHWARZTEIN, Dora, História Oral, memória e histórias traumáticas. In: História Oral – Revista da Associação Brasileira de História Oral, nº. 4, 2001.

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Patrimônio histórico e legislação de tombamentoPhelipe Pereira do Prado Gouveia

Introdução

Atualmente o Brasil vive um momento de grande preocupação em se preservar seu patrimônio artístico e cultural. Soa-se aos quatro cantos do país, que cuidar de algo que faz parte da cultura e identidade do povo é importante. Um grande número de bens móveis e imóveis vem sendo tombados, o que mostra um amplo interesse do poder público em atender as demandas populares pela preservação de valores culturais. Por isso mesmo, faz- se necessário tornar claro os principais critérios e procedimentos para o tombamento de bens, no nosso caso em questão, os materiais. Para tanto, faremos uma junção de requisitos técnicos e jurídicos. É importante ressaltar que tais requisitos são complementares, uma vez que toda lei, parte de um pressuposto de aceitação popular, ou seja, existe um grande vínculo entre o que deve se tornar lei, e o que exatamente a eventual lei irá determinar. No que tange a legislação de Tombamento, analisaremos o Decreto - lei número 25, de 30 de novembro de 1937.

Nosso intuito primordial é mostrar que o Ato Administrativo de Tombamento é algo bastante delicado, levando-se em conta, que apesar dos benefícios trazidos por ele, como por exemplo, a preservação de um bem, ele trás limitações ao uso do direito de propriedade. Portanto, é necessário que se esclareça tanto os critérios técnicos quanto os jurídicos, afim de que se torne claro e, de preferência, ao alcance de uma população leiga em relação ao assunto.

Qual seria a intenção de se difundir em meios populares os requisitos para uma ação de tombamento? Fazer com que o povo tenha factualmente conhecimento do que é a representação do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em sua esfera jurídica, ou seja, que o povo saiba que, só se reconhece um determinado bem como patrimônio quando ele se torna parte integrante de um dos quatro livros do Tombo. Muitas vezes, o senso comum pratica algo que, podemos chamar como banalização do tombamento, querendo preservar qualquer bem, a qualquer custo. Esta banalização é algo sério, já que o tombamento, apesar de não excluir, limita o direito de propriedade. A questão é interessante, e pode se tornar mais ainda, se mal explicada. A forma com a qual foi posta, parece que o senso comum é o responsável por ações de tombamento mal sucedidas. Se olharmos por um lado, acaba sendo, vejamos:

Os órgãos públicos não deixam claro para a população quais são os quesitos que eles se utilizam para tombar um determinado imóvel, entretanto, precisam de uma “aprovação” posterior para saberem se o tombamento foi bem sucedido. Essa “aprovação” se dará por meio da repercussão popular em relação a sua opinião sobre o bem tombado, já que o tombamento pressupõe a supremacia do interesse público sobre o privado. Portanto, não há razão em se tombar um bem, senão por uma demanda popular de preservação da cultura e identidade.

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Mesmo que o povo tenha estado alheio a uma determinada ação de tombamento, no final da ação, quando ela já se tornar efetiva, ele se posicionará a favor ou contra. Nossa preocupação é justamente o excesso de posicionamentos a favor que temos assistido ultimamente. Uma grande banalização do tombamento faz com que as ações políticas de preservação sejam aplaudidas muitas vezes sem mérito, uma vez que o povo se satisfaz com quase toda ação em que um prédio antigo é tombado.

Por outro lado, também precisamos esclarecer os órgãos esclarecidos da importância em se preservar os bens culturais. Programas de incentivo ao tombamento vêm sendo realizados, justamente pela postura negligente de órgãos responsáveis pela preservação do Patrimônio Cultural e Artístico Nacional. Em determinadas situações, há uma supressão de outros interesses, econômicos e políticos, sobre os interesses públicos, e se passa por cima da identidade do povo.

Requisitos Técnicos

Muitas vezes, decidir se um imóvel é ou não digno de tombamento é algo restrito a Arquitetura. Com êxito, esse grupo detém conhecimento sobre arte e construções civis, ao longo do tempo. Certo é, que os requisitos para se tombar um bem, estão implícitos um no outro, pelo menos no que se refere aos conceitos de artístico, histórico e significativo, analisados pelo historiador Haroldo Leitão Camargo, em seu artigo Conceitos de Patrimônio: técnica ou ideologia? . Portanto, a própria presença de um historiador discutindo a questão, já evidencia a grandiosidade do tema, não podendo ficar restrito a apenas uma área do saber. Arquitetura, História, Ciências Sociais, Antropologia, Direito e outras áreas, são responsáveis pelo levantamento de dados, e pela conseqüente identificação da relevância social por preservação,bem como do que se encaixa ou não no perfil de algo a ser tombado. No caso de bens materiais imóveis, a arquitetura é responsável pela emissão de laudos que atribuem valor a um determinado bem, no que se refere a sua importância em parâmetro específico dentro da História da Arquitetura Nacional, Regional ou Local, enquanto parte integrante de um sistema artístico.

Em relação ao critério artístico, entende-se que um eventual imóvel a ser tombado, deve-se se enquadrar em algum estilo estético existente na tradição arquitetônica de uma determinada localidade, região ou país em algum período de sua história. Portanto, há que se levantar a relevância da representação deste imóvel em seu contexto, identificando-o em algum perfil tradicional. Isso necessariamente deixa posto, que o contrário disso, significaria um provável insucesso da ação de tombamento.

Sobre o critério histórico, entende-se que o valor de um determinado bem a ser tombado vem se mantendo enquanto identidade dos grupos que compõe um determinado cenário social com o passar dos tempos. O fato de uma determinada política pública ser carregada ideologicamente pode influir que se eleja como identidade um determinado bem em uma determinada época, e assim, a população pode assimilá-lo como referencial cultural. Também por isso, o critério histórico é

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empregado. É claro que não podemos ser reducionistas e classificarmos a percepção do povo como fruto de uma esfera dominante, já que a identidade é do próprio povo, constituindo um mal estar se rotularmo-la como fruto de uma imposição política. Também não podemos fechar os olhos para as ideologias governamentais.

O fato de um mesmo bem ser representação cultural de um povo por varias temporalidades é um forte exemplo de sua relevância. Sendo identidade por ação política ou por processo de assimilação social natural, quanto mais durável é o período de identificação cultural do povo com determinado bem, maior é a sua relevância para os órgãos de defesa do patrimônio histórico.

Como havíamos dito, os critérios estão implícitos em si, o terceiro critério, chamado de significativo, reflete parte integrante dos outros. Quando um bem é significativo para uma sociedade, entende-se que tanto na esfera da arte quanto na histórica, a cultura como um todo, seja representação do imaginário popular que se tem a respeito de um determinado imóvel.

Portanto, analisando sinteticamente os três quesitos acima, fica claro que as motivações do tombamento devem necessariamente partir de critérios que abrandam os valores do povo. Entende-se por povo a população em geral, independentemente de posicionamento social ou poder aquisitivo.

Procedimentos Jurídicos

O Tombamento é um Ato Administrativo. Portanto função do poder executivo. Buscaremos analisar não só o decreto – lei 25/37, mas também a fonte constitucional. Portanto:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às

manifestações artístico-culturais;§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá

e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

Observando a fonte constitucional, fica claro que os requisitos técnicos levados em conta para real significância de um possível bem a ser tombado se aproximam

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dos itens determinados na constituição. Formas de expressão, modos de criar, fazer e viver, criações cientificas e tecnológicas e manifestações artístico-culturais, são quesitos automaticamente vividos pela sociedade, bem como respaldados pela constituição. Muitas vezes, a tradição existe, mas não é agraciada em forma de lei. Este artigo evidencia que o povo tem direito a cultura, bem como , o povo é quem determina o que é ou não significado de sua cultura. Essa questão se faz abstrata, já que permanece indeterminado o número de pessoas a quem se faz referencia a chamada cultura popular. Afinal de contas, entraríamos em um mérito de discussão da questão da representatividade. Não sendo este o nosso intuito, consideremos que a representação da cultura popular se faz por meio de suas manifestações artísticas e culturais, mesmo que não abarque necessariamente um grande número de pessoas. A representação cultural a qual nos referimos, pode ser classifica sem receios, apenas se, a questão não se constituir algo que venha a denegrir a imagem de diferentes grupos.

Portanto, há que as comunidades, por ordem deste artigo, posicionem-se de forma atenta em relação aos seus próprios interesses de preservação. O item tombamento aparece como um dos meios, e pode ser requerido pela própria comunidade.

O decreto – lei 25, de 30 de novembro de 1937:

CAPÍTULO I

Do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Artigo 1º - Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público,quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

§ 1º - Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o Art. 4º desta lei.

O artigo acima apresentado refere-se ao patrimônio histórico. O artigo 216 da Constituição Federal apresenta o patrimônio cultural, não necessariamente histórico. Portanto, o decreto acima de 1937 faz especificações em relação a bens históricos. Nosso intuito é foca no tombamento, vejamos algumas disposições:

Artigo 6º - O tombamento de coisa pertencente à pessoa natural ou à pessoa jurídica de direito privado se fará voluntária ou compulsoriamente.

Artigo 7º - Proceder-se-á ao tombamento voluntário sempre que o proprietário pedir e a coisa se revestir dos requisitos necessários para constituir parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional a juízo do Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou sempre que o mesmo proprietário anuir, por escrito, à notificação, que se lhe fizer, para inscrição da coisa em qualquer dos Livros do Tombo.

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Artigo 8º - Proceder-se-á ao tombamento compulsório quando o proprietário se recusar a anuir à inscrição da coisa.

Os artigos acima deixam clara a delicadeza da questão. O fato de o tombamento também poder ocorrer de forma compulsória é a evidencia de uma preocupação do legislador em relação a uma possível discordância do proprietário em relação à eminente limitação de seu direito de propriedade. A lei também respalda o proprietário em relação à possibilidade de recorrer da ação. Mesmo assim, a própria ação de recurso já acontece na forma de um tombamento provisório.

Portanto entramos agora em uma questão, o direito de propriedade:Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXII - é garantido o direito de propriedade;XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade

ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

O direito de propriedade muitas vezes é tido de uma forma totalmente individualista, o que é contrário as perspectivas da nossa constituição. Há que sempre ter em mente a função social da propriedade. Caso ela não a fosse, necessariamente se fariam inúteis as algumas disposições do artigo 216 da Constituição Federal, quando se refere aos atos de tombamento e desapropriação. É também notório que, a lei não imprime o interesse público ao interesse individual de forma a penalizá-lo. Deve sempre se levar em conta, a possibilidade por exemplo, da função econômica da propriedade, devendo atender as necessidades comercias do proprietário, a fim de que ele usufrua de suas possibilidades econômicas, dentro é claro, da função social da propriedade.

Portanto, é essa função social que constitui a essência dos atos de tombamento. É o fato de a propriedade de um individua constituir parte integrante da identidade social do povo. O fato de eu poder enxergar um determinado imóvel e poder apreciar suas formas é a prática do direito social de cultura. Respaldado pela Constituição Federal, o povo tem direito de que sejam preservados bens que lhe são importantes enquanto objetos de identificação cultural. A não preservação de um determinado bem, causando-lhe deterioração ou demolição, constitui um prejuízo cultural para a identidade do povo.

Conclusões

Após compreendermos a junção de quesitos técnicos com os jurídicos, observamos grande proximidade entre eles, apesar de suas diferentes essências. Enquanto o primeiro evidencia a percepção atual de técnicos sobre o processo de

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tombamento, o segundo é uma expressão formal do que a sociedade espera em relação a procedimentos de preservação e tombamento. As leis existentes, de acordo com a maioria das doutrinas de Direito, são as formas de expressão de conceitos como cultura e moral. É como se o procedimento de formalização partisse de uma demanda social, o que muitas vezes é o que acontece. Pelo menos em relação ao decreto de 1937 e ao artigo 216 da Constituição Federal de 1988, nota-se uma boa assimilação popular em relação às determinações. O que muitas vezes gera insatisfação é justamente a postura adotada pelos órgãos de preservação. Essa postura pode ser de desconhecimento em relação aos critérios aqui apresentados, ou mesmo negligência em relação a sua aplicação. O Ato de Tombamento, como ato administrativo do poder executivo, deve sempre partir de pressupostos discricionários (a flexibilidade para aplicação da lei), bem como razoabilidade, que está ligada a real relevância de uma ação de tombamento ou destombamento.

Portanto, é necessário que se faça um equilíbrio em relação as ações de preservação. Se por um lado observamos uma banalização do tombamento que factualmente tomba e limita o direito de propriedade de um individuo sem que seu imóvel realmente seja relevante para o interesse público, por outro, assistimos a ações claramente desrespeitosas em relação à descaracterização da identidade do povo pela aplicação de interesses econômicos e políticos que, provavelmente poderiam em um grande número de vezes serem alterados, afim de que se preserve a cultura. O que é polêmico é quando uma ação de destombamento é feita em prol de outro interesse público, como por exemplo, a abertura de uma estrada, construção de hospitais e escolas. Nesses casos, há sempre que ser prudente em relação à permissão discricionária e a razoabilidade de ambos os interesses públicos.

Necessariamente, dentre os efeitos do tombamento, a limitação do direito de propriedade faz com que proprietário seja proibido de realizar reformas que descaracterizam de alguma forma o bem sem a prévia autorização do órgão responsável pela preservação. É claro que, a permissão para alteração das características originais do bem será feita mediante a uma argumentação plausível, que, por exemplo, exponha a real necessidade da modificação, desde que esta traga reais benefícios para o uso do bem. Se a função social da propriedade também abarca a permissão de que o proprietário possa usufruir de seu imóvel a fim de adquirir renda econômica, pelo menos para a subsistência de sua família, alterações poderão ser feitas levando em conta as modificações advindas com a modernidade e as demandas do mercado. Entretanto, há sempre que se manter dentro de possibilidades máximas as características originais do bem.

Enfim, sabemos que o tombamento é um direito do povo, e existe para o seu bem. A limitação do direito de propriedade está formalmente constituída em prol da função social e do interesse público. Portanto, toda e qualquer ação de tombamento que se restrinja a interesses privados de uma minoria, é descaracterizada dos pressupostos constitucionais. Faz-se necessário uma ampla divulgação e conscientização dos responsáveis pela preservação e também do povo, o público, o principal beneficiário dos processos de tombamento, já que se trata de algo sério, não podendo ser realizado

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de forma desordenada, principalmente tratando-se de gastos do dinheiro público para a preservação da cultura e identidade do povo.

Referências

CASTRO, Sonia Rabello de. O estado na preservação de bens culturais: o tombamento. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.

MAZIVIERO, Maria Carolina. Alois Riegl e o direito a preservação de outras memórias. www.preac.unicamp.br/memoria/Maria Carolina Maziviero. completo.pdf

CAMARGO, H.L. Conceitos de patrimônio: técnica ou ideologia?História e-história. IFHC/Unicamp, 26 de abril de 2005.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988/ obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. – 29 ed.atual e ampl.- São Paulo: Saraiva 2002.

Decreto n° 25 de 30 de novembro de 1937. http://portal.iphan.gov.br.

FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 22 ed. São Paulo.Saraiva, 1995.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Admnistrativo. 14ed. Malheiros Editores, 2002.

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O Brasil: Redes e circuitos náutico-mercantis do Império Português no Atlântico Sul durante o

século XVII.

Rayner da Silva Lacerda

Há um consenso na historiografia contemporânea sobre o fato de que Portugal contribuiu para o conhecimento do Atlântico, avançando por este até onde ninguém navegara antes, descobrindo novos mares, novas correntes, novos ventos, além da formação do “descobridor”. Assim, podemos perceber que a contribuição portuguesa para o conhecimento desse oceano abrange mais que apenas o reconhecimento e ocupação das terras que o margeiam.

O Atlântico desempenhou a função de ditar os ritmos do império. Ele exercia influência sobre os modos de governar, as conexões, as atividades mercantis, a migração, os intercâmbios culturais, sem falar no conhecimento de paisagens, povos, faunas, floras, crenças, línguas, doenças, ameaças, gostos e cheiros totalmente estranhos até então. Influenciava até mesmo o modo como os indivíduos se auto-identificavam. Eram as rotas que conectavam todos os pontos no Atlântico português, facilitando o intercâmbio entre a África e a América portuguesa.

Os diversos portos espalhados pelo Atlântico serviram como baluartes para os interesses portugueses, propiciando a Portugal uma oportunidade única de estabalecer vínculos e conexões entre o Velho Mundo e as regiões atlânticas. Através deles, podemos perceber a complexidade das relações permeadas pelo Atlântico, rompendo com a noção de relações triangulares ou quadrilaterais.

Partindo dessa premissa é que temos a noção de que qualquer porto ou região do império “era um participante numa rede comercial múltipla, com ou sem um componente europeu, americano ou africano” (WOOD, 2009). Isso possibilita a inserção de novas discussões e questionamentos, como, por exemplo, o questionamento da afirmação de que a participação africana no comércio atlântico era umbilicalmente relacionada com o tráfico de escravos, dando oportunidade para os historiadores identificarem a diversidade e a complexidade dessa participação como constituinte própria da história da África, bem como do Atlântico.

A questão é que ver este oceano apenas como uma extensão de água diminui e subestima a sua importância. Considerando que o Atlântico rompeu suas próprias orlas e exerceu influência em terra, e mesmo nas áreas cercadas de terra na Europa, na África e na América e sem acesso direto ao mar (BAILYN, 1996: 19-44). Além disso, como sugere Wood, estudar o Atlântico apenas como uma entidade em si mesma é ignorar a realidade de ele constituir parte de um ideário oceânico que engloba todos os oceanos do mundo.

As rotas, redes, povos, culturas, mercadorias, e tramas do Atlântico mantiveram um constante intercâmbio com outros oceanos e contribuíram, seja como receptores

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ou transmissores, à interligação global de comércio e relações sócio-culturais no alvorecer da modernidade (BAILYN, 2005: 3-56). Sendo assim, partilhamos da noção de um Atlântico dinâmico, marcado por um vaivém, por transições, além de vários ritmos de aceleração. “Um mundo onde instituições, mesmo reinos, se formam, reformulam-se de um modo distinto, fragmentam-se, apenas para reaparecerem com uma nova configuração” (WOOD, 2009: 21).

Portanto, é imprescindível que se relacione a importância exercida pelo Atlântico como mediador entre o império português e suas conquistas ultramarinas. Pois, a partir dos estudos que tinham o Atlântico como objeto, é que os historiadores passaram a perceber a dinâmica do império com outras regiões, entendendo o quão fluidas e ativas eram essas relações.

Em decorrência disso, diversos estudos têm analisado os espaços locais do Império português e sua relação com os poderes centrais. A idéia de uma Coroa vista como um corpo singular ou centralizador tem sido substituída na historiografia por um poder central fragmentado em uma arquitetura de poderes, que constroem a noção de uma monarquia corporativa e polissinodal.

Com o incremento de novas noções e perspectivas, a construção da política portuguesa para o ultramar tem sido repensada e revisada. De modo que, ao analisar as relações entre a Coroa e as suas conquistas, seja possível discutir a influência e a participação dos poderes locais. O que abre margem para a inserção de novas interpretações, como o reconhecimento do multiculturalismo, de redes mercantis e sócio-culturais, assim como da interconectividade.

Desse modo, as relações entre os poderes institucionais, as conexões econômico-administrativas, os restritos circuitos de circulação das elites, assim como os fluxos migratórios, são apenas algumas das características que contribuem para que não se possa considerar o império, principalmente o banhado pelo Atlântico, um mero “apêndice” (MONTEIRO, 2009) da monarquia setecentista portuguesa. Inovações como essas no modo de se analisar não só o império ultramarino, mas a própria relação desse com suas posses, foram propostas por historiadores como João Fragoso e Maria de Fátima Silva Golvêa (FRAGOSO; GOLVÊA, 2009) ao incrementarem o conceito de monarquia pluricontinental formulado por Nuno Gonçalo Monteiro.

Este conceito em especial centra-se na ótica de que só há um reino, o de Portugal, dominado por apenas uma nobreza, mas apoiado em diversas conquistas ultramarinas. A Coroa portuguesa detinha um poder central relativamente fraco para exercer alguma influência direta sobre essas possessões, mas poderoso o suficiente para negociar seus interesses e pretensões com esses múltiplos poderes existentes no reino e nos seus devidos territórios conquistados. Sendo composta por um grande conjunto de ordens e instituições jurídico-administrativas que possibilitam o diálogo com as mais diversas áreas conquistadas nos quatro cantos do mundo.

A partir daí podemos perceber também que esse conceito de monarquia pode estabelecer um diálogo com a figura do cavaleiro mercador defendida por Vitorino Magalhães Godinho. Mercador por fora, em suas aspirações e cobiças, e Cavaleiro

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por dentro, no seu modos vivendi. De modo que a monarquia pluricontinental se torna parte de um ideário concreto à medida que há nos mais diversos territórios sob dominação lusitada, indivíduos que buscavam oportunidades de ascensão tanto moral como material. É dentro dessa conjuntura que pôde haver uma aproximação entre a Coroa e os poderes locais instituídos nos seus territórios ultramarinos, fazendo com que os desejos do rei e os interesses de seus particulares pudessem ser preservados e garantidos.

Dentro desse contexto, analisaremos, de forma breve, como se davam as relações náutico-mercantis entre o Brasil setecentista, o império português e as demais regiões unidas pelo Atlântico. Procurando demonstrar que os portos de Salvador e do Rio de Janeiro detinham relações não só com as naus da carreira da Índia, provenientes, ou navegando em direção a Goa e Macau; mas que os brasileiros tomavam a iniciativa no estabelecimento de relações comerciais com povos estrangeiros e com os portos localizados para além do Cabo da Boa Esperança.

Segundo carta do governador geral do Brasil Luís Cézar de Menezes, contida nos documentos avulsos referentes à Capitania da Bahia (AHU_ACL_CU_005, Cx. 6, D. 493.) em dezenove de junho de 1709, chegaram ao porto da Bahia oito naus de guerra inglesa, vindas da Índia e que fizeram escala no dito porto. Dentre as embarcações, uma nau de guerra chamada “Norbich” tinha por comandante o inglês Rob Alec, cuja embarcação era precedida por outra nau de guerra comandada por Jorden Sandys. Uma informação importante contida nesse documento refere-se ao fato do governador enviar ao rei D. João V informações e um relato a respeito da presença inglesa na costa brasileira. Prontificando-se a intensificar a fiscalização para evitar que os ingleses comprassem produtos no porto. Em decorrência desse receio, podemos perceber que os brasileiros detinham um comércio com os estrangeiros, não restringindo seus negócios apenas com a metrópole, mas buscando oportunidades de se relacionarem com os diversos povos que atracavam na costa brasileira. No caso em questão, os ingleses encontravam-se particularmente interessados em adquirir açúcar e tabaco, que provavelmente seriam trocados por mercadorias e especiarias vindas da Índia, local de origem da pequena frota.

Outro documento bastante interessante, contido também nos avulsos da Bahia (AHU_ACL_CU_005, Cx. 2, D. 163.) é uma carta de Bernardo Vieira Ravasco ao rei D. Afonso VI informando sobre o galeão de guerra “Sam Pedro de Alcantara” que aportou no dia 20 de Outubro de 1667 ao porto da Bahia, vindo da Índia. Ao decorrer da carta, o autor sugere diversos locais que a dita nau teria feito escala, dentre eles estão: Índia, Bahia, Pernambuco, Angola e Lisboa. Podemos perceber uma imensa rede mercantil percorrida por essa nau, que esteve nos mais longínquos locais permeados pelo Atlântico. Informando-nos não só de vínculos estabelecidos entre as capitanias brasileiras, mas entre essas e as diversas conquistas ultramarinas portuguesas. Apesar de não constar informações a respeito da carga dessa nau, podemos supor que a mesma transportava as mais diversas mercadorias, principalmente pelo fato de ter percorrido regiões tão distintas culturalmente. Por meio desse documento, é possível ter uma noção

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das diversas redes que compunham o império marítimo português, e que o Brasil e seus habitantes efetivamente participavam e influenciavam na ocorrência desses vínculos.

Também podemos tomar como ponto de partida uma carta enviada pelo governador geral do Brasil Rodrigo da Costa (AHU_ACL_CU_005, Cx. 4, D. 364.), na qual informa a chegada de duas fragatas francesas, uma de nome “O Emphinite” tendo por capitão o francês Langandiene, ambas vindas da China. Uma das naus carregava quatro religiosos, sendo eles matemáticos e boticários. A escala no porto brasileiro deve-se à espera de monção, mas, ao decorrer do documento, percebemos que por permanecerem no Brasil, os franceses acabam interessando-se em negociar mercadorias, em especial açúcar e tabaco, com os moradores locais. Essa carta também nos fornece valiosas informações sobre as conexões feitas entre os comerciantes brasileiros e os estrangeiros, de modo que os produtos oriundos da colônia circulam por todo o globo, chegando até mesmo à Ásia.

Por último, analisamos as cartas do governador geral do Brasil Dom Roberto da Costa (AHU_ACL_CU_005, Cx. 5, D. 410.) que informa ao rei sobre três naus da Índia que chegaram aos portos da Bahia e do Rio de Janeiro. Na Bahia chegaram às naus “Salvador do Mundo e São Diogo” de que era capitão Antonio Mello de Castro e a nau “Nossa Senhora dos Prazeres”, tendo como capitão Antonio Lopez Freire. No Rio de Janeiro, temos a informação de que aportou a nau “Princesa do Céu” tendo como capitão Sebastian de Almeyda. Além disso, na carta são informados outros diversos locais pelos quais as naus teriam passado, não restringindo-se somente à Índia, mas também a locais como Moçambique, Angola e Lisboa. Corroborando novamente, para o fato de que o Brasil constituía-se como um interessante ponto de escala para que os comerciantes reabastecessem suas provisões e negociassem produtos com os povos locais.

Além dos casos citados acima, também temos situações em que naus holandesas, vindas de Angola e de outras regiões, fazem escala no Rio de Janeiro, como visto nos documentos avulsos referentes à capitania do Rio (AHU_ACL_CU_017, Cx. 5, D. 449). Sem falar nos navios castelhanos, vindos de Cádiz, com destino a Buenos Aires (AHU_ACL_CU_017, Cx. 4, D. 386.) que acabam por aportar na costa carioca, seja com a intenção de fazer reparos no navio, ou mesmo a efetuação de trocas e compras dos produtos brasileiros.

Portanto, podemos perceber o nível de complexidade dos vínculos mercantis que existiam dentro do império português. Assim como vínculos sociais, culturais e políticos, visto que os navios abarrotados de mercadorias que circulavam pelas diversas localidades do império, estavam vinculados a teias administrativas e políticas fundadas em redes clientelares portuguesas. E, como mostrado ao longo desse artigo, as redes mercantis eram instituídas entre as capitanias brasileiras e o império português, mas com influências e nexos que percorriam os diversos locais do globo, passando pela África e Ásia.

“Uma rede é compreendida como um conjunto de conexões recorrentes, capazes de alterar ou definir estratégias, bem como o curso dos acontecimentos num dado lugar e

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época” (GOLVÊA; FRAGOSO, 2010). Por meio dessas, criavam-se vínculos estratégicos que conectavam as mais diversas instituições, de modo a instituí-las e fortalecê-las, ao mesmo tempo em que as integravam a poderes centrais que paulatinamente iam se instituindo e se sobrepondo ao conjunto social como um todo.

Em decorrência disso, é importante destacar que a noção de rede não se situa somente no que tange a relações internas, ou seja, entre membros da mesma, mas também em relações externas que os membros desse grupo estabelecem com um vasto conjunto de pessoas e instituições, de modo a alavancar a potencialidade de uma determinada rede. Por meio desse conceito, torna-se cada vez mais clara a questão de como o Império português era caracterizado por um “constante e estável fluxo e refluxo humano” (WOOD, 1998: 101). De modo que não só os quadros superiores da administração, mas indivíduos comuns, comerciantes com objetivo de ascensão econômica e social, estavam continuamente em movimento, estabelecendo uma gama enorme de relações e vínculos, rompendo fronteiras que não se limitavam somente a afinidades territoriais.

É dentro desse contexto que podemos perceber, partindo das concepções de Hausberger (GOUVÊA; FRAGOSO, 2010), como as redes constituíam-se em relações fundamentais para a própria existência social, seja baseada em relações consangüíneas, de amizade ou de um referencial comum, elementos que em conjunto, transformavam-se em um novo sistema que partilhava e reorganizava oportunidades de ascensão moral e material dentro de uma mesma conjuntura que poderia alavancar os mais diversos objetivos, sejam eles comuns ou individuais.

As redes que iam se formando e aproximando determinados grupos, sejam elas instituídas no interior das monarquias ou dos impérios, eram fundamentadas na correlação de interesses e experiências comuns. Era assim, firmadas no usufruto de um sistema de apoio mútuo, que essa mobilização relacional possibilitava e potencializava as diversas redes espalhadas pelo império português. Pode-se dizer que o fator fundamental que definia um conjunto de relações constituídas enquanto rede é justamente o seu caráter constante e recorrente no desenrolar dos nexos que a compõem, bem como na sua capacidade de exercer influência, de intervir, de desenvolver estratégias, de alterar o fluxo e a direção dos acontecimentos em razão de um dado objetivo ou interesse, ou o conjunto de ambos.

Em decorrência disso, como evidenciado ao longo do presente artigo e corroborando com o conceito de um “Império luso-afro-brasileiro nascido do mar” (BOXER, 2002) colocamos em xeque a noção de uma relação unilateral entre Coroa e Colônia. Procuramos demonstrar que o Brasil estava inserido em diversas redes mercantis e sócio-culturais não só com Portugal, mas com um infindável número de regiões e de povos com interesses, ambições e motivações próprias. De modo que todas as relações comerciais e o advento das diversas redes só se tornam possíveis devido à existência de um Atlântico que integra e permeia os locais citados.

Por fim, a noção de um Atlântico crioulo ou um Atlântico Africano merece a nossa atenção, como também é o caso de um Atlântico inglês, francês, português,

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espanhol ou holandês. Pois, a principal característica da Atlantic History (MORGAN; GREENE, 2009: 3-5.) é que predominam as perspectivas do ultramar, e não da metrópole, além dos interesses coloniais, e não só os de Portugal. Foi esse o nosso objetivo ao propor uma discussão que tem por finalidade à compreensão de como se davam as relações entre as possessões ultramarinas portuguesas e o que circula através das redes entre as capitanias brasileiras e entre as mesmas e as diversas partes do império. Procuramos assim, perceber quais as conjunturas, informações, produtos, pessoas e tramas envolvidas nessa relação multicultural entre o Brasil, a Coroa e suas demais possessões, tendo o Atlântico como mediador.

Bibliografia

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BAILYN, Bernard. The Idea of Atlantic History. Itinerario, 20. 1996.

BOXER, Charles. O Império Marítimo Português. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI–XVIII. Tempo. vol. 14 no.27 Niterói 2009.

GOUVÊA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João (Org.). Na Trama das Redes: política e negócios no império português, sécs. XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. A circulação das elites no império dos Bragança (1640-1808): algumas notas. Tempo, Niterói, v.14, n.27, 2009. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042009000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em 16 de Agosto de 2010.

Philip D. Morgan e Jack P. Greene, “Introduction: The Present State of Atlantic History”. In: Atlantic History: A Critical Appraisal. Orgs. Jack P. Greene e Philip D. Morgan. Oxford: Oxford University Press, 2009.

RUSSELL-WOOD, A.J.R.. Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a "Atlantic History". História, Franca, v.28, n.1, 2009. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742009000100002&Ing=pt&nrm=iso. Acesso em 12 de Agosto de 2010.

RUSSEL-WOOD, A.J.R. Um Mundo em Movimento; os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). Lisboa: Difel. 1998.

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Dom Vasco Mascarenhas, vice-rei e governador geral do Estado do Brasil (1663 – 1667): trajetória de serviços e ações de governo.

Renato de Souza Alves

O objetivo desse trabalho é analisar o governo de D. Vasco Mascarenhas, 1º Conde de Óbidos, no Estado do Brasil e a sua carreira de serviços prestados à coroa portuguesa.

Durante o seu governo, o Conde de Óbidos tomou uma série de medidas para ordenar ofícios, delimitar jurisdições, emitindo para isso Alvarás e Regimentos. Essas atitudes demonstram-nos o seu empenho em ordenar o governo geral e os diferentes ofícios que aqui conviviam e seus campos de poder e atuação.

A carreira de serviços prestados à coroa, ocupando importantes ofícios em Portugal e no ultramar, demonstra a posição social de prestígio do Conde de Óbidos e a alargada experiência que havia acumulado nas questões militares e administrativas antes de ser nomeado ao governo geral do Brasil.

Recebeu “honra e mercê [...] do titulo de conde da villa de obidos” em 19 de Maio de 1646, em “concideração aos serviços [...]a calidade de sua pesoa e casa e satisfação com que se ouve sempre nos lugares e cousas de que foi encaregado [...]E em contemplação de haver casado com dona jeronima de la cueva.”175

Conforme nos apontou Mafalda Soares da Cunha, foi grande o apoio dos Austrias, através da concessão de títulos e comendas, aos enlaces matrimonias entre portugueses e espanhóis, estratégia utilizada na tentativa de se criar vínculos, sentimentos de lealdade e pertencimento para com a nova dinastia reinante. Esses matrimônios mixtos, caso de D. Vasco Mascarenhas com D. Jeronima de la Cueva, podem ser entendidos, para além de uma estratégia política na criação de uma nobreza comum, como “un momento transcendental en las trayectorias de las casas señoriales” e que envolviam “negociaciones, cálculos, estrategias [...], evaluando posibilidades de acrecentamiento patrimonial, refuerzo de lazos parentales, establecimientos de conexiones y apertura de espacios de influencia”. (CUNHA, 2009, p. 221).

Algumas das formas de tratamento despendidas à D. Vasco Mascarenhas nos levam para dentro da ordem normativa das sociedades de Antigo Regime, o que nos leva a fazer uma “incursão pelo campo dos poderes informais, da pluralidade de relações sociais e sua expressão sob formas de amizade, serviço e clientela [...]”. (XAVIER; HESPANHA, 1997, 342). É importante entendermos que a amizade no Antigo Regime possuía um horizonte semântico distinto daquele que compreendemos

175 ANTT. Chancelaria de D. João IV_Livro 17_271. No dia 14 de Abril de 1663 o dito titulo foi renovado e estendido aos seus sucessores, além de um soldo de duzentos mil reis. Cf. ANTT. Chancelaria de D. Afonso VI – Livro 25. p. 221

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atualmente. Nesse sentido, a amizade correspondia a diferentes níveis de relações tal como “o rei e o vassalo, o pai e o filho, o amigo e o amigo, constituindo uma relação social fortemente estruturante”. (XAVIER; HESPANHA, 1997, 342). Dessa forma, o tratamento dispensado a D. Vasco Mascarenhas pode ser compreendido, também, como uma relação de affectus, pois segundo Cardin:

“O rei e aqueles que o rodeavam contavam com a normatividade do amor para manter a boa ordem (...). No período compreendido entre os séculos XV e XVIII vigorou uma comunidade ordenada mediante uma complexa e extremamente duradoura modalidade de organização, reconhecida e apoiada por uma série de focos de normatividade e por não menos numerosos mecanismos de regulação. Nessa ação simultaneamente ordenadora e disciplinadora destacava-se o poder dos afetos”.(CARDIM, p. 109)

É dessa forma que devemos entender o sentido das expressões “meu amado

sobrinho” e o tratamento de “Conde Parente”, formas pela qual era chamado, principalmente pela coroa portuguesa. Podemos perceber então, que as fronteiras – si é que de fato existiam – entre o imaginário familiar e as ações próprias do universo político eram demasiadamente tênues o que ocasionava uma transposição das relações familiares para o campo das relações sociais informais e também para o da política e poder.

Em 1646, D. Vasco Mascarenhas já tinha prestado vários serviços ao Rei, pois a mercê do titulo de Conde da Vila de Óbidos não se deu apenas em decorrência de seu casamento, mas também pelos “serviços [...] e a calidade de sua pesoa e casa e satisfação com que se ouve sempre nos lugares e cousas de que foi encaregado”. (GAIO, 1939). Esteve no Brasil em 1639, onde serviu como General de Artilharia e de Mestre de Campo, na armada do Conde da Torre176 e ter “exercido como Lugar-Tenente, de Novembro de 1639 a Junho de 1640, as funções de Governador Geral”. (CAMPO BELLO, p. 81).

Segundo Bluteau, General é uma “dignidade militar” (BLUTEAU, v. IV, p. 49) e Artilharia envolve conhecimentos e habilidades em manusear uma série de artigos militares e de guerra como armas e munições. (BLUTEAU, v. I, p. 577 - 578) Quanto ao oficio de Mestre de Campo podemos afirmar que:

he aquele, que não estando presente o General do exercito, governa com mero, & mixto império toda a infanteria, cavalleria, & artilharia, & estando ambos juntos, o general da ao mestre de campo general todas as ordens para o que toca ao governo da infanteria, para que por sua via se distribuão aos mestres de campo, & deles a outros officiais subalternos. Ao mestre de campo general toca fazer a distribuição dos alojamentos por mayor, dar as licenças para os vivandeiros do exercito, & e. & tem o privilegio de usar da mesma insígnia, que o general. (BLUTEAU, v. V, p. 457)

Ainda de acordo com Bluteau, Tenente era titulo que se dava “aos Ricos homens, & valia o mesmo que Senhor, ou Governador, a cujo cargo estava a defensaõ

176 Navio de guerra enviado ao Brasil para a luta contra a invasão holandesa em Pernambuco.

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de lugar próprio, ou comemettido” (BLUTEAU, v. VIII, p. 95) e Lugar-Tenente é “Aquelle que occupa o lugar, ou exerce o officio de outro”. (BLUTEAU, v. V, p. 202) Isso nos indica que D. Vasco Mascarenhas era um homem experimentado nos assuntos militares e galgou diferentes posições hierárquicas em ofícios com essas características. De acordo com sua carta patente D. Vasco Mascarenhas ocupou “postos maiores da guerra no Estado do Brasil”.177

Em 1643 foi governador de armas da Província do Alentejo178 “de cujo posto o depuzerão e prenderão”.179 No entanto, D. Vasco Mascarenhas conseguiu livrar-se da culpa de que lhe acusavam.180 Governador das armas “he o mesmo, que general do exercito” (BLUTEAU, v. IV, p. 103) que, por sua vez, é aquele “que manda o exercito em chefe”. (BLUTEAU, v. IV, p. 49). Governar o Alentejo era um oficio que, ao nosso entender, exigia do indigitado uma grande experiência nos assuntos militares devido à sua grande importância estratégica, pois “era um dos principais teatros de guerra, na perspectiva de uma invasão por terra. Era terra chã e bastante aberta [...], tradicional via de entrada de tropas espanholas”. (HESPANHA, 2004, p. 30)

Pela documentação que tivemos acesso, sabemos que já em 1641 era membro do Conselho de Guerra, foi também o ano em que recebeu a mercê nomeando-o Governador de armas e Capitão181 Geral do Reino do Algarve, levando de ordenado o valor de seiscento mil [reis] por ano.182 Oficio que voltou a exercer em março de 1646 e que, pelo qual, voltou a receber soldo de seiscentos mil reis anualmente.183 O Conselho de Guerra, assim como o Conselho de Estado, era um órgão destinado ao “governo do reino” e que “auxiliava o monarca no desempenho das diversas tarefas relacionadas ao exercício do oficio régio e ao cumprimento das suas funções no espaço exterior a Casa”. (COSENTINO, 2009, p. 130) Voltava-se para a administração militar, “ocupado no despacho das consultas dirigidas ao rei, nas respostas às cartas dos generais, na nomeação dos oficiais e ministros militares e na apreciação das petições particulares”. (HESPANHA, 1995, p. 175). Entre as suas funções estavam a de “dar parecer não só sobre a nomeação de todos os postos militares superiores [...] mas ainda sobre o exercito e armadas convencionais, e seu recrutamento, sobre a fabrica das naus, sobre a fortificação dos lugares”. (HESPANHA, 1995, p. 175). Sobre o Algarve, Antonio Manuel Hespanha nos diz que se tratava de um lugar afastado dos centros políticos e econômicos, mas que entre “1580 e 1640, o pensamento estratégico lia o espaço doutra maneira. Então o perigo vinha do mar, dos corsários marroquinos,

177 ANTT. Chancelaria de D. Afonso VI. Livro 25, 124v – 126.178 Cf. Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, vol II, publicadas e prefaciadas por P. M. Laranjo Coelho.Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1940. Essa informação é confirmada em sua carta patente de governador geral do Estado do Brasil.179 Cf. BNL – Coleção Pombalina, cod. 416. sem título. fol. 258.180 Cf. BNL – Coleção Pombalina, cod. 416. sem título. fol. 258. Infelizmente não sabemos qual foi a acusação feita contra D. Vasco.181 “Capitam, Capitaõ: Tomase esta palavra em differentes sentidos. Algumas vezes significam o que manda hum exercito inteiro, ou huma armada grande, como Capitaõ general. Outras vezes significa o que manda hum corpo mais pequeno, como capitão mor”. (BLUTEAU, vol. II. p. 126).182 Cf. ANTT. Chancelaria de D. João IV_Livro 12_8v. [documento de 27 de Dezembro de 1641]183 Cf. ANTT. Chancelaria de D. João IV_Livro 19 _131.

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a que se tinham somado, depois da união de coroas, as forças navais, regulares ou de corso, dos ingleses e dos holandeses”.(HESPANHA, 2004, p. 32).

Nota-se aqui o acumulo de duas funções voltadas à questão militar e da defesa do território – conselheiro de guerra e governador do Algarve. E também à confiança que o rei depositava em D. Vasco, já que foi um dos primeiros conselheiros de guerra.

No dia 9 de Janeiro de 1652 é nomeado por mercê a Vice Rei e Capitão Geral do Estado da Índia, conforme o trecho abaixo:

“Dom joão etta faço saber [...]a todas as mais pessoas de qualquer qualidade estado e condição q. sejão [...] pella muita boa vontade que lhe tenho e de lhe fazer mr.ce conforme a quem he Hey por bem e me praz nomeallo como pella presente o nomeo por vice Rey e capitão general do dito estado da índia [...]”184

Conforme consta na Coleção Pombalina, como vice-rei do Estado da Índia D. Vasco “governou poucos meses por se amotinaram os vassallos daquelle estado e o mandarem pª o Rnº”.185

A referência de pertencer ao Conselho de Estado aparece pela primeira vez na carta patente de 14 de Dezembro de 1662, onde é nomeado para servir como Vice Rei e Capitão Geral de mar e terra do Estado do Brasil. Nesta carta, o Rei lista os diversos serviços prestados pelo Conde de Óbidos à Coroa:

“Dom Affonso ett. faço saber [...] desta minha carta patente pertencer q. tendo eu Resp.to

aos serviços q. o conde de obidos meu m.to amado sobrinho do meu concelho do estado tem feito desta Coroa desde o anno de seis sentos e deza nove athe o presente no estado do brasil nos postos maiores da guerra e neste Rno de govno das armas da província de alentejo e duas vezes de governador de capitão geral do reino do algarve e ultimam.te de VRei da índia procedendo sempre entudo o q. se lhe ofereçeo com m.to valor e satisfacão tendo por serto de sua calidade esforço boas p.te e muita esperiencia que tem das couzas da guera q. entudo o de q. o encaregar me saberá m.to bem servir e dar de si tudo a boa Conta Conforme a quem he e a muita confiança q. faço de sua pesoa e por folgar de lhe fazer entudo honra acresentamento e m.ce hei por bem e me praz de o enviar por meu V.Rei e capitão geral de mar e terra do dito estado do brasil p.a que sirva o dito cargo por tempo de três annos e vença nelles o soldo q. lhe tocar [...]”186

O Conselho de Estado era o principal órgão de governo e desempenhava funções consultivas e decisórias “onde assistem os mayores homens do Reino”.(CARDIM, 2002, p. 30). Segundo Cardim: “Enquanto principal órgão consultivo, o Conselho de Estado era como que o mais importante fórum de debate sobre o governo [...]. apresentava-se constantemente como a única e legítima sede de decisão, invocando não só a sua inserção na esfera doméstica do rei, mas sobretudo a ancestralidade da sua ligação orgânica com a realeza”.(CARDIM, 2002, p. 30-31). Percebe-se que ser

184 ANTT. Chancelaria de D. João IV_Livro 24_160_161.185 Cf. BNL – Coleção Pombalina, cod. 416. sem título. fol. 258.186 ANTT. Chancelaria de D. Afonso VI_Livro 25_124v_126.

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membro desse conselho era desfrutar de uma posição privilegiada de influência e poder, e como nos aponta Francisco Cosentino, “não só pressupunha uma posição honorifica, mas também significava ‘das preleminencias e prerrogativas’ próprias do cargo”.(COSENTINO, 2009, p. 132).

Recebeu em 1663 a mercê da Fortaleza da capitania de Dio.187 Segundo Jose Manuel Garcia, Diu é uma província ao Norte da Índia e “pode ser considerada como a mais importante realização arquitectónica portuguesa na área das fortificações da Índia”. Essas fortalezas começaram a ser construídas por ordens de D. Manuel no século XVI com o objetivo de defender suas feitorias e também controlar “áreas de importância estratégica para dominar ares de produção de bens valiosos e rotas mercantis”.(GARCIA, 1996, p. 121-122)

A análise das fontes aponta para a dinâmica da governação desenvolvida por esse governador geral. Suas primeiras preocupações foi a de gerir e de organizar a administração do Estado do Brasil, assim como delimitar as jurisdições de cada oficio conforme as correspondências trocadas com o governador do Rio de Janeiro, Pedro de Mello: “Achei as cousas deste Estado tão demasiadamente confusas, e a jurisdição deste Governo tão sem limite despedaçadas [...].”188 Na tentativa de se organizar esta “confusão” publicou um “Alvará que mandou a todas as Capitanias deste Estado, para se remetter á Secretaria delle, todas as Patentes, Provisões, e Alvarás e informação da suficiencia dos que os exercem”189 e também chamava a atenção dos governadores de Pernambuco que excediam o poder delimitado pela sua jurisdição:

“Porquanto com a separação das Capitanias do Sul190, [...] e intento que alguns Governadores de Pernambuco tiveram que subordinar a sua obediencia ás do Norte, interpretando muito como não deviam as suas Patentes, se relaxaram, e perverteram as ordens que os Capitães Generaes meus antecessores mandaram a umas, e outras Capitanias quando todas estavam unidas ao Governo Geral do Estado: de que resultaram nellas as consequencias que tanto a custa de seus moradores, e perigo de sua conservação se tem experimentado.”191

E para que desenvolvesse melhor o seu governo ordenou:

[...] me sejam presentes todos os postos, cargos, officios, e mais occupações politicas, e militares que ha em todo o Brasil: que pessoas os exercem, e por que provimentos, por ficarem com a minha chegada vagos todos os que não forem propriedade, por Patente, ou Provisão firmada pela mão Real, ou pelos Donatários a que pertencerem.192

Essa decisão tomada pelo Conde de Óbidos demonstra um esforço em se reunir todos esses ofícios, seu funcionamento e os que nele estão providos; uma tentativa de

187 ANTT. Chancelaria de D. Afonso VI – Livro 21. p. 166. 188 Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Vol. 5. Rio de Janeiro, Augusto Porto & Cia, 1928. Microfimes, rolos 05/06. códice 7, 1, 28. p. 466.189 Idem. códice I – 3, 3, 72. p. 370 – 374.190 Possivelmente diz respeito à criação da Repartição Sul (1643) “ um artifício administrativo responsável pela gestão governativa das áreas na região sul da América portuguesa”. Ver: (GOUVEA, 2001. p. 293).191 Idem.192 Idem.

