anais: mulherespescadoras

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ANAIS DO I ENCONTRO ESTADUAL DE MULHERES PESCADORAS DO CEAR

(...) e quando a gente se descobre mesmo, como mulher, ento a gente comea a se sentir responsvel pela histria, no s a nossa, mas a histria da sociedade, a histria das outras mulheres, ahistria do mundo, - da vida, n?Maria Nazar de Souza, trabalhadora rural Itapipoca - Cear In Histria na Mo, Maria Alice McCabe

ANAIS

I ENCONTRO ESTADUAL DA ARTICULAO DE MULHERES PESCADORAS DO CEAR27 a 29 de novembro de 2008 Iparana - CE

Anais do I Encontro Estadual das Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE)

Na pesca e na luta: mulheres construindo direitosRealizao do Encontro

Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE) Instituto Terramar Conselho Pastoral dos Pescadores/CE (CPP/CE)Relatoria

Gigi CastroOrganizao e texto final

Cristiane Faustino e Sheila NogueiraReviso

E56a Encontro da Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (1. : 2010 : Fortaleza, CE). Anais do 1 Encontro da Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear. Na pesca e na luta, mulheres construindo direitos / organizado por Cristiane Faustino; Sheila Nogueira; relatoria Gigi Castro; Fortaleza: Instituto Terramar, 2010. ISBN 1. Mulheres pescadoras Encontro. I. Faustino, Cristiane. II. Nogueira, Sheila. III. Castro, Gigi. CDD 639.2

Maria Anezilany Gomes do NascimentoCapa, projeto grfico e editorao

Mayara MeloArte-finalista

Fernando SousaFotografias

Iana Soares, Mayara Melo e Natlia AmaralTiragem

1000 exemplaresImpresso

Expresso GrficaApoio

ICSF EED CESE

Edio Instituto Terramar Rua Pinho Pessoa, 86 Joaquim Tvora Fortaleza/CE Tel.: 85 3226.4154 / Fax: e.mail: [email protected] www.terramar.org.br

sumrioApresentao 7 10 Mulheres da cabea aos ps: oficinas de autodescoberta Debate sobre as questes das mulheres da Zona Costeira do Cear trazidas das oficinas de autodescoberta e das oficinas regionais, realizadas na preparao do encontro 27 Cristiane Faustino e Sheila Nogueira Mesa I - Pesca e Vida de Mulher 33 Mulheres na gesto da pesca e das comunidades pesqueiras 34 Cristina Maneschy Sade da Mulher Pescadora 37 Marizlia Lopes [Nega] Direitos previdencirios e trabalhistas das mulheres pescadoras Ormezita Barbosa Debate 41

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Mesa II - Mulheres Pescadoras: desafios para a participao poltica 45 Pra mim, no tem outro jeito que no seja essa articulao coletiva 46 Marizelha Lopes [Nega] A gente est em movimento. Umas aqui, outras acol, mas seguindo nessa articulao. Manuela Gonzaga Debate 50

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Mesa III - Avanos e Desafios para Organizao e Participao Poltica das Mulheres no Brasil 52 Nossa organizao incomoda, porque s o fato de nos organizarmos j muda a dinmica da sociedade. Slvia Camura Debate 56

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Plenria - Movimento de Mulheres Pescadoras da Zona Costeira/Debate sobre a constituio do Movimento de Mulheres Pescadoras do Cear: objetivos do movimento, estrutura do movimento, principais temas, estratgias e representao poltica. 58 Coordenao: Slvia Camura Sntese Geral das definies da Plenria dos dias 28 e 29/nov/2008 Sarau ao luar (da lua nova) Lista de siglas 84 76 72

ApresentaoCristiane Faustino1 Incumbida de fazer a apresentao desse material, gostaria de ressaltar minha alegria em ter participado dos processos que culminaram na realizao desse encontro, colaborando junto a outras companheiras em toda a construo, na condio de assessora e educadora popular. Decerto que no posso falar em nome das pescadoras, mas posso e me sinto honrada por isso explicitar minhas impresses sobre essa vivncia. Desde j agradeo Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE) pela confiana, assim como s outras companheiras que estiveram e esto conosco, todas colaborando de diferentes lugares na construo de aes, pensamentos e discursos voltados para a afirmao dos direitos das mulheres. O I Encontro Estadual da Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear: na pesca e na luta mulheres construindo direitos foi um importante momento para o fortalecimento da organizao das mulheres pescadoras no Estado. Por vrias razes, dentre as quais destaco o fato de ter sido este Encontro organizado pela prpria AMP/CE, com o apoio e assessoria do Instituto Terramar e do Conselho Pastoral dos Pescadores, Cear (CPP/CE). O evento foi parte do projeto Mulheres da Zona Costeira: construindo sujeitos e articulando lutas, financiado pela Coordenadoria Ecumnica de Servios (CESE), pelo ICSF Coletivo Internacional de Apoio aos Trabalhadores da Pesca e pelo Servio das Igrejas Evanglicas na Alemanha para o Desenvolvimento (EED). Este projeto possibilitou, alm do Encontro, uma srie de atividades de formao e articulao nas comunidades, proporcionando AMP/CE e s organizaes parceiras realizar um dilogo mais aproximado com as mulheres e suas questes, atravs das oficinas de formao, das mobilizaes e do prprio Evento. Implantado no perodo compreendido entre fevereiro e novembro de 2008, o projeto foi acompanhado por uma das coordenadoras da AMP/CE, com apoio e assessoria das organizaes parceiras. O ciclo de formao subsidiou a realizao do Encontro, que contou com a participao de outras mulheres igualmente importantes para a luta, como Cristina Maneschy, da Universidade Federal do Par (UFPA); Marizlia Lopes, da Articulao Nacional de Pescadoras (ANP) e do Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE); e Slvia Camura, da Articulao de Mulheres Brasileiras (AMB), possibilitando importante troca de saberes e de experincias e evidenciando possibilidades de alianas entre as mulheres organizadas.1 Educadora do Instituto Terramar.7

As metodologias desenvolvidas, tanto nas oficinas quanto no Encontro, destacaram-se como momentos de autodescoberta e reflexes sobre as condies das mulheres a partir de suas histrias de vida, anseios e sonhos, assim como de valorizao das experincias acumuladas nas lutas sociais. Destacaram-se nos debates as dificuldades de acesso aos direitos em diferentes campos; a necessidade de visibilizar questes como a violncia domstica, as mltiplas jornadas de trabalho e as discriminaes que as mulheres sofrem nas instituies pblicas, como nas unidades de sade e nos postos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); assim como as dificuldades em serem valorizadas e reconhecidas pelas Colnias de Pescadores como sujeitos de direitos. Esses momentos tambm possibilitaram discutir a degradao socioambiental na Zona Costeira e as ausncias dos servios pblicos, em especial dos direitos sociais bsicos, e como isso recai sobre a vida das mulheres. Considerando o processo vivido, importante ressaltar o carter participativo na realizao das aes, desde o planejamento do projeto construo das metodologias de formao e do prprio Encontro, cuja realizao foi precedida de muitas reunies sob coordenao da AMP/CE com as assessoras do Terramar e do CPP/CE, para a tomada de decises e efetivao dos encaminhamentos necessrios. As lideranas da AMP/ CE transcenderam os espaos-tempos das coordenaes, exercitando um importante papel de mobilizao e articulao das aes. Isso propiciou uma maior apropriao e reconhecimento da necessidade das pescadoras de se organizarem para buscar e construir direitos. Tambm foi uma importante colaborao para o fortalecimento da visibilidade das mulheres na Zona Costeira cearense, principalmente por elas prprias. Dentre as questes tratadas no percurso do projeto, algumas ganharam destaque e merecem ser ressaltadas. O tema do acesso aos direitos previdencirios , sem dvida, uma das maiores preocupaes, sendo marcado pela falta de informaes e por discriminaes, geradas pela negao das mulheres pescadoras e pela suspeita que recai sobre elas, resultando, para todas, em maiores vulnerabilidades frente aos problemas que a categoria pescadores artesanais historicamente enfrenta no acesso aos direitos. Pois, se para os homens o problema garantir e acessar os direitos de pescadores, para elas trata-se de, antes de qualquer coisa, provar que a pesca tambm uma atividade realizada por mulheres. A precarizao das polticas pblicas setoriais tambm outro tema que se destaca, trazendo vrios impactos vida das. Mediante o fato inquestionvel de assumirem estas mulheres atividades domsticas e demais cuidados, so elas as primeiras a acumular trabalhos na ausncia dos servios pblicos vinculados a essas esferas como temos observado no caso das polticas de sade e saneamento. Essas dificuldades atingem tambm as mulheres pescadoras, pois o fato de pescarem no as isenta das outras responsabilidades da casa, resultando no acmulo de intensas e ininterruptas jornadas de trabalho, que alm de no serem consideradas trabalho, dificultam a participao poltica das mulheres. Isso porque a ao poltica exige: intervir no mundo pblico, sair de casa e da comunidade, exercer a fala pblica, aprender a reivindicar e a dialogar com os outros sujeitos, o que se torna difcil para as mulheres, responsabilizadas pela casa.

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Neste debate, as lideranas, frequentemente, se queixam das crticas que recaem sobre elas quando rompem com esse modelo e passam a exercer atividades polticas. Para fazer a ao poltica, essas mulheres precisam negociar com os companheiros, com a famlia e com a comunidade. E isso exige de imediato uma redistribuio do trabalho domstico, alm de uma transformao do olhar sobre a mulher, a partir do reconhecimento da capacidade deste sujeito social, bem como da disposio para fazer poltica. Misso nada fcil, pois, numa cultura que historicamente situa as mulheres como intelectualmente menos capazes, a sada para o mundo pblico, muitas vezes, remete a um tratamento marcado pela desconfiana. Em muitos casos, por exemplo, as lideranas ressaltaram que ao sarem para o espao pblico passaram a ser avaliadas no por suas habilidades e/ou conquistas polticas, mas pelo exerccio de sua sexualidade, com destaque para como colocam em risco a honra e o respeito de seus companheiros, alm da acusao de abandonarem seus lares. Mas, a despeito de todos os empecilhos, importante destacar que as mulheres vm cada vez mais se fortalecendo enquanto mobilizadoras na Zona Costeira. Se durante muito tempo suas questes foram negligenciadas, elas cada vez mais participam, cada vez mais desenvolvem ao poltica transformadora a partir de sua prpria experincia. Aqui importante ressaltar que as mulheres sempre estiveram nas frentes de lutas. Elas enfrentaram e enfrentam a luta pela garantia dos territrios costeiros, contra a perda da terra e a privatizao dos bens ambientais. Mas urge agora que a estas se somem as lutas pelos direitos das mulheres e pela superao das desigualdades de gnero. Nesse sentido, os processos de formao, os momentos de discusso, de participao em reunies e de encontros como esses, que permitem o intercmbio e o reconhecimento de outras mulheres e de outros movimentos, so fundamentais para seu amadurecimento como sujeitos de sua prpria histria. Neste sentido, faz-se fundamental o reconhecimento das capacidades polticas das mulheres, de sua capacidade de intervir nos movimentos a partir de uma fala que explicite as questes que todo dia esto postas nas suas vidas. Isso no significa, como recorrentemente se tem afirmado, que as mulheres esto fragmentando movimentos ou esto querendo tomar os lugares dos homens. Significa, sobretudo, que precisam e devem estar garantindo sua participao e o direito de dizer e de decidir sobre suas prprias vidas, conquistando igualdade nas garantias de condies dignas, que passam pela distribuio equitativa do trabalho e de seus resultados. Por isto, esse material que ora apresento deve, para alm de um registro, representar a fora e a determinao das mulheres pescadoras em conquistar direitos em todos os campos de suas vidas. Por fim, vale sempre lembrar que um projeto democrtico para a Zona Costeira s se faz possvel mediante a ruptura com as desigualdades entre homens e mulheres e com as mltiplas formas de discriminaes que situam uns grupos como superiores a outros, resultando em muitas negaes, inclusive na negao ou subalternizao de formas de ser, como no caso das pescadoras que lutam por serem assim reconhecidas, recusando-se a ocupar um lugar de menor valor e de menos direitos.9

Mulheres da cabea aos ps:oficinas de autodescoberta

Um pouco sobre a metodologia... Inspiradas pelas questes pensantes colocadas por Slvia Camura, em seu texto Ns Mulheres e nossa experincia comum1, iniciamos o encontro com a realizao de oficinas de autodescoberta. Com as oficinas, pretendamos construir momentos em que as mulheres pudessem de forma descontrada falar sobre si, construir conhecimentos, resgatar saberes e descobrir um pouco mais sobre nosso estar no mundo, sobre a constituio de nosso cotidiano. A proposta das oficinas foi elaborada pela Comisso de Organizao, composta pela coordenao da Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE), por duas representantes do Instituto Terramar e por uma representante do Conselho Pastoral dos Pescadores, Cear (CPP/CE). Mas sua consolidao se deu em reunio ampla com o conjunto das educadoras convidadas para colaborar com o Encontro. Os temas foram pensados tomando em conta vrias dimenses da vida: corpo, impresses sobre o mundo, trabalho, tempo e espao das mulheres. Escolhemos partir de vivncias onde as participantes pudessem usar o corpo, as mos, a criatividade e o ldico, tendo as educadoras o papel de transformar essas vivncias em momentos de revelaes, descortinando, de forma descontrada e envolvente a realidade das pescadoras. Buscando dar conta do temrio, optamos pela realizao das seguintes oficinas:Oficina 1. Nosso corpo, nossa vida (massoterapia c/ Ftima Castro e Raylka Franklin) Oficina 2. Nossa histria e nossa vida (brincando de bonecas c/ Rogria Oliveira e Sheila Nogueira) Oficina 3. Retratos de ns em novos olhares (brincando de fotografar c/ Iana Soares e Luciana Nbrega) Oficina 4. Nossas mos, nosso trabalho (brincando de tecer rede c/ Valdineide Rodrigues e Cristiane Faustino) Oficina 5. Tecendo textos (brincando de escrever c/ Gigi Castro e Luciana Queiroz)CAMURA, Slvia. Ns Mulheres e nossa experincia comum. In: Cadernos de Crtica Feminista. Ano I, N. 0 dez, 2007. Recife: SOS CORPO Instituto Feminista para a Democracia.

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Essas oficinas tambm deveriam revelar como a formao da sociedade, baseada nas relaes de gnero, relacionam-se diretamente na formao das mulheres e se impe na vida cotidiana. Partindo da experincia individual de cada mulher, a idia era alcanar os pontos de encontro, as coisas em comum, que se revelam nas experincias de cada uma e compem o coletivo das mulheres e vice-versa os lugares sociais baseados nas desigualdades de gnero. Igualmente seria importante encontrar elementos a partir dos quais as mulheres descobrissem suas foras e capacidades, situando, sobretudo, a constituio de processos que contribuem para a construo das mulheres como sujeitos de suas histrias individuais e sujeitos das histrias de todas as mulheres. Para isso, a plenria seguinte partilha das oficinas complementaria as reflexes, impulsionando no debate a visualizao de outras realidades, de outras mulheres: como a realidade das pescadoras e da Zona Costeira se encontra e se diferencia da realidade das outras mulheres?; quais so as experincias comuns?; quais so os desafios postos para as mulheres se firmarem no mundo, em p de igualdade?; como a experincia das pescadoras se insere num contexto amplo de toda a sociedade e de todas as mulheres?; e, por fim, afunilar-se-ia o debate sobre os desafios das pescadoras a partir da realidade da Zona Costeira do Cear.

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Compartilhando aprendizados Mulheres da Zona Costeira: corpo, vida, arte e trabalho Coordenao Manuela Gonzaga Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE) Frum de Pescadores e Pescadoras do Cear (FPPLC)

Depoimentos destacadosOficina 1. Nosso corpo, nossa vida

descobrimos o prazer de trabalhar o corpo, as movimentaes, a dana. Oficina 2. Nossa histria e nossa vida as mulheres so educadas para ter determinados tipos de comportamento, sendo reprimidas na sua forma de expressar-se corporalmente. no foi brincadeira, foi coisa sria. Tambm demos nomes s bonecas, homenageando, sobretudo as mulheres que no puderam estar presentes ao encontro. ... A gente encontrou coisas boas, e tambm coisas que dizem respeito a mulheres do mundo inteiro. O brincar muito diferente para meninas e meninos. Outra coisa a impossibilidade de ir para a escola, por conta do trabalho domstico. A pesca sempre esteve presente na vida das mulheres porque sempre significou a garantia do almoo e do jantar. As mulheres sempre carregaram galo de gua na cabea. Geralmente a gente pensa que a mulher no pesca ser que porque esse tipo de pesca est bem perto do trabalho domstico? Ser que a gente no tem que pensar o que significa o prprio trabalho domstico?... Aparentemente parece que a gente no faz nada, mas a gente que garante o funcionamento da casa para todos irem pra fora. E se no houvesse a pesca das mulheres? porque ela que garante o peixe, o marisco. s vezes a gente tem muita dificuldade de pensar na gente, porque a gente est sempre pensando no outro (o menino, o12

Oficina 3. Retratos de ns em novos olhares

marido...). A maioria das mulheres s come depois de servir todo mundo. Com isso, o nosso pensamento, a nossa memria vai se perdendo. Fico feliz com as trocas que acontecem nos trabalhos coletivos (tecer, se organizar) Por trabalhar fora, as pessoas maldam da gente A gente falou como a gente se v e como os outros nos vem. A gente se enxerga de um jeito e as pessoas nos enxergam de outro comeamos trabalhando os olhares e vendo como eles interferem na nossa vida. Mas os olhares so

Oficina 4. Nossas mos, nosso trabalho

construdos e por isso podem ser reconstrudos. Mostramos tambm como a propaganda interfere na nossa vida, nos coloca como mercadoria, retirando nossa dignidade. Iana tambm falou um pouco sobre a fotografia e depois as mulheres saram para bater fotos. tecer a rede foi tecer histrias; ao tecer pensamos em cada malha, em cada n. Para que serve essa rede de pesca? como uma ciranda da mulher: esses encontros representam essa rede, cada uma de ns tem significado importante. O trabalho humano, o trabalho manual muito importante, porque fomos ns que fizemos. E no porque seja para vender, mas porque fizemos para ns mesmas. Lembra tambm a rede da sustentabilidade: antes, muitas mulheres teciam redes de pesca; hoje isso acabou mais. Hoje raro uma mulher tecendo rede, com a chegada da industrializao. Eu mesma, com meu marido, a gente pagava umas moas que viviam da agricultura, para nos ajudar a tecer porque uma rede d muito trabalho. Agora elas j vm prontas, j se passou a comprar. Mas as industrializadas no so manuais e as mulheres perderam essa fonte de renda. Tambm com a chegada dos veranistas, as mulheres passaram a viver de trabalhar pra eles saiu muita coisa nas nossas conversas. Interessante que quase todas comearam a trabalhar com a pesca muito cedo, s vezes com seis anos e isso no era brincadeira, era trabalho mesmo. Luzanete disse que hoje quem faz mais a rede so os homens elas fazem mais os remendos. Elas ficam na cozinha, porque13

Oficina 5. Tecendo textos

pra algum fazer a rede, tem que algum cozinhar. E o trabalho domstico outra coisa que comea muito cedo tambm achei importante os textos grandes ou pequenos, mas com sentido a grande vingana nossa a esperana. A mudana traz ruptura e s vezes s acontece no grito, na marra todas as oficinas foram importantes, mas achei a nossa muito importante porque aprendi a ser poeteira agradeo a homenagem (feita pela oficina de bonecas). na pesca que eu me inspiro. Na tranqilidade, na calma dos manguezais, no balano do mar e do cu, de onde recebo a fora e o poder a gente comeou a oficina perguntando s mulheres se elas tinham tempo pra elas, porque escrever no uma coisa que esteja no cotidiano das mulheres pescadoras. Da a gente viu que escrever era se expressar. E que esse tempo pra escrever um tempo pra pensar sobre si mesma, um tempo necessrio pra construo da prpria identidade. Donde a gente ter dito que importante ter o tempo de no fazer nada, porque esse fazer nada pode significar muita coisa. Queria lembrar que durante a preparao do encontro a gente falou da Virgnia Woolf, uma escritora inglesa, que dizia que pra mulher escrever ela precisa de duas coisas: de ter a sua renda e de ter o seu espao. A gente sabe como difcil essas duas coisas pras mulheres pescadoras, mas a gente acredita que possvel construir isso. Tanto que as mulheres produziram textos os mais variados, nesse pouco tempo que a gente reservou pra se expressar escrevendo e agora a gente queria provocar vocs todas a escreverem pro sarau de hoje noite

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Relatos das oficinasNosso corpo, nossa vida

por Raylka Franklin2 A oficina Nosso corpo, nossa vida, metodologicamente, utilizou-se da massoterapia para viabilizar uma discusso em torno do corpo e de suas representaes histrico-sociais para as mulheres. Iniciou-se com um trabalho corporal atravs de uma automassagem: a cada parte do corpo tocada, a facilitadora explicava o fundamento do toque e os benefcios deste. Nessa atividade, as mulheres puderam experimentar um momento de autoconhecimento do corpo, o qual, segundo elas conforme ficou expresso em suas falas no momento em que a facilitadora pediu que se manifestassem sobre o que sentiram com a atividade algo raro em suas vidas. Levantou-se tambm o fato de que pouco as mulheres conhecem seus corpos, pois dificilmente param para pensar nele e na importncia de cada detalhe do mesmo. As mulheres tambm falaram da falta de tempo para se observarem, fizeram referncia aos seus cotidianos repletos de outras atividades. A temtica da sexualidade esteve muito presente no debate, pois ao refletirem sobre seus corpos e sua relao com eles, as mulheres acabam sempre falando sobre a sua sexualidade, o que rebate nos seus relacionamentos afetivo-sexuais e tambm em situaes de violncias vividas por elas. Refletindo sobre a oficina, as mulheres destacaram a importncia de momentos como este, onde elas pudessem sentir-se mais vontade para falar de si mesmas. Interessante perceber os vnculos que estas realizam entre a descoberta do corpo e a vida cotidiana: a surpresa de se dar conta de si mesmas. Danar ou no danar, por exemplo, ganha outros sentidos quando se experimenta a vivncia consciente do corpo. E, para as mulheres, apesar das diferenas individuais, muitas coisas em comum se colocam quando observam suas experincias consigo mesmas. Outro aspecto ressaltado foi o das angstias que as atingem, diante dos modelos de corpos perfeitos; a timidez e o constrangimento de se viver em corpos fora dos padres.2

Estudante de Servio Social. Ativista do Frum Cearense de Mulheres e do Coletivo de Jovens Feministas.15

Os problemas de sade se revelaram tambm como resultantes da falta de experimentao consciente do prprio corpo, da vergonha, da carncia de acesso aos servios pblicos de qualidade, mas, sobretudo, da falta de tempo para cuidar de si mesma. como se o corpo e o tempo das mulheres fossem sempre objeto de segundo plano em suas vidas, quando na verdade vivem nele e em grande medida por eles, com a diferena de que a felicidade de seu corpo est vinculada aos interesses e mesmo felicidade dos outros. Estabelecemos um dilogo aberto, explicitando formas de preconceitos e de negaes que dificultam s mulheres o autoconhecimento do corpo e como isso impacta sobre seu cotidiano e sua sade, prejudicando a construo da felicidade de sua prpria existncia. Ao final da oficina, as participantes se sentiram vontade, estabeleceram, ainda que de forma momentnea, uma pequena revoluo, resolvendo ensaiar e apresentar uma dana solta e livre para as outras participantes do Encontro.

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Nosso histria e nossa vidapor Rogria Oliveira3 Esse momento foi pensado para promover uma maior aproximao entre as participantes do encontro, suas histrias e realidades. A oficina teve incio mediante um trabalho de corpo e uma apresentao permeada por um pouco de histria individuais. Estiveram presentes 14 mulheres: Maria Onsia Silvana Silva (Pontal de Macei), Lucimeire Moreira da Silva (Cumbe), Eliane Rodrigues Soares (Volta), Maria Gorete dos Santos Dias (Emboaca), Maria Rosima de Oliveira (Emboaca), Ana Sousa da Guia (Pontal de Macei), Maria Eliene Arajo (Aranau), Francisca Helena R. da Silva (Morro Branco), Maria dos navegantes Moura (Tapera Trememb), Maria Josilene Nascimento (Aranau), Maria das Graas S. B. (Curral Velho), Maria Valdenez de Sousa (Caetanos de Cima) e Luzimar da Silva Arajo (Aracati). Iniciamos nosso trabalho de memria situando trs momentos: infncia, juventude e vida adulta, sendo a conversa alimentada pela confeco de bonecas, simbolicamente representando cada uma das participantes. O comando era nos autoconfeccionarmos. Em um primeiro momento, na medida em que amos costurando o primeiro pedao da boneca (o tronco), as mulheres foram instigadas a recordar um pouco de sua infncia. Espontaneamente, foram falando suas primeiras bonecas bruxinhas, suas brincadeiras de cabana ou casinha, a construo de roupinhas para as bonecas... Esse foi um momento muito tranqilo e descontrado. A idia de voltar infncia, na maioria das vezes acompanhada de saudosismo e alegria pelos momentos vividos. Fizemos uma breve provocao, indagando se essa infncia havia sido s de brincadeiras. E algumas responderam que todas tinham suas tarefas determinadas na lida da casa (varrer, botar gua nos potes, ajudar com o preparo das comidas...) e que s depois da tarefa cumprida, eram liberadas para brincar. Outra questo levantada por elas era que os meninos tambm ajudavam, mas a eles era delegada s uma parte pequena das tarefas domsticas, recaindo o grande peso sobre as meninas. No segundo momento costuramos os braos das bonecas e pedimos que cada uma fosse falando um pouco sobre as vivncias da adolescncia. Inicialmente, um silncio tomou conta da sala. Timidamente, algumas3

Arte Educadora do Instituto Terramar.17

foram falando sobre seus primeiros namorados, sobre a gravidez, que em suas avaliaes aconteciam muito cedo; sobre como se namorava antigamente (o respeito que deveriam ter de seus namorados)... Boa parte delas casou-se com o primeiro namorado, por volta dos 16 anos, no tendo outras experincias afetivosexuais. Outras poucas afirmaram que viveram intensamente essa fase e s casaram ou se juntaram aps os 20 anos. O terceiro momento foi mais silencioso no incio. Quando comeamos a confeccionar a cabea das bonecas, pedimos que as mulheres falassem sobre sua vida adulta (como ser adulta e mulher?). As falas em geral ficavam em torno das tarefas de ser esposa, me e dona de casa. Essa combinao fazia parte da vida de todas e era colocada como uma carga muito pesada a ser assumida s pelas mulheres. Algumas falaram que tambm tinham momentos de descontrao, mas que isso s veio depois dos 50 anos, depois da separao e/ou dos filhos e filhas terem crescido. Aps a concluso do corpo das bonecas deixamos as mulheres livres para enfeitarem e vestirem suas bonequinhas. Ao final da oficina, fizemos uma rodada de avaliao. A maioria falou da felicidade de poder brincar de fazer boneca. Foi como reviver a infncia. Esse parece ser o melhor momento de suas vidas, atravs do qual elas falam com maior tranqilidade. Curioso, entretanto, foi o relativo silncio sobre a juventude, e apesar de no podermos afirmar com segurana plena, podemos ao considerar as entrelinhas do dito e do no dito supor que por ter sido este o tempo da descoberta e da evidenciao dos seus corpos e de seus desejos foi, tambm, o tempo das represses, que talvez ainda hoje intimide as falas destas mulheres. Questo sempre silenciada diz respeito a como se dava a vivncia da sexualidade, o que nos incita a afirmar a necessidade de revisitar e aprofundar, atravs do autoconhecimento e da reflexo crtica, os fatores de opresso, retomando e religando os vnculos entre os diversos perodos de suas vidas, das aprendizagens da infncia vida e ao cotidiano atual, na perspectiva de compreender como estes vnculos impactam sobre as escolhas e as vises que as mulheres tm sobre elas mesmas. Para refletir essas questes com mais profundidade e cuidado precisaramos de mais tempo, o que no era possvel dentro da programao do Encontro. Ento, fica desde j, a continuidade desses processos de autoconhecimento como uma demanda para os futuros processos formativos da Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE). Ao final da oficina, fizemos uma rodada de avaliao. A maioria das mulheres falou da felicidade de poder brincar de fazer boneca, com o diferencial de nesse processo ir pensando sobre si e sobre as outras, a partir do que ia sendo colocado na roda. Para socializao com as demais participantes, elas resolveram nomear suas bonequinhas homenageando outras mulheres que fizeram parte de suas histrias.

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Retratos de ns em novos olharespor Luciana Nbrega4 A oficina tinha como proposta construir uma reflexo com as mulheres pescadoras sobre como a sociedade e a comunidade em que elas vivem enxergam as mulheres. A partir do recurso da fotografia, buscava-se discutir conceitos como identidade, representao e autonomia, respondendo seguinte questo: de que forma o olhar do outro condiciona o nosso prprio olhar? Dividimos, portanto, a oficina em duas partes. Na primeira, de cunho mais reflexivo, conversamos sobre os diversos olhares sobre as mulheres, como elas se vem e como so vistas. Nesse momento, as falas das mulheres presentes foram no sentido de que o modo como a comunidade as v o modo como elas so: mulheres trabalhadeiras, carinhosas e sensveis. Diante dessas respostas, instigamos o grupo a refletir sobre o peso do trabalho domstico na vida das mulheres pescadoras, a questo da sexualidade, a violncia domstica e familiar contra as mulheres e a prpria discriminao na atividade da pesca: se somos mulheres, dizem que a gente no pescadora porque no vamos para alto mar. A partir das discusses no grupo, muitas perceberam que o olhar delas sobre elas mesmas era diferente do olhar que os outros tm sobre elas. Ilustramos esse momento com diversas propagandas de cerveja e de empreendimentos tursticos que colocavam as mulheres como mais um produto a ser vendido. Todos esses fenmenos so reflexos da viso que a sociedade tem sobre as mulheres. De forma a romper com esse ciclo em que o olhar dos outros condiciona o agir das mulheres, falamos sobre a fotografia, como um importante instrumento para que as prprias mulheres mostrem como elas se vem e querem ser vistas. Mostramos, nesse momento, vrias fotos das comunidades pescadoras e indgenas. Aps uma breve explicao sobre o uso da mquina fotogrfica, convidamos as mulheres presentes a experimentarem elas mesmas o exerccio de fotografar, dando novos sentidos ao mundo, traduzindo em fotografias os olhares que elas tm sobre si mesmas, usando a paisagem do SESC Iparana5, local onde ocorreu a oficina.4 5

Advogada. Ativista da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP). Servio Social do Comrcio (SESC), localizado em Iparana, Cear.19

No retorno, elas mostraram as diversas fotografias que foram feitas. Na partilha da experincia algumas descobertas: a alegria e a timidez em manusear as mquinas; a descoberta da fotografia como instrumento de rupturas com olhares comuns; a possibilidade de escolha daquilo que se queria registrar, uma espcie de gratido pela possibilidade de viver esta experincia. Fechamos a oficina destacando os aspectos simblicos da fotografia, que para ns no se restringe a uma imagem congelada no papel, mas antes uma linguagem importante para por em movimento outros olhares e sentidos sobre as coisas, as pessoas, o mundo e, em especial, sobre as mulheres no mundo. Ento, rompendo com essa distncia entre as mulheres e a mquina fotogrfica, que pode ser explicada, entre tantos outros fatores, pela histrica separao das mulheres da tecnologia, buscamos exercitar com as mulheres pescadoras outras formas de ver e reinventar o que visto. Em outras palavras, buscamos afirmar a necessidade das mulheres serem sujeitos na construo de novas imagens sobre ns mulheres e nossa experincia comum, para promover rupturas com as velhas imagens estereotipadas e congeladas no papel que reproduzem os lugares de subordinao das mulheres.

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Nossas mos, nosso trabalhopor Cristiane Faustino6 Atravs da confeco de uma rede de pescar, a oficina Nossas mos, nosso trabalho tinha como objetivo construir um tranado conversado sobre a vida das mulheres na Zona Costeira, com foco no trabalho. Dela participaram aproximadamente 14 mulheres. A metodologia consistiu na formao de um crculo de aprendizado onde as mulheres que sabiam tranar rede de pesca ensinavam s outras, ao tempo em que, em forma de bate-papo, a educadora ia puxando conversas, tentando trazer os elementos marcantes na histria de vida das participantes. Como estvamos em ambiente aberto, o grupo tendia disperso, por isso a oficina teve que ocorrer de forma acelerada, de forma que o momento fosse bem aproveitado. No comeo foi difcil organizar, pois as mulheres se alvoroaram diante dos instrumentos que foram disponibilizados para a oficina (linha, agulha etc): umas querendo muito aprender, e outras precisando muito ensinar. Uma coisa interessante de se observar que elas confeccionam redes de diferentes formas, nas diferentes comunidades. E para aquelas que sabiam, parecia uma honra falar sobre isso, como se sua forma de fazer fosse a mais certa, a mais bonita e a que propiciava melhor firmeza ao instrumento. Isso, a princpio dado como disputa, ajudou no reconhecimento das diferenas e no relaxamento do grupo que acabou se sentindo muito vontade. Quando finalmente conseguimos nos estabelecer, duas a duas, em crculos, organizamos as conversas: primeiro as mulheres compartilhavam as formas de fazer a rede, que implicava na organizao e manuseio dos instrumentos necessrios sua confeco. Vez por outra havia discordncias entre elas, mas ao final as diferenas eram valorizadas, como aspecto que marca as formas de vida nas diferentes comunidades. Por fim, as coisas se acomodaram, e a organizao das duplas j no obedecia a um crculo perfeito. As mulheres foram ficando vontade pela sala, e s conversas iniciais juntaram-se as histrias de vida das mulheres, a partir da partilha que cada uma foi fazendo. No desenrolar das conversas, as histrias iam se encontrando em diferentes pontos, pelas semelhanas, pelas diferenas. To integradas estavam que em alguns momentos falavam todas ao mesmo tempo. E mesmo as mais tmidas passaram a cochichar com aquelas que lhe estavam mais prximas. A conversa circulou entre o retorno infncia, juventude e a percepo sobre a vida atual. O trabalho aparece como central na vida dessas mulheres, desde crianas quase todas comearam a6

Assistente Social. Educadora do Instituto Terramar.21

trabalhar antes dos dez anos de idade , a vida beira-mar, lhes enche de nostalgia e gera um misto de queixas e saudades. Desde cedo aprenderam a pescar e a cuidar de casa. Entretanto, a pesca que aprendem a fazer como herana cultural est vinculada quelas formas consideradas mais leves, pois realizada em guas rasas, lugares que ficam entre a terra e o alto mar, isso por conta dos perigos que as meninas no so vistas como capazes de enfrentar, mas tambm por facilitar o circuito cotidiano entre a casa e o mar. Valorizam no discurso o fato de terem comeado a trabalhar cedo, apesar das queixas sobre os mltiplos trabalhos que realizam. Este comear a trabalhar cedo no se restringe pesca. Abrange tambm a realizao de trabalhos domsticos em casa para a famlia, e fora dela, para garantir renda. Tambm ressaltaram que havia maior abundncia nas pescarias e que antes da industrializao dos instrumentos de pesca, as mulheres tinham mais possibilidades de trabalho na produo dos apetrechos. Isso tanto facilitava o acesso renda quanto a aquisio de instrumentos de pesca para os trabalhos dos homens. Uma questo que todas identificaram foi a ausncia de escolas e de condies objetivas para estudar, resultando no fato de que quase todas no tiveram acesso leituras e nem tampouco sabem ou tm segurana para escrever. O casamento tambm surge como importante dimenso da vida. A maioria se casa e tem filhos cedo, e embora nesse processo continuem a realizar o trabalho na pesca, logo passam a realizar de uma forma mais sistemtica outros tipos de trabalho, como os servios domsticos e, em algumas comunidades, aqueles relativos insero das mulheres na cadeia produtiva do turismo ou nas atividades perifricas22

desse setor. Os desejos do futuro quase sempre esto vinculados melhoria da qualidade de vida, sendo o acesso a direitos um elemento forte nas reivindicaes das mulheres. Nesses debates, percebe-se um contedo poltico formado pelas conscincias espontneas de justia e de necessidade de garantir os direitos s mulheres que pescam. Para ir arrematando a conversa e resgatar seu contedo metodolgico, retomamos o crculo e seguimos conversando um pouco sobre a vida atual das mulheres. Dentre as tantas questes colocadas, destacou-se: a invaso de outras culturas urbanas, a violncia que se acirra nas comunidades, as polticas pblicas precarizadas e a crescente degradao de seus ambientes, assim como as poucas possibilidades das mulheres acessarem renda e garantirem direitos. Salientam ainda um crescente aumento de suas preocupaes com a manuteno da casa e o cuidado com os filhos, dimenso que avaliam como mais difcil no contexto atual, diante da vulnerabilidade de crianas e jovens aos problemas tpicos da violncia urbana. No final emendamos os pedaos de redes feitas por cada uma e fizemos uma reflexo sobre como a rede completa poderia simbolizar os vnculos entre as mulheres, suas coisas comuns e diferentes, e sobre as potencialidades de organizao poltica como forma de garantir os direitos, no que elas ressaltam, no s delas, mas das comunidades e de suas famlias. Por fim, combinamos de que forma seria socializada a oficina com as outras mulheres do encontro e quem apresentaria. Foi sugerido que Luzanete, uma das participantes preparasse um texto.

Tecendo textospor Gigi Castro7 de textos, alguns critrios nos orientaram. O primeiro deles foi serem textos (em prosa ou verso) feitos por mulheres. O segundo, terem uma linguagem o mais acessvel possvel o que no excluiu textos que tivessem um ou mais termos menos conhecidos. O terceiro foi serem textos de diversos formatos: prosa/ verso, grandes/pequenos e de diversas temticas: amor, morte, o cotidiano, o prprio ato de escrever, o ldico, sentimentos vrios como melancolia, solido, saudade, a passagem do tempo, as pescadoras, o manguezal, a praia, as maravilhas de cada mundo, a autodescoberta, mistrios... Por fim, a impresso dos textos em fonte comic sans tamanho 20, de modo a que todos os textos pudessem ser bastante legveis (exceto um, da Ceclia Meireles, leilo de jardim). Posto isso, escolhemos alguns formatos de papis onde os textos poderiam ser escritos, o que inclua: metade de uma folha A4, metade da metade de uma folha A4 e tiras menores, para quem s quisesse escrever textos bem pequenos. Alm disso, e como forma de criar uma ambincia, pensamos que uma manta no meio da sala com vrios livros de diversos estilos e a no s de mulheres, mas os que estavam mais mo, pudesse ser de muita funcionalidade. Relato: Participaram da oficina 7 mulheres Mudiany (Acara), Graa (Fortim), Mentinha (Curral Velho), Ju (Aracati), Graa (Morro Branco), Lelete (Fortim), Martilene (Caponga). A primeira coisa que fizemos foi a amorizao, com a apresentao de todas e a revelao das expectativas em relao oficina. Martilene disse que seu sonho sempre foi o de escrever um livro sobre a luta, por isso estar ali. Seguindo, foram distribudos cerca de 31 poemas/textos/cordis, de: Florbela Espanca, Adlia Prado, Ceclia Meireles, Mentinha, Nazar Flor, Clarice Lispector, Elisa Lucinda e Lya Luft. Antes de passar leitura propriamente dita, perguntamos s mulheres se elas tinham tempo livre, tempo de no fazer nada, tempo de ter tempo para si mesmas. A resposta, por parte de quem j escrevia (Mentinha, Graa de Morro Branco) foi a de que o fazia entre uma atividade e outra; das outras mulheres escutamos que tempo a gente inventa mas de nenhuma ouvimos o ter tempo para uma atividade como a de escrever. Prosseguindo, grande parte do tempo da oficina (cerca de uma hora) foi gasto lendo e se deliciando com as imagens, com as formas, com aquilo que a leitura sugeria, ao mesmo tempo em que se falava um pouco sobre as escritoras e poetas. Enquanto se lia, ia-se lembrando de fatos e temas que depois poderiam ser aproveitados na escrita. Tambm se ressaltava que a escrita (de textos ou de poemas, rimados ou no) antes de qualquer coisa a expresso de sentimentos, de7

Preparao: Na escolha dos escritos a serem trabalhados como aquecimento para o trabalho de produo

co.

Arte Educadora. Ativista da Frente Cearense por uma Nova Cultura da gua e contra a Transposio do Rio So Francis23

vivncias, de idias, de percepes e que escrever contribui imensamente no processo de autodescoberta. Apesar do tempo reduzido para a produo (cerca de meia hora), todas produziram e compartilharam depois na pequena roda seus escritos (na meia hora restante). O que observamos foi uma vontade imensa de se expressar, havendo mesmo quem no tivesse muito letramento, no sendo isso impedimento para a produo com o nosso auxlio. E mesmo ns que conduzimos a oficina participamos da produo.

Pequeno dicionrio de palavras ao vento das mulheres da Zona Costeira do Cear8

Mudiany (Ilha dos coqueiros, Acara) Ns temos uma s vida Ns temos os manguezais Ns temos o artesanato Procurando um sustento Para estarem trabalhando E a vida melhorando.

Mentinha (Curral Velho, Acara) Meu sonho de ser poeta bem maior do que o mar! Sou faminta em aprender Como os pssaros voam no ar... Assim so os meus pensamentos Que em mim levam pra l e pra c. No desisto dos meus sonhos, Um dia eu chego l. No querendo bater recorde Meu sonho vou realizar! Nasci para aprender A vida vai me ensinar Com as Rosinhas e as Ritinhas Juntas vamos sonhar.

Graa Costa (Fortim) Bom dia, amigo! Bom dia, irmos! Faa esse sorriso! E cante essa cano. As flores no campo As nuvens no cu A gua no rio E eu num barco de papel.8

Termo tomado emprestado de Adriana Falco, de um livro homnimo seu.

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Lelete (Fortim) Gracinha (Morro Branco) Corao partido s vezes sinto-me feliz s vezes fico triste Olho para a cama e j saiu Caminho at o quarto ao lado e encontro a cama vazia J se foram Caminho e vejo as velas, esto indo Sinto um frio na barriga comum Tantos anos j se passaram Mas o sentimento o mesmo Velas disputam lugares em destaque Cada jangada quer ser mais veloz que a outra Ento olho novamente e no vejo mais A tarde chega, duas vozes se confundem ao chegar em casa e eu escuto - Pai, o seu paquete est ruim de vela. Escrever um pouco da minha comunidade o que mais desejo Por isso vou me expressar diante deste papel, um pouquinho Nossa luta vem h dias se concretizando Aquilo que ns mais almejamos Mas ainda falta o principal que conscientizao Pois muito difcil lutar, com homens que no pensam no futuro em minha comunidade Ainda tem pescadores que no respeitam o defeso Tem homens que agridem o meio ambiente Que seria do futuro de nossos meninos? * Chegamos em navios diferentes Mas juntas estamos No mesmo barco. * Deus sem voc Deus E ns sem Deus No somos nada.

Gigi (Fortaleza) to bonito ver as pescadoras Pensando sobre si mesmas, Que eu me enterneo imenso e escrevo E penso: este um novo tempo!

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Martilene (Caponga) Sonho a realizar Ju (Aracati) Porque sou mulher Porque sou mulher Posso dizer no quando me convm cantada que no me agrada Ao convite que no me convence Ao orgasmo que no me d prazer Ao beijo que no me entusiasma Ao horrio que me diz que hora de cozinhar, lavar e passar Pilotar fogo, cama e mesa Porque sou mulher No tenho hora para amar Calendrio para casar Momento para parir Porque sou mulher Posso escolher o meu tempo de fazer O qu me d alegria e prazer Porque sou mulher Sublime ser Existo, pode crer! Estou em toda parte Sou emoo sentimento e calor Tenho muito amor pra dar e receber Mas no me ponha cabresto, no! Porque sou mulher guerreira, sou mulher vibrao. Luciana (Fortaleza) No avexo das horas Seguimos juntas Construindo e transformando Fazendo e desfazendo Sorrindo e cantando Seguimos juntas No avexo das horas No tenho o dom pra escrever um livro Mas tenho o sonho de colocar em um Toda a histria da luta Pela igualdade e direitos do meu povo Que h anos vivo e participo Mas ser que eu preciso deste dom pra fazer isso? Se tenho a vivncia e a experincia de tudo isso nas minhas mos Acho que falta a fora de vontade para esse sonho se realizar

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Debate sobre as questes das mulheres da Zona Costeira do Cear trazidas das oficinas de autodescoberta e das oficinas regionais, realizadas na preparao do encontroCoordenao Cristiane Faustino e Sheila Nogueira Instituto Terramar

Ns mulheres...Cristiane Faustino1 Nosso desejo era fazer uma roda de conversa, mas como o ambiente (auditrio) no permite, a gente vai fazer um quadrado de conversa, trazendo coisas que parecem comuns s mulheres pescadoras e da Zona Costeira cearense. Comeamos lembrando a Slvia Camura2 quando diz que apesar das experincias comuns, h muitas diferenas entre as mulheres. Uma delas o lugar onde se vive, se o serto, a Zona Costeira, os centros urbanos. Mas h questes comuns. Uma delas a responsabilizao pelo trabalho domstico. Desde cedo, o prprio brincar uma forma de ser/estar no mundo. Brincar de panelinha diferente de brincar de pio, de bola. Os homens aprendem a construir o mundo pblico e as mulheres, o trabalho domstico. Mesmo que as mulheres trabalhem fora, elas tm que dar conta do trabalho domstico. As empregadas domsticas so uma das categorias mais desvalorizadas. E nem mesmo a gente reconhece a importncia desse trabalho, pois quando perguntadas dizemos: no trabalhamos. Para termos uma idia, o trabalho domstico s visto quando no feito mas ele gera uma sobrecarga enorme para as mulheres. Outra questo que nos diferencia a da raa e da etnia: as negras e indgenas so as mais pobres entre os mais pobres. O controle sobre o corpo das mulheres, contudo, algo que comum. O controle sobre a sua liberdade, a sua sexualidade, sobre o se tocar. O que , ao mesmo tempo, contraditrio quando, ao nos depararmos com a publicidade, as letras de forr, a mulher exposta, mas tratada como mercadoria, como coisa. A explorao sexual, na casa ou no mercado do turismo, tem como alvo principalmente as meninas pobres e negras. Ento a gente tem esses dois modelos, contraditrios entre si: o da mulher que preparada pra casar, pra ser me e para cuidar das coisas e das pessoas, e o das mulheres que devem ser pra servir sexualmente ao homem. Responsabilizada pelo cuidado, as mulheres em geral precisam cuidar de todo mundo e isso traz algumas conseqncias para ns. Por exemplo, se a gente for olhar para sade, a gente vai ver que a maioria das usurias do SUS so igualmente pobres e negras. Conversando com as pescadoras, vimos que os mdicos sequer as tocam por acharem-nas sujas e fedorentas. Quem cuida, ento, das mulheres quando elas esto doentes, se nem os mdicos as tocam?... Muitas mulheres, por exemplo, morrem por abortamento, porque os hospitais no as atendem adequadamente e a maioria so pobres e negras. Outra coisa comum a ausncia das mulheres dos espaos de poder. Mas o que faz a gente usar o poder de uma forma transformadora estar juntas, a luta. Da eu queria perguntar: o que diferencia as mulheres pescadoras das outras mulheres? O que motivo para elas se organizarem?1 2

Assistente Social. Educadora do Instituto Terramar CAMURA, Slvia. Ns Mulheres e nossa experincia comum. In: Cadernos de Crtica Feminista. Ano I, N. 0 dez, 2007. Recife: SOS CORPO Instituto Feminista para a Democracia.

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Lo: o reconhecimento de uma categoria, de seus direitos. Cristiane: ento existe o homem e a mulher pescadora mas ela no reconhecida. Lo: acho que a incluso, a transferncia de conhecimentos importante. Martilene: a gente tem que romper o preconceito, porque se alm de ser negra e pobre, ainda se pescadora!... Cristiane: qual a diferena das mulheres urbanas para as mulheres pescadoras? Lo: o acesso ao conhecimento, uma melhor educao. Ser pescadora muito sofrido. No INSS3 tem sempre uma pessoa para detonar voc. Na Associao fazemos de tudo pra elas se aposentarem. Cristiane: ento uma diferena o acesso ao conhecimento e o acesso ao prprio direito. Valdenez: nas praias temos mais escolha, uma forma de viver e pensar menos capitalista. Mentinha: no nosso espao a gente conhece mais a categoria. Temos mais clareza, ainda que as informaes cheguem mais atrasadas, do que para as urbanas. Ana: nosso conhecimento tanto sobre as trabalhadoras rurais quanto sobre as pescadoras, ns temos a partir da nossa organizao. Graa: s vezes, as mulheres nem sabem os direitos que tm. H pessoas que fazem carteira de marisqueira, enquanto as que pescam nem sabem que existe a carteira. Pescam, levam o alimento pra casa e l ficam. Falta a comunicao, falta saber que so pescadoras e vivem da pesca. Lelete: algumas mulheres so acomodadas, por falta de saber que tm direitos. A gente convida para uma reunio e elas dizem no tenho tempo. Manuela: pelo que vejo, afora no conhecer os direitos, a gente v contriburem com a Colnia s para a aposentadoria mas isso no o suficiente. Eu sinto que no se acredita no movimento, querem a coisa imediata. Uma coisa estar sozinha, outra se organizar. Martilene: na zona urbana as mulheres so mais liberadas, na cidade existe o FCM4 e ns estamos engatinhando. Ns no somos reconhecidas, estamos nos organizando agora, enquanto as urbanas so mais liberadas. Cristiane: suspeito que haja mais diferenas: a relao com o meio ambiente. Por exemplo, quando os mangues so destrudos, qual o impacto na vida das mulheres? O que acontece quando a carcinicultura saliniza as guas? O que acontece quando no existe acesso educao, quando se sofre violncia, quando chega o grande turismo, a3 4

Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Frum Cearense de Mulheres (FCM).29

especulao imobiliria? Liduna: quando h algum conselho, as mulheres fazem denncia. Mas h a poltica... O sistema da carcinicultura ofereceu coisas que eles dizem que boa, mas no so, no. O carcinicultor queria, na minha comunidade, cercar o mangue. E ns mostramos que no podia ser. Agora a dificuldade da pescadora que ns temos nosso conhecimento, mas enquanto no se fizer intercmbio e se unir, ns no vamos fazer nada. A justia existe, s falta ela ser aplicada no tempo certo. Lo: no paradeiro, quando uma vizinha est com fome, a gente divide o de comer. Uma tendo, a outra no passa fome. Mentinha: quando Martilene fala que o movimento est engatinhando, importante lembrar que nesses quatro anos ns aprendemos muita coisa. Ns discutimos as pescadoras e tambm outras realidades. Discutimos pesca, sade, desigualdade, racismo, gesto ambiental... tudo! Por isso eu dou ponto dez para as pescadoras! Porque discutimos muito mais coisas que outros movimentos no discutem. Navegante Trememb: ns no se comunicava como indgena, antes. A entraram os posseiros, venderam a Tapera pros rico e a comeamos a ser enxergado. Hoje ns se comunica como indgena. Eu pesco no rio, no mar e na lagoa. S no pesco de rede. Pesco siri, maria-farinha a gente faz uma farofa, come bem. Antes eu no saa hoje eu ganho convite. No passo um ano sem vir no Drago [do Mar]. Isso porque ns tem esse conhecimento hoje eu me acho uma pessoa guerreira. Ns todos somos seres humanos iguais, no tem ningum baixo nem alto! Martilene: se a gente no conhecer outros movimentos, a gente no vai conhecer a realidade do outro. Agora sei que o FCM conhece a nossa realidade e a gente conhece ainda pouco a realidade dos quilombolas. Ns temos mais contato com o meio ambiente, o saber cuidar. Quando a gente chega dentro de outro movimento, ele passa a conhecer a nossa realidade e isso fortalece as lutas. Cristiane: as lutas dos movimentos no esto separadas; por isso importante a capacidade de fazer aliana. Eliene: a questo financeira e o medo afastam muita gente. Cristiane: para as mulheres fazerem movimento, tm que fazer uma ruptura. Vocs que vieram para este encontro, j romperam muito com aqueles lugares tradicionais das mulheres, j demonstram que as mulheres tambm sabem pensar e decidir sobre suas vidas. preciso entender que ns mulheres enfrentamos muitos problemas pelo simples fato de sermos mulheres. Somos consideradas menores e as coisas que ns fazemos so menos valorizadas. Ento existem problemas que as pescadoras enfrentam, que as agricultoras enfrentam, que as mulheres dos centros urbanos enfrentam da mesma forma, como por exemplo, as responsabilidades pela casa e o cuidado com as pessoas como sendo uma coisa s sua. Mas essas mulheres tambm enfrentam outros problemas que as diferenciam uma das outras, e por isso que existem vrias grupos e organizaes de mulheres: mulheres pescadoras, trabalhadoras rurais, mulheres negras, mulheres lsbicas, etc.

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Ns Mulheres na Zona Costeira...Sheila Nogueira5 Entrando no quadrado de conversa que vocs construram, vou fazer alguns destaques de questes que trazem desafios para a organizao poltica das mulheres. Comeo pela seguinte questo: O que significa morar na Zona Costeira? Se a gente desse duas mquinas de fotografar, uma para um empresrio e outra para algum da Zona Costeira, a fotografia do empresrio ia ter a Zona Costeira como espao a ser negociado; a pessoa da Zona Costeira ia ver esse mesmo lugar como um territrio, onde se constroem relaes. O olhar do empresrio mediado pelo capitalismo, o qual significa um sistema que regula a nossa vida a partir do dinheiro. No capitalismo tudo tem um preo, tudo vira mercadoria inclusive as pessoas. No capitalismo essa troca solidria no existe. A troca solidria uma das marcas das comunidades, ao contrrio do capitalismo que visa gerar lucros para poucos e uma extrema pobreza para a imensa maioria. Na Zona Costeira cearense, o capitalismo d a base para as polticas pblicas desenvolvimentistas. No campo da pesca, essas polticas negam a pesca artesanal e do fora pesca industrial e carcinicultura. a partir dessa mesma lgica desenvolvimentista que temos, tambm, na Zona Costeira, o Complexo Industrial e Porturio do Pecm (CIPP), as termoeltricas a carvo mineral, a implantao de usinas elicas desrespeitando o ambiente e as pessoas todas essas atividades geram lucro. Mas o que fica para as comunidades? - a privatizao das terras; - a expulso das comunidades; - a desestruturao das atividades tradicionais (pesca, artesania, turismo de pequena escala etc.); - a destruio dos ambientes. Enquanto a natureza se traduz como mercadoria no capitalismo, para as comunidades ela relao, possibilidade para a (re)produo da vida. Ento, viver hoje na Zona Costeira viver em um espao em disputa.

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Gegrafa. Educadora do Instituto Terramar.31

Uma questo importante o debate sobre o tempo que Gigi6 trouxe, como algo que a gente constri. importante, porque isso uma marca das comunidades: no o tempo que regula, o tempo do relgio, mas o tempo dos ciclos regido pelo movimento das mars, por exemplo. Isso serve inclusive pra desfazer o mito de que o pescador preguioso, porque o fato dele no estar o tempo todo trabalhando no mar tem a ver com outros saberes e com a conjugao de outras fundamental, ento, as mulheres terem temporalidades.

fundamental, ento, as mulheres terem na possibilidade de criar tempo para gente, tempo para construir tempo pra si. Pensar significa pensar tempo para fazer movimento e na possibilidade de criar tempo para gente, buscar outras mulheres. significa pensar tempo para fazer movimento e buscar outras mulheres. importante estar aqui, mas importante ter tempo para chegar junto a outras mulheres, porque a luta se faz tambm l, no lugar. A gente precisa repensar o tempo. Nesse contexto relevante o que Mentinha e Martilene colocam sobre o movimento ser conhecido. Para eu ser conhecida, eu preciso me afirmar. Uma coisa importante a gente se fazer ver pela nossa ao. A viso do outro tambm construda por ns. No um presente ser reconhecida, uma conquista. Ser mulher na Zona Costeira, ento, significa: - construir visibilidade; - enfrentar os desafios da Zona Costeira; - estar em movimento. E de posse desse entendimento do que ser mulher na Zona Costeira, podemos com mais segurana nos colocar diante da pergunta-desafio: Como escrever outra histria da Zona Costeira, onde as mulheres aparecem? Por fim, compreender que os conflitos fazem parte desse processo de ruptura. Conflito no ter os homens como inimigos nem rachar o movimento. O conflito importante porque explicita outra fala. importante reconhecer que estamos em lugares diferenciados e por isso, na metodologia que escolhemos, o trabalho s com as mulheres. Porque preciso teto e tempo para elaborar o nosso prprio pensamento!

tempo para construir tempo pra si. Pensar

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Referncia a fala de Gigi Castro sobre a dimenso do tempo na vida das mulheres, realizada durante a socializao das reflexes realizadas na Oficina Tecendo Textos.

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Mesa I - Pesca e Vida de MulherCoordenao Maria do Livramento dos Santos [Mentinha] Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE) Convidadas Cristina Maneschy Universidade Federal do Par (UFPA)/Coletivo Internacional de Apoio aos Trabalhadores da Pesca (ICSF) Marizelha Lopes [Nega] Articulao Nacional das Pescadoras (ANP)/Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE) Ormezita Barbosa Conselho Pastoral dos Pescadores/CE (CPP/CE)

Mulheres na gesto da pesca e das comunidades pesqueirasCristina Maneschy1 Comecei estudando a pesca e s depois passei a estudar as mulheres e trago aqui resultados de pesquisas para contribuir com a Articulao das Mulheres Pescadoras. Comeo citando uma pescadora do Maranho, que diz que faz de tudo, mas que no se colonizou2. Fao essa citao porque ouvi isso dito de vrias formas ontem, aqui, pelas pescadoras: pescam mas no se colonizam (essa palavra antiga). Mas embora muitas mulheres no sejam colonizadas e por isso no possuam a carteira de pescadora, elas tm papel essencial na vida social das comunidades costeiras. As mulheres so quem vai buscar o que a pesca no d: uma maior estabilidade na renda. As mulheres tm um papel de ligao: entre a comunidade e o mundo exterior, nas negociaes com agncias de crdito, comercializao etc. Alm disso, tm conhecimentos ecolgicos sobre as comunidades costeiras, ainda que muitas vezes os estudos para implantao de determinadas leis no consideram isso, a exemplo do que acontece com o defeso. importante destacar que na organizao social da produo pesqueira, h a diviso sexual do trabalho e diversidades histricas e culturais. Nos muitos estudos de gnero feitos, as mulheres fazem muitos trabalhos. Mas persiste a idia da ajuda. H pontos comuns entre as mulheres na pesca no mundo todo. Por exemplo, tecer rede. Na ndia, as mulheres faziam isso, mas a entrada da indstria forou uma organizao das mulheres, no sentido de chamar ateno sobre a perda desse campo de trabalho. No Canad, as mulheres so tripulantes; sobretudo pela dificuldade que a crise gerou (crise do bacalhau) e o no se poder pagar um tripulante ento os homens levam suas companheiras. essa diviso que ajuda a explicar os baixos salrios pagos s mulheres. Na ndia, por exemplo, as mulheres so uma mo-de-obra muito barata. Como as vidas das mulheres nas comunidades esto sendo afetadas pela globalizao? Pegando as fotografias da Zona Costeira, sobre as quais nos falou Sheila3, visualizamos: competio pelos recursos costeiros; degradao ambiental por barragens, poluio; polticas para atrair investimentos; reformas nas leis trabalhistas e previdencirias; reduo de investimentos em servios pblicos, a exemplo da sade e da educao, o que gera mais estresse para as mulheres.1 2 3

Universidade Federal do Par (UFPA)/Coletivo Internacional de Apoio aos Trabalhadores da Pesca (ICSF). Significa dizer que no se filiou Colnia. Referncia a fala de Sheila Nogueira durante debate sobre as mulheres na Zona Costeira.

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Articulando essas fotografias a um quadro da Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (FAO), vemos um cenrio dos recursos superexplorados e/ou j degradados completamente e o que isso traz de impactos nos recursos e sobre a vida das mulheres. Isso tem muitas implicaes sobre a vida das comunidades pesqueiras. As mulheres agora esto no Conselho Nacional de Aqicultura e Pesca (CONAPE) ento tem que se ter ateno sobre as polticas que ali so decididas. No geral, os governos decidem por diminuir o nmero de pescadores o que implica diretamente na vida das comunidades. O que no significa que isso d resultados, pois a relao das comunidades com o mar diferente da explorao comercial. Mas isso no levado em conta nas polticas de gerenciamento costeiro. Mulheres na pesca no Par Observando dados da pesca no Par, temos as mulheres trabalhando na pesca, e nas atividades anexas, a exemplo da agricultura e do artesanato. Realizam pesca com matapis4, captura de caranguejo no mangue; e a salga do pescado que era mais comum antes do gelo; tem-se observado que antes as mulheres trabalhavam mais no mbito da famlia; dos anos de 1960 para c, essa presena mudou porque a pesca se intensificou com as rodovias, com o comrcio do pescado; a elas comeam a trabalhar, tambm, em pequenas indstrias de beneficiamento recebendo remunerao. Dados de uma pesquisa que realizei com mulheres de Vigia (PA), confirmam que as mulheres realizam uma srie de atividades que contribuem para a renda familiar. Mas, como muitos dos trabalhos assumidos por mulheres em comunidades pesqueiras apresentam como caractersticas a variabilidade no tempo e no espao, a irregularidade na demanda, sua compatibilizao com as tarefas domsticas e, por conseqncia, a dificuldade de contabilizar o tempo de trabalho, refora-se a viso corrente das mulheres mais como donas de casa, ajudantes do companheiro e no como sujeitos produtivos. Por isso muito importante realizar pesquisas que desvendem a importncia do trabalho das mulheres na pesca, problematizando o porqu de ser esse um trabalho sazonal, para consumo familiar e marcado pelo pluralismo econmico.

muito importante realizar pesquisas que desvendem a importncia do trabalho das mulheres na pesca, problematizando o porqu de ser esse um trabalho sazonal, para consumo familiar e marcado pelo pluralismo econmico4

Outro estudo que realizei, sobre acesso das mulheres previdncia social, evidenciou o quanto difcil o reconhecimento, tanto por elas mesmas quanto pela colnia e pelos rgos pblicos, de que so pescadoras. Isso porque o conceito de pescador/a muito restrito captura se ela no participa da captura, difcil acessar os direitos.

Apetrecho de pesca para capturar camares de gua doce, feito artesanalmente pelas mulheres apartir da amarrao de talas de madeira, geralmente retiradas de algum tipo de palmeira.35

Amanh estar acontecendo um Frum Pan-Amaznico sobre pesca e com uma mesa sobre as mulheres. O que mais se demanda o reconhecimento das pescadoras pelos rgos governamentais. H demanda tambm por construo de creches. Organizaes de mulheres na pesca, fruns e redes em vrios pases: Considerando essa dificuldade de reconhecimento das mulheres como trabalhadoras da pesca, o que limita seu acesso aos direitos garantidos a categoria, muito importante que as mulheres estejam organizadas para lutar por seu reconhecimento como trabalhadoras, pelos direitos que lhes so assegurados pela constituio brasileira e, sobretudo, pela construo de outros direitos que contribuam para construo da igualdade entre mulheres e homens. Nesse contexto, coloco agora para vocs o nome de alguns coletivos de mulheres espalhados pelo mundo que esto nessa luta: Rede Nrdica de Mulheres Pescadoras e da Zona Costeira (Escandinvia); Fora Tarefa de Mulheres na Pesca (Filipinas); Federao 2FM (Frana); Federao de Tecedeiras de Rede (Galcia); Federao de Marisqueiras (Galcia); Rede Nacional de Mulheres na Pesca (Chile); No Canad esto tentando recuperar a histria das pescadoras. Termino com a fala da Trememb: Eu pesco, no rio, no mar e na lagoa. Eu pesco de linha de mo e tambm siri, s no pesco de rede, pesco maria farinha, a gente leva uma lata, tocaia... Faz aquela farofa, come bem, e muito bem! Hoje eu me sinto uma pessoa guerreira como indgena. Hoje eu me acho com convite. Isso porque a gente tem conhecimento. Hoje eu me acho uma guerreira, entre os pequenos e os grandes. Ns todas; e a Fala de Mentinha: Conhecemos a realidade da zona costeira, mangue, carcinicultura, meio ambiente, turismo, questo da sade, desigualdade, racismo... questes que, apesar de nosso movimento ser novo, tem dado forca para outros movimentos. Essas falas refletem a preocupao de dar fora a outros movimentos, que interrogam sobre: que poltica pesqueira essa? Que concepo de desenvolvimento essa? E defendem uma concepo de pesca como modo de vida. H muitos desafios, dentre os quais o reconhecimento das mulheres como sujeito poltico.

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Sade da Mulher PescadoraMarizlia Lopes [Nega]5 Sou de uma comunidade quilombola de Ilha de Mar, perto de Salvador. O que eu sei fazer mariscar, pescar. Pra comear essa conversa, preciso contextualizar. Pensar juntas. A gente comea se perguntando: quem so essas mulheres pescadoras? Onde estamos? E como o Estado v essa populao onde estamos inseridas? Somos ndias negras mestias. Estamos localizadas nas beiradas dos rios, do mar a partir da colonizao. Isso no era muito favorvel, mas nossos antepassados tiveram tanta inteligncia, que isso mudou. Agora h novamente a especulao. E isso tudo tem a ver com sade. A gente entende sade como um todo: que precisa prevenir e tratar. Mas como fazer isso sem ter hospitais, sem saneamento bsico, sem energia, sem educao. Pra ser comunidade tradicional, a gente precisa de um conjunto de reconhecimento. Se a gente no tem um Estado que reconhece as comunidades, no vamos ter como prevenir as doenas como LER (leso por esforos repetitivos), problemas de viso (a claridade do sol, o sol batendo nas redes), problemas de coluna, de pele (cncer), os fungos (por ficar muito tempo na gua). Sem o olhar do Estado, como tratar dessas doenas? A gente precisava mesmo de um tratamento especfico. No estamos falando de qualquer segmento, estamos falando das mulheres na pesca. Esse olhar especfico. A gente est se organizando para poder ter direitos do trabalho. Porque quando vamos A gente precisava mesmo de um tratamento para algum atendimento urbano, no temos essa ateno. especfico. No estamos falando de qualquer

segmento, estamos falando das mulheres na pesca. Esse olhar especfico. A gente est se organizando para poder ter direitos do trabalho. Porque quando vamos para algum atendimento urbano, no temos essa ateno.

Mas para isso a gente precisa continuar se organizando para que este Estado tenha esse olhar para as comunidades tradicionais.

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Articulao Nacional das Pescadoras (ANP)/Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE).37

Um pouco da experincia da Bahia Fizemos uma discusso na Bahia que envolveu a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e o prprio Estado: Secretaria de Sade, Sesart e a Setrom (secretaria de reparao racial). Quando a gente comeou a fazer o relato, viu-se que era uma coisa geral. Ao chamar a UFBA, resolvemos fazer uma pesquisa, que depois eu posso socializar. Um dos convidados, Dr. Paulofoi ao manguezal, viu a pesca, a tirada de marisco e viu que o esforo era grande. Viu as mulheres, as mos, os braos e havia mulheres com dedos atrofiados. A a gente fez o encontro estadual, trouxemos as mulheres pra mostrar como mariscavam (e h um tipo de mariscagem com enxada). Isso acabou chocando o Estado. A gente priorizou mesmo essa discusso em 2007. Tinha relato de mulheres dizendo que tinham dores fortes, que subiam pelos braos, iam aos ombros e desciam pela coluna; quando iam ao Posto de Sade, o mdico dava dicofrenar e mandavam procurar ortopedista. Agora, se o Estado no reconhece essas mulheres, que dizer do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)?... O INSS nega, porque tambm no conhece. Nesse encontro o INSS estava presente. Este ano, criamos um seminrio em outubro. Um dos ganhos foi conseguir atendimento para as mulheres no Hospital das Clnicas. S para as mulheres (e isso foi um pau com os homens). A proposta era ir quatro mulheres por comunidade, mas nossa estratgia era forar o Estado a abrir mais este atendimento. A iam dez, doze mulheres por semana e isso forou o Estado. Ento fizemos um seminrio, com depoimentos das mulheres, do Hospital (demanda grande). E um dos avanos foi que esse atendimento vai ser estendido. Estavam presentes o INSS e o Ministrio do Trabalho e do Emprego (MTE). E nisso contribumos com o movimento como um todo. E a gente pede que vocs aqui discutam isso tambm. A gente precisa continuar esse processo, que muito importante.

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Direitos previdencirios e trabalhistas das mulheres pescadorasOrmezita Barbosa6 Mesmo a gente se conhecendo h bastante tempo, este tempo bastante desafiador e o que trago aqui o que conheo do tema, pois eu no trabalho no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Para comear importante dizer que as pescadoras esto enquadradas na categoria de segurados especiais, que inclui pescadores artesanais, indgenas, que produzem em regime de economia familiar, sem mo de obra assalariada. s vezes, h uma interpretao de que o fato de ser mulher de pescador lhe assegura o direito de ser pescadora. Mas na verdade ela deve estar inserida na cadeia produtiva. Do ponto de vista dos direitos assegurados categoria de segurados especiais, temos: auxlio-doena, aposentadoria por invalidez, por idade, por tempo de contribuio, salrio-maternidade, penso por morte e auxlio-recluso. Aqui fao um destaque: seguro-defeso no direito previdencirio, est mais focado na manuteno da espcie, do que no pescador ou pescadora. Voltando s mulheres pescadoras, segundo dados da Secretaria Especial de Aqicultura e Pesca (SEAP), existem 5.234 mulheres inscritas como pescadoras no Registro Geral da Pesca (RGP). Mas considerando o que observamos a partir de nossa interveno, questiono esses dados. O nmero muito maior, inclusive se considerarmos as mulheres que no tm sequer carteira de identidade, mas que exercem a pesca. Essa indefinio de dados tem a ver, entre outras questes, com o fato de que as colnias no agregam dados consistentes sobre as mulheres. Essa ausncia de dados e informaes sobre as mulheres na pesca contribui enormemente para a desconfiana do INSS em relao s pescadoras, desconfiana que muitas vezes se traduz em discriminao. Por isso, para conquistar e acessar direitos, para mudar essa realidade marcada por discriminaes, preciso tomar conscincia da relao de desigualdade a que estamos submetidas e nos organizar. Pra transformar esta realidade, primeiramente, as mulheres devem acreditar que so capazes de mud-la e isso passa pela construo de dados sobre as mulheres.6

Conselho Pastoral dos Pescadores/CE (CPP/CE)39

Dados que expressem, por exemplo, a importncia da participao econmica das mulheres. Hoje, na Zona Costeira, as pescadoras tm uma participao intensa na garantia da segurana alimentar. Precisamos dar visibilidade a isso, como uma estratgia para conquistar direitos.

Hoje, na Zona Costeira, as pescadoras tm uma participao intensa na garantia da segurana alimentar. Precisamos dar visibilidade a isso, como uma estratgia para conquistar direitos.

Outro campo de conquistas por quais devemos lutar se refere educao. Para as mulheres, isso fica sempre num segundo plano, o que acaba enfraquecendo a organizao destas; a sade e o bem-estar: h um dado de que 585 mil mulheres morrem por ano por causa de gravidez e parto; h ainda a questo do aborto; como Nega dizia, no h um olhar especfico sobre a sade das pescadoras.

Como mudar essa realidade: estratgia de formalizar direitos e divulgar as leis. Outra estratgia criar espaos para os setores excludos nos espaos de deciso de polticas. Outra coisa so capacitaes, como esta. A partir do que se traz como elemento de realidade, a gente vai formulando polticas e estratgias. A Articulao Nacional de Mulheres Pescadoras (ANP) avanou muito em espaos de gesto de poltica. Hoje faz parte do Conselho Nacional de Aqicultura e Pesca (CONAPE), embora no seja fcil essa participao porque deveria ser tripartite, mas termina que h mais empresrios e pescadores, porque o governo so os prprios empresrios. Por isso a luta pelo empoderamento poltico das mulheres urgente. Pois para que as mulheres conquistem direitos, preciso que estas ocupem, tambm, os espaos onde se decide sobre as polticas.

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Debate DebateLiduna: sou da Associao de Marisqueiras e Catadoras de Algas de Icapu. Minha pergunta sobre os direitos sociais. Isso vem me batendo a cabea. L a gente tem marisqueira doente como Nega falou. O INSS, eu tenho uma revolta to grande dele! Em Aracati tem um sujeito que chatssimo, que negou a aposentadoria de uma mulher que tem um joelho inchadssimo. Ela pagou por 6 anos a contribuio. E tem muitas que tm cncer de mama. Queria saber se esse pessoal tem o direito de fazer isso que eles fazem l e o que devemos fazer pra poder colocar esse pessoal no lugar deles, que eles so pagos por ns. Lelete: como a nossa amiga acabou de falar, sobre o direito da mulher. O INSS no conhece que temos vrias senhoras que deram entrada na aposentadoria. Antigamente no tnhamos acesso ao INSS. O que fizeram. Porque o marido de uma delas ganhava 1,5 salrio, negaram a aposentadoria. Outras, que pagaram 3, 5 anos o INSS individual, foi negado o direito, por ter pago o individual. Porque temos um criatrio de ostra. Esse direito, a gente busca onde? Daqui a 5 anos eu completo 55 anos e meu marido ganha mais de um salrio. Eu no vou poder me aposentar? Lo: direito das marisqueiras, por estar na cadeia produtiva. A maior prova l pra ser reconhecida como pescadora ser mulher de pescador. Mas nem toda marisqueira casada. Gigi: eu vi nos cadastros feitos para o Encontro que muitas mulheres no acessam dinheiro ou acessam muito pouco. Ento importante saber dados da vida das mulheres pescadoras, porque muitas vezes elas no chegam a ganhar um salrio mnimo, tendo sete, dez pessoas em casa para alimentar. Como que se alimenta? Na verdade, h um malabarismo danado ao qual preciso dar visibilidade, porque isso significa que o que as mulheres fazem d o sustento da vida, sem que a gente tenha dados disso. No meu entendimento, as mulheres produzem riqueza e essa riqueza tem que ser conhecida. A gente j conseguiu evitar o endividamento de uma comunidade (l est a Bina que pode dizer) por conta de mostrar que o tempo deles e41

delas no era s o tempo da pesca ou das algas: era o tempo da vazante, de tirar o coco, de fazer o artesanato e que se eles fizessem o emprstimo, a sim o tempo ia ser o do relgio pra poder pagar a dvida. Manuela: E o to sonhado seguro para as marisqueiras? Com o inverno, elas ficam paradas e no se gera renda, porque a gua adoa. Uma questo qual a estratgia que a gente vai utilizar pra proteger essas mulheres na poca do inverno? Ormezita: vou colocar algumas coisas. Esse desmando do INSS, essa falta de respeito, na medida em que a gente se apropria dos nossos direitos, a gente vai poder enfrentar esses caras. Um primeiro passo entre a gente, ento. Nos apropriar disso. Outra coisa colocar isso na rua, pra que essas pessoas no fiquem nesses espaos fazendo esse tipo de tratamento. Outra coisa sobre a mulher ser mulher de pescador. A legislao no garante direito por ser mulher de pescador, mas por estar na cadeia produtiva. O Cdigo de Pesca de 1967 muito antigo e no amplia esse direito de pescador. Ele restringe muito esse direito de extrao, mas j h brechas nisso. Est hoje no Congresso o novo Cdigo de Pesca que amplia esse conceito de pescador artesanal. Isso um avano. Mas tambm traz absurdos, como a incluso da carcinicultura. Lo: se a mulher for suja, banguela, sai na mesma hora. Agora se a pessoa for arrumada, o direito negado. Se a pessoa tiver tido qualquer outra ocupao, negado. Ormezita: este ano, no Jaguaribe, as mulheres passaram 10 meses sem trabalhar; ento este grupo talvez devesse pressionar para poder ser feito o estudo que proporciona o seguro para marisqueiras muito embora o seguro no seja um direito. Cristina: importante se apropriar da lei. Mas acho estranho se associar a aposentadoria da mulher condio do marido, porque a Constituio assegura o direito da trabalhadora. Agora, na prtica, se inventa muita coisa. Uma coisa que os movimentos tm que levar em considerao a necessidade de se comprovar que marisqueira/pescadora porque isso muito recente, declarar-se pescadora. Nega: eu tambm queria fazer um relato quanto atividade complementar. Na Bahia uma mulher passou mais de trs anos pra conseguir, porque ela disse que espichava cabelo. Quando a Liduna disse da oficina de massagem, um dos avanos que conseguimos foi levar alguns fisioterapeutas pras comunidades. Isso pras mulheres voltarem s suas atividades. Da, as que fizeram fisioterapia disseram pras outras que tinham que parar de vinte em vinte minutos, elas disseram que a mar no espera. Quanto ao que Gigi disse, uma estratgia do governo dizer que a pesca artesanal no tem mais jeito. Ao ouvir ao longo do tempo isso (e h que ver as causas), a gente tambm acaba reforando isso. A renda familiar maior quando junta de todo mundo. (pescadora de Iparana): mulher nenhuma tem coragem de ir pro mar. Eu tive coragem de ir pro mar com42

meu marido. Porque eu tenho trs crianas pequenas. Na hora que a mar d, eu estou dentro do mangue, mariscando. Eu tenho coragem pra trabalhar. Porque eu preciso. Eu sou do Juazeiro do Norte, mas eu aprendi, de cada coisa um pouquinho, aqui no mangue. Se um dia eu separar do marido, eu j tenho do que sobreviver, que do mangue. A nica coisa que ns temos o mangue. Porque se ns for esperar por esse governo a, no d certo, no. Navegante Trememb: eu vou falar mais uma vez, porque elas to querendo que eu fale. Eu tambm pesco, no mar, no rio e nas lagoas. Pesco de linha de mo e de tarrafa. E a pesqueira pega de vcio, que nem cigarro. Eu tenho uma irm que sempre que ela me chama, eu vou. A lagoa maltrata muito a gente. Eu entro 6 horas da manh, com gua na cintura. Ela vai me maltratar. Ela resfria. O mar, ele abenoado. Ele to vivo, que quando voc pisa na areia, ela foge do seu p. Mas ele maltrata tambm, as ondas. O nosso intestino quem perde. Quando a minha irm me chama pra pescar, eu no durmo de noite, pensando na pesqueira. Eu prefiro levar comida da natureza pra pesqueira. Quando eu menstruava, eu pescava at duas vezes no dia. Eu hoje tenho quase 60 anos e estou feliz de estar com vocs. Me acho feliz, mas a pesqueira vicia muito a gente. Eu pesco como hoje, no pesco amanh, dou dois dias, porque maltrata. Pra gente vir pra c, umas trouxeram 1 real, outras 10. E anteontem pra fazer um xixi, tinha que ter 1 real. E se a pessoa no tivesse um real? Mas muitas pessoas no do valor a esse tipo de gente. At nossos maridos. Que eu pesco, digo mano, vem consertar esse peixe, e ele no vem, diz que vai dormir. A eu vou, trato o peixe, cad o agradecimento? Mas s que eu no pensei nisso antes. A pesqueira vicia. Mas d problema no nosso estmago, porque t vazio. Mesmo assim, eu ainda sou encegueirada, mas no como eu j fui. (eu tive 11 filhos: pari que s uma fodida!) Martilene: quando se fala na questo dos nossos direitos, acho complexo discutir. No muito diferente dos direitos dos pescadores. Mas comparo o direito das marisqueiras com o seguro-desemprego dos pescadores. Na minha comunidade eu conheo mulheres que no tm nada a ver com a pesca. Conheo uma mulher que catadora de lixo e vai se aposentar como pescadora. Na Colnia, o pessoal disse que ela podia pagar logo ou quando se aposentasse. E isso no diferente da situao dos pescadores. A questo do segurodesemprego. Tm muitos que no so pescadores e com as pescadoras tambm assim. A o governo criou leis. E o governo no tem viso de que a pesca artesanal tem importncia na exportao. A Caponga, num ano desses, pescou 15.000 toneladas de lagosta s que quem exporta a empresa. A veio o mapa de bordo e era bom porque ia mostrar isso. Agora j se diz que s para barco de mais de 10 toneladas. Agora vem a questo do seguro-desemprego pela Colnia. Eles botam e tiram coisas. O pescador no paga Colnia pensando nos direitos, paga pensando no seguro-desemprego. E isso porque j um costume que agora o prprio presidente obrigou. Por isso que eu digo que muito complexo buscar os nossos direitos. Lelete: sobre o que Martilene falou da catadora de lixo, quando fui renovar minha carteira, o cara da Seap queria uma prova. Eu disse: vamos pra praia. E eu tive que provar: peguei 5 kg de peixe e ele disse que me dava a renovao.43

Sheila: eu vou sair do mbito da lei, para gente pensar um pouco no que significa estar aqui discutindo os direitos. Discutir os direitos das mulheres na pesca passa por discutir a prpria noo de direitos. H que discutir o quanto as leis foram feitas sem considerar as mulheres. Ento discutir s o que pode e o que no pode vai nos colocar s na periferia dos direitos. No toa que as mulheres so consideradas notrabalhadoras. Temos que pensar o que significa pensar as mulheres na pesca, que muito confundido com o trabalho domstico. importante a gente ter esse olhar, mas tambm se desvincular das leis em si para poder construir outras leis. Martilene trouxe uma questo que vai e vem, dos falsos pescadores e pescadoras. Antes de criminalizar as mulheres, h que pensar no que leva as mulheres a pensar nesse caminho como nica forma de acessar direitos. Mentinha: onde esto os nossos direitos? Como pescadora, fico pensando nisso. Eu pergunto: ns temos que fazer uma Colnia s pra ns? INSS s pra ns? Porque se for, tm que ser chefiadas por ns tambm. Agora vamos desfazer essa mesa, com a fala final das palestrantes. Nega: no incio esqueci de falar da minha alegria de estar aqui no Cear com vocs. A gente veio pra tentar contribuir, mas tambm pra aprender muito com vocs. Fiquei muito emocionada pelo depoimento de Navegante. Esse mar, esse rio que nos alimenta tambm nos maltrata, mas porque o Estado no nos reconhece. E esse vcio de pescar o prazer que a gente tem enquanto marisqueira, pro resto da vida. Ormezita: dizer que este um momento importante, porque uma discusso que sempre volta. Da fala de Martilene, foi votada uma lei de inconstitucionalidade. Essa lei compreende que o pescador no obrigado a estar filiado pra receber seguro-desemprego. Importante a perspectiva que Sheila colocou. Cristina: agradecer ao Terramar e a Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE) o convite. Fico impressionada com o nvel das discusses. Dizer que vocs tm muito a contribuir com o movimento.

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Mesa II - Mulheres Pescadoras: desafios para a participao polticaCoordenao Martilene Rodrigues Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE) Convidadas Marizelha Lopes [Nega] Articulao Nacional das Pescadoras (ANP)/Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE) Manuela Gonzaga Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear AMP (AMP/CE) Frum de Pescadores e Pescadoras do Cear (FPPLC)

Pra mim, no tem outro jeito que no seja essa articulao coletivaMarizelha Lopes [Nega]1 Nossa companheira Cristina [Maneschy] j falou um pouco do que a gente ia falar, mas vamos reforar essa conversa. Ns sabemos que esta sociedade extremamente machista. E at dona Navegante trouxe que ela no tinha conscincia e s depois que foi perceber que a gente trabalha mais que os homens. Imagina isso no meio das comunidades tradicionais!... Estamos em comunidades tradicionais que vivem em famlia. Estas so mais fechadas. A sociedade como um todo definiu alguns papis. O que ficou pra ns foi cuidar da casa, dos filhos, dos doentes, do marido... At a atividade que a gente faz, por que no considerada como geradora de renda? Porque o que fazemos paga conta, compra roupa dos filhos e nossa atividade no vista como atividade produtiva. Nisso a mariscagem fica sendo vista como mais uma tarefa de dona de casa e no um trabalho na pesca. Isso acontece porque pra essa sociedade machista, convm que a gente continue a desempenhar esse papel de dona de casa. So vrias as discriminaes que a gente sofre na comunidade. E olhe que nas comunidades, a organizao, as articulaes comeam com as mulheres. a gente que luta por sade, por educao, por saneamento, por limpeza...

A sociedade como um todo definiu alguns papis. O que ficou pra ns foi cuidar da casa, dos filhos, dos doentes, do marido... At a atividade que a gente faz, por que no considerada como geradora de renda?

Eu vivo isso ainda hoje. Quando tem um encontro no Cear pra onde eu tenho que ir, que Nega sai com mochila, fica aquele tititi. Ento a gente comea a quebrar isso. Na minha casa, comecei por dividir tarefa. E quando se falha no cumprimento das tarefas, a comida sai mais tarde. A a gente comea a se articular no movimento, em que a gente pensa: no, os companheiros compreendem mais! Engano. Porque o que fica pras mulheres secretaria, fazer cafezinho. A gente comeou a quebrar isso. Comeamos a discutir a metodologia, fala nas mesas, diviso das tarefas, contedo... E isso no fcil, porque quando vamos falar de sade da mulher, eles se coam, saem, vo fumar... Mesmo as assessorias1

Articulao Nacional das Pescadoras (ANP)/Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE)

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tm dificuldade. Na primeira reunio do MONAPE2 em que eu participei, era um tabu discutir a questo de gnero. E olhe que o MONAPE antigo! Mas teve resistncia. Pra discutir ocupao nos Conselhos, no CONAPE3, tinha duas vagas e s se queria os homens no titular. Discutimos, mantivemos homem e mulher titular e mulher e homem na suplncia. Eu sou de uma famlia de 11 filhas. Quando eu comecei minha conscientizao, articulei minhas irms e me vendo. Porque minha me servia meu pai da cueca comida. E meu pai tinha um discurso timo nas reunies, mas era extremamente machista em casa. E eu me organizando e ele a brigar comigo. Da eu disse que eu ia gravar os discursos dele pra mostrar nas reunies. um grande avano quando a gente comea a se organizar, no local, no estado e nacionalmente. Pra mim foi to bonito quando a gente comeou a se articular na I Conferncia de Pesca, quebrando o que o governo queria impor. Pra mim, no tem outro jeito que no seja essa articulao coletiva. importante cuidar dos filhos, do marido, e eles cuidarem da gente tambm, porque tem que ser uma troca. um pouco isso: essas iniciativas de ir quebrando o preconceito.

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Movimento Nacional dos Pescadores. Conselho Nacional de Aqicultura e Pesca.47

A gente est em movimento. Umas aqui, outras acol, mas seguindo nessa articulao.Manuela Gonzaga4 Comeo dizendo que eu tambm no vou falar novidades, mas resgatar algumas coisas da Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear, para depois dar seguimento a este momento. Primeiro quero refletir com vocs se estamos nos dando conta de que este um momento construdo por ns, pescadoras. O Terramar e CPP/CE esto apoiando, mas fomos ns que construmos. Outra reflexo sobre os desafios das mulheres para fazer movimento. Pra chegar aqui, tem muitos desafios. H o preconceito. Muitas esto aqui s vezes contra a vontade dos maridos, dos filhos. E isso, a dificuldade das mulheres sarem de casa, tem se tornado o maior empecilho da organizao, pois faltam mulheres que assumam a AMP/CE. E tambm a responsabilidade de divulgar a articulao na comunidade. O objetivo do encontro fortalecer o movimento, dar seguimento articulao. Como fazer isso se a gente no aparece, se a gente no incomoda? A gente tem que ter disponibilidade para o movimento. Este momento importante tanto pra fortalecer a articulao quanto pra construir coisas nossas. Se falou que no h dados produzidos sobre ns. Ento muito importante aproveitar pra falar da gente porque ningum nos conhece mais do que ns. Da a importncia de um momento s nosso: vocs devem ter se perguntado o porqu, e eu digo que necessrio, porque j tivemos momentos juntos em que no foi pautado nada para as mulheres. Muitas de ns no se deram conta do que prioridade para a articulao. Daqui vamos tirar diretrizes para levar adiante. Com os companheiros pescadores, e no os excluindo, pra gente ter autonomia de construir coisas nossas dentro do movimento. Um exemplo disso, de que no conseguimos pautar nossas questes no movimento, que no Frum de Pescadores e Pescadoras do Litoral Cearense (FPPLC) temos eu, Martilene e Mentinha e a gente no pauta nossas questes. Terminamos discutindo seguro-defeso, licena das embarcaes e terminamos no discutindo a pesca de lagoa, a mariscagem... Ento, a importncia desse momento a gente estar se fortalecendo pra discutir as nossas questes. Como vamos fazer isso, no sei. Mas importante pautar isso.4

Articulao de Mulheres Pescadoras do Cear (AMP/CE)/Frum de Pescadores e Pescadoras do Cear (FPPLC).

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Agora um pouco sobre como chegamos aqui. Tivemos as conferncias em 2004, e esse foi um momento de grande reflexo e articulao, s que depois essas mulheres sumiram ento houve um curso do Terramar pra rearticular as pescadoras. Depois do curso, todo mundo ficou nas comunidades, esperando de novo um chamado. No ano passado, durante as aes d