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ANAIS DO I SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS 28 a 30 de abril de 2011 – São Paulo, SP IPDMS Organizadores RICARDO PRESTES PAZELLO LUIZ OTÁVIO RIBAS INSTITUTO DE PESQUISA, DIREITOS E MOVIMENTOS SOCIAIS

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ANAIS DO I SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

28 a 30 de abril de 2011 – São Paulo, SPIPDMS

OrganizadoresRICARDO PRESTES PAZELLO

LUIZ OTÁVIO RIBAS

INSTITUTO DE PESQUISA, DIREITOS E MOVIMENTOS SOCIAIS

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RICARDO PRESTES PAZELLO (org.)LUIZ OTÁVIO RIBAS (org.)

ANAIS DO I SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

28 a 30 de abril de 2011 – São Paulo, SP

IPDMS

Realização:Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS

Apoio:Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS

Escola Nacional Florestan Fernandes – ENFFObservatório da Justiça Brasileira

Escola da Defensoria Pública de São PauloCentro Acadêmico XI de Agosto/USP

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ANAIS DO I SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS 28 a 30 de abril de 2011 – São Paulo, SPIPDMS

Comissão organizadora do seminário

Gilberto Bercovici (USP)Celso Fernandes Campilongo (USP)Marcus Orione (USP)Ney Strozake (RENAP)Maia Aguilera Franklin de Matos (XI de Agosto)Leonardo Avritzer (UFMG)Elaine Moraes (EDEPE)Gabriel Sampaio (SAL/MJ)

Secretaria executiva 2014/2016 – IPDMS

Ricardo Prestes Pazello (PR) – secretário-geralFabiana Cristina Severi (SP) – secretária financeiraAssis da Costa Oliveira (PA) – secretário de articulaçãoDiego Augusto Diehl (PI) – secretário de articulaçãoLiziane Correia (PB) – secretária de articulação

Conselho das Seções – 2014-2016

Norte: Titulares:Jeffirson Ramos da Silva (TO)Kerlley Diane Silva dos Santos (PA)Nordeste 1 (MA, CE, PI, RN): Titulares:Tayse Ribeiro de Castro Palitot (RN)Ornela Fortes de Melo (PI)Suplente:Rosinere Marques de Moura (CE)Nordeste 2 (PB, PE, AL, SE, BA): Titulares:Roberto Efrem Filho (PB) Claudio Oliveira de Carvalho (BA)Suplente:

Leonardo Fiusa Wanderley (BA)Centro-oeste: Titulares:Luciana Stephani Silva Iocca (MT)Jacqueline Silva Martins (GO) Suplentes:Guilherme Aurélio Zalique de Oliveira Alves (GO)Carla Benitez Martins (GO)Sudeste: Titulares:Luís Otávio Ribas (RJ)Mariana Maciel (MG)Suplentes:Luiz Carlos Silva Faria Júnior (MG)Ana Beatriz Cruz Nunes (SP)Ana Claudia Mauer dos Santos (SP)Sul: Titulares:Mateus Weber (RS)Valéria Fiori da Silva (PR)Suplentes:Marcel Soares de Souza (SC) Kamila Anne Carvalho da Silva (PR)Estudantil: Titulares:Emília Joana Viana de Oliveira (GO) Eloisa Slongo (PB)Suplentes:Iasmim Alves Ferreira de Carvalho (PB) Thalita Monteiro Maia (GO)

Informações de Editoração/Diagramação/ArteAnna Carolina Murata Galeb

Capa: sobre foto de 11 de julho 1917, relativa aos eventos da Greve Geral de 1917, em São Paulo (SP)

Catalogação na publicação - Universidade Federal do ParanáSistema de Bibliotecas - Biblioteca de Ciências Jurídicas

Bibliotecário: Pedro Paulo Aquilante Júnior – CRB 9/1626

Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)www.ipdms.org.br | [email protected]

S471a Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais (1.: 2011: São Paulo, SP)

Anais do I Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais: 28 a 30 de abril de 2011 - São Paulo, SP / Ricardo Prestes Pazello (organizador), Luiz Otávio Ribas (organizador). - São Paulo: IPDMS, 2015.

224 p.

ISBN: 978-85-67551-03-6

1. Direito - Pesquisa. 2. Movimentos sociais. I. Pazello, Ricardo Prestes. II. Ribas, Luiz Otávio.

CDU 34

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SUMÁRIO

PREFÁCIO: REGISTROS INICIAIS...............................................................................07

APRESENTAÇÃO........................................................................................................09

PROGRAMAÇÃO.........................................................................................................11

TEXTOS DE DIVULGAÇÃO.........................................................................................15

SEMINÁRIO NA USP TERÁ PARTICIPAÇÃO DE PESQUISADORES DO OJB.....................17

RELATO DA AJP SOBRE O I SEMINÁRIO DE DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS................................................................................................................................17

PFE/INCRA PARTICIPA DE MESA REDONDA SOBRE FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA EM SEMINÁRIO NA USP............................................................................................................18

MEMÓRIA FOTOGRÁFICA.........................................................................................21

ARTIGOS....................................................................................................................29

PENSAMENTO DESCOLONIAL, CRÍTICA JURÍDICA E MOVIMENTOS POPULARES: REPENSANDO A CRÍTICA AOS DIREITOS HUMANOS DESDE A POLÍTICA DA LIBERTAÇÃO LATINO-AMERICANA - Ricardo Prestes Pazello................................................................31

A ASSESSORIA ESTUDANTIL COM MOVIMENTOS SOCIAIS BRASILEIROS NAS DÉCADAS DE 1960 A 2000 - Luiz Otávio Ribas..........................................................................................55

EXPERIÊNCIAS NA LUTA PELA TERRA E POR DIREITOS ENTRE ASSENTADOS RURAIS - Fabiana Cristina Severi e José Marcelino de Rezende Pinto...........................................75

DIREITO E REFORMA AGRÁRIA: QUESTÕES INTRIGANTES E PERTINENTES AO ACESSO À JUSTIÇA - Roberto de Paula.............................................................................................93 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E AS INTERPRETAÇÕES JUDICIAIS NA VARA AGRÁRIA DO SUDESTE PARAENSE - Mariana Trotta Dallalana Quintans..................107

O JUDICIÁRIO E A CRIMINALIZAÇÃO DA LUTA PELA TERRA - Fernanda Maria da Costa Vieira..................................................................................................................................121

APORTES PARA UMA CRÍTICA DA IDEOLOGIA DA SEGURANÇA NACIONAL - Emiliano Maldonado................................................................................................151

TERRENOS DE MARINHA E ACUMULAÇÃO URBANA CAPITALISTA: ESPECIFICIDADES NA ORLA MARÍTIMA DE NATAL - Daniel Araújo Valença..............................................177

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ORGANIZAR-SE PARA DESORGANIZAR: O PLURALISMO JURÍDICO COMO UM INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, E AS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NO MLB - Magnus Henry da Silva Marques e Saulo Araújo Medeiros............................................................................................................191

FAVELA DO TRANQUILIM: UMA JUSTA RAIVA ACHADA NAS RUAS - João Paulo do Vale de Medeiros...................................................................................................................203

RESUMO........................................................................................................213

DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA: O RETRATO COTIDIANO DO SETOR CANAVIEIRO PAULISTA - José Roberto Porto de Andrade Júnior e Roberto Galvão Faleiros Júnior...................................................................................................215

HOMENAGEM PÓSTUMA A ROBERTO GALVÃO FALEIROS JÚNIOR.................217

Nota de pesar (IPDMS)..................................................................................................217Nota de Falecimento (APMP)........................................................................................218Adeus a Roberto (Gilberto Giacoia)..............................................................................218Os que lutam (NEDA Unesp Franca)...........................................................................218A utopia está de luto (Antonio Alberto Machado)......................................................219Dedicatória (Larissa Ambrosano Packer)....................................................................220Eterno (José Roberto Porto de Andrade Júnior).....................................................221A Deus, Gauche! (Rodrigo Galvão de Souza Faleiros)................................................221

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ANAIS DO I SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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PREFÁCIO: REGISTROS INICIAISO primeiro seminário nacional, reunindo pesquisadores, pesquisadoras,

professores, professoras, estudantes de direito, militantes das causas sociais, para debater a pesquisa na área do direito e suas implicações práticas, ou necessidades dos movimentos sociais na área do direito, foi realizado nas dependências da Universidade de São Paulo (USP), Largo do São Francisco, entre os dias 28 a 30 de abril de 2011, em São Paulo.

O seminário nacional foi o primeiro passo no início do processo de aglutinação das pessoas que desejam pesquisar e escrever sobre o direito com a expectativa de que seu conhecimento seja útil para a causa do povo organizado.

Os textos reunidos nesta publicação são fruto desta primeira experiência.Durante o desenrolar das atividades do seminário, nas conversas de

corredores, nas reuniões paralelas, foi surgindo a proposta da criação e construção de um instituto para se encarregar das diversas tarefas na área dos estudos de graduação e pós-graduação na ciência do direito, articulando os diversos atores para iniciar a difícil tarefa de criação de uma pessoa jurídica com a finalidade de servir de suporte para muitas tarefas políticas.

Os desafios do IPDMS são muitos. A começar pelo fato de ser uma pessoa jurídica com a participação de militantes sociais que lutam para não “enclausular” as ideias e iniciativas. Mas a existência de uma pessoa jurídica com esse perfil é fundamental para o projeto do Instituto.

Uma pessoa jurídica pressupõe estatuto, ata, eleição, ou seja, o cuidado com a condução desta organização é bem maior. Algumas organizações criadas pela esquerda com boas intenções pereceram logo no início dos debates sobre as regras que deveriam constar no estatuto.

Um dos pontos centrais da existência do IPDMS é a possibilidade da participação dos movimentos sociais na condução dos seus destinos. Mas os movimentos sociais, conforme é de conhecimento geral, não são muito afeitos à estabilidade e permanência.

A participação dos movimentos sociais é crucial para o Instituto cumprir com seus objetivos. Para que isso seja possível é necessário criar um espaço de diálogo permanente e abertura para aceitar a intromissão nos rumos políticos do IPDMS de atores que não compõem a estrutura horizontal, mas que são a razão de sua existência.

Os desafios estão colocados, os primeiros passos foram dados e a tarefa agora é dar vida e estruturar as linhas mestras do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais.

Ney StrozakePesquisador do IPDMS

Comissão Organizadora do I Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos SociaisSetor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)Advogado militante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP)

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APRESENTAÇÃOFoi com muita alegria que no final de 2010 nos engajamos, junto com

um grupo de professores e com o setor de direitos humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), na realização de um mapeamento nacional de quem trabalhava com o tema direito e movimentos sociais nas universidades brasileiras. Sentimos, nessa caminhada, que o apoio de intelectuais professores e estudantes cumpria uma das muitas etapas necessárias para que os movimentos continuem suas lutas.

Já fazia três anos que construíamos o blogue da “Assessoria Jurídica Popular”, onde se congregam, até hoje, diferentes quadros das redes de advogados populares (RENAP), de estudantes (RENAJU) e também de professores, profissionais da área do direito e militantes. Muitos estavam reunidos ainda na lista de discussão pela internet “Direitos e Movimentos” – oriundos da pesquisa com movimentos sociais e da ação de compartilhar sonhos e compromissos. Somou-se ainda quem veio de outros caldos de prática política, como a militância no movimento estudantil (FENED e UNE), nos partidos, nos grupos de apoio (CPT), nos grupos de advocacia popular, dentre outros.

Assim, de dois afluentes surgiu o leito do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, que viria a ser oficialmente fundado em 2012: de um lado, a nova geração de pesquisadores e advogados populares, oriunda dos quadros da assessoria jurídica universitária popular; de outro, assessores jurídicos populares já consolidados em torno da Via Campesina. O momento de encontro se deu, em São Paulo, nos três dias de duração do I Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais, do qual estes anais são um registro histórico. Sua articulação inicial se deu a partir da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF/MST) junto a professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e o Centro Acadêmico XI de Agosto, bem como a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, a Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, e o Observatório da Justiça Brasileira. Foi também uma das atividades complementares da Turma Especial Evandro Lins e Silva, da UFG-Goiás. A propósito, foi a segunda vez que o MST ocupou a instituição. Na primeira fora expulso do território livre dos estudantes pela tropa de choque da Polícia Militar, em 2008 – tipo de evento que sequer durante a ditadura militar a repressão ousara pisar. Este conflito ilustra bem a disposição daqueles que não tiveram a chance de ocupar as cadeiras universitárias em lutar para pintar a universidade com a cara e a cor do povo brasileiro.

Com este espírito aconteceram os debates do seminário, abarcando conjuntura política, palestras, lançamento de livros e apresentações de pesquisas. Não sem dificuldades, conseguimos recolher os textos apresentados entre 28 e 30 de abril de 2011, com estímulo e apoio de alguns colegas a quem gostaríamos de agradecer, especialmente Emiliano Maldonado, Carolina Alves Vestena e Ney Strozake – este último articulador do espaço que gerou o IPDMS (2012), uma das facetas nas quais avança o setor de direitos humanos do MST,

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junto à Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAP (1995), à Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDH (2011) e ao Fórum Justiça (2011).

Dentre os trabalhos recolhidos, ressaltamos que foram dez artigos e um resumo, sendo que este último nos motivou a realizar uma homenagem póstuma a um de seus autores, que nos deixou em 2014. Ao Roberto Galvão Faleiros Junior dedicamos esta publicação.

É com profunda alegria, portanto, que disponibilizamos um extrato do que foram as discussões havidas no abril vermelho de 2011, no Largo do São Francisco, do que, aliás, resultaram deliberações cujo sentido foi fortalecer uma articulação nacional entre militantes, estudantes, professores e pesquisadores, por uma agenda comum de pesquisa sobre direito e movimentos sociais.

Ricardo Prestes PazelloLuiz Otávio Ribas

Organizadores

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PROGRAMAÇÃOI SEMINÁRIO NACIONAL DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAISDe 28 a 30 de abril de 2011USP, São Paulo, São Paulo

Os movimentos sociais são atores fundamentais na construção, fortalecimento e aperfeiçoamento dos instrumentos e mecanismos de intervenção do Estado nos conflitos sociais. O Direito possui mecanismos que permitem modular os efeitos da intervenção estatal, permitindo alguma participação social e garantia de direitos. A academia possui o desafio de auxiliar na construção de teses e paradigmas para facilitar o avanço da democracia participativa na administração dos conflitos sociais, permitindo aos movimentos interagirem com os Poderes da República auxiliando no fortalecimento da Democracia. Pretendemos reunir professores e pesquisadores comprometidos com a causa dos movimentos sociais para debater e aprofundar algumas linhas de pesquisas científicas que possuem relação direta com as bandeiras históricas dos movimentos sociais,que possuem relação direta com as bandeiras históricas dos movimentos sociais, e assim auxiliar na compreensão do papel do Direito, métodos de pesquisa e utilidade social dos instrumentos jurídicos na construção da democracia.

Objetivos gerais:

• Promover um diálogo entre a academia e as demandas da sociedade por intermédio dos movimentos sociais, abrindo espaço para o debate de temas centrais e desafiadores na ciência do Direito que possuem relação direta com os conflitos sociais.

• Fomentar a pesquisa científica referente aos movimentos sociais e aprimorar as abordagens em curso a partir de preocupações metodológicas.

• Reunir professores e pesquisadores para trocar impressões, bibliografia, conclusões sobre as linhas de pesquisas científicas comprometidas com a causa dos movimentos sociais e o Direito, que estão em curso nas universidades brasileiras.

Objetivos específicos:

• Promover mesas com a participação de professores e pesquisadores na área jurídica no contexto atual da sociedade e da academia;

• Contemplar a especificidade das demandas dos movimentos sociais a partir de três eixos: terra, trabalho e grupos excluídos, sem deixar de lado as necessidades dos movimentos sociais e o acesso à universidade;

• Propiciar a divulgação e o encontro dos estudos pertinentes aos temas abordados, incentivando as iniciativas dos pesquisadores da área.

• Construir uma rede permanente de troca de experiências entre os

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professores e pesquisadores, sempre com a atenção voltada para as demandas dos movimentos sociais, auxiliando na produção do conhecimento científico nas universidades.

Justificativa:

A proposta do evento fundamenta-se, centralmente, pela necessidade de maior aproximação entre a academia e as demandas sociais na área jurídica, seja para enriquecer a pesquisa científica, ou para auxiliar na procura pelas respostas que a ciência do direito possa oferecer em face dos problemas da sociedade, auxiliando professores, pesquisadores, advogados populares e os movimentos sociais na inter-relação com o Poder Judiciário. É importante perceber que a geração de novos conhecimentos e a elevação da qualidade da produção científica, particularmente em se tratando do campo das ciências humanas, exige o contato com o mundo concreto e o permanente confronto da teoria com a prática social. Neste sentido, a realização de um seminário com as temáticas propostas, todas muito relevantes nos dias de hoje, poderá auxiliar de forma substancial os esforços dos estudantes e professores universitários engajados no estudo do Direito e sua utilidade na resolução pacífica dos conflitos sociais.

Programação:

Local: Auditório XI de Agosto, na Faculdade de Direito da USP, Largo de São Francisco, 95

28 de abril - quinta-feira

13h00: Abertura

14h00: Conjuntura Política- João Pedro Stédile (MST)

15h30: Os Movimentos Sociais, o Direito, a Pesquisa- Celso Fernandes Campilongo (Direito USP)- Leonardo Avritzer (UFMG)

18h00: O novo Código de Processo Penal- Gabriel Sampaio (SAL/MJ)

29 de abril - sexta-feira

8h30: Mobilizações Sociais e o Sistema de Justiça Criminal- Aton Fon Filho (Advogado Popular membro do RENAP)- Domingos Sávio Dresch da Silveira (UFRG)

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- Apresentação de trabalhos (10 minutos para cada pesquisador)

14h00: A Função Social da Terra- José Antônio Peres Gediel (Direito UFPR)- Gilberto Bercovici (Direito USP)- Gilda Diniz (Procuradoria Federal Especializada)

- Apresentação de trabalhos (10 minutos para cada pesquisador)

19h00: Lançamento de Livros e Coquetel

30 de abril - sábado

8h30: Gênero, Diversidade Sexual e Raça- Rubia Abs da Cruz (Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero)- Regina Facchini (Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero da UNICAMP)- Apresentação de trabalhos de pesquisa (10 minutos para cada pesquisador)

14h00: Trabalho, Acesso à Universidade e Exclusão Social- Jorge Souto Maior (Direito USP)- José do Carmo Siqueira (Direito UFG)- Deisy Ventura (IRI USP)

17h30: Encerramento- Marcus Orione (Direito USP)- Antônio Magalhães Gomes Filho (Diretor da FDUSP)

Promoção:

- Observatório da Justiça Brasileira- Escola da Defensoria Pública de São Paulo- Centro Acadêmico XI de Agosto- Escola Nacional Florestan Fernandes

Comissão organizadora do Seminário:

Gilberto Bercovici (USP)Celso Fernandes Campilongo (USP)Marcus Orione (USP)Ney Strozake (RENAP)Maia Aguilera Franklin de Matos (XI de Agosto)Leonardo Avritzer (UFMG)Elaine Moraes (EDEPE)Gabriel Sampaio (SAL/MJ)

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TEXTOS DE DIVULGAÇÃO

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TEXTOS DE DIVULGAÇÃOSEMINÁRIO NA USP TERÁ PARTICIPAÇÃO DE PESQUISADORES DO OJB12/04/2011 - Texto publicado na página do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFMG/CES-AL)http://democraciaejustica.org/cienciapolitica3/node/258?page=9

Acontece no dias 28, 29 e 30 de abril, o Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais, no Auditório XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

O objetivo da reunião é promover um diálogo e aproximação entre a academia, os Poderes da República e as demandas atuais da sociedade, por intermédio dos movimentos sociais e do Direito.

Estarão presentes no seminário professores e pesquisadores de várias partes do Brasil para debaterem e trocarem impressões, bibliografias e conclusões a respeito das linhas de pesquisas acerca dos movimentos sociais. Entre os com presença confirmada, estará o coordenador do Observatório da Justiça Brasileira, Leonardo Avritzer, e as pesquisadoras Helena Pereira e Marjorie Marona.

Os interessados em apresentar trabalhos nessa temática, devem sujeitar os artigos à aprovação até o dia 20 de abril. Os textos e inscrições devem ser feitos no endereço eletrônico seminá[email protected]

Pede-se que os artigos cumpram o limite de 10 a 15 páginas. O encontro é promovido pelas parcerias entre o Observatório da Justiça Brasileira,

Escola de Defensoria Pública de São Paulo, Centro Acadêmico XI de Agosto e a Escola Florestan Fernandes.  

RELATO DA AJP SOBRE O I SEMINÁRIO DE DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS01/05/2011 - Texto escrito por Tchenna Maso, Thiago Arruda, Emiliano Maldonado, Luiz Otávio Ribas e Ricardo Prestes Pazello para o blogue da Assessoria Jurídica Popular (AJP)http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com.br/2011/05/relato-da-ajp-sobre-o-i-seminario-de.html

Nos dias 28 a 30 de abril, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o I Seminário de Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais. Na atividade, organizada conjuntamente pela Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), professores da USP e o Centro Acadêmico XI de Agosto, pela primeira vez a Faculdade de Direito da USP abriu suas portas para a pesquisa sobre movimentos sociais.

Participaram inúmeros grupos de pesquisadores autônomos e outros ligados a universidades, institutos de pesquisa e ao estado brasileiro, como a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP); o SAJU São Paulo; o SAJUP Paraná; o CORAJE Piauí; o Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola do Rio de Janeiro; a Organização de Direitos Humanos “Terra de Direitos” do Paraná; Núcleo de Estudos de Direito Alternativo (NEDA), da Unesp Franca; a Turma especial para beneficiários da Reforma Agrária e agricultores familiares tradicionais Evandro Lins e Silva da UFG; o Lições de Cidadania, da UFRN e o GEDIC, da UFERSA; o Escritório Modelo da PUC São Paulo; o Observatório da Justiça Brasileira da UFMG; a procuradoria federal do INCRA; a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça; Defensoria Pública do Estado de SP.

Destacamos a análise de conjuntura política feita pelo Movimento dos

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Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). A conjuntura política serviu de base para as reflexões que permearam o seminário, no sentido de pôr no centro de suas atenções a relação entre o direito e os movimentos sociais, a partir da pesquisa. Assim, para afirmá-la foram propostas várias discussões atinentes, como o problema do sistema de justiça criminal e a função social da terra ou ainda a questão de gênero e raça, bem como o mundo do trabalho e o acesso à justiça.

A questão principal debatida foi a ocupação da universidade pública pelos movimentos e pelo povo brasileiro, ou seja, a articulação nacional de pesquisadores e a militância de movimentos sociais brasileiros. Por movimentos sociais entendemos, por exemplo, o conjunto daqueles que compõem os espaços da Coordenação de Movimentos Sociais, a Via Campesina e o Fórum de Reforma Agrária, o movimento sindical, a Assembléia Popular, ou ainda movimentos contra-hegemônicos que reivindicam gênero, raça e várias outras formas de exploração e opressão como suas bandeiras de lutas.

No evento se destacou o diálogo dos pesquisadores apresentando seus trabalhos ao lado dos palestrantes responsáveis pelos grandes painéis. Além disso, o seminário promoveu uma articulação entre militantes, estudantes, professores e pesquisadores em geral, em prol de um projeto de continuidade destes debates focando a socialização das pesquisas sobre o problema jurídico e sua relação com os movimentos sociais, assim como o diálogo intenso entre o povo, e suas organizações, e a academia. Ficou demonstrada a necessidade de repensar a teoria e a prática do direito, para uma ligação direta entre os três pilares do evento - direito, pesquisa e movimentos sociais -, renovando os sonhos possíveis no campo jurídico.

PFE/INCRA PARTICIPA DE MESA REDONDA SOBRE FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA EM SEMINÁRIO NA USP06/05/2011 - Texto publicado na página do INCRAhttp://www.incra.gov.br/pfeincra-participa-de-mesa-redonda-sobre-funcao-social-da-terra-em-seminario-na-usp

A Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra (PFE/Incra) participou, no último dia 29 de abril, de uma das mesas do 1º Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais, realizado na Universidade de São Paulo (USP), entre os dias 28 e 30 do mesmo mês.

Com o tema A Função Social da Terra, participaram do debate a procuradora federal junto ao Incra, Gilda Diniz dos Santos, o professor de Direito da USP, Gilberto Bercovici, e o professor de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), José Antônio Gediel.

“Quando juntamos mais de três pessoas para refletir esse tipo de questões é sempre muito produtivo e gratificante”, abriu sua fala Gilda Diniz dos Santos. Ela acrescentou que nos últimos anos, a PFE/Incra construiu um relacionamento mais próximo dos movimentos sociais, dos advogados populares e da Academia, o que “nos ajuda a realizar o trabalho junto ao Incra, na concretização das políticas públicas da autarquia e na efetivação da reforma agrária”.

Durante a explanação, a procuradora apontou os diversos entraves enfrentados no cotidiano, que barram a desapropriação de imóveis pelo não cumprimento pleno dos quatro aspectos constitucionais do conceito da função social da propriedade. “É muito comum nos depararmos com áreas em que os índices de produtividade são satisfatórios, mas que não respeitam a legislação trabalhista ou ambiental, por exemplo, e mesmo assim encontramos muitas dificuldades para desapropriar”, completou. Para ilustrar essa afirmação, ela citou o exemplo da fazenda Nova Alegria, em Felisburgo-MG, onde houve um massacre de cinco trabalhadores rurais sem terra e, ainda assim, a área encontra

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obstáculos para ser desapropriada por descumprimento do aspecto do bem estar social, previsto no conceito da função social.

Outros entraves mencionados por Gilda Diniz para efetivação da reforma agrária foram as questões ambientais e a interferência externa dos órgãos de controle. Segundo a procuradora, a reforma tem sido vista erroneamente como vilã do meio ambiente. Ela citou multas aplicadas pelo Ibama e a necessidade de licencia prévia para instalação de projetos de assentamentos como consequência dessa visão. Quanto aos órgãos de controle, ela afirmou que alguns servidores do Incra têm ficado apreensivos com as perseguições sofridas pela administração da autarquia, o que também atrasa a execução da políticas pública.

Para o professor de Direito da USP, Gilberto Bercovici, a reforma agrária enfrenta tais dificuldades porque incorpora conflitos sociais de bastante impacto, em um país que possui narrativas distintas das questões agrárias. Segundo ele, a visão predominante é a narrativa liberal, que acredita na modernização da agricultura, das relações produtivas e trabalhistas, que visam o lucro máximo a partir da exportação de produtos agrícolas sem valor agregado.

Gilberto Bercovici afirmou também que a demanda por terra é maior do que a capacidade de o Estado de executar a reforma agrária, que só é realizada a partir da pressão dos movimentos sociais. Para o professor, outro grande obstáculo é a maneira limitada como alguns operadores do Direito interpretam a legislação. “Há os que leem a Constituição com pressa e simplesmente desprezam os outros três fatores que servem para a desapropriação, além da questão econômica da produtividade.

No entanto, para o professor, o efeito produtivo e distributivo da reforma agrária são contra-argumentos para os que possuem tal visão limitada e para os que questionam a viabilidade econômica da redistribuição de terras. Além disso, ele sustentou que “a reforma expande a cidadania no campo, além de recuperar o poder estatal sobre o controle territorial do país, em detrimento do processo de privatização da terra”.

Ao final da mesa redonda, a estudante do 5º ano de Direito da UFPR, Fernanda de Oliveira Rezende, defendeu que momentos de debate como o seminário são importantes para estabelecer contato com diversas ideias e pessoas que estão envolvidas com as questões agrárias e fundiárias. Segundo ela, é hora de reavivar essa discussão: “Eu venho de uma universidade que, no contexto de cursos de direito, é relativamente mais progressista e se fala muito de função social e constitucionalização dos campos do Direito. Mas sei que essa não é a realidade da maioria das faculdades”. No entanto, ela afirmou ainda que há um recrudescimento da discussão, uma vez que é comum falar de função social de maneira muito abstrata ou dentro do que é possível ser feito na atual conjuntura, sem questionamentos de como foi concebido o conceito.

Na opinião da estudante, o diálogo com os movimentos sociais é o primeiro ponto para o fortalecimento dos dispositivos constitucionais como a função social. “O que eles colocam como demanda é a parte mais real da questão da terra, são eles que estão ali e vivem isso, além de serem historicamente excluídos ou escamoteados de qualquer processo de discussão dessas questões”, declarou.

Ainda de acordo com Fernanda Oliveira, o segundo passo está no âmbito do Estado e do Direito. “Os juristas precisam deixar de ter medo de enfrentar e tomar posições em defesa não só da função social, como do limite da propriedade. Seria muito interessante que eles se colocassem em um espaço de conjugação com os movimentos e com essas pautas de esquerda”, argumentou, “porque nós temos métodos dentro do Direito para poder romper com esse medo, embora seja um debate muito mais político do que jurídico, o Direito entra nessa questão por meio da legislatura”, completou.

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MEMÓRIA FOTOGRÁFICA

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ARTIGOS

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PENSAMENTO DESCOLONIAL, CRÍTICA JURÍDICA E MOVIMENTOS POPULARES: REPENSANDO A CRÍTICA AOS DIREITOS HUMANOS DESDE A POLÍTICA DA LIBERTAÇÃO LATINO-AMERICANA

Ricardo Prestes Pazello1

1. Pensamento descolonial

Tomar o direito como expressão de uma organização política de um tempo e de uma sociedade é nosso intento. Fazê-lo, por sua vez, desde uma posição geopolítica não universalista deve ser nosso caminho. A negação do universalismo do problema jurídico-político não implica, nem de longe, uma rejeição de todos os universais. E, para dizer o menos, a noção de história permanece aí para nos corroborar.

O ponto de partida geopolítico requerido para esta compreensão do problema nos lança às mais fecundas discussões possibilitadas pela filosofia da libertação latino-americana. E, hoje, podemos dizer, pela filosofia política da libertação de nossa América. Ao largo de se comprovar vários postulados da filosofia ocidental, tais quais: a) não há determinação geopolítica para a filosofia porque é ela universal, não havendo sentido adjetivá-la com a localidade à qual se vincula (por exemplo: latino-americana, européia ou africana); ou b) falar em “filosofia (política) da libertação” é uma redundância, pois “toda” “filosofia” é da (caminha para a) “libertação”; ou ainda c) considerar esta concepção filosófica como uma não-filosofia porque antes é ideologia (relembrando as posições parmenídicas sobre o fundamento das coisas, já que o não-ser não é, ou mesmo resgatando as mais renhidas posições positivistas acerca da neutralidade axiológica dentro da teoria do conhecimento); pois bem, longe de aceitar tais críticas, a política (ou filosofia política) da libertação opera seu quefazer teórico e prático a partir de um giro descolonial, uma verdadeira virada epistêmica ou gnosiológica que nos permite desvelar o momento inicial de qualquer reflexão:

1 Professor de Antropologia Jurídica na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Bacharel em Direito pela UFPR. Pesquisador do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL/UFPR) e do grupo de pesquisa Direito, Sociedade e Cultura (FDV/ES), sobre direito, marxismo e movimentos sociais na América Latina. Secretário geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Integrante da coordenação do Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani (Santos-Milani), do Centro de Formação Urbano-Rural Irmã-Araújo (CEFURIA) e do Instituto de Filosofia da Libertação (IFiL). Presidente do Conselho de Representantes da Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná-Seção Sindical do ANDES-SN (APUFPR-SSind). Coordenador dos projetos de extensão popular Direito e Cidadania (D&C); e Serviço de Assessoria Jurídica Universitária Popular (SAJUP), ambos junto à UFPR. Colunista do blogue assessoriajuridicapopular.blogspot.com Correl: [email protected] - http://lattes.cnpq.br/2753053001101053 Correl: [email protected]

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o seu enraizamento geopolítico. Daí que a política da libertação se constrói sobre a história dos vencidos povos da periferia do capitalismo e se realiza na trilha daqueles que pensaram e agiram em prol dos oprimidos.

Em termos de América Latina, conceber um giro descolonial em nosso saber e poder significa destacar os intentos de libertação pelos quais o continente passou. Concordando com isto, encontramos dois grandes conjuntos históricos de realizações nesse sentido, ainda que o tempo e as idéias sejam distintos em suas compreensões de fundo. Embora isto seja verdade, aparecem como antecedentes essenciais a este debate, assim como o conjunto de idéias oriundas do movimento anticolonialista empreendido em África.

1.1. Antecedentes: as lutas políticas da América Latina, seus intérpretes e o anticolonialismo africano

Como um primeiro passo da virada descolonial entre nós, apresenta-se o resgate dos pródromos da libertação do continente, cristalizados nas personagens históricas de um Simón Bolívar e de um José Martí. Seus feitos históricos também se puderam consubstanciar em sua clareza analítica, legando-nos textos fundamentais para apreciação deste fenômeno. Com Bolívar aprendemos que e possível integrar e unir o continente americano, no intuito de torná-lo independente em favor de seus povos.2 Com Martí nos orientamos também na defesa da “pátria grande” assim como na ferina crítica anti-imperialista que impõe suas botas gigantes às já pisadas cabeças dos nosso-americanos.3 Sem descurar de todas as contradições que impelem à resolução quando da adoção de tais figuras históricas como paradigmas de viragens descolonizadoras, sua maior lição acaba sendo a da factibilidade histórica da libertação, o que é estrutural para nossa mirada filosófica.

Como forma de resolver os problemas gerados pela não sistematicidade das concepções destes antecedentes descolonialistas, encontramo-nos necessariamente com a insurgência como critério político de nossa análise. Neste exato sentido, ganham insuspeito relevo as revoluções latino-americanas, com especial ênfase para aquelas que adquiriram sua autoconsciência para além de as reivindicações nacionais, propondo-se como politicamente qualificadas, o que em geral denominamos socialistas. O ciclo das revoluções latino-americanas,4 contudo, é antecedido por um momento “quente” das lutas populares do continente, germinalmente unindo-se às

2 Ver BOLÍVAR, Simón. “Carta de Jamaica”. Em: Latinoamérica: cuadernos de cultura latinoamericana. México, D. F.: UNAM, n. 1, 1978.3 MARTÍ, José. “Nuestra América”. Em: Latinoamérica: cuadernos de cultura latinoamericana. México, D. F.: UNAM, n. 7, 1978.4 Conforme DUSSEL, Enrique Domingo. “Vivemos uma primavera política”. Tradução de Elaine Tavares. Em: Captura críptica: direito, política, atualidade. Florianópolis: CPGD/UFSC, n. 2, vol. 1, julho-dezembro de 2009, p. 611-628.

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reivindicações socialistas. Assim é que se faz imperioso dar o devido destaque a José Carlos Mariátegui e sua obra de interpretação da realidade peruana, qual, em verdade, se mostra como o primeiro grande ensaio de síntese de inspiração claramente marxista para a realidade da América Latina.5 Com um marxismo não eurocêntrico e nada dogmático, pois bastante criativo, Mariátegui carrega consigo a preocupação de uma análise rigorosa e radical para o continente, impondo uma reflexão crítica e inserida no movimento anticapitalista mundial. Nesse ponto, o giro descolonial absorve sua segunda grande influência: o marxismo latino-americano.

Após um período de tentativa de amortecimento da insurgência na América Latina, que coincidiu com a hegemonia do marxismo dogmático nas esquerdas continentais, o afã revolucionário renova-se e apresenta-se viável: era a revolução cubana, em 1959, que inaugurava o citado ciclo revolucionário. Com relevo, o exemplo de Che Guevara, homem símbolo desta revolução, difunde-se e inclusive a partir de suas reflexões voltadas para a libertação de todo o continente, e não somente de Cuba. A guerra de guerrilhas viria a se tornar um depoimento vivo de que as classes populares da América Latina poderiam se organizar e reapropriar-se dos instrumentos de poder. No entanto, não só este caminho armado foi tentado. Justamente a experiência chilena, de 1970 a 1973, tornar-se-ia uma outra vereda revolucionária, ainda que frustra pela onda de golpes imperialistas que assolaria todos os países da América Latina. A Nicarágua colocar-se-ia como o terceiro marco desse ciclo revolucionário, operando uma espécie de síntese entre as experiências cubana e chilena: união, ainda que limitada no tempo, de revolta armada com democracia popular. Na mexicana região de Chiapas, contudo, dar-se-ia um novo passo para o ciclo das revoluções, já que os zapatistas revolucionaram sem querer tomar o poder, inaugurando um novo prisma da política insurgente da América Latina. Por fim, as conquistas, dentro dos marcos institucionais do estado moderno, ocorridas dentro do chamado socialismo do século XXI, na Venezuela, Bolívia e Equador, fecham o quadro da série de revoluções que se ensaiaram e, em alguma medida, se realizaram por estas terras.

As primeira e segunda independência pelas quais passou a América Latina – conforme preferem se referir os teóricos influenciados pela revolução cubana – são os antecedentes primários daquilo que estamos aqui a chamar, junto a vários autores, de giro descolonial. No entanto, nossa assunção de um ponto de partida geopolítico – o latino-americano – não pode implicar isolamento para com as demais lutas de libertação dos demais povos oprimidos. Por isso, merecerem destaque os feitos dos demais continentes, desde a comuna de Paris até a revolução russa, desde as realizações de Gandhi até os sucessos

5 MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. 48 ed. Lima: Amauta, 1986.

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Mao, desde a resistência vietnamita até a emancipação africana. Sensivelmente, aliás, o movimento de descolonização africano agregou

sínteses teóricas por demais relevantes para o que hoje passamos a chamar de descolonialismo do saber e do poder. Isto porque os “condenados da terra” de Frantz Fanon6 ou os “retratos” psíquico-sociais de colonizados e colonizadores de Albert Memmi7 ou mesmo os “tipos de resistência” de Amílcar Cabral,8 reforçam o imaginário de uma modernidade baseada sobre a exploração colonial conjugado à do capital, o que deve sempre ser lembrado e denunciado. Daí o legado argelino com a força fanoniana em prol da organização das nações africanas para o direcionamento de sua violência revolucionária ou mesmo a instigante proposição de Cabral sobre o suicídio de classe que os intelectuais pequeno-burgueses devem cometer para se comprometerem com as classes populares.

1.2. Teorias de libertação e giro descolonial: Quijano, Mignolo e Dussel

Aliando a convicção de que a necessidade de unidade das realidades periféricas é nodal, com um ímpeto de transformações radicais na estrutura da sociedade mais o ponto de partida dos povos marcados pelo colonialismo – “pátria grande”, “ciclo revolucionário” e “condenados da terra”, respectivamente – vem à tona uma verdadeira “epistemologia do sul”,9 a qual, a nosso ver, conforma uma teoria da libertação ou, para ser mais fiel a esta proposta, os marcos para as teorias de libertação.

Centrais a esta análise se apresentam as reflexões de três importantes autores latino-americanos: Walter Mignolo, Aníbal Quijano e Enrique Dussel.

Com Mignolo, é possível encontrar uma síntese no âmbito teórico de algumas das tendências das discussões latino-americanas que podemos identificar como descolonialistas. Fortemente influenciado foi pelas discussões sobre a América Latina, tanto aquelas oriundas de um pensamento radical e autóctone, como o promovido pelos fundadores do debate sobre a filosofia latino-americana, em especial Leopoldo Zea; quanto aqueloutras gestadas para tornar a América Latina um objeto, como é o caso dos estudos de área (que formam os “latino-americanistas”), frente aos quais apresenta veementes críticas. Na esteira de tais preocupações, podemos encontrar nesse autor alguns conceitos que possibilitam uma caracterização do que seja o giro descolonial, ainda que não seja ele um pioneiro na discussão. De toda forma,

6 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora-MG: UFJF, 2005.7 MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Tradução por Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.8 CABRAL, Amilcar. Análise de alguns tipos de resistência. Bolama, Guiné-Bissau: Imprensa Nacional, 1979.9 Para usar a expressão difundida por SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

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chega a definições bastante úteis para se começar a colocar o nosso problema: o pensamento descolonial.

Três idéias podem nos servir de guia e com elas trabalharemos: gnosiologia liminar, diferença cultural e dilema de Chakrabarty. Vamos a elas.

Em primeiro lugar, destaca-se no conjunto das reflexões de Mignolo um intento de demonstrar as relações entre a colonialidade do poder e a do saber. Daí que chega a propor a descolonização não só política e econômica, mas também intelectual ou cultural, ainda que não possamos cindir simploriamente todas essas dimensões da realidade humana e social. Para chegar ao cerne do problema da colonialidade do saber, propõe Mignolo uma ampliação do olhar sobre o conhecimento cujo grande salto qualitativo estaria em não reduzir o saber à ciência moderna e nem desprezar seus condicionantes geopolíticos. Por isso lançar mão da “gnosiologia liminar”, a qual já apresenta uma famosa definição: “a gnosiologia liminar é uma reflexão crítica sobre a produção do conhecimento, a partir tanto das margens internas do sistema mundial colonial/moderno (conflitos imperiais, línguas hegemônicas, direcionalidade de traduções etc.), quanto das margens externas (conflitos imperiais com culturas que estão sendo colonizadas, bem como as etapas subseqüentes de independência ou descolonização)”.10

De início, já percebemos o compromisso crítico da formulação (“reflexão crítica”), bem como seu apelo para o âmbito geopolítico (“margens internas e externas”) da produção do conhecimento. Acima de tudo, porém, trata-se de uma liminaridade ou um estado fronteiriço daquela produção. Mais do que apontar para fatores geográficos, esta “borda” gnosiológica dá espaço para creditar ao pensar subalterno o protagonismo que lhe é necessário. A subalternização do conhecimento é uma marca do colonialismo, o que faz demonstrar a tatuagem à qual somos forçados a sofrer. Mignolo chama isso de “diferença colonial”. Com ela, temos presente a impossibilidade de nos tornarmos aquilo que não somos, apesar de o almejarmos de algum modo. Os povos que sofreram a colonização não podem deixar de apresentar esta marca, mesmo que desenvolvam ímpetos colonialistas. Mais do que isso, porém, a diferença colonial coloca em tela um afresco bastante objetivo: a necessária hibridização de nossos pensares, assim como de nossos modos de produzir a vida. Justamente nesse caminho crítico é que podemos nos alçar ao problema da história e perceber que ela, para nós, sempre se apresentará como uma tensão: tensão entre o que reconhecemos como nosso e aquilo a que somos forçados a reconhecer como nosso. Dando a ela o nome de “dilema de Chakrabarty”, Mignolo homenageia o autor pós-colonialista indiano que colocou em termos definitivos o valor modular da história entre nós: é

10 MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 33-34.

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impraticável fazermos nossa história sem também fazermos a história que não é nossa. Não há América Latina sem Europa, assim como não poderia haver modernidade sem colonialismo ou ainda filosofia da libertação sem a da dominação. Até para a esfera doméstica isto nos importa muito, já que Martí reivindicaria construir a nossa América em oposição à América que não é nossa, nada mais que expressão deste dilema.

Com isso soçobra qualquer pretensão de associar ao pensamento moderno um necessário “evolucionismo”, ainda que possa ter assumido características progressistas em vários momentos. E é na linha disto que podemos enfatizar que Mignolo resgata para sua reflexão a proposta da crítica à colonialidade do poder de Aníbal Quijano.11

Partindo das formulações de Braudel e Wallerstein sobre o sistema-mundo moderno e capitalista, acresce-lhe da face oculta que comporta, qual seja, a do colonialismo. Assim, vivemos pela primeira vez na história uma integração de todos os modos de viver (a já decantada globalização), mas uma integração violenta e nada democrática, contrariando todos os discursos legitimadores desse estado de coisas. No entanto, o fenômeno não se iniciou agora e encontra no impulso expansionista europeu sua pedra angular. Neste particular, é o pensamento latino-americano que reivindica sua tese, deslocando os termos da reflexão para o seu devido lugar: 1492 inaugura a modernidade e o faz trazendo consigo a colonização da América.