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ordena-los já que desde o fim da guerra contra a Espanha a coroa portuguesa encontra-se num vazio administrativo e por não haver nos regimentos (BLUTEAU, v. VII, p. 199) que ordenavam o governo geral do Estado do Brasil nenhuma referência que tratasse dos diferentes ofícios que conviviam no Brasil e seus campos de poder e atuação. Exemplo desse vazio administrativo é o fato de os capitães mores ficarem no mínimo até o ano de 1663 sem um regimento que tratasse especificamente das atribuições desse oficio. Outro governador geral que tomou medida semelhante, orientado pelo rei, foi Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, que ordenou em 22 de Junho de 1671: “[...] me remetta memória de todos os officios que nessa Capitania houver de Fazenda, Justiça e tocantes a Câmara, com clareza muito especial do ordenado que tem, porque Provisões se exercem e que pessoas, [...] lista de todas as Companhias que há de Ordenança [...] sua jurisdição; [...] porque Patentes servem os Capitães [...]”.193 Podemos então constatar uma intencionalidade de se acumular conhecimentos e informações de forma a se desenvolver estratégias e “a construção de uma memória, dedicadas ao exercício de governo, com todas as suas implicações, inclusive a elaboração da documentação escrita que norteava e delimitava os direitos e deveres, como eram os regimentos dos governadores gerais”.(COSENTINO, 2009, p. 207).

Quanto à delimitação de jurisdição parece ter tido problemas com o governo de Pernambuco, principalmente quando “expede o regimento das ‘capitanias dêste Estado’, com a declaração enfática de que nenhuma obedeceria à outra, sua vizinha, mas rigorosamente a ‘êste geral’”.(CALMON, 1959, p. 896).

Em decorrência dessa medida, em correspondência, “notificava o governador do Rio, Pedro de Mello, que não pretendia manter a liberdade concedida às capitanias de Pernambuco e do rio pelos seus antecessores. No entanto, não era fácil como pensara, fazer-se obedecer.” (CALMON, 1959, p. 386).

De acordo com Pedro Calmon em abril de 1664:

“Hyeronimo de Mendonça [governador de Pernambuco], deu novos motivos de queixa ao vice-rei, querendo impor a sua autoridade na capitania vizinha - Itamaracá. Alegava que sua patente consignava jurisdição sôbre Pernambuco e capitanias anexas. O Conde de Óbidos argumentou, então, seriam consideradas como tais, sômente Pôrto Calvo, Sirinhaem, Lagoas e Rio de São Francisco, elevadas recentemente a essa categoria. Itamaracá fôra, desde a primeira divisão em donatarias independente[...]”.194

Na tentativa de regulamentar e ordenar o oficio de Capitão-mor expediu o primeiro Regimento dos Capitães-mores, no qual delimitava seus poderes, direitos e deveres.195 As capitanias mores tinham competências mais limitadas e uma dependência funcional com os governadores e governadores gerais, dessa forma, na escolha de um capitão mor primava-se pessoas com menores atributos sociais exigindo-lhe, porem, a experiência. (CUNHA, 2005, p. 211).

193 BN-SM. 08, 03, 003. documento p. 75-75v.

195 Cf. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Microfimes, rolos 05/06. códice I – 3, 3, 72. p. 374.

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Em carta ao Governador do Rio de Janeiro e que acompanhava o Regimento dos Capitães-mores percebe-se que os conflitos de jurisdição atordoavam o Governo-Geral e que Pernambuco parecia ser a Capitania que mais infringia os limites de seu poder:

“A ambição com que os Governadores antecedentes a V. Sa. E os de Pernambuco pretenderam a jurisdição das Capitanias do Norte, e Sul [...] e o excesso com que os Ouvidores que se intitulavam das mesmas Capitanias [...]: me obrigam a obviar as confusões e desserviços que resultavam de os Capitães-mores, e julgadores de todas as Capitanias do Estado deixarem perder a jurisdição que lhes pertence; [...]. em consideração de tudo, mandei passar o Regimento [...]para todos os Capitães-mores das Capitanias do Brasil.”196

Através desse trabalho podemos perceber o quão importante era a economia de mercês na sustentação da política administrativa e na estruturação da ordem própria da sociedade portuguesa do Antigo Regime e como os súditos lançavam-se nas empreitadas da Coroa pelas suas possessões ultramarinas, caso de D. Vasco Mascarenhas, conforme a reconstrução, ainda que com lacunas, da sua carreira e trajetória. Compreendemos um pouco mais sobre o oficio de Governador Geral do Estado do Brasil, sua importância e suas atribuições valendo-nos de outros trabalhos historiográficos e da análise do governo de D. Vasco Mascarenhas.

Temos que deixar claro que quando o Conde de Óbidos assume o governo do Estado do Brasil em 1663 já tinha adquirido uma alargada experiência em assuntos relacionados à defesa de territórios e militar sendo governador do Algarve por duas vezes, governador do Alentejo, pelos postos assumidos na Armada do Conde da Torre e por ter sido membro do Conselho de Guerra. Experiência administrativa também não lhe faltava devido aos serviços desempenhados acima e principalmente ao fato de ter sido Vice-Rei e governador geral do Estado da Índia e ser membro do Conselho de Estado. Isso demonstra-nos a importância do Brasil no conjunto das possessões ultramarinas portuguesa e a confiança da coroa para com o Conde de Óbidos em assuntos militares, já que seu governo esta inserido no período de consolidação da coroa portuguesa frente à espanhola devido à Restauração em 1640 e à possibilidade de alguma invasão por parte de outras potencias como se deu com a Holanda. E na questão administrativa, a confiança de que poderia solucionar, ou ao menos amenizar, os conflitos de jurisdição que se tornavam cada vez mais freqüentes conforme se tornava mais complexa a estrutura administrativa implementada pela coroa.

BibliografiaBLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, s/d. (CD-ROM).

196 Idem. códice 7-1-28.

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O resgate de passado no presente para discussão das consequências da Revolução dos Cravos e

Guerra Colonial em As Naus. Rodrigo Corrêa Martins Machado

Introdução

A Revolução dos Cravos foi um grande momento histórico-cultural para Portugal, na medida em que este se libertou de um regime opressor – o salazarista -, que obrigava a todos a se submeterem a uma política subversiva, principalmente, porque neste regime ditatorial o Estado e a Igreja - duas entidades caracteristicamente dominadoras – se uniram para controlar todas as esferas da vida portuguesa. Este período, em que se identifica o salazarismo português, foi altamente marcado pela repressão e pela censura. No que diz respeito aos pensadores, filósofos e escritores, não era tolerado nenhum tipo de oposição em relação ao novo governo estabelecido no poder.

A literatura e os meios artísticos em geral sofreram represálias durante o momento relacionado ao governo ditador em Portugal, o historiador Lincoln Secco (2004, p. 95) nos aponta ações relacionadas à censura:

As manifestações de descontentamento, na área da cultura e da política, existiram e exerceram seu impacto na opinião pública. Mas era, essa crítica urbana e diminuta e quase sem nenhum poder de pressão. Quando algum intelectual levantava a voz contra o regime, era severamente punido.(...) É verdade que controlava a Universidade [o governo] e usava o instrumento da censura.

A única saída vista pelos intelectuais para expressarem seu descontentamento com o governo era escrever de forma metafórica, como ocorria. É importante ressaltarmos que mesmo antes da rebelião populacional, os autores lusitanos já manifestavam seu descontentamento em relação ao regime em seus escritos, de forma plurissignificativa e metafórica para obterem a concessão de circulação de seus livros (e idéias), e, para que dessa maneira os leitores pudessem interpretar as idéias implícitas nas obras. A liberdade buscada com a Revolução dos Cravos é aquela em que uma população em geral pudesse escrever sob seu ponto de vista, sem ter medo da censura ou de qualquer mecanismo repressivo ao qual poderiam ser submetidos.

Há outro agente de inegável importância para que o povo se rebelasse contra o salazarismo: que é o fato dos homens portugueses – inclusive jovens – terem sido

197 Aluno de graduação em Letras pala Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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obrigados a ir para a África guerrear com as colônias que “pertenciam” a Portugal, para que estas não obtivessem independência. Estes mesmos homens não entendiam o porquê dessa luta, para eles era uma guerra sem sentido, que visava resguardar interesses do governo do país e não realmente da população. Eunice Cabral (2002, p. 367) afirma que:

Desde o seu início, esta guerra acentua a clivagem entre governantes e governados numa situação em que os primeiros persistem num entendimento anacrónico da revolta africana e os segundos vão percebendo progressivamente que a guerra declarada é um empreendimento voltado ao fracasso porque funciona dentro de uma lógica (a da visão colonialista) que há muito perdeu a legitimidade num contexto mais vasto que o nacional.

A luta com as colônias africanas não possuía propósitos reais e contundentes, o que fez com que não houvesse nenhum sentido plausível para esse evento, dessa maneira, os que iam lutar na África tinham como objetivo maior voltar vivos para casa. Esse fato gerou um questionamento em toda a nação portuguesa acerca da guerra e, principalmente, em relação à prostração a que todos haviam se submetido durante todo o período ditatorial. O descontentamento desencadeou um movimento rebelde e contrário ao salazarismo, que alcançou seu clímax no dia 25 de Abril de 1974.

Nesse dia, houve uma Revolução, que nasceu inicialmente entre os militares descontentes com o regime em vigor. Nesta perturbação moral dos portugueses em relação ao poder político, buscava-se a libertação do regime com a possibilidade de mudança político-econômica, fim da guerra inútil empreendida contra as colônias africanas e em relação à censura que era o principal órgão a impedir a livre circulação de idéias pelo país.

Em relação à importância da revolta de 1974 para a população portuguesa e, principalmente, para as produções artísticas de Portugal, Gerson Roani (2002, p. 23 – 24) postula:

O 25 de abril transformou a vida de todos os portugueses, modificando as instituições sociais e, sobretudo, influenciando o âmbito artístico lusitano. A abordagem da produção literária portuguesa desses últimos 25 anos não pode prescindir de sondar o modo como esse acontecimento histórico influenciou a atividade escritural dos autores de Portugal contemporâneo. Essa sondagem mostra-se instigante, no caso da ficção portuguesa contemporânea, pois pode ser demonstrada uma estreita vinculação das alterações sociais com a renovação do próprio percurso artístico dos escritores portugueses anteriores e subseqüentes a 1974.

A Revolução em Portugal implicou na independência das colônias da África. Esse fato também ecoou na mente dos portugueses, na medida em que o país deixara de ser aquele império amado e vangloriado de antes e ao invés da pátria ser constituída por vastos territórios e muitas riquezas, ela ficou reduzida a uma pequena porção de terra na Europa. A terra lusitana e seus moradores perderam o prestígio e a centralidade a qual eram vinculados anteriormente, isto é, o país deixara realmente de se vincular à idéia de um país de central importância para o mundo, local de onde antes vinham inovações e sucessos, os quais tentavam ser copiados pelos demais povos.

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A partir desse fato, ficou visivelmente abalada a questão da identidade de Portugal e dos portugueses, que se perguntavam acerca do que seriam a partir daquele momento. Dessa forma observamos que outro grande problema surgido na pós-modernidade, que abrange o romance contemporâneo em Portugal, é o problema da identidade, tanto coletiva quanto individual, uma vez que os romances contemporâneos ora representam uma desmistificação do passado, trazendo ao presente verdades escamoteadas, ora apresentam a procura feita pelos homens de maneira mais profunda no interior da alma em busca de si. O que é proposto em As Naus nada mais é que a construção de uma nova identidade no presente.

A maioria dos países europeus colonialistas trocou sua dominação direta por algum tipo de ascendência econômica, como apontado por Lincoln Secco (2004), e isso colaborou de alguma maneira para que houvesse dominação de um país antes colonialista em relação a suas antigas colônias, e estas ainda que lhe dessem retorno econômico. Dessa forma, não ficou defasado o principal interesse dos dominadores: o lucro.

O problema maior se deu, porque “Portugal não adotou essa via indireta, embora sua economia já não fosse tão dependente das relações comerciais com as colônias”, e passou a depender economicamente da ajuda de outros países ricos europeus até mesmo para continuar a exploração das colônias que lhe restavam (SECCO, 2004, p. 89). A idéia de Império persistia como um legado histórico, pelo qual todos deveriam se esforçar por manter, pelo menos na visão dos salazaristas.

A luta armada empreendida pelo governo português com os países dominados por ele, contribuiu para um aumento do déficit comercial em terras lusíadas. Um país agonizante dirigia a maior parte de seu dinheiro para uma guerra, a qual não teve condições de sustentar. Aconteceram inúmeros massacres de portugueses na África, o que só amedrontava cada vez mais a população.

Provavelmente, pela grande fragilidade político-econômica a qual o país enfrentava no momento, não houve muita resistência na queda do governo. Dessa maneira, a Revolução dos Cravos insurgiu como uma forma de reabilitar Portugal, de tratar as saídas necessárias para depois do fim do Império, que antes mesmo de cair oficialmente já agonizava.

Por outro lado, a euforia da reconstrução e mudança trazidas pelo contexto pós-revolução tiveram uma efêmera duração, pois alguns anos após o acontecimento revolucionário, o governo português voltou às mãos da camada social conservadora. Houve, dessa maneira, certa estagnação populacional no que diz respeito ao contínuo processo de mudança e encontro de uma nova identidade. Talvez por este motivo, escritores como Lobo Antunes, tenham escrito romances como As Naus, que de certa forma incita a população a deixar os mitos passados de lado e retomar o processo de mudança, reaver as rédeas do destino português de maneira consciente para que a prosperidade surja a partir do desejo e da mobilização nacional.

No que concerne às criações artísticas elaboradas após Revolução do 25 de abril e pós-colonialismo, as grandes obras literárias de Portugal que discutem tais

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acontecimentos surgiram um certo tempo depois da Revolução, elas já vieram com um olhar mais distanciado, crítico e amadurecido em relação às transformações ocorridas após tal acontecimento, não havia um olhar que exalte e sim um olhar crítico, impiedoso (às vezes) em relação às lacunas e vazios trazidos pelas revoltas.

A nova escrita que surgiu na sequência a esse acontecimento, não é mais velada, nem com a carga metafórica e temática anterior, surgiu uma literatura libertadora, com a possibilidade de questionar tudo que se relacionasse à História e ao caminho percorrido por Portugal durante séculos, inclusive a questão da identidade que teria que ser (re) pensada. As discussões acerca da identificação portuguesa criaram um importante foco de discussões fomentado pelos grandes escritores lusos, como António Lobo Antunes e José Saramago.

A literatura constatou certa falência em relação à História o percurso trilhado pela ficção portuguesa posterior a 1974, é também o percurso, nem sempre isento de indecisões, das tentativas de instaurar estratégias de representação literária adequadas a certa e inevitável confrontação com a História, isso fez com que houvesse um constante diálogo entre elas.

A narrativa buscou se opor aos fatos históricos, aos acontecimentos e fez isso na medida em que desmentia o que a História antes havia postulado como o correto e definitivo. E nos perguntamos por que é que a ficção buscou desmentir a História? Uma resposta plausível e aceitável, a qual António Apolinário Lourenço (1991) se refere, consiste no fato de que as pessoas principiaram a perceber que a História oficial disseminada pela ditadura era passível de uma dura desconstrução. Após abril de 1974 houve necessidade de se buscar uma verdade mais condizente com a realidade daquele país e que explicasse, de certa forma, todo aquele tempo ao qual os portugueses se subordinaram ao regime salazarista.

Surge após a Revolução de abril, a escrita de Metaficções Historiográficas – uma definição criada por Linda Hutcheon (1991) para caracterizar as narrativas de tema histórico nascidas no contexto pós-contemporâneo. A metaficcção nasce da junção da literatura e da História, consistindo no ato de repensar o fato histórico e buscar um novo sentido à História anteriormente conhecida.

Hutcheon (1991, p. 144) afirma que:

A interação do historiográfico com o metaficcional coloca igualmente em evidência a rejeição das pretensões de representação “autêntica” e cópia “inautêntica”, e o próprio sentido da originalidade artística é contestado com tanto vigor quanto a transparência da referencialidade histórica.

As Naus é uma obra elaborada a partir das possibilidades que o texto ficcional tem de fingir ou de criar uma maneira de lidar com o tempo. Há uma discussão como também questionamentos acerca de determinado período histórico e suas reflexões na época presente. Podemos afirmar que nesta Metaficção Historiográfica criada por Lobo Antunes há um processo de exposição crua da realidade e das impotências do povo português que se escondia por trás de fatos heróicos e míticos de uma História

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passada longínqua. Os romances de Lobo Antunes constituem na intersecção da entre História e Literatura, documentos de memória elaborados literariamente, o que os caracterizam, dentro de um novo pensamento histórico, como documentos de um passado recente.

As obras Lobo-antunianas pós-74 passaram a ser particularmente significativas enquanto veículo de divulgação de sentidos ideológicos (REIS, 2005). Ideológicos na medida em que o discurso é portador de sentidos que podem ser lidos histórica e socialmente.

Há nas narrativas do autor d’As Naus, o fato de o autor focalizar os fenômenos sociais, observando e desvendando a realidade portuguesa na sua mais clara impotência, enquanto seres humanos que se vendam para os problemas que os cerceiam. Isso se dá a partir da visão de quem esteve cara-a-cara com a miséria, a doença e a fome e que analisa a História de uma maneira um tanto quanto pessoal e psicológica.

Nos romances do autor em questão, a presença de elementos como a ironia, a paródia e o sarcasmo são relevantes para reinterpretar as figuras e os episódios de um passado nunca antes questionado e de realidades e situações também não expostas anteriormente, talvez por motivo da repressão ou ainda porque as pessoas já se acostumaram com certas situações que até hoje são vistas como normais, como a exploração dos mais pobres. O romancista mostra a sua versão da História, critica as repressões, explorações, e questiona o autoritarismo de instituições como a Igreja, o Estado, a Nobreza, e, além disso, questiona a capacidade humana de ignorar o real que desagrada, que sai dos trilhos que dizem respeito ao desejado.

As Naus e as reflexões acerca do retorno

A narrativa Lobo-antuniana chama para si os estudos históricos, só que por um ângulo ficcional e questionador. Ele lança sobre a história do país um olhar de quem esteve presente na Guerra com as colônias da África, de quem viu o sofrimento dos africanos, que de maneira alguma queriam mal aos portugueses, eles desejavam apenas ser independentes, viver de acordo com suas normas e deixar de serem explorados. Alguns textos deste autor possuem, inegavelmente, uma matriz autobiográfica, já que ele conheceu todas as situações horrendas pelas quais milhares de soldados portugueses e também a população das colônias portuguesas na África passaram.

A ficção Lobo- Antuniana revela elementos para os quais todos os portugueses tapavam os olhos, se negavam a enxergar que é realidade humana de seres confrontados com o sofrimento causado por eles próprios.

A guerra com as colônias na África e a posterior independência desta são temas recorrentes nos primeiros romances deste autor português e de acordo com Eunice Cabral (2002, p. 363):

Os primeiros romances do autor levantam a questão da crise de identidade causada pela guerra colonial e pelas práticas do colonialismo a ela associadas, crise esta com contornos definidos que se relacionam com a figura enfraquecida do combatente (como em certa medida é a do

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colonizador), como aquele que empreendeu a guerra colonial, não se identificando de uma maneira geral com a política do regime sob a qual é levado a agir.

A problemática de retomada ou mesmo da busca de identidade que foi perdida juntamente com a condição de país colonizador é o foco principal de obras como As Naus. Neste romance, como veremos adiante, toda uma população de retornados e daqueles que não estiveram na guerra, são levados a questionar seu posicionamento no mundo perante a nova realidade emergente.

Como nos é dito pelo próprio Lobo Antunes em entrevista a José Jorge Letria, em seus romances ele desejou tratar e retratar os problemas da Guerra Colonial abrangendo muito mais que somente os percursos e dificuldades concernentes a ela, mas as conseqüências morais sofridas por toda população envolvida no conflito, inclusive, senão mais importante, o sentimento de perda de identidade e a percepção de se não pertencer mais a lugar algum que perpassaram por todos que obrigatoriamente volveram a Portugal, como observamos na seguinte passagem:

[...] Existem já muitos romances que afloram o problema da guerra. E esse problema não é só da guerra em si, dos mortos e dos feridos. É também o problema das nossas vidas ao voltar. No regresso não t[í]nhamos lugar, não pertencíamos a nada. Trazíamos connosco uma grande insegurança interior. Daí toda onda de divórcios, de nevroses da guerra. Tudo devido ao facto de não se ter raízes em parte alguma. Eu quis, no que já escrevi, dar o drama do regresso, esse terrível flutuar entre duas águas sem pertencer a nenhuma delas. Se se conseguir dar isto com suficiente força as gerações novas poderão ser tocadas para que isso não volte a acontecer.

(ANTUNES, 1980, p. 21) A preocupação que perpassou o escritor em seus primeiros romances –

inclusive As Naus - foi, além de registrar os horrores da guerra como ele mesmo disse, mas primordialmente fazer a população portuguesa despertar para os problemas que eles próprios causaram a si mesmos, com intuito maior de fazer com que situações de horror como esta não tornem nunca a acontecer em solo português. Seus romances de caráter de Metaficção Historiográfica constituem uma espécie de retorno ao passado, um regresso que traz consigo a desmistificação de vários fatos históricos relacionados à guerra Colonial e até mesmo a toda História Portuguesa.

O pós-colonialismo é retratado pelo autor como algo que aconteceu, foi importante. É paradoxal pensarmos que a perda da guerra para as colônias africanas, significou uma vitória aos portugueses, uma vez que conseguiram se desprender das amarras impostas pelo período salazarista, mas o que Lobo Antunes apresenta é um país que vive essa euforia causada pela perspectiva da mudança e que depois se prostra perante o poder político.

A partir desse diálogo com a História e a literatura portuguesas, António Lobo Antunes empreende uma ousada meta: rediscutir um país que se mostrava apático, que se comportava como se tivesse perdido seu caráter cultural, social perante o mundo, para redescobri-lo juntamente com busca e criação de uma nova identidade que surgira após a independência dos países africanos e a Revolução dos Cravos.

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Outro fator de grande destaque na narrativa, diz respeito ao narrador que vivencia e conta a História do retorno, com um olhar de quem esteve presente na Guerra Colonial e de quem vislumbra o tempo presente com um olhar no passado – caracterizado como gênese de muitas desgraças - o que nos leva a crer que ele quer divulgar, realmente, a História a partir de um ponto de vista distanciado e até privilegiado.

O primordial ponto que devemos destacar se refere ao fato de que o autor desejou n’ As Naus relatar e destacar problemas encontrados pelos portugueses, expulsos pelos povos da África, após a independência das colônias de domínio português neste continente, ao retornar para sua pátria. Principalmente, no que diz respeito aos implícitos sociais que nos apresentam o que foi a vida sob a ditadura salazarista, a guerra na África e o retorno de milhares de portugueses após a Revolução de abril de 1974. Para tanto, no romance em questão, António Lobo Antunes empreendeu um diálogo com a obra de Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas.

Como a obra de Camões retrata a grandeza de Portugal enquanto império, a de Lobo Antunes apresenta este país decrescendo, deixando para trás qualquer resquício de grandeza e passando a ser uma “colônia” dos demais países Europeus. Surge um novo Estado com necessidade de pedir ajuda aos países vizinhos para poder se reerguer das desgraças pelas quais passou.

As Naus e a viagem, ao contrário do que pregava Camões, não é mais algo positivo de se ressaltar, pois marca regresso ao contrário do progresso de antes. O retorno significou desapego, impotência e a perda de valores sociais e morais. Com a conservação de nomes e fatos da História portuguesa por um lado e (re) elaboração de passagens históricas no romance em questão, Lobo Antunes, transparece, por meio da carnavalização, uma perspectiva negativa, sofrida acerca do pós-colonial destruído. Surgiu com esta obra um novo olhar sobre o passado glorioso dos Descobrimentos, que culminou com uma história digna de uma epopéia as avessas, que é o retorno humilhante dos portugueses que um dia foram grandes exploradores das terras pelo mundo afora.

Para representar os que voltam para Portugal, não vemos somente soldados, enfermeiros, médicos e pessoas que haviam se deslocado para a África com intuito de trabalhar, enriquecer, há a presença marcante e irônica de personagens que fazem parte do imaginário de grandeza português, personagens como: Pedro Álvares Cabral, Luis Vaz de Camões, Francisco Xavier, Manoel de Souza Sepúlveda, Vasco Gama, Diogo Cão, Fernão Mendes Pinto, Dom Manuel, Garcia da Orta, Dom Sebastião, D. João de Castro, Fernando de Bulhões (Santo António), Fernão Lopes, entre outros198.

A confluência de tempos históricos diferentes em Lisboa do século XX, representados pelas personagens históricas, proporcionou a estas o convívio com pessoas comuns, que com eles retornavam como a esposa de Pedro Álvares Cabral:

198 Cf. SEIXO, Maria Alzira et all. Dicionário da Obra de António Lobo Antunes. Vol I. 1ª ed.Lisboa: Editora: Imprensa Nacional-Casa Da Moeda., 2008.C

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A Mulata, A prostituta de Luanda, o Casal da Guiné, dentre tantas outras personagens não apresentadas diretamente, mas representadas pelas supracitadas. É de grande importância destacar que no romance a narrativa é apresentada dentro de um período marcante para a História de Portugal: o período Pós-Colonial e Pós- Revolução dos Cravos.

Para representar o retorno dos portugueses para a pátria Lusitana, como vimos, várias personagens tem certo papel de destaque, de forma a representarem a grande multidão que volveu a Portugal.

Considerações finais

Sendo assim, a importância deste romance para a História portuguesa é inegável, pois relata as memórias de um autor que viveu em meio à guerra e pode vislumbrar o sofrimento dos retornados ao desembarcarem em sua terra pátria. Tal fato nos permite afirmar que a leitura desta obra é imprescindível e a será ainda mais no futuro para aqueles que queiram estudar e conhecer este período trágico pelo qual Portugal e sua população passaram.

Em As Naus, praticamente o mar não possui tanta visibilidade como se espera até mesmo pelo próprio título da obra, mas são confrontadas duas terras, a história passada e a contemporânea também são acareadas, o presente desolador recebe reflexões sobre o passado que é responsável por seu acontecer.

Viagem tal vez não seja a palavra que diretamente possa ser relacionada a esta narrativa de viagem, e sim naufrágio. Naufrágio de um país que caiu em decadência, naufrágio de uma História de conquistas. Portugal necessitava de se repensar de revisitar seu momento de colonialismo para se reconstruir em meio a entulhos e desolação.

Lobo Antunes apresenta, nesta obra, uma percepção cômica e humorística da situação de Portugal no contexto de independência das colônias africanas e de pós-Revolução dos Cravos, figuras historicamente conhecidas por sua trajetória de grandeza retornam como mais um dentre os demais. A História não foi suficiente para livrar tais figuras da decadência que a todos atinge. Essa carnavalização discursiva n’As Naus vem de certa forma brincar com uma História triste, e ao mesmo tempo essa brincadeira, aparentemente inocente, consegue atingir o ponto fraco dos portugueses, que seria a identidade imperial perdida.

Referências Bibliográficas

ANTUNES, António Lobo. As Naus. 4ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 2000.

CABRAL, Eunice. JORGE, Carlos, J. F. ZURBACH, Christine. (org). A escrita e o mundo em António Lobo Antunes: actas do Colóquio Internacional António Lobo Antunes da Universidade de Évora. 1ª ed. Évora. Publicações Dom Quixote: 2002.

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Experiências de alteridade (A Guerra Colonial, a Revolução de Abril, o Manicômio e a Família). In: CABRAL, Eunice; JORGE, Carlos, J. F; ZURBACH, Christine. (org). A escrita e o mundo em António Lobo Antunes: actas do Colóquio Internacional António Lobo Antunes da Universidade de Évora. 1ª ed. Évora. Publicações Dom Quixote: 2002. p.363 – 378.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1991.

Teoria e política da ironia. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2000.

REIS, Carlos. História crítica da literatura portuguesa. Vol. 9. Do neo- realismo ao Post-modernismo. Lisboa. Verbo, 2006.

ROANI, Gerson Luiz. No limiar do texto: Literatura e História em José Saramago. São Paulo: Annablume, 2002.

SECCO, Lincoln. A Revolução dos cravos e a crise do império colonial português: economias, espaços e tomadas de consciência. São Paulo: Alameda, 2004.

SEIXO, Maria Alzira. Os romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

ABREU, Graça; CABRAL, Eunice; AFONSO, Maria Fernanda, SOUSA, Sérgio Guimarães de; VIEIRA, Agripina Carriço. Dicionário da obra de António Lobo Antunes. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 2008.

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Imagens e discursos da modernidade: A construção da ordem em Viçosa-MG (1894- 1950)Rômulo N. Marcolino

Este trabalho tem por objetivo analisar como os ideais civilizatórios europeus repercutiram em Viçosa- MG no final do século XIX até a primeira metade do século XX. Analisando como as representações de civilidade foram sendo construídas e/ou forjadas nas imagens da cidade e nos discursos sobre esta, através de fotografias, jornais e dos códigos de posturas municipais.

Procuramos compreender o porquê dessas intervenções, e como por detrás do discurso técnico que justifica as obras públicas, há outras intencionalidades conscientes ou não, de um ideal modernizante eurocêntrico, preocupado com a remodelação e regulação dos espaços, mas também da sociedade.

Dessa maneira nos dedicamos a examinar os dois códigos de posturas municipais (um de 1894 e outro de 1934) disponíveis no arquivo da Câmara Municipal de Viçosa, e de uma coleção de fotografias em formato de cartões postais com imagens da área central da cidade, além de alguns jornais.

Em finais do século XIX e inicio do século XX nota-se no Brasil uma serie de transformações que perpassam pelos campos do politico, econômico e sociocultural. Novas sociabilidades estão sendo criadas ou forjadas em nome de um ideal de modernização, de civilidade.

Não estamos dizendo que foi somente no período republicano que esse afã pela modernidade tenha surgido no Brasil, mas com sua inauguração em 1898(?), isto se tornou mais evidente, pois procuraram criar uma contraposição entre o “novo” representado pela República e o Império caracterizado com os signos do velho, do atraso, do retrogrado. Daí a busca por se criar signos que constituíssem uma memória coletiva para legitimar o regime.

Neste trabalho partimos de uma abordagem macro com a Revolução Industrial, para uma abordagem micro ou regional, procurando entender como se dá a leitura e apropriação desses signos em Viçosa, interior das Minas Gerais.

A Revolução Industrial fenômeno verificado originalmente na Inglaterra a partir de meados do século XVIII, significou a passagem de um modo de produção Feudal, rudimentar e agrário para um sistema de produção Capitalista de caráter industrial, sobressaindo máquinas e fábricas. Assim a revolução Industrial seria uma simultaneidade de profundas transformações econômicas, tecnológicas, politicas e principalmente sociais.

Hobsbawn entende que as transformações ocorridas na Inglaterra foram mais sociais do que técnicas, pois é nesse momento que consolidaram as crescentes diferenças entre ricos e pobres (Sousa; Laerte; 2002,p-17). Houve um alto fluxo migratório do meio rural para o urbano, excepcionalmente em direção a cidades como Manchester e Londres que passaram a concentrar grande número de fábricas.

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A estrutura medieval destes núcleos urbanos não estava apta a equacionar todas essas modificações abruptas. BENEVOLO (1999, p. 566) traz o seguinte relato:

... ao longo das ruas correm os esgotos descobertos, se acumulam as imundícies, e nos mesmos espaços circulam as pessoas e os veículos, vagueiam os animais, brincam as crianças. Além do mais, os bairros piores surgem nos lugares mais desfavoráveis: perto das indústrias e das estradas de ferro, longe das zonas verde. As fábricas perturbam as casas com as fumaças e o

ruído, poluem os cursos de água, e atraem um trânsito que deve misturar-se com o das casas.

Assim entre 1830 e 1850 a urbanística moderna dá seus primeiros passos, empenhada a solucionar os defeitos da cidade industrial. Técnicos e higienistas vão esforçar para diagnosticar e eliminar alguns dos males desta sociedade, tais como escassez de esgotos, água potável e a propagação de epidemias.

De acordo com Lucia Lippi de Oliveira é somente no inicio do século XX que a ciência das cidades, o urbanismo encontra sua configuração “completa”. Nos anos 1840 ainda em formulação ela aparece como Ideia Sanitária e em seu postulado a preocupação em sanear o corpo e igualmente atuar sobre a moralidade do trabalhador ou (homem pobre).

É cada vez maior a preocupação com a salubridade dos espaços públicos por parte da ciência na Europa no decorrer do século XVIII. A teoria dos miasmas que consideravam por vezes o ar e água portadores de emanações fétidas e pútridas compunha o campo de descobertas do saber médico. Assim os cemitérios, matadouros, as moradias da população pobre, os hospitais passaram a serem considerados locais perigosos, oferecendo riscos de contaminação aos citadinos.

Com o avanço e aperfeiçoamento da técnica no século XIX a teoria dos miasmas é abandonada devido às descobertas de Pasteur, substituindo-a pela teoria dos micróbios. Desse modo os cientistas passam a aceitar a ideia de contágio por germes infecciosos e a refutar a crença na contaminação pela inalação do ar contaminado.

Luiz Laerte Soares (2002, p.19) citando Janot, afirma que, partindo do pressuposto que na medicina as cirurgias têm como objetivo principal o tratamento de doenças humanas, poderíamos dizer, por analogia, que as cirurgias urbanas são intervenções realizadas nas cidades, geralmente, com o objetivo de tratar supostas anomalias existentes no tecido urbano. Sendo assim grande parte das cirurgias urbanas realizadas nas grandes metrópoles objetivavam adequar as cidade ou partes delas a padrões urbanísticos coerentes com as respectivas ordens sociais, econômicas e políticas vigente à época das intervenções.

Outro saber que se destacou na formulação da ciência da cidade foi o do engenheiro, reivindicando o saber fazer/ produzir um ambiente desejado por meio do domínio da técnica. Colocando-se como um saber racional, objetivo, matematizado e neutro, capacitado para intervir, obtendo deste modo ao lado do saber médico o reconhecimento como autoridade para além dos interesses pessoais.

As reformas urbanístico-sanitárias empreendidas por Hausmann no ano de 1851 em Paris, construindo largas avenidas, praças monumentais e edifícios grandiosos,

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demolindo os antigos quarteirões, as ruas estreitas e tortuosas, os becos sem saída, operando uma cirurgia urbanística que se tornaria paradigma para as intervenções realizadas em outras metrópoles.

Este conjunto de intervenções urbanas é acompanhado pelo esboço de uma estratégia para disciplinar os comportamentos da população através do conforto proporcionado por equipamentos coletivos que foram no decorrer de quase dois séculos multiplicando-se de maneira a fazer dos habitantes das grandes cidades seres domésticos, voluntariamente aprisionados pelas comodidades da água quente, das notícias fornecidas pelos jornais, rádio, televisão, internet, isolados mesmo quando nas ruas em seus automóveis ou coletivamente ensimesmados nos meios de transporte de massa (BRESCIANNI, 1998, p-244).

A partir da segunda metade do século XIX, percebem-se no Brasil preocupações semelhantes com a salubridade da urbe e com o aumento populacional da cidade do Rio de Janeiro. A então, capital da República, exercia a função de centro politico-administrativo, e econômico-cultural, ao lado das imagens positivas da cidade, reforçava-se a imagem de uma cidade doente, tendo em vista que o aumento populacional contribuiu para agravar o desemprego, a fome, a criminalidade, a multiplicação dos cortiços e a profusão de doenças.

No inicio do século XX, o sanitarista Oswaldo Cruz e o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Engenheiro Pereira Passos, dão cabo a luta contra os espaços insalubres, em especial os cortiços tido como responsável por várias doenças. No lugar dos cortiços do centro da cidade foram abertas ruas, praças e avenidas longas, largas e arejadas. Estas ações do poder público para remodelar, sanear e embelezar a capital federal teve a marca autoritária do Estado, o prefeito Pereira Passos acometeu-se de poderes ilimitados para realizar seus intentos.

Assim como nas intervenções de Hausmann, a população pobre representou o perigo, submetida a uma profunda cirurgia urbana, obrigaram a população pobre a se transferirem para longe do centro “civilizado”, sob a égide do progresso e da modernidade. Os republicanos buscaram com todas essas transformações implementadas no corpo urbano da capital federal evidenciar as contraposições em relação à Monarquia, identificada como período de atraso econômico e social.

Luiz Laerte Soares(2002, p-26) citando Segawa, traz uma descrição perturbadora do ambiente urbano carioca , alvo das obras saneadoras do Engenheiro Passos e do médico sanitarista Oswaldo Cruz, a ideia da definição do comportamento humano desenhado pelo traçado das ruas, e a crença na “Regeneração” moral por através da educação, instrução e também da intervenção prática no espaço físico da cidade:

[...] a estreiteza da rua, a tortuosidade da rua, o ambiente corrosivo da rua, podem concorrer no homem, desde a infância, para a estreiteza de vistas e até mesmo para a tortuosidade do caráter, cujos maus resultados só a instrução e a educação podem corrigir.[...] Acostumados desde a infância com as ruas estreitas, escuras e tortuosas do Rio de Janeiro, o carioca é um defeituoso, não enxerga bem e caminha mal; [...] A influência da linha reta no moral e no físico do homem, não é uma ficção; a reta não é só o caminho por onde a luz se propaga e difunde

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para chegar aos nossos olhos, é também o caminho por onde a luz chega ao nosso espírito; e a prova é, que a linha reta do dever é um fato moral. A rua reta, arborizada, embelezada e larga é o meu ideal para o Rio de Janeiro, que deve reconstruir os foros de primeira cidade em tudo, da América dos Sul.[sic]

Urbanizar e conferir um aspecto moderno, regular o presente e prever as demandas futuras. Tal foi a intenção dos vários planos de intervenção nas cidades. Traçado de ruas, abertura de novos bairros, zoneamento, adoção de técnicas construtivas atualizadas, estilos adequados para expressar visualmente a “modernidade” (FREITAS, 1999. p-255).

O Rio de Janeiro se tornou referência para outras capitais e cidades brasileiras, no que diz respeito às intervenções urbanísticas, pretendeu-se com as reformas nas principais cidades brasileiras aproximar economicamente e socialmente o Brasil dos países industrializados, símbolos do progresso e modernização. Sanear, limpar, embelezar que estavam no cerne do comportamento politico-administrativo europeu e simbolizavam a civilização moderna, passam a ser imitados no Brasil.

Entre 1930 e 1950 com a inauguração do “Estado Novo”, coincidindo com a crise do liberalismo, a presença do Estado em todos os âmbitos da sociedade se faz mais marcante, e conforme Leme, os projetos urbanísticos deste período apresentaram um aspecto de totalidade, propondo articulação entre os bairros e centro por meio de vias e de transportes. O governo passa a regular a questão da moradia, a relação entre inquilinos e locadores, e a produzir a moradia do trabalhador, por meio de autarquias estatais.

Aqui gostaríamos de ressaltar que a cidade põe em cena o embate simbólico entre Natureza e Civilização, pois a cidade em sua materialidade representa o domínio da natureza pelo homem, ela é produto da “arte humana”. Contrapondo-se ao sentimento de abandono, de rusticidade e agressividade do estado de natureza, a cidade com seus muros, e aglomerados de casas representam um lugar de refúgio, conforto e segurança.

O domínio sobre a natureza, onde o poder transformador/criador do homem se torna efetivo, remete a uma ideia da possibilidade de controle não apenas do espaço físico, mas também do controle sob o comportamento e os hábitos humanos por meio da racionalidade.

Essas cirurgias urbanas procuraram não apenas romper com as antigas estruturas físicas das cidades, criou-se uma contraposição visual e simbólica à ordem vigente anterior, elas possuem um devir moral, de “regenerar” os citadinos, de modificar seus hábitos e comportamentos, de produzir um homem novo, novas sociabilidades, de formar o bom trabalhador e o bom cidadão.

Há uma escassez de estudos em relação aos processos de urbanização de cidades do interior do Brasil, neste trabalho incipiente estamos procurando entender as especificidades do nosso objeto, como ocorre a leitura e apropriação das transformações urbanas que estão ocorrendo nos grandes centros urbanos do país e no estrangeiro, porém neste trabalho optamos por analisar a construção da ordem, através

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crença no progresso técnico, econômico, social e moral, buscando inserir a sociedade Viçosense na modernidade.

Gostaríamos de chamar a atenção para um símbolo importante para a constituição de um imaginário da República no Brasil, a criação da nova bandeira nacional, que embora faça referências a elementos da tradição imperial, tem uma forte influência positivista, com o lema “Ordem e Progresso” sendo a ordem o meio para se chegar ao progresso como final ideal.

As posturas municipais contêm uma série de disposições que regulamentam a vida dos munícipes, incumbindo-os assim como a administração municipal de deveres, sob o risco de multa e prisão. Elabora-se como salienta Araújo (2008, p-235) a constituição de uma legislação que buscava agir sobre a esfera pública e atingia indelevelmente o domínio do privado. Os dispositivo desta legislação sugere a tentativa de criação de um “padrão básico” de ordem urbana.

A postura municipal de 1894 está dividida da seguinte maneira: uma primeira que diz respeito à ao poder deliberativo e do agente executivo, mas aqui nos interessa a Secção Primeira, capitulo I Segurança e Moralidade Publica, que engloba os artigos nº 84-91, o capitulo classifica as ações que possam ofender a moralidade, tais como pichações, gestos e palavras obscenas, as apresentações thetraes, o trajar e gargalhadas das mulheres de vida airada, os gritos e vozerias em ruas e praças fora dos dias festivos, os vadios por habito. Estes comportamentos ofensores ao decoro público, ao pudor e a moral, estavam condenados em nome da boa moralidade, dos valores civilizadores eurocêntricos.

Artigo 88. Defecar ou ourinar em lugar publico. Pena 5$000 de multa.

O capitulo II Da Segurança Individual, faz recomendações sobre embriagues, buraco nas ruas, animais soltos ou amarrados em locais que impeçam o trânsito, dançar baile, batuque, cateretê que incomode os vizinhos, vender orações, relíquias atribuindo-lhes virtudes de milagres. Observamos a condenação de alguns hábitos da tradição africana:

Art 94§1. Fingir-se inspirado por potencias sobrenatures, atribuindo-se curador de moléstias por meio de benzeções e feitico: além da multa, 8 dias de prizão.

O capitulo III Das praças, ruas e embelezamenro das mesmas; o capitulo II

Limpeza das praças e ruas, nos artigos que compõem estes capítulos encontra-se a regulação das novas ruas e praças que se abrirem, proibi-se construções com janelas ou fresta que devassem o interior da propriedade visinha, a dimensão das calçadas, privilegia-se a concessão de terrenos para construções no sentido centro-extremidade as casas deverão ser caiadas, mas o principal aqui é preocupação com o alinhamento, com a reta, com o fluxo do trânsito:

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Artigo 110. As ruas que de novo se abrirem terão 9 metros de largura e seguirão tanto quanto possivel a direcção recta e serão niveladas; as praças terão pelo menos 1600 metros quadrados.

Em relação a limpeza das praças e ruas é clara a preocupação em dar sobretudo ao centro um aspecto de saneado, embelezado, limpo. Proibindo atividades que possam corromper o ar atmosférico, aqui talvez ainda predomine a teoria dos miasmas. As águas paradas também representam um risco à saúde pública:

Artigo 153. São prohibidos no centro da cidade e povoações o córte de gado, cortumes, fabricas, de sabão ou outras quaesquer manufacturas que possão corromper o ar athmospherico, prejudicando a saúde publica – multa 30$000.

Artigo 156. São prohibidos os depositos de lixo no centro da cidade e povoações, nos pateos ou quintaes com offensa á saúde publica, multa de 30$000, e obrigação de removel-os.

Artigo 160. É prohibido nas ruas, praças e becos, sob pena de multa de 10$000:

§1. Fazer estrumeiros.

§2. Lançar immundicies, ainda que sejão por encanamentos que venhão ter a estes logares.

§4. Atirar fezes, ourinas ou aguas servidas Notamos que não há um limite claro entre os espaços público e o privado, o

governo municipal delibera medidas que interferem nos dois âmbitos, a tentativa de controle dos hábitos e comportamentos se dá pela vigilância e coerção. Conforme Araújo (2008, p-235) a preocupação com a ordem, a ocupação adequada do espaço urbano, a moral e os bons costumes implicariam um constrangimento dos indivíduos, de seus corpos e da relação estabelecida entre as pessoas e a cidade em que se vivia.

O Código de Posturas municipais de 1934 é mais detalhado, e dispõe sobre vários aspectos que interferem na coletividade sob o individuo estimulando um autocontrole, no trato da Higiene é dedicado o Título III Da policia de Higiene e Saúde, está subdividido em IV capítulos, na seguinte ordem, Disposições Gerais; Da higiene das vias públicas; Da higiene das habitações; Da higiene da Alimentação, totalizando 52 artigos.

Percebe-se que uma presença maior do Estado regulando os espaços públicos e as sociabilidades. Assim notamos como as ruas da cidade vão sofrendo intervenções do poder público, sempre preocupados com o alinhamento e a largura das ruas e avenidas, com o fluir do transito, com o embelezamento das praças, em dar principalmente a região central do município um aspecto de salubridade. E a preocupação em afastar do centro os mortos, há um discurso cientificista que justifica a remodelação do espaço, inferindo sobre um espaço até então de domínio da Igreja. Seguindo MASSARÃO citado por (LAERTE, 2002, p-24):

Os mortos passaram a ser uma ameaça à saúde; a putrefação e a corrupção dos corpos tornaram os mortos insuportáveis para os vivos, apartar o mundo dos vivos do mundo dos

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mortos tornou-se uma atitude cada vez mais recorrente, e o morto passou a ser considerado um caso patológico.

Conforme SILVA (2009,p-218) O advento da modernidade trouxe, dentre outras coisas, um modo de pensar técnico e racionalizado e uma forma de comportamento e de ação social marcados por uma lógica instrumentalizada, a qual passou a reger o modo ocidental de organização social. As ações passaram a ser dotadas de sentidos, caracterizadas por meios e fins que organizavam as formas de interação com o mundo com base na experiência de um imaginário compartilhado imageticamente.

Em fotografias que representam a cidade de Viçosa na primeira metade do século XX, podemos observar a tentativa consciente ou inconsciente do fotografo em focalizar imagens que remetam a ideia de progresso, de limpeza, de ordem. Notamos como as cirurgias urbanas na região central, evoca um ideal de modernidade, praças e jardins amplos e arborizados. A reta da Avenida P.H, que leva à UREMG, atual Universidade Federal de Viçosa tem um efeito simbólico marcante, ela leva até o espaço “produtor” do saber cientifico, contribuindo para o progresso moral, econômico, cultural da sociedade brasileira.

Portanto as primeiras conclusões que chegamos, é a de que os discurso presentes não só na legislação, e nas obras públicas, assim como nas imagens fotográficas, e também nos jornais impressos, procuraram construir a imagem de uma cidade interirorana moderna, que acompanha o ponteiro do relógio dos centros urbanos, no quesito saneamento, embelezamento, ordem. Estes discursos remetem ao campo simbólico de modernidade, de civilidade, de padrões de comportamento eurocêntrico.

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Fonte: Arquivo particular de Tony Mello.

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Educação patrimonial do campo: guardiões da paisagem e da cultura

Ronilse da Paixão OliveiraMárcio Francisco de CarvalhoTailane de Oliveira Dias

O presente projeto tem como finalidade desenvolver ações junto ao acampamento Denis Gonçalves, antiga Fazenda Fortaleza de Sant’Anna, localizada na cidade de Goianá, Zona da Mata mineira, cujas terras foram recentemente ocupadas pelo Movimento dos Sem Terra – MST. Tendo em vista que o local possui um rico patrimônio histórico, cultural, paisagístico e arqueológico, propomos trabalhar com um processo pedagógico de ensino e aprendizado alternativo. A utilização da Educação Patrimonial com acampados/as e trabalhadores/as que já residiam nas terras é uma opção possível para o suprimento da necessidade de preservação e resgate das especificidades histórico-culturais da região, buscando a reconstrução histórica das comunidades envolvidas a partir da ótica popular, através da interdisciplinaridade e da Educação Popular do Campo.

Esta proposta se insere na perspectiva da Educação no Campo, na medida em que esta se apresenta como um meio de valorizar a identidade cultural da população rural, que pressupõe um novo projeto de desenvolvimento para o campo e garantia de acesso de todos à educação, assegurando o resgate dos valores do povo. Tal proposta valoriza a memória da população local e seus saberes, promovendo o desenvolvimento de suas próprias expressões culturais. Nossa proposta consiste em trabalhar com oficinas de patrimônio cultural e oficinas de história, simultaneamente ao mapeamento do patrimônio histórico e cultural (material e imaterial) e arqueológico. Isto significa que ao trabalharmos com os pressupostos da Educação Patrimonial, que preconiza o conhecimento, apropriação e valorização de uma herança cultural pelo povo, o faremos de uma forma dinâmica.

O presente projeto se insere no conjunto de ações da Assessoria de Movimentos Sociais da Universidade Federal de Viçosa, criada em 2009, a qual tem como objetivo produzir, elaborar e sistematizar o conhecimento proveniente dos diálogos, reflexões, trocas e debates entre o saber acadêmico e o saber popular.

Nota-se que a área tem características peculiares por possuir um patrimônio histórico, cultural, espeleológico e arqueológico de importância significativa no que tange a região e o país. Daí decorre a iniciativa do presente projeto, que pretende trabalhar a partir dos pressupostos da Educação Patrimonial com os sujeitos do local, visando a identificação destes com o rico patrimônio da antiga fazenda. Esperamos assim, mapear e sistematizar, juntamente com trabalhadores/as do local, o acervo patrimonial com vistas a produzir um dossiê sobre as reais condições do acervo e de suas possibilidades

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de ganho e de perda, sendo que este processo se dará juntamente com o trabalho através de oficinas educacionais sobre patrimônio e a construção da história social.

Portanto, na antiga fazenda encontra-se um riquíssimo patrimônio histórico visível na arquitetura das construções (casa, capelas, um marco da doação de sesmarias) que ainda está por ser pesquisado e sistematizado. Tendo sido feita uma consulta prévia aos arquivos do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA), órgão da Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais, não foi encontrado nenhum registro deste bem, seja de edificações da ex-Fazenda ou de algum acervo pertencente aos antigos proprietários, com exceção do Livro de Registro de Batismo, realizados na ex-Fazenda.

Além do tratamento do patrimônio apenas em seus aspectos materiais, dos sítios arqueológicos, das obras edificadas (como benfeitorias e mesmo ruínas de antigas edificações), há a possibilidade de se encontrar obras artísticas pelo fato de constar no Laudo seja pela existência de capelas ou de outras obras ali presentes. Preconizamos também o trabalho com o patrimônio imaterial, isto é, os elementos tradicionais, a linguagem, a gastronomia local e celebrações que se tornam um componente no cotidiano principalmente das minorias como referência de identidade e cultura. Sendo assim, este projeto objetiva discutir e refletir em conjunto com os/as acampados/as o significado e o valor histórico construído sobre determinados monumentos produzidos na construção da história local e em sua linearidade temporal, com concepções e linguagens diferentes da indústria patrimonial.

Deste modo, os espaços de discussão de Educação Patrimonial em relação à Educação do Campo, no presente projeto, serão as oficinas de patrimônio e história, sendo que em termos teóricos nos pautaremos na Educação Popular, segundo princípios do educador Paulo Freire. Nesse sentido, oficinas são espaços de construção coletiva do conhecimento, levando em consideração a experiência e saber de todos os envolvidos: educandos e educadores, unindo teoria e prática, ou seja, reflexão e ação para desenvolvimento do ensino-aprendizagem na transformação e enriquecimento dos pensamentos e atitudes com relação ao processo histórico e a questão patrimonial.

Como objetivo principal se propõe resgatar e sistematizar através de processos educativos coletivos o patrimônio histórico, cultural e arqueológico, valorizar os conhecimentos dos sujeitos envolvidos e gerar, através do diálogo do saber acadêmico e popular, a consciência histórica e novos conhecimentos.

Levando em consideração o caráter interdisciplinar da nossa proposta, que visa, através da Educação Patrimonial, realizar um trabalho de conscientização sobre a importância da preservação do patrimônio local e a identificação dos moradores do acampamento com o mesmo, o resgate do patrimônio cultural entre os acampados e moradores da antiga fazenda e o mapeamento do patrimônio histórico, cultural e arqueológico com a construção final do dossiê, assim como levantamento da história local, junto aos acampados; consideramos alguns marcos metodológicos centrais como a História Oral e as oficinas, além de outros processos importantes para o desenvolvimento do projeto.

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Metodologia

História Oral

Nesse sentido, de acordo com metodologia de oficinas, embasada na perspectiva da educação popular do campo, que tem como um dos principais objetivos a necessidade do educador se aproximar da realidade do educando; e, ao mesmo tempo, com idéia de levantar a história local, procurando inserir a história dos educandos na mesma; colocamos como ponto central para o projeto a utilização da História Oral. Sendo assim, a História Oral nos possibilitará o acesso à história de cada indivíduo entrevistado: acampados (que chegaram com a ocupação), trabalhadores da antiga fazenda e moradores da região, o que é essencial para que possamos trabalhar com os educandos , estes enquanto atores da história, e para nos aproximarmos de suas histórias.

Muitas pessoas acreditam que o fato de se fazer entrevista já seja a Historia Oral, porém isto não é verdade, pois a entrevista é parte e não o todo da Historia Oral. Sendo assim, o trabalho com a metodologia de história oral compreende todo um conjunto de atividades anteriores e posteriores à gravação dos depoimentos. Exige, antes, a pesquisa e o levantamento de dados para a preparação dos roteiros das entrevistas como também a escolha da colônia, ou seja os grupos que serão entrevistados, e a formação de rede, que parte de um levantamento de pessoas a serem entrevistadas a partir de entrevistas com as pessoas selecionadas anteriormente. Posterior a pesquisa é necessário transcrever as entrevistas e partir para a análise.

Deste modo, na preparação das oficinas faremos viagens ao acampamento Denis Gonçalves para fazer as entrevistas com as pessoas selecionadas, a partir desse método. O material das entrevistas será utilizado como fonte para trabalharmos nas oficinas de história com os educandos, que participarão das análises das mesmas.

Atividades desenvolvidas no projeto

Oficinas

Partimos do princípio de que uma oficina é um ambiente onde se constrói algo que será utilizado. Nesse sentido, oficinas são espaços de construção coletiva do conhecimento, levando em consideração a experiência e saber de todos os envolvidos: educandos e educadores, unindo teoria e prática, ou seja, reflexão e ação para desenvolvimento do ensino-aprendizagem na transformação e enriquecimento dos pensamentos e atitudes com relação ao processo histórico e a questão patrimonial.

Assim, propomos trabalhar com oficinas de acordo com os princípios da educação popular, nesta perspectiva os educadores não são transmissores do saber, mas mediadores entre o conteúdo a ser trabalhado e o conhecimento próprio dos educandos, auxiliando esses a criar seus próprios significados sobre os temas

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estudados; e problematizando os conteúdos a partir das realidades dos mesmos. Deste modo, é essencial que no planejamento da oficina o mediador procure conhecer o meio em que os educandos estão inseridos.

As oficinas têm como objetivo desenvolver o interesse de acampados e trabalhadores da antiga fazenda para o tema abordado, sendo assim é essencial que estes participem da construção do tema, sendo estimulados por diversos recursos. Nesse sentido, a oficina não é só uma interação de idéias, mas a problematização das mesmas, a partir de variados recursos como fontes de relatos individuais a partir das entrevistas, música, filmes, documentos diversos, interação com outras pessoas que não os agentes da oficina, interação com o ambiente local, com o patrimonio material e imaterial etc. Deste modo, partindo da temática de cada oficina, trabalharemos com os variados recursos, discutindo-os em grupo, refletindo e avaliando a relação da temática com a fonte e com os objetivos da oficina.

Aqui, ressaltamos nossa preocupação em considerar dentro do processo metodológico das oficinas as diferenças entre as realidades dos sujeitos, na medida em trabalharemos com os trabalhadores que vieram com a ocupação, destacando-se ainda que esses vieram de realidades distintas entre si, e com os trabalhadores que já residiam no local antes da ocupação, ou seja, pessoas que possuem suas próprias vivências históricas, culturais, sociais etc. Ao mesmo tempo, tomaremos o devido cuidado com a distinção entre as faixas etárias dos acampados, já que teremos um público alvo com crianças, jovens e adultos, o que coloca a necessidade de desenvolver oficinas que despertem o interesse de todos. Outra preocupação é a diferença entre os níveis de alfabetização e, destacamos o fato de que muitos dos acampados são analfabetos ou semi-analfabetos, propomos montar oficinas juntamente com a EJA – Educação de Jovens e Adultos, que pautem a interdisciplinaridade integrando a alfabetização com a educação patrimonial e o ensino de história.

As oficinas, portanto, possuem um caráter interdisciplinar, na medida em que procuram trazer para a discussão vários elementos que envolvem outros conhecimentos, como o cultural, social, ambiental, filosófico, geográfico, biológico etc.

Elas partem da ideia de aprender com a prática, ou seja, a construção do conhecimento juntamente com os próprios acampados e moradores da antiga fazenda, auxiliando-os também nas investigações sobre os temas, o que ressalta o caráter de metodologia participativa; a metodologia da pergunta, que visa discutir os temas a partir do conhecimento prévio; o trabalho interdisciplinar; o caráter planetário e integrador, ou seja, o ser ativo na sociedade, enquanto corpo, mente e espírito; o trabalho grupal e a interação entre ensino, pesquisa e prática.

As oficinas procurarão a partir de aulas temáticas, pensadas junto com os educandos, discutir e enriquecer o conhecimento dos educandos (e nossos) sobre a história da região de Goianá e do Brasil e sobre a questão patrimonial que envolve todo o acampamento; incentivar o exercício da análise crítica da realidade; promover mudanças de atitudes através dos debates compartilhados, do trabalho em grupo. Nesse sentido, optamos por oficinas porque estas estão de acordo com nossas ideias

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de ensino mais humanizado respeitando culturas e valores, partindo da união do saber e das ideias de todos os agentes envolvidos, educandos, educadores e agentes auxiliadores.

Esperamos trabalhar com o método de oficinas de patrimônio e de história no acampamento Denis Gonçalves segundo uma dinâmica que possibilite o empoderamento de procedimentos metodológicos e técnicos pelos trabalhadores do Acampamento Dênis Gonçalves, de forma que eles se conscientizem enquanto sujeitos da história local e, consequentemente, enquanto “guardiões” do patrimônio da região.

Por isso, pretendemos dialogar constantemente com as percepções históricas e patrimoniais dos acampados, discutindo o conceito de patrimônio enquanto concepção histórica e arqueológica que se refere à memória e identidade cultural coletiva dos sujeitos. Ao mesmo tempo, propomos discutir e resgatar a história da antiga fazenda e da região, que interfere diretamente na vida dos acampados, olhando para os resquícios de um passado escravocrata e latifundiário, com o qual faremos um contraponto com a história atual e com a possibilidade de atuar e transformar a história do presente, enquanto sujeitos históricos.

Oficinas de História

A proposta inicial das oficinas de história para o acampamento de Goianá é utilizar o material coletado pelo método da história oral. Ou seja, esses relatos individuais, serão então utilizadas como fonte nas oficinas de história. A finalidade de tais procedimentos consiste na relação das histórias individuais com a história regional, no caso a história da Zona da Mata mineira, segundo questões econômicas e agrárias. Nesse sentido, nossa proposta consiste em fazer das oficinas de história, espaços de formação e de discussão da própria história individual dos acampados e trabalhadores, na medida em que suas reivindicações e lutas estão inseridas numa escala estrutural da realidade brasileira de concentração fundiária e desigualdade social. Especificamente a região em que se situa a antiga fazenda Fortaleza de Sant'Anna, bem como esta fazenda, são o símbolo da referida realidade.

Trabalharemos com a história regional a partir de duas vertentes: a primeira nos atentando para a localidade de Goianá e a antiga fazenda Fortaleza de Sant'Anna; e a segunda numa perspectiva abrangente. Ou seja, ao fazer o contraponto entre história local, regional e nacional ou global; o faremos a partir do enfoque acima definido, isto é, problematizando a questão econômica e agrária no decorrer da história. Neste sentido, ao trabalharmos com a educação patrimonial, procuraremos discutir a problemática agrária no Brasil.

Pretendemos trabalhar com materiais diversos, não somente documentos escritos, mas áudio-visuais, artísticos etc. Sendo que ao trabalhar a história com acampados e moradores, o local nos possibilita a visualização da história, nas

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construções antigas, nas estradas, nas plantações, na dimensão territorial etc, que o faz ser apontado pelo laudo do INCRA como patrimônio histórico-cultural.

Oficinas de Educação Patrimonial

A própria paisagem da fazenda, isto é, o próprio espaço geográfico e físico onde ocorrerão as oficinas, nos possibilitará trabalhar de uma maneira dinâmica com a questão patrimonial, já que a área em questão, apresenta fragmentos de um modo de produção já superado, bem como um conjunto de patrimônio histórico-cultural (material e imaterial), sendo relevante a sua preservação.

Caminhadas Tranversais

Juntamente com as oficinas, propomos também usar a metodologia das caminhadas transversais, que entendemos como momentos de interação física entre os agentes das oficinas e o ambiente estudado. Nesse sentido, essas caminhadas pautam a interdisciplinaridade, na medida em que durante os trajetos escolhidos podem ser sucitadas discussões referentes à história, espeleologia, arquitetura, meio ambiente, cultura, geografia etc, todas numa perspectiva que busque a reflexão sobre os moradores locais enquanto integrantes desse patrimônio e, portanto, como agentes da preservação do mesmo.

Contação de História

Além de oficinas e as caminhadas transversais, propomos trabalhar com contação de história, que são compreendidas enquanto espaços de levantamento de elementos para se trabalhar os indivíduos como agentes históricos, assim como para se trabalhar o patrimônio cultural. Deste modo, ao mesmo tempo em que esses espaços serão momentos de sociabilização entre todos os agentes do projeto, educandos, educadores e parceiros, serão importantes momentos no desenvolvimento do processo de conscientização dos acampados enquanto construtores de uma história, que os identifique com o local onde estão acampados, e enquanto guardiões do patrimônio histórico, cultural e arqueológico.

Reuniões Interinstitucionais

Faremos duas reuniões interinstitucionais, entre todos os parceiros, que serão realizadas no acampamento Denis Gonçalves com a participação dos acampados. Nas reuniões discutiremos o projeto, as propostas que surgirem, as articulações entre as instituições, as avaliações etc.

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Excursões Pedagógicas

As excursões serão realizadas à museus, arquivos, instituições patrimoniais e patrimônios, com intuito de formação e conhecimento dos agentes do projeto, que auxilie na preparação das discussões e oficinas de Educação Patrimonial. Assim, procuraremos nos preparar antes dessas excursões, entrando em contato com essas instituições, buscando informações para definir nossas metas para a visita.

Seminários

Será realizado um Seminário em outubro de 2011, no qual discutiremos o presente projeto de extensão a partir das experiências e atividades desenvolvidas no decorrer do projeto e os materiais que já estiverem sistematizados. Nossa proposta é realizar o seminário na UFV, abrindo para todos discentes e docentes desta instituição, bem como de outras instituições, já que o projeto tem como uma das premissas estabelecer parcerias inter-institucionais. Convidaremos também movimentos sociais envolvidos no projeto.

Palavras-chave: educaçao patrimonial, história oral, memória.

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O ensino de história e seus desafiosSuzi Ellen Lopes Barroso

O presente trabalho pretende discutir algumas dificuldades de aprendizagem de alunos da educação básica tendo como exemplo a experiência do PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência) da Universidade Federal de Viçosa na área de história que vem desenvolvendo suas atividades, a princípio através de aulas de reforço, na escola estadual “Professor Sebastião Lopes de Carvalho” localizada em um bairro pobre da cidade de Viçosa, possui apenas o ensino fundamental (1º ao 9º ano), e atende a uma clientela formada por alunos carentes. O programa tem como um de seus objetivos contribuir para a melhor formação de alunos da rede pública da educação básica. Portanto temos desenvolvido nossas atividades visando alcançar tal objetivo.

Deficiências do processo de aprendizagem na leitura, escrita e interpretação de textos têm sido constantemente observadas por professores de história, como aponta Ubiratan Rocha, diante de tais problemas os educadores tem se feito a seguinte pergunta: como ensinar história a alunos com sérias dificuldades de leitura, interpretação e escrita, fundamentais para o aprendizado do conteúdo da disciplina? A solução muitas vezes encontrada é postergar o conteúdo de história visando suprir as deficiências do processo de aprendizagem, dessa forma muitas vezes o papel do professor de história não se limita a ensinar história. (ROCHA, 2002).

Além dos Problemas referentes à leitura, interpretação e escrita apontados por Ubiratan foram identificados nos alunos do 7º ano atendidos pelo PIBID: desinteresse pela disciplina, dificuldade na identificação de séculos, datações de períodos antes de Cristo, interpretação de mapas e localização geográfica. Diante de tais problemas surge o desafio de propor possíveis soluções.

Partindo do pressuposto de que cabe ao professor estimular o educando precisávamos de algo que estimulasse os alunos a participassem com prazer e não por obrigação. Foi então que surgiu a idéia da criação de uma moeda, denominada por nós de “talentos” que seria dada a eles de acordo com a realização de atividades, estas visam suprir as deficiências do processo de aprendizagem. Usamos então o reforço positivo como metodologia. Uma vez que este oferece algo desejado a fim de obter um resultado positivo (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999), no caso são oferecidos “Talentos” (ao final do bimestre os alunos farão compras com o dinheiro conquistado) e a resposta desejada é a execução de atividades contendo mapas, narrativas verbais e não-verbais, documentos históricos entre outros recursos. Achamos esse método bastante adequado ao nosso caso, pois unia estimulo aos alunos e a possibilidades de obtermos um resultado positivo.

Temos consciência de que em muitos casos por trás das dificuldades de aprendizado estão questões pessoais como problemas familiares, carência alimentar devido à situação econômica da família, carência afetiva e mesmo a falta de participação dos pais ou responsáveis na vida escolar dos educandos. No que diz

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respeito a estes fatores muitos trabalhos vêm sendo publicados como os de Matos e o de Marques. Quanto a este assunto apesar de sua importância não iremos nos aprofundar no momento.

Como dito tais atividades visam sanar as dificuldades já mencionadas, além de levar os educandos a se identificarem como agentes da história e a conhecer o processo de construção do conhecimento histórico. Tentamos suprir as deficiências do processo de aprendizagem postergando o menos possível o conteúdo de história (muitas vezes postergá-lo é inevitável). O reforço positivo utilizado baseia-se na teoria de Skinner do comportamentalismo, quanto a este Cunha afirma que “(...) pode significar promoção de aprendizagem, com ganhos evidentes para o aluno, para o professor e também para o sistema de ensino”. (CUNHA, 2002, p. 47).

A proposta do reforço positivo foi levada aos alunos, pois como pretendíamos estimulá-los era fundamental que houvesse aceitação por parte dos estudantes e não uma imposição de nossa. A proposta foi bem recebida pelos estudantes que concordaram em fazer as atividades propostas e se mostraram interessados e empolgados. Nossas atividades estão em andamento até o momento obtivemos como resultado maior interesse pelas aulas, bem como pela disciplina e empenho no desenvolvimento dos trabalhos esperamos ao final de nossas atividades resultados ainda melhores e a superação das deficiências já mencionadas.

Bibliografia

BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes. O Behaviorismo. In: Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. 13ª Ed ver. E ampl. São Paulo: Saraiva, 1999. CUNHA, Marcus Vinicius da. Pavlov, Watson e Skinner: comportamentalismo e educação. In: Psicologia da educação. 2ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

MARQUES, Neuza Maria da Silva. Dificuldade de aprendizagem e a carência afetiva e alimentar. Viçosa MG: UFV, DPE, 2005.

MATOS, Marinalva Gracioli Neves. Dificuldade de aprendizagem: a importância da escola e da família na construção da auto-estima do educando. Viçosa MG: UFV, DPE, 2005.

ROCHA, Ubiratan. História, currículo e cotidiano escolar. São Paulo: Cortez, 2002.

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Estátua Arthur Bernardes: memória ou esquecimento?

Tainara Duarte Moreira

Como o estudo do patrimônio cultural, de sua preservação e interação com os cidadãos constituem hoje um campo em rápida expansão e mudança é de suma importância pesquisas relacionadas à preservação deste e de sua memória estando este presente cada vez mais nas discussões acerca das cidades. O que preservar? Como preservar? Qual a importância da preservação?

O monumento interage com o complexo panorama urbano e é parte da vida da cidade, assim como das suas funções, liga-se à vida da comunidade e do cidadão comum, funcionando como símbolos e formando imagens mentais que dão forma à cidade.

É nesse espaço da cidade - em especifico a cidade de Viçosa, Minas Gerais - que pretendo fazer o estudo da relação existente entre o monumento, ou seja, a personalidade representada neste - a estátua dedicada a Arthur Bernardes localizada na Praça Silviano Brandão - e os moradores da cidade de hoje. Por meio do recurso da memória individual e/ou coletiva que estes possuem não apenas no que diz respeito ao monumento mais também com relação ao contexto histórico que este pertenceu, e suas relações existentes entre o cidadão e o monumento representado na praça e os dias atuais.

Ao se pensar esta relação do cidadão viçosense com o monumento - a personalidade representada neste - foi colocada diversas questões: Como o monumento esta relacionada à memória individual ou coletiva do cidadão viçosense?Ele possui alguma importância para a história da cidade na visão dos cidadãos? Os cidadãos possuem algum “apego” ao monumento erguido na praça ou este é “invisível”, ou seja, sem importância para eles? Estes sabem quem é a pessoa representada naquela estatua e conhecem a sua história? Por meio destes questionamentos ao longo da pesquisa tentarei durante as leituras realizadas encontrar suportes teóricos e metodológicos para que estas questões possam ser esclarecidas.

A pesquisa será realizada inicialmente por meio do estudo de documentos, jornais da época, fotografias, atas da câmera que possam ajudar a entender a história da cidade de Viçosa, de Arthur Bernardes, do espaço no qual se encontra a estátua - se esta sempre esteve no mesmo local ou não. Além de realizar entrevistas com pessoas da cidade, principalmente as que transitam ou moram próximas do monumento.

Um fator a se destacar na analise é a relação que o cidadão tem com o monumento através da memória, seja ela individual ou coletiva, por isso o estudo desta é de suma importância para se compreender como o monumento interage com o complexo panorama urbano e se este faz parte da vida da cidade, ligando-se à vida da comunidade e do cidadão comum, funcionando como símbolos e/ ou formando imagens mentais que dão forma à cidade.

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[...] A memória se concretiza, muitas vezes, em artefatos que vão desde um documento escrito até os grandes monumentos arquitetônicos. Esses bens patrimoniais tornam próximo o que é distante no tempo e no espaço.( MEIRA, Ana Lúcia,2004)

Através desta investigação será ressaltada alem da importância do fenômeno memória como objeto cada vez mais privilegiado do estudo da História e o da existência de lugares de memória enquanto testemunhos ou sinais provisórios ou artificiais de um tempo que passa, para que seja possível encontrá-la disponível no futuro.

[...] A memória se concretiza, muitas vezes, em artefatos que vão desde um documento escrito até os grandes monumentos arquitetônicos. Esses bens patrimoniais tornam próximo o que é distante no tempo e no espaço. (MEIRA, Ana Lúcia, 2004)

Segundo Nora, ao abordar os lugares de memória ela percorre lugares onde esta é lembrada e comemorada (museus, medalhas, monumentos, festas) lugares que ancoram a memória, sendo esta ligada intimamente a idéia de Nação.Com isso, a História se apropria da memória , desnaturalização símbolos consolidados e reconhecendo que esta não se produz espontaneamente, mas é constantemente comemorada para não ser esquecida.

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres notariar atas, porque essas operações não são naturais. [...]E se, em compensação, a historia não se apoderasse deles para deforma-los, transforma-los sova-los e petrifica-los eles não se tornariam lugares de memória.(NORA, Pierri,1987)

A historiadora Ana Rita ressalta sobre a construção dos monumentos e da criação de novos lugares de memória :

A produção de um monumento esta imersa na cultura e nas necessidades do presente, sendo que, ao longo do tempo, a sociedade encontra novos meios e lugares de memória. (UHLE, Ana Rita,2006)

O monumento se coloca como símbolo para os observadores e passante, que o recebem e o lêem como um marco e o colocam como um importante ponto de referência espaço-temporal. Ele pode assumir diferentes significados ao longo do tempo, o discurso histórico se altera, os simbolismos são ampliados, metamorfoseados e adaptados às novas condições da cidade.

Um monumento pode ser uma importante parte do conjunto caótico de uma cidade, colocando-se como uma referência imagética e concreta para os seus habitantes. O valor histórico dos monumentos e das partes antigas da cidade nos põe a indagar como situar o antigo e o moderno e como um pode funcionar sem o outro. Como escolher ou avaliar o que deve ser preservado. (ARGAN, Giulio Carlo,1993.).

O monumento será analisado considerando suas formas de apropriação e leituras, partindo do contexto do lugar - Praça Silviano Brandão em Viçosa, Minas

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Gerais - e da relação deste monumento urbano com a percepção espacial para assim, fazer um exame da representação simbólica da imagem representada neste. O presente trabalho pretende também fazer a inclusão do monumento público- estátua Arthur Bernardes- no cenário urbano através de inter-relações entre o espaço e representação simbólica da imagem. O espaço nessa perspectiva incorpora uma dimensão simbólica criando uma leitura multidimensional e diversificada, proporcionando outro olhar sobre o ambiente físico.( NORA, Pierri, 1987).

Compreender o porquê de se inaugurar, de se erguer um monumento urbano como signo ou símbolo é fundamental para estabelecer suas relações com o social e com a percepção do monumento como imagem. Se um monumento é visto como um símbolo pelo observador, considerando-se a maneira como a sociedade o interpreta e qual a forma que ele assume no imaginário coletivo, pois é a imagem que ele assume para os habitantes da cidade que expressa e define sua importância para o social. Se visto como signo, compreendemos como o monumento se coloca para um observador como idéia da representação de alguma coisa.

A analise a ser realizada é capaz de nos revelar de que forma se interligam a urbanização da cidade, a vontade de memória e a sua forma de apropriação feita pela sociedade. Considerando assim, a intima relação entre a memória coletiva e o espaço urbano, podemos desta forma compreender o potencial simbólico dos monumentos e o espaço de conflito que se consolida na cidade.

O uso do método da história oral ajudará a pesquisa na medida em que esta estabelece relação com a memória, história do tempo presente, biografias, trajetórias de vidas, entre outras.

Toda fonte histórica deriva da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta. (AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes ,2006)

Um dos grandes desafios para o historiador ao utilizar as fontes orais é que através desta, ele se propõe a reconstruir testemunhos e história de vida. A história oral é, portanto, um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a história em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais.

O passado espelhado no presente reproduz, através de narrativas, a dinâmica da vida pessoal em conexão com processos coletivos. A reconstituição dessa dinâmica, pelo processo de recordação, que inclui ênfase, lapsos, esquecimentos, omissões, contribui para a reconstituição do que passou segundo o olhar de cada depoente. (THOMPSON, Paul,1992)

Ao utilizar diversos métodos de pesquisa como fontes orais, documentos escritos e iconografias tentarei por meio do regate da memória dos cidadãos da cidade de Viçosa, para entender a importância dada ao monumento erguido em homenagem

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Arthur Bernardes- se é que realmente dar-se-ia importância a este-, para buscar respostas para os diversos questionamentos que surgiram ou eventualmente vão surgir ao longo da pesquisa.

Por meio das entrevistas a serem realizadas com três pessoas de Viçosa que estão envolvidas de forma direita ou indireta com a representação – monumento Arthur Bernardes- tentarei responder os questionamentos que surgiram ou irão surgir durante a pesquisa.

Por meio das fontes iconográficas, será feita a leitura das imagens, através da interpretação destas no campo sociocultural sendo colocado o papel que estas podem exercer como objeto de recordação ou elemento de ficção. Objetivando assim, mostrar o caráter de representação inerente ás imagens, a relação entre fotografia e memória; do papel da fotografia como representação, da utilização da fotografia como fonte histórica, da relação entre fotografia e história dentre outros.

[...] uma imagem [...] Apresenta-se como uma linguagem que não é verdadeira nem falsa. Seus discursos sinalizam lógicas diferentes de organizações do pensamento, de ordenação dos espaços sociais e de mediação dos tempos culturais [...] uma dada imagem é uma representação do mundo que varia de acordo com os códigos culturais de quem a produz.( BORGES, Maria Eliza Linhares, 2003)

Para ajudar na pesquisa utilizarei principalmente as tabela1 e 2 presentes no texto de Ana Maria Muad, através de sua metodologia no qual é de suma importância para a identificação do material fotográfico.( MAUAD, Ana Maria,2008)

O método da contextualização nos ajudara a entender o momento histórico, fragmentariamente congelado no conteúdo das imagens e ao ato da tomada do registro.

[...] o historiador que escolhe usar o documento fotográfico deve saber, também, que o olhar do fotografo pode ter sido motivado por intenções distintas das que norteiam a pesquisa do historiador. Para que este estudo incorpore o que esta implícito e implícito na imagem fotográfica sem, no entanto, sucumbir às interações do fotografo, alem do método da contextualização da imagem, o cruzamento do documento visual com os textuais e orais torna-se imperativo para responder as questões tipicamente históricas. (BORGES, Maria Eliza Linhares,2003)

A fotografia é resultado de um jogo de expressões que envolvem o autor, o texto propriamente dito e um leitor. Na qualidade de texto a imagem iconográfica pressupõe competência para sua produção e leitura, portanto ela deve ser concebida como uma mensagem que se organiza através de signos como expressão e conteúdo. O primeiro envolve escolhas técnicas e estéticas, como o enquadramento, a iluminação, a definição da imagem, o contraste, a cor e outros. Já o segundo é determinado pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivencias que compõe a imagem fotográfica.

Portanto, para compreender o que esta “implícito” nas fontes fotográficas é preciso que o historiador faça uma “desmontagem” minuciosa desta tentando conhecer, compreender e interpretar, em um contexto histórico esta fonte investigando quem a

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produziu, para quem ela foi produzida, qual o objetivo dessa produção - transmitir informações de ambientes, formas, aparências, sentimentos e emoções, detalhes da esfera do privado e ou do público- dentre outros fatores que contribuíram para que esta fosse produzida.

[...] Não importante se à imagem mente, o importante é saber por que mentiu e como mentiu. [...] Toda imagem é histórica. O marco da sua produção e o momento de sua execução estão indefectivamente decalcados nas superfícies da foto, do quadro [...]. A historia embrenha as imagens, nas opções realizadas por quem escolhe uma expressão e um conteúdo compondo, através de signos de natureza não-verbal, objetos de civilização, significados de cultura. ( MUAD, Ana Maria,2008)

Por meio destas fontes tem-se como objetivo encontrar um material vasto que possibilite o estudo da relação do cidadão viçosense com a personalidade representada na estátua Arthur Bernardes.As iconografias ajudaram a definir se o monumento sempre esteve na Praça Silviano Brandão ou se este foi deslocado. Caso tenha ocorrido deslocamento ira nos ajudar a responder pra onde esta foi deslocada e porque?

Outro local que nos possibilitara a pesquisa será o fundo Arthur Bernardes que através de seus documentos nos ajudara a realizar as pesquisas e responder os questionamentos presentes nestas e os que eventualmente irão surgir durante a pesquisa

Os referenciais teóricos da presente pesquisa a serem apresentados a partir de alguns conceitos fundamentais estão aqui explicitados por meio da discussão da literatura pertinente ao estudo.

Para definir o conceito de documento/ monumento Le Goff, parte do pressuposto de que os monumentos são heranças do passado e os documentos são a escolhas do historiador. Este não deve deixar de criticar o documento enquanto monumento, pois, não existe um documento verdade. O documento para Le Goff é resultado de montagens conscientes ou não feitas pela sociedade que o produz, das épocas que pertenceram não sendo algo inócuo. O documento é monumento. Com essa definição ele tenta transferir o conceito de documento/monumento do campo da memória para o da ciência histórica. Como afirma Le Goff:

Adventos da memória coletiva, os documentos são monumentos, na medida em que alem da simples discrição traduzem valores, idéias, tradições e comportamentos que permitem tanto recuperar formas de ser e agir dos diferentes grupos sociais, em diversas épocas históricas, como também operar sobre as representações que deles ainda hoje perduram e atuam como elementos de coesão social para seus descendentes. (LE GOFF, jacques,1994)

O historiador revela também que por detrás da memória, a algo que o monumento não diz explicitamente: as condições de produção e de “inconsciente cultural” o que proporciona sua idealização.

Segundo o Annateresa Fabris, monumento histórico, para Riegl é uma criação da sociedade moderna, um evento histórico localizado no tempo e no espaço. Como também “Tudo que foi e hoje não é mais”. Ou seja, caracterizam os monumentos

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históricos todas as atividades humanas que existem como testemunho. Dessa forma, identificamos um primeiro problema, a questão de colocar um sentido muito amplo, considerando todos os acontecimentos como histórico.

Portanto, a analise destas obras é capaz de nos revelar que forma se interligam a urbanização da cidade, a vontade de memória e a sua forma de apropriação feita pela sociedade. Considerando assim, a intima relação entre a memória coletiva e o espaço urbano, podemos desta forma compreender o potencial simbólico dos monumentos e o espaço de conflito que se consolida na cidade.

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Bibliografia

AMADO, Janaína, FERREIRA, Marieta de Moraes (coordenadoras). Usos & abusos da história oral. 8 ed., Rio de Janeiro: Editora FGV.2006.

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MEIRA, Ana Lúcia. O Passado no Futuro da Cidade – Políticas Públicas e Participação Popular na Preservação do Patrimônio Cultural de Porto Alegre, Porto Alegre: UFRGS, 2004.

NORA, Pierri.”Entre memória e história: a problemática dos lugares.”.In:Projeto História.São Apulo:PUC-SP,1987.

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THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

UHLE, Ana Rita.De casaca ao pé da Estação:História do Monumento a Campos Sales. Campinas,SP:[s.n.],2006.

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Sociedade Vice-reinal da Nova Espanha: o cerimonial e a vida cotidiana da corte dos

vice-reis durante a monarquia dos Habsburgos

Thaís Batista de Andrade Arantes

Algumas vezes, os estudos históricos sobre o Antigo Regime, deixam de lado o contexto social do mesmo, criando assim, lacunas que precisam ser preenchidas. Com esse artigo, tentamos perceber a dimensão da importância do governo composto e das suas representações. Mesmo que de forma simplista, buscamos colocar em perspectiva esses sistemas, e, para isso, tomaremos como referência a sociedade vice-reinal da Nova Espanha, tentando perceber como os rituais e hierarquias da sociedade de corte vice-reinal tentavam aproximar um Rei ausente.

Para que entendamos a importância da sociedade vice-reinal para a manutenção da Monarquia Espanhola do Antigo Regime é necessário, primeiramente, discutir alguns conceitos. O primeiro deles é o de monarquia compósita e o seu caráter pluricontinental.

Primeiramente, para esclarecermos esse conceito, podemos separar os estados compostos em duas categorias, uma é composta de países que estão separados uns dos outros pelo mar, ou por outros países, como, por exemplo, os pertencentes à Monarquia Espanhola dos Habsburgos. A segunda categoria é a que engloba estados vizinhos, como é a constituída pela Inglaterra e o país de Gales (ELLIOT, 2003:68).

Mas porque, em primeiro lugar, se constituíam estados compostos? Quando algum território era conquistado, havia apenas duas maneiras para que eles fossem incorporados com sucesso aos outros domínios reais. Solorzano, um jurista espanhol do século XVII, esclarece quais eram essas maneiras de anexação de territórios. Uma era a união “acessória”, na qual o território conquistado passava a ser considerado, juridicamente, como uma parte do próprio reino, dando à sua população os mesmos direitos dos “originais” súditos reais e os submetendo às mesmas leis. A outra forma de se anexar territórios era a denominada aeuqe principalite, na qual, os territórios anexados, mantiam suas próprias leis, fóruns e privilégios. Na maioria das vezes, a Monarquia Espanhola, valia-se dessa última forma para integrar os territórios conquistados (ELLIOTT, 2003:70).

Entretanto, um dos grandes problemas dessa anexação era a lacuna que um rei ausente criava. É nesse ponto que esse artigo se justifica, pois no contexto de monarquia composta analisaremos a importância do vice-rei como alter ego do rei e suas cortes como uma forma de manter viva a figura real que se encontra tão distante da realidade da Nova Espanha.

Para que essa lacuna fosse preenchida surgiu à idéia da representação real através de um vice-rei, e para que essa via de mão dupla fosse completada, a representação desses territórios através da instituição de Conselhos. Especula-se que

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talvez a origem do cargo vice-reinal seja castelhana, mas podemos dizer que o início do mesmo na América se deu com a concessão do cargo de vice-rei e governador das Índias, em 1492, a Cristóvão Colombo. Esse cargo adquire as funções de governador com as Capitulaciones, tornando-se um único ofício de governo, desempenhado por um indivíduo dotado da mais alta dignidade (BERMÚDEZ).

O vice-rei possuía o poder de nomear oficiais que o ajudariam no governo das cidades, como prefeitos e funcionários judiciais, além de possuir extensas faculdades jurisdicionais, civis e criminais. Fundiam-se, então, em um único representante real as máximas faculdades em matéria de governo, justiça e milícia. Aqueles que assumiam tal posição eram, normalmente, membros de uma família de nobreza titulada ou possuidores de uma carreira militar com experiência em tarefas de governo.

Os vice-reis, enquanto representantes do Rei, eram objeto das mais altas deferências e etiqueta. Eram usados cerimoniais para com o vice-rei que seriam utilizadas apenas com o próprio monarca. Aqui se coloca uma questão fundamental à nossa analise: A importância da figura do vice-rei, como o centro das relações cortesãs, para uma sociedade de monarca ausente.

Analisando uma crônica do livro de Luis Gonzalez Obregon (OBREGON, 1918 :151-156) intitulada “El palacio y corte de los Virreyes”, podemos perceber como a socidade cortesã dos vice-reis foi um verdadeiro espelho da corte madrilenha. Obregon diz que o palacio do vice-rei, sua familia e seus serviçais eram, em menor escala, uma reprodução moral de Madri.

Na sua crônica, tomada como fonte para nosso artigo, Obregon, descreve como o palácio do vice-rei era organizado e como em suas dependências eram rezadas missas para toda a Corte e freqüentes apresentações teatrais. Fala do Real Palácio como um pequeno mundo, quase “un pueblo”, com pessoas, intrigas e fofocas.

O autor da Croniquilla ressalta que para os habitantes do palácio a chegada dos vice-reis era muito celebrada e sua partida, seja por findar a designação para o cargo, por um chamado a Península ou por uma promoção ao governo do Peru, era muito lamentada, pois com isso findariam as “diversões”.

Para pensarmos a importância da figura vice-reinal como alter-ego do monarca, ressaltaremos um trecho da crônica de Obregon onde ele diz: “Motivo también de pasatiempo o de admiración, según fuese diversión para unos o culto para otros, por el respeto com que contemplaban a quien representaba aqui al Soberano, era la salida de los Virreyes em público.” (OBREGON, 1918:153). Nesse fragmento podemos perceber como os rituais eram uma forma de manter viva a importância da monarquia em um território tão distante da corte de Madri.

Em um momento posterior da crônica, Obregon, cita diversos rituais e suas organizações hierárquicas como uma forma de ressaltar a importância e distinção de certos cargos e pessoas. Como, por exemplo, o ritual da saída do vice-rei às ruas da cidade para cumprir alguma de suas muitas obrigações palatinas.

No último parágrafo o autor faz uma crítica à corte da Nova Espanha, dizendo que tal soberba e ostentação eram muito destoantes de uma sociedade que era

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composta de uma “plebe de vassalos, míseros y hambrientos, mugrosos y desnudos.” (OBREGON, 1918:156).

A Corte Espanhola era conhecida por seu caráter elaborado e cerimonioso. É evidente que se vamos falar sobre algumas características gerais da Corte da Europa moderna, devemos tomar como ponto de partida o modelo construído por Norbert Elias através da Corte francesa. Duas dessas características eram; o cerimonial exacerbado e a organização da casa real, cuja função era conservar o caráter sagrado da Monarquia.

Podemos definir como três as principais funções da corte: proteger o caráter sacro da Monarquia, ser o centro político e administrativo e servir como escola civilizatória. Contudo, a característica mais evidente da vida cortesã espanhola era a invisibilidade do Rei.

A corte vice-reinal era um espelho da corte madrilenha, e os vice-reis eram o centro da sociedade cortesã, assim como, o Rei era o centro da Monarquia. Essas cortes eram centros de poder, onde se concentrava a aristocracia local e onde se tornava possível a comunicação dos ministros com a coroa. Tendo essa concepção em mente, é possível firmar uma comparação entre a corte espanhola e a corte vice-reinal, assim como, a importância da mesma para a perpetuação do conceito de monarca divinizado.

Na Instrucíon dada ao Marquês de Montesclaros pelo presidente do Conselho das Índias, Pablo de La Laguna, em 1603 (HANKE, 1977), existem algumas diretrizes dadas ao Vice-rei que, se analisadas, reafirmam como a corte vicerreinal era um espelho da corte madrilenha.

Nesse documento, o presidente do Conselho adverte o vice-rei a tomar um especial cuidado com “el gobierno de su persona” sempre mostrando sua religiosidade e sempre deixando transparecer como era modesto e cuidadoso. É também objeto de recomendação as vestimentas e o modo de agir do vice-rei: falando pouco e docemente, ouvindo a todos com paciência, jogando apenas por recreação. É interessante observar que ao vice-rei é recomendado de que ao falar esteja bem vestido.

Essa Instrucíon é extremamente interessante para aqueles que desejam observar o cerimonial da vida cortesã vicerreinal, pois traz em seu conteúdo especificações que demonstram como o vice-rei deveria se portar, e, até mesmo, como sua esposa, a “virreina”, deveria agir. Fala também sobre do governo do palácio, da criadagem e até mesmo da comida que o vice-rei, seus criados e as mulheres da casa deveriam comer, e, como e onde comê-la.

Em uma parte desse documento, torna-se ainda mais evidente o caráter representativo do vice-rei como alter-ego real e a importância advinda disso: “y no se le olvide esto, pues en todo han de poner los ojos los virreyes,en que se han de morir y que se ha de acabar aquello, y que sólo ha de durar el bien o mal que hicieren.” (HANKE, 1977:270). Nesse trecho, o vice-rei é orientado a sempre fazer o melhor e ter a melhor conduta, pois era o objeto da admiração de todo povo. O autor da Instrucíon diz que era extremamente importante que o vice-rei tivesse em mente que tudo o que fizesse em governo seria sempre lembrado.

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Enfim, podemos concluir, seja pela análise da Instrucíon dada ao Marquês de Montesclaros, seja pelo relato feito da corte vicerreinal da Nova Espanha por Obregon, que inegavelmente o cargo de vice-rei possuía uma distinção única, gerando ao seu redor rituais e hierarquizações feitas apenas com o próprio Rei.

Ao ser nomeado, o vice-rei devia ter em mente que já não era um simples pai de família, mas que sua casa seria a casa real, e sua liderança se estenderia à toda corte, formada à partir de seu ciclo social.

Por fim, devemos sempre ter em mente a importância do cargo vice-reinal para a manutenção do regime de monarquia composta e a relevância que a sociedade de corte tem para a eficácia da representação real. Sem isso, talvez, a monarquia composta não tivesse subsistido por tanto tempo e nem com tanto êxito.

Bibliografia

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ELLIOTT, John H. La decadencia de España. In: Espanã y su mundo 1500-1700. Traducción de Ángel Rivero Rodríguez y Xavier Gil Pujol (capítulos 8, 11 y 12) Madrid: Taurus, 2007, p. 271 a 298.

ELLIOTT, John H. Espanã e su Imperio en los siglos XVI y XVI. In: Espanã y su mundo 1500-1700. Traducción de Ángel Rivero Rodríguez y Xavier Gil Pujol (capítulos 8, 11 y 12) Madrid: Taurus, 2007, p. 27 a 50.

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OBREGON, Luis Gonzalez. Croniquillas de la Nueva España. Mexico: Tip. de la Escuela Correccional de Artes y oficios, 1891

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Que História é essa?O ensino de História Local como alternativa à

História de um Brasil desconhecidoThiago Henrique Mota Silva

Introdução

Esta apresentação pretende discutir o ensino de História do Brasil mediante o estudo da história do local no qual o estudante se encontra. Partimos da necessidade de aproximação entre sujeito e conhecimento, buscando despertar nos estudantes o interesse pelo estudo dos processos históricos, tendo em vista a compreensão da realidade local. Decorrente das atividades do projeto de extensão “O local e o nacional entrelaçados: a História do Brasil Republicano acontecendo nas ruas de Viçosa”, proporcionado pelo Programa Institucional de Bolsas de Extensão – PIBEX/UFV – este trabalho, ao inserir a problemática da Histórica Local aplicada ao ensino, apresentará os resultados do projeto aplicado em cinco escolas de Viçosa-MG junto a turmas de nonos anos, nas quais foram ministradas aulas e fomentadas exposições didáticas acerca da História de Viçosa.

Nossas atividades justificam-se pela carência dos livros didáticos no que tange à História Local. Em benefício da História Nacional, muitos livros propõem a exaltação de determinadas localidades em detrimento de outras, considerando-as como os locais da História e inserindo as periferias como meras coadjuvantes nos processos sócio-históricos. Resgatando a participação de outras regiões nesses processos, pretendemos mostrar aos estudantes que o estudo dessa disciplina não se restringe ao conhecimento factual e distante de suas necessidades.

A História, enquanto disciplina de formação crítica, necessita que estudantes compreendam que seu estudo faz-se importante na formação de cidadãos aptos a interferir na realidade na qual se encontram, modificando-a e construindo-a enquanto sujeitos de ação, e não objetos passivos dos processos históricos. Entendemos que, mais do que conhecer a biografia da nação, o ensino da História do Brasil deve instrumentalizar o estudante para interferir na realidade histórica e não apenas aceitá-la como um a priori irreversível.

O Ensino de História e silêncios locais

Em um projeto de extensão realizado em Viçosa-MG, intitulado “O local e o nacional entrelaçados: a História do Brasil Republicando acontecendo nas ruas de Viçosa”, trabalhamos com cinco escolas, entre públicas e privadas, na tentativa

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de associar os conteúdos nacionais e locais. Os resultados de nosso trabalho foram satisfatórios e, através dessa experiência, pudemos perceber que os conteúdos programáticos para o ensino de História repercutem na vida da sociedade através de manifestações da História Local, podendo ser aproximados dos estudantes de forma a levá-los a perceberem-se como os sujeitos desses processos e a tomarem consciência da necessidade de se estudar História: não como uma disciplina que propõe uma simples erudição, com conhecimentos sobre o passado histórico desprovidos de interesses. A História, enquanto disciplina obrigatória para a formação básica dos cidadãos brasileiros, traz consigo a necessidade de instrumentalizá-los para refletir sobre a realidade, mostrando-lhes que ela é construída através de rupturas e permanências do passado histórico e que necessita da ação dos sujeitos para ser transformada: a História não acontece lá, acontece aqui.

Analisando livros didáticos, percebemos que há a seleção de conteúdos considerados de interesse nacional em detrimento de outros mais ligados a realidades específicas. Esses materiais, ao condensar os conteúdos de História a serem lecionados nas escolas, utilizam-se de estratégias discursivas para construção de resumos, agindo por meio de substituição de temas específicos por gerais e apagamento do local quando não há eco no nacional. Buscando resgatar esses temas ausentes em muitos livros didáticos, apresentamos formas de trabalho que associem o nacional ao local, construindo uma disciplina História mais próxima da realidade e dos interesses dos estudantes.

Dessa forma, entendemos que o trabalho com a História Local oferece oportunidades para despertar o interesse e curiosidade nos estudantes, pois trata da construção da realidade na qual estão diretamente envolvidos, atuando como sujeitos e efetuando modificações políticas, econômicas, culturais e sociais.

A temática local e o livro didático

Os livros didáticos constituem um importante instrumento para orientar o trabalho dos professores e trazer para a sala de aula as diretrizes da educação. Porém, no que se refere ao ensino de História, esse material tem sua eficiência reduzida, pois, ao buscar uma suposta totalidade do conhecimento histórico, deixa as questões pertinentes à realidade da escola e dos estudantes que o utilizam em segundo plano. O livro didático, ao ser produzido para atender o mercado nacional, utiliza-se de estratégias discursivas textuais, como a substituição de dadas informações em função de seu caráter mais ou menos “nacional” e o apagamento de outras, consideradas irrelevantes em determinadas situações, para tecer um resumo da História do Brasil. Dessa forma, os currículos impõem restrições ao que será ensinado em sala de aula e, de maneira geral, definem a noção de História que caberá a significativa parcela da população. A esse respeito, Kátia Abud afirma que:

Os currículos são responsáveis, em grande parte, pela formação e pelo conceito de História de todos os cidadãos alfabetizados, estabelecendo, em cooperação com a mídia, a existência de

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discurso histórico dominante, que formará a consciência e a memória coletiva da sociedade (ABUD, 2004: p.29).

A formação dessa memória coletiva da sociedade, ao ser amparada pelo livro didático, constituirá aquilo que muitos brasileiros identificarão como biografia da nação. Ao seguir o curso linear da “vida do Brasil”, esse material muitas vezes perde de vista a perspectiva local, na qual se encontram os estudantes.

Os temas estudados em História do Brasil podem ser dos mais fascinantes no currículo de História das escolas, porém muitas vezes são abordados de forma apartada da realidade dos estudantes, levando-os muitas vezes a não reconhecerem o Brasil nem a realidade local naquela História. Muitas vezes, as personagens não se parecem com as pessoas brasileiras e as situações e fenômenos apresentados não condizem com o cotidiano. Essas situações marginalizam as populações que não pertencem ao eixo político-econômico e sócio-cultural tratado nos textos, fazendo um crescente apagamento da totalidade em prol de uma visão dominante. Assim, o processo de construção da identidade histórica fica fragmentado e o próprio estudo de História torna-se desinteressante. Maria Auxiliadora Schmidt afirma que:

Os dilaceramentos atingem também os alunos em sua condição de receptáculos de informações, conteúdos, currículos, livros e materiais didáticos, na maioria das vezes desinteressantes, que eles lutam por decifrar, entender... (...) Na relação pedagógica, buscam, na verdade, a autonomia, procuram convencer-se por si mesmos da validade do que lhes é proposto, desejam pensar pro si mesmos, ser reconhecidos, ser libertados em sua originalidade na compreensão e no resgate de sua história (SCHMIDT, 2004: p.56).

O resgate da historicidade própria da realidade do estudante leva-nos à necessidade de complementar o livro didático. Questões pertinentes ao cotidiano, personalidades, eventos e processos políticos, econômicos, culturais e sociais locais, quando abordados do ponto de vista histórico, permitem ao professor transitar entre o local e o nacional, associando os conteúdos apresentados pelo livro didático àqueles que dizem respeito ao mundo no qual está envolvido. Esse trabalho revela ao estudante a validade do conhecimento histórico, mostrando-lhe que esse conhecimento vai além de erudição apartada de funcionalidade: pensar historicamente significa compreender processos de forma temporal e espacial e implica instrumentalizar-se e inserir-se enquanto sujeito na realidade histórica.

Esse desafio exige a complementação do livro didático, levando à sala de aula questões que discutam as relações entre as esferas local e nacional. Essa metodologia auxilia na compreensão dos macro-processos ao mesmo tempo em que oferece espaço aos estudantes e professores para inserirem-se na história. Trabalhar com a História Local é tentar aproximar a disciplina e o interesse dos alunos. Kátia Abud diz-nos que:

As dificuldades e obstáculos presentes no cotidiano das escolas estão ausentes dos textos. Os currículos e programas das escolas públicas, sob qualquer forma que se apresentem (guias, propostas, parâmetros), são produzidos por órgãos oficiais, que os deixam marcados com suas

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tintas, por mais que os documentos pretendam representar o conjunto dos professores e o ‘interesse dos alunos’ (ABUD, 2004: p.29).

Nas atividades do projeto “O local e o nacional entrelaçados: a História do

Brasil Republicano acontecendo nas ruas de Viçosa”, percebemos que trabalhar com a história local e nacional de maneira entrelaçada desperta o interesse dos estudantes tanto pelos conteúdos propostos pelo currículo quanto por aqueles que se referem apenas à sua realidade. Quando questionado sobre o que mais gostou no projeto, o estudante de nono ano Wesley Costa respondeu: “saber como Viçosa participou da Ditadura Militar”200. Já a estudante Tamires Paiva, ao ser questionada sobre a importância do projeto, respondeu que foi importante “para ter mais conhecimento sobre a história da nossa cidade e a origem do café”201. Nessas respostas, percebemos o interesse dos estudantes pelas questões locais associadas à problemática nacional, como a Ditadura Militar e o período áureo do café brasileiro.

Ao perguntarmos às estudantes Tamara e Graciele Xavier “Por que esse projeto é importante?”, elas responderam: “Porque ajuda a aprender além do que está no livro didático”202; e “Porque nós, como estudantes, precisamos (?) para um boa formação, conhecendo tudo sobre o meio em que vivemos”203, respectivamente. Essas respostas apresentam-nos o interesse dos estudantes pelo estudo de História além dos livros didáticos: um estudo ligado ao meio em que vivem.

Do local ao nacional: trabalho desenvolvido em Viçosa-MG.

O projeto de extensão que desenvolvemos em Viçosa contou com a participação de cinco graduandos em História, dois professores do Departamento de Educação da UFV e cinco escolas, entre públicas e particulares, de Viçosa. Os objetivos do trabalho eram: produzir um material didático a ser doado às escolas que tratasse da história da cidade no recorte republicano brasileiro antes da ditadura militar, a saber, entre 1889-1964; ministrar aulas sobre esse conteúdo nas escolas partícipes; e organizar uma feira de História junto aos nonos anos, tratando da História de Viçosa associada à do Brasil.

Nosso trabalho foi dividido em cinco etapas: levantar fontes, preparar o material didático, ministrar aulas, organizar a feira de História, avaliar as atividades junto aos estudantes e professores. As duas primeiras etapas consistiram em pesquisa e elaboração de uma cartilha intitulada “O local e o nacional entrelaçados: a História do Brasil Republicano acontecendo nas ruas de Viçosa”. O contato direto que tivemos com as escolas fez-se na terceira e quarta etapas, nas quais ministramos as aulas e organizamos a feira. A quinta etapa foi avaliação das atividades por parte da escola. Nosso projeto

200 PROJETO DE EXTENSÃO. O local e o nacional entrelaçados: a História do Brasil Republicano acontecendo nas ruas de Viçosa. Avaliação do projeto de extensão. Questionário para os estudantes. Estudante: Wesley Christian da Costa.201 Ibid. Estudante: Tamires dos Santos Paiva.202 Ibid. Estudante: Tamara.203 Ibid. Estudante: Graciele de Fátima Xavier.

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obteve sucesso em três das cinco escolas partícipes, nas quais os estudantes responderam questionários que nos permitem avaliar a importância que atribuíram ao estudo da História Local, a pertinência dos conteúdos e o interesse que tiveram.

O que mais chamou a atenção no decorrer das atividades foi a participação dos estudantes. Muitas vezes, pediram a palavra para relatar alguma experiência, contar caso da família, enfim, mostrar-se como sujeito na história. Houve alunos netos de imigrantes italianos que trabalharam em fábricas de Viçosa, netos de proprietários de cinemas, estudantes que conheceram ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial... quase todos os temas históricos podiam ser exemplificados na própria turma, o que deixou a aula muito mais interessante. Ao término, foram organizadas feiras em três das cinco escolas, nas quais os estudantes expuseram cartazes, maquetes, levaram fotografias e buscaram conhecer o cotidiano de Viçosa nas décadas passadas.

As atividades do projeto foram introduzidas nas escolas como atividades especiais, com aulas reservadas especificamente para esse fim. Porém, uma forma muito rica de trabalhar o conteúdo é associá-lo diretamente ao programa do livro didático, de forma a incluir a história local na rotina da escola. Entendemos que há uma gama de dificuldades para o professor elaborar material, realizar pesquisas históricas para levar à sala de aula. Entretanto, pode-se solicitar aos alunos que pesquisem determinado recorte temático na história local, estimulando os estudantes a relacionarem o conhecimento produzido em sala de aula com seu cotidiano. Trabalhando dessa forma, o problema levantado pela estudante Camila Ferreira seria solucionado: ao ser questionada acerca dos aspectos negativos do projeto, ela respondeu que “não teve nenhum aspecto negativo. Só acho que [os graduandos envolvidos no projeto] deveriam passar mais tempo dando essas aulas (estabelecer mais dias com a escola, para essas aulas)”.

Além das aulas, a cartilha produzida foi doada às cinco escolas, para que os professores possam utilizar o material com as turmas nos anos seguintes, sugerindo pesquisas na forma de estudos dirigidos ou mesmo trabalhando o conteúdo diretamente em classe. A cartilha conta com depoimentos, fotografias, pesquisas em fontes primárias e secundárias, buscando mostrar ao estudante os processos por meio dos quais a história é escrita. Nos anexos seguem algumas fotografias presentes na cartilha e dos trabalhos realizados nas escolas, em Viçosa.

Considerações Finais

Trabalhar com a História Local é uma forma de enriquecer os debates nas salas de aula. Pudemos perceber que existe demanda por parte dos alunos por esses estudos, para aproximá-los na História e possibilitar-lhes perceber a realidade que os rodeia com um olhar histórico, buscando rupturas e permanências com o passado.

204 Ibid. Estudante: Camila Aparecida Ferreira.

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Além de despertar o interesse dos discentes, como pudemos perceber na Avaliação do projeto de extensão: Questionário para os estudantes, as implicações entre as esferas local e nacional, do ponto de vista histórico, muito têm a agregar na construção do conhecimento nesta disciplina.

A tentativa de levar os estudantes a se perceberem como sujeitos na História e na historiografia, seja como agentes dos processos que ocorreram em sua cidade, seja realizando pesquisas para fazer uma história local que está por escrever, permite-nos vislumbrar um novo horizonte para o ensino de História, que vai além do livro didático e ultrapassa as paredes da escola. Não é necessário fazer grandes excursões para o Museu Imperial ou para a cidade de Ouro Preto para se ter prática no ensino de História. Uma visita ao centro da cidade com o olhar focado em pontos específicos, como monumentos, casarões e praças; a solicitação de pesquisas sobre personalidades, datas e eventos que nomeiam ruas e praças da cidade; entrevistas com pessoas mais velhas da própria comunidade permitem ao estudante ter contato com o conhecimento histórico mais próximo da realidade.

Essas atividades podem ser incorporadas no cotidiano da escola. Dessa forma, o conteúdo programático poderá ser cumprido sem que se abra mão de outras questões pertinentes a cada escola e de interesse de seus alunos. A diferença que há entre o local e o nacional é a escala, afinal o que é a História do Brasil se não a de sua gente em seus lugares?

Referências

ABUD, Kátia. Currículos de História e Políticas Públicas: os programas de história do Brasil na escola secundária, IN: BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula, 9 ed. – São Paulo: Contexto, 2004.

PANIAGO, Maria do Carmo Tafuri. Viçosa, mudanças socioculturais; evolução histórica e tendências. Viçosa, UFV. 1990.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora, A formação do professor de História e a sala de aula, IN: BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula, 9 ed. – São Paulo: Contexto, 2004.

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Anexos

Monumento em homenagem aos ex-combatentes viçosenses na Segunda Guerra Mundial.

Livro-histórico anual do Tiro de Guerra de Viçosa, referente ao ano de 1964.

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Praça Silviano Brandão, no centro de Viçosa, na década de 1940.

Aula ministrada na Escola Estadual Alice Loureiro, na qual os estudantes produziram cartazes sobre cultura local.

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Maquete produzida por alunos da Escola Municipal Coronel Antônio da Silva Bernardes, representando a Praça Silviano Brandão em 1940.

Cartaz produzido pelos estudantes da Escola Municipal Ministro Edmundo Lins, apresentando o período de governo de Arthur Bernardes e a criação da Escola Superior de Agricultura e Veterinária, atual UFV.

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Tráfico Atlântico, Composição Demográfica e Estrutura de Posse de Escravos, Guarapiranga

(1780 -1820)Tiago Pereira Leal

Introdução

Este trabalho, que conta com apoio financeiro PIBIC/CNPq, visa analisar a composição demográfica, a estrutura de posse de escravos e a importância do tráfico atlântico na região de Guarapiranga no período de 1780 a 1820. Utilizamos como fontes primárias os inventários post mortem205, a partir do qual analisamos variáveis demográficas como origem, sexo e idade. O trabalho será desenvolvido através da análise quantitativa serial de 45 inventários na qual consideramos todo o período proposto sem dividi-los em decênios.

Procuramos articular nossa discussão com o debate historiográfico em torno do período da transição da economia mineradora para uma economia mais diversificada, que sugere que o dinamismo econômico da província possibilitou a continuidade e expansão da importação de escravos durante grande parte do século XIX.

Até a década de 1970 a historiografia do “sentido da colonização” caracterizou a primeira metade dos oitocentos como sendo marcada, sobretudo, pela decadência e estagnação econômica de Minas Gerais. Essa visão sobre Minas Gerais começou a ser repensada nos anos de 1980 com o debate entre Roberto Borges Martins/ Amílcar Martins Filho (1983) e Robert Slenes (1988).

Os trabalhos de Roberto Borges Martins juntamente com Amílcar Martins Filho (MARTINS FILHO; MARTINS, 1983) afirmaram que, durante o século XIX, a província mineira foi uma grande importadora de escravos através do tráfico internacional. Para esses autores a economia de subsistência nas Minas foi a principal responsável pela maior manutenção escravista do Brasil, o que contraria a idéia de que a escravidão estava ligada somente à plantation.

O trabalho dos Martins foi inovador, no entanto, faltava explicar como uma economia de baixa mercantilização poderia manter sua mão-de-obra escrava e ainda importar mais escravos. Esse foi o questionamento feito por vários autores, dentre eles Robert Slenes (1988) que acreditava que os Martins subestimaram a importância do exportador na província. De acordo com Slenes, Minas não estava desvinculada do setor exportador. Pelo contrário, “longe de ser uma região pouco voltada ‘para fora’,

205 Os inventários post mortem utilizados nesse trabalho estão digitalizados e são fontes trabalhadas pelo grupo de estudo Família, Sucessão e Herança do curso de História da Universidade Federal de Viçosa (UFV) sob a orientação do profº Fábio Faria Mendes. Os inventários em sua forma material encontram–se no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM), 1º e 2ºofício.

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como os Martins afirmam, era uma economia de exportação bastante significativa” (SLENES, 1988, p.468).

Nesse debate, ambos os autores concordam com a maciça entrada de escravos na província mineira diferindo somente no que diz respeito à estrutura econômica que proporcionou a importação. Todavia, se por lado essa discussão levanta outros modelos explicativos sobre a história econômica de Minas Gerais, por outro lado levanta polêmicas e debates acerca dos plantéis escravistas da referida província.

A primeira defesa acerca da reprodução natural dos plantéis escravistas de Minas foi desenvolvida por Francisco Vidal Luna e Wilson Cano (1983) na qual reavaliaram a questão do grande plantel escravista mineiro. Os autores apontaram a existência de processos de reprodução natural positiva, mesmo defendo a tese de que havia a baixa mercantilização, o que contribuiu para a manutenção e ampliação dos plantéis escravistas.

Nos anos 1990 surgiram alguns estudiosos que perceberam a ocorrência de crescimento vegetativo de escravos em Minas Gerais dentre os quais destacamos Clotilde Paiva & Herbert Klein (1992) e Clotilde Paiva & Douglas Libby (1995). A diferença entre o trabalho desses autores é perceptível à medida que os primeiros defendem que a importação e crescimento natural não estão exclusivamente interligados ao contrário dos segundos, que apontam para coexistência das duas formas de composição do plantel escravo, importação e crescimento natural.

Em um trabalho intitulado “Comércio de Escravos em Minas Gerais no século XIX: o que nos podem ensinar os assentos de batismo de escravos adultos” a autora Carolina Perpétuo Corrêa (2006) argumenta sobre Laird Bergad.

“Tendo uma posição mais radical e enfática sobre a possibilidade de reprodução natural Laird Bergad (1999) argumenta que o crescimento da população escrava de Minas Gerais foi acompanhado de um processo contínuo e estável de ‘crioulização/ nacionalização’. Em seu o estudo, no ano 1785 os crioulos já eram a maioria em sua amostra de inventários e sua participação só faz crescer ao longo do XIX, tanto antes quanto depois do fim do tráfico”. “[...] a reprodução natural era responsável por grande parte do crescimento estável da população escrava, que se tornava mais marcadamente ‘nativa/crioula’ ao longo do tempo.” (p.8 e 9)

O debate acerca da importação de escravos e do crescimento natural torna-se importante para compreender esse trabalho. Diante da pequena discussão desenvolvida, partilhamos da vertente defendida por Douglas Libby & Clotilde Paiva que trabalham com a hipótese conjunta de reprodução endógena e importação de escravos.

206 A discussão historiográfica que foi feita nessa seção baseou-se, em grande parte, no que REIS (2005) e CORRÊA (2006) fizeram em seus respectivos trabalhos.

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Composição Demográfica, Reprodução Natural e a Posse de Escravos

Como já exposto, esse trabalho desenvolve uma análise quantitativa serial de 45 inventários no período de 1780-1820. Usamos de variáveis demográficas como origem, sexo e idade, permitindo compreender a dinâmica dos plantéis escravistas na qual podemos observar a sua estruturação a partir da presença de escravos africanos e/ou nativos, a reprodução natural e a posse de escravos.

A composição demográfica dos plantéis de Guarapiranga é o primeiro ponto de análise nesse estudo. Quantificamos 822 escravos no período em estudo dos quais 466 foram identificados como nativos, 366 africanos, 7 pretos e 13 sem identificação. Nesse estudo consideramos os nativos como junção de crioulos, pardos, mulatos e cabras.

Composição da População Escrava - Guarapiranga (1780-1820)

Nativos Africanos Preto*Sem

IdentificaçãoMédia/plantel* Total

466/56,7% 336/40, 8% 7/0, 8% 13/1,6% 18,2 822/100%

Tabela 2.1

A tabela nos permite observar que mesmo diante de uma amostra reduzida de inventários post mortem conseguimos obter um número considerável de escravos que estão distribuídos em sua maioria entre os nativos (56,7%) e os africanos (40,8%). O termo “preto”, denominado como africanos por grande parte da historiografia, ganha uma atenção especial, pois não conseguimos perceber em nossas fontes alusão alguma aos africanos e porque também encontramos poucas referências (0.8%).

Vale frisar que essa média de 18,2 escravos por plantel, como mostra a tabela 2.1, não corresponde à realidade dos plantéis escravistas mineiros desse período. Não podemos deixar de ressaltar ainda que trabalhamos com um período na qual a historiografia denominou de “período de acomodação” que corresponde a um período de transição das atividades ligadas a mineração para um período de atividades articuladas pela agricultura mercantil.

Segundo Carla Almeida (1994) a maior presença de pequenos e médios plantéis, no final do século XVIII e de decorrer do XIX estava em consonância com as atividades agropecuárias. Se nos basearmos nessa idéia não poderíamos esperar encontrar plantéis com grandes quantidades de cativos, pois segundo a autora essa atividade embora capaz de gerar dinamismo e certo grau de acumulação não era muito lucrativa, e exigiam um contingente menor de mão obra se comparado à mineração (ALMEIDA, 1994. p.137).

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Nos inventários post mortem as informações sobre os escravos ficam expostos nas descrições de bens, na qual geralmente é acompanhada pelo preço, pela idade, por algumas informações familiares, profissão e por alguma doença e/ou deficiência física. O nome de cada escravo é atribuído, na maioria das vezes, pelo nome cristão acrescido de sua “nação de origem”. Entretanto devemos tomar certo cuidado com esse termo “nação de origem”, pois muitas das vezes esse termo designa a região de embarque da África e não necessariamente a região de origem.

Tabela 2.2

Desdobramento da População Escrava Nativa – Guarapiranga (1780-1820)

Crioulos Pardos Mulatos Cabras Total

387 51 9 19 466

Nesse estudo, como já ressaltado, os nativos formam a junção de crioulos, pardos, mulatos e cabras. O emprego desses termos é muito complexo e questionável, assim como também é questionável e complexo trabalhar com o termo “nações africanas”. Nessa discussão, apesar de limitações, adotei como base às denominações aos escravos nativos empregada por Mary Karasch em sua obra Vida de escravo no Rio de Janeiro (1808-1850).

Na sua argumentação, os crioulos designavam geralmente negro nascido no Brasil e, ocasionalmente, africanos nascidos em colônias portuguesas da África. O termo pardo define um mulato filho de pais africanos, cuja designação servia para diferenciá-lo dos crioulos e de outros racialmente mistos. Por sua vez, preto é visto como um termo mais neutro para designar o negro, especialmente nos casos em que a nacionalidade ou status de uma pessoa negra era desconhecido. Por fim, os cabras eram compreendidos como os de raça mista considerados de ambos os sexos e, na maioria das vezes, eram vistos como os de ancestralidade e mistura racial indeterminada (KARASCH, 2000. p. 37-39).

Não é nosso intuito padronizar esses termos, pois eles eram empregados por homens da época, no caso dos inventários por seus louvados e/ou inventariantes, e nestes casos os termos podem variar de documento para documento. No entanto, o que não podemos perder de vista é que esses termos indicavam na maioria das vezes diferenciação de status social.

Percebemos ainda que há, mesmo em número menor em relação aos escravos nativos, uma forte presença de escravos africanos em nossa amostra. O que demonstra que o tráfico atlântico era um dos instrumentos sustentadores dos plantéis escravistas de Guarapiranga no período de 1780-1820. Segundo Mary Karasch, a cidade do Rio de Janeiro era o principal fornecedor de escravos vindos das regiões africanas para as províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo (KARASCH, 2000. p.27)

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Ao estudar o tráfico de escravos, Manolo Florentino argumenta sobre a absorção de escravos pelas províncias brasileiras. Segundo o autor, com relação à distribuição terrestre de africanos entre a segunda metade da década de 1820 e a primeira da seguinte, Minas Gerais, com sua economia voltada para o abastecimento, aparecia como pólo de absorção de 40% a 60% dos escravos que saíam do Rio de Janeiro. (FLORENTINO, 1997. p.38)

Gráfico 2.1

Angola BenguelaCongoMinaMoçambique ReboloOutras Nações45%

21%13%

8,7%

3%

8,7%

Principais "Nações" Africanas

Sendo a região mineira o destino da maior parcela de escravos que saíam do mercado carioca, encontramos nos inventários um mosaico de “nações africanas” provenientes em sua grande maioria da África Ocidental. Nas amostras predominaram as “nações” Benguela, Angola, Rebolo e Congo, com um total de 84 % da escravaria encontrada, todas precedentes do centro oeste africano. A participação das outras regiões da África foi mínima. A “nação” Mina representante da África Ocidental teve uma participação de 3% das amostras enquanto a “nação” Moçambique representante da África Oriental não obteve nem 1%, sendo representada no gráfico por uma pequena linha entre as porcentagens das “nações” Rebola e Mina.

Outro ponto de análise em nossa discussão refere-se à reprodução natural nos plantéis escravistas. Para desenvolver essa análise optamos por empregar três faixas etárias na qual está representada na tabela 2.3, indicando que o número de escravos africanos abaixo de 15 anos tinha pouca expressão, o que nos leva a crer que os proprietários escravistas da região de Guarapiranga preferiam os escravos em idade reprodutiva de trabalho que corresponde a 16 – 40 anos.

A referida tabela também apresenta a quantidade de escravos masculinos e femininos nos plantéis com a idade declarada na qual percebemos a grande presença de escravos africanos do sexo masculino. A faixa etária em que encontramos um maior número de cativos africanos é entre 16-40 anos, na qual obtemos 150 escravos de sexo

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masculino e 22 escravos do sexo feminino. Não podemos deixar de ressaltar também a presença de um número considerável de escravos acima de 40 anos, que pode salientar a forte presença do tráfico em décadas anteriores.

Escravos Africanos Segundo as Faixas Etárias –

Guarapiranga (1780-1820)

1-15M F Total

5 1 6

16-40M F Total

150 22 172

+ de 40M F Total

116 14 130

Sem idade descrita

M F Total

21 7 28

Sem idade descrita

M F Total

21 7 28

Tabela 2.3

Diante dos dados analisados, cremos que a lógica do tráfico atlântico baseava-se em negociar escravos em idade reprodutiva de mão de obra na qual a preferência era para homens.

No que diz respeito à faixa etária dos cativos nascidos no Brasil, trabalhamos com as informações contidas na tabela 2.4. A primeira grande percepção na análise é com relação à faixa etária de 1-15 anos. Ao contrário dos resultados contidos nessa faixa etária referente aos africanos, a tabela 2.4 nos remete a uma maior quantidade de escravos inserida nessa faixa etária. Com isso observamos que a reprodução natural se faz presente nesses plantéis e provavelmente conforme avançarmos ao século XIX e depararmos com as restrições ao tráfico atlântico, tenderemos para uma maior crioulização dos plantéis, ou seja, os plantéis estruturados somente por escravos nascido no Brasil.

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Na mesma tabela outras análises são pertinentes. A quantidade de escravos masculinos em relação aos femininos não são tão acentuados e na faixa etária que consideramos propício para o trabalho há um número menor de escravos em relação à faixa de 1-15 anos e até em relação à mesma faixa etária dos africanos analisados na tabela 2.3. Do total 466 escravos nativos somente 59 não tinham idade declarada.

Escravos Nativos Segundo as Faixas Etárias –

Guarapiranga (1780-1820)

1 - 15

M F Total

103 96 199

16 - 40

M F Total

75 97 172

+ de 40

M F Total

19 17 36

Sem idade identificada

M F Total

32 27 59

Escravos com a idade declarada

M F Total

197 210 407

Tabela 2.4

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O último ponto de nossa análise é perceber a estrutura de posse de escravos. Partimos do pressuposto de que nessa sociedade, a posse de escravos implicava distinção social e era signo de poder. Vale ressaltar, mais uma vez, que estamos trabalhando num período de alteração na economia mineira, isso implica que não estamos articulando a posse de escravos em uma região na qual as lavras auríferas predominam, mas em uma região sustentada pela economia de subsistência. A tabela 2.5 demonstra o panorama da estruturação de posse de escravos em nossas amostras.

Estrutura de Posse de Escravos - Guarapiranga 1780-1820

Tamanho dos Plantéis

Número de Proprietários

Número de Escravos

1 a 10 20 10711 a 20 12 170+ de 20 13 545Total 45 822

Tabela 2.5

Podemos observar que os plantéis até 10 escravos estavam concentrados em um número maior de proprietários (20), no entanto, a soma das posses de escravos foi a menor não ultrapassando 107 escravos. Os plantéis compostos de 11 a 20 escravos estavam em poder de 12 proprietários na qual atingiu um total de 170 escravos. Por fim os plantéis formados por mais de 20 escravos estavam em poder de 13 proprietários e significou maior concentração de escravos num total de 545.

Concluímos assim que os maiores números de escravos estavam em poder de menor número de proprietários e que o estudo da posse de escravos revela muito acerca do caráter mais geral da economia e dos valores sociais de uma dada sociedade.

Conclusão Neste trabalho expomos alguns resultados parciais de uma pesquisa que está

em desenvolvimento. Trabalhamos com um número limitado de inventários post mortem com já ressaltado ao longo do texto, no entanto, conseguimos resultados importantes que nos demonstram a dinâmica escravista na região de Guarapiranga e a partir da qual percebemos que essa região tinha grande apego a escravidão.

Os nossos resultados se estruturam através do estudo da composição demográfica na qual destacamos a presença de escravos nativos e africanos, da reprodução natural que foi desenvolvida através da análise das faixas etárias de crioulos e africanos, e por último na estrutura de posse de escravos na qual concluímos que a grande concentração de escravos estava nas mãos de poucos proprietários.

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Como instrumento sustentador e estruturador dos plantéis escravistas da região de Guarapiranga, as nossas amostras indicaram a reprodução natural e o tráfico atlântico. A região foi grande absorvedora de escravos africanos nas quais as principais nações encontradas foram os Benguela, Angola, Congo e Rebolo, todas provenientes da região centro-oeste africana. E por fim, diante da proporção de escravos nativos e com a possibilidade de reprodução natural, percebemos gradativamente o processo de crioulização dos plantéis escravistas que provavelmente se dará maior em maior proporção conforme avançarmos o estudo ao longo do século XIX.

Referências

ALMEIDA, Carla. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana – 1750-1850. 1994. Dissertação (Mestrado) Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1994.

CANO, Wilson. & LUNA Francisco Vidal. A reprodução natural de escravos em Minas Gerais (século XIX) uma hipótese. Cadernos IFCH: Economia escravista em Minas Gerais. Campinas, Unicamp, outubro, 1983, Nº. 10.

CORRÊA, Carolina Perpétuo. Comércio de escravos em Minas Gerais no século XIX: o que podem nos ensinar os assentos de batismo de escravos adultos. In: SEMINÁRIO SOBRE ECONOMIA MINEIRA, XII, 2006, Diamantina. Anais... Belo Horizonte: CEDEPLAR, 2006. Disponível em: http://econpapers.repec.org/bookchap/cdpdiam06/003.htm. Acesso em: 14 Set. 2010.

FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma historia do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: Séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

KARASCH, Mary. C. A vida de escravo no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro Maia Soares, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX: Tráfico e apego à escravidão numa economia não exportadora. Estudos econômicos 13 (1)181-209, jan/abri. 1983.

MARTINS FILHO, Amílcar V.; Martins, Roberto B. Slavery in a Non-Export Economy: Nineteeth – Century Minas Gerais Revisited. Hispanic American Historical Review, v.63, n.3, p.537-568, 1983.

PAIVA, Clotilde Andrade & LIBBY, Douglas Cole. Caminhos Alternativos: escravidão e reprodução natural em Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos 25 (2): 203-233 maio/ ago.1995.

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PAIVA, Clotilde Andrade & KLEIN, Herbert S. Escravos livres nas Minas Gerais do Século XIX: Campanha em 1831. Estudos Econômicos 22 (1):129 -151, jan/abr. 1992.

REIS, Déborah Oliveira Martins dos. Características Demográficas dos Escravos em Araxá (MG), 1816-1888. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, XXXIII, 2005, Niterói: ANPEC, 2005. Disponivel: <http://EconPapers.repec.org/RePEc:anp:en2005:018 Acesso: 14 set.2010

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O povo no poder! A eleição de 2002 e suas reflexões no retorno da História política

Taiane Cristina da SilvaDarlan Luiz Silva SantosJosé Ulisses de Abreu

Resumo

O presente trabalho vem discutir o retorno da história política como elemento dinamizador e aglutinador da história do tempo presente. Utilizando fontes impressas e audiovisuais sobre a eleição e posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, abordaremos a criação do mito que se constrói em torno do novo presidente da República.

A nova história política

No primeiro dia de janeiro de 2003, a Esplanada dos Ministérios em Brasília foi tomada por uma multidão de pessoas que veio do país inteiro para ver a posse do novo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

Vindo de Pernambuco para São Paulo, viajando em um pau-de-arara, Lula foi o primeiro brasileiro oriundo de classes populares que chegou à presidência da República. O seu carisma e admiração perante a população menos abastada resultou na enorme euforia durante sua posse, uma manifestação que ainda não tinha se visto em Brasília.1

Em seu discurso, o presidente Luís Inácio falou para a população que o ovacionava:

Quando olho a minha própria vida de retirante nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, que se tornou torneiro mecânico e líder sindical, que um dia fundou o Partido dos Trabalhadores e acreditou no que estava fazendo, que agora assume o posto de Supremo Mandatário da Nação, vejo e sei, com toda a clareza e com toda a convicção, que nós podemos muito mais.2

Partindo do contexto da posse presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, refletiremos neste artigo acerca da eleição de 2002. Utilizaremos como fonte a revista Isto é, uma revista de grande circulação nacional, a Propaganda Política Eleitoral Obrigatória Gratuita veiculada em rádio e televisão, e o discurso de posse do presidente Lula. Utilizando a historiografia que discute sobre o “retorno” da história política, seus novos enfoques, objetos e métodos, dissertaremos como foi construída a imagem de Lula perante a sociedade brasileira e como essa o transformou em um líder popular.

O Institut d’Histoire du Temp Présent , criado na França em 1978, que teve como fundador e diretor até 1990 , François Bedarida, foi durante muito

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tempo e ainda é hoje, o principal responsável por reflexões mais profundas das possibilidades e dificuldades de uma história que tem como objeto o tempo presente. Muitos historiadores se propuseram a pensar este novo campo da historiografia, mas recorremos a fala de René Rémond para exemplificar o pensamento desta corrente

o historiador é sempre de um tempo, aquele em que o acaso o fez nascer e do qual ele abraça, as vezes sem o saber, as curiosidades, as inclinações, os pressupostos, em suma, a ‘ideologia dominante’, e mesmo quando se opõe, ele ainda se determina por referência aos postulados de sua época. (RÉMOND)

O retorno da história do político teve um papel dinamizador e aglutinador desta nova corrente historiográfica que surgiu a partir da década de 1970, a história do tempo presente. Os estudos de René Rémond, tidos como grande referência na construção da nova história política fez com que este participasse dos debates junto ao IHTP sobre a validade e peculiaridade da história do tempo presente. A partir da colaboração de Rémond e a disposição deste em organizá-la, os debates tornaram mais amplos e consolidaram este novo campo de pesquisa histórica.

Neste contexto de afirmação da historia do presente, o retorno do político desempenhou, segundo Agnès Chauveau e Philippe Tétart, um papel essencial. Assim, partindo do texto do René Rémond Por uma historia política, verificaremos os caminhos percorridos por esta. De sua emergência a sua exclusão pelos historiadores tributários da escola dos Annales ao seu retorno como objeto de estudo, entendendo todas as nuances que esta história sofreu ao longo dos anos. Para este artigo, algumas reflexões trazidas por esta obra são extremamente importantes.

Segundo René Rémond, durante muito tempo os estudos do campo político foram privilegiados pela historiografia, talvez devido à facilidade propiciada pelas fontes que eram regularmente constituídas e por estas estarem em bom estado de conservação. Mas também, este tipo de historia refletia o brilho emanado do Estado.3

Em 1929 na França, com o surgimento da Escola dos Annales ou a Nova História, devido aos estudos que priorizavam o econômico e o social, o estudo do político foi deixado de lado. Esta nova escola teceu em sua criação, longas críticas a uma história política tida como “elitista, anedótica, individualista, factual, subjetiva, psicologizante”4. Assim, a longa duração e as estruturas mais duráveis ganharam espaço na produção acadêmica em detrimento dos acidentes de conjuntura e os eventos, ou seja, a história política.

O estudo do político continuou a representar durante muito tempo na historiografia uma história uniformemente narrativa, escrava do relato linear que tinha no elemento biográfico o complemento e o corolário do substancial.5 Ao persistirem em atribuir aos protagonistas um papel que acreditavam determinantes, a historia política tardou em fazer sua revolução.

Apesar disso, algumas transformações na sociedade propiciaram o “retorno” da história política. Assim complementa Rémond

(...) a historia de fato não vive fora do tempo em que é escrita, ainda mais quando se trata da história política: suas variações são resultado tanto das mudanças que afetam o político como

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das que dizem respeito ao olhar que o historiador dirige ao político6.

Alguns fatores, que segundo René Rémond, podem ser apontados como determinantes para o “retorno” do político: as guerras, as crises que perturbaram a economia liberal, as relações internacionais e a intervenção destas no Estado e, além disso, a presença cada vez mais marcante das políticas públicas na sociedade contemporânea. Outro elemento que não pode ser desprezado acerca do “retorno” do político foi a ampliação do campo de atuação do político com o aumento das atribuições do Estado.

À medida que os poderes públicos eram levados a legislar, regulamentar, subvencionar, controlar a produção, a construção de moradias, a assistência social, a saúde pública, a difusão da cultura, esses setores passaram, uns após os outros, para os domínios da história política7

Neste contexto de profundas mudanças, a história política deixa de ser um campo restrito do conhecimento científico, ganhando, com a contribuição de distintas áreas do conhecimento como antropologia, sociologia, economia entre outras, uma flexibilidade que antes não possuía. Ela deixa de ser o estudo apenas dos fatos e dos eventos conjunturas incluindo os estudos das estruturas. Inserindo o conhecimento político na dinamicidade do tempo histórico, “assim, como o econômico ou o social, inscreve-se no curto, no médio e no longo prazo.” 8 Dentro desta nova abordagem, elementos como a formação do mito político, passam a estar inseridas dentro da nova história política.

Segundo Raoul Girardet explicar o conceito de mito político passa primeiro por reflexões no que consiste o termo mito. Se partirmos nossa análise dos estudos de antropólogos e de historiadores do sagrado mito deve ser compreendido como uma narrativa que se refere ao passado, mas que guarda no presente um valor explicativo. Para outros estudiosos do tema, a noção de mito esta associada com idéia falsa ou ilusão confundindo-se com a de mistificação. Para o autor

Cada uma dessas formulações parece efetivamente corresponder a alguns dos principais aspectos do mito político tal como este se inscreve na história do nosso tempo. Contudo, nenhuma parece suscetível de esgotá-la, nem mesmo de abarcar seu conteúdo.9

A primeira tentativa de construção do conceito de mito político foi na obra do

francês Georges Sorel , Réflexions sur la Violence. Para este autor, marxista heterodoxo, o mito é o mito revolucionário sendo considerado uma arma na luta política; seu sentido é mobilizar, empurrar para a ação. Assim, o mito é, de acordo com Sorel, a força motriz por excelência no campo político ligado ao movimento operário.10

Assim, partindo de Sorel, o estudo do mito político ganhou novos desdobramentos. Segundo Luis Felipe Miguel, o mito passa a ser utilizado em distintos discursos políticos. Sendo entendido que este pode surgir tanto no discurso revolucionário quanto no conservador. Estão presentes não apenas em um grande

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investimento histórico a longo prazo, mas também, em discursos políticos efêmeros ou de pequeno alcance11. Partindo destas várias nuanças que o mito pode adquirir, demonstraremos a partir da história da eleição do presidente Luiz Inácio os elementos míticos recorrentes no seu discurso de campanha.

As eleições durante muito tempo foram estudadas pelos historiadores por vários motivos, entre os quais, o seu papel decisivo, sua antiguidade, continuidade e por atribuir certa periodização.12 Essas periodizações ritmavam o desenrolar da vida política. Podem ser entendidas também pelos ciclos de governo e servem como um termômetro para perceber a popularidade, a aceitação ou repulsa por um político ou por seu governo.

Percebe-se através do estudo das eleições, que estas podem ser reveladoras da opinião pública, das transformações e os movimentos que acontecem na sociedade naquele momento.13 Justifica-se, portanto o uso do estudo da história política, para entender como a população brasileira se identificou com a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva, incorporando o seu discurso e o tornando-o presidente da República.

O povo no poder!

Para conseguir os eleitores necessários para se tornar presidente, Lula passou por várias experiências, por muitas mudanças em seu discurso e em sua imagem. Nascido em Vargem Comprida (PE), veio com sua família para São Paulo fugindo da seca. Formou-se em um curso de torneiro mecânico pelo SENAI, e assim conseguiu seu primeiro emprego de carteira assinada. Quinze anos depois despontava como líder de greves na região do ABC Paulista, ganhando o respeito de trabalhadores e sindicalistas. Lula, como presidente sindical, foi um dos responsáveis pela greve de 1978 que paralisou cerca de 150 mil funcionários na região do ABC. Após esta manifestação, tornou-se conhecido em todo o país como um líder das classes trabalhadoras.14

No início da década de 1980, Lula ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT) que passou a ganhar força entre as ordens sindicais, sempre vinculado à sua imagem e ao socialismo. Em 1986 foi eleito, por São Paulo, o deputado federal mais votado do Brasil. Com o seu carisma e grande capacidade em falar nos comícios, o PT lança a candidatura de Lula para presidente em 1989. Acabou surpreendendo e indo para o segundo turno dessas eleições, desbancando candidatos mais cotados como Leonel Brizola, Mario Covas e Ulisses Guimarães.15

A mudança no estilo de Luís Inácio foi fundamental para que ele ganhasse a força política necessária para chegar à presidência. Sua capacidade de negociação se fez valer para romper com o preconceito das elites empresarias do país e assim, para que pudesse finalmente, depois de três derrotas, pleitear o cargo de presidente do Brasil.

Conhecido por seus discursos que proferia para milhares de pessoas desde a época em que comandava os trabalhadores nas greves em São Bernardo do Campo no final da década de 1970, Lula aprendeu em seus anos de política, que precisava incorporar outros valores para ser aceito pelos governantes do país. Não bastava ter o

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apoio popular, precisava da força dos que detêm o poder econômico. A prova disso foi sua aliança com o senador José de Alencar, um dos maiores empresários do país, vice-presidente em sua chapa. Essa coligação entre o PT de Lula e o PL (Partido Liberal) de José de Alencar, serviu para acalmar os ânimos dos empresários que associavam Luís Inácio a um socialista que, se eleito presidente, tentaria barrar o desenvolvimento capitalista no país.16

Junto com José de Alencar, o discurso de Lula passa a ganhar respaldo também entre os banqueiros, grandes empresários e investidores internacionais. De acordo com Michel Foucault, para ser aceito, o discurso tem que trazer consigo uma autoridade Deve ser reconhecido pelas alegorias a ele confeccionadas, que permitem uma identificação pelas pessoas que o recebem. Assim, há uma legitimação do discurso proferido.

O discurso nada mais é do que o reflexo de uma verdade que está sempre a nascer diante dos seus olhos; e por fim, quando tudo pode tomar a forma do discurso, quando tudo se pode dizer e o discurso se pode dizer a propósito de tudo, é porque todas as coisas que manifestaram e ofereceram o seu sentido podem reentrar na interioridade silenciosa da consciência de si.17

Em época de campanha eleitoral, o candidato Luís Inácio Lula da Silva agregou em seu discursos vários elementos que serviram para aproximá-lo da população brasileira, fazendo que esta se reconhecesse em seu discurso.

De acordo com Jean-Noël Jeanneney, a influência do rádio e da televisão, fez com que a eloqüência dos políticos fosse modificada. “(...) a forma, a expressão, o vocabulário e a sintaxe, e talvez também seu gestual, sua maneira de se vestir e de se mover.”18

O discurso publicitário é um importante instrumento para a construção de mitos.19 Um dos recursos mais utilizados no discurso da campanha eleitoral de Lula em 2002, sobretudo aquela veiculada na televisão, foi o retorno às origens.20 Elemento, segundo Miguel, comum no estudo do mito na antropologia e na história da religião. Sua propaganda foi elaborada para retratar o seu passado sofrido e a superação dos seus problemas através de suas vitórias pessoais. O desenvolvimento deste discurso sempre culminava com um futuro promissor, um porvir melhor do que o presente.

O discurso político, afinal, sempre expõe uma representação do futuro. Ao propor a alteração ou a permanência de práticas e instituições sociais, ele projeta a imagem da sociedade que advirá. A reflexão sobre o passado (e o presente) é necessária, mas na medida em que crie um sentido apropriado a justificar essa projeção. 21

Dentro da formação do mito político um elemento mítico de suma importância é o Salvador. Que é alguém que surge como aquele que conseguirá reverter uma situação ruim, alguém que leva esperança para a população e pode conduzí-la a um futuro promissor.22 A palavra mais usada por Lula em sua campanha foi mudança. Quando assumiu a Presidência da República em primeiro de janeiro de 2003, Luís Inácio, mais uma vez adotou o seu discurso sobre mudança e futuro:

Mudar com coragem e cuidado, humildade e ousadia, mudar tendo consciência de que a

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mudança é um processo gradativo e continuado, não um simples ato de vontade, não um arroubo voluntarista. Mudança por meio do diálogo e da negociação, sem atropelos ou precipitações, para que o resultado seja consistente e duradouro.23

O mito aqui, caracterizado como o Salvador, é perceptível no seu discurso de posse, reafirmando que foi o escolhido para levar à frente o sonho da nação:

E eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes de nós, para reafirmar os meus compromissos mais profundos e essenciais, para reiterar a todo cidadão e cidadã do meu País o significado de cada palavra dita na campanha, para imprimir à mudança um caráter de intensidade prática, para dizer que chegou a hora de transformar o Brasil naquela nação com a qual a gente sempre sonhou: uma nação soberana, digna, consciente da própria importância no cenário internacional e, ao mesmo tempo, capaz de abrigar, acolher e tratar com justiça todos os seus filhos.24

Lula assume como sendo “a missão de sua vida”, acabar com a fome no Brasil. Durante sua campanha isso foi exaustivamente dito e reafirmado em sua posse.

Enquanto houver um irmão brasileiro ou uma irmã brasileira passando fome, teremos motivo de sobra para nos cobrirmos de vergonha. (…) Como disse em meu primeiro pronunciamento após a eleição, se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida. 25

A política não trabalha somente com a razão. Em grande parte trabalha muito mais com o emocional e com o irracional. E é por causa desse forte valor irracional que carrega a política, que é possível a construção de um mito político, o surgimento de um Salvador. A campanha eleitoral feita a favor do candidato Luís Inácio Lula da Silva soube explorar essa carga emocional pra projetá-lo como um homem capaz de “mudar o país”.

A mudança do seu discurso sem radicalismos políticos, sua expressão agora muito menos sisuda, seu vocabulário mais refinado e até os seus cabelos já embranquecidos aos seus 57 anos, transformaram a imagem de Luís Inácio em um candidato com um maior carisma e maior identificação com os brasileiros.

ConclusãoA historiografia que discute sobre a história do tempo presente coloca a obra

de René Rémond Por uma história política, como o texto fundador desta corrente. Entendo a importância deste autor para a formação das bases historiográficas e epistemológicas referentes à história do tempo presente, o utilizamos para pensarmos em relação ao “retorno” do político.

A emergência de uma nova história política se dá a partir das modificações da sociedade do pós-guerra e também, não podemos esquecer das contribuições teóricas e metodológicas trazidas por outras ciências como a antropologia, sociologia, economia entre outras.

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Partindo destas novas tendências, o estudo da formação do mito político implica em perceber que há uma construção de alegorias em torno do discurso político agregando a este, novos valores.

Usando como fonte a revista Isto é, a Propaganda Política Eleitoral Gratuita Obrigatória e o discurso de posse de Luís Inácio Lula da Silva, analisamos como o seu discurso carrega elementos míticos. Discorremos como este discurso favoreceu a construção de um mito, sobre este político, pela população.

A origem do discurso é fundamental para a sua aceitação pela sociedade. Para que haja legitimidade no discurso, há que ter um conjunto de fatores simbólicos para que a população o receba e o entenda como autêntico.

Houve uma relação de alteridade do povo brasileiro com Luís Inácio, incorporando seu discurso de persistência e luta frente às adversidades que a vida o impôs, colocando-o como um líder capaz de levar um país com alto índice de pobreza quanto o Brasil, a acreditar que era possível um governo em prol do povo. A manifestação popular que aconteceu em Brasília, com milhares de pessoas para sua posse ocupando a Esplanada dos Ministérios, foi a prova disso.

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Notas

1ISTO É, São Paulo: Editora Três n° 1736 Janeiro 2003. Disponível em:www.istoé.com.br/assuntos/4_BRASIL. Acesso em: 20/08/2010.

2SILVA, Luis Inácio Lula. Discurso de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Congresso Nacional .Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/01/44633.shtml

3Idem p. 15

4FERREIRA, Marieta M. História, tempo presente e história oral. In: Topoi, Rio de Janeiro, dezembro 2002, p. 318

5RÉMOND, René. Op. cit. p.17

6Idem p. 15

7Idem p. 24

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8RÉMOND, René. O retorno do político. In: Questões para a história do presente. CHAUVEAU, A. TÉTARD, Ph. (org).Bauru, SP: EDUSC, 1999 p. 55

9GIRARDET, Raul. Mitos e mitologias políticas.Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1987 p. 10MIGUEL,Luis Felipe.Em torno do conceito de mito político.Dados[online],Rio de Janeiro, v.41, n.3.

11Idem 12RÉMOND, René. As eleições. In: (Org.) Por uma historia política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/FGV p. 38.

13Idem. p. 40.

14ISTO É, São Paulo: Editora Três n° 1733 Dezembro 2002. Disponível em: www.istoé.com.br/assuntos/4_BRASIL. Acesso em: 20/08/2010.

15ISTO É, São Paulo: Editora Três n° 1726 Outubro 2002. Disponível em: www.istoé.com. br/assuntos/4_BRASIL. Acesso em: 20/08/2010

16Idem

17FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2003. p 13.

18JEANNENEY, Jean-Noël. A mídia. In: (Org.) Por uma historia política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/FGV p.221.

19MIGUEL,Luis Felipe.Op. cit.

20Propaganda Político-partidária Gratuita Obrigatória.

21MIGUEL,Luis Felipe.Op. cit.

22Idem

23SILVA, Luis Inácio Lula. Op cit.

24Idem.

25Idem.

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