A colonialidade como face oculta da lua moderna apresenta outros encobrimentos, os quais, a partir de então, serão estruturais a nossas realidades. Para nossos objetivos aqui, destaquemos dois: a implicação entre estado moderno e colonialismo e os cortes estruturais baseados na classificação do trabalho e da raça.

Em síntese, devemos dizer que o estado moderno é a forma histórica que permite um novo tipo de colonização da vida, colocando-a como fundamento da realidade total. Sendo implementado pelo estado, o colonialismo é sua pilastra central sem a qual seu acúmulo de riquezas e poder não seria possível. É com este movimento histórico que surge a tendência à homogeneização das realidades sociais particulares e seu direcionamento para um centro de poder unificado. Sua mola-mestra são os critérios de classificação do sistema-mundo colonial moderno: o trabalho e a raça.

De um lado, o modo de produção capitalista exige uma determinada divisão social do trabalho, a qual parte da separação entre o intelecto e o físico, sendo que disto resultaria toda uma ideologia de justificação do rompimento essencial entre propriedade dos meios de produção e não propriedade destes mesmos meios, como ocorreria com os trabalhadores que não dispõem de

11 Ver QUIJANO, Anibal. “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. Em: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Tradução de Júlio César Casarin Barroso Silva. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 227-278.

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nada mais senão de sua própria força de trabalho. Ainda que se trate de uma complexidade muito grande, a questão do trabalho leva a esta caracterização fundamental: a exploração que o capital exerce sobre o trabalho. De outra banda, está o problema racial como vetor complementar do capitalismo na periferia do sistema-mundo. Junto às classes sociais, também haveria sujigação de classificações sociais conforme os atributos biológicos fenotípicos. É com a modernidade, para Quijano, que surge o conceito de “raça” tal qual manejamos. O racismo e o etnocentrismo potencializam o capitalismo na medida em que se apresentam como o invólucro ideológico e prático do capital em sua dinâmica de acumulação primitiva nas realidades periféricas.

Quiçá, porém, seja a produção teórica de Enrique Dussel a que mais sistematicamente tenha captado a necessidade do giro descolonial, sendo que sua grande resposta para a efetivação deste é a política da libertação.

Na trilha de sua produção filosófica desde a década, especialmente, de 1970, Dussel aplica à análise política latino-americana suas categorias éticas e metódicas. No sentido do método, há duas grandes mediações categoriais para levar a discussão a suas finalidades últimas: trata-se do par conceitual totalidade-exterioridade.12 A totalidade é o sistema que se autocentra e tende a fechar-se sobre si mesmo, negando a alteridade, ou seja, colocando-a no plano da não existência, pois nada haveria para além de o sistema. Ocorre que, conforme a proposição levinasiana que o inspira, Dussel percebe a existência da exterioridade com relação ao sistema como categoria fundamental para a construção filosófica, a qual, inclusive, tem um teor geopolítico, pois se destina a caracterizar a periferia do modo de produção capitalista como o ponto de partida. Uma vez mais, porém, a construção teórica latino-americana não se reduz a seus limites territoriais, apresentando-se, pois, a filosofia da libertação como o encontro de um prisma ético, qual seja, os oprimidos, em geral. Com sua guinada marxista na década de 1980, Dussel chega a encontrar no “trabalho vivo” de Marx mesmo esta exterioridade teorizada e, na senda de suas reflexões éticas, começa a se preocupar com uma fundamentação sistemática acerca desse problema.13

Pois bem, com o aperfeiçoamento de uma ética da libertação, o filósofo latino-americano chega a sua grande proposta de leitura do mundo: a arquitetônica ética, baseada nos momentos material, formal e factível, considerados em seus fundamento e crítica.14 O que se ressalta desta proposta

12 DUSSEL, E. D. Filosofia da libertação na América Latina. 2 ed. Tradução de Luiz João Gaio. São Paulo: Loyola, s. d., p. 22 e seguintes.13 Durante a década de 1980, Dussel produziu uma trilogia sobre a obra de Marx: DUSSEL, E. D. La producción teórica de Marx: un comentario a los Grundrisse. 4 ed. México, D.F.: Siglo Veintiuno Editores, 2004; DUSSEL, E. D. Hacia un Marx desconocido: un comentario de los Manuscritos del 61-63. México, D.F.: Siglo Veintiuno Editores; Iztapalapa, 1988; e DUSSEL, E. D. El último Marx (1863-1882) y la liberación latinoamericana: un comentario a la tercera y a la cuarta redacción de “El capital”. México, D.F.: Siglo Veintiuno Editores; Iztapalapa, 1990.14 Ver DUSSEL, E. D. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Tradução de Ephraim F.

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ética, entretanto, é a inseparabilidade de seus momentos, e a materialidade como expressão da vida naquilo que lhe é primordial, tanto econômica, quanto ecológica ou culturalmente. Junto a isto, a intersubjetividade e a necessidade de realização da satisfação das necessidades humanas. Talvez seja justamente a reflexão sobre a factibilidade crítica que leve Dussel ao problema da política da libertação, uma vez que é aquela que realiza o princípio-libertação, inclusive a partir da organização política.

Tal organização, por sua vez, consubstancia-se em instituições políticas que estruturam a realidade vivida, tendo, porém, princípios normativos como base e a ação dos atores como móvel de sua concretização. Um pressuposto, no entanto, serve de alicerce para toda esta construção politológica: a percepção de que a política se pratica podendo-se respeitar ou não o momento ético da intersubjetividade crítica, que é justamente aquele que encaminha para o povo como seu sujeito último. Um povo como bloco histórico dos oprimidos nunca pode deixar de ter o poder e só se distancia dele no âmbito fenomênico, da aparência real, tomada como potestas. A potestas é o poder como estrutura ou conjunto de instituições mutáveis e apropriáveis por minorias e grupos dominadores, sendo isto a fetichização do poder. Previamente a ela, porém, encontra-se a potentia, que é a fundamentalidade do poder, o qual é sempre do povo, no sentido anteriormente descrito.15

Com isso, encontramos em Dussel uma proposta que permite efetivar o giro descolonial na política latino-americana. Contra o helenocentrismo histórico, o qual vem acompanhado do eurocentrismo, a política da libertação arma-se de um arsenal para combater o etnocentrismo da política hegemônica encalacrada no estado e no saber formal, assim como nos aparelhos políticos da sociedade civil.16

2. Crítica jurídica

Para os fins de nossa proposta, o diálogo entre o pensamento descolonial e o direito como expressão de uma organização política não pode se fazer sem a importante mediação teórica do conjunto de críticas ao direito. E estas críticas, para fins didáticos, serão observadas por nós sob dois grandes critérios, ainda que tenhamos claro que esta categorização não prejudica as complexificações necessárias a análises mais aprofundadas de cada uma das correntes e autores citados.

Assim é, portanto, que aparecerão para nós as críticas provenientes de Marx e de seus intérpretes, notadamente aqueles que dedicaram sua

Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.15 Conferir DUSSEL, E. D. 20 tesis de política. México, D.F.: Siglo Veintiuno Editores; CREFAL, 2006.16 Verificar o prólogo de DUSSEL, E. D. Política de la liberación: historia mundial y crítica. Madrid: Trotta, vol. I, 2007, p. 11-14.

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reflexão sobre a juridicidade moderna, por um lado; e a crítica “geral”, que assim designamos na falta de expressão melhor, cuja caracterização se afasta da análise marxista em sentido estrito, ainda que possa com ela dialogar, perfazendo o itinerário das chamadas teorias críticas do direito, por outro lado.

2.1. A crítica marxista e a crítica geral

A partir da obra de Marx – a qual metodicamente procura estabelecer-se como uma visão total da realidade, ainda que isso não implique um totalitarismo teórico, já que, tendo como referência a obra de um único autor, não podemos nunca ter uma pretensão concreta de descrever toda a realidade, mas sim uma pretensão real-pensada – um vasto campo de reflexões e interpretações se inaugura com o desiderato último de criticar a sociedade regida pelo modo de produção capitalista. Muito se discutiu, e ainda se discute, sobre a existência ou não de uma teoria política ou jurídica no conjunto de seus escritos (para nós, ambas estão imbricadas) e várias impressões se tira desse debate. Concordando que não há uma sistematização da teoria do direito em Marx, não podemos avalizar o entendimento de que sua reflexão não contribua para ela, tanto assim é que vários autores posteriores a ele se debruçariam sobre o tema, inspirados por seu método e sugestões, dando vez a auspiciosas análises político-jurídicas.

Talvez a mais conhecida das críticas de Marx ao direito se encontre em seu famoso texto sobre “A questão judaica”,17 no qual aprofunda um destrinçamento do que seriam os direitos humanos proclamados no pós-revolução francesa. Sua ferina concepção do direito, aí, faz-nos pensar que não resta outro destino ao problema jurídico em seu pensamento senão a rejeição completa. Entretanto, tal compreensão reducionista não resiste a uma mais acurada mirada por toda sua obra. Em pelo menos dois outros grandes momentos de sua produção teórica, o direito ganha alguma relevância, tornando mais profunda sua interpretação. É o que ocorre em sua obra máxima, “O capital”,18 a partir da qual pode se inferir, não sem muitos cuidados, um sentido tático e histórico para as conquistas político-jurídicas. Ainda que sempre apontando para os limites do direito em sua positivação e ideologia burguesas, Marx permite uma aproximação mais organizacional a ele. E, por fim, caberia ressaltar o famoso texto da “Crítica ao Programa de Gotha”,19 no qual o revolucionário alemão propõe, ao mesmo tempo e para

17 Conferir MARX, Karl. A questão judaica. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2005.18 Buscar o capítulo VIII – “A jornada de trabalho” de MARX, K. O capital: crítica da economia política – O processo de produção do capital. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, vol. I, tomo 1, 1983, p. 187 e seguintes.19 Ver MARX, K. “Crítica ao Programa de Gotha”. Em: _____; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, vol. 2, s. d., p. 203-225.

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alguns intérpretes,20 uma crítica ao direito burguês e uma possibilidade de uma teoria da justiça que resgate o sentido histórico do direito mesmo.

Muita divergência há sobre a posição de Marx acerca do direito, mas talvez o que mais importa de sua obra para a análise do fenômeno político-jurídico seja justamente seu método materialista histórico cujo primado se encontra na visão da totalidade (como postulam seus mais autorizados intérpretes, tais quais Lukács, Bloch e Kosik) ainda que amparado por uma descoberta ética, a exterioridade do sistema (segundo a interpretação de Dussel).

De todo modo, fica a possibilidade de uma interpretação sobre a relação entre Marx e o direito como que sendo guiada por uma não resposta ao problema de sua necessidade. Avaliamos esta dualidade entre o direito e o não-direito em Marx como uma tensão congênita ao próprio fenômeno jurídico-político, captada – ainda que assistematicamente – pelo eminente filósofo da práxis. E justamente nessa linha de raciocínio é que nos foi possível, em outro lugar, avançar para o problema do poder, já que direito é espécie de organização política, a qual, sob o modo de produção capitalista, erigiu-se a partir do estado como pretensa fonte única de produção do direito. Trata-se de uma autoproclamação da ideologia monista e estatal acerca do fenômeno jurídico-político, o qual, entretanto, não se verifica na prática das formas e modos de vida para além de o aceito como normal pelo capitalismo. Assim é que, se há uma necessidade deontológica da monocultura do jurídico, há, ao mesmo tempo, uma impossibilidade de sua persistência, sendo que a pluralidade vige e se destaca em qualquer observação sociológica.

Ocorre que esta discussão tem de transcender a mera observação das fontes outras de produção de organização política que não o estado, já que as interpretações do pluralismo jurídico são insuficientes para explicar a pluralidade a qual enfatizam. Daí lançar mão, ainda que com uma dosagem metafórica mesmo que não só, da noção de poder dual latente – ou poder dual/plural – seja imperativo para compreensão de realidades que se opõem não só à monocultura do direito como também a sua possibilidade de existência no seio mesmo do capitalismo. Se é assim, voltamos a Marx e incorremos na tensão congênita entre a necessidade do direito e a necessidade igual de um não-direito.21

Esta mesma tensão, captada por e a partir de Marx, subsistira no debate prático acerca do direito por ocasião da realização da revolução russa.

20 Conforme LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor; Instituto dos Advogados do RS, 1983.21 Em resumo, foi o que propusemos em nossos estudos de mestrado, para o qual indicamos nossa dissertação: PAZELLO, Ricardo Prestes. A produção da vida e o poder dual do pluralismo jurídico insurgente: ensaio para uma teoria de libertação dos movimentos populares no choro-canção latino-americano. Florianópolis: Curso de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2010, p. 107 e seguintes.

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Os teóricos do direito soviéticos, entrementes, apesar de procurarem todos anunciar a extinguibilidade do direito no longo prazo, nem sempre concordaram com as conseqüências do não-direito no curtíssimo prazo. Daí a famosa polêmica entre Stucka e Pachukanis, em que o primeiro entendia o direito como “um sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe e tutelado pela força organizada desta classe”,22 enquanto que, para o segundo, a inversão do caráter de classe do direito seria impossível, já que “o fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico”.23 Dessa forma, ainda que ambos entendam o direito como relações sociais, Pachukanis o entende como um momento das relações econômicas, mas com sua especificidade histórica, qual seja, apresentar-se como forma legitimadora das relações sociais burguesas.

O debate entre os juristas soviéticos restou inconcluso e adormeceu na alvorada estaliniana. Viria a ser relembrado no reascenso das teorias críticas do direito, a partir da década de 1970, quando voltam a fazer sentido as críticas ao direito desde a perspectiva marxista.

Referidas teorias críticas, teriam vez na Europa e na América Latina.24 Esboçariam, no caso europeu e a título de exemplo, panoramas epistemológicos diferenciados, como em Michel Miaille,25 ou mesmo práticas incisivamente contestadoras, como entre os cultores do chamado “uso alternativo do direito”, em especial oriundos das magistraturas italiana e espanhola. Já na América Latina, estas influências se desdobrariam em continuidades mas também com inovações, sendo que obras importantes como as do chileno Eduardo Novoa Monreal,26 do argentino Carlos María Cárcova27 ou dos mexicanos Oscar Correas28 e Jesús Antonio de la Torre Rangel29 seriam representativas de um pensamento autóctone e extremamente criativo, para uma realidade sufocante e marcada pelo colonialismo intelectual.

No Brasil, por sua vez, as teorias críticas do direito também fariam grande estrépito, desde seus pioneiros, notadamente Roberto Lyra Filho,30 Luis

22 STUCKA, Petr Ivanovich. Direito e luta de classes: teoria geral do direito. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988, p. 16.23 PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988, p. 75.24 Conferir: WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.25 Ver MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. Tradução de Ana Prata. 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. 26 Por toda a obra, consultar MONREAL, Eduardo Novoa. O direito como obstáculo à transformação social. Tradução de Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.27 Buscar CÁRCOVA, Carlos María. La opacidad del derecho. Madrid: Trotta, 1998.28 Ver CORREAS, Oscar. Introducción a la crítica del derecho moderno (esbozo). 2 ed. Puebla: Universidad Autónoma de Puebla, 1986.29 Da produção do autor, destaque para RANGEL, Jesús Antonio de la Torre. El derecho que nace del pueblo. Bogotá: FICA; ILSA, 2004.30 Ver o clássico de LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Nova Cultural/ Brasiliense, 1985.

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Alberto Warat31 e Luiz Fernando Coelho,32 até as fecundas correntes inseridas no movimento de direito alternativo. Assim é que teriam vez várias posições teóricas de corte crítico, cabendo ressaltar, porém, três delas: o direito alternativo estritamente, o pluralismo jurídico e o direito insurgente.33

Aqui, portanto, um manancial muito extenso, como fonte para se pensar a descolonialidade e o direito, passando pelas críticas jurídicas. As tributárias do marxismo, certamente, aparecem como as mais pujantes, pela sua radicalidade teórica e prática, já que levam à insurgência e a uma postura revolucionária para com relação ao direito. Vejamos, a seguir e sucintamente, quais os pontos de partida para esse diálogo.

2.2. Pontos de apoio para o resgate das críticas jurídicas

Para efeitos de síntese teórica, necessária devido à impossibilidade de continuarmos nos estendendo sobre o assunto aqui, vale ressaltar quatro grandes críticas ao direito, em suas especificidades, as quais nos levarão para uma intersecção entre a descolonialidade, a crítica ao direito e aos direitos humanos e os movimentos populares. Senão vejamos:

a) a historicidade do direito: a partir do referencial marxiano e marxista, podemos compreender que não há como advogar por um direito universal, esculpido em uma forma atemporal, resistente ao tempo e à história. Mesmo que, desde Marx, visualizemos a necessidade tático-estratégica do direito para assegurar conquistas, oriundas das lutas dos movimentos operários e populares, não nos dão elas a presunção de sua universalidade, uma vez que o não-direito também se desenha a partir da necessidade de sua superação. Como pode restar claro, para além de o problema terminológico (saber se podemos chamar de direito todo fenômeno de organização social ou não), compele-nos a crítica marxista a verificar o que não está-aí. O não-direito é o

31 Obra inspiradora para várias gerações de juristas críticas, destaquemos de WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.32 Conferir uma das primeiras grandes tentativas de sistematização da teoria crítica do direito: COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.33 Sobre o assunto, há frondosa literatura, da qual destacamos as mais significativas produções: CORREAS, Ó. “Derecho alternativo: elementos para una definición”. Em: ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de (org.). Lições de direito alternativo do trabalho. São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 15-28; CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992; ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. “Direito alternativo: notas sobre as condições de possibilidade”. Em: _____ (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1991, p. 71-98; PRESSBURGER, T. Miguel. “Direito, a alternativa”. Em: OAB/RJ. Perspectiva sociológica do direito: dez anos de pesquisa. Rio de Janeiro: Thex; OAB/RJ; Universidade Estácio de Sá, 1995, p. 21-35; ARRUDA JÚNIOR, E. L. de. “Direito alternativo no Brasil: alguns informes e balanços preliminares”. Em: _____ (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, vol. 2, 1992, p. 159-177; CARVALHO, A. B. de. “Direito alternativo: uma revisita conceitual”. Em: Revista de cultura vozes. Petrópolis: Vozes, ano 96, vol. XCVI, n. 3, maio-junho de 2002, p. 18-31; e LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006.

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lado oculto da preocupação política que pode mobilizar os povos, alavancados por seus sujeitos coletivos históricos da transformação social. Dessa forma, aperfeiçoado pelo modo de produção capitalista, sua subsistência para as utópicas (quer dizer, os não-lugares-ainda) formações sociais só se poderá de tal modo que aquilo que hoje soemos chamar direito não mais fará sentido, a despeito de isso não implicar falta de organização política da sociedade (mesmo porque o direito é uma sua espécie apenas).

b) direito como espécie do gênero organização política: exato corolário da crítica anterior, esta formulação devolve a “dignidade política ao direito” (para usar a expressão de Lyra Filho), devolução esta ensejada por uma reformulação da divisão social do trabalho intelectual que não pode optar pela neutralidade, pois aí já se conformaria uma contradição performática. É justamente isto que todas as perspectivas críticas do direito, quase que em uníssono, reverberam, no sentido de demonstrar que neutralidade e apoliticidade jurídicas são discursos e ideologias que se ressentem de aplicabilidade na produção do conhecimento. Mais do que isso, porém, a devolução da dignidade política ao direito, além de colocá-lo na roda da história, permite uma disputa por seu funcionamento, na tática espaço-temporal dos movimentos de massa.

c) superação da forma jurídica: sendo o direito relação social, expressão que suprassume dialeticamente as tradicionais verificações do que seja o ser do direito (dentre as mais entoadas, o normativismo positivista e o jusnaturalismo), faz-se necessário superar sua forma histórica, o que também não deixa de ser conseqüência das teses anteriores. Certamente, este é o grande contributo do debate histórico realizado entre Stucka e Pachukanis. Para ambos, como já dito, o direito conformava relações sociais. Em específico, para Stucka, o direito apresentava-se em três dimensões, três formas jurídicas: uma concreta (as relações econômicas) e duas abstratas (a lei e a ideologia). Mesmo que prevalecendo a concreta, subsiste a forma na transição socialista, o que na obra primeira de Pachukanis já não se constata, pois leva às últimas conseqüências sua crítica ao direito: o antinormativismo, em todos os âmbitos (econômico, positivo e ideológico), deveria guiar a supressão do direito rumo a uma nova forma de organização política, ainda que isto não implique aceitação da metáfora edilícia infra e superetrutura para caracterizar o direito no âmbito da segunda. Ao contrário, para os dois clássicos soviéticos, não há reducionismo da forma jurídica a um dos pólos da metáfora, ainda que se possa discutir acerca de um modelo privatista para a inquirição sobre o direito.

d) necessidade de afirmação histórica de um direito insurgente: dentro do quadro das críticas jurídicas, contudo, subsiste o problema do fenômeno jurídico-político em realidades que não experimentaram a revolução socialista

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ou que não podem levá-la aos últimos ímpetos que uma transformação revolucionária comporta. A transição política também é jurídica e, desde logo, alerta-nos para um poder dual que se gesta nos desvãos da ordem posta. Daí que o direito insurgente34 ganha vez como delineamento crítico que absorve a positividade de combate (das regras postas) assim como o uso alternativo do direito (com interpretações não canônicas das regras estabelecidas). Mas não se resumindo a isto, o direito insurgente consegue encontrar na realidade de resistência das classes populares uma outra forma de se produzir o direito e, no limite, o não-direito. Por isso, a necessidade de renovar constantemente o estatuto teórico dos movimentos populares com relação ao direito posto, teorizado e mesmo o deposto, a fim de que ganhe vida, na legitimidade da dialética entre contestação e reivindicação, uma nova ordem social.

3. Movimentos populares

Para além de, no entanto, as reflexões que promovam uma crítica à estrutura colonial de nosso pensamento filosófico e político e uma crítica à concepção universalista de direito, é preciso afirmar o sujeito histórico da batalha insurgente e descolonial que se afigurou até aqui. Eis que os movimentos populares se colocam, portanto, como referencial não só de análises mas também como protagonistas necessários para que medre toda a crítica até aqui arquitetada.

Dessarte, os movimentos populares, poderíamos dizer, se apresentam como os novos sujeitos históricos da transformação social, ressignificando a organização popular no sistema-mundo capitalista, moderno e colonial.

Se, a partir de uma perspectiva sociológica latino-americana, temos importantes refundações acerca da temática do sujeito coletivo revolucionário, não significa isto pôr de lado a importância e até mesmo protagonismo da classe trabalhadora. No entanto, ela deve aparecer com a silhueta que melhor lhe caracteriza nos tempos atuais. Mesmo que devamos adotar uma postura crítica quanto à messiânica atribuição que se dá a seu ontológico potencial revolucionário, longe das mediações próprias da produção da vida em seus aspectos materiais (e não só identitários, ainda que sejam estes necessários) nada se poderá avançar. Descrer da ontologia messiânica não pode equivaler a descrença política naquele sujeito histórico que se apresenta com o maior

34 Direito insurgente é expressão que inspirou vários assessores jurídicos populares, cabendo destacar: BALDEZ, Miguel Lanzellotti. Sobre o papel do direito na sociedade capitalista – Ocupações coletivas: direito insurgente. Petrópolis: Centro de Defesa dos Direitos Humanos, 1989; PRESSBURGER, T. M. “Direito insurgente: o direito dos oprimidos”. Em: _____; RECH, Daniel; ROCHA, Osvaldo Alencar; RANGEL, Jesús Antonio de la Torre. Direito insurgente: o direito dos oprimidos. Rio de Janeiro: IAJUP; FASE, 1990, p. 6-12; e ALFONSIN, Jacques Távora. “Negros e índios: exemplos de um direito popular de desobediência, hoje refletidos nas ‘invasões’ de terra”. Em: _____; SOUZA Filho, Carlos Frederico Marés; ROCHA, Osvaldo de Alencar. Negros e índios no cativeiro da terra. Rio de Janeiro: AJUP; FASE, 1989, p. 17-37.

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potencial transformador, que não é mera transformação política, mas também econômica e cultural.

Dessa forma, vemos transfundido o debate no panorama latino-americano, quando Ruy Mauro Marini propõe o alargamento do conceito de “classe operária”, já que “restringir a classe operária aos trabalhadores assalariados que produzem a riqueza material, isto é, o valor de uso sobre o qual repousa o conceito de valor, corresponde a perder de vista o processo global da reprodução capitalista”.35

Interessante é ver, igualmente, os desdobramentos da mesma reflexão, quando autores como o já citado Enrique Dussel ou Ricardo Antunes, propõem novos termos para o debate. No primeiro, vemos surgir o conceito de “povo”,36 como bloco histórico dos oprimidos (e não no sentido clássico e liberal), ao passo que, no segundo, tem vez uma nova fórmula teórica, bastante inovadora, especialmente quando teve de se debater com os teóricos do fim do trabalho. Trata-se da classe-que-vive-do-trabalho,37 conformando todos os trabalhadores subordinados ao capital, seja no campo seja nas cidades. A rica discussão poderia nos levar longe, mas o que importa nela é resgatar o essencial para a caracterização do que aqui entendemos por movimentos populares.

Para os fins de nossa interpretação, interessa notar que as três considerações levam ao cerne da produção da vida, ou seja, os modos de cooperação e as formas de organização do trabalho. O trabalho remanesce em sua centralidade e apesar de ganhar tonalidades não estritamente materiais ainda tem de ser encarado como o rotor principal para se considerar novas realidades. As classes populares – sejam vistas como operárias, povo ou que-vivem-do-trabalho – caracterizam-se pela produção da vida em sua totalidade, mesmo que entronizando reivindicações particulares e corporativas.

A literatura sobre movimentos sociais é bastante abundante, convindo resgatar um conceito clássico dentro desta tendência das teorias sociais latino-americanas. Assim, uma vez mais resgatemos a concepção geral de movimentos sociais: “uma ação grupal para transformação (a práxis) voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção)”.38 Aqui está o conceito mais rigoroso e flexível, ao mesmo tempo, para a idéia de

35 MARINI, Ruy Mauro. “O conceito de trabalho produtivo”. Em: _____. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000, p. 249.36 A título de resumo, ver DUSSEL, E. D. Ética comunitária: liberta o pobre! Tradução de Jaime Clasen. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 93 e seguintes.37 Conferir, por toda a obra do autor: ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 10 reimp. São Paulo: Boitempo, 2009.38 SCHERER-WARREN, Ilse. Movimentos sociais: um ensaio de interpretação sociológica. 2 ed. Florianópolis: UFSC, 1987, p. 13.

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movimentos sociais. Rigoroso porque busca sintetizar todos os seus elementos; flexível, porque não se restringe a considerar um movimento em conformidade com sua posição política ou de classe.

É justamente por isso que sempre é importante resgatar posicionamentos que coloquem no quadro social devido o que significam tais movimentos. Daí, portanto, a necessidade de definir uma espécie de movimentos sociais, que chamamos de movimentos populares, na esteira de uma antiga reflexão feita por Daniel Camacho.39 Os movimentos populares se apresentariam, portanto, como dentro dos sujeitos históricos da transformação com suas potencialidades de mudanças estruturais da realidade.

A produção da vida, em seus condicionamentos materiais, é pedra angular para o potencial transformador da realidade. Ainda que com níveis políticos de radicalidade distintos (bastando ver as guerrilhas rurais que impulsionaram as revoluções socialistas latino-americanas, como a cubana e a nicaragüense; a insurgência de um movimento popular da feição que tem os zapatistas chiapanecos; ou a mobilização e visibilidade social dos sem-terra, no Brasil), os movimentos populares têm de caminhar para a conjunção das reivindicações de toda a sociedade, naquilo que têm elas de progressista, sem perder de vista sua sustentabilidade e sua própria amálgama que os leva à extrema eficiência na organização popular.

A descolonialidade do poder e do saber passa pelo protagonismo dos movimentos populares, como classe popular organizada, inspirando a crítica jurídica a com eles se irmanar, mormente se fundindo na práxis das assessorias jurídicas populares, sejam universitárias, sejam advocatícias, sejam políticas e pedagógicas junto a tais movimentos.

Sob o signo da resistência, os movimentos populares catapultam a uma análoga resistência no âmbito do direito, demonstrando que este não pode nunca ser visto e encarado como a “vanguarda” do processo de transformação revolucionária da realidade.

4. Repensando a crítica aos direitos humanos

Ainda que bastante superficialmente, os elementos trazidos nos três pontos anteriores (pensamento descolonial, crítica jurídica e movimentos populares) nos impelem a uma reflexão sobre o significado histórico dos direitos humanos mesmos, não por conveniência do debate, mas pela reincidência que o mote adquire em sede de tais reflexões.

Os direitos humanos, como expressão sempre presente nos debates políticos e jurídicos contemporâneos, são tema polêmico e prenhe

39 CAMACHO, Daniel. “Movimentos sociais: algumas discussões conceituais”. Em: SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. (orgs.) Uma revolução no cotidiano?: os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 214-245.

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de contradições. Polêmico devido ao fato de que se consagram, discursiva e ideologicamente, como proposição da teoria e prática liberais e burguesas; contraditório porque costuma expressar realidades geopoliticamente universalizadas e classificado erraticamente conforme a concepção político-jurídica que lhe acompanha ou mesmo de acordo com a convenção internacional ou legislação nacional enfocada no caso concreto.

Para nós, aqui, cumpre repensar a crítica aos direitos humanos em conformidade com as alamedas abertas pelas três instâncias analíticas que baseiam nosso trabalho. A partir delas, tentemos esboçar esta revisão, salvaguardando-nos de reducionismos laudatórios ou demonizadores sobre o assunto, compreendo a noção de “crítica” de uma maneira específica e tríplice, de acordo com suas raízes etimológicas: crítica como crivo de uma análise sistemática e referenciada; crítica como crise em que se coloca determinada verdade a partir de uma visão de mundo; e crítica como critério a partir do qual se constrói uma análise da realidade.

4.1. Os direitos humanos sob o crivo do pensamento descolonial

Como pode ser intuído do que até aqui ficou dito, a utlização da política da libertação latino-americana se dá pelos filtros da crítica da colonialidade do poder e do saber, assim como da perspectiva materialista histórica e da presença, sociologicamente constatada, de um sujeito histórico da transformação social considerado sob o prisma dos movimentos populares.

De modo mais geral, pudemos verificar que a abordagem descolonialista tem dois pontos de partida específicos: a crítica à formação do capitalismo a partir da conquista da América e a crítica a uma racionalidade colonizada pela epistemologia moderna. De um lado, pois bem, o símbolo histórico da conquista européia fica cingido à consolidação do estado moderno e seu aparato repressivo; de outro, ganha premência uma visão de mundo geopoliticamente concebida, a partir do centro do capitalismo tardio.

A gnosiologia liminar de Walter Mignolo aponta para o finca-pé transmoderno que invoca a metáfora das margens internas e externas do sistema-mundo para expressar que conhecimento é válido. Nesse sentido, os direitos humanos se apresentam como conquista emancipatória, mas nunca de libertação, porque justamente crias apologéticas do antropocentrismo moderno. É Mignolo quem diz: “enfatizo ‘libertação’ porque estou argumentando aqui na perspectiva das fronteiras externas do sistema mundial colonial/moderno. E todos nós sabemos que ‘emancipação’ é o termo usado para o mesmo propósito dentro das fronteiras internas do sistema mundial colonial/moderno”.40

40 MIGNOLO, W. D. Histórias locais/Projetos globais, p. 28.

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Por outro lado, Aníbal Quijano crítica a constituição do estado moderno como o outro lado da moeda do colonialismo. A depender, portanto, da concepção de direito, em geral, que se despose, a de direitos humanos restará mais ou menos atrelada à própria colonialidade construída à força e custando muito sangue.

Tratamento exegético comum entre os pós-colonialistas e mesmo entre os descolonialistas é a exploração das similaridades interculturais dos direitos humanos entre formações sociais, não jungidas pelo ocidente moderno. Neste exato sentido, procura-se dar um fôlego a mais aos direitos humanos como conquistas indispensáveis dentro da modernidade. No entanto, sob o crivo da radicalização da gnosiologia liminar e da crítica ao estado moderno (escusando, nesse sentido, de qualquer responsabilidade interpretativa os autores citados), os direitos humanos careceriam de fundamentação, pois não deixariam de exprimir, mesmo que interculturalmente matizados, hálitos etnocentristas, especialmente se enfocados a partir da fundamentalidade da propriedade privada dos meios de produção e da controvérsia com referência aos direitos sociais e ambientais, que o século XX consagrou.

Mais do que isso, contudo, se servirem os “direitos humanos” para uma escamoteação do poder, não podem figurar como instância universal e nem mesmo como horizonte deôntico-teórico máximo pela teria política transmoderna. A autoderminação dos povos, sua autogestão interna e igualdade de condições e em conformidade com as necessidades gerais é que devem representar isso. Ainda assim, entretanto, permanece a discussão terminológica, a qual só pode ser realmente enfrentada a partir da perspectiva do poder obediencial (o “mandar obedecendo” dos zapatistas), tal qual tanto frisou Dussel, já que por seu intermédio é que se realiza a aproximação com o “reino da liberdade”.

4.2. Os direitos humanos em crise pelo método materialista histórico

O materialismo histórico, inserto na suprassunção dialética da totalidade com a exterioridade, aprofunda ainda mais a discussão sobre os direitos humanos, na medida em que desdogmatiza-o, retirando-lhe o cânone discursivo que lhe resguarda de qualquer ataque crítico. Assim, entra em crise uma estrutura discursiva que se pretende universal espacialmente.

Se Marx, em “A questão judaica”, enfatizava que os direitos dos homens e dos cidadãos diferenciavam os dois âmbitos da vida política, dando aos segundos a igualdade formal, enquanto que aos primeiros a segurança, liberdade e igualdade para poder deter uma propriedade privada; se isto se dava, a partir de uma análise sócio-histórica a mesma realidade não se altera no âmbito do direito sagrado de propriedade.

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Mais do que isso, porém: se, conforme consignamos da crítica jurídica (notadamente, a marxista), a forma jurídica não é universal, o que nos levaria a crer que a forma jurídico-humana (ou seja, dos direitos humanos, como especificidade do direito em geral) não teria uma história?

Mais do que forma, porém, o direito é visto, com Stucka, como concretude nas relações econômicos, o que faria com que Pachukanis concordasse e radicalizasse sua conclusão: não sendo só forma, portanto sendo conteúdo, o direito é parte inextricável das relações sociais capitalistas e, devido a isso, tem de perecer com o perecimento destas. Pois bem, a base material do direito nos indica justamente para a certificação da crítica de Marx, sendo que a liberdade, igualdade e segurança dos proprietários privados não podem ser esquecidos.

Daí que as aparências deixam de ter seu estatuto de verdade irreprimível, e a essência da sociedade capitalista se verifica até mesmo nos confins da filosofia do direito e dos direitos humanos (não importando isto, como já mencionado, uma rejeição do uso tático do direito, como Marx propriamente deu mostra no decorrer de sua obra).

4.3. Os direitos humanos e o critério dos movimentos populares

Por fim, cabe enfrentar os direitos humanos a partir do critério dos movimentos populares. A um olhar mais superficial, parecerá que justamente no último momento de nossa argumentação daremos um passo atrás e nos contrairemos frente à inevitabilidade da defesa de direitos humanos universais. Mesmo que ressentidos de não podermos explorar as discussões no âmbito da teoria dos direitos humanos, que superam a dicotomia universalidade-particularidade (como explícita na obra de uma Joaquin Herrera Flores,41 por exemplo), é preciso notar que as concepções mais radicais acerca da realidade devem vir acompanhadas das práticas igualmente as mais radicalizadas. Caso contrário, vale a imagem rabiscada por Cortázar: “pero las cosas invisibles necesitan encarnarse, las ideas caen a la tierra como palomas muertas”.42

Assim, para além de um uso tático do direito (seja como positividade de combate, uso alternativo ou direito insurgente), deve-se dialogar com as concepções defendidas pelos movimentos populares. E não só: deve-se ter responsabilidade para com as vidas das mulheres e homens que os integram.

Daí que considerando o aspecto de resistência acentuado pela assessoria jurídica popular, é possível lançar mão do conceito de direitos

41 Ver, por exemplo: FLORES, Joaquín Herrera. “Hacia una visión compleja de los derechos humanos”. Em: _____ (ed.). El vuelo de Anteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p. 19-78.42 CORTÁZAR, Julio. “Qué tal, López”. Em _____. Historias de cronopios y de famas. 1 reimp. Buenos Aires: Suma de Letras, 2004, p 89.

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humanos se resgatado pelos movimentos populares. Lançar mão não significa submeter-se cegamente, mas a condição de intelectual que, ainda que orgânico, não se concretiza no dia-a-dia da produção da vida dos movimentos populares não pode ter arrogância – como também não o absenteísmo – de ignorar a visão do mundo dos sujeitos históricos aos quais se vincula. Na disputa pelas idéias, é que se deve construir um arsenal teórico, que terá maiores capacidades de anúncio (considerando a dialética denúncia-anúncio, própria do pensamento crítico latino-americano) quanto mais as práticas propuserem-se à revolução das estruturas.

Enfim, a crítica aos direitos humanos, conseqüente com os marcos teóricos que conduzem a um pensamento descolonizado e questionador do direito como forma histórica do modo de produção capitalista encaminha, também, à conseqüência de um direito insurgente, que tanto mais se insurgirá quanto mais se agudizarem as contradições que envolvem a classe-que-vive-do-trabalho. Mas esta insurgência não se faz ao largo da tensão congênita ao direito mesmo, conforme depreendida por Marx: vivemos sob a necessidade do direito mas premidos pela igualmente tendencial necessidade de um não-direito.

5. Referências críticas

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A ASSESSORIA ESTUDANTIL COM MOVIMENTOS SOCIAIS BRASILEIROS NAS DÉCADAS DE 1960 A 20001

Luiz Otávio Ribas2

Introdução

A proposta é de reflexão sobre as práticas jurídicas insurgentes com base nas experiências de assessoria jurídica popular universitária desenvolvidas por grupos de estudantes em faculdades de direito brasileiras.3 As práticas jurídicas insurgentes são aquelas realizadas por grupos e movimentos sociais na insurgência ao modelo jurídico hegemônico liberal-capitalista, que está voltado para a alienação, principalmente por meio do desconhecimento sobre o direito. A assessoria jurídica popular, amplamente concebida, consiste no trabalho desenvolvido por advogados populares, estudantes, educadores, militantes dos direitos humanos em geral, entre outros; de assistência, orientação jurídica e/ou educação popular com movimentos sociais; com o objetivo de viabilizar um diálogo sobre os principais problemas enfrentados pelo povo na busca pela realização de direitos fundamentais para uma vida com dignidade; seja por meio dos mecanismos oficiais, institucionais, jurídicos, extrajurídicos, políticos, e da conscientização.4

Esta prática quando desenvolvida por estudantes designa-se assessoria estudantil, para diferenciá-la da assessoria universitária amplamente concebida, em virtude da: (a) ênfase nas atividades educativas; (b) o protagonismo desses sujeitos na gestão e organização dos grupos; e (c) a autonomia desses grupos em relação à própria universidade e outras instituições.

A questão colocada é buscar responder sobre se essa prática colabora com a realização dos direitos humanos. Para iniciar uma resposta é preciso

1 Artigo apresentado no I Congresso Latino-americano de Direitos Humanos e Pluralismo Jurídico, em 22 de agosto de 2008, na Universidade Federal de Santa Catarina, na cidade de Florianópolis. Texto revisado pelo autor em setembro de 2008. Disponível em: www.nepe.ufsc.br/congresso/artigos.php2 Atualmente é doutorando em Filosofia e Teoria do Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Possui mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009) e especialização em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Sociologia Jurídica, atuando principalmente nos seguintes temas: assessoria jurídica popular e direito insurgente. Colunista do blogue da Assessoria Jurídica Popular. - http://lattes.cnpq.br/12650280442054673 Para referir-se a essa prática utiliza-se a expressão “assessoria estudantil”. Para destacar o protagonismo dos estudantes na proposição, organização e autogestão das atividades.4 Além da assessoria jurídica popular como serviços legais inovadores, as práticas jurídicas insurgentes são compostas por aquelas desenvolvidas pelos trabalhadores jurídicos alternativos, como juízes, promotores, defensores públicos, advogados, entre outros; assim como as atividades de mediação comunitária, voltadas para trabalhar os conflitos coletivos; ainda atos de desobediência civil e no exercício do direito de resistência, quando estes incluírem uma ética coletiva. Ainda incluem-se nas práticas jurídicas insurgentes os conceitos utilizados por outros grupos de advocacia popular latino-americanos como os servicios legales alternativos e servicios inovativos.

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apresentar um conceito melhor elaborado e o contexto histórico da assessoria estudantil como prática jurídica insurgente. Dessa forma, avança-se para apresentar a educação popular em direitos humanos com movimentos populares como uma alternativa para a conscientização.

1. A assessoria estudantil como prática jurídica insurgente

De início, precisa-se definir bem o conceito de assessoria estudantil a partir das principais referências a que está ligada. Para tanto, traz-se um breve histórico das práticas jurídicas insurgentes no contexto latino-americano, embora não se pretenda esgotar todas as experiências existentes. Por isso, inicia-se com o contexto das ditaduras militares que assolaram toda América Latina, a partir da década de 1960,5 uma vez que tanto as experiências estudantis quanto a dos advogados populares, precursores da assessoria jurídica popular no Brasil, foram decisivamente influenciadas por este contexto, e forjadas a partir da resistência democrática a estes regimes totalitários.

A assessoria jurídica popular iniciou a ser desenvolvida, de forma mais bem organizada, por grupos de advogados com metodologias de formação comunitária na década de 1980. A assessoria passou a contar com estudantes de direito de forma organizada na década de 1990. O contexto de surgimento dessas atividades ainda precisa ser mais bem estudado. Por enquanto, pode-se afirmar que advogados e estudantes buscaram inspiração nos movimentos de educação popular e de resistência contra a ditadura a partir da década de 1960. No período pós-1988 seguiram em conjunto com militantes de alguns movimentos sociais, grupos religiosos, partidos políticos de esquerda e organizações não-governamentais.

No período de estado de exceção declarado no Brasil muitos advogados populares estiveram engajados na defesa de presos políticos e outras pessoas envolvidas na resistência ao governo de regime militar. Não era tarefa fácil representar um cliente que na maioria das vezes sequer tinha processo judicial ou militar instaurado, ou representar um cliente que estava “desaparecido”, que havia sido torturado, violado em toda sua dignidade, talvez morto “não oficialmente”. Esses advogados e outras organizações civis da sociedade brasileira, incluindo a Ordem dos Advogados do Brasil, envolveram-se diretamente no movimento de democratização, a partir da década de 1980.

Essa retrospectiva é fundamental uma vez que a gênese das práticas jurídicas insurgentes está no contexto de luta contra a repressão política dos governos militares latino-americanos.

Uma das primeiras experiências surgidas no Brasil foi o Instituto Apoio

5 Sobre esse período histórico no Brasil ver: MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil 1964-1985. São Paulo: Edusc, 2005; ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.

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Jurídico Popular, do Rio de Janeiro.6 Dedicavam-se ao que se convencionou chamar de “serviços legais inovadores”, que representam uma prática jurídica voltada para proporcionar instrumentos oficiais e não oficiais do direito para efetivação do acesso à justiça. Também, alguns grupos trabalhavam com formação jurídica de grupos populares, como por exemplo, o programa “juristas leigos” da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), que oferecia oficinas de educação popular para lideranças atuarem na resolução de conflitos e como multiplicadores dos debates.

A respeito dos objetivos dos serviços legais inovadores, Celso Campilongo afirma que “enfatizam a organização popular, as ações coletivas, as demandas de impacto social e a ética comunitária”.7 Thomaz Miguel Pressburger complementa que “a atuação junto às comunidades objetiva principalmente a formação de uma consciência quanto às possibilidades de mudanças da realidade, a partir de ações organizadas”.8 Esse trabalho coletivo para uma ação transformadora do direito relaciona-se com a reflexão sobre as possibilidades de construção de alternativas para a luta por acesso à justiça.

Pressburger enumera alguns elementos essenciais do processo de construção dos serviços legais inovadores no Brasil:

1 – a continuidade de violações graves de direitos humanos, até mesmo por parte do Estado, mesmo após o fim do regime ditatorial; 2 – a compreensão de que o conceito de direitos humanos engloba inúmeras necessidades humanas, além das pleiteadas pelo movimento durante a ditadura; 3 – o preconceito de classe do Estado no uso de seu poder repressivo policial, e a segregação do povo pobre; 4 – a criação em comunidades urbanas e rurais de normas à margem do Estado de Direito, baseadas no consenso e quase sempre legítimas, adequadas e eficientes, baseadas na solidariedade e que não reproduzem o modo de produção capitalista; 5 – a adoção de um ponto de vista teórico-científico que possibilita relativizar o monopólio radical de produção e circulação do direito pelo Estado, este que reconhece cidadania apenas aos formalmente vinculados ao mercado, ao consumo.9

Na busca de um conceito amplo sobre serviços legais inovadores, aproveita-se a diferenciação destes com os serviços legais tradicionais, feita por Celso Campilongo:

6 O AJUP foi fundado em 1987, atuava no apoio jurídico a movimentos sociais e no fomento à criação de outros grupos de advogados populares. Além disso, a entidade atuava na formação e capacitação de lideranças comunitárias, formação crítica de estudantes estagiários e na veiculação de debates, registros de eventos, e publicações de artigos vinculados às causas populares. Formou o conceito de direito insurgente, nascente das lutas das demandas populares, que não raro se chocava com os padrões da legalidade oficial. Essa entidade atuava de modo multidisciplinar, em parceria com sociólogos, antropólogos e educadores. A entidade teve períodos em que teve apoio financeiro da Fundação Ford, assim como do Governo do Estado do Rio de Janeiro (1992/1993). Por problemas financeiros, dentre outras razões, a associação foi dissolvida em 2000. LUZ, Vladimir Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 130-135.7 CAMPILONGO, Celso. Assistência jurídica e realidade social: apontamentos para uma tipologia dos serviços legais. Em: CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel. Discutindo a assessoria popular. Rio de Janeiro: AJUP/ FASE, 1991, p. 24.8 Ibidem, p. 37.9 Ibidem, p. 38.

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serviços legais tradicionais - microética, paternalismo, assistencialismo, apatia, mistério, magia mística, hermenêutica formal, controle social, profissionais exclusivamente do direito, adjudicação institucional-formal, e ética utilitária; serviços legais inovadores - macroética, organização, participação, desencantamento, magia emancipatória, exegese socialmente orientada, acesso igualitário a direitos, técnicos de diferentes áreas, inúmeras formas de resolução de conflitos, e ética comunitarista.10

Esse conceito de serviços legais inovadores pode enquadrar ainda a prática do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), de Olinda, PE, com nomes como Melillo Diniz11; a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), em Salvador, BA e muitas outras experiências de advogados populares no mesmo período (desde a década de 1970 e 1980).12 Destaca-se a criação, na década de 1990, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renaap), para articular o apoio jurídico a grupos e movimentos populares em todo país. Uma das mais destacadas entidades de advocacia popular brasileiras é a Acesso Cidadania e Direitos Humanos, de Porto Alegre, RS e, ainda, o escritório Terra de Direitos13, em Curitiba, PR, e muitos outras cidades do país.

Nessa linha ainda se destacam outros grupos de advogados populares em toda a América Latina, que a princípio, apresentam-se como “serviços jurídicos alternativos”, manejando com os vocábulos “alternativo”, “inovador”, “popular”, “crítico” e outros similares.14 Este conceito é desenvolvido por diferentes grupos de advogados populares, como, por exemplo, na Colômbia, Chile, Argentina, entre outros.15 Um exemplo é o Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos (Ilsa), que publica a revista El otro derecho, com nomes como Victor Moncayo, da Colômbia.16

10 Ibidem, p. 08-22.11 O Gajop nasceu a partir da Fase, do Centro Luiz Freire (1972) e da Comissão de Justiça e Paz (1977), em 1981, reunindo advogados que trabalhavam na defesa de presos políticos durante o regime militar, com objetivos como a educação, assessoria, capacitação jurídica, assim como defesa e promoção dos direitos humanos. Dedicava-se à assessoria de movimentos populares, à realização de eventos de debate, à elaboração de material educativo de divulgação como cartilhas, à capacitação de advogados. Contava com equipe multidisciplinar, inclusive em parceria com psicólogos. O Gajop ainda trabalha na região de Recife; algumas de suas ações se modificaram e atualmente desenvolve projetos de co-gestão com o Estado. LUZ, Assessoria Jurídica Popular no Brasil, 2008, p. 135-140.12 A AATR, fundada na década de 1960, é pioneira, juntamente com o Iajup, em projetos de educação popular com a experiência denominada “Juristas Leigos”, assim como a Themis, entidade fundada em 1993, voltada para questões de gênero e direitos humanos, com o projeto denominado “Promotoras Legais Populares”. LUZ, Op. Cit., p. 129.13 Consultar: http://www.terradedireitos.org.br/14 INSTITUTO LATINOAMERICANO DE SERVICIOS LEGALES ALTERNATIVOS. Qué es ILSA, hacia dónde va? . El otro Derecho, Bogotá, n. 3, jul. 1989, p. 07.15 Alguns exemplos são Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos (Ilsa), em Bogotá, Colômbia, www.ilsa.org.co; o Centro de Reflección y Acción para el Cambio (Quercum), no Chile; e o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), de 1979, de Buenos Aires, Argentina – www.cels.org.ar, ainda o projeto FORJA – Formación Jurídica para la Acción, no Chile, www.redjusticia.forja.cl.16 Outros exemplos a serem explorados em outros trabalhos são as experiências da Universidade Popular, na Praça de Maio, em Buenos Aires, Argentina – www.madres.org/, Assim como a Universidad de los Trabajadores, que funciona na Argentina e no Uruguai – www.utal.org/.

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Conforme Vladimir Luz, o advogado popular Manuel Jacques foi um dos primeiros a utilizar o termo “servicios legales alternativos”, no final da década de 1980, no Chile, ao passo que na década de 1990 José Hurtado utilizava o termo “servicios inovativos”, na Colômbia.17

Primeiramente, o serviço jurídico alternativo está

inscrito dentro de um grande projeto de fazer que o povo seja sujeito de sua história, que faça as leis para seu proveito e as utilize para defender seus interesses. Dado que isto não ocorre assim porque estamos em uma sociedade injusta, o exercício do Direito deve ir acompanhado da educação e da organização popular.[...] Se falamos de alternativo, fazemos referindo-nos a uma sociedade cujos valores não compartilhamos, como tampouco sua fundamentação teórica, nem as leis que fazem cumprir esses valores. No entanto, estamos obrigados a viver nesta sociedade. [...] O alternativo move-se dentro da antecipação de uma sociedade nova que ainda não existe e a contestação da que existe.18

A expressão “alternativo” não representa todas as práticas jurídicas descritas neste trabalho; por isso, adota-se o termo “práticas jurídicas insurgentes” para reunir a descrição de todas as atividades já referidas: serviços legais inovadores, assessoria jurídica popular, servicios legales alternativos, servicios inovativos.

Conforme Vladimir Luz, os serviços legais populares ou inovadores têm como exemplo tipicamente brasileiro as entidades de “assessoria jurídica popular”,19 que dividem-se em dois modelos: o campo da advocacia militante e o campo da assessoria universitária.20

A assessoria universitária engloba as atividades de assessoria jurídica popular a partir de projetos ligados à universidades. Um dos trabalhos referência no Brasil é o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos na Universidade de Brasília, que na década de 1990 desenvolveu o projeto de extensão universitária no qual publicava as apostilas do “Direito achado na rua”21,, que foram utilizadas por centenas de grupos e movimentos populares, como sindicatos e associações de bairro, em grupos de discussão. O conteúdo das apostilas conta com textos de advogados, juízes, professores de direito, pesquisadores etc; sobre temas como acesso à justiça, direito agrário e direito

17 LUZ, Assessoria jurídica popular no Brasil, 2008, p. 49. Pouco se sabe desse período em relação à advocacia popular, essa obra é precursora nesse estudo e nos desafia a aprofundar suas origens.18 INSTITUTO LATINOAMERICANO DE SERVICIOS LEGALES ALTERNATIVOS, El otro Derecho, 1989, p. 0919 Por assessoria jurídica popular entende-se a prática jurídica insurgente desenvolvida principalmente no Brasil, nas décadas de 1960 até hoje, por advogados, estudantes e militantes de direitos humanos, com um trabalho que mescla assessoria jurídica e atividades de educação popular, com grupos e movimentos populares.20 LUZ, Op. Cit., 2008, p. 73-75.21 O termo “direito achado na rua” é de autoria de Roberto Lyra Filho, fundador da Nova Escola Jurídica, que procura pensar o direito derivado da ação dos movimentos populares, ou seja, como modelo de legítima organização social da liberdade, e explorar as normas que surgem a partir dos grupos que estão formalmente afastados do processo de criação de normas “legítimas”. LYRA FILHO apud SOUSA JUNIOR, José Geraldo (Org.). O Direito achado na rua: introdução crítica ao direito agrário. São Paulo: Imprensa oficial do estado, 2002. v. 3. p. 17-18.

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do trabalho.22 Essa experiência tem um mérito que refere-se à abrangência nacional e o número de movimentos sociais envolvidos nos debates. No entanto, questiona-se a efetividade de um trabalho que foi desenvolvido por terceiros, em relação ao grupo que desenvolveu o material, nem todos com experiência em atividades educativas ou acostumados com a linguagem jurídica e acadêmica dos textos.

Na assessoria universitária ainda inclui-se a assessoria estudantil, que surge a partir da década de 1950, com a estagnação da sociedade civil em geral, e as instiuições, em lidarem com o acesso à justiça no Brasil. A primeira experiência que tem-se notícia nesse período é o Serviço de Assistência Judiciária Gratuita da Faculdade de Direito da UFRGS, que na época era órgão do Centro Acadêmico André da Rocha, que buscava oferecer assistência jurídica para a comunidade gratuitamente. Na década de 1960 era o único Serviço de Assistência Judiciária nas faculdades brasileiras que havia prosperado, mas, mesmo assim, passou metade da década com as portas fechadas pela ditadura militar, só voltando a abri-las em meados da década de 1970. Na década de 1980 viveu um período de crise com o progressivo esvaziamento da entidade, só retornando em 1988, por meio de um convênio realizado com a Legião Brasileira de Assistência (LBA), quando a entidade teve entrada de recursos financeiros. Contudo, houve grande debate sobre a falência do serviço assistencialista e o verdadeiro papel das assistências jurídicas na sociedade, concluindo-se que era preciso ir ao encontro da comunidade e realizar uma reformulação da estrutura do Saju.23

Outro grupo precursor foi, conforme conta Vladimir Luz, o Serviço de Assistência Judiciária (Saju UFBA), fundado na década de 1960 e, hoje denomina-se “Serviço de Apoio Jurídico”; também teve seus trabalhos suspensos em 1964 e só retornou na década de 1980.24

Nas décadas de 1970 e 1980, vários grupos estudantis tiveram as portas fechadas pela ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, o que não impediu o trabalho de vários assessores individualmente, porém foram encerradas as atividades no âmbito institucional da universidade. Pode-se afirmar que as seqüelas desse período ainda são sentidas hoje em dia, quando da resignação

22 Consultar: http://www.unb.br/fd/nep/direitonaruanep.htm. Outro grupo a ser referido é o “Pólos de Cidadania”, da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenado pela Professora Miracy Gustin.23 Na década de 1990, no Saju UFRGS, surgiram os grupos temáticos “Grupo de Regularização Fundiária” e “Grupo dos Direitos da Mulher”. O trabalho individual não foi extinto, mas passou a ser facultativo, pois a obrigatoriedade era a participação nos grupos, onde o trabalho era coletivo e dirigido à comunidade. Existia grande liberdade para criação de outros grupos, o que ocorreu com a criação dos seguintes: “Estudos de atendimento individual, Regularização Fundiária, Direito do Trabalho, Núcleo de Estudos Criminológicos e Estudo de ações coletivas (ação popular, ação civil pública, mandado de segurança coletivo)”. Em 1991 foi celebrado convênio com a Prefeitura de Porto Alegre para regularização fundiária; no mesmo ano era realizado trabalho de liberação de menores infratores. Disponível em: SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA. Revista do SAJU: reflexões sobre a democratização do judiciário. Porto Alegre, n. 2, UFRGS, set. 1992, p. 01-06.24 LUZ, Assessoria jurídica popular no Brasil, 2008, p. 146.

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e apatia política instaurada entre a juventude que não viveu, tampouco compreendeu, essa época.

Assim, na década de 1990, jovens estudantes de direito, de forma esparsa em todo o Brasil, com o espírito efervecente da “redemocratização”, iniciaram práticas que privilegiavam o atendimento de grupos de pessoas que normalmente não têm acesso a um serviço jurídico. Eles iam em busca de demandas coletivas, de movimentos populares, de problemas sociais que não estavam nos tradicionais livros de direito; queriam saber da reforma agrária, da “democratização”, da garantia de direitos humanos, ou, até, do socialismo brasileiro.

Na década de 1990 ainda, percebe-se que inúmeras práticas passaram a ser desenvolvidas por estudantes no país, com muitos encontros regionais realizados, iniciando-se a organização nacional, ainda aliada ao movimento estudantil tradicional, por meio da Coordenação Nacional de Assessoria Jurídicas Universitárias (Conaju), formada por centros e diretórios acadêmicos.25

A noção de assessoria, na época, estava ligada à idéia de “apoio jurídico popular”, como “uma prática de vanguarda ainda praticamente inédita e que significa, entre outros, um remodelamento das relações estabelecidas entre o profissional do Direito e a clientela que bate à sua porta diariamente”. A assessoria já estava ligada, timidamente, a educação popular, pluralismo jurídico, cidadania, mas, principalmente, estava fixada na divisão “serviços legais tradicionais e inovadores”, de Celso Campilongo, que coloca a assistência jurídica como a primeira e a assessoria jurídica popular como a segunda. A assessoria jurídica popular “relaciona-se diretamente com os serviços legais inovadores [...], viabilizando o ideal ético de justiça não apenas através dos mecanismos estatais, mas, também, através das práticas informais e alternativas de juridicidade”.26

Em 1996, em Niterói, no Rio de Janeiro, foi fundada, por dois grupos estudantis, os serviços de assessoria jurídica universitária da UFRGS e da UFBA, a Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária (Renaju), que reúne até hoje grande parte do movimento extensionista de direito das práticas jurídicas insurgentes com ênfase na educação popular. A Renaju atualmente realiza por ano dois encontros nacionais, dois encontros regionais, e uma série de encontros locais. Seus principais objetivos são a formação e atualização permanentes, discussão e organização política e divulgação das suas atividades.27

25 A Coordenação Nacional de Assessoria Jurídica dependia do apoio dos centros acadêmicos; era órgão do movimento estudantil que contava com uma diretoria de 12 representantes, sendo seis titulares, dois da região Nordeste e os outros quatro das demais regiões do país, pois, na época, o Nordeste concentrava o maior número de grupos de assessoria. Essa entidade era responsável pela organização do Encontro Nacional de Assistência Jurídica Gratuita, pelo menos até 1992, que ocorria durante o Encontro Nacional de Estudantes de Direito. COORDENAÇÃO NACIONAL DE ASSESSORIA JURÍDICA. Como criar um núcleo de Assessoria Jurídica Popular. Belo Horizonte: Del Rey, [s.d.], p. 1426 Ibidem, p. 01-04.27 Alguns grupos experientes na assessoria universitária até hoje não fazem parte da Renaju, como o

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Sobre o surgimento da visão da assessoria jurídica popular, Murilo Oliveira relata:

Em meados de 1995, as experiências em projetos de extensão da UFBA, os encontros, seminários e discussões acerca de uma nova atuação no Direito constroem no Saju um imaginário da necessidade da superação da assistência jurídica individual. É criado o Núcleo Coletivo ou Núcleo de Assessoria Jurídica do Saju, que pretendia atender as demandas coletivas, mediante a proposta da assessoria jurídica popular, sob a égide da extensão e pesquisa universitária. Assume-se a opção política de realizar atividades em favor da transformação da realidade, tendo em vista a emancipação social.28

Segundo conta Vladimir Luz, o ano de 1996 foi o divisor de águas no Saju UFRGS, quando iniciou o projeto “Acesso à Justiça”, já com a concepção de “Núcleo de Assessoria Jurídica Popular”, elaborado pelo movimento estudantil, passando a ser divulgado no Enaju no Ened, agora Encontro Nacional de Assessoria Jurídica. A inovação desse projeto estava em atendimento, orientação, mediação e ajuizamento de ações e assistência jurídica, mas também no ajuizamento de ações coletivas, como ações civis públicas, também enquadradas como assistência jurídica; projeto de pesquisa, como o “Instrumentalidade e Efetividade das Assistências Jurídicas das Universidades da Região Metropolitana de Porto Alegre”, e, principalmente, a elaboração de cartilhas, jornais e revistas próprias da entidade, as primeiras voltadas a “palestras nas comunidades”, conceito embrionário de assessoria jurídica como educação popular.29

A década atual é a da expansão do número de grupos de assessoria estudantil em todo Brasil. Nos encontros nacionais da Renaju percebe-se que esse trabalho é cada vez mais realizado por estudantes em todas as regiões do Brasil, em faculdades de direito públicas ou particulares, por estudantes de todos os anos (níveis, fases ou semestres), de todos os sexos e etnias, das mais variadas classes sociais, ideologias, credos, por estudantes de outros cursos, como serviço social, jornalismo, psicologia, urbanismo etc, com uma participação tímida de professores.30

Justamente porque a assessoria jurídica popular universitária está contando, cada vez mais, com estudantes de outros cursos, além do direito,

“NEP-UnB” e o “Pólos da Cidadania-UFMG”; outros afastaram-se da rede, como o de assessoria estudantil Saju-BA, desde 2005.28 SAMPAIO OLIVEIRA, Murilo Carvalho. Serviço de Apoio Jurídico – Saju: a práxis de um direito crítico. Monografia – Curso de Graduação em Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003, p. 16.29 LUZ, Assessoria jurídica popular no Brasil, 2008, p. 144-145.30 O movimento ajuano nacional reúne-se na Renaju, que é uma rede de grupos de assessoria estudantil de todo o Brasil. É responsável pela organização de dois encontros nacionais anuais: o Encontro de Assessorias Jurídicas Universitárias, o Enaju, realizado durante o Encontro Nacional de Estudantes de Direito (Ened), para divulgar suas atividades e cativar novos membros; e o Encontro da Renaju (Erenaju), para trocar experiências e delimitar a linha política de atuação dos grupos estudantis e da própria rede. Além disso, vários encontros regionais são realizados durante os encontros estaduais ou regionais de estudantes de direito (como, por exemplo, o Egaju durante o Eged no Rio Grande do Sul), com o mesmo objetivo de divulgação dos Enaju’s; e também dois encontros regionais anuais, o Eraju Centro-Oeste – Sudeste – Sul e o Eraju Norte – Nordeste, com o mesmo objetivo dos Erenaju’s, mas em âmbito regional.

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que necessita-se um termo que defina de uma forma mais ampla esse trabalho de extensão/comunicação com grupo e movimentos populares. Aqui está-se propondo o uso do termo assessoria estudantil para designá-lo de forma mais abrangente possível.31

Assim, podem-se delimitar os espaços de militância de cada um dos três modelos de prática de assessoria jurídica popular, amplamente considerada, vistos até aqui:

advocacia popular – prática jurídica insurgente desenvolvida por advogados na representação judicial de grupos e movimentos populares. Não se limita à assistência jurídica tradicional, mas trabalha com a assessoria jurídica popular, voltada para um trabalho comunitário e lutas coletivas por direitos, vinculada a expressões como serviços jurídicos inovadores, alternativos, insurgentes, etc. Como exemplo pode-se citar o Iajup, Gajop, AATR, Acesso, Terra de Direitos, Renaap, e o Ilsa. A maioria dos grupos trabalha também com atividades de educação popular, como é o caso da Themis com “Promotoras Legais Populares”, e a AATR, Iajup e Gajop, com os “Juristas Leigos”;

assessoria universitária – prática jurídica insurgente desenvolvida por professores e estudantes universitários, ligados a universidades por meio de projetos de pesquisa, extensão ou de estágio. Não se limita à assistência jurídica tradicional, mas trabalha com a assessoria jurídica popular na perspectiva da troca de saberes popular e científico. Vinculada a expressões como assessoria jurídica popular, assessoria jurídica popular universitária, assessoria estudantil, etc. Como exemplos existem o NEP-UnB, Pólos de Cidadania-UFMG;

como espécie da assessoria universitária existe a assessoria estudantil, cuja especificidade é o protagonismo estudantil na proposição e administração das atividades, assim como a autonomia em relação às instituições de ensino superior. Como exemplo existem o Saju-RS (ligado à UFRGS), Najup-RS (autônomo), Renaju, entre outros grupos.

Aproxima-se de um conceito de “assessoria jurídica popular”: uma prática jurídica insurgente desenvolvida por advogados, professores ou estudantes de direito, entre outros, voltada para a realização de ações de acesso à justiça e/ou educação popular em direitos humanos, organização comunitária e participação popular de grupos ou movimentos populares. As ressalvas necessárias são de que, em primeiro lugar, cada vez mais outros grupos desenvolvem ações de acesso à justiça e educação popular em direitos humanos que podem perfeitamente serem enquadradas como assessoria jurídica popular. Outra ressalva importante é o caráter multidisciplinar, pois cada vez mais estudantes e professores de outras áreas envolvem-se em

31 A Renaju, atualmente, conta com a participação dos seguintes grupo, entre outros: Najupak-PA, Isa Cunha-PA, NEP “Flor de Mandacaru”-PB, Najup “Direito nas Ruas”-PE, Negro Cosme-MA, Cajuína-PI, Mandacaru-PI, Najuc-CE, Caju-CE, Paje-CE, Najup “Produzir Direitos”-RJ, Saju-SP, Najup-GO, Sajup-PR, Nepe-SC, Saju-RS, Najup-RS, Najupi-RS, Nijuc-RS.

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projetos de assessoria universitária, assim como profissionais de outras áreas, como arquitetos, antropólogos, psicólogos, etc.

O termo práticas jurídicas insurgentes32 é apropriado para descrever as experiências de advogados populares, de estudantes, de professores, e outros militantes dos direitos humanos, na busca do acesso à justiça, porque existe uma pluralidade de denominações que podem confundir sentidos, levando a significados diferentes de coisas que são similares. A cisão da assessoria estudantil com a advocacia popular não contribui em nada com a articulação dos movimentos, embora a militância dos advogados populares tenha sido destacada da estudantil. Ainda, os estudantes têm desenvolvido a prática educativa, em detrimento da jurídica. Os grupos de advogados populares referidos normalmente não trabalham conjuntamente com estudantes, aliás, poucos movimentos latino-americanos atuam em articulação com os grupos estudantis.

2. Educação popular em direitos humanos com movimentos populares

Uma primeira questão que chama a atenção daquele que inicia o contato com esse tipo de trabalho é o porquê da escolha pela educação popular em direitos humanos. O certo é que os próprios movimentos reivindicaram atenção da militância para as questões jurídicas. Inclusive porque percebem a linguagem do direito como um instrumento de dominação. Esta preocupação dos movimentos com a técnica jurídica pode ser comprovada recentemente com a política de abertura de vagas para trabalhadores rurais integrantes de movimentos populares rurais.

O desafio está na própria atuação do advogado popular, que na maioria das vezes vêm de uma classe social diferente daqueles a quem auxilia a defesa. A radicalidade alcançada na assessoria está na ordem do trabalho para aqueles que mais necessitam, no sentido da construção de outra sociedade, outro Estado e outro direito. O lugar do assessor é com o povo pobre, em nome de uma transformação profunda e radical, onde este não é protagonista. Ao tempo que os assessores são essenciais para esse processo histórico, não podem fazê-lo sozinhos.

Parte-se para a descrição da metodologia33 da assessoria estudantil que denomina-se “assessoria jurídica popular universitária” (Ajup universitária), que

32 Esse termo foi escolhido para englobar, além dos conceitos já apresentados, os conceitos de assessoria jurídica popular universitária e assessoria estudantil, dentre outras concepções que enfatizam a organização popular, as ações coletivas, as demandas de impacto social, a ética comunitária e as atividades educativas.33 Como metodologia entende-se o estudo dos caminhos, dos instrumentos para fazer ciência e que a problematiza criticamente quanto aos limites da capacidade de conhecer e da capacidade de intervir na realidade. DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 11

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privilegia as atividades educativas no trabalho popular.34 Para compreender as causas do trabalho educativo por estudantes de direito é preciso trazer o contexto histórico do Movimento de Educação Popular de Paulo Freire. A sua experiência pode ser somada a outros esforços que compõem a história da educação popular no Brasil. A experiência do “Movimento de Educação de Base” conviveu com outras tantas ricas experiências que na década de 1960 tentaram alfabetizar o povo brasileiro.35

Essas têm em comum que educavam não só quem não sabia ler, mas também os analfabetos políticos, que não estão unicamente numa profissão, etnia ou classe social.36 Paulo Freire, na análise sobre o diálogo de agrônomos com camponeses, ensina que o diálogo problematizador tem como função indispensável “diminuir a distância entre a expressão significativa do técnico e a percepção dos camponeses em torno do significado”, para que tenha significação para ambos, e “isto só se dá na comunicação e intercomunicação dos sujeitos pensantes a propósito do pensado, e nunca através da extensão do pensado de um sujeito até o outro”.37

Portanto, “a educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”. A comunicação eficiente exige que os sujeitos interlocutores “incidam sua ‘ad-miração’ sobre o mesmo objeto; que o expressem através de signos linguísticos pertencentes ao universo comum a ambos, para que assim compreendam de maneira semelhante o objeto da comunicação”, e “nesta comunicação, que se faz por meio de palavras, não pode ser rompida a relação pensamento-linguagem-contexto ou realidade”.38

Assim, “a tarefa do educador, então, é a de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza, e não a de dissertar sobre ele, de dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como se se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado,

34 Considera-se assessoria jurídica popular universitária a atuação na defesa de demandas coletivas e individuais e/ou o serviço de educação jurídica popular, objetivando o acesso à justiça e à efetivação dos direitos humanos e da cidadania. REDE NACIONAL DE ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA. Carta-compromisso, Niterói, 1996.35 O Movimento de Educação de Base (MEB) ocorreu no Brasil no período de 1961-1965, para o campesinato e setores do proletariado rural das regiões mais subdesenvolvidas (Norte, Nordeste e Centro-oeste), de responsabilidade da Igreja Católica, numa conjuntura de acirramento da crise do capitalismo no Brasil, em convênio com o governo federal (Juscelino Kubitschek). Esse “produziu efeitos significativos na própria Igreja e na realidade sócio-econômico-político-cultural, nos agentes e tendendo a colaborar no estabelecimento de uma contra-hegemonia dirigida pelas classes subalternas”. WANDERLEY, Luiz Eduardo W. Educar para transformar: educação popular, Igreja Católica e política no Movimento de Educação de Base. Petrópolis, Vozes, 1984, p. 14-15.36 A educação popular do MEB, juntamente com o sistema Paulo Freire, foram as que mais se aproximaram da sua concretização, produzindo efeitos eficazes. Foram múltiplas atividades de “alfabetização, conscientização, politização, educação sindicalista, instrumentalização das comunidades e animação popular”. Servia de subsídio para uma integração da teoria com a prática, para uma investigação militante, para a educação libertadora; uma prática educativa que se desdobrou em outras práticas, de desenvolvimento de comunidades, mas de realidade inclusiva, uma democracia de base, para um poder local. WANDERLEY, Op. Cit., p. 16-20.37 FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 68.38 Ibidem, p. 69-70.

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terminado”.39

Assim, o diálogo emancipatório parte do pressuposto de que a educação é comunicação, é diálogo, é um encontro amoroso dos que buscam significações de significados. Comunicação significa uma via de mão-dupla, multilateralmente os sujeitos emitem e recebem significados. Diálogo é comunicação, que pressupõe horizontalidade e troca de saberes. A horizontalidade significa o reconhecimento da ignorância e conhecimentos, da sua relatividade, parcialidade. A troca de saberes representa que os sujeitos envolvidos participam ativamente, dizem suas palavras, dizem o mundo que está sendo.

Paulo Freire acredita num humanismo científico amoroso, apoiado na ação comunicativa, alimentado por uma esperança crítica repousada na crença de que “os homens podem fazer e refazer as coisas; podem transformar o mundo. Crença em que, fazendo e refazendo as coisas e transformando o mundo, os homens podem superar a situação em que estão sendo um quase não ser e passar a ser um estar sendo em busca do ser mais”.40

Dessa forma, o método de Paulo Freire é um processo em que “será a partir do conhecimento que se poderá organizar o conteúdo programático da educação que encerrará um conjunto de temas sobre os quais educador e educando, como sujeitos cognoscentes, exercerão a cognoscibilidade”. Assim, “pois bem, o conhecimento desta visão do mundo dos camponeses, que contém seus ‘temas geradores’ (que, captados, estudados, colocados num quadro científico a eles são devolvidos como temas problemáticos), implica numa pesquisa” e implica uma metodologia que deve ser dialógico-problematizadora e conscientizadora.41

Os estudantes de direito reconheceram em sua teoria um manancial infindável de idéias para práticas emancipatórias.42 Faz-se a opção por tratar da temática “educação, conscientização e transformação” em razão da potencialidade dialética que o tema provoca, assim como pelas inúmeras possibilidades de abordagem, podendo incluir toda a experiência extensionista/comunicacional proporcionada nos diálogos com os meios populares.

Murilo Oliveira apresenta a proposta educativa do trabalho dos assessores estudantis:

39 Ibidem, p. 81.40 Ibidem, p. 74.41 FREIRE, Op. Cit., p. 87.42 Necessário referir-se ao debate que envolve os termos emancipação e libertação, que estão ligados a dois teóricos que são referência para os assessores estudantis: Boaventura de Sousa Santos e Enrique Dussel. Essa discussão enriquece muito a reflexão sobre como a assessoria popular pode colaborar de forma decisiva para as ações políticas a que está voltada. Sem dúvida, cada termo remete-se a idéias políticas semelhantes mas não idênticas, portanto, é preciso definir a que corrente cada trabalho está vinculado. Refere-se que poucos grupos da Renaju conhecem a obra de Dussel, enquanto que a obra de Boaventura é mais difundida.

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As atividades e os Projetos realizados no SAJU almejam a promoção do Acesso à Justiça, exercício da cidadania e efetivação dos Direitos Humanos. Estas finalidades demonstram que o SAJU não estabelece uma relação de mera assistência a comunidades carentes, mas que pretende a conscientização e organização destas comunidades ou movimentos para que, na qualidade de sujeitos ativos do processo histórico-social, com o instrumental do saber jurídico, lutem pelos seus direitos.43

Ademais, afirma que a socialização do conhecimento jurídico “e sua desmistificação contribuem com os sujeitos sociais oprimidos para que não mais se sujeitem à dominação e dependência, como também possam identificar as violações aos seus direitos”. Faz-se a ressalva que outros conhecimentos são necessários para tanto, principalmente da realidade brasileira e das relações políticas e econômicas. Além disso, “o acesso à informação garante para as comunidades o reconhecimento dos direitos já positivados, indicando os mecanismos e instrumentos disponibilizados pelo ordenamento jurídico para efetivação dos seus direitos”. Nessa questão é primordial destacar que o trabalho do assessor para a operação desses mecanismos e instrumentos em muitos casos faz-se necessária. Porém, isso “significa, pois, debater com os próprios sujeitos do direito as razões da inefetividade e do desrespeito das leis, o acesso à justiça e os limites do sistema jurídico”.44

Diz ainda sobre as atividades educativas:

A educação popular tem uma opção política, a opção pela transformação social. Considerando o direito como ideológico, desmascara a repressão estatal e seu papel de mantenedor do status quo, construindo na prática destes trabalhos novas concepções de direitos, pois pensa esse direito crítico como paradigma de libertação social.45

A atuação de Paulo Freire na redemocratização do Brasil configurou-se um dos capítulos mais ricos da história política, assim como a atuação do Movimento Educação de Base nas Centrais Eclesiais de Base, que formou grande parte das lideranças brasileiras na atualidade. Não se tem notícia da militância conjunto de estudantes de direito nessas atividades, mas sem dúvida significaram a principal influência para o início das atividades da assessoria estudantil.

Além disso, o começo das atividades de educação popular na assessoria estudantil pode ter havido por influência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que desenvolve atividades conjuntas com alguns grupos ligados à Renaju desde sua fundação.46 Ademais, os MST está muito

43 SAMPAIO OLIVEIRA, Serviço de Apoio Jurídico – Saju, 2003, p. 18.44 Ibidem, p. 51.45 SAMPAIO OLIVEIRA, Op. Cit., p. 60.46 O MST tem como princípio o “método Paulo Freire” no conteúdo pedagógico e na própria organização dos estudantes e professores em todas suas escolas itinerantes em acampamentos e outras escolas que organiza em assentamentos. Ver: MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA. Cadernos de Educação – Dossiê MST Escola: documentos e estudos 1990-2001. São Paulo: Iterra, 2005. Porém, hoje poucos grupos ligados à Renaju trabalham em conjunto com o MST, uma das causas possíveis deve-se à localização da maior parte da militância do movimento de agricultores concentrada no meio rural, enquanto que os grupos de assessoria estudantil ainda estão muito restritos ao meio urbano. Situação

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preocupado com a formação dos estudantes, pois serão os futuros “operadores do direito”; é o debate político criado em espaços mistos dos movimentos populares e estudantes, como a Rede Popular de Estudantes de Direito (Reped). Ainda, o MST tem sua Escola Nacional Florestan Fernandes, e algumas turmas de direito agrário em faculdades de direito, como a da Universidade Federal de Goiás e no IPA, em Porto Alegre.

A Rede Popular dos Estudantes de Direito (REDEP) é um projeto popular para o direito, seu papel é “um trabalho coletivo de união dos estudantes de direito e movimentos sociais populares em busca da construção de instrumentos jurídicos emancipatórios e lutas sociais”. Foi criada em 2006, na ocasião do protesto para cobrar providências após 10 anos de massacre de Carajás. Participaram do protesto estudantes pertencentes a grupos políticos das faculdades de direito de universidades paulistas, juntamente com o MST. A discussão envolveu a proposta de “enfrentar o ensino jurídico conservador e construir instrumentos contra-hegemônicos de formação política e também de formação técnica dos estudantes de Direito”.47

Além do MST, outros movimentos populares são parceiros dos projetos de assessoria estudantil em todo Brasil, como, por exemplo: os envolvidos na luta pela moradia e acesso à cidade (MLMN - Movimento Nacional de Luta pela Moradia); pela terra (MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens); na luta contra o capitalismo (Movimento Resistência Popular, anarquistas); pelo passe-livre (Movimento Estudantil); pela comunicação comunitária (rádios e associações comunitárias); grupos sociais de luta pela reforma urbana (Central de Movimentos Populares, Fórum Nacional de Reforma Urbana, conselhos populares, associação de moradores) e grupos sociais de luta pela participação democrática (conselhos do orçamento participativo, associações de moradores). Além dos movimentos populares, ONGs e órgãos públicos são potenciais parceiros das iniciativas de assessoria.

Ocorre que o trabalho conjunto com movimentos sociais não é consenso entre aqueles que praticam a assessoria estudantil. Assim, traz-se alguns apontamentos para incentivar iniciativas nesse sentido. Essa questão foi uma das discutidas com estudantes entrevistados na monografia de minha autoria. A seguir o resumo de algumas respostas:

Em relação aos limites impostos aos movimentos sociais, alguns referiram que os movimentos devem ser limitados quando sua função estiver distorcida, assim como o cidadão deve ter direitos e também deveres previstos na Constituição; que a luta não pode ferir gravemente ou suprimir outros direitos fundamentais. Entretanto, apontaram que os movimentos sociais são atores principais na luta pelos direitos

que pode vir a alterar-se, uma vez que o MST iniciou uma política de atuação do meio urbano, por meio das brigadas, assim como alguns grupos de assessoria têm desenvolvido projetos no meio rural, como o Caju CE e o Saju PR.47 REDE POPULAR DOS ESTUDANTES DE DIREITO. (Panfleto institucional), p. 07-12

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humanos, que participam como sujeitos ativos, visando ao empoderamento e à capacitação de lideranças. Outros ressaltaram que não se deve limitar o que os movimentos podem ou não podem fazer para defender os direitos humanos, porque foram essas lutas que efetivaram direitos hoje garantidos a todos; também, que os movimentos sociais conseguiram atingir um nível de emancipação/conscientização a partir do conhecimento de seus direitos. Lembraram que sua atuação já é bastante limitada por nossa ordem jurídica e social, que oferece poucas oportunidades de participação e impõe uma série de barreiras para a pressão social exercida por eles. Alguns disseram que qualquer participação dos movimento sociais na luta por direitos humanos é adequada. Por outro lado, uma crítica feita aos movimentos é que esses não podem ocupar o lugar das pessoas na defesa dos seus direitos, que devem ser uma união de forças; por outro lado, a organização popular cabe aos movimentos, não sendo papel direto do assessor.48

Para Marcelo Dias Varella, os movimentos sociais configurar-se-iam pelas seguintes características: a existência de um grupo relativamente organizado; tendo ou não uma liderança definida; interesses, planos, programas ou objetivos comuns; fundamentando-se nos mesmos princípios valorativos, doutrinas ou ideologia; desenvolvendo uma consciência de classe ou uma ideologia própria e objetivando fim específico, uma proposta de transformação social ou uma alteração nos padrões sociais vigentes.49

Ilse Scherer-Warren propõe que o papel dos “novos movimentos sociais”50 é a corrosão do autoritarismo da sociedade brasileira e a criação de uma sociedade mais democrática. Ademais, apresenta proposta de atuação em rede dos movimentos sociais composta por mediadores, redes de ONGs, movimentos e organizações populares em torno de um projeto mais abrangente.51

Algumas características comuns dessas redes no Brasil seriam: “busca de articulação de atores e movimentos sociais e culturais; transnacionalidade; pluralismo organizacional e ideológico; atuação nos campos cultural e político”. Essas características seriam responsáveis pela construção de novas utopias, de uma prática mais democrática e tolerante à diversidade social, à integração regional e internacional entre os povos e à participação da sociedade civil na transformação da sociedade política propriamente dita.52

Esses conceitos colaboram muito com a idéia de trabalho com movimentos sociais em rede. A reflexão dos assessores estudantis sobre seu papel pode

48 RIBAS, Luiz Otávio. Assessoria jurídica popular universitária e direitos humanos: o diálogo emancipatório entre estudantes e movimentos sociais (1980-2000). Monografia – Curso de Especialização em Direitos Humanos, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. p. 63-64.49 VARELLA, Marcelo Dias. MST: um novo movimento social?. In: DRESCH DA SILVEIRA, Domingos Sávio; SANT’ANNA XAVIER, Flávio (Org.). O direito agrário em debate. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.213-214.50 Para Ilse Scherer-Warren, a identidade dos novos movimentos sociais é construída a partir de dois fatos: um estrutural, do reconhecimento do povo das condições materiais do capitalismo contemporêneo e suas variadas formas de opressão; e um cultural, da internacionalização de uma cultura crítica dos movimentos populares contra as formas de opressão e o autoritarismo. SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 1993, p. 52.51 SCHERER-WARREN, Redes de movimentos sociais, 1993. p. 118-12052 SCHERER-WARREN, Redes de movimentos sociais, 1993. p. 120-123

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levar a repensar a estratégia desses com grupos e movimentos sociais, no sentido de potencializar suas práticas para serem mais concretas e efetivas.

Porém é preciso situar a diferença entre os conceitos de movimentos sociais e movimentos populares, utilizados de formas diferentes pelos autores citados. Para tanto colhe-se contribuição de Daniel Camacho, que afirma que “consideramos os movimentos sociais como uma dinâmica gerada pela sociedade civil, que se orienta para a defesa de interesses específicos”. Enquanto que “sua ação se dirige para o questionamento, seja de modo fragmentário ou absoluto, das estruturas de dominação prevalecentes, e sua vontade implícita é transformar parcial ou totalmente as condições de crescimento social”. Os movimentos sociais não têm que ser necessariamente organizados.53

Afirma que os sindicatos são organizações do movimento social dos operários, que as vezes intermedia e favor e às vezes contra os interesses objetivos do movimento operário. Os movimentos sociais têm duas grandes manifestações: os que expressam os interesses dos grupos hegemônicos e os que expressam os interesses dos grupos populares.54

Enquanto que os movimentos populares são os que expressam os interesses dos grupos populares. Entende-se que “popular” refere-se a povo, que é uma categoria que se modifica com a história, “como todas as categorias que representam um conteúdo real”. Para Marx, o povo, essa conceituação rigorosa e útil, está constituído por aqueles setores da sociedade que sofrem dominação e exploração. “A exploração refere-se ao campo da produção e a dominação ao da ideologia”.55

Portanto, enquanto que os movimentos sociais poderão, ou não, atuar na defesa dos interesses do povo, e poderão, ou não, estar organizados; os movimentos populares são aqueles movimentos sociais que expressam os interesses dos grupos populares, aqueles que sofrem exploração e dominação. Aqueles movimentos sociais que não estão organizados, e que não defendem os interesses do povo designa-se, genericamente, de grupos sociais.

Os grupos de assessoria jurídica popular atuam em conjunto com movimentos sociais e populares. Pode-se afirmar que fazem parte do movimento estudantil, que é um movimento social que atua em rede com inúmeros outros grupos sociais e populares. Mais uma vez, destaca-se que os movimentos populares são movimentos sociais, mas atuam na defesa dos interesses dos grupos populares, o povo, aqueles que sofrem com a dominação e a exploração.

Considerações finais

53 CAMACHO, Daniel. Movimientos populares en la América Latina. México: Siglo XXI, [s.d.], p. 216-21754 Ibidem, p. 216-21755 Ibidem, p. 218

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Um dos desafios ainda é formar militantes de movimentos sociais para a prática jurídica, isto é, a participação na autodefesa processual ou de organização comunitária para manutenção de conquistas de direitos. Existiram inúmeros casos de projetos de formação com movimentos sociais do interior do Brasil no sentido de capacitá-los para a defesa judicial, em municípios que sequer contavam com a presença de um advogado disposto a colaborar com os movimentos populares. Na ocupação do território brasileiro, historicamente, o interior do país sofreu mais com a falta de acesso a serviços públicos básicos como a educação, igualmente com os altos índices de desigualdade social e má distribuição de renda.

Finalmente, a pluralidade de termos existentes para referir-se ao trabalho de estudantes e advogados com movimentos sociais e populares representa também uma pluralidade de sentidos e significados. Apesar da dificuldade de definições, propõe-se uma tipologia das práticas jurídicas insurgentes: a prática dos estudantes universitários como assessoria estudantil; outras práticas dos estudantes, professores e advogados como assessoria universitária (incluindo a assessoria estudantil); a prática a partir de uma ética coletiva de advogados com movimentos sociais e populares (apoio jurídico popular, serviços legais inovadores, entre outros) como advocacia popular; todos estes conceitos forjados no Brasil, englobando a advocacia popular, a assessoria universitária, inclusive a assessoria estudantil no Direito, incluindo outros trabalhos semelhantes desenvolvidos por ONGs, como assessoria jurídica popular; e todas as práticas brasileiras comparadas com outras práticas latino-americanas comuns (servicios legales alternativos, servicios inovativos, entre outros) como práticas jurídicas insurgentes.

A assessoria estudantil consolida-se como prática jurídica insurgente. Tradicionalmente, vem sendo desenvolvida a partir de atividades de extensão em instituições de ensino superior de todas as regiões do Brasil. Por outro lado, muito ainda precisa ser feito entre os estudantes, professores, advogados, associados de ONGs, e outros para repensar um trabalho em rede.

Propõe-se uma rede horizontal de grupos e movimentos sociais com o fim de produzir direitos humanos para satisfação das necessidades e uma vida com dignidade do homem na realidade em que vive. Atualmente, as principais questões colocada para os assessores estudantis hoje e para o que trabalham incansavelmente são por que e como a prática da assessoria jurídica popular universitária auxilia esse processo.

Como se procurou evidenciar, essa “metodologia” auxilia na informação sobre direitos que podem facilitar o acesso à justiça. Por isso, é preciso ampliar as redes de diálogo com outros estudantes, dos mais diferentes cursos, com outros profissionais do direito, com grupos e movimentos sociais. Os principais desafios, a curto prazo, são a consolidação dessa atividade nas faculdades de

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direito, a expansão como prática de educação não formal e auxiliar amplamente na educação do brasileiro em relação aos seus direitos.

Uma atividade educativa, aliada à atividade jurídica, por parte dos assessores, pode proporcionar um amplo diálogo sobre o direito, a moral, ética, política, etc. A assessoria de grupos e movimentos sociais com esse intento pode colaborar para a satisfação de objetivos concretos e factíveis.

Outro obstáculo a ser ultrapassado é o de que os estudantes de direito acabam procurando a assessoria jurídica popular universitária por um sentimento profundo de indignação com o direito, porém dificilmente esse processo é revertido durante o trabalho de campo. Assim, as atividades educativas e lúdicas são priorizadas em detrimento do estudo e de aplicação de um direito crítico e transformador. Sem falar no sentimento de indiferença perante as importantes ferramentas jurídicas à disposição dos grupos e movimentos sociais, tachadas de “dogmatismo”, como algo atrasado, como se a dogmática jurídica não fosse uma importante arma de luta política.

A proposta para os grupos de assessoria estudantil é de superação da frustração e indignação com o direito em luta e crítica. A partir da pesquisa das práticas jurídicas insurgentes no Brasil, contextualizando a América Latina. Assim como a consolidação dessa prática como atividade de extensão e a ampliação da rede com os movimentos populares, advogados, outros estudantes, e organizações não governamentais. Ainda, a consolidação como atividade de educação popular, ampliando a abrangência dos projetos.

Referências

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EXPERIÊNCIAS NA LUTA PELA TERRA E POR DIREITOS ENTRE ASSENTADOS RURAIS

Fabiana Cristina Severi1

José Marcelino de Rezende Pinto2

“E devagarzinho de lá para cá eu andava perguntando as coisas. Eu perguntava, a gente já foi andando um pouco assim com as pernas, com

a língua.” (assentado)

Introdução

O presente texto é proveniente do nosso trabalho de tese de doutorado, em que buscamos analisar as histórias de vida dos assentados, de modo a verificar as mudanças que eles percebem em suas subjetividades em razão da luta pela reforma agrária. Destacamos, aqui, especialmente as mudanças que os assentados percebem sobre suas concepções de direitos, participação política e cidadania. Buscamos compreender tais elementos em meio às narrativas sobre o processo de engajamento dos assentados na luta, a percepção que têm acerca dos demais atores presentes nesse campo social, como se sentem hoje e como veem o futuro no assentamento.

Na pesquisa, nosso olhar voltou-se para o processo geral de formação dos assentados que se deu durante o período em que eles permaneceram na luta pela terra (fases de acampamento e assentamento). Incluem-se aqui não apenas as ações mais sistemáticas reconhecidas pelos sujeitos como práticas educativas no acampamento e assentamento, mas também todas aquelas situações nas quais também se aprende: no trabalho, no cotidiano, nas relações domésticas, nas relações travadas com outros sujeitos sociais, técnicos, agentes do governo, outros movimentos, moradores das cidades vizinhas, escola da cidade, posto médico, entre outros. Pretendemos lançar luz, sobretudo, ao papel desempenhado pelos movimentos sociais de luta pela terra como sujeitos pedagógicos.

1 Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000), mestrado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003) e doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (2010). Atualmente é Professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). É responsável pelas disciplinas de Teoria Geral do Estado, Direitos Humanos e Direito Constitucional. Realiza atividades de pesquisa e extensão ligadas aos temas: Direitos Humanos, Democracia, Movimentos Sociais, Educação Popular, Asssentamentos Rurais, Relações de Gênero e Assessoria Jurídica Popular - http://lattes.cnpq.br/60450317631547802 Licenciado em Fisica pela Universidade de São Paulo (1982), bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (1985), com mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1989 e 1994). Atualmente é professor associado da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Política e Gestão Educacional com ênfase em financiamento da Educação, municipalização do ensino, regime federativo e educação do campo - http://lattes.cnpq.br/5378091923063923

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Aspectos metodológicos

Optamos pela metodologia de pesquisa qualitativa, utilizando, como instrumentos de coleta, as entrevistas no formato de História de Vida (HAGETTE, 1992; POLLAK, 1992). Os relatos orais não foram tomados como registros da história, mas enquanto construções da história a partir do presente, feitos na realidade da vida cotidiana (BERGER; LUCKMANN, 1985).

O estudo foi realizado em assentamento rural específico, o Sepé Tiaraju, em Serra Azul – SP, primeiro assentamento criado como fruto do trabalho organizativo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região de Ribeirão Preto, cidade conhecida nacionalmente como a capital do agronegócio e polo da produção canavieira extensiva (SILVA,

1999; THOMAZ JR, 2002). Escolhemos nossos entrevistados entre os assentados que não se destacavam no assentamento como militantes ou dirigentes do MST/regional. Tentamos captar a fala dos assentados que entraram no movimento em busca da conquista da terra e que tivessem preferencialmente permanecido, como acampados, na área que deu origem ao Sepé Tiaraju, sozinhos ou com suas famílias. As entrevistas buscaram levar em consideração três momentos da história dos assentados que foram os eixos centrais deste estudo: suas trajetórias anteriores ao assentamento, o processo da luta pela terra e a vida no assentamento.

Formação, autonomia e política

Sob a perspectiva da Teoria Crítica, em especial as reflexões de Adorno (1996; 2000), os processos educativos e de formação em geral são indagados quanto às suas possibilidades de realização na contemporaneidade, numa situação em que as formas de conhecimento da realidade se veem marcadas pela mesma deformação a que pretendem se subtrair (MAAR, 2003). As teorias emancipadoras da consciência de classe proletária, fundadas nos ideais orientadores da intervenção social rumo à libertação do modo de reprodução vigente, são substituídas em Adorno (1996; 2000) por uma teoria crítica da semiformação, decifrada enquanto sujeição dos homens e da formação em geral aos termos em que se dá a reprodução social existente. Isso não quer dizer que a emancipação deixa de ser elemento central das discussões sobre educação, mas sim que, para a educação “ser real e efetiva, há que ser tematizada na heteronomia” (MAAR, 2003, p. 15). Nesse sentido, trata-se de a emancipação e, consequentemente, os processos educativos serem vinculados à crítica da semiformação real e à “resistência na sociedade material presente aos limites que nesta se impõem à vida no „plano‟ de sua produção efetiva” (MAAR, 2003, p. 15).

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O texto Teoria da Semicultura elaborado por Adorno, em 1959, analisa a tensão entre semiformação e formação cultural, colocando em tensão a dupla face da problemática pedagógica: autonomia e adaptação. O ponto de partida da reflexão de Adorno (1996) é a experiência histórica da sua geração, mais precisamente a confrontação do intelectual judeu da Europa central com as duas figuras mais perversas do progresso do século XX: o fascismo e a civilização americana3.

Tudo se torna slogan e até mesmo expressões como consciência crítica, conscientização, espírito crítico, foram despontecializadas e viraram receituários vazios nas mãos de educadores e formadores de opinião (LÖWY; VARIKAS, 1992).

De acordo com Maar (1992), o que interessa a Adorno na problemática da cultura é sua relação com a subjetividade. Ele denomina Bildung o lado subjetivo da cultura e retém a dimensão objetiva como kultur. Por isso, indústria cultural (kulturindustrie) e semiformação (halbbildung). A formação cultural destaca-se pela relação entre dois momentos: dominação e autonomia. Mas, na semiformação, o que acontece é uma formação que se desenvolve unilateralmente, apenas no âmbito da dominação, esgotando seu momento de liberdade. Nega-se aí a função revolucionária da cultura e realça-se o seu papel integrador. Por isso é que a socialização produzida na semiformação será entendida como correspondente de uma regressão da formação. No lugar da crítica à formação, o que aparece é a socialização da semiformação. O sujeito identifica-se com uma subjetividade socializada de modo heterônomo, imposto. A semiformação envolve, então, uma consciência alienada: a cultura enquanto formação dá-se enquanto regressão, e a popularização da formação cultural não implica necessariamente esclarecimento, mas, sim, administração total dos homens.

Na época da “liquidação” do indivíduo, Adorno (2008) afirma a necessidade de se retornar à questão da individualidade, ao discutir as possibilidades de emancipação. Na medida em que o indivíduo torna-se “antiquado historicamente”, em que “é passado para trás pelo estado da técnica” é que cabe a ele, “como condenado”, buscar a “verdade contra o vencedor”. Somente ele conserva, em sua forma distorcida, “o traço daquilo a que toda tecnificação deve seu direito, mas do qual ela ao mesmo tempo conta a sua consciência”. Entre aqueles que “se abandonam ao individualismo da produção espiritual” e os que “se jogam de cabeça no coletivismo da representatividade igualitária e cheia de desprezo pela humanidade” é que Adorno aponta para uma subjetividade não entregue às “formas do negócio” e aos interesses dele: uma subjetividade remetida “à cooperação livre e solidária sob

3 Destacam-se aqui pesquisas empíricas como as consolidadas na obra A personalidade autoritária (no original The Authoritarian Personality, publicada em 1950).

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responsabilidade mútua” (2008, p. 126).Diferente do que afirmam inúmeros intérpretes, Adorno (1995) reluta

em considerar a sociedade e os indivíduos completamente administrados. Ao mesmo tempo em que os indivíduos estão submetidos aos mecanismos da indústria cultural, Adorno aposta, fundamentado em outros estudos levados adiante pelo Instituto de Frankfurt, na não aceitação total daquilo que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre. Mais ainda, talvez as pessoas não acreditem inteiramente em tais mecanismos e, por isso, não se haveria alcançado inteiramente a integração da consciência e do tempo livre (ADORNO, 1995, p. 81-82):

Os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão (Erfassung) total. Isto coincidiria com o prognóstico social, segundo o qual, uma sociedade, cujas contradições fundamentais permanecem inalteradas, também não poderia ser totalmente integrada pela consciência. A coisa não funciona assim tão sem dificuldades (...). Renuncio a esboçar as conseqüências disso; penso, porém, que se vislumbra aí uma chance de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre (Freizeit) se transforme em liberdade (Freiheit).

As chances de emancipação residiriam no interstício, quase imperceptível, de resistência dos indivíduos às formas de adaptação ao mundo administrado. A não aceitação total significa também a abertura para a não reificação total dos indivíduos. A impossibilidade de se escapar da total adaptação deve ser compreendida em nome das suas possibilidades: essa é a exigência maior colocada ao pensamento crítico, ainda que não haja certeza se a emancipação plena dos indivíduos tenha possibilidades concretas de acontecer.

Seria possível, de acordo com Adorno (2000), buscar uma práxis emancipatória, direcionada especialmente ao indivíduo, de modo a torná-lo capaz da autorreflexão e do exercício do pensamento não heterônomo, fortalecendo sua capacidade de resistência. Tal práxis dar-se-ia em termos de experiências formativas. (ZUIN; PUCCI; RAMOS de OLIVEIRA, 2008).

Com apoio em Adorno e Walter Benjamin (O Narrador), Jay (2008) afasta-se das leituras que identificam experiência com o campo de uma busca grandiosa e irrealizável, ou que a convertem em mito, ao reconhecer múltiplos significados e diferentes funções para a palavra, por meio dos sentidos que podem ser extraídos da etimologia (pathos, empiria e Erfahrung). A experiência pode significar conhecimento empírico ou experimentação, pode referir-se ao que acontece quando se está aberto a novos estímulos, pode conotar uma viagem, ou ainda uma interrupção dramática no curso da vida por conta de algo mais intenso e não mediado. Ainda que diga respeito a algo que deva ser ―atravessado ou ―sofrido pelo indivíduo, ao invés de ser adquirido de forma indireta, a experiência pode fazer-se acessível para os outros por meio de um relato post facto, que a transforme numa narrativa repleta de sentido.

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Ela dá-se, então, na intersecção entre a linguagem pública e a subjetividade privada, entre a dimensão compartilhada que se expressa pela cultura e o inefável da interioridade individual. Implica o procedimento de descoberta desenvolvido no tempo, num entrelaçar-se cumulativo e também inconsciente de acontecimentos discretos, num conjunto narrativo com coerência e, talvez, com um significado teleológico. A experiência não é lugar de uma possível redenção, cuja suposta perda seria causa de lamento, mas, sobretudo, advertência contra os desastres que nos esperam, caso não façamos tal lugar realidade (JAY, 2008).

Nesse sentido é que entendemos que a investigação sobre experiências pode estar associada às reflexões sobre política. A educação política, que possibilitaria a efetiva experiência democrática, está ligada a processos de formação para emancipação: “uma democracia efetiva só pode ser imaginada em uma sociedade de quem é emancipado”, ou seja: a democracia como instituição política depende da “produção de uma consciência verdadeira” (ADORNO, 2000, p. 141-142).

Com apoio nas discussões acima apontadas é que pretendemos lançar luz aos processos de aprendizagem que se dão no vir-a-ser dos movimentos sociais em torno da luta pela terra. Isso de modo a destacar as formas de resistência e de adaptação, as ambiguidades e as contradições imbricadas em tais processos. Mais particularmente, pretende-se destacar os processos educativos ligados à consciência dos direitos e da participação política dos assentados em razão do ingresso na luta pela terra e da participação no MST.

Experiências na luta pela terra e por direitos entre os assentados do Sepé Tiaraju

O Assentamento Sepé Tiaraju é resultante de uma ocupação organizada pelo MST, em 17 de abril de 2000 na Fazenda Santa Clara (antiga Usina Nova União), localizada no município de Serra Azul, composta por quatrocentos e catorze alqueires. O MST havia chegado à região de Ribeirão Preto em 1999, na cidade de Matão. Em 17 de abril de 2000, 30 famílias coordenadas pelo MST, ocuparam a terra, iniciando-se um longo processo de luta, com sucessivos despejos judiciais e novas ocupações até que, em 2004, o Assentamento Sepé Tiaraju foi criado em uma área aproximada de

797 hectares. De forma pioneira, o INCRA seguiu o modelo do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), criado originalmente para projetos na Amazônia. A proposta do PDS-Sepé Tiaraju era de reverter a situação de degradação ambiental da antiga Fazenda Santa Clara.

Em fevereiro de 2007, visando dar cumprimento ao estipulado no PDS-Sepé Tiaraju, a Promotoria de Justiça de Ribeirão Preto, de forma

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até certo ponto inusitada, instaurou inquérito civil, a fim de firmar Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público de São Paulo, o INCRA e os beneficiários-concessionários (assentados). A ideia era estabelecer um conjunto de regras que assegurasse o compromisso das partes em desenvolver um modelo diferenciado de assentamento, voltado especialmente para a proteção e recuperação do meio ambiente e ao incentivo à produção agroecológica.

Sobre o perfil dos assentados, Scopinho et al (2007) destacam que, desde sua formação, o Sepé foi marcado pela ampla diversidade das origens, sotaques, costumes, tradições e modos de organizar a vida. Predominava uma população adulta e famílias que possuíam entre duas e cinco pessoas. Havia uma forte expectativa, desde a fase inicial de acampamento, de recuperar o meio ambiente, de organizar a produção de forma coletiva, de inovar no que se refere à produção agroecológica. As expectativas eram mesclas de angústias, incertezas e ambiguidades, que foram ficando mais nítidas na medida em que o assentamento foi ganhando sua forma jurídica, os primeiros financiamentos e fomentos foram chegando e as discussões nos núcleos e coletivos foram ficando “acaloradas” (SCOPINHO et al, 2007, p. 13).

O período de acampamento foi longo e marcado por muito sofrimento. Poucos foram aqueles que vieram para o acampamento acompanhados por toda a família. Geralmente, ficou a esposa ou parte dos filhos como forma de se garantir a reprodução da família. O tempo da espera foi tão longo e tão doloroso que muitos não acreditavam mais na possibilidade de o assentamento sair. Ao mesmo tempo, os vínculos com os parentes, com os lugares de passagens anteriores já estavam comprometidos ou desfeitos. Sra. Aurora fala um pouco sobre a dor na espera:

Só fica mesmo, aquelas pessoas que tem aquela fé de que um dia as coisas vão mudar. Que um dia as coisa vão melhorar, e você tem que olhar para frente né, não pode olha para trás. E se for ver, lá do lugar da onde a gente saiu, de lá só veio eu e meu esposo né. Já pensou se eu voltar para lá para trás, com que cara que eu vou volta lá para trás? Vão falar: ―Você não foi lá para os sem-terra? Que você está fazendo aqui? Vai lá para os sem-terra. Porque o povo humilha muito, ainda mais se você não consegue o objetivo. Você vai voltar para trás? Você não pode volta para trás. E a humilhação que o povo lá obriga a gente a passar. Falei não, voltar para trás eu não volto não. (...) Se a pessoa veio é porque ela não tem mais no que se apegar lá na cidade. Entendeu? E só fica aqui aquele que crê em Deus e luta com todas as suas forças para poder ficar. Para não voltar para trás. Para não ver os filhos lá ladrão, usando droga. Então fica. Mas muitos não ficam. Aqueles que gostam de dinheiro mesmo não ficam não. Eu falei, ah, eu vou ficar porque voltar para trás eu não voltar porque eu não tenho nada na cidade. (...) daqui é nós ir para frente.

Somente no dia da assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), realizado na Câmara dos Vereadores de Ribeirão Preto, com a presença de inúmeras autoridades é que os (agora) assentados puderam acreditar que finalmente a luta pela conquista do assentamento havia chegado ao

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fim. Eram finalmente vitoriosos. O TAC era, então, a lei que todos assinavam comprometendo- se a construir ali formas dignas para se viver.

O momento do TAC marcou um novo começo: de novas esperanças e de novos temores. O Sr. Cosme, que no passado não havia compreendido os acertos de conta do proprietário de quem foi meeiro, também não conseguiu, ainda, entender a linguagem enigmática do TAC. Mesmo assim, sabe que não poderá alegar o desconhecimento da lei para se livrar das sanções previstas no documento assinado.. O TAC é um pacto coletivo, o que significa que o descumprimento por um dos assentados pode comprometer a conquista de todos. Esse é um dos fantasmas que passaram a assombrar as relações de vizinhança.

Muito do que estava previsto no TAC, especialmente os itens ligados às tentativas de produção agroecológica já era, em alguma medida, praticado pelos assentados, mesmo nos últimos anos de acampamento. A Secretaria Regional do MST, naquela época, incentivava a participação dos acampados em cursos de agroecologia, sendo que, logo no início do assentamento, em 2004, foi feito acordo de apoio técnico com a Embrapa nesse sentido. A expectativa da Embrapa era de conseguir transformar o assentamento em um modelo alternativo de produção em relação ao quadro presente na região, marcado pela predominância da monocultura da cana-de-açúcar, inclusive nas áreas de preservação ambiental e de reserva legal.

Alguns financiamentos e recursos chegavam e, junto deles, as exigências formais (projetos) e os técnicos para contribuir na escolha sobre como gastar o dinheiro, como construir as casas, como e o que produzir, de que forma comercializar e assim por diante. Todos que chegavam vinham carregados de ideais e projetos porque estariam lidando com um assentamento modelo e pioneiro sob muitos aspectos. À medida que o tempo passa e a infraestrutura de responsabilidade do INCRA não é construída, algumas metas do TAC vão sendo proteladas. Começa então a crescer entre os assentados um forte temor de perder a terra, seja em razão do descumprimento do TAC, seja pela incapacidade em saldar as futuras dívidas de financiamentos agrícolas que já começavam a aparecer, sem que houvesse condições gerais para garantir a produção.

Assim, tão logo o assentamento foi aprovado, os assentados já estavam em outra condição: muita expectativa, muitos sonhos, grandes cobranças, vários controles, novos medos, outras angústias. O tempo não parou, o passado foi submerso pelas novas exigências de um presente que haveria de se realizar a todo custo. O assentamento era considerado referencial para todos. Por isso, ele “tinha que dar certo” de qualquer jeito, mesmo com a falta da estrutura e apoios prometidos.

De modo geral, os assentados reclamaram por direitos básicos, como

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escola, posto de saúde e recreação, presentes inclusive nos termos do TAC, como parte dos compromissos assumidos pelo INCRA. Isso sem falar na infraestrutura de água, energia e esgoto. Sem esse mínimo, os sonhos de viver e trabalhar na terra ficavam ameaçados. Também, os assentados se queixaram de posturas consideradas, por eles, como autoritárias por parte de alguns técnicos ou apoiadores, que queriam impor formas de se gastar os recursos recebidos, de se construir e plantar nos lotes.

Mesmo sinalizando para o peso da postura autoritária das entidades de apoio sobre suas vidas, os assentados também demonstraram nos relatos vestígios de que não estão todos submetidos drasticamente ao comando de uma técnica fria. A resistência não é dada no sentido de se perpetuar formas tradicionais de vida, mas ela é a oposição, nesses casos, às formas autoritárias assumidas por vezes pelos saberes e práticas de agentes com o interesse de “trazer o novo”. Todavia, a resistência ainda é silenciosa. Poucas são as situações de enfrentamento direto dos assentados contra as práticas autoritárias. Aceitam aparentemente, mas se opõem depois no dia-a-dia, na medida em que deixam de lado o conteúdo transmitido pelos agentes presentes no assentamento. Sr. Alvino, por exemplo, aceitou um dos desenhos sugeridos pelo grupo de extensão universitária para a construção da sua casa com os recursos da Caixa Econômica Federal. Mas o sonho mais vivo que carrega em si é ligado ao dia em que poderá começar a reformar a casa e deixá-la do jeito que sempre quis:

Ah, o meu sonho que eu tinha antes era construir uma casa boa, né. E estou satisfeito. Bom, não é do jeito que eu quero, que eu queria. Porque a gente não pode mandar na vontade dos outros, né. A gente tem que ir pela ordem dos outros. Porque eu queria de um jeito, aí a Caixa veio e quer fazer de outro, então a gente tem que ir pelo jeito deles. (...) Porque eu já tinha um modelo dos meus sonhos, uma noção da minha casa e o modelo deles é de outro. É um padrão só para todos, então não tem jeito. Por isso que eu falo. Mas está bom, está bom assim mesmo. Depois, nem se for depois dela levantada, eu vou por ela do jeito que eu quiser, do meu sonho. Nem se for ao menos umas partes. (...) Porque a sala, você vê, dá a metade dessa aqui, é pequeninha demais. Eu tenho oito filhos, e a hora que chegarem os filhos, netos, bisnetos, os conhecidos e os amigos? Então onde é que vai caber nessa sala desse „tamaninho‟? Então, para receber, um pouco vai ter que ficar lá dentro e os outros ficam lá pro lado de fora, né? (...) Depois de pronto, porque eu não posso mexer enquanto eles não me entregam nas chaves, eu não posso mexer, porque esse aí é o projeto deles, eu não posso mexer. Aí depois que eles me entregarem, daí eu tenho o direito, posso fazer o que eu quero, posso desmanchar uma parede, falar assim: “ó, vou desmanchar essa parede aqui para aumentar mais aqui; ah, não quero esse banheiro aqui, vou botar ele pro lado de fora, do lado da cozinha”. Porque eu quero fazer a cozinha pelo lado de fora e eles colocaram pro lado de dentro. E eu não quero ela para o lado de dentro. Então, no lugar da cozinha eu vou deixar uma copa e faço a cozinha pro lado de fora, já passo o banheiro ligado lá, e aí, em vez de fazer só a cozinha, aí eu já faço minha área todinha ao redor dela todinha. Eu meço dois metros daqui até lá, faço uma área nela em redor todinha, aí já vai estar igual ao meu sonho, o que eu queria. E ela fica no meio, não fica? Aí do pátio até lá na frente, eu planto umas graminhas, para quando tiver chovendo ninguém não “lambrecar” os pés de lama e pronto.

A casa sonhada é muito diferente do modelo padronizado em que está sendo construída, mas ele não encontrou meios para contemplar seu

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desejo. A casa, como uma forma de materialização das subjetividades, comporta também outros sonhos e modos de vida que não cabem na casa planejada pelos técnicos. A descrição feita pelo Sr. Alvino põe a nu a relação historicamente problemática entre a visão dos técnicos e do homem rural (FREIRE, 1985; CAUME, 2006; VASQUEZ, 2009). Somente quando os técnicos realizarem suas metas é que haverá espaço para a concretização dos sonhos dos assentados. Os modelos de casas foram todos pensados de modo a se evitar desperdícios de material, uso excessivo de energia elétrica na construção e a produção de entulho. Uma vez prontas as casas e realizadas todas as metas de eficiência e qualidade ambiental das entidades responsáveis pelo projeto e pelo dinheiro, os assentados quebrarão paredes para colocar as casas no modelo dos seus próprios sonhos.

A resistência silenciosa acaba voltando-se contra eles próprios: a frustração dos técnicos com relação à baixa ou ausente adesão converte-se em um juízo pejorativo sobre os assentados. A boa oferta de préstimos não foi reconhecida por parte dos assentados, em razão do seu forte tradicionalismo, conservadorismo, baixa escolaridade etc. Nesse caso, o aprendizado político propiciaria a emancipação, na medida em que permitisse ao sujeito assumir certa linguagem que tornasse pública a sua contrariedade, resistência ou oposição às eventuais práticas autoritárias.

A dificuldade dos assentados em se perceberem como sujeitos autônomos é grande. Alguns sentem ainda a necessidade de alguém que fale por eles, que saiba o jogo da linguagem política para lutar por seus direitos. Aparece aí também o papel, por vezes assumido pelo movimento social, de responsável pelos indivíduos (VASQUEZ, 2009).

O espaço rico de diálogo, de troca e de produção de saberes sobre a condição social, política e histórica do sem-terra, criado pelo movimento social MST na época do acampamento não é ocupado, no assentamento, por nenhum outro agente. Os assentados também sentem dificuldades em dar conta de tantas outras exigências, agora formais, e, ainda assim, manter vivo o espaço público e político da reflexão coletiva. Em parte, sentem falta das reuniões e dos debates reflexivos, que eram mais intensos no acampamento. Também, a nova condição de garantia da subsistência reordenará o tempo (entre tempo livre e de trabalho) dos assentados e, nesse sentido, atuará como obstáculo às atividades de formação e à autorreflexão.

De modo geral, os assentados identificam como mudança a construção de uma visão mais complexa sobre o que é política, de uma percepção melhor sobre os seus direitos e sua condição como sujeitos de direitos. Cássio, nesse sentido, afirma:

Achava que política era o mal do mundo. Mas depois a gente acaba aprendendo que é através da política que tudo gira, tudo gira através da

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política. Então aí a gente adquire esse conhecimento político, tanto quanto social e acabei entrando também na parte ambiental. Eu acabei estudando também um pouco sobre a legislação ambiental, o que é reserva legal. Então eu acabei adquirindo, talvez se tivesse feito uma faculdade, eu demoraria mais, porque cada matéria tem o seu tempo e acabei englobando tudo junto e deu um montante de conhecimento que depois já não me dava mais conta de tanto que conhecia.

Muitos dos entrevistados falam sobre o aprendizado em torno dos direitos. Perseu entende as mudanças pelas quais passou como decorrentes de um processo que ainda está em curso, aproximando, na sua fala, as alterações materiais daquelas mais subjetivas:

É um processo que a gente veio sentindo as mudanças, tanto as mudanças de comportamento, como as mudanças... porque você vai tendo a visão. Você fala “agora vou ter minha casa, vou ter água”. Vai vendo também que para você ter, tem que lutar, porque não vem de mão beijada. Nessa vida minha, com desmanche de família, sem lugar para morar, eu estou construindo um local de referência de moradia, coisa que a gente não tinha. Eu estava acampado uma hora, agora construímos isso, temos uma referência de moradia, temos um endereço.

Mesmo com a construção de uma ideia mais complexa sobre a política e a sua condição como sujeito político do que as anteriores, os assentados, de modo geral, apontam para uma substancial diminuição das atividades consideradas por eles como de militância (assembleias, reuniões, protestos, entre outros) após a conquista do lote. Como causas desse processo alegam razões ligadas às próprias exigências de trabalho no lote: o tempo de dedicação ao lote acaba tomando o tempo que levavam para participar das atividades, especialmente as de formação realizadas fora do assentamento. Comentam também sobre o afastamento das lideranças que participaram da fase inicial da luta.

Por outro lado, inicia-se uma nova fase da luta. Já se mobilizaram no assentamento para a conquista de direitos que consideraram importantes. Na Prefeitura de Serra Azul exigiram a passagem do caminhão de lixo e a ligação de energia elétrica, não por meio de formas clientelísticas tradicionais, mas dentro das regras do jogo democrático e pela compreensão desses bens como direitos e não favores a serem oferecidos pelo governo. Assim nos contou Lineu:

Nós fomos na Prefeitura de Serra Azul brigar por caminhão de lixo. Agora ele já está passando, passa toda quinta-feira. Aí nós fomos brigar por energia, luz nos postes para dar uma clareada, posto de saúde, telefone público. Mas eu mesmo da minha parte já falei, que nós não estamos querendo luz de graça não, a gente quer que coloque e cobre no talão de luz, como na cidade normal. Nós estamos no assentamento, mas não estamos fora do mundo, nós estamos dentro do mundo. Na cidade não vem cobrado no talão? Então faz a mesma coisa!

Lineu demonstra abrir mão das formas clientelísticas e estabelece uma forte crítica a elas. As agências governamentais não mais produzem o temor

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de outrora. Se ele está no seu direito, mesmo com a ameaçadora presença da polícia, não abre mão de reclamá-lo e, inclusive, demonstra determinado orgulho ao narrar os episódios de protesto em que participou. Sobre a mobilização feita pelos assentados na Prefeitura de Serra Azul, ele afirma:

Policia é a primeiro que chega. “Nós não queremos briga aqui não, a gente está no nosso direito, nós queremos falar com o prefeito”, a gente já chega e já entra. Vai lá, se tiver café nós bebemos, bebemos uma água gelada, nós ficamos esperando o Prefeito. Dali um pouco ele apareceu, depois apareceu a televisão de Ribeirão, tudo. Perguntaram “ o que vocês estão querendo com isso aí, aí?” Nós passamos a pauta para eles “nós não estamos querendo nada demais, nem de graça, nós somos cidadãos daqui”. Como é que na hora de votar, neguinho vai lá? “Nós estamos querendo isso aqui, o caminhão de lixo”. Aí eles argumentaram lá. Era para arrumar a estrada, arrumaram. O caminhão de lixo está passando. Vamos ver as outras coisas com o outro Prefeito que ganhou, ele veio aqui conversar com a gente e garantiu que ia fazer o possível para fazer essas coisas acontecerem. Tipo a energia, telefone, orelhão e telefone para quem quiser colocar.

A relativa distância em relação às atividades da militância no MST não impede os assentados de se considerarem ainda militantes e, de modo geral, associam-se à atividade de luta política por direitos com a participação no MST. Assim é a fala de Cássio:

Querendo ou não, eu sou um militante. Só o que eu faço aqui, já acresce no movimento, através dessas visitas que levam essa teoria para fora, que debate o tema lá fora, já está crescendo o movimento. Porque o militante nunca deixa de ser militante, entendeu? Por mais que ele, vamos supor assim, que ele não está atuante, ativo ali, ele está sempre militando, ele sempre acha uma forma de militar. Mas, se tiver ocupação eu vou, o que tiver ao meu alcance eu vou, mas eu não posso ficar saindo muito.

Ao mesmo tempo em que justificam a diminuição da participação nas reuniões de militância e nos coletivos com a falta de tempo, vários assentados referiram-se à falta que sentem das reuniões de formação. Não podem mais sair do assentamento, mas se sentem carentes, em termos de atividades de estudo, de aprendizado e de formação antes organizados pelo MST. Luna nos contou sobre a tristeza sentida no assentamento em razão disso.

Sol valorizou na sua narrativa as atividades de formação promovidas pelo MST, já que elas colocavam os assentados em contato com os problemas do mundo. Ao mesmo tempo, Sol associa o termo política aos conflitos em torno do exercício do poder, à prática da mentira, garantia de privilégios, favoritismos:

A política para mim, eu vou te falar, é uma maneira de fazer mentira... a política é essa briga que tem, essa rixa entre assentados e movimento social, em geral, política da cidade também ,entre dois partidos. Eu vejo a política desse jeito, as pessoas brigando pelo poder, então eu não quero o poder, eu quero usufruir daquilo que eu tenho, não quero que político me ajude, seja política do assentamento, seja política da cidade. Eu só quero a ajuda de Deus, que é para poder trabalhar, mas ser protegido por fulano, ser amigo do fulano porque ele tem acesso a isso, eu não. Tem pessoas que usam isso para se beneficiar, e eu não, eu quero uma coisa justa.

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Contraditoriamente, Sol também aponta a necessidade de dirigentes do movimento com competência para defender seus interesses nos órgãos do governo, já que tanto ela como os demais assentados encontram-se, ainda, despreparados politicamente:

Tem que ter discussão para poder chegar aos órgãos públicos e reivindicar de verdade, saber por onde começa. Porque se eu chegar eu vou saber o que eu quero, mas eu não vou saber expressar. Colocaram um pessoal daqui mesmo que não está vingando, os que estão representando o movimento aqui dentro não têm política, tem um português ainda pior que o meu. Então vai no INCRA em São Paulo, vai em qualquer órgão federal aqui e não é respeitada, porque ao abrir a boca a pessoa já percebe que ela não tem como reivindicar. Eu vejo dessa forma, eu acho que falta a estrutura que tinha. (militantes anteriores) são pessoas que tem acesso a informação, eu acho que é isso que falta, que não fossem eles, mas que fossem pessoas capacitadas. Eu acho que a decadência desse assentamento com o movimento foi a troca com essas pessoas que ficaram ocupando o lugar deles. Tem umas pessoas aqui, que meu Deus do céu, se você faz uma pergunta para uma pessoa, a outra interfere e responde, vem buscando briga.

No sentido inverso, o Sr. Castor fala sobre o mesmo tema. Seu ponto de partida é daquele que se sente agora sujeito de direito, linguisticamente competente para reivindicar seus direitos; sujeito autônomo, porque agora tem condições de conduzir seus próprios passos no mundo em direção às suas dúvidas. O caminhar dele é feito pelos pés e, sobretudo, pela língua:

Eu não sabia conversar, não sabia, está entendendo? Só que eu fui treinando “devagarinho” também. Vinha um coordenador, coordenador de segurança, coordenador de almoxarifado e sempre aquelas pessoas. Porque quando nós estávamos em casa, eu não tinha tempo de aprender a conversar com os outros, porque todo dia trabalhando. Todo dia trabalhando e lá se ia todo tempo. E se eu via um doutor conversar eu “‘pá”, escutava. Se vinha outro conversar eu „pá‟, escutava. Falava “É por aí”, eu vou desandar nesse trem também. (Risos) Aí foi quando eu desarmei. Desarmei. E devagarzinho de lá para cá eu andava perguntando as coisas. Eu perguntava, a gente já foi andando um pouco assim com as pernas, com a língua. Ai foi quando o INCRA já começou a entrar aqui. Ai começou a negociar, começou a negociar e foi, e foi e foi... aí está até hoje.

O relato do Sr. Castor ilustra bem o complexo processo de apropriação de significados políticos que se dá na realidade concreta dos sujeitos que estão na luta. A linguagem conquistada teve seu conteúdo semântico retirado do seu movimento de libertação e das relações concretas vividas nos espaços sociais do acampamento, do assentamento. Mas também está em constante jogo de aproximação e distanciamento dos conteúdos semânticos próprios da política tradicional (NEGT; KLUGE, 1999).

A aquisição de vocabulários específicos por um sujeito está relacionada ao processo de interiorização de campos semânticos que estruturam interpretações e condutas de rotina em um grupo ou área institucional (BERGER; LUCKMANN, 2005). Sr. Castor agora está inserido em uma comunidade e pode, com o acervo linguístico adquirido, enfrentar novos acervos, buscar legitimar

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o seu, pode ressignificar sua biografia, a de seus familiares, parentes e a do grupo social. Seu mundo pode ser agora dotado de uma realidade consistente e ele tem possibilidade de explicá-la em seu funcionamento, em termos da linguagem e do conhecimento adquiridos.

A luta permitiu a eles um conhecimento sobre realidade local, regional e até do mundo. A ação cotidiana de produzir alimentos nos marcos da sustentabilidade ambiental é compreendida por alguns como uma ação também política de oposição ao latifúndio monocultor e predatório do homem e da natureza. De modo geral, puderam situar suas histórias pessoais no contexto mais amplo das formas de produção nas sociedades capitalistas. Mas a tensão também aparece em algumas falas. Sr. Castor disse ficar injuriado quando ouve alguns militantes falarem tão mal da cana-de-açúcar e da burguesia:

O povo fala aí burguesia, eu não chamo burguesia. Sabe por que eu não chamo? Porque é o seguinte: Eu cortei cana muitos anos num latifúndio. Mas sem o latifúndio o que é que eu comia, sendo que eu nasci na pobreza? (...) eu tinha que trabalhar nela. Eu não tive cabeça para estudar. (...) Eu fiquei 10 anos na escola eu não aprendi a ler e eu não aprendi a escrever. O que eu vou fazer na vida? Eu tenho que cortar cana mesmo. E eles chamam latifúndio. Eu não tenho nada que falar de latifúndio por quê? Tudo que eu trabalhei lá ele me pagou. O que eu vou falar dele? Vou falar nada. De todo jeito eu tenho que trabalha mesmo. Ou para ele, ou para outro eu tenho que trabalhar, eu vou fazer o quê? Não que eu estou puxando o saco, ou que eu estou cuspindo no prato que eu comi. Não pode. O corte de cana é uma miséria, deixa a gente sem saúde, deixa a gente todo danado, mais você não tem outra profissão, se você não trabalhar na cana, vai para cadeia. Você tem que cortar cana mesmo.

A atividade na agricultura aparece em sua fala como uma profissão residual tanto no passado como agora, assentado, pois se ele “tivesse estudo”, não estava no assentamento. O lote no assentamento foi o único modo de ampliar as possibilidades da única alternativa com que se deparava e o trabalho no corte de cana-de-açúcar era a única alternativa para quem não fez a escolha pelos estudos. O mesmo sujeito que está ainda aprendendo a andar com as próprias pernas e língua, encontra dificuldades em se desvencilhar da responsabilidade pessoal de sua condição social como trabalhador precário. O trabalho no corte da cana-de-açúcar é a última opção dada a um homem sem estudo, antes do cárcere que, na sua visão, seria a pior de todas as condições sociais. O burguês e o usineiro o salvam na última situação possível antes do cárcere: ser trabalhador “boia- fria”, miserável e sem saúde.

Sr. Castor, pelo caminhar das pernas, sai de seu estado de menoridade, erguendo-se no mundo e com o uso da língua ingressa no campo político de reivindicação de direitos). Mas sua fala, também acaba por revelar a natureza de campo da lavoura intensiva de cana-de-açúcar, onde trabalhou a maior parte da vida. Não nos referimos aqui ao campo no sentido de espaço rural, mas sim, nos termos de Agamben (2007), ao espaço diferenciado dentro do

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território do Estado-nação, onde o exercício dos direitos é suspenso; as vidas que ali habitam e trabalham são desprovidas da condição de cidadania, de qualificações, garantias, atributos, potências políticas; representam os seres dos quais foram excluídas a humanidade, a linguagem e o poder de relação.

Ele abandona, aos poucos, a fala, enquanto um conjunto de frases soltas, e consegue elaborar uma linguagem política de reivindicação. Suas carências podem, então, ser ressignificadas em termos de direitos e garantias. Por isso, a conquista pela linguagem é conquista pela cidadania também: é nesse novo campo semântico em que caminhará, numa batalha sem fim, com vistas à garantia de seus direitos, de forma individual e coletiva. Mas essa linguagem é ameaçada, o tempo todo, pelas apropriações dos termos e símbolos da luta que os grupos, até então responsáveis pela mudez política do assentado, tentam incessantemente realizar.

A labuta diária na terra, que retira a possibilidade do ócio criativo e redefine a divisão do tempo dos assentados, também atua no sentido contrário ao da participação na luta. “Vencer o mato com a enxada” não é fácil: exige dedicação diária de grande parte dos membros da família. A dureza do trabalho no campo foi uma das justificativas também utilizada pelos assentados para a diminuição da sua participação em atividades de militância.

O exercício permanente e vivo da linguagem nos espaços coletivos do assentamento e nos espaços externos ao assentamento, de maneira coletiva, seria uma possível medida contra a perda dos sentidos. Por isso, o recolhimento ao cotidiano doméstico e privado não necessariamente pode significar um recuo da política, pois há desejos individuais a serem satisfeitos, feridas que precisam de cura e disputas e negociações em torno da garantia de novas relações de medidas ali também necessárias. Mas, a longo prazo, a força dos mecanismos de integração e de dessensibilização, próprios das sociedades administradas, atuarão brutalmente em favor do esquecimento da linguagem conquistada.

Selena sinaliza para uma conquista em termos de isonomia, na relação de gênero, na divisão do trabalho e na definição das regras da economia doméstica: a hora de plantar, colher, o preço e as formas de venda da produção passaram a ser definidas por todos aqueles da família que trabalham, e não mais exclusivamente pelo marido. Também argumenta em relação a outras mudanças substanciais:

Mudou porque eu hoje, eu falo até demais porque eu não falava muito. Os outros chegavam aqui em casa e eu escondia. Hoje não, hoje eu falo, se eu tiver que chegar num hospital, que já aconteceu, de eu chegar e brigar com o porteiro e entrar dentro do hospital. Mudou por causa disso, porque antes eu chegava e se alguém falava “Ó não tem jeito” eu voltava para casa, com menino doente, ou eu, ou o marido doente, voltava para casa, não tinha aquele negócio de brigar, entendeu? No caso, hoje eu vejo que mudou por causa disso porque se eu chegar num hospital: “Ó, eu quero uma consulta” “Não, não tem, volta mais tarde, está demorando”. Hoje eu tenho essa coragem de chegar e falar: “Por que está demorando? Que é que está acontecendo? Vai esperar morrer, vai

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esperar enterrar para poder atender?” Escola, mesma coisa, quando me chamava na escola ou de repente tinha que ir lá porque tinha que ir mesmo, chegando lá o pessoal falava, falava, falava, eu escutava e voltava para casa. Hoje não, eu pergunto: “Por quê?” falo: “Não, tira, tira desse lugar. Separa uma criança do outro para parar de conversar” então eu vejo assim que mudou. Eu para mim mudou nesse caso. (...) Pessoal chegava aqui na minha casa fazia assim e eu ficava quietinha, hoje não, hoje é diferente! Então, hoje eu vejo que mudou bastante nisso. E a outra coisa também é, hoje, só que por um lado melhorou nisso, e a outra coisa piorou entre eu com a minha família (parentes), (...) já mudou, para pior, porque eles não aceitam. Essa semana mesmo, eu fui para lá eu discuti com eles, porquê? Por causa de sem-terra, ficam criticando o sem-terra. Então a gente acabou que, brigando, e antes eu não fazia isso, então depois que eu vim para o movimento, vixe, brigo com qualquer um. Assim, não de tapa, né! Mais é de boca, eu falo: “Não gosto disso, quero isso, está errado isso”.

Luna e Sra. Augusta também nos contaram episódios que sinalizam no sentido da reconstrução dos seus papéis no grupo familiar em torno da defesa dos direitos delas e dos filhos. Sol nos falou a respeito do novo rearranjo da economia doméstica: ela assumiu todas as tarefas da lavoura enquanto o marido complementa a renda familiar com atividades profissionais desempenhadas no meio urbano.

Mesmo com todos os desafios implicados ao processo de construção de relações de gêneros mais igualitárias, o que percebemos foi um ganho de consciência crítica sobre a questão, o qual varia, contudo, de acordo com as experiências de vida anteriores de cada um. Nos espaços públicos, muitas mulheres sentem-se mais capazes e seguras para reivindicar direitos. No âmbito das relações domésticas, a capacidade linguística adquirida, quando não é suficiente para instituir arranjos mais isonômicos na divisão das tarefas, ao menos, parece permitir aos familiares uma melhor negociação dos papéis e tarefas de cada um.

Conclusão

Pudemos perceber pelas histórias de vida que os horizontes materiais e simbólicos de cada um dos assentados entrevistados ampliaram-se significativamente durante todo o processo de luta pela terra. Aconteceram transformações significativas nas relações dos assentados com o tempo, com a natureza, os familiares e vizinhos, o meio urbano, as relações de gênero, a educação, a política, os direitos, o governo, o saber científico e o trabalho. Isso tudo de forma tal que podemos dizer que eles, em variadas medidas, despertaram para uma autoconsciência e para uma coragem capazes de redefinir algumas estruturas e formas de poder.

Dentre todas as mudanças, lançamos um pouco mais de luz à passagem das pessoas de uma esfera massificada, marcada pela não política, para um espaço social e político em que podem afirmar-se como sujeitos de direito, a partir de certa linguagem política também conquistada. Os assentados

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puderam erguer-se no mundo, frente a uma realidade social que insistia por mantê-los em estado de carência (material e social) e puderam passar a caminhar com suas próprias pernas. Sobretudo, ergueram-se simbolicamente e puderam iniciar os passos na política com certa linguagem adquirida, marcada semanticamente com os referenciais da luta pela terra.

A linguagem não é apenas um modo de comunicação, mas também de interação, de constituição da subjetividade e da experiência. O sujeito pode, por meio da linguagem, significar o mundo, o novo espaço de autonomia conquistado e as necessidades concretas da vida. A linguagem insere o sujeito em certo contexto social porque permite a ele interpretar sua história e sua realidade, construir leituras capazes de desvelar o oculto. Por isso, o andar e o falar são partes indissociáveis do movimento de libertação do indivíduo e de seu reconhecimento enquanto sujeito de direito.

Na luta e pela luta, os acampados e assentados confrontaram-se com o conteúdo ideológico do discurso sobre a neutralidade da lei moderna e com as divergências, ambiguidades e conflitos entre as orientações dos próprios poderes do Estado. Tal confronto viabilizou a ampliação do sentido geral de alguns direitos fundamentais, que só abstratamente são garantidos nas democracias formais.

Todavia, o mais difícil agora no assentamento é compreender que o reconhecimento jurídico dos direitos nunca é, de fato, suficiente para o real exercício de uma vida digna e da autonomia. As pressões cotidianas da luta pela sobrevivência, os mecanismos produtivistas da lógica mercantil, a presença dos agentes do Estado, são alguns dos elementos que, por vezes contraditoriamente, atuam contra a possibilidade de emancipação.

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DIREITO E REFORMA AGRÁRIA: QUESTÕES INTRIGANTES E PERTINENTES AO ACESSO À JUSTIÇA

Roberto de Paula1

1.Introdução

A temática agrária está na pauta da realidade brasileira. Diariamente abordada de maneira superficial desde os noticiários filtrados e ideológicos dos meios de comunicação de massa até nas mesas de discussão das universidades, com pretensão revestida de cientificidade. Os temas ora abordados despertam paixões discursivas acerca das questões agrárias, tais como, direito de propriedade ou direito à propriedade; papel eqüidistante ou juiz agrarista, capaz de se envolver na dramática realidade de conflito coletivo pela posse da terra, entre outras.

Vislumbra-se, ainda que em sede de utopia (u, possibilidade; topos lugar), a possibilidade de resolução dos conflitos coletivos pela posse da terra e da histórica situação de exclusão do trabalhador rural é vislumbrada com a instituição da Justiça Agrária. O fundamento jurídico para tal justiça especializada decorre dos princípios insertos na Constituição Federal e seu suporte acadêmico científico é dado pelo Direito Agrário. Os fundamentos de validade dos ditames constitucionais (princípios) devem se sobrepor ao direito de propriedade privada da terra.

A Questão Agrária é tratada como ferida aberta no tecido social brasileiro. Neste sentido, aborda-se, aqui, não só o chão histórico acerca da cristalização do direito de propriedade e de apropriação da terra, mas também da produção legislativa agrária no processo de formação social, isto é, da atuação e aplicação do Direito, diga-se da aplicação com base na tradição privada ou romana do jus. Assim, sustenta que, com a criação da Justiça Agrária, poderia estabelecer marcos decisionais aceitáveis para apreciação dos conflitos e litígios possessórios coletivos.

O modelo metodológico escolhido é a hermenêutica histórico-dialética. O método histórico-dialético, numa perspectiva sociológica e filosófica é inconteste, pois revela que a temática apreciada se dá no chão da história

1 Doutorando em Direito pela UFPR - Universidade Federal do Paraná - Área de Concentração: Direitos Humanos e Democracia; Mestrado em Direito Negocial - Área de Concentração: Direito Processual Civil - Linha de Pesquisa: Acesso à Justiça - UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA/UEL; Graduação em Direito na UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA - UEL; Especialização em Direito Penal e Criminologia UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ UFPR/ ICPC; Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Aplicado pela ESCOLA DA MAGISTRATURA DO PARANÁ - EMAP/PR; Professor da FACULDADE DE DIRETO DE ALTA FLORESTA - MT; Ex-coordenador do Núcleo Municipal de Proteção e Defesa do Consumidor/ PROCON-LONDRINA; Assessor jurídico da Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária Norte Pioneiro – COANOP – de São Jerônimo da Serra, Paraná; Advogado - http://lattes.cnpq.br/6148179840163945

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brasileira e aclara as contradições entre classes e atores sociais envolvidos no contexto. Com esses instrumentais desvela-se que em relação ao jus agrarismo a produção legislativa e a práxis do Judiciário optou por não fixar marcos eqüidistantes no tratamento das demandas, mutilando a idéia de justiça.

2. Implicações históricas e jurídicas do conflito pela posse da terra no Brasil

A judicialização da Questão Agrária no Brasil é recente se comparada ao processo de formação do latifúndio e de resistência do campesinato pela posse da terra. Para Celso Furtado “a concentração da propriedade da terra está profundamente enraizada na formação histórica do país” (FURTADO, 1989, P.59). A questão agrária desde sua gênese apresenta distorções sociais e jurídicas que refletem e influenciam o Direito na seara agrária da atualidade. O que ocorreu no Brasil foi a formação de extensos latifúndios e a segregação entre possuidores e marginalizados do acesso a terra.

2.1. A legislação estrangeira e o Direito Nativo: esta terra tinha dono !!!

A historiografia oficial é uma visão parcial dos vencedores, não reconhece a existência de um Direito pátrio das nações indígenas no período anterior à colonização (MARÉS, 1989, p.8). No entanto, há que se inferir certo tipo de organização da vida social indígena com sua forma de procedimento no que concerne à propriedade, família, matrimônio, sucessão, delito.

É cediço que, de um modo muito particular, as nações indígenas tinham seu próprio modo de resolver os conflitos sociais e os temas atinentes à vida social. Aclara-se a existência de um Direito Natural (jusnaturalismo), originalmente pátrio, fundado nos mores (costumes) da nação. Alguns autores, dentre eles Jacques Távora Alfonsin, postulam a tese da existência de um “Direito insurgente, eficaz, não-estatal” (ALFONSIN, 1989, p. 20) nas remotas comunidades de indígenas e negros do Brasil colonial.

2.2. As Sesmarias: começou a concentração da propriedade!!!

Na perspectiva da “história oficial”, a questão fundiária brasileira começa com o nomeado regime de sesmaria, cujas raízes remontam ao ano de 1375, quando o Rei de Portugal D. Fernando I, criou a Lei de Sesmarias, visando a ocupação de terras abandonadas numa época de profunda crise de abastecimento alimentar no Reino. A Lei determinava que os donos das terras ociosas deveriam lavrá-las ou transferi-las a terceiros capazes de torná-las produtivas.

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Na dominada Terra Brasillis o modus operandi na distribuição das terras é a fonte originária do latifúndio. Ocorre que para se ter direito a uma sesmaria, mister se faz ao candidato que seja de negócios, de posse e capacidade econômica para gerir e administrar o principal meio de produção desse sistema, qual seja, o engenho de açúcar. Assim, simultaneamente, acompanhando os primeiros passos da formação da propriedade, germinavam as sementes do Estado.

2.3. As sesmarias tornam-se latifúndios

O latifúndio sesmeiro concebe a terra como efetivo símbolo do bem privado, fonte do poder econômico, social, político e jurídico de reduzido número de pessoas. O latifúndio escravagista é o eixo central da atividade econômica colonial e delimitador de uma sociedade extremamente desigual e de classes definidas: senhores e escravos. Dentre as conseqüências da política agrária sesmeira, destacam-se: o fortalecimento do poder político-econômico do sesmeiro, pela concentração da propriedade da terra; modelo agrícola baseado na prática predatória; formação de extensas propriedades; prevalência da monocultura; a mentalidade latifundista, mantenedora de grandes glebas de terras.

Apesar de paulatino declínio e desuso da Lei de Sesmarias em Portugal, e da realidade totalmente diversa, foi aplicada no Brasil durante três séculos, embora não houvesse aqui terras de lavradio abandonado. Pois, as terras eram ocupadas. A ocupação indígena era evidente, visível, com reconhecimento de fronteiras “demarcadas” entre as nações nativas. Assim, os ditos desbravadores, conquistadores, descobridores, na verdade promoveram invasão de uma terra que tinha dono originário.

2.4 A Questão Agrária no Império: Regime de posse e Insurgência dos Cabanos.

O sistema sesmarial foi extinto em 17/07/1822 pela Resolução nº. 76, confirmada pela provisão de 23/10/1823. A partir desta data passou a vigorar o sistema de posse, cuja regularização definitiva efetivou-se em 18 de setembro de 1850, com a Lei nº. 601- Lei de Terras, também denominada Lei de Terras e Imigração ou ainda Lei de Terras Devolutas.

Ressalte-se que com a Constituição Imperial de 1824 ficou definitivamente extinto o instituto da sesmaria. Mas, o Diploma Constitucional do Império não tratou da estruturação fundiária do país, mas garantiu o direito de propriedade no Art. 179, XXII, numa clara manifestação da força e do corporativismo latifundista, que persiste até hoje na política brasileira: “Art 179: (...) XXII – é

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garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude [...]”. Denomina-se Regime de Posse o interregno temporal sem lei que

regulamentasse a aquisição originária de terras, pois do fim do sistema sesmarial (1822) até o advento da Lei de Terras (1850), têm-se 28 anos de lacuna no tocante à legislação agrária.

Nesse contexto, em 1835, um grupo de camponeses se rebela contra a escravidão e a miséria no Pará. Os cabanos eram negros, mulatos e índios. Todos camponeses sem terra. Empreendem uma marcha revolucionária do campo para a cidade. Tomam a Capital (Belém). Executam o governador e conquistam o poder. No entanto, mal sucedeu que não tinham um projeto político de mudança. O Império fortalece suas tropas e massacra sistematicamente a sublevação popular cabana. Estima-se que 40% dos habitantes da província foram mortos pelas forças imperiais (VARELA, 1998, p. 141).

Para impedir a “ocupação desordenada”, nesse contexto, mister se faz agir com repressão e para reprimir é necessária uma norma legal coercitiva. No interstício temporal em que se verificou o regime de posse, à elite agrária, cuja força política e jurídica é incontestável, houve tempo o suficiente para gestar o império da lei: a Lei de Terras de 1850, expressão máxima da produção legislativa durante no Império.

Tanto no regime colonial de sesmarias, quanto no de Independência, nota-se uma efervescência de luta e resistência por parte dos posseiros, indígenas e negros.

2.5. A legislação Agrária na República e Canudos

A questão agrária, cuja solução se arrasta desde os primórdios da Colônia, foi tema debatido durante a Primeira Constituinte Brasileira. O grupo hegemônico defendia a plena autonomia dos Estados sobre as terras devolutas, objeto de conflitos. Esse grupo era constituído dos latifundiários e coronéis que mantinham verdadeiro poderio nos Estados. Assim, foram gestados os dois instrumentos normativos: a Constituição de 1891 e o Código Civil de 1916, que, diga-se de passagem, perdurou até janeiro de 2003.

Com a República a situação no campo continuou a mesma. Com o escopo de continuar o processo de legitimação da dominação dos senhores da terra, convocou-se a Constituinte de 1890. Canudos dá-se durante a República. Cabe chamar atenção para a prática estatal da deslegitimação e desmobilização da organicidade popular, lançando mão da tática de criminalização das lideranças.

Canudos era um arraial isolado e de difícil acesso encravado no sertão, Norte da Bahia. Na região se instalou a partir de 1893 o beato Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro. O Conselheiro despertou a ira das autoridades e do clero católico, que consideravam-no uma ameaça ao

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establishment. Dentre outras acusações figura a de que teria comandado uma queima de editais de cobrança de impostos.

Ao lado da reivindicação política, instala-se o discurso da efervescência religiosa e do descrédito pela República, com a conseqüente desobediência civil. A pregação do líder de Canudos fez tremer a terra nos sertões baianos, não somente pelos dons divinatórios (de premonição e cura), mas, sobretudo, pela capacidade política de articular massas de excluídos, e por sensibilizar o sofrido sertanejo a tomar uma posição de luta e resistência. Apesar dos dados incertos e desencontrados dos historiadores, estima-se que uma grande massa de pobres e maltrapilhos acorreu para Canudos, chegando a uma população de mais de 30 mil pessoas (PANINI, 1990, p. 47).

A “cidade livre dos camponeses”, como Canudos era conhecida, resistiu a três expedições do exército da República. Porém, sucumbiu na quarta expedição, em 5 de outubro de 1897. Carmela Panini assim escreve: “Desta feita, a cidade é destruída. Grande parte dos camponeses é torturada e exterminada. Alguns se suicidam para não se entregarem ao exército [...]”. (PANINI, 1990, p. 48)

Canudos é um exemplo de resistência na história campesina brasileira. Resistiu até o esgotamento completo. Euclides da Cunha, na obra Os Sertões, narra quando caíram os seus últimos defensores: “Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados” (CUNHA, 2002, p. 532).

2.6. O tratamento da Questão Agrária no século XX e o ressurgimento da luta pela terra: as Ligas Agrárias Campesinas

Um otimismo exagerado marca o início do século XX. O pensamento cientificista se impõe, com a fé cega no razão como instrumento, nas ciências da natureza e no liberalismo como modelo econômico hegemônico.

O Brasil, inserido no contexto mundial, experimenta essas promessas e mudanças da Modernidade. Entretanto, em relação ao jus agrarismo a ação estatal é de manutenção da estrutura agrária preestabelecida. Entre 1940 e 1964 ocorre verdadeira efervescência no campo brasileiro. Fábio Alves do Santos destaca os movimentos desencadeados em diferentes regiões do país:

Resistência dos camponeses em Porecatu, norte do Paraná (1950); Revolta de Formoso e Trombas, no norte de Goiás (1954); O sindicalismo dos trabalhadores rurais de Governador Valadares, Minas Gerais (1955); a Resistência do Sudoeste do Paraná, Pato Branco e Francisco Beltrão (1957); Liga Camponesa, em Pernambuco e Paraíba; o Movimento dos Agricultores Sem Terra – MASTER -, nos anos 60, no Rio Grande do Sul (SANTOS, 1995, p. 106).

O nascimento das Ligas Camponesas está intimamente ligada à atuação

do Partido Comunista Brasileiro (PCB). No Nordeste, a crise da cana-de-açúcar,

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no início do século, fez com que os senhores de engenho arrendassem terras a foreiros, passando a viver de rendas provenientes do foro e do cambão2. Ocorre que, com a Segunda Guerra, cresce a demanda pelo açúcar e o preço sobe. Assim, levas de foreiros foram expulsos ou obrigados a se sujeitarem a trabalhos forçados nas usinas, sem justa remuneração.

Na década de 40, os trabalhadores rurais iniciam um processo de organização, sob a orientação do PCB. Em 1948 o Partido é colocado na ilegalidade, desaparece toda organização inicial em torno das Ligas. Em 1954, os foreiros do Engenho Galiléia formam uma associação agrícola e passam a lutar contra as tentativas de expulsão por parte do dono do engenho. A resistência toma dimensão nacional via imprensa. Ressurge a nomenclatura “Liga Camponesa” para o movimento dos “galileus”, agora sob a orientação do advogado e deputado socialista pernambucano Francisco Julião.

As Ligas organizam-se Ligas em treze Estados. Emerge não só a discussão pela Reforma Agrária, mas sob o lema “Reforma Agrária na lei ou na marra” desencadeia-se pela primeira vez a prática de ocupações de terras (ocupação é diferente de invasão, por não cumprir requisitos legais ou de interesses sociais). Tal atitude provoca o recrudescimento e iminente investida do latifúndio (latifundiários).

O contexto histórico da Ligas remonta ao horizonte utópico de implementação da Reforma Agrária. A luta pela terra viveu verdadeiro paradoxo. Em 1963 o Presidente João Goulart (Jango) promulgou o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR). Em síntese, o Estatuto não contemplou a expectativa das Ligas Camponesas, que viu neste uma estratégia governamental para controlá-la, cooptá-la, deslegitimando-a em prol de um sindicalismo rural. Caio Navarro de Toledo, assevera que diante do impasse criado, a proposta de Julião foi que as ligas assumissem o protagonismo e a vanguarda política dos sindicatos (TOLEDO, 1986, p. 778).

Assim, os movimentos agrários “lançam suspeita das reais intenções do presidente, enquanto os senhores da terra e setores conservadores do empresariado condenam o presidente de ser o causador da agitação e desestabilização nacional” (DREIFUSS, 1981, p. 162).

Os historiadores são uníssonos em considerar que o evento do dia 13 de março de 1964, denominado “comício das reformas”, que contou com cerca de 200 mil pessoas, foi o estopim para a queda do governo. Ao final do discurso, Jango promulga dois decretos (nacionalização das refinarias de petróleo e desapropriação de 100 hectares que margeiam as rodovias e ferrovias federais). Promete, para breve, enviar ao Congresso Nacional os projetos de reformas de base, entre eles, o da reforma agrária.

2 Fábio Alves dos Santos explica que o foro era o pagamento em dinheiro da renda da terra feita ao proprietário. O pagamento de dois anos de renda corresponde ao valor da terra arrendada. O Cambão é a obrigação de trabalhar cerca de vinte dias de trabalho gratuito por ano (SANTOS, 2002, p. 107}.

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Passados quinze dias do comício, instala-se no país o golpe militar. As Ligas e os demais focos de luta pela terra são sistematicamente eliminados.

2.6.1. Ditadura Militar (1964/1985) e o Estatuto da Terra (Lei nº 4504, de 30 de novembro de 1964)

O nascimento do Estatuto da Terra remete aos conturbados anos de governo de João Goulart. Em 1962, sob intensa pressão do campesinato, especialmente das Ligas Camponesas, Jango encaminha ao Parlamento proposta do Estatuto da Terra. O projeto tinha fundamento moderado e liberal/burguês, mantendo-se nos limites da Constituição de 1946: preservava a intangibilidade da propriedade privada e, a destarte do processo de miséria dos trabalhadores rurais, propunha a facilitação do acesso à terra por meio de créditos aos camponeses. O escopo declarado era criar uma classe média no meio rural.

Apesar dos fundamentos moderados do projeto, foi rechaçado e, com o golpe de 1964, aprovou-se um novo Estatuto da Terra (Lei nº. 4504, de 30 de novembro de 1964). A retórica era de que o progresso adviria da modernização da produtividade agrícola. Assim, abasteceriam os centros urbanos, atingindo mercados externos e aumentar-se-ia o poder de compra dos camponeses. A proposta era simples: a modernização agrícola como solução do problema agrário. Esse foi o projeto vitorioso da burguesia agrária: o resultado foi o êxodo rural.

A fim de minimizar o grande êxodo rural, os governos do regime militar empreenderam uma verdadeira epopéia de ocupação do território. O corifeu do jus agrarismo brasileiro e ex-procurador do IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – órgão criado pelo Estatuto da Terra e que depois se transformou no INCRA, Fernando Pereira Sodero, denominou essa investida de ocupação dos “espaços vazios”.

Os trabalhadores rurais que migraram do campo para a cidade, especialmente no Sul e Sudeste, eram recrutados em projetos de colonização. Os pequenos proprietários eram seduzidos pela propaganda oficial a venderem suas terras e a adquirir lotes maiores a preços bem abaixo do mercado no norte do país. O slogan oficial “integrar para não entregar”, prestava de suporte ideológico para encaminhar um processo de ocupação e colonização, especialmente da Amazônia.

A Ditadura Militar esmerou-se em conter o avanço das organizações populares tanto no campo como na cidade. A Igreja Católica no Brasil, de início, apoiou o golpe militar. Mas, aos poucos se distancia do regime, tornando-se refúgio para lideranças e, por meio de seus agentes, implanta o projeto das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Nasce dentro dessa experiência a

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Comissão Pastoral da Terra (CPT), que chega até a organizar ocupações de terras. A CPT é considerada como uma das responsáveis pelo nascimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil, o MST. Muitas lideranças passaram pela experiência comunitária das CEBs.

Paulatinamente com o enfraquecimento das bases do regime militar dá-se o ressurgimento da luta pela terra. O enfrentamento político e ideológico fica claro desde o primeiro momento da convocação da Assembléia Nacional Constituinte (Constituição de 1988). A bancada ruralista se organiza em torno da UDR (União Democrática Ruralista) e os parlamentares afins da luta popular expressam a histórica reivindicação de acesso à terra, especialmente colocada na pauta-do-dia pelo MST. Neste contexto, a CF88 agasalha o conceito e princípio da função social da propriedade.

2.6.2 A Constituição Federal de 1988

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, já no capítulo dos direitos e garantias individuais, assentou que “a propriedade atenderá a sua função social” (art. 5º, XXIII) e imanta esse princípio no art. 186, in verbis:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado, II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Com a acolhida constitucional do princípio da função social da propriedade descortina-se para os movimentos sociais a possibilidade de nova hermenêutica constitucional e de judicialização dos conflitos coletivos agrários pela posse da terra, tendo como fundamento os valores de uma Constituição Dirigente que vincula o legislador e o aplicador do Direito.

3. A Criação da Justiça Agrária e autonomia do Direito Agrário

As matérias afetas à ciência do Direito Agrário são as relações emergentes no mundo agrário, tendo como base a função social da propriedade. Ora, a demanda coletiva pela posse da terra é uma temática emergente, que muitos autores jus agraristas não anteviram. A luta coletiva pela posse da terra atinge níveis de dramaticidade. Assim, não se trata meramente de se inserir na definição do Direito Agrário a reivindicação coletiva dos Movimentos Sociais, mas de efetivá-la como expressão garantista de direitos sociais e como realização e salvaguarda da promoção da dignidade humana, erigida a

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fundamento do Estado Democrático de Direito (CF 88, art.1º, III). Nesse passo, a questão agrária e a luta pela terra gozam de legitimidade, porquanto, trata-se de realização do preceito constitucional de promoção da dignidade humana.

O ponto crucial em relação ao Direito Agrário refere-se à autonomia jurisdicional. O problema situa-se com relação à práxis. A autonomia jurisdicional é uma “bandeira de luta” dos jus agraristas comprometidos com a efetivação dos princípios basilares desse ramo do conhecimento jurídico. Trata-se da aplicação dos conceitos e preceitos constitucionais da função social da propriedade como efetivação de direitos fundamentais.

Os conflitos agrários ou fundiários quase sempre acontecem no interior ou nos recônditos sertões do país. Assim, prima facie, as demandas caem necessariamente nas mãos de juízes de Direito de Primeira Entrância, que formados sob a égide civilística, prescindem tanto da normatividade do Texto Constitucional como também da teoria jurídica jus agrarista, cuja natureza e regime jurídico distinguem do ramo privatista.

3.1. Breves considerações da Proposta de uma Justiça Agrária

Com a Constituinte de 87, os eminentes agraristas, cônscios da necessidade de uma justiça agrária para o país, intensificaram a luta para ver a sua previsão na Constituição Federal. Vários trabalhos e estudos sobre o assunto foram publicados. O que surgiu da Constituinte foi uma “solução paliativa” a que se refere o dispositivo do artigo 126 inserido na Constituição Federal de 1988, verbis:

Art. 126. Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça designará juízes de entrância especial, com competência exclusiva para questões agrárias. Parágrafo único. Sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio (CF88. Art. 126, redação original).

A Emenda Constitucional n°. 45, de 08 de dezembro de 2004, conhecida como Reforma do Judiciário veio alterar, entre outros, o art. 126 da CF/88 que, passou a figurar com a seguinte redação:

Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias. Parágrafo único. Sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-à presente no local do litígio (CF88, art. 126).

Salta aos olhos a intenção do legislador em limitar a atuação das varas especializadas a serem criadas “para dirimir conflitos fundiários”, atribuindo apenas competência para julgar as ações decorrentes de conflitos fundiários, que correspondem apenas aos conflitos pela posse ou propriedade da terra.

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3.2. Características e idéias de uma Justiça Agrária

Atém-se aqui a alguns pontos importantes a delinear os contornos de uma Justiça Especializada Agrária, a saber: quais as características de uma Justiça Agrária (?); em que seria diferente dos Tribunais existentes na atualidade (?); qual a teleologia que justifica a criação dessa justiça especializada (?).

3.3. Da necessidade de juiz com “mentalidade agrarista”

Simbolicamente o imaginário popular é permeado da idéia de que os operadores jurídicos, especialmente os juízes, são inatingíveis, numa espécie de detentores do saber de uma cultura oculta. Em parte essa idéia ou simbologia (WARAT, 2002, p. 91) foi incutida pela aplicação individualista e civilista do Direito.

Qual a tarefa que se impõe ao Juiz agrário? Qual o perfil que se espera desse juiz especializado? E quanto à acessibilidade a esse magistrado? De pronto, diga-se que o juiz agrário deve ser acessível e, pela característica sui generis do conflito agrário deverá sempre se deslocar ao local do fato

De um lado estão os trabalhadores rurais, os sem terra, organizados em movimentos sociais, que agem para pressionar o governo a tomar posição de realizar e realizar a Reforma Agrária. O argumento é procedente e persuasivo, pois, fundamentados no direito de acesso a terra, previsto na Constituição Federal e legislação infraconstitucional, tal como o Estatuto da Terra. Doutro lado, os proprietários, unidos sob a argumentação da defesa e direito de propriedade, também previsto na Constituição Federal.

O conflito que decorre dessa relação social e agrária chegam às portas do Judiciário, trata-se de um fenômeno recente. O perfil do Juiz Agrário é o do especializado em Direito Agrário e nas questões concretas agrárias, sem olvidar os outros ramos do conhecimento, da Sociologia, Filosofia, Política, etc. Deontologicamente, o juiz é, antes de tudo, conciliador e profissional de mentalidade agrarista. Está implícita aqui a necessidade de reformulação da teleologia do ensinamento jurídico e da urgente reinserção da disciplina de Direito Agrário nos currículos das universidades. Para além dos pressupostos jurídicos, emergem os metajurídicos.

3.4. A Competência

O que for conteúdo do Direito Agrário é de competência da Justiça Agrária. A título exemplificativo: questões oriundas do domínio e da posse da terra rural, pública ou particular; as ações discriminatórias de terras devolutas, federais ou estaduais; as ações demarcatórias ou divisórias de

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imóveis rurais; as desapropriações, por interesse social, para fins de reforma agrária; as questões relativa aos negócios jurídicos agrários, compreendendo contratos agrários, financiamentos, seguros, armazenagem, transporte; os registros públicos pertinentes a imóvel rural incluindo o registro Torrens; as questões derivadas da interferência do governo na vida rural como tributação; os delitos agrários, assim considerados os que tenham causas, objetos e/ou conseqüências predominantemente agrárias.

3.5. Um processo agrário?

Numa ação possessória, envolvendo o interesse coletivo de luta pela terra, não se deve ter em conta somente o direito de posse sustentado pelo autor. A ocupação se dá como ato coletivo de pressão por parte de cidadãos e cidadãs que vêem nessa forma de luta um mecanismo de conquistar condições dignas de vida, já garantidas na Constituição e não efetivadas pelo Estado.

A destarte dos empecilhos aventados é perfeitamente possível pensar na organização recursal dos tribunais agrários, observando, no que for compatível, a forma da Justiça do Trabalho, por exemplo, postulação sem advogado, bem como, presença do juízo no local do conflito. Enfim, tudo o que for necessário para instrução e realização do escopo jurisdicional. O processo agrário, nesse passo, deverá primar pela informalidade, pela publicidade, pela uniformização nos casos de situações semelhantes, pela oralidade e pela concentração dos atos processuais. Com simplicidade e agilidade alcançar a justiça agrária para os que dela precisam. Faz-se imperioso que os tribunais agrários sejam independentes, com juízes competentes, nomeados por concursos públicos de provas e títulos, impregnados com a mentalidade agrarista, pois, somente desta forma, pode-se alcançar o verdadeiro sentido de existir da justiça agrária.

Conclusão

Nas linhas e entrelinhas deste deparou-se com questões que, para além de uma pretensa hermenêutica neutral, exige tomada de posicionamento, atitude sui generis para esse tipo de trabalho acadêmico. Nesse passo, a proposta da Justiça Agrária ganha dimensão de mecanismo social de efetivação do princípio da função social da propriedade (da terra) e de instrumento de redução de desigualdade social.

Tratar da Questão Agrária é vindicar que se coloque na pauta-do-dia a discussão e implementação acerca do Direito fundamental do acesso a terra. Para além de um mera discussão acadêmica, está envolvido aqui a sobrevivência e a subsistência de muitos cidadãos e cidadãs, a constituírem um “patrimônio mínimo” de existir no mundo e ter reconhecido sua dignidade humana

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Historicamente, quando se pensa em questão agrária no Brasil, emerge o equivalente: conflito. Juridicamente, tem emergido o equivalente: prevalência do interesse do mais forte (do latifúndio). A atualidade da temática é atestada pela presença na mídia, no imaginário popular expressado nas rodas de conversas e nos tribunais. A polêmica vem junto com a paixão causado pelo mesmo. Paixão, no melhor sentido literal: como pátere, que significa sofrimento, doença. Paixão que provoca, que mobiliza os deserdados do chão agrário, num país onde a realidade de sofrimento dos campesinos é presente.

Se o Estado é responsável pela prestação jurisdicional como forma de solucionar e dirimir conflitos, então, impõe-se como tarefa a este, em última análise, não só de exercer o jus puniendi advindo do conflito agrário, mas, sobretudo o múnus de implementar instrumentos de Acesso à Justiça, seja por meio judicial ou extrajudicial.

Assim, ao lado de uma verdadeira política de Reforma Agrária, dever-se-ia conceber a possibilidade de resolução judicial das demandas advindas pela posse da terra, bem como de prover os órgãos com missão de pacificação social por meio de instrumentos conciliatórios, tais como a valorização da Mediação de Conflitos levada a cabo pelas Ouvidorias Agrárias que atuam no âmbito do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) nos Estados.

A conclusão é de que a aplicação efetiva da função social da terra se efetivará com a instituição da Justiça Agrária. Deve-se sustentar, em vias de conclusão, que o objetivo da instituição da Justiça Agrária é a efetivação de princípios elevados à condição de fundamento da República Federativa do Brasil, a saber, a dignidade da pessoa humana (CF88, art. 1°, III), a cidadania (CF88, art. 1°, II).

Referências

ALFONSIN, Jacques Távora. Negros e Índios no Cativeiro da Terra. Rio de Janeiro: AJUP/FASE. 1989. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Ed. de Ouro, 2002. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1981. FURTADO Celso. Pequena Introdução sobre o desenvolvimento. São Paulo: Editora Nacional, 1989.MARÉS, Carlos Frederico. Índios e Direito: O Jogo Duro do Estado. Negros e índios no Cativeiro da Terra. Rio de Janeiro: AJUP/FASE, jun 1989.PANINI, Carmela. Reforma agrária dentro e fora da Lei: 500 anos de história inacabada. São Paulo: Paulinas, 1990.SANTOS, Fábio Alves dos. Direito Agrário: Política Fundiária no Brasil. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1995.

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TOLEDO, Caio Navarro de. O Governo Goulart e o golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 1986. VARELLA, M. D. Introdução ao direito à reforma agrária: o direito face aos novos conflitos sociais. São Paulo: Editora de Direito, 1998.WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II – A epistemologia jurídica da Modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002.

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A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E AS INTERPRETAÇÕES JUDICIAIS NA VARA AGRÁRIA DO SUDESTE PARAENSE

Mariana Trotta Dallalana Quintans1*

1. Introdução

O Brasil, ao longo da história, foi palco de fortes conflitos pela posse da terra. Muitos destes conflitos foram, no decorrer dos anos, levados ao judiciário. A Constituição Federal de 1988 estabelece a possibilidade dos Tribunais de Justiça instalarem vara agrárias para dirimir estes conflitos agrários.2 Diante desta previsão legal, ao longo dos anos foram instaladas varas agrárias em alguns estados da federação como Alagoas, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Roraima e Santa Catarina.

A partir de 2001, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará começou a aprovar a criação de varas agrárias em diferentes municípios do estado. Atualmente, o estado se divide em cinco regiões agrárias e há varas especializadas nas sedes de todas elas (municípios de Altamira, Redenção, Marabá, Santarém e Castanhal). A primeira delas foi instalada em 2002, na região sudeste paraense, na cidade de Marabá. Segundo a legislação estadual, os magistrados que fossem assumir a vara agrária deveriam ter especialização em direito agrário3 e teriam a atribuição de julgar os conflitos coletivos pela posse da terra.

No sudeste paraense, nos processos julgados pela vara agrária de Marabá, ocorre a disputa pela interpretação da lei e da história dos conflitos de terra por parte dos mediadores, os advogados das organizações de trabalhadores rurais e fazendeiros. Também são encontradas decisões judiciais diferenciadas

1 * É professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ) e Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Doutora pelo Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, CPDA/UFRRJ. Fez doutorado sanduíche no Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (CES/FEUC) de janeiro a agosto de 2010. Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2002) e mestrado em Direito pela mesma instituição (2005). Ministra aulas de sociologia jurídica e introdução ao direito. Atualmente, desenvolve pesquisa e extensão na área de sociologia jurídica e da administração da justiça, preocupando-se com a relação entre o Poder Judiciário e os movimentos sociais. Advogada - http://lattes.cnpq.br/42424845683011372 Segundo o artigo 126 da Constituição Federal de 1988, alterado pela emenda constitucional n.45/2004, conhecida como Reforma do Judiciário, antes a Constituição Federal de 1988 estabelecia apenas a possibilidade dos Tribunais de Justiça designarem juízes especializados para dirimir os conflitos agrários. Por isso ainda antes da Reforma do Judiciário, Tribunais de Justiça como da Paraíba estabeleceram varas com competência para julgar os conflitos. No entanto, esta política ganhou força nos últimos anos, por meio dos esforços como os depreendidos pela Ouvidoria Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). 3 De acordo com a Constituição estadual do Pará de 1989 e da Lei de Organização Judiciária do estado (LC n. 14/1993).

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em cada processo, algumas delas favoráveis às posses dos fazendeiros, outras garantindo o direito à permanência na área ocupada pelos trabalhadores sem-terra. Ainda são observadas diferentes práticas adotadas pelos juízes nas ações de reintegração de posse julgadas pelas varas agrárias como a realização de audiência de justificação de posse em alguns processos e em outros não, antes da decisão judicial sobre a medida liminar.

Deve ser destacado que autores como Carlos Frederico Marés de Souza Filho defendem a necessidade da comprovação da função social da propriedade como exigência para a proteção judicial dos imóveis rurais (Souza Filho, s/d)

O objetivo do trabalho é analisar as práticas e interpretações judiciais sobre o direito a propriedade e a sua função social nos processos julgados pela vara agrária de Marabá, localizada no sudeste paraense, verificando se os juízes se filiam a corrente agrarista e constitucionalista defendida por Souza Filho (s/d) e se as partes estão utilizando tal argumento.

Apesar dos diferentes momentos históricos de constituição, de concepções políticas distintas e algumas diferenças nos métodos de luta, são principalmente os conflitos pela posse da terra envolvendo estas organizações que são levados à vara agrária. Nos processos judiciais relativos a estes conflitos, elas lutam pelo reconhecimento da legalidade e legitimidade das ocupações de terra e os proprietários rurais buscam a reintegração na posse das propriedades que reivindicam como suas e a retirada dos trabalhadores sem terra.

Os dados que serão trabalhados foram coletados durante a pesquisa de campo realizada no Pará de 2008 a 2010, quando tive acesso a processos possessórios julgados nas varas agrárias, realizei entrevistas semi-estruturadas com atores sociais envolvidos no tema e assisti uma audiência na vara agrária de Marabá.

2. Os conflitos de terra na vara agrária de Marabá: práticas, argumentos e decisões no campo jurídico.

Santos (2007) destaca um crescimento, nos últimos anos, da importância do papel do judiciário tanto nos países da América Latina como dos demais continentes. Esse mesmo autor sinaliza como um importante fator que levou a proeminência do papel do Judiciário na resolução dos conflitos sociais, a ascensão do Estado Providência nos países da Europa, com a luta e a conquista pela classe trabalhadora de direitos sociais. Posteriormente, com o declínio deste, houve um aumento da demanda de conflitos sociais no Poder Judiciário, transformando-os em conflitos jurídicos (Santos, 2005). Este fenômeno também é apontado pelo autor nos países em desenvolvimento (periféricos e semi-perífericos). Nesta linha, defende que no Brasil, apesar de nunca ter existido um Estado-providência muito denso, a transição democrática e a Constituição

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Federal de 1988, responsável pela ampliação do rol de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, gerou expectativas na população e a falta de implementação destas políticas tem frustrado tais expectativas dos cidadãos de verem cumpridos os direitos e as garantias constitucionais4, e tem motivado o aumento do recurso aos tribunais (Santos, 2007).

A maior demanda dos Tribunais, também vem ocorrendo em relação à questão agrária, entretanto, nestes casos as demandas são propostas por proprietários de terra contrariados com ocupações de terras promovidas pelas organizações de trabalhadores rurais na luta pela reforma agrária. Desta forma, os processos julgados na vara agrária de Marabá são na maioria relativos a conflitos fundiários e, especialmente, as ações possessórias propostas por proprietários de terra (particulares ou empresas), através de seus advogados, contra ocupações coletivas promovidas pelo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF). O MST e a Fetagri contam, como advogados, com os agentes da CPT5 e a Fetraf tem um advogado próprio. Selecionei alguns destes processos emblemáticos relativos a estas organizações para observar as práticas, os discursos e as decisões judiciais na vara agrária de Marabá.

2.1. Argumentos dos advogados das organizações de trabalhadores rurais e dos proprietários rurais.

As reivindicações para a aplicação da lei pelo Judiciário são feitas por advogados, pois, no campo jurídico, as disputas sociais diretas entre as partes são transformadas num debate jurídico entre profissionais, cujo poder é delegado por procuração. Os advogados, através dos rituais e dos códigos do campo jurídico, traduzem para a linguagem jurídica as reivindicações das organizações, estabelecendo relações entre as práticas sociais e a lei.

Bourdieu (2004) ao trabalhar com a noção de habitus dos campos defende que a dinâmica destes espaços cria a dependência a um profissional

4 A Constituição Federal de 1988 garantiu novos direitos a cidadania inovando inclusive em relação aos direitos sociais ao recepcionar direitos reivindicados pelas organizações populares e parlamentares progressistas. Entretanto, em relação ao tema da Reforma Agrária sigo a linha de autores como Gomes (1989) e Pilatti (1989), quando identificam retrocesso em relação ao Estatuto da Terra de 1964 e a incorporação pelo texto constitucional de dispositivos reivindicados pelos setores de proprietários rurais no sentido de impedir ou dificultar a implementação da política pública de Reforma Agrária.. 5 Os agentes da CPT, advogados do MST e da Fetagri, integram a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP). A RENAP é uma articulação de estudantes e advogados, com representatividade em quase todos os estados da federação, que prestam assessoria jurídica a vários movimentos sociais, em especial ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e à Comissão Pastoral da Terra. O desafio que está posto aos advogados populares: “é colaborar nas transformações dos paradigmas do direito, realizando a defesa técnica das causas populares. Tornando-se, assim, fundamental garantir nossa autonomia técnica mas é imprescindível ter a clareza de saber respeitar o protagonismo do povo explorado e oprimido, verdadeiro sujeito das transformações.” (Cadernos RENAP, 2005)

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que conheça as regras do jogo, o domínio de uma linguagem e retórica do campo. A lógica do campo jurídico está relacionada com a divisão do trabalho jurídico, onde existem profissionais, agentes investidos de competência social e técnica para interpretar o corpo de leis. O campo do direito apresenta uma lógica interna própria e os profissionais, que representam os profanos (os leigos) neste campo, devem ter o conhecimento de suas regras, linguagens e retóricas. Bourdieu (2004) destaca que o conflito entre as partes é convertido em um conflito jurídico e, portanto, terá que ser regulado pelos profissionais, advogados.

Houtzager (2007) promoveu um diálogo interessante com Bourdieu ao analisar a tensão promovida pela mobilização do MST para a sua defesa jurídica. O autor destaca que o MST, com esta prática, tem relacionado a lógica de dois campos: o dos movimentos sociais e o do Direito, exigindo desta forma um afastamento da leitura da autonomia dos campos e das possibilidades de mudanças no próprio campo jurídico, através, por exemplo, da constitucionalização da interpretação do direito de propriedade.

Nos casos por mim analisados envolvendo o MST e a Fetagri, a utilização dos instrumentos jurídicos ocorre de forma reativa nos casos cíveis ou penais, como destacado por Houtzager (2007) em relação ao MST. A intervenção no campo jurídico nestes casos se dá após a mobilização política das referidas organizações de trabalhadores rurais, ao ocupar uma propriedade (que não cumpre com sua função social ou é improdutiva, ou ainda foi apropriada ilegalmente por particulares). Na maioria das vezes, esta disputa é levada ao Judiciário, pois o alegado proprietário apresenta ações possessórias (interditos proibitórios, reintegrações ou manutenções de posse).

As disputas políticas pela terra são levadas ao Judiciário por supostos proprietários quando as organizações de trabalhadores rurais ocupam ou estão na iminência de ocupar uma propriedade, ou quando o alegado proprietário apenas sente que tem sua propriedade ameaçada. Os advogados dos proprietários de terra apresentam normalmente aos juízes um quadro de barbárie, instaurado ou prestes a ser instaurado, nas propriedades com a ocupação da mesma pelas organizações de trabalhadores rurais. Normalmente, alegam que houve utilização de violência e depredação do imóvel pelos ocupantes.

Os advogados dos proprietários de terra apresentam, como argumentos jurídicos, a legitimidade das posses independente de título legal de propriedade. Atualmente, um aspecto que tem sido já levantado na petição inicial pelos advogados é que a propriedade cumpre a função social. Este é um fato interessante, pois, em outras regiões, como nos conflitos no estado do Rio de Janeiro, os proprietários e seus advogados não trazem este elemento e empregam apenas a velha concepção da propriedade privada absoluta presente

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no antigo Código Civil de 1916. Este fato leva a crer que as organizações de trabalhadores rurais no sudeste paraense têm conseguido pautar o tema da função social da propriedade na vara agrária. Por este motivo, passou a ser também um argumento nas petições dos advogados dos proprietários que alegam que a propriedade cumpre a função social e que é produtiva, em alguns casos juntam comprovantes de vacinação, carteiras de trabalho assinadas dos trabalhadores, tentando demonstrar que não descumprem a legislação trabalhista nem utilizam mão-de-obra escrava.

Por outro lado, na mobilização jurídica das organizações de trabalhadores rurais, os advogados da CPT apresentam como principais teses defensivas, presentes em quase todas as contestações, a necessidade da observação da posse agrária para a proteção da posse ou propriedade pelo Judiciário. Destacam o descumprimento da função social, ambiental e trabalhista da propriedade, apresentam informações sobre este descumprimento informando o número de ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público do Trabalho, laudos de inspeção do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e/ou da Delegacia Regional do Trabalho flagrando irregularidades nas propriedades. Também, questionam a legalidade das posses e propriedades ocupadas, pois normalmente estão fundadas em títulos de propriedade falsos (quase todas as propriedades ocupadas pelas organizações têm problemas de titularidade). Os advogados das organizações de trabalhadores rurais defendem ainda a legitimidade e legalidade das ocupações de terra, caracterizando-as como uma pressão política sobre o governo para que promova a Reforma Agrária ou como denúncia pública de que a fazenda ocupada utiliza mão-de-obra escrava, degrada o meio ambiente ou se apropriou de terra pública. Por outro lado, os advogados dos proprietários chamam as ocupações de terra de “invasões”6, afirmando que as organizações de trabalhadores rurais cometem crime de esbulho possessório, previsto no artigo 161 do Código Penal, são violentos, depredam as fazendas, matam animais e destroem a vegetação, ameaçam funcionários etc.

Quando o juiz decide contra seus pedidos, ambos os tipos de advogados recorrem destas decisões ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Ambas as partes costumam participar das audiências e reuniões de mediação quando convocadas pelo juiz da vara agrária ou pela Ouvidoria Agrária Nacional. Também, é pratica dos advogados, não só neste caso, mas na advocacia em geral, “despachar” com os juízes, ou seja, promover conversas jurídicas com os juízes tentando convencer sobre os aspectos que foram apresentados de forma escrita nas petições.

Segundo a advogada da CPT já entregaram a alguns juízes que passaram

6 Termo utilizado pelos proprietários em contraposição ao termo político de “ocupação” utilizado pelas organizações de trabalhadores rurais em todo Brasil, por este motivo, neste texto sempre que utilizo esta expressão a coloco entre aspas.

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pela vara agrária os livros e materiais produzidos pela RENAP sobre o direito agrário, jurisprudências sobre a matéria que pudessem auxiliar na compreensão do problema e na formação teórica dos juízes, devido aos problemas na formação já apontados e, portanto, da falta de conhecimento na matéria7. Em algumas decisões de juízes há a referência a alguns destes trabalhos jurídicos.

2.2. Práticas e decisões dos juízes na vara agrária de Marabá.

O juiz é um ator importante nas disputas judiciais. As leis permitem diferentes interpretações, pois, como caracterizado por Thompson (1997), são espaços de disputa de interesses. Por este motivo, o juiz, ao interpretar a lei, poderá extrair diferentes sentidos. Os mediadores (advogados) têm um papel importante nesta disputa, ao levarem os argumentos das partes aos processos, mas será o juiz que decidirá, ao final, de quem é o direito.

O Código de Processo Civil faculta ao juiz, caso não esteja comprovada a posse pelo autor da ação (alegado proprietário/possuidor), que seja realizada audiência de justificação de posse para que o autor leve testemunhas e demonstre deter a posse do imóvel, antes de ser decidido o pedido sobre a medida liminar possessória (art.928, segunda parte do CPC).

Na vara agrária de Marabá, alguns juízes marcam audiência de justificação de posse. Outros concedem esta medida jurídica apenas baseando-se nos argumentos do autor da ação (o proprietário de terra). Entretanto, atualmente há uma tendência maior a apenas decidir sobre a liminar após a realização da audiência. Esta prática tem sido uma orientação dada pelo Tribunal de Justiça, através de sugestões da Ouvidoria Agrária Nacional. Outra orientação é que, antes de decidir sobre a liminar, o juiz peça informações ao Incra e Iterpa sobre a legalidade do título de propriedade.

Um caso interessante sobre este tema é o processo judicial relativo à fazenda Ponta da Serra e Mururé. O juiz da vara agrária à época entendeu como conveniente a realização de audiência de justificação de posse. Em 19 de abril de 2005, foi realizada audiência de justificação prévia, presidida pelo juiz, com a presença do autor e sua advogada e não compareceram nem os réus nem o representante do Ministério Público. Na audiência foram ouvidas duas testemunhas, pois a terceira, levada pelo autor ao processo, era um jagunço que declarou ser seu amigo íntimo, situação em que o Código de Processo Civil (art.405, § 3º, I) classifica como suspeita e tira a validade do testemunho como prova. Uma das duas testemunhas ouvidas no processo foi o administrador da fazenda e a outra testemunha foi um trabalhador rural, funcionário do autor, que declarou ao juiz: “(...) QUE em 2003 houve uma fiscalização do Ministério do Trabalho, encontrando 20 funcionários sem registro de trabalho laborando

7 Entrevista concedida a autora em 28 de agosto de 2008 em Marabá/Pará.

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no local, incluindo o depoente; (...)” (Processo n.2005.800.026-5: 286-288).Diante deste depoimento, o juiz negou a liminar, pois verificou na

audiência que o proprietário não cumpriria a função social da propriedade, violando o disposto no art.186, inciso III da CF/88, por descumprir as relações trabalhistas na fazenda:

“(...) diferentemente do que trata o digesto civil, a posse agrária, com âmbito de análise constitucional, não visa apenas a aferição do exercício material da coisa, a data do esbulho e perda deste status sobre o bem. É necessário um plus nas causas de conflitos pela posse da terra, caracterizado pelo cumprimento da função social da propriedade (v. art.186 da CF/88) (...) No caso em apreciação, pela oitiva das testemunhas arroladas pelo autor, inquiridas sobre o evento, a previsão do art.186 da CF não restou caracterizada. (...) a portaria n.540 do Ministério do Trabalho (atualizada em 03 de janeiro do ano em curso), a qual incluiu a área descrita na inicial como local em que foi encontrado trabalhador escravo (trinta e dois). Inconcebível, assim, para efeito de posse agrária, conceder a tutela jurisdicional, provisória, a quem não satisfaz o requisito de observância das disposições que regulam as relações de trabalho, por configurar contra-senso e descrédito judicial.” (Processo n.2005.800.026-5, p. 291-295).

Em caminho inverso foi à decisão de uma juíza cível comum de Marabá que, investida da competência da vara agrária por alguns dias devido à ausência da juíza titular e do juiz substituto, concedeu a liminar de reintegração de posse sem marcar audiência de justificação. Este fato ocorreu no processo relativo à Fazenda Maria Bonita. Neste caso, a Agropecuária Santa Bárbara Xinguara S.A., do grupo Opportunity, entrou com a ação de reintegração de posse contra as famílias do MST que ocuparam a fazenda, localizada em Eldorado dos Carajás, em 25 de julho de 2008. Alegava que eram legítimos possuidores da fazenda, devido à existência de contrato de promessa de compra e venda registrado em cartório em maio de 2006, firmado entre a agropecuária e Benedito Mutran Filho8. Diante deste fato, solicitou a concessão da medida liminar de reintegração de posse. Neste caso, imediatamente a juíza concedeu a liminar, sem promover audiência de justificação e fundamentou a decisão da seguinte forma:

[...]In casu, pela análise prima facie dos autos, tem –se que a autora tem direito ao domínio útil do imóvel em questão, [...], configurando assim o exercício da posse. [...] A Polícia Civil relatou ainda, que os funcionários da autora, informaram que a Fazenda Maria Bonita ‘é produtiva, tem cerca de 60 funcionários, que além de exercerem suas funções, ainda moram na propriedade com suas famílias’. Aos autos juntou-se documentação probatória da produtividade da propriedade e da existência de amplo quadro de funcionários, havendo, portanto, indício de que o imóvel exerce sua função social […] (Processo n. 2008.1.003027-7: 124/355).

8 Esta conhecida família do sudeste paraense faz parte da “Oligarquia dos Castanhais” descrita por por Emmi (1999). A autora explica que aos poucos os grandes “donos” de castanhais, que recebiam concessões públicas para a sua exploração, como a família Mutran, começaram a se apropriar sem autorização do estado de outras áreas públicas como se fossem seus legítimos proprietários.

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A juíza em sua decisão entendeu que a posse se configura pela existência de prova da propriedade, o título de domínio. Assim compreende a posse como uma extensão da propriedade. O Código Civil brasileiro de 1916 estabeleceu que posse era uma extensão do direito de propriedade. Dessa forma, o Código recepcionou a Teoria Objetiva de Ihering, segundo a qual “na relação com a propriedade se encontra a chave para a compreensão de toda a teoria material da posse” (Alves, 1999: 370, v.1). Miguel Baldez, ao analisar esta teoria, destaca que a posse, antes entendida como fato, relação do ser humano com a terra, através de uma abstração jurídica (o dispositivo legal) foi transformada em mera exterioridade da propriedade. Dessa forma, todos os elementos relativos à posse, ou seja, a possibilidade de uso, fruição e sua disponibilização foram transferidos para a propriedade (Baldez, 2002:97).

A juíza entendia como necessária a verificação da posse agrária, que se caracterizaria pelo cumprimento da função social pela posse, segundo os elementos do art.186 da Constituição Federal de 1988. Entretanto, compreendeu que esta posse agrária estava comprovada no processo apenas com o narrado pelo autor da ação e pelos policiais que estiveram na área conversando com os funcionários da fazenda. Esta decisão remete ao debate sobre a validade das provas, pois entendeu como verdadeiro os argumentos do proprietário e que as provas levadas por este ao processo teriam a capacidade de comprovar esta veracidade. No caso da decisão da vara agrária em análise, a magistrada entendeu que as provas do autor eram verdadeiras, isto porque era um proprietário lesado, pois o boletim de ocorrência, por exemplo, é um documento em que o indivíduo declara diante da autoridade policial a ocorrência de um fato que considera criminoso. O individuo apenas declara e, em tese, a partir daí a autoridade policial vai investigar se aquela argumentação realmente é verdadeira. Por este motivo, aceitar como prova de verdade um registro de ocorrência é aceitar as palavras do proprietário como verdadeiras sem contrapor a outra versão dos fatos. A mesma coisa ocorre com as matérias de jornais que muitas vezes apenas apresentam a versão de uma das partes.

Para os atores entrevistados, o fato da juíza conceder a liminar imediatamente, sem realizar a audiência antes, contraria a prática da vara agrária. A prática cotidiana da vara especializada seria caracterizada pela decisão da medida liminar apenas depois da audiência de justificação de posse. Este caso também chama a atenção para o problema estrutural e organizativo da vara agrária que propiciou que uma juíza cível, sem especialização, decidisse, ao que indica, contrariando a prática da vara.

Neste processo, na defesa dos ocupantes, os advogados da CPT pediram a reconsideração da decisão da juíza, alegando que havia dúvidas sobre a legalidade do título de propriedade e poderia se constituir em área grilada, pois a fazenda foi adquirida da família Mutran, envolvida em vários casos de

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apropriação ilegal de terra pública e que deveria ter sido marcada audiência de justificação de posse antes da decisão sobre o pedido de liminar do proprietário.

A juíza agrária titular, quando retornou à vara agrária, acatou o pedido dos advogados cassando a liminar de reintegração de posse e determinando a realização de audiência de justificação de posse. Os advogados da agropecuária entraram com recurso no Tribunal de Justiça solicitando a manutenção da decisão da juíza cível e, portanto, o cumprimento da liminar. A desembargadora da 1ª Câmara Cível para quem foi distribuído o recurso decidiu por “conceder a liminar de reintegração de posse, que deverá ser cumprida com moderação e cautela, ficando desde já autorizado o reforço policial (...)” (Agravo de Instrumento número 2009.30024358).

Voltando ao ponto de análise sobre a prática de realização de audiência de justificação em outros casos mais antigos, os juízes da vara agrária também não marcaram audiência antes de decidir sobre a medida liminar, como no caso do processo da fazenda Peruano (Processo n. 2004.1.002148-6)9, no qual, no dia seguinte ao ajuizamento da ação de reintegração de posse pelo alegado proprietário, a juíza à época, concedeu a liminar de reintegração de posse solicitada pelo proprietário, fundamentando a decisão da seguinte forma:

(...) Em sede de cognição sumária, a posse agrária sobre o imóvel objeto do litígio está demonstrada pelos documentos carreados ao feito. Verifica-se que a Fazenda possui empregados, há pastagem e existem benfeitorias apropriadas à atividade produtiva desenvolvidas no local (casa-sede, baia, maquinário e etc.). O esbulho à posse do Autor encontra-se satisfatoriamente demonstrado pela prova prática trazida com a inicial, quais sejam, as ocorrências policiais e a notícia do jornal local. Ademais, o esbulho é fato público e notório, pois veiculada na imprensa. (Processo n. 2004.1.002148-6).

Atualmente, esta juíza é assessora do Tribunal de Justiça, representante

do mesmo no Fórum Nacional de Conflitos Fundiários criado pelo CNJ em 2009 e fez a terceira edição do curso de especialização em direito agrário. Esta juíza, em entrevista, afirmou que, no início de sua atuação na vara agrária, tinha esta posição, que foi sendo alterada e que agora a prática das varas agrárias seria a da realização das audiências de justificação de posse sempre antes dos juízes decidirem sobre a medida liminar pleiteada pelos proprietários de terra10.

9 Esta fazenda foi ocupada por 1.100 famílias, o equivalente a 5.000 pessoas, entre crianças, mulheres e homens, organizados pelo MST, no dia 17 de abril de 2004, após um ato na curva do “S” em lembrança ao Massacre de Eldorado dos Carajás. O proprietário, logo após a ocupação, no dia 18 de abril de 2004, ingressou, através de sua advogada, com ação de reintegração de posse na vara agrária de Marabá contra os ocupantes, alegando ser “legítimo proprietário e possuidor” daquele imóvel rural. Informaram ao juiz que o MST chegou fortemente armado com espingardas e rifles e que os ocupantes teriam matado vários animais e mantinham como reféns quarenta funcionários da fazenda, além de terem iniciado uma devastação no pasto e deixarem o gado solto. Alegava que se tratava de fazenda altamente produtiva, uma fazenda modelo na criação de gado bovino da raça nelore (com 15 mil cabeças de gado). Por fim, solicitou ao juiz a concessão da medida liminar de reintegração de posse. Como alternativa solicitou que se não fosse a decisão do juiz para decidir de forma liminar, que fosse marcada audiência de justificação de posse. Junto a esta petição inicial foram anexados documentos, como fotos, o registro geral de imóveis, ocorrências policiais e notícia do jornal local.10 Entrevista concedida a autora em novembro de 2009, em Belém, Pará.

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Outro tema que tem causado polêmica entre os proprietários de terra, organizações de trabalhadores rurais e o Judiciário é a determinação pelo juiz de realização de perícia judicial para verificar as condições da propriedade (se ela foi apropriada legalmente e se cumpre os requisitos da função social). Os proprietários de terra alegam que as propriedades “invadidas” não podem sofrer esta perícia, pois seria proibido pela Lei de Reforma Agrária, ao determinar que as propriedades “invadidas” não podem ser vistoriadas para desapropriação para fins de Reforma Agrária promovida pelo Incra11. As organizações de trabalhadores rurais alegam que esta perícia, prevista no Código de Processo Civil, não se trata da vistoria em terra “invadida” que a Lei de Reforma Agrária proíbe que seja realizada pelo órgão competente, no caso o Incra. Isso porque, em qualquer processo, é possível a solicitação, por qualquer das partes, da determinação pelo juiz da realização da perícia como forma de obtenção de provas, ou seja, quem solicita a realização da perícia é o Judiciário e não o Incra, como ocorre nos procedimentos administrativos de desapropriação para fins de Reforma Agrária (o que seria proibido pela Lei nos casos de “invasão” da propriedade).

A polêmica se completa no Judiciário, pois os juízes da vara agrária de Marabá têm determinado a realização desta perícia para verificar a situação de legalidade do título de propriedade, a existência de reserva legal na fazenda (preservação ambiental), como no caso da fazenda Peruano, mas também em outros processos. Por outro lado, o Tribunal de Justiça tem entendido como os proprietários, aceitando as teses levantadas nos recursos e anulando ou impedindo a realização das perícias judiciais.

O processo da fazenda Peruano exemplifica bem esta realidade. Neste caso, a Ouvidoria Agrária Nacional solicitou ao juiz da vara agrária que fosse feita uma perícia pelo Iterpa, buscando verificar se a alegação do MST e CPT de apropriação ilegal de parte das terras da fazenda era verídica. O juiz que atuava nesta época, 2005, acatou o pedido de realização da perícia e suspendeu o cumprimento da medida liminar. A perícia judicial verificou que parte da fazenda era constituída de terras públicas apropriadas ilegalmente, e que a família Mutran tinha desmatado a área de reserva legal. Segundo o laudo do perito, do total de 8.004.192 ha reivindicados pela família Mutran, apenas 4.337 (quatro mil trezentos e trinta e sete hectares) correspondia à fazenda Peruano, o restante constituíam área pública, patrimônio do estado do Pará que foi apropriada pela família Mutran sem autorização legal. O local onde as famílias sem-terra montaram acampamento não pertencia à fazenda Peruano, mas sim

11 Art.2º §6o. da Lei 8629/93 – “imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações”. (Incluído pela Medida Provisória 2.183-56, de 2001).

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ao estado do Pará12.Os proprietários entraram com um recurso no Tribunal de Justiça contra

a decisão do juiz, que suspendeu temporariamente a eficácia da liminar de reintegração de posse concedida anteriormente para a realização da perícia. Os proprietários alegaram juridicamente que as propriedades que tenham sido objeto de “esbulho possessório” ou “invadidas” não podem ser vistoriadas, avaliadas ou desapropriadas, conforme o art. 2º, § 6º, da Lei Federal nº 8.629/93. Desta forma, através deste recurso buscavam anular a perícia e garantir o cumprimento da liminar pelo juiz (Agravo de Instrumento nº. 2005.3.003599-5, 3ª Câmara Cível Isolada).

No processo principal, o Ministério Público se manifestou no mesmo sentido que o juiz que determinou a perícia:

Não se trata de vistoriar uma área invadida para fim de reforma agrária. Trata-se de descobrir se uma grande área pública foi esbulhada, surrupiada, incorporada indevidamente ao patrimônio de um particular. E, em caso sim, apurar as responsabilidades. (Processo n. 2004.1.002148-6)

O Tribunal acatou o pedido dos proprietários e decidiu no recurso como incabível a realização da perícia, entendendo que a mesma caracterizava-se como uma vistoria solicitada pela Ouvidoria Agrária Nacional, violando o § 6º do art.2º da Lei 8.629/93 (Lei de Reforma Agrária) e que as ações possessórias devem ater-se aos elementos enumerados no art. 927, do CPC: a posse do autor (inc. I), o esbulho praticado pelo réu (inc. II), a data do esbulho (inc. III) e a perda da posse (inc. IV). Não se verificando a situação da cadeia dominial. A decisão não menciona se a posse deve respeitar a função social.

Para o coordenador nacional e advogado da CPT no Pará, o Tribunal de Justiça do Pará estava fazendo confusão entre os institutos legais “perícia” e “vistoria”. O mesmo relatou que, um mês antes da entrevista ser concedida, tiveram audiência com a Presidente do Tribunal de Justiça do Pará e deixaram bem claro que estavam requerendo perícia e não vistoria. Explicou que era preciso ter a distinção de que o que o juiz estava determinando no processo era perícia, e que, portanto, não existiria nenhum impedimento legal pelo imóvel estar ocupado ou não, pois a lei fala de vistoria que tem a função de apurar os requisitos para a desapropriação para fins de Reforma Agrária, a perícia, que está prevista no Código de Processo Civil brasileiro, vai apurar as dúvidas sobre titularidade, questão ambiental, georeferenciamento das propriedades13.

A posição do Tribunal de Justiça merece comentários, pois este caso sinaliza para o fato de que esta dinâmica contribui para a prevalência da ótica civilista no judiciário, na medida em que as decisões que rompem com está

12 Informações extraídas do processo e da entrevista realizada com o perito em 02 de setembro de 2008 em Belém. 13 Entrevista concedida a autora em 28 de agosto de 2008, em Marabá/Pará.

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visão podem ser e, vem sendo, reformadas justamente por aqueles que não seguem a orientação agrarista e constitucionalista.

No processo da fazenda Peruano, apesar da determinação do Tribunal de anular a perícia judicial feita, ela serviu de base para que o Iterpa determinasse a arrecadação da área de terra ilegalmente apropriada pelo proprietário, situada no município de Eldorado dos Carajás, onde se localiza o acampamento das famílias sem-terra.

Também, a sentença de mérito da ação negou o pedido do alegado proprietário. No decorrer do processo, após as alegações finais das partes onde elas reiteraram seus argumentos, o ministério público se manifestou pela “improcedência do pedido da proteção possessória”, negando desta forma o pedido de reintegração de posse formulado pelo autor. Em 24 de março de 2009, a juíza proferiu a sentença de mérito decidindo no mesmo sentido que o ministério público. A juíza julgou através do paradigma constitucional da supremacia do interesse público sobre o privado, empregando a concepção de posse agrária. Desta forma, a juíza acatou os argumentos dos réus de que, devido ao não cumprimento da função social e de indícios de posse decorrente de título de propriedade ilegal, a pretensão do autor a reintegração de posse não poderia ter a tutela jurisdicional e que caberia ao autor da ação provar que realmente possuía o título legítimo da propriedade. Este processo ainda não teve fim, pois o alegado proprietário apresentou recurso ao Tribunal de Justiça.

3. Considerações finais

Ao longo deste artigo foram expostos alguns dados sobre as varas agrárias do Pará. Como analisado, o Tribunal de Justiça do Pará instalou cinco varas agrárias em diferentes regiões do estado, com a função de julgar os conflitos coletivos pela posse da terra. Os magistrados que atuam nestas varas e deveriam ser especializados, na sua maioria não passaram por nenhum curso de especialização em direito agrário e começaram a ter contato com o tema agrário após a atuação nas varas especializadas. Estes magistrados são, na sua maioria, jovens, do sexo masculino e de família de origem urbana.

Os processos julgados pela vara agrária de Marabá são majoritariamente relativos a ações de reintegração de posse. Nestes processos ocorre uma disputa sobre a legalidade da posse, da propriedade e do caráter das ocupações de terra. De um lado, os advogados dos proprietários alegam a legitimidade dos títulos de propriedade, da posse, do cumprimento da função social e da ilegalidade das ocupações de terra, compreendendo-as como verdadeiro crime de esbulho possessório. De outro lado, estão os advogados das organizações de trabalhadores rurais que alegam, em sua maioria, que os títulos de propriedade são ilegais, por serem fruto de apropriação ilegal de terra pública, o não cumprimento da função social da propriedade com a utilização de mão-

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de-obra escrava e degradação ambiental e, portanto, a defesa da legitimidade e legalidade das ocupações de terra, por serem um ato de pressão política sobre o governo para que promova a reforma agrária, desta forma, não existindo a intenção de esbulhar a posse de ninguém.

Nos processos ocorrem diferentes práticas dos juízes que atuaram na vara agrária de Marabá. Alguns deles, em alguns casos marcam audiência de justificação de posse antes de decidir sobre o pedido da liminar possessória, outros concedem esta medida jurídica apenas baseando-se nos argumentos do autor da ação (o proprietário de terra). Entretanto, há atualmente na vara agrária de Marabá uma tendência maior a apenas decidir sobre a liminar após a realização da audiência. Esta prática tem sido uma orientação dada pelo Tribunal de Justiça, através das sugestões da Ouvidoria Agrária Nacional e garante que o juiz decida respaldado em outros aspectos e provas para além daquelas apontadas pelo proprietário, por exemplo, com o pedido de informações ou de participação dos órgãos fundiários, Iterpa e Incra nas audiências. Também, seria interessante, no sentido de democratizar o processo judicial, se estas decisões só fossem tomadas pelo juiz após o recebimento da contestação, ou seja, dos argumentos dos réus da ação (os ocupantes) e que fosse ouvido o Ministério Público como estabelece o Código de Processo Civil.

4. Referências bibliográficas

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O JUDICIÁRIO E A CRIMINALIZAÇÃO DA LUTA PELA TERRA

Fernanda Maria da Costa Vieira1

1. Apresentação

“Através do presente remeto a Vossa Excelência, para conhecimento, análise da situação atual vivenciada em nossa região, envolvendo o MST e outros movimentos análogos, vemos com preocupação as perspectivas futuras de segurança neste estado, face o acirramento de ânimos e a aparente mudança de objetivos dos chamados movimentos sociais em atuação em nosso país.” São essas as palavras que iniciam o dossiê (02 de junho de 2006) realizado pelo então comandante do Comando Regional de Polícia Ostensiva do Planalto (CRPO/Planalto), Coronel Waldir João Reis Cerutti, que se propunha a investigar as ações do MST e seus vínculos com as FARC na região Norte do Rio Grande do Sul, entregue, em caráter sigiloso, ao Comando do Batalhão da Policia Militar, bem como, à Juíza da Vara Cível da Comarca de Carazinho.

A partir desse dossiê, tal qual o fio de Ariadne, uma série de eventos serão alinhavados no conflito pela desapropriação da Fazenda Coqueiros (propriedade da família Félix Tubino Guerra) que ultrapassa a disputa entre os proprietários da fazenda e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tendo a atuação significativa dos Judiciários Estadual e Federal de Carazinho e do Ministério Público Estadual e Federal, dentre elas: 1 ação penal com base na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7170/83), em que são réus 8 integrantes do movimento, e Ações Civis Públicas para impedir o funcionamento das escolas itinerantes do MST, a realização de marchas, o impedimento da permanência de acampamentos nos acostamentos das estradas públicas, o impedimento de ocupações em áreas do próprio movimento ou estabelecidas por meio de contratos, como arrendamentos, enfim, medidas judiciais que foram pensadas para promover a extinção do MST na região.

Pensamos que o resgate da história que gestou a ação penal na Lei de Segurança Nacional, bem como, as ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público, nos é reveladora da construção discursiva, tanto no campo judicial, quanto social, do chamado inimigo do Estado e assim sendo fornece indícios das permanências históricas desse poder punitivo no discurso jurídico, centrado na noção de controle social, ao mesmo tempo, desvela as novas

1 Possui mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2004), doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2012) e doutorado em mobilidade no programa de Pós-colonialismo e Cidadania pelo Centro de Estudos Sociais - U. Coimbra (2010). Atualmente é professora adjunta I da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: criminalização, controle social, estado penal, poder judiciário e movimentos sociais - http://lattes.cnpq.br/5884846582193230

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configurações apontadas no marco punitivo neoliberal.As análises que ora se apresentam nesse texto são produtos de uma

pesquisa que ainda está em curso para obtenção do doutorado pelo programa do CPDA/UFRRJ. Assim, são análises parciais, extraídas de uma primeira ida para o campo empírico.

A nossa pesquisa busca compreender as redes complexas de poder que gestaram no Rio Grande do Sul a ação penal em face de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra com base na Lei de Segurança Nacional (lei nº 7170/83), lei esta ainda do regime de exceção em que o Brasil vivenciou, entendendo o que há de regional nessa atuação ativa do sistema judicial2 e o que se configura como uma ação mais global.

Na nossa pesquisa, além do acompanhamento e análise do discurso jurídico por dentro dos processos, pressupõe o resgate das trajetórias pessoais dos operadores e atores, logo, juízes, promotores, advogados e réus, que são parte do conflito processual, recuperando suas visões de mundo, enfim, o capital social individual. Já foram realizadas 25 entrevistas.

Para a produção desse texto, analisamos o discurso juridico construído no inquerito policial, que sedimentará a ação penal, e a análise do discurso de um dos operadores entrevistados. Trata-se do Procurador da República responsável pela ação penal na Lei de Segurança Nacional.

1.1. Perfil do entrevistado

O entrevistado está com 31 anos, descendente de alemães. Seus bisavós integraram a primeira leva de imigrantes que vieram para o Brasil. Possuíam uma pequena propriedade, que na época da sua infância frequentava e trabalhava na terra com seus avós.

Esse vínculo com a terra na infância será o único que o entrevistado compreender possuir:

minha relação com a terra é só essa, não tenho apego a terra, espero nunca ter terra, espero nunca trabalhar com a questão rural, nem como investidor se um dia eu puder, não tenho apego a questão da terra, mas conheço como funciona numa pequena propriedade rural tipicamente alemã

Se define como classe média-média e estudou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Não atribui nenhuma gerência da faculdade de direito em sua opção pela carreira jurídica, em especial por ter escolhido o direito por “olha, eu não sei, acho que no começo, no começo, bem no começo eu acho que foi falta de opção”.

Não teve nenhuma atuação na militância estudantil, de fato, possui um

2 Adotamos aqui a categoria sistema judicial por se tratar de pesquisa que se volta tanto para a análise do papel da magistratura, poder judiciário, quanto do Ministério Público, que é parte do Poder Executivo.

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olhar critico a essa militância, pois

“Era só briguinha de chapa contra chapa, era muito horrível, assim, muito fraco, então, a maioria das pessoas ficava alheias a isso, a não ser aquele grupinho que aspirava a política como profissão, né, e ai obviamente, enfim, era o estágio da política. Eu e a grande e gigantesca maioria dos alunos ficávamos alheios a tudo isso.

O mesmo olhar negativo à intervenção no movimento estudantil será perpassado quando analisa a universidade pública, vista como um lócus de professores desqualificados, greves, falta de professor com frequência, enfim durante toda a faculdade “(...) sem ser injusto eu tive 4 a 5 muito bons professores, (…) coisa de órgão público, falta de professor, professor não vai, duas grandes greves”.

Não sem razão, para o entrevistado:

“na faculdade eu acho que, e outras pessoas também já me disseram isso, é mais lugar para você se perder do pra você se achar, né, porque lá você começa a entender de política, começa a entender, né, pela cadeiras que te ensinam disso, então, você entre com uma cabeça, você entra com uma dúvida e sai com cinco, então eu não sabia, a gente perde muito a noção, a gente tem muita aula de filosofia lá, então, você não prende o seu pé no chão, só que ai graças a deus você começa a fazer estágio”.

Seu interesse pela carreira no Ministério Público se dá após realizar um estágio na faculdade, onde percebe que em tal carreira teria uma ampla possibilidade de intervenção social.

Acreditamos que a análise da entrevista nos forneça pistas do olhar que o sistema judicial apresenta quando se depara com movimentos sociais organizados e que constroem suas identidades em ações de desobediência civil, logo, em confronto com a lei.

As análises trazidas por Boaventura de Sousa Santos, em especial no que se refere ao pensamento abissal, marca de uma relação desigual e assimétrica, logo, violência, que impõe uma invisibilidade, um rebaixamento existencial do outro, nos ajuda a compreender o olhar estereotipado que o sistema judicial do Rio Grande do Sul possui com relação ao MST, configurando-o como um inimigo do Estado.

Como nos alerta Santos:

“se o outro é tão profunda e completamente construído como um objecto desqualificado, não lhe é deixada qualquer possibilidade de se requalificar pela resistência”3

É nessa perspectiva que nos propomos a analisar como a dimensão de movimento organizado e inimigo do Estado, vinculado com as FARC, será necessária para uma série de medidas judiciais, inclusive com a deliberação no

3 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo. Para uma nova cultura política. Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática, vol. IV. Edições frontamentos, Porto, 2006, p. 220.

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Conselho Superior do Ministério Público pela extinção do MST. De fato, será que nosso judiciário percebe os movimentos de luta pela

terra, logo, movimentos que colocam no centro do debate a questão da propriedade, como sujeitos de direito? Ou apenas como réus nos processos penais terão o estatuto de sujeitos de direito, portanto, legitimados para compor a relação processual, reconhecido?

2. Breve histórico

Para compreendermos a dimensão mais ampla do processo de criminalização ocorrido no Rio Grande do Sul, pensamos ser necessário um breve histórico da formação social local.

A mesorregião em que se desenvolve a ação penal compreende as microrregiões de: Carazinho, Cerro Largo, Cruz Alta, Erechim, Frederico Westphalen, Ijuí, Não-Me-Toque, Passo Fundo, Sananduva, Santa Rosa, Santo Ângelo, Soledade e Três Passos. Foi palco de um processo de colonização alemã e italiana, marcadamente pequenas propriedades com produção de cultura diversificada. Essa descendência ainda é muito marcante na região, onde muitos dos pequenos agricultores mais velhos falam apenas a língua de origem.

Na década de 1950, com o processo de modernização da agricultura e o crescimento do plantio de soja e trigo, começa-se a alterar a configuração da propriedade, inviabilizando-se a permanência dos pequenos agricultores, expulsos do território pelas grandes propriedades rurais:

“exclusão de todo um conjunto de trabalhadores do processo de modernização pelo qual passou a agricultura do Sul do país e que resultou na impossibilidade de reprodução social de setores de pequenos agricultores familiares. A crescente dificuldade em dividir os já pequenos lotes ou de comprar novas terras na própria região, tendo em vista o progressivo caráter empresarial que essa agricultura assumia e os altos preços da terra, gerou contingentes de trabalhadores precariamente integrados na produção. Eles iriam constituir uma das bases da luta pela terra.”4

Os primeiros anos da década de 60 foram particularmente intensos com a radicalização da luta de classes no campo. A formação das Ligas Camponesas marcou uma nova etapa no confronto no campo, ao se colocarem favoráveis à imediata expropriação da terra sem indenização visando à superação das diferenças de classe no país.

A defesa da reforma agrária, na lei ou na marra, pelas Ligas Camponesas levou o PCB, os setores progressistas da igreja católica e o próprio governo João Goulart a criar a Confederação Nacional de Trabalhadores Agrícolas (CONTAG) em 1962, buscando ampliar a defesa de um projeto etapista que

4 Medeiros, Leonilde Sérvolo de, História dos Movimentos Sociais no Campo, Rio de Janeiro, FASE, 1989, p. 147.

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defendia indenizações para os proprietários de terras confiscadas. O golpe militar de 1964 atacou diretamente as organizações camponesas visando sua aniquilação, em especial, as Ligas Camponesas que tiveram lideranças assassinadas ou exiladas.

A história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) começa a partir do final da década de 1970. O processo de mecanização acelerado do campo, ocorrido durante o período militar, fará com que uma massa de pequenos agricultores, meeiros, arrendatários, trabalhadores rurais sejam expulsos do campo, retomando-se assim a luta pela reforma agrária.

Como nos alerta Leonilde Medeiros:

“Frente à pressão que se intensificava, uma solução encontrada por parte dessa produção, estimulada pela propaganda da política agrária dos governos militares, foi à migração para as áreas de fronteira, em busca de novas terras nos projetos de colonização, quer oficiais quer privados, ou mesmo a ocupação de terras aparentemente devolutas. No entanto, desde logo muitos voltaram, descontentes com as condições inóspitas das novas regiões, com o isolamento e a falta de apoio à produção etc., transformando-se em um alerta importante nos movimentos de luta pela terra no Sul” 5.

Herdeiro das Ligas Camponesas6, o MST durante o período de 1979 a 1983 (período em que se retoma a luta pela democratização do País, com participação popular - fator preponderante para a constituição de uma organização como o MST, visto que “se a luta contra a ditadura militar não tivesse acontecido também na cidade, o MST não teria nascido. Não é possível isolar o surgimento do movimento, acreditando que ele é resultante apenas da vontade dos camponeses”7), irá se consolidar como um movimento social com uma organização articulada nacionalmente, vindo em 1984 a se constituir oficialmente, no 1º Encontro Nacional realizado no Paraná, com representação de 13 Estados.

Atualmente, o MST se encontra estabelecido em quase todos os Estados da Federação, possuindo capacidade de realizar nacionalmente ocupações coletivas ao mesmo tempo nos Estado, como ocorre nas jornadas de Lutas, transformando-se num ator político fundamental para compreensão da luta pela terra e de forma mais ampla pela democratização político-social do país “se tivéssemos feito um movimento camponês apenas para lutar por terra, esse movimento já teria terminado. Qualquer movimento camponês que restringir sua luta ao aspecto corporativo, sindical, estará fadado ao fracasso”8.

5 Medeiros, Leonilde Sérvolo de, História dos Movimentos Sociais no Campo, Rio de Janeiro, FASE, 1989, p. 147.6 “movimento camponês que teve seu início nos idos de 1954, fundado no Engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, Pernambuco. Teve entre seus fundadores José dos Prazeres e, durante sua trajetória, projetou líderes como Francisco Julião, Clodomir de Moraes, João Pedro Teixeira e Elizabeth Teixeira. As Ligas Camponesas existiram até 1964, quando foram colocadas na ilegalidade e perseguidas”. STÉDILE, João P.; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 16.7 STÉDILE, João P.; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 23.8 STÉDILE, João P.; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil.

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Um dos marcos na constituição do MST se deu em 1981 com o acampamento Encruzilhada Natalino na mesorregião norte do Rio Grande do Sul. Na época, o então presidente, João Figueiredo, resolve cercar o acampamento com tropas federais, como forma de controle do acesso ao mesmo. Comandando a operação encontrava-se o militar conhecido como Coronel Curió9, com um longo currículo de repressão aos trabalhadores rurais. Apesar dessa manobra, as famílias acampadas acabam recebendo o apoio da sociedade e em 1984 as famílias foram assentadas.

O resgate da história da formação do MST na região torna-se necessário para compreensão dos novos cenários da disputa pela terra no Rio Grande do Sul. A memória da luta e conquista da Encruzilhada Natalino permanece viva tanto para os movimentos sociais que lutam pelo acesso à terra, quanto pelos grandes proprietários rurais, que na sua narrativa jurídica se utilizam desse marco histórico para legitimar o medo com relação às ações do MST sobre a Fazenda Coqueiros de propriedade da família Guerra.

A própria cadeia dominial da família Guerra sobre a fazenda Coqueiros está marcada de dúvidas, o que alimenta a disputa pela desapropriação por parte dos movimentos sociais. Nos anos 1960-1961, o então Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola realiza a desapropriação da fazenda Sarandi que pertencia a um latifundiário uruguaio com extensão de 24.000 hectares. O golpe militar de 1964 acabou impedindo a conclusão da desapropriação da fazenda, o que leva ao acirramento das disputas por terra na região:

“Não podemos deixar de mencionar o fato de que o movimento dos acampados, tanto oriundos de Nonoai como outros que foram se somando na região, promoveu a retomada das discussões sobre a Fazenda Sarandi, sua desapropriação, suas negociatas, procurando deslegitimar a ação dos atuais proprietários (os irmãos Dal Molim, a empresa Macali, a família Anoni, a família Guerra, dentre outros de menor expressão que também adquiriram terras da fazenda-mãe no período militar de até então)”10.

As incertezas com relação à cadeia dominial fazem da fazenda Coqueiros um alvo constante dos movimentos que querem ver efetivada a reforma agrária no país, tendo como principal ator nesse processo de pressão para realização

São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 35.9 “Major Sebastião de Moura, conhecido como Coronel Curió, militar brasileiro, membro do serviço de inteligência do Exército e considerado especialista em conflitos rurais. Durante o regime militar, era deslocado para atuar na repressão em diversas regiões do país. Sobre ele pesam acusações de graves violações de direitos humanos contra populações camponesas. (...) Com a redemocratização do país, foi eleito deputado federal pelo Pará, recebendo contribuições financeiras para sua campanha de empresas multinacionais como a Mercedez-Benz (...) Após concluir o mandato, foi condenado pelo assassinato de um menor, que teria furtado laranjas em sua mansão, em Brasília. Cumpriu pena em liberdade”. STÉDILE, João P.; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 22.10 TEDESCO, J.C. CARINI, J.J. Conflitos agrários no norte gaúcho 1960 – 1980. Porto Alegre, EST edições, 2007. p. 142, apud FOSCHIERA1, Elisabeth Maria. A Fazenda Coqueiros e a luta pela terra na atualidade. Texto acessível em: http://www.upf.br/ppgh/download/Elisabeth%20Maria%20Foschiera.prn.pdf.

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da desapropriação o MST, que vem ocupando por diversas vezes a fazenda. A primeira ocupação ocorre em abril de 2004. No mesmo mês há determinação da justiça estadual para a reintegração. As famílias saem em junho com o compromisso do Governo Federal, Estadual e INCRA de realização imediata da reforma agrária para assentamento das famílias.

Em julho do mesmo ano, por não terem se cumprido os acordos estabelecidos, há nova ocupação sobre a fazenda Coqueiros. Nesse momento, o setor jurídico da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (FARSUL)11 auxilia o proprietário Félix Guerra requerendo em juízo além da reintegração de posse, que fosse estabelecida uma pena pecuniária. Em fevereiro de 2006 é realizada uma nova ocupação com cerca de 1.900 pessoas que vieram dos acampamentos espalhados pelo Estado do Rio Grande do Sul. Em agosto de 2007, ocorre nova ocupação com cerca de 800 famílias. No entanto, essa ocupação dura apenas 1 dia.

Em outubro de 2007 é realizada uma grande marcha na região com cerca de 2000 integrantes do MST, saindo de três pontos (região metropolitana, sul e norte) em direção a Fazenda Coqueiros. Em resposta a divulgação da marcha, organizações de proprietários rurais também montam uma marcha para impedir a entrada dos sem terra na fazenda. A partir da intervenção do Ministério Público Estadual, a juíza Marlene Marlei de Souza, da 2ª Vara Cível de Carazinho, proíbe a entrada de sem-terra e ruralistas tanto em Carzinho quanto em Coqueiros do Sul, onde fica a Fazenda.

Nesse cenário, de ocupações e despejos surge o dossiê que será a peça ncessária para se acionar a prestação jurisdicional. A imagem de desordem social e de uma guerra imposta pelo MST faz com que o Poder Judiciário se imponha a tarefa de resguardo da ordem. Nesse sentido, não podemos perder de vista que as ações promovidas pelo Ministério Público revelam uma especificidade do território estudado: trata-se do local onde surge o MST, na qual possui uma rede de relações político-sociais e grandes cooperativas, logo possui uma potencialidade para o enfrentamento na luta pela reforma agrária; trajetória de governos do Partido dos Trabalhadores, o que amplia a animosidade dos proprietários12.

11 Organização patronal com mais de 80 anos de existência com fortes vínculos na política local e nacional. Uma das entidades que em 2004, como forma de reação ao MST e a jornada de lutas que ocorre no mês de abril, realizaram o Maio Verde. Ver: BRUNO, Regina L. et all. Relatório final da pesquisa: Grupos de Solidariedade, Frentes Parlamentares e Pactos de Unidade e Ação. Em pauta o fortalecimento e a disputa pela representação patronal. RJ, fevereiro de 2008.12 Felix Guerra, proprietário da Fazenda Coqueiros, tanto nas suas representações, quanto em seu depoimento para representantes do Ministério Público estadual e Federal (ele prestou depoimento nas duas instituições) tecendo críticas aos membros do INCRA, questionando o próprio Governo Federal. Após a posse da governadora Yeda Crusius, Felix Guerra envia a mesma um oficio, bem como à Secretaria de Segurança Pública, para requerer que sejam tomadas providencias urgentes para se dar um basta diante do fato de que os “autodenominados ‘movimentos sociais’, na realidade movimentos políticos subversivos que visam, indubitavelmente, a realização, em breve de uma revolução socialista”. Afirma Guerra que o novo governo pode efetivar a retirada dos movimentos sociais, pois “ tem toda autoridade

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3. O conflito processual de Carazinho

A história do processo de Carazinho em que 8 (oito) integrantes do MST foram denunciados na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7170/83) inicia-se com o dossiê escrito pelo Cel. Waldir Cerutti. Esse dossiê possui cerca de 100 (cem) páginas contendo uma série de fotos, registros de ocorrência e documentos de proprietários rurais.

O dossiê é construído para demonstrar que o MST é uma organização paramilitar com vínculos com as FARC, recebendo destas um treinamento de guerrilha. Assim, as ações de ocupação das propriedades serão narradas como tentativas do movimento de ter controle sobre o território gaúcho a partir do domínio sobre as rodovias principais da mesorregião:

“Estima-se que a primeira etapa da ação visando obter o pretendido domínio territorial branco seria tentar controlar o território entre as rodovias RS-324 (Passo fundo, Pontão, ronda Alta, Goio-Em) e BR-386 (Carazinho, Sarandi e prolongamento por estrada estadual que também conduz à Ponte do Rio Goio-Em), estendendo com pontos até a fronteira com o Uruguai o que já lhes daria o controle sobre estas duas importantes rodovias norte-sul, de grande importância estratégica para os fins de controle de área e liberdade de movimentos. Ressalta-se que já se verificou invasão às margens da BR 324, no município de Nonoai (dentro da área visada), na faixa de domínio da citada rodovia e na Fazenda de propriedade de Alberto Tagliari, ocorrendo o cumprimento da Ordem Judicial de reintegração de posse, no entanto os invasores retirados prometeram tornar a invadir a área e depredar a propriedade, pois é até assinalado como ponto indispensável de fixação”

A partir dessa análise, as ocupações sobre a fazenda Coqueiros serão entendidas como estratégicas no plano de conquista territorial.

“Para execução da primeira parte do arrojado plano estratégico antes referido, é imprescindível a tomada, a qualquer preço, da Fazenda Coqueiros e outras propriedades situadas em seu caminho, por localizarem-se entre as duas rodovias asfaltadas mencionadas (RS-324 e BR-386), embora não divise com nenhuma delas”.

Tal percepção perpassa a fala do entrevistado, que sem poder falar da ação penal em curso, fala genericamente das ações de “invasão”:

você passa a deixar outros fatores intervir na sua luta pela terra, por exemplo, a gente entende que essa terra é mais estratégica do que a outra, a gente entende que essa fazenda é mais estratégica do que a outra (...), você tem, queira ou não, você tem o uso político de invasões de terra ou não, você tem a interferência de outros fatores como a questão de estratégia: ah essa fazenda aqui passa ou vai passar um cabo de energia, então, essa fazenda aqui talvez seja melhor de se invadir do que aquela ali, que não tem nada.

A narrativa central do dossiê, que demonstraria os vínculos com as FARC, seria a presença de Hugo Castelhano, muito embora não haja informações da

e razões de sobra para tomar as providências que o caso requer, antes que seja tarde demais” . Ver ação nº 2007.71.18.000178-3 (ação na Lei de Segurança Nacional).

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sua nacionalidade.O Cel. Cerutti encerra seu dossiê com um rol de orientações para o Poder

Judiciário enfrentar e desmontar o MST. Esse dossiê será entregue para a Juíza da Vara Cível de Carazinho em 02 de junho de 2006 e posteriormente será encaminhado pelo Ministério Público Estadual para a Delegacia Federal realizar as investigações sobre os vínculos do MST com as FARC, logo, a possibilidade de haver crime contra a Segurança Nacional.

No processo de investigação as testemunhas que prestaram esclarecimento não saberiam dizer sobre FARC, nem mesmo sobre treinamento paramilitar. Não deixa de ser curioso o depoimento de Moacir Cavol, proprietário de terra em área próxima da fazenda Coqueiros e do acampamento do MST, que narra ter visto Hugo Castelhano “acreditando pelo sotaque, que seja dos países mais ao norte, tais como Bolívia, Colômbia, Venezuela, pois o declarante reconhece o sotaque dos estrangeiros da Argentina e Uruguai”.

O Delegado Federal, responsável pela investigação, em sua conclusão para a Justiça Federal, requer o arquivamento por não haver provas dos vinculos do MST com a FARC. Apesar dessa manifestação, entende o Ministério Público Federal pela necessidade de novas investigações e ao final irá denunciar os integrantes do MST na Lei de Segurança Nacional, que será recebida pela Justiça Federal.

Em paralelo as ações judiciais ocorre também um Inquérito realizado pelo Ministério Público Estadual, que em sessão sigilosa do Conselho Superior do Ministério Público em sessão ordinária do dia 03 de dezembro de 2007, delibera por uma série de medidas em face do MST:

1) Ação Civil Pública para decretação da ilegalidade do MST;

2) proibição de deslocamento dos integrantes do MST;

3) Investigação sobre os recursos do MST;

4) Fechamento das escolas itinerantes;

5) Investigação do cumprimento da função social nas áreas de assentamento;

6) Desativação dos acampamentos próximos a Fazenda Coqueiros;

7) Verificação do alistamento eleitoral dos integrantes dos acampamentos com vistas ao cancelamento eleitoral

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Das medidas aprovadas já foram executadas: - várias ACP para retirar as crianças da companhia de pai e mãe que

estiverem participando de marchas; - ACP que transformou a comarca de Carazinho numa zona especial,

impedindo a realização de protestos pelo MST; - ACP que despejou dois acampamentos de duas áreas arrendadas e

proibiu os proprietários de arrendar, sob pena de multa de R$10 mil diários; - 03 ACP que criaram zonas especiais ao redor das fazendas Palma, Nene

e Southal.

Com relação à Ação Civil Pública para decretação da ilegalidade, essa medida foi cancelada, pois diante da divulgação da reunião do Conselho Superior pela mídia gerou uma série de apoios públicos e o Conselho Superior posteriormente anulou esse ponto. No entanto, as ações civis públicas em curso nos dão a dimensão da tentativa de engessamento da organização MST promovida em nome da ordem democrática e do direito, que o Ministério Público se impõe defender.

Pensamos que o conflito judicial sustentado numa lei de Segurança Nacional, logo produto de um estado de exceção, nos aponte para a permanência de um discurso ideológico do poder judiciário, ainda marcado pela dimensão do direito como produção estatal, centrado na defesa da propriedade.

A historiadora Gizlene Neder em sua tese de doutorado13 analisa o discurso jurídico na formação da República nos dá conta da formação de um judiciário comprometido com a oligarquia agrária, por serem esses que possibilitaram formar seus filhos na Europa e exercerem a magistratura.

De fato, quando analisamos no mestrado os processos criminais 14em que dirigentes do MST respondiam por formação de quadrilha percebemos uma reorientação por parte do judiciário em criminalizar de forma mais ofensiva as ações de ocupação de terra.

Nas nossas análises dos processos criminais detectamos uma absorção por parte do Judiciário de imagens estereotipadas, sedimentando um imaginário de periculosidade para os movimentos sociais organizados, que buscam construir sua cidadania através da ruptura com determinado modelo legal.

Nesse sentido, reside nosso interesse em recuperar as trajetórias de vida dos operadores que atuaram/atuam no processo em que o MST responde na Lei de Segurança Nacional, como mecanismo que auxilia a compreender o

13 NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995.14 VIEIRA, F.M. da C. Presos em nome da lei: Estado penal e criminalização do MST. Dissertação de mestrado defendida em 2004 pelo programa de Pós-Graduação em Direito e Sociologia da Universidade Federal Fluminense.

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ethos do nosso Judiciário Criminal.Gizlene Neder nos fornece pistas para compreensão do discurso

punitivo do intérprete, que vem, em muitos casos, flexibilizando o conteúdo constitucional. Para ela, a sedimentação do modelo proposto pela escola de São Paulo, de conteúdo mais pragmático, aponta para um campo de aceitação maior de conteúdos autoritários no campo jurídico.

“estamos levantando a hipótese de haver uma relação histórica, teórica e ideológica entre a formação do pensamento jurídico formulado pela Academia de São Paulo e a tendência ao encaminhamento de propostas autoritárias. Pragmatismo e autoritarismo encontrariam, segundo alguns de seus formuladores, um terreno propício e adequado à sociedade brasileira, pelo simples motivo desta ser dotada de características peculiares que os tornariam mais apropriadas à realidade brasileira”15.

Nas narrativas processuais dos operadores jurídicos com relação ao MST, a imagem construída de que se trata de uma organização revolucionária conta também com a visão de uma elite brasileira, autoritária, que não aceita a menor possibilidade de que os sem terra, os sem educação, os sem moradia, os sem emprego, enfim, os sem direitos se organizem, reivindiquem direitos, ocupem para isso os espaços públicos e rompam com as múltiplas cercas, sejam elas jurídicas, sociais, econômicas e políticas, que os mantém segregados.

Para Gizlene a origem colonial e escravista da nossa formação social nos ajuda compreender esse processo de segregação social:

“tanto a colonização quanto a escravidão ditam, ainda, o padrão de estrutura social e de poder que exclui amplos setores da sociedade brasileira. Mesmo as modificações advindas com o processo de urbanização/industrialização não apagaram estas marcas, que precisam ser devidamente dimensionadas, sobretudo pelos efeitos ideológicos que se manifestam sob a forma de permanências simbólicas que atravessam várias conjunturas do processo histórico brasileiro.” 16.

De fato, o entrevistado apresenta um olhar contraditório sobre a possibilidade de ação dos movimentos sociais. A sedimentação de papéis pré-determinados, onde ao subalterno só cabe sua subalternidade, fica clara ao responder sobre o papel do movimento social e os desafios contemporâneos da luta pela terra. Seu imaginário negativo ao MST se constrói pelo fato deste se descaracterizar de uma organização de defesa da reforma agrária e ter se transformado em um órgão de atuação mais politizado:

“a luta pela terra hoje ela é politizada. Tanto é que o movimento maior que é o MST ele é um movimento politizado, ele é um movimento organizado, e isso dá uma dimensão na luta pela terra, muito, muito distinta, por que, porque hoje em dia a luta pela terra, como eu vejo ao menos nesse processo, você deixa de ter um grupo, que entende pelo direito sobre determinada terra por ela ser improdutiva, hoje em dia, pelo que eu vejo, e agora consigo ver isso melhor, você não tem esse pequeno grupo tomador de decisão com base numa injustiça social de um outro, um proprietário ter uma grande vastidão

15 NEDER, Gizlene. Violência e Cidadania. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 17.16 NEDER, G. Violência e cidadania. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1994, p.23.

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de terra, não você tem uma coordenação a respeito disso, e, até é interessante que se tenha uma coordenação só que ai você perde a noção do porque se está brigando por terra, porque ai você tem uma coordenação, você tem uma figura emblemática de um movimento e por vezes em vez de se pensar apenas naquele cotejo mais, mais simplório que é: uns sem nada e 1 com muito, você passa a deixar outros fatores intervir na sua luta pela terra, por exemplo, a gente entende que essa terra é mais estratégica do que a outra, a gente entende que essa fazenda é mais estratégica do que a outra”

Para Marilena Chauí a ideologização do conteúdo da ética acaba gestando um terreno propício para a violência aos setores subalternizados. Isto porque a lógica liberal-individualista constrói a noção de cidadania sobre dois pilares:

“(...) de um lado, o sujeito ético como vítima, como sofredor passivo, e de outro lado, o sujeito ético piedoso e compassivo que identifica o sofrimento e age para afastá-lo. Isto significa que, na verdade, a vitimização faz com que o agir ou a ação fique concentrada nas mãos dos não-sofredores, das não-vítimas que devem trazer, de fora, a justiça para os injustiçados. Estes, portanto, perderam a condição de sujeitos éticos propriamente ditos para se tornar objetos de nossa compaixão. Isto significa que para que os não-sofredores possam ser éticos é preciso duas violências: a primeira, factual, é a existência de vítimas; a segunda, o tratamento do outro como vítima sofredora passiva e inerte. Donde o horror causado pelo movimento dos sem-terra que se recusam a ocupar o lugar da vítima sofredora, passiva, muda e inerte, que recusam a compaixão e por isso mesmo, numa típica inversão ideológica, são considerados não sujeitos éticos e sim agentes da violência.”17

Tal dualismo é perceptível na fala do entrevistado ao comparar as lutas pela terra que ocorriam no passado e as contemporâneas:

Então, ... hoje em dia a capacidade de mobilização e a capacidade de informação fazem com que a luta pela terra se transforme em uma certa meta disforme, ela não tem aquele conteúdo simples e singelo: olha nós somos flagelados e injustiçados, temos o direito a sobrevivência e ao progresso, ao passo que nós temos aqui um sujeito que tem muita terra, que não produz, que não tá cumprindo sua função social, isso deveria ser o cerne do combate, da luta pela terra, e hoje em dia me parece que essa possibilidade de informação, de mobilização, de se aliar a uma figura ou grande grupo distorce um pouco essa figura” (grifo nosso).

Temos refletido a partir da produção teórica de Boaventura de Sousa Santos esse dualismo que o operador apresenta para descaracterizar o MST como movimento político, desordeiro, inimigo do Estado e não mais um defensor da reforma agrária, a partir das suas análises sobre o pensamento abissal18.

Tal pensamento marca-se pela gestação de “um sistema de distinções visíveis e invisíveis”. Assim, para Boaventura, trata-se de compreender a incapacidade de percepção do outro, cujos modos de vida, valores, hábitos serão rebaixados diante do modelo entendido como universal e racional. Essa relação de dominação do outro, entendido como um selvagem, um bárbaro¸ justifica as

17 CHAUÍ, Marilena. Ética e violência. Revista Teoria e Debate, nº 39 - outubro/novembro/dezembro de 1998. Acessível em http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=2305.18 SANTOS, Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições almedina, 2009.

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ações de controle mais violentas. Trata-se de uma vida sem significado para o colonizador.

Em seu trabalho Para além do pensamento Abissal, o professor Boaventura nos faz pensar os limites impostos por uma lógica absolutamente excludente. Sua análise penetra em todos os campos da vida: econômico, social, científico, e nos desvela como tal sistema de valores, que funda a modernidade, construiu um verdadeiro apartheid social:

“existe, portanto, uma cartografia moderna dual: a cartografia jurídica e a cartografia espitemológica. O outro lado da linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade e ilegalidade, para além da verdade e da falsidade. Juntas, estas formas de negação radical e inexistente, uma vez que seres sub-humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social. A humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade moderna”19

As reflexões de Santos nos despertam para pensar como se dá esse olhar por parte do judiciário e a assimilação de que a pobreza organizada traduz-se em hordas. Daí a necessidade do resgate da fala do operador do direito, não apenas a que se expressa nos autos, mas sua visão de mundo, que, em última instância, orienta sua posição no plano processual.

Esse olhar de desconfiança, de estranhamento, diante daqueles que se organizam para conquista de direitos, é a base dos argumentos que se apresentam como justificadores para a ação penal na lei de segurança nacional.

Ao nos depararmos com a leitura da entrevista, ora analisada, percebemos essa dualidade manifesta. O entrevistado, de forma tão capilar, possui uma ideologia que nega qualquer possibilidade de conquista de direitos pelos setores subalternizados. Está marcado por esse pensamento abissal de que nos fala Santos. E a partir dessa negação de existência de direitos ao MST, constrói sua intervenção judicial.

Sua visão negativa com relação ao MST se dá em razão deste ter-se tornado um movimento político organizado que perdeu seu foco com relação à reforma agrária:

“a luta pela terra hoje ela é politizada. Tanto é que o movimento maior que é o MST ele é um movimento politizado, ele é um movimento organizado, e isso dá uma dimensão na luta pela terra, muito, muito distinta, por que, porque hoje em dia a luta pela terra, como eu vejo ao menos nesse processo, você deixa de ter um grupo, que entende pelo direito sobre determinada terra por ela ser improdutiva, hoje em dia, pelo que eu vejo, e agora consigo ver isso melhor, você não tem esse pequeno grupo tomador de decisão com base numa injustiça social de um outro, um proprietário ter uma grande vastidão de terra, não você tem uma coordenação a respeito disso, e, até é interessante que se tenha uma coordenação só que ai você perde a noção do porque se está brigando por terra, porque ai você tem uma coordenação, você tem uma figura emblemática de um movimento e por vezes em vez de se pensar apenas naquele cotejo mais, mais simplório que é: uns sem nada e 1 com muito, você passa a deixar outros fatores intervir na sua luta pela terra, por exemplo, a gente entende que essa terra é mais estratégica do que a outra, a gente entende que essa fazenda é mais estratégica do que a outra”

19 SANTOS; 2009, p. 30.

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Para o entrevistado essa politização se dá em razão das tecnologias comunicacionais que permitem uma politização maior dos setores sociais acerca do seu papel social. No entanto, essa politização quando se refere aos trabalhadores rurais é entendida pelo seu viés negativo, logo, descaracterização. Mas ao ser interpelado sobre os efeitos dessa mesma tecnologia comunicacional no setor patronal, se esse setor também não seria abrangido por essas transformações, entende que tal fenômeno também acompanha o setor patronal, no entanto, pelo viés positivo:

sem dúvida....hoje eu tenho certeza absoluta que os proprietários rurais, os industriais, todos aqueles que tem grande propriedade, que tem grandes bens de capital ou até aqueles que não tem grandes bens de capital, mas que tem muitas pessoas que trabalham para você, com certeza a visão... e pegando especificamente o caso da visão, da visão rural, que sempre foi aquela visão muito de capitães, sempre foi muito de a grande casa e a senzala, com certeza, esse acesso à informação, e não só isso, a transformação pelo que vive o país, as notícias, essa pessoa hoje é muito mais consciente da sua função social do que seu pai foi e muito, e infinitamente mais consciente da sua função social, e da função social que aquela terra exerce do que seu avô foi (...)

E outra coisa, ele também sabe que aquela relação, claro estou traçando um estereótipo aqui de ruralista, que só no estereótipo que a gente consegue, né, explanar melhor, claro que a relação dele com seus empregados, por exemplo, hoje em dia ela é, ela é mais próxima, e com certeza, as informações, tudo que...altera a visão dos ruralistas sobre o porque ele tem aquela terra, sob o modo como ele vai produzir, sobre a própria reforma agrária, com certeza, isso torna, tem tornado os ruralistas mais conscientes, como tem tornado os industriais mais conscientes, como tem tornado os grandes empregadores muito mais conscientes da sua função social, só pelo simples fato dele ter muito, dele ter que produzir, isso sem dúvida nenhuma...”

Escapa ao entrevistado os dados que revelam um crescimento de trabalhadores no campo, ou mesmo, o número de trabalhadores mortos por exaustão, na sua compreensão de que o setor patronal agora adquiriu consciência da sua função social. Esse olhar é como um glaucoma, como nos fala Michel Lowy, que marca a visão do operador. Essas distinções sociais por serem invisibilizadas, capilarizadas na visão de mundo do operador, naturalizadas, tornam-se quase impossíveis de serem superadas. O pensamento abissal trás consigo a noção do inconciliável.

Essa visão de mundo tão capilarizada pelo operador refletirá inclusive na negação de acesso pela via eleitoral. O espaço de disputa parlamentar será visto como uma descaracterização da luta do movimento. Assim, o MST perde o foco da luta pela terra porque ao se politizar começa a atuar na arena não “natural” da sua organização: o parlamento:

“olha, é muito difícil você falar, porque nada é preto, branco, preto, branco, claro que é reconhecimento de direitos, claro que o escopo maior, o objetivo maior de toda essa luta pela terra e dos movimentos que a gente vê, o escopo é fazer uma política de reforma agrária, ah, ... boa, claro, só que a par disso, junto desse grande escopo (...) desse ideal, ele não é puro, né, e o exercício dele também não é puro, porque não é fácil, você..., hoje em dia, por exemplo, você tem uma bancada ruralista, você tem uma bancada de sem terra, digamos assim, você tem lá um deputado sem terra,

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você pensa em eleger um deputado que seja sem-terra, você faz propaganda dentro do movimento, por que?, porque obviamente você tendo um, dois, três deputados que lutam pela causa, que são originários da causa, você vai fortalecer a causa, só que veja só, aquela luta que antes era muito mais simples, agora ela ganha contornos muitos mais sofisticados, porque você pensa adiante, você pensa que tem que ter um representante lá, você tem que ter um representante do executivo aqui, você, você tem que tornar os municípios aliados”

Ao ser perguntado se no campo da democracia representativa, não seria legítimo ao MST uma atuação por dentro do legislativo, o entrevistado dirá que sim, pois:

“isso é praticamente obrigatório, até porque toda espécie de reforma agrária vai passar por um entendimento político, governamental e burocrático do estado, então é necessário, com certeza, a luta pela reforma agrária vai ter que ter representantes nestas três órbitas, digamos assim, então eu acho. Não acho que tire a beleza ou legitimidade, não, porque eu sei que essas são, digamos assim, as armas para que se tenha que buscar espaços hoje, seja, enfim, seja na questão de terra, seja na questão de saúde, acredito, entendo legítima, não acho que tire a beleza e a legitimidade, não acho de maneira alguma, só que, isso torna o abre aspas o jogo fecha aspas, muito mais complexo e muito mais sujeito a interferências, você para conseguir esse desiderato de ter um parlamentar seu, que leve a sua bandeira lá, seja a bandeira ruralistas, ou a bandeira dos sem terra, enfim, você para conseguir no final das contas, você para conseguir a terra, (...) você passa por um círculo muito grande, porque você tem que escolher alguém, alguém que tenha simpatia e ai você já deixa de atribuir qualidades específicas aquela pessoa e tenta ganhar simpatias dos demais, você tem que passar por um jogo político que muitas vezes envolve dinheiro, que toda eleição envolve dinheiro, seja pra você fazer publicidade dessa pessoa, você faz alianças, você se sujeita a coisas que não se sujeitaria, então esse jogo acaba, eu não digo que tire a legitimidade (...) a pureza da luta pela terra, de forma, de forma alguma, mas que você passa a ter que pensar em outras coisas que não a luta pela terra, que não a injustiça de você ter x números de famintos, x números de ... ao passo que você tem milhões de hectares, de propriedades de 1 ou 2 pessoas, que é o cerne da questão, você passa a ter que pensar em outras questões que não dizem respeito a isso e, muitas...e aí você começa a entrar justamente nesses pontos que não são da essência da terra (...)

Nessa perspectiva abissal não há alternativas aos movimentos sociais: de um lado, descaracteriza-se por construir uma ação no parlamento, por outro, torna-se um movimento de desordeiro, de ataque à ordem social e ao Estado, quando se organiza e reivindica através de ocupação de terra a efetivação da reforma agrária.

Então, qual alternativa se coloca para os movimentos reivindicatórios? Como pensar o papel do judiciário e os marcos do estabelecimento de um estado de exceção?

4. A ordem e desordem neoliberal: manda quem pode...... Obedece quem tem juízo?

Há um conto de Eduardo Galeano, narrado por Adolfo Perez Esquivel no Fórum Social Mundial em 2005, que nos parece emblemático para definição dos rumos em escala planetária que a hegemonia neoliberal impôs. Narra ele que

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havia um cozinheiro e que este resolveu fazer uma assembleia onde estavam presentes as galinhas, os patos, os porcos, os coelhos e lhes perguntou com que molho queriam ser cozinhados, após alguns minutos de espanto, uma galinha tímida falou que não queria ser cozinhada ao que o cozinheiro respondeu: “Um momento, isto está totalmente fora de discussão, a única opção que vocês podem me dizer é o molho com que querem ser cozinhados”.

Parece-nos que tal conto expressa com perfeição os desafios impostos diante da ordem neoliberal em escala global, demonstrando a complexa relação de poder que se estabelece diante desse novo cenário. Uma ordem em que as possibilidades de definição dos rumos da política, da vida, não são amplos, e sim condicionados, limitando-se a repertórios seletivos, impossibilitando o exercício autônomo de ação de cada país.

Não sem razão Boaventura de Sousa Santos alerta para esse momento denominando-o de fascismo societário, que se demarca por ser “o mais refratário a qualquer intervenção democrática (...) Os mercados financeiros são uma das zonas selvagens do sistema mundial, se não mesmo a mais selvagem. A discricionariedade no exercício do poder financeiro é total e as consequências para os que são vitimas dele – por vezes, povos inteiros – podem ser arrasadoras” 20.

Boaventura analisa a partir da categorização de fascismo societal as alterações no contrato social realizadas pelo modelo neoliberal. Um dos aspectos por ele abordado é a redução da capacidade de absorção de direitos nesse novo momento histórico por ele denominado de pós-contratualismo, que se resume em um:

“processo pelo qual grupos e interesses sociais até agora incluídos no contrato social são dele excluídos sem qualquer perspectiva de regresso. Os direitos da cidadania, antes considerados inalienáveis, são-lhes confiscados e, sem estes, os excluídos passam da condição de cidadãos à condição de servos”21

Tal percepção nos permite compreender o atual processo de redução de direitos e da criminalização dos movimentos sociais. Uma reorientação que perpassa o próprio poder judiciário, cujo olhar sobre os grupos organizados que constroem suas ações coletivas na ótica da desobediência civil, serão vistos como crime organizado, gestando assim processos penais com vistas a impossibilitar a existência dos movimentos.

Boaventura Santos vem se debruçando, a partir do marco neoliberal, nas análises das modificações ocorridas no campo da regulação e das ações coletivas por direitos. Se antes se fala em crise de legitimação pela incapacidade do Estado em absorver demandas por justiça e direito dos movimentos

20 SANTOS, Boaventura de S. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. In OLIVEIRA, F. de; PAOLI, M. C. (orgs.) Os sentidos da democracia. Políticas do dissenso e hegemonia global. RJ, Vozes; Bsb: NEDIC, 1999, págs. 106-7.21 SANTOS, op. cit. 199, pág. 96.

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reivindicatórios, a partir do ideário neoliberal a crise se instala pelo consenso de que há excesso de democracia:

“As democracias estavam em crise porque se encontravam sobrecarregadas com direitos e reivindicações e porque o contrato social, em vez de excluir, era demasiado inclusivo, devido precisamente às pressões sobre ele exercidas pelos actores sociais históricos atacados pelos estudantes (os partidos operários e os sindicatos). Com esta análise e o poder social por detrás dela, a crise do governo baseado no consenso (crise de legitimidade) transformou-se numa crise do governo toul couri, e, com isto, a crise de legitimidade transformou-se em crise de governabilidade.” 22

Para Santos, tal alteração de perspectiva modificará também o foco da natureza da contestação política, que se antes se legitimava pelo reconhecimento de que, de um lado, a pressão dos atores sociais era necessária para obtenção da inclusão em razão da própria incapacidade do Estado para fazê-lo, com a governança neoliberal se centra “na necessidade de conter e controlar as reivindicações da sociedade relativamente ao Estado”23.

O objetivo do autor é apresentar a possibilidade de uma governança global a partir das experiências do Fórum Social Mundial, como modelo de ação coletiva que romperia com a modernidade ocidental traçada em duas vias: reforma ou revolução.

Interessa-nos aqui perceber os mecanismos de alteração na percepção da ação coletiva, a partir dos marcos do fascismo societal, que impõe maior exercício de controle sobre os movimentos sociais e, portanto, constitui uma espécie de limite mais reduzido à ação.

Isto porque, no que se refere à reforma agrária, com frequência, os discursos dos operadores, e nossos entrevistados não fugiram a essa regra, defendem a necessidade dessa política pública. Como explicar então que para cada ocupação de terra haja como contrapartida a reintegração de posse liminar? Para os entrevistados o problema está no fato de que o MST comete excessos nas ocupações, perdendo o foco da luta legítima pela reforma agrária, tornando-se um agente político.

Não é pouco significativo que para o entrevistado haja uma distinção do movimento de invasão mas pacifico, daquele que ele concebe ser incentivador de invasões:

em casos pontuais como invasões e despejos isso é rotina, e acho que o judiciário tem andado bem, tem andado bem, que..tem conseguido, ao menos o que tenho feito, tem conseguido distinguir aquela invasão, aquele acampamento pacifico, que tá ali, ainda que pressionando, tem conseguido distinguir isso daqueles que são em prol de invasões e abigeatos e tal, esses normalmente o judiciário dá a reintegração rápido, os outros acampamentos pequenos e pacíficos e tal, que ainda que exercem pressão, mas não de forma contundente mediante a prática de delitos, esses o judiciário talvez tenha

22 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da governação neoliberal: O Fórum Social Mundial como política e legalidade cosmopolita subalterna. Revista Crítica de Ciências Sociais, 72, Outubro 2005: 7-44, pág. 12. 23 SANTOS, op. cit. 2005, pág. 12.

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a tendência de manter

Assim, o que queremos perceber é a construção de uma ordem que se apresenta como o “fim da história”, marco do triunfo da democracia liberal ocidental, que produz um consenso de ordem social-legal a ser resguardada, ainda que seletiva na possibilidade de participação/intervenção social.

Com todas as críticas ao modelo democrático liberal, ele se assentava na premissa de uma ampla participação popular, ainda que de fato não houvesse caminhos concretos para assegurar tal participação24. Para Boaventura, a governança neoliberal impõe uma reversão negativa à noção de legitimidade, agora lida como:

“em vez de transformações sociais, a resolução de problemas; em vez da participação popular, participação dos titulares de interesses reconhecidos ( stakebolders); em vez do contrato social, a auto-regulação; em vez da justiça social, jogos de soma positiva e políticas compensatórias; em vez de relações de poder, coordenação e parcerias; em vez de conflitualidade social, coesão social e estabilidade dos fluxos”25.

Assim, há uma seleção que impõe uma não-existência ao excluído do processo reivindicatório, posto que “o que quer que fique de fora não é concebido como fonte de um poder capaz de transformar a exclusão em inclusão. Inclusão e exclusão são, desse modo, despolitizadas, não mais do que dimensões técnicas da coordenação. Na ausência de um comando soberano, a exclusão só existe como dilema da exclusão: como obter poder para lutar pela inclusão no círculo da governação, quando todo o poder que há decorre de se pertencer a esse círculo?” 26.

O autor tecerá críticas ao campo do direito no modelo de governação neoliberal que surgirá como maior fonte de despolitização, visto ser acompanhada por um discurso em que apenas alguns técnicos são competentes para o decifrar, tornando o “paradigma jurídico (...) agora como muito mais político do que a matriz da governação. Para os autores da área da teoria crítica, a despolitização provocada pelo direito foi uma opção altamente política, o mesmo se podendo dizer a propósito da governação”.

Tal crítica nos obriga a refletir sobre o processo de crescimento do fenômeno da judicialização do social e os limites da produção de direitos nessa perspectiva neoliberal/estado penal.

Antes é preciso mencionar que os processos de barbarização e de redução de direitos impostos, pelo que Boaventura denomina de fascismo societal,

24 Eis o debate que percorreu a ciência política e a crise do modelo de democracia representativa levando a alguns teóricos, como Bobbio, a adotar a premissa dos aprimoramentos dos procedimentos da participação, ainda que não se efetive, como mediador da qualidade democrática. Ver: SANTOS, Boaventura de S.; AVRITZER, L. Para ampliar o cânone democrático. In SANTOS, Boaventura de S. (org.). Democratizar a democracia. Os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.25 SANTOS. op. cit. 2005, pág. 14.26 SANTOS. op. cit. 2005, pág. 15.

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possui reflexos mais penosos quando se tem em mente que no Brasil a tradição de cidadania e de democracia está atravessada por um discurso assimétrico, hierarquizado, onde os espaços sociais estão demarcados e seletivizados a determinados grupos sociais27.

Tal contexto nos ajuda a entender porque, como nos diz Marilena Chauí, o “Movimento dos sem-terra que se recusam a ocupar o lugar da vítima sofredora, passiva, muda e inerte, que recusam a compaixão e por isso mesmo, numa típica inversão ideológica, são considerados não sujeitos éticos e sim agentes da violência” 28.

5. Configuração do atual cenário de estado penal: quando a regra é punir, punir e punir!

Loïc Wacquant29 despontou como um importante analista desse processo crescente de penalização da pobreza. Através de uma pesquisa empírica de fôlego, realizada tanto nos EUA, quanto nos países que compõem a União Europeia, ele demonstrou a relação direta ocorrida entre a fragilização do Estado de bem estar social, promovida pelas políticas neoliberais, e o crescimento do Estado penal e policial 30.

Os efeitos sociais e econômicos das medidas reducionistas do Estado, como o crescimento da miséria, a precarização do trabalho, aumento do desemprego, potencializaram um sentimento de insegurança, que, por sua vez, acabaram por gerar um território propício para as políticas de criminalização da miséria, com o consequente encarceramento dos miseráveis.

Assim, incapaz de dar respostas no plano econômico-social, o Estado-Nação se apresenta como um Leviatã no quesito segurança

“desenha-se a figura de um novo tipo de formação política, espécie de `Estado-centauro`, dotado de uma cabeça liberal que aplica a doutrina do ̀ laissez-faire, laissez-passer` em relação às causas das desigualdades sociais, e de um corpo autoritário que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as consequências dessas desigualdades” 31

27 Para uma maior compreensão dos limites e fragilidades do modelo democrático e da cidadania no Brasil ver DAGNINO, E. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In DAGNINO, E (org.). Os anos 90: política e Sociedade no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 2004.28 CHAUÍ, M. Ética e violência. Revista Teoria e Debate, nº 39, out/nov/dez de 1998, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, p. 35.29 WACQUANT, Loïc. A tentação penal na Europa in Discursos, Sediciosos, crime, direito e sociedade, ano 7, nº 11, RJ: Editora Revan/ICC, 2002; ___. As prisões da miséria, RJ, Jorge Zahar, 2001; ____. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. RJ, Instituto Carioca de Criminologia, Freitas Bastos, 2001;__. A ascensão do Estado penal nos EUA. Em: Discursos, Sediciosos, crime, direito e sociedade, ano 7, nº 11, RJ: Editora Revan/ICC, 2002, ____. As duas faces do gueto. São Paulo, Boitempo, 2008.30 WACQUANT, Loïc. A tentação penal na Europa. Em: Discursos, Sediciosos, crime, direito e sociedade, ano 7, nº 11, RJ: Editora Revan/ICC, 2002; ver também do mesmo autor, As prisões da miséria, RJ, Jorge Zahar, 2001; Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. RJ, Instituto Carioca de Criminologia, Freitas Bastos, 2001.31 WACQUANT, Loïc. A ascensão do Estado penal nos EUA. Em: Discursos, Sediciosos, crime, direito e sociedade, ano 7, nº 11, RJ: Editora Revan/ICC, 2002, p. 13.

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Wacquant irá detectar na política estatal de criminalização das consequências da miséria de Estado, dois movimentos no processo de penalização. O primeiro movimento “consiste em transformar os serviços sociais em instrumento de vigilância e de controle das novas ‘classes perigosas’.”32 (...) o segundo componente da política de ‘contenção repressiva’ dos pobres é o recurso maciço e sistemático ao encarceramento”33.

O crescimento da população carcerária, por conseguinte, seria um indicativo da ampliação de categorias criminalizadas sempre em nome da manutenção da ordem pública, um demonstrativo de que agora a repressão se volta para os pequenos delitos, em sua maioria, voltados contra o patrimônio, muito embora não haja correlação entre as taxas de encarceramento e crescimento da criminalidade34.

Nesse sentido, as práticas persecutórias sinalizam para o horror causado pela presença viva desses extratos sociais no cotidiano dos espaços públicos,

“No Brasil, a difusão do medo do caos e da desordem tem servido para justificar estratégias de exclusão e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. (...) A hegemonia conservadora em nossa formação social usa a difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. O medo se torna fator de tomadas de posição estratégicas no campo econômico, político e social. 35

Nessa perspectiva, Jock Young, irá buscar detectar a raiz do que ele

denomina insegurança ontológica, que produzirá “tentativas repetidas de criar uma base segura” 36 responsável pela criação de bodes expiatórios.

Para ele, a marca da modernidade recente é a exclusão. O projeto do pós-guerra de sociedade includente, sustentado por um Estado presente nas políticas sociais ruiu. A crise do trabalho é estrutural e milhares de seres humanos tornaram-se obsoletos. Os valores que sustentam a modernidade

32 Vera Malaguti, em sua dissertação de mestrado Drogas e criminalização da juventude pobre no Rio de Janeiro, analisa o papel das agências de assistência, no caso voltadas para o menor infrator, no mecanismo de controle e de reprodução de práticas estigmatizadas, fortalecendo dessa forma as práticas persecutória penais sobre a juventude negra e pobre. 33 WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. RJ, Instituto Carioca de Criminologia, Freitas Bastos, 2001, p. 27/28.34 “como prova temos o aumento rápido e contínuo do número de prisioneiros a um ano relacionado com o volume de crimes cometidos durante o ano correspondente: este indicador de ‘punibilidade’ passa de 21 detentos em 1 mil infrações entre 1975 para 37 em 1 mil em meados dos anos 90 (...). O fato de o crescimento deste indicador ser nitidamente mais forte que o índice de aprisionamento relacionado com o número dos crimes violentos (275% contra 150%) confirma que a maior punibilidade do Estado americano visa primeiramente os pequenos delinqüentes de direito comum. O que mudou neste período não foi a criminalidade, mas a atitude dos poderes públicos em relação às classes pobres, consideradas como o centro irradiador do crime”. WACQUANT, L. A ascensão do Estado penal nos EUA. Em: Discursos, Sediciosos, crime, direito e sociedade, ano 7, nº 11, RJ: Editora Revan/ICC, 2002, p. 19/20.35 BATISTA, Vera M. O medo na cidade. In: PLASTINO, Carlos Alberto. Transgressões. Rio de Janeiro: Contracapa, 2002, p. 205.36 YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro, Revan:Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 34.

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recente são marcados pela individualidade, competitividade, consumismo acelerado.

Dois aspectos serão importantes para compreensão dessa transição do modelo de modernidade inclusiva para a modernidade excludente. O primeiro é a revolução cultural que se dará nas décadas de 1960 e 1970, que marca uma centralidade do indivíduo, centralidade esta que será ampliada no final do século XX, a partir da hegemonia neoliberal que se marca pela desagregação social:

“pode ser mais bem entendida como o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais. Pois essas texturas consistiam não apenas nas relações de fato entre seres e suas formas de organização, mas também nos modelos gerais dessas relações e os padrões esperados de comportamento das pessoas umas com as outras; seus papéis eram prescritos, embora nem sempre escritos. Daí a insegurança muitas vezes traumática quando velhas convenções de comportamento eram derrubadas ou perdiam sua justificação; ou a incompreensão entre os que sentiam essa perda e aqueles jovens demais para ter conhecido qualquer coisa além da sociedade anômica” 37.

Para Young encontra-se uma mesma raiz tanto no que se refere ao crescimento da violência e da criminalidade, quanto nas reações punitivas, pois:

“tanto as causas da violência quanto a resposta punitiva a ela dirigida procedem da mesma fonte. A violência obsessiva das gangues de rua e a obsessão punitiva dos cidadãos respeitáveis são semelhantes não só em sua natureza, mas em sua origem. Ambas derivam de deslocamentos no mercado de trabalho: uma de um mercado que exclui a participação como trabalhador mas estimula a voracidade como consumidor; a outra, de um mercado que inclui, mas só de maneira precária. Vale dizer, ambas derivam do tormento da exclusão e da inclusão precária” 38

A perda dos laços de solidariedade, em especial pelo crescimento do individualismo fóbico39; a visão do outro como um inimigo sempre muito próximo, principalmente pelo crescimento da massa de miseráveis nas grandes cidades; a sensação de instabilidade cotidiana; a sensação de efemeridade das relações, estabelecem o que Young chamará de insegurança ontológica

“que se dá quando a auto-identidade não está embasada no nosso sentido de continuidade biográfica, quando o casulo protetor que filtra as objeções e riscos ao nosso sentido de certeza se torna fraco e quando o sentido absoluto de normalidade se desorienta pelo relativismo dos valores circundantes. Com sua ênfase na escolha existencial e na auto-criação, o individualismo contribui significativamente para esta

37 HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 328.38 YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 26.39 Para Gisálio Cerqueira Filho, a marca dessa nova ordem de globalização neoliberal é a de vivermos sob o domínio de um “individualismo fóbico”, que se traduz não só na ausência de “solidariedade social, mas um estranhamento da ordem da fobia com relação ao outro, ao diferente (...) na prática política acentuando-se uma cultura cínica mas também narcísica e auto-centrada”. CERQUEIRA FILHO, Gisálio: Édipo e excesso. Reflexões sobre lei e política. Porto Alegre: Fabris ed. 2002, p.32.

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insegurança”40

Como forma de se conter essa insegurança ontológica, que percorre toda a sociedade, reafirmam-se as políticas de controle social, particularmente as do campo penal, que passarão por “reafirmar valores como absolutos morais, declarar que outros grupos não têm valores, estabelecer limites distintos do que é virtude ou vício, ser rígido em vez de flexível ao julgar, ser punitivo e excludente em vez de permeável e assimilativo. Isso pode ser visto sob várias roupagens em diferentes partes da estrutura social” 41.

Tais análises parecem corroborar a tese do filósofo italiano, Giorgio Agamben, de que estaríamos vivendo uma permanência do estado de exceção42.

Para Agamben, a crise pós - 11 de setembro trouxe para o cotidiano dos governos a implementação permanente do chamado estado de exceção. Toda Carta Constitucional possui em seu corpo a autorização normativa para a implementação do estado de exceção, que significa a suspensão temporária dos direitos e garantias do cidadão. Como regra, o estado de exceção se configura em um exercício temporalmente determinado, que só encontra razão de ser diante da ameaça à segurança nacional.

O que Agamben alerta é que estamos vivendo uma constância do estado de exceção, o significa dizer que “o totalitarismo moderno pode ser definido. Nesse sentido, como a instauração, por meio de estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político.”43.

O que esse autor discute, e reside nesse aspecto a centralidade de seu trabalho, é a transformação desse estado de exceção no paradigma para o funcionamento das instituições jurídicas que visam a normatização do campo social e político. Assim, o que se observa é uma série de suspensões legais que vão impondo paulatinamente um estado totalitário de supressão das garantias e direitos.

Não é mera coincidência que tenha surgido, após 11 de setembro, uma série de trabalhos teóricos no campo do direito penal, defendendo a tese do direito penal de exceção ou direito penal do inimigo44, que, em apartada síntese, significa dizer que o indivíduo que responde uma ação penal não goza das mesmas garantias constitucionais do processo, visto que sua ação

40 YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 34.41 YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p.34/35.42 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. SP, Boitempo, 2004.43 AGAMBEN, 2004, pág. 13.44 Uma dessas obras que irão reverter os direitos conquistados em termos penais, rompendo a tradição iluminista que buscou gestar uma racionalidade para a pena é JACKOBS, Günther et alii. Direito Penal do Inimigo. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2005.

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delituosa representa uma agressão a normatividade, não podendo, portanto, ser beneficiário da norma que infringiu. Trata-se de uma simetria com o conceito de terrorismo.

A tese de Günther Jakobs se orienta em três pontos centrais: primeiro, torna-se necessário se antecipar a punição do inimigo; segundo, é preciso reconhecer a necessidade de se romper com o primado iluminista da proporcionalidade da pena, ao mesmo tempo, em que propõe uma relativização e/ou supressão de certas garantias processuais; e, terceiro, criação de leis severas direcionadas à determinado setor social: terroristas, delinqüentes organizados, traficantes, criminosos econômicos, dentre outros.

Assim, a construção de que há contemporaneamente uma fragilidade do sistema punitivo diante de uma guerra que ameaça cotidianamente o cidadão de bem, acaba por sedimentar a idéia de inimigo, para quem as regras garantidas nos marcos constitucionais não valem, não são sujeitos de direito:

“Tales no-personas son ideológicamente consideradas en los tiempos presentes no únicamente desde el conocimiento vulgar o popular, sino también identificadas (cuando en verdad no lo son) por las instancias de los sistemas penales, como los estereótipos de la criminalidad considerada como la más grave: tráfico de drogas prohibidas, bandas organizadas para la realización de actos terroristas, conductas sumamente violentas contra la propriedad y/o la vida humana”45

Bergalli ressalta o caráter eminentemente ideológico na criação da imagem de uma criminalidade “mais perigosa”, que acaba gestando mais exclusão social. Nesse aspecto, pensamos que entender a criminalização vivenciada pelo MST no Rio Grande do Sul nos revela pistas do processo de ideologização contemporâneo da luta pela terra.

O direito penal, portanto, assume, com perfeição, esse caráter de antagonismo de classe, pois desempenha mais do que qualquer outro ramo do direito, a função de controle social. Razão pela qual maior será a necessidade de se naturalizar o processo de seleção das ações entendidas como crime.

Eugenio Raul Zaffaroni compreende o poder punitivo através da análise do poder soberano. Em sua obra O inimigo no direito penal busca entender como ao longo da história o poder soberano gestou a categoria inimigo, retirando desta qualquer sentido de ser, logo, uma existência eliminável:

“O inimigo declarado (hostis judicatus) configura o núcleo do tronco dos dissidentes ou inimigos abertos do poder de plantão, do qual participarão os inimigos políticos puros de todos os tempos. Trata-se de inimigos declarados, não porque declarem ou manifestem sua animosidade, mas sim porque o poder os declara como tais: não se declaram a si mesmos, mas antes são declarados pelo poder”46.

45 BERGALLI, Roberto. Violência y sistema penal. Fundamentos ideológicos de las políticas criminales de exclusión social.in BERGALLI, R.; BEIRAS, I. R.; BOMBINI, G. (orgs.). Violência y sistema penal. Buenos Aires, Del Porto, 2008, p. 13.46 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2007, pág. 23.

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Zaffaroni alerta para a permanência histórica da categoria inimigo, visto como um elemento perigoso, justificando-se assim uma ruptura de tratamento de pessoa e a busca de contenção determinada pelo poder soberano:

“na medida em que se trata um ser humano como algo meramente perigoso e, por conseguinte, necessitado de pura contenção, dele é retirado ou negado o seu caráter de pessoa, ainda que certos direitos (por exemplo, fazer testamento, contrair matrimonio, reconhecer filhos etc) lhe sejam reconhecidos. Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente como um ente perigoso”47

O jurista argentino alerta como uma das características mais marcantes do sistema punitivo na América Latina é a crescente população carcerária. Em seu estudo, Zaffaroni coloca em questão essa tradição autoritária do sistema punitivo que impõe de forma mais ampla as prisões cautelares aos suspeitos perigosos, tendo claro que tal periculosidade é presumida. Embora reconheça que os braços do sistema punitivo se voltam para a pobreza generalizada alerta que “os dissidentes são mais tolerados, ainda que a repressão ao protesto social dos excluídos do sistema produtivo tenha aumentado, mediante aplicação extensiva de tipos penais e a interpretação restringida de causas de justificação ou de exculpação”48.

De fato, o processo de criminalização dos movimentos sociais vem se ampliando. Em junho de 2008 ocorreu na Escola Florestan Fernandes um encontro organizado pelo Instituto Rosa Luxemburgo para troca de experiências de várias organizações sociais da América Latina debatendo o processo de criminalização em seus países. Um das conclusões do debate, que contou com apresentações de pesquisa em torno da criminalização, foi a evidencia de que a América Latina vive um “estado de segurança preventiva” que se manifesta em uma multiplicidade de formas de controle.49

O atual cenário, então, está marcado por uma conjuntura em que o universo do direito parece ser paulatinamente mitigado por uma ordem penitenciária. Por isso mesmo, Wacquant aponta para o atual cenário como marcado por uma militarização da marginalização urbana, onde a redução do Estado ao seu braço repressor, promovida em escala global pelo ideário neoliberal, gestará uma simbiose com as:

“suas forças militares e civis para a manutenção da ordem. Isso transforma a segurança

47 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2007, pág. 18.48 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2007, pág. 70/71.49 Uma das analises do estudo de caso da Argentina é a percepção do processo de judicialização dos conflitos sociais, que se revela “no numero de processos a militantes populares, na estigmatização das populações e grupos mobilizados, no incremento das forças repressivas e na criação especial de corpos de elite, orientados para repressão e militarização das zonas de conflito” KOROL, Claudia, BUHL, Kathrin (orgs). Criminalização dos protestos e movimentos sociais. São Paulo, Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2008, p. 61.

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pública em um empreendimento marcial, (...) faz com que a imposição da lei nos e ao redor dos infames bairros de classe baixa se transforme, literalmente, em uma guerra com seus moradores, com batalhas armadas e manobras (...) e a vil demonização do ‘inimigo’ pela mídia e as autoridades, incluindo o visível ‘repudio de qualquer referência aos direitos dos criminosos’50”

Esse processo de militarização do campo social legitima as ações de extermínio da pobreza, se estruturando num discurso de combate contra inimigos da sociedade,

“esta imagem bélica, legitimante do poder punitivo por via da absolutização do valor segurança, implica aprofundar sem limite algum o que o poder punitivo provoca inexoravelmente, que é a debilitação dos vínculos sociais horizontais (solidariedade, simpatia) e o reforço dos verticais (autoridade, disciplina). (...) As pessoas se acham mais indefesas diante do estado, devido à redução dos vínculos sociais e do desaparecimento progressivo de outros loci de poder na sociedade. A própria sociedade – entendida como conjunto de interações – reduz-se e torna-se presa fácil da única relação forte, que é a vertical e autoritária.”51

Tal noção de inimigo do poder se associa a noção de Estado absoluto, conforme aludido por Hobbes, e será rompida, em tese, pela modernidade com seu Estado Democrático e de direito.

Assim, historicamente a noção de Estado Moderno e de democracia se sedimentou na possibilidade de obtenção de direitos, rompendo com uma ordem que se configurava pelo privilégio. Diversos são os movimentos, sejam eles: sindicais, de mulheres, sociais, que no seu processo de constituição tiveram a garantia de direitos, bem como, a pressão para ampliação desses direitos, como fonte legitimadora das suas ações políticas.

Nessa conjuntura é possível se pensar em um judiciário imune a esse imaginário punitivo global? Estaria o intérprete judicial resguardado do senso comum punitivo?

7. Conclusão

Em nossa pesquisa temos buscado compreender o terreno no qual vem se movimentando o Judiciário e sobre a efetiva possibilidade, na atual conjuntura de fascismo societário, de haver o reconhecimento de direitos, logo, da cidadania por parte do judiciário.

Não significa não percebermos no espaço do judiciário as tensões e contradições que marcam o ofício da magistratura, muito menos negar a percepção da lei como um campo em disputa, mas não podemos ignorar que o atual cenário de governação neoliberal, marcado pelo que muitos autores

50 WACQUANT, Loïc. Rumo à militarização da marginalização urbana. Em: Discursos, Sediciosos, crime, direito e sociedade, ano 11, nº 15/16, RJ: Editora Revan/ICC, 2007, pág. 216.51 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA,N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 59.

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chamarão de estado de exceção, com uma ampliação da atuação social do poder judiciário, nos coloca desafios para se pensar nas reais possibilidades dos moviomentos sociais conquistarem direitos via sistema judicial.

De fato, temos que reconhecer que os trabalhos desenvolvidos por Boaventura de Sousa Santos são decisivos para uma compreensão da atuação do judiciário e no pensar novos modos de administração da justiça como marcos para efetivação dos direitos.

Em sua obra Sociologia Juridica Crítica, Santos ira analisar essa proeminência do papel da magistratura, buscando compreender o que há de novo a partir da crise do estado de bem estar social, que irá gestar essa atuação mais ampliada do judiciário no mundo da vida, essa judicialização das questões sociais.

Nos alerta o autor para o fato de que no passado tal proeminência se dava em muito pelo reconhecimento do compromisso conservador da magistratura, do que se percebe no período atual, cujas brechas são mais visíveis diante de um reconhecimento maior do poder interpretativo do magistrado, e mesmo nos novos marcos, em escala global, trazidos pelos processos de constitucionalização dos direitos.

Ao realizarmos nossas entrevistas e tendo como campo de análise o Rio Grande do Sul nos deparamos com uma quase unicidade interpretativa do sistema judicial do que é o MST: um movimento que, no limite, precisa ser contido com a supressão de uma série de direitos garantidos constitucionalmente, como o de manifestação pública.

No entanto, concordamos com Santos de que o período contemporâneo apresenta, em termos de operadores do direito como um mosaico maior do que no passado, permitindo maior intervenção dos movimentos sociais, sem perder de vista os trabalhos realizados pelo historiador Thompson que nos dá conta do qão antiga é a luta pela definição da lei.

No entanto, é o próprio prof. Boaventura de Sousa Santos que alerta para uma contra-revolução jurídica por parte do judiciário, também em escala global, nos quais os direitos já consagrados vem sendo paulatinamente objeto de flexibilização enm nome da segurança da ordem social economica.

Acreditamos que temos que analisar o papel do juiz em sua singularidade, logo, suas subjetividades, para compreensão das conquistas no espaço judicial, o que nos obriga a pensar o processo de formação, o acesso à carreira judicial como fatores necessários para se potencializar essa intervenção no judiciário por parte dos movimentos sociais. Talvez mesmo não possamos falar em judiciário de maneira tão geral, e sim judiciários, em razão do reconhecimento dessa pluralidade que marca o intérprete.

Muitos são os desafiuos dados aos movimentos sociais, que a cada dia se veem aprisionados pelas malhas da lei. Pensamos que compreender tal

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cenário é de fundamental importância para os próprios movimentos sociais, pois como nos fala Santos: “dado que a condição do subalterno é o silêncio, a fala é a subversão da subalternidade. Tornar possível esta fala exige, porém, um trabalho político que vai para além da discursividade acadêmica”52.

8. Bibliografia

BERGALLI, Roberto. Violência y sistema penal. Fundamentos ideológicos de las políticas criminales de exclusión social.in BERGALLI, R.; BEIRAS, I. R.; BOMBINI, G. (orgs.). Violência y sistema penal. Buenos Aires, Del Porto, 2008.BOBBIO, N. A era dos direitos. RJ, Campus, 1992.BRUNO, Regina L. et all. Relatório final da pesquisa: Grupos de Solidariedade, Frentes Parlamentares e Pactos de Unidade e Ação. Em pauta o fortalecimento e a disputa pela representação patronal. RJ, fevereiro de 2008.CERQUEIRA FILHO, Gisálio: Édipo e excesso. Reflexões sobre lei e política. Porto Alegre: Fabris ed. 2002.CHAUI, Marilena. Cultura e democracia – o discurso competente e outras falas. SP, Moderna, 1980._________. Ética e violência. Em: Revista Teoria e Debate, nº 39, out/nov/dez de 1998, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, p. 32-41.FOSCHIERA1, Elisabeth Maria. A Fazenda Coqueiros e a luta pela terra na atualidade. Texto acessível em: http://www.upf.br/ppgh/download/Elisabeth%20Maria%20Foschiera.prn.pdf.FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987._________________. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, Nau ed., 1996.GINZBURG, C. El juez y el historiador. Acotaciones al margen del caso Sofri. Madrid, ANAYA & Mario Muchnik, 1993.HONNET, Axel. Luta por reconhecimento: gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Editora 34, 2003.JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C. Direito penal do inimigo: Noções e criticas. Porto Alegra, livraria do advogado, 2009.JACKOBS, Günther et alii. Direito Penal do Inimigo. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2005.LEDESMA, Manuel P. Cuando lleguen los dias de colera. Zona Abierta., nº 69, 1994.MARX, K. O Capital, São Paulo, Nova Cultural, col. Os Economistas, 1985.MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de, História dos Movimentos Sociais no Campo, Rio de Janeiro, FASE, 1989.NEDER, G. Violência e cidadania. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1994._________. Discurso Jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio

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APORTES PARA UMA CRÍTICA DA IDEOLOGIA DA SEGURANÇA NACIONAL

Emiliano Maldonado1

“Yo pregunto a los presentesSi no se han puesto a pensar

Que esta tierra es de nosotrosY no del que tenga más

Yo pregunto si en la tierraNunca habrá pensado usted

Que si las manos son nuestrasEs nuestro lo que nos den

A desalambrar, a desalambrarQue la tierra es nuestra

Es tuya y de aquélDe Pedro y María

De Juán y José (…)”A Desalambrar – Daniel Viglietti

I- Considerações Iniciais

Neste artigo iremos apresentar parte dos resultados de nossas pesquisas sobre o processo de criminalização dos movimentos sociais no Rio Grande do Sul, pois percebemos que nos últimos anos o Sistema de Justiça criminal foi amplamente utilizado em face das organizações sociais contra-hegemônicas, já que, em cada momento histórico, o poder punitivo, por meio de mecanismos de controle social, direciona a sua vontade soberana a determinados grupos sociais, no escopo de normalizá-los.2 Essa escolha parte, na grande maioria das vezes, do juízo subjetivo daqueles que estão exercendo o poder econômico-político, razão pela qual apresenta uma tendência seletiva discriminante. Na atualidade, essa tendência se agravou com a utilização exacerbada dos

1 Mestrando na área de Teoria, Filosofia e História do Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista Capes. Integrante do Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE/UFSC) e do Instituto de Pesquisa em Direitos e Movimentos Sociais - IPDMS. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Rio do Sinos (UNISINOS). Assessor Jurídico Popular, membro da Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP). Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Teoria da Constituição, Teorias Críticas do Direito, Direitos Humanos, Filosofia Política, Criminalização dos Movimentos Sociais e América Latina - http://lattes.cnpq.br/66689353459273642 Nesse sentido, Foucault afirma que: “(...) o poder da regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil o resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 164.

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mecanismos psicossociais (o poder midiático, em especial), que sedimentou uma sensação de incerteza, insegurança e medo, generalizada na sociedade. 3

Nesse contexto, se fortalecem as práticas repressivas em face de setores excluídos da sociedade, pois num ambiente marcado pelo medo do outro, o peso da lei e do cárcere parecem ser as medidas mais eficazes. Ou seja, a realidade sociopolítica atual tem favorecido discursos maniqueístas sobre as problemáticas de nossa sociedade. Esses discursos pretendem legitimar a utilização de mecanismos de coerção por parte das forças públicas em face dos setores menos favorecidos da sociedade, afirmando a funcionalidade das normas penais e seu papel de normalização sistêmica. Assim, no campo penal, pretendem possibilitar e/ou justificar a utilização de um direito penal do inimigo4, que busca retirar a condição de pessoa daquele(s) que, supostamente, representa(m) uma ameaça à sociedade e às instituições públicas.5

Assim, neste artigo, pretendemos aprofundar o debate sobre o discurso do inimigo no direito penal, demonstrando a necessidade de superarmos esse paradigma jurídico-político, haja vista sua inadequação à Constituição Federal de 1988. Para isso, iremos abordar a questão da criminalização dos movimentos sociais no Rio Grande do Sul, desvelando o seu viés autoritário e inconstitucional, a partir de um estudo de caso. Ou seja, partindo de um processo criminal - processo nº 2007.71.18.000178-3 -, no qual oito integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) foram denunciados e estão sendo processados por crime contra a Segurança Nacional, com base na Lei nº 7.170/83, pretendemos comprovar que o processo de criminalização vivido no Rio Grande do Sul reproduz as premissas da Ideologia da Segurança Nacional e retoma princípios e lógicas do período ditatorial brasileiro. Pretende-se, assim, mostrar a sua incompatibilidade com modelo estatal plasmado na CF/1988, bem como a necessidade de superar a lógica política; amigo-inimigo, já que o Estado Democrático de Direito possui como peculiaridade a garantia à pluralidade política e a possibilidade de mobilização política em nome da transformação social e jurídica de nosso país.

II – O Crime de Ser Sem Terra

3 No Brasil, a difusão do medo do caos e da desordem tem servido para justificar estratégias de exclusão e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. (...) A hegemonia conservadora em nossa formação social usa a difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. O medo se torna fator de tomadas de posição estratégicas no campo econômico, político e social. BATISTA, Vera M. O medo na cidade. In: PLASTINO, Carlos Alberto. Transgressões. Rio de Janeiro: Contracapa, 2002, p. 205.4 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo: noções e críticas. 2. ed. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2007. 5 Nas práticas policiais das grandes metrópoles, essa doutrina tem demonstrado resultados aterradores. Se verificarmos o número de mortes, na cidade do Rio de Janeiro em “conflitos com a polícia”, observa-se que no ano 2000 ocorreram 427 mortes, cinco anos depois, em 2005, ocorreu um aumento de 157%, isto é, 1.098 pessoas foram vítimas fatais. RAMALHO, Sérgio. Uma polícia fatal. Jornal O Globo, de 06/11/06, p. 10.

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Os fatos que serão aqui trabalhados nos demonstram a relevância do problema da construção da verdade, que mesmo não sendo o foco de nossa pesquisa, perpassa a análise realizada neste estudo. Entretanto, neste momento, esse aspecto assume singular importância, já que ao estudar um processo criminal específico, teremos que trabalhar, discutir e criticar a (in)verossimilhança dos fatos retratados pela acusação no processo e confrontá-los com realidade social.6 Por isso, antes de adentrar na análise e no estudo do processo crime, devemos situar o leitor, pois se na atualidade nos encontramos num ambiente marcado pelo medo e insegurança, o movimento social estudado, cujo objetivo é reformar a estrutura agrária vigente no país, tende a ser enquadrado como um perturbador da ordem social, agente de criminalidade e produtor de violência perante os setores conservadores. Sobretudo, para os ruralistas do agronegócio pertencentes, na grande maioria, à Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (FARSUL) e, por conseqüência, para as instituições estatais do Sistema de Justiça. Assim, é de fundamental importância compreender que o território geopolítico estudado – região norte do estado do Rio Grande do Sul – se apresenta com um verdadeiro palco de disputas políticas e ideológicas, uma vez que desde os seus primórdios, no final dos anos 70 e início dos anos 80, o MST passou a se configurar como o Inimigo desses setores econômico-políticos. Esse aspecto deve ser recordado, pois desde o acampamento na Encruzilhada Natalino (localizado naquela região), ainda no período militar, que após anos de mobilização das famílias sem terra e do apoio dos setores progressistas da sociedade civil conquistaram um pedaço de terra para plantar, os setores políticos do latifúndio passaram a temer e confrontar esse movimento camponês.

Por outro lado, desde os anos 50 e, principalmente, durante o período ditatorial ocorre o processo de modernização da agricultura, que intensifica o processo de concentração fundiária e de exclusão social, no campo. Somando-se a isso, ocorre, nos últimos anos, um forte investimento do capital nacional e internacional direcionado ao monocultivo para exportação (na região, principalmente, de soja e trigo), assim como um investimento maciço das transnacionais papeleras (monocultivos de pinus e eucalipto), que com o aumento do controle ambiental em seus países de origem migram para a região, buscando terras e climas propícios para esse tipo de cultura. Assim, o

6 “O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. Daí a recusa das análises que se referem ao campo simbólico ou ao campo das estruturas significantes, e o recurso às análises que se fazem em termos de genealogia das relações de força, de desenvolvimento estratégico e de táticas. Creio que aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo de língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não lingüística. A história não tem ‘sentido’, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve pode ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas”. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 18. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003, p. 5

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caráter empresarial do agronegócio aumenta ainda mais a exclusão social no campo e intensifica os conflitos agrários na região.

Portanto, além do receio de que suas propriedades poderiam ser destinadas para a reforma agrária, os grandes proprietários e os setores conservadores perceberam o risco e o papel transformador do movimento social, pois com o fortalecimento econômico do MST- que ao conquistar terras passou a investir na construção de cooperativas agrícolas, agregando e aumentando a produção da agricultura familiar - e com a reconfiguração política da região, já que com a chegada dos assentados e acampados do MST a correlação de forças políticas se modificou significativamente, ou seja, com a presença do MST na região norte do Estado, as relações socioeconômicas e as estruturas políticas tiveram que se readequar a esse novo panorama.

Além disso, das pesquisas realizadas sobre a história da região, em especial, sobre o território que foi o centro das disputas que originaram o processo crime que iremos analisar, verificamos que há fortes indícios de que os títulos dessa propriedade possuam problemas legais (ou que foram obtidos por meios obscuros), razão pela qual se explica que os movimentos camponeses da região busquem a sua desapropriação. Durante o governo Brizola, entre os anos 1960-1961, ocorre na região a desapropriação da Fazenda Sarandi, com 24.000 hectares. No entanto, com o golpe militar, a desapropriação não foi concluída por Brizola. O novo governo estadual de Meneghetti (PSD) interrompeu o processo de desapropriação e distribui parte dela para amigos e correligionários do PSD.7 Ou seja, existe uma grande possibilidade de que a Fazenda Coqueiros (ao menos parte dela) e mais algumas propriedades da região estejam naquilo que era a antiga Fazenda Sarandi.8

Assim, pode-se compreender a tensão social gerada pelas constantes ocupações da Fazenda Coqueiros (que se iniciam em abril de 2004), pertencente à família Guerra, já que as ações do MST poderiam por em xeque todo um conjunto de propriedades da região. Essa tensão e violência restou evidenciada durante a desocupação, realizada pela Brigada Militar do Rio Grande do Sul, da Fazenda Coqueiros, nos dias 11 e 12 de março de 2006, na qual, conforme a conclusão do Relatório do Comitê Estadual Contra a Tortura, militantes

7 STÉDILE, João P. O MST e a questão agrária. Estudos Avançados, vol. 11, nº 31, São Paulo, Set/Dec, 1997. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?pid=S01034014997000300005&script=sci_arttext&tlng=pt> Acesso em: 20 Set. 2010. FOSCHIERA, Elisabeth Maria. A Fazenda Coqueiros e a luta pela terra na atualidade. Disponível em: <www.upf.br/ppgh/download/Elisabeth%Maria%20Foschiera.prn.pdf> Acesso em: 20 Set. 2010.8 “Não podemos deixar de mencionar o fato de que o movimento dos acampados, tanto oriundos de Nonoai como outros que foram se somando na região, promoveu a retomada das discussões sobre a Fazenda Sarandi, sua desapropriação, suas negociatas, procurando deslegitimar a ação dos atuais proprietários (os irmão Dal Molim, a empresa Macali, a família Anoni, a família Guerra, dentre outros de menor expressão que também adquiriram terras da fazenda-mãe no período militar)”. TEDESCO, J.C. CARINI, J.J. Conflitos agrários no norte gaúcho 1960-1980. Porto Alegre, EST edições, 2007. p. 142, apud FOSCHIERA, Elisabeth Maria. A Fazenda Coqueiros e a luta pela terra na atualidade. Disponível em: <www.upf.br/ppgh/download/Elisabeth%Maria%20Foschiera.prn.pdf> Acesso em: 20 Set. 2010.

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do movimento social foram barbaramente torturados. Esse caso adquire relevância, ao demonstrar o nível de tensão social, violência e arbitrariedade, posto em prática pelas autoridades constituídas na Comarca de Carazinho, em defesa da propriedade privada da família Guerra, ou melhor, do latifúndio de mais de 7.000 hectares (sete mil hectares).9 Também importa recordar que essa violenta desocupação foi comandada pelo Coronel Cerutti, o mesmo que elaborou o relatório sobre a situação do MST na região norte do estado, que caracterizava o movimento como uma organização paramilitar aliada às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).

Durante o período pesquisado, a Comarca de Carazinho foi o palco de diversas ações criminalizantes por parte do Sistema de Justiça. Exemplo paradigmático disso, foi a utilização do medo e da (in)segurança de uma nova ocupação da Fazenda Coqueiros e/ou de um possível confronto entre os militantes do MST e os membros da FARSUL, pelo Ministério Público Estadual para ingressar com um interdito proibitório “regional”, no juízo de Carazinho-RS, que concedeu medida liminar e determinou que os integrantes do MST se abstivesse de entrar na comarca. Ou seja, que isolou uma área de 2.108 Km², decretando, assim, um verdadeiro estado de exceção10 nos quatro municípios da comarca, já que os militantes sociais tiveram suspenso o seu direito constitucional de ir e vir, de reunião pacífica, manifestação, etc..

Nesse sentido, podemos observar que o processo criminal que iremos analisar não foi um fato isolado, pelo contrário, se insere no contexto político rio-grandense, que tem configurado um verdadeiro processo de criminalização dos movimentos sociais, assim como na conjuntura jurídico-política global, onde o binômio medo e segurança tem se tornado o eixo central das legislações e instituições criminais contemporâneas, num ambiente de incerteza e reconfiguração dos princípios e tradições da modernidade.11

9 Nesse sentido, nos parece interessante recordar que 1 hectare equivale a 10.000 metros quadrados, aproximadamente a dimensão de um campo de futebol (10.800 metros quadrados), ou seja, se o latifúndio de Félix Guerra possui 7.000 hectares, sua propriedade tem de cerca de 70.000.000 de metros quadrados, aproximadamente sete mil campos de futebol. 10 Sobre as dificuldades de definir esse conceito, Agamben afirma que: “a própria definição do termo tornou-se difícil por situar-se no limite entre política e o direito. Segundo opinião generalizada, realmente o estado de exceção constitui um ‘ponto de desequilíbrio entre direito público e fato político’ (Saint-Bonnet, 2001, p. 28) que com a guerra civil, a insurreição e a resistência – situa-se numa ‘franja ambígua e incerta, na intersecção entre o jurídico e o político’ (Fontana, 1999, p. 16). A questão dos limites torna-se ainda mais urgente: se são compreendidas no terreno político e não no jurídico-constitucional (De Martino, 1973, p. 320), as medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2005, pp. 11-1211 Sobre os paradoxos do direito no contexto atual, José Eduardo Faria afirma que: “(...) enquanto no âmbito dos direitos basicamente sociais e econômicos vive-se hoje um período de reflexo e “flexibilização”, no direito penal se tem uma situação diametralmente oposta: uma veloz e intensa definição de novos tipos penais; uma crescente jurisdicização e criminalização de várias atividades em inúmeros setores da vida social; o enfraquecimento dos princípios da legalidade e da tipicidade, por meio do recurso a normas com “textura aberta” (isto é, regras porosas, sem conceitos precisos); a ampliação do rigor de penas já cominadas e de severidade das sanções o encurtamento das fases de investigação criminal e Instrução

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III - Geopolítica do Medo

Após essas considerações iniciais, pretendemos analisar os argumentos principais da acusação, no processo nº 2007.71.18.000178-3, confrontando as alegações da denúncia perante o Juízo Federal da Comarca de Carazinho/RS e os elementos probatórios trazidos aos autos. Nesse sentido, iniciaremos este momento relatando alguns aspectos cruciais do dossiê feito pelo Coronel Waldir João Cerutti12 - candidato a deputado estadual pelo Partido Progressista (PP) - e que na época era o comandante do Comando Regional de Polícia Ostensiva/Planalto (CRPO/Planalto), da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, sobre a situação dos movimentos sociais na região norte do RS, uma vez que será a partir dele que poderemos observar a influência da Doutrina da Segurança Nacional, bem como a inadequação desse procedimento à democracia e a legislação brasileira. Nesse dossiê, o Coronel Cerutti afirma que o MST está executando um plano estratégico de domínio territorial similar ao das FARC, no qual se criaria um verdadeiro “Estado paralelo”. Após uma breve explicação sobre a “grave situação política” da Colômbia, sem trazer nenhum dado ou elemento probatório aos autos, apenas com meras suposições sobre a realidade colombiana, o Coronel passa a explicar a situação no norte do Estado. Essa estratégia contaria com o apoio, ou melhor, com um convênio de organizações internacionais subversivas (em especial, a Via Campesina e as FARC) e pretenderiam realizar o controle territorial da região norte do Estado, que se daria de leste-oeste.

O discurso utilizado pelo Coronel é de um maniqueísmo inacreditável, pois parte de generalizações abstratas, sem fundamento probatório, que acabam por equiparar qualquer tipo de organização de esquerda, independentemente de suas táticas e estratégias, à guerrilha. Ora, essas organizações possuem posições políticas influenciadas pelo marxismo-leninismo, mas divergem substancialmente em suas estratégias de resistência, tanto o MST como a Via Campesina são movimentos sociais que optaram pela desobediência civil e pela necessidade de reformar o próprio Estado, já as Forças Armadas da Colômbia (FARC), como o seu próprio nome já diz, optaram pela luta armada, ou seja, é uma guerrilha rural que não aceita o poder estatal e que o confronta militarmente há décadas. Sem adentrar no mérito e legitimidade das estratégias utilizadas por cada uma dessas organizações políticas, já que não é o objeto

processual; e, por fim, a inversão do ônus da prova, passando-se a considerar culpado quem, uma vez acusado, não provar sua inocência”. Faria, José Eduardo. Direitos Humanos e globalização econômica: notas para uma discussão, p. 10. Disponível em: <www.leonildocorrea.adv.br/curso/socio14.htm> Acesso em: 20 Set. 2010.12 Em reportagem de 01/02/2010, o Coronel Cerutti, revelou que nos anos de 1980 a 1982, nos acampamentos de Encruzilhada Natalino, ou seja, desde as origens do MST, se passava por servidor federal, o Toninho do INCRA, na realidade o seu objetivo era ter acesso aos militantes e espionar o movimento, uma vez que fazia parte da Agência Central de Inteligência da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, a chamada P2. Reportagem disponível em: <www.prrs.mpf.gov.br/iw/iol/puplicp.php?publ=50827>

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deste artigo, resta evidente que não podemos equipará-las, pois estaríamos negando os fatos, as peculiaridades históricas e culturais de cada país, bem como as idiossincrasias de cada modelo de organização/resistência política.

Ademais, a relação do MST com a Via Campesina é de conhecimento público e internacional, isto é, nada tem de ilícito/ilegal, pois se trata de uma rede de solidariedade e apoio de campesinos latino-americanos, que busca fortalecer a pequena e média propriedade, a reforma agrária, a agricultura familiar, a produção sustentável de alimentos e uma economia mais justa e igualitária.13 Por outro lado, a suposta relação com as FARC e o treinamento de grupos guerrilheiros no Brasil, não passa de uma esquizofrenia xenofóbica típica das ideologias autoritárias nacionalistas, que acreditam numa conspiração megalomaníaca, já que tudo faria parte da “grande estratégia do comunismo internacional”.

Diante dessa “grave situação”, qual seja, a luta pelo acesso à terra por parte dos agricultores militantes do movimento através da desapropriação dos latifúndios do norte do estado, ou melhor, seguindo os manuais da geopolítica; o domínio territorial do inimigo comunista, o Coronel Cerutti afirma que as instituições estatais, em nome da segurança do Estado e da população, deveriam evitar que esse avanço territorial se concretizasse. Assim, após um “apurado” estudo geopolítico, afirma que seria extremamente relevante defender o latifúndio de 7.000 hectares da família Guerra.

O conteúdo do relatório demonstra a presença da lógica militar típica à Doutrina de Segurança Nacional, uma vez que o Coronel parte do pressuposto de que sendo o MST uma organização subversiva de esquerda (leia-se criminosa), deve ser monitorada, perseguida e desmantelada, ou seja, definido o inimigo, o Estado deve declarar uma verdadeira guerra contra esse grupo. Além disso, o “grande perigo” observado, no relatório, seria a possibilidade do movimento ter autonomia perante as instituições do Estado. Essa autonomia, por si só, já caracteriza um grande risco para a segurança, pois possibilita outros modelos de organização social, política e econômica, assim como atos de resistência e/ou oposição às diretrizes do sistema econômico-político. Nesse sentido, o objetivo principal do relatório seria o de prever, calcular e conter as atividades dessa “organização criminosa”, a fim de manter em segurança a ordem estabelecida, nesse caso, garantir o “sacro” direito de propriedade, portanto, manter a estrutura fundiária excludente e possibilitar um ambiente “seguro” para os investimentos transnacionais.

O conteúdo desse relatório, em especial, a sua forte carga ideológica, foi utilizado Ipsis litteris pela Procuradora da República Patrícia Muxfeldt para a apresentação da Denúncia, bem como é o eixo probatório central de sua

13 Para um aprofundamento sobre as origens, objetivos e atividades da Via Campesina, ver:<http://viacampesina.org/>

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argumentação. Diante disso, cabe referir que a primeira irregularidade do processo, refere-se à legalidade probatória do dossiê supramencionado, já que, tratando-se de crime contra a Segurança Nacional, a autoridade policial competente para investigar a situação e instaurar o devido inquérito é a Polícia Federal, senão vejamos o que afirma o art. 31, da Lei nº 7.170/83: “(...) Para apuração de fato que configure crime previsto nesta Lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal”.

O Ministério Público é o responsável pela propositura da ação penal, contudo, o artigo referido afirma que, se houver necessidade de apuração dos crimes, as diligências necessárias deverão ser efetuadas pela Polícia Federal, pois se tratando de crime contra a própria existência da União aquela seria a autoridade policial competente. Esse aspecto deve ser ressaltado, pois atesta a existência de uma estratégia criminalizante por parte dos órgãos estatais, sobretudo, por parte da Brigada Militar (sob comando do governo estadual), que realizou inúmeras investigações de caráter político, sem ordem judicial que a determinasse, bem como ultrapassou suas competências jurisdicionais estabelecidas por lei. Assim, durante o período estudado, os integrantes do movimento social foram investigados, pela Brigada Militar do RS, pelo Ministério Público Estadual (MPE), pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal.

Cabe referir, que no tocante à Polícia Federal, órgão policial competente para investigar os delitos previstos na Lei de Segurança Nacional, após investigar e diligenciar na área durante cerca de oito meses, interrogar o Coronel Cerutti (peça chave para o caso), em 3 de agosto de 2007, concluiu, em seus relatório, que “não foram localizados indícios de atuação de grupos armados contra o Estado. Dessa forma, na forma das informações acima citadas e de todos os elementos que contém os autos, s.m.j, inexiste crime contra a segurança do Estado”. 14

Entretanto, não conformada com o resultado das investigações, a Procuradora da República, em setembro de 2007, requereu novas investigações à Polícia Federal. Na peça ministerial já se verifica um juízo valorativo, que fortalece a tese de que o inimigo já estava declarado. Assim, o Parquet federal requer novas diligências e interrogatórios, em especial, do fazendeiro Felix Turbino Guerra e dos proprietários lindeiros, ou melhor, das “vitimas”. Verifica-se, assim, uma “confusão” de extrema relevância, se os possíveis delitos cometidos pelo MST foram contra a propriedade privada de Felix Turbino Guerra, como podem estar sendo acusados de Crime Contra a Segurança Nacional? Pois bem, essa relação promiscua entre os interesses particulares do latifúndio e os interesses da Nação, não são mero acaso, pois a decisão sobre o inimigo tende a representar os interesses econômicos-políticos daqueles que

14 Ver fls. 124 do processo crime.

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estão no poder.15 Além disso, deve ser ressaltada a seletividade probatória feita pela

Procuradora da República, já que diversas vezes durante o inquérito, os agentes da Polícia Federal manifestaram-se no sentido de não haver provas de delitos contra a Segurança Nacional. Nesse sentido, às fls. 244-247 dos autos do processo, o Delegado Mauro Vinicius Soares Moraes (outro delegado), após realizar as diligências requeridas, afirma em seu relatório de investigação, que:

“O Sr. Guerra relatou que nunca viu estrangeiros ministrando táticas de guerrilha na região, assim como nunca viu estrangeiros nos acampamentos ocupados pelo MST (...) Ao fim dos levantamentos, pode-se observar que no momento a situação é de calmaria. Os integrantes do MST estão ocupando duas áreas distintas (...) a ocupação destes locais, até onde pode apurar é lícita.Relativo ao treinamento de técnicas e táticas de guerrilha, não se pode chegar a configuração das denúncias, pois nenhum dos declarantes jamais viu treinamento na região invadida ou nos acampamentos ocupados pelos integrantes do MST”

No entanto, tendo em vista que a sua premissa maior era de que o MST é uma organização criminosa, isto é, fundada nos seus pré-juízos perante o movimento social, era necessário apenas extrair do conjunto probatório aquilo que melhor conviesse à tese de Crime contra a Segurança Nacional.16 Diante disso, toma por verdades as teses do relatório do Coronel Cerutti e as complementa com “pedaços” dos depoimentos, sobretudo, aqueles que condenam as atitudes do MST.

Diante disso, deve-se salientar que há constantes contradições nos depoimentos tomados, o latifundiário, por exemplo, afirma diversas vezes que não viu treinamento de guerrilha e nem estrangeiros no local, mas ao relatar o caso publicamente repete insistentemente que há participação das FARC. Nesse sentido, as teses da acusação possuem uma retórica auto-referencial, já que o proprietário da fazenda alega uma vinculação entre os militantes populares e as FARC, com base no relatório da brigada militar e a brigada militar alega esse

15 Sobre isso: “(...) a história do exercício real do poder punitivo demonstra que aqueles que exerceram o poder foram os que sempre individualizaram o inimigo, fazendo isso da forma que melhor conviesse ou fosse mais funcional – ou acreditaram que era conforme os seus interessassem cada caso, e aplicaram esta etiqueta a quem os enfrentava ou incomodava, real, imaginária ou potencialmente. O uso que fizeram deste tratamento diferenciado dependeu sempre das circunstâncias políticas e econômicas concretas, sendo em algumas vezes moderado e em outras absolutamente brutal, porém os eixos centrais que derivam da primitiva concepção romana do hostis são perfeitamente reconhecíveis ao longo de toda a história real do exercício do poder punitivo no mundo, Até hoje subsistem as versões do hostis alienígena e do hostis judicatus”. ZAFFARONI, Eugenio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Trad. de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 82.16 “Essa dinâmica se explica porque o interrogador sempre pergunta para poder e, em conseqüência, só lhe interessa a parte da resposta que lhe outorga esse poder, porém o ente interrogado não sabe disso e, ademais, não tem outra forma de responder senão com toda a sua entidade (...) O interrogador não está preparado para esta resposta, não suporta toda a entidade que o interrogado lhe arremete, lhe projeta (jectus) contra (ob), e deste modo vai ficando achatado (empurrado para baixo, subjectus, sujeitado) pelo peso das respostas entitativas, que não quer processar porque não são necessárias ou úteis ao seu objetivo de poder e que, mesmo que quisesse, tampouco poderia fazê-lo, porque está treinado para não escutá-las”. ZAFFARONI, Eugenio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Trad. de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 40.

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convênio a partir do relato do proprietário.Além disso, há uma forte carga preconceituosa nas denuncias realizadas,

pois a hipótese de vínculos internacionais subversivos se funda na “visita” e/ou “estadia” de estrangeiros nos acampamentos. Ora, recordando os tempos de direito romano, a figura do hostis alienígena volta a estar presente nos discursos criminalizantes. Os estrangeiros perigosos, que in casu estão materializados na figura mítica do acusado Hugo Castelhano – de quem muito se fala e pouco se sabe -, demonstram a carga político-ideológica presente nesse processo, pois a mera possibilidade de participação política estrangeira, já caracterizaria um delito à Nação. Esse aspecto assegura um grau de periculosidade e peculiaridade exacerbado ao caso, bem como julga os estrangeiros como inimigos da nação - impossibilitando qualquer direito de defesa -, razão pela qual não devem e não podem participar de atividades políticas vinculadas ou favoráveis aos movimentos sociais.

Assim, com base no relatório referido, que seguindo a tradição inquisitorial pré-moderna não possibilitou o direito ao contraditório, o Sistema de Justiça (polícia, judiciários e ministério público), dá início a um processo político – o mais relevante após a CF/1988 - em face dos oito integrantes do MST, que como membros de uma organização política criminosa que pretendia realizar a reforma agrária na “marra”17, desobedecendo o devido processo legal e desrespeitando as autoridades policiais incumbidas de manter a ordem social, passaram a ser julgado como um grupo de inimigos à segurança do Estado. Diante dessa situação, os membros do MST (leia-se organização criminosa) passaram a ser monitorados e controlados mediante o poder punitivo, que, como se não bastasse, decretou o segredo de justiça – que durou mais de um ano e meio - em total afronta ao disposto no art. 93, IX, da CF/88.18

IV- Análise crítica da denúncia

Desvelada a Ideologia de Segurança Nacional - inquisitorial e autoritária- presente no relatório, que, por sinal, é a prova fundamental da acusação, nos propomos, neste momento, a fazer uma análise crítica da denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) da Subseção de Carazinho-RS em face dos oito militantes camponeses. Assim, iniciemos pela descrição fática da peça acusatória, que os dividiu em quatro fatos delituosos, vejamos o primeiro deles:

“(…) FATO 1Nos anos de 2004, 2005 e 2006, em Coqueiros do Sul, os acusados SILVIO LUCIANO

17 Termo utilizado na Denúncia, à fl. 389 do processo.18 “Art. 93. (…) IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...).”

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DOS SANTOS, ISAIAS ANTÔNIO VEDOVATTO, EDEMIR FRANCISCO VALSOLER, IVAN MAROSO DE OLIVEIRA, HUGO CASTELHANO, JANDIR CELSO WIBRANTZ, ARNO MAIER e VLADIMIR MAIER integraram grupamentos que tinham por objetivo a mudança do Estado de Direito, por meios violentos e com emprego de grave ameaça.A mudança pretendida pelos denunciados era a de realizar a reforma agrária “na marra”, desobedecendo o devido processo legal e desrespeitando as autoridades policiais incumbidas de manter a ordem social e de cumprir as decisões judiciais. Para alcançar sua meta, os grupamentos dos quais faziam parte os acusados - quatro acampamentos organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST·, constituíram um “Estado paralelo”, com organização e leis próprias, nos quais era negada autoridade aos poderes constituídos da República Federativa do Brasil.Os meios empregados pelos acusados para obterem seu intento, outrossim, foram a violência e a grave ameaça, consistentes no uso de coquetéis molotov, facões, foices, estacas, armadilhas, ameaças de morte, praticados contra o proprietário da Fazenda Coqueiros, Félix Tubino Guerra, funcionários da fazenda, contratados do dito proprietário, e Polícia Militar (...)”. (grifos nossos)

De uma breve análise do discurso utilizado pela Procuradora Federal, depreende-se que ela seguiu a risca os argumentos utilizados no dossiê da brigada militar, que como afirmamos anteriormente é prova ilícita, já que feriu o princípio da legalidade ao ultrapassar os respectivos poderes conferidos por lei à polícia militar. Igualmente, a generalidade do relato da denúncia é abismal, pois simplesmente acusa os denunciados de no período de 2004, 2005 e 2006, ou seja, afirma sem especificar atos, fatos e ações, assim como sem descrever, individualizar e datar as ações típicas, que durante 1095 dias os acusados cometerem atos ilícitos, pois integraram grupamento cujo objetivo era a mudança do Estado de Direito. Portanto, além da generalidade temporal, a peça acusatória imputa abstratamente, aos denunciados, atividades ilícitas durante o período de três anos, sem descrição fática dos atos ilícitos, deixando de trazer elementos probatórios individualizados das condutas criminosas dos réus.

Nesse sentido, o mais grave na denúncia é a tipificação jurídica dada aos atos imputados, pois resgata uma legislação autoritária, que tem origem no delito de lesa majestade e no decorrer do século XX se direciona à eliminação do inimigo comunista. Seguindo essa lógica, a representante do Parquet o fato 1 - acima narrado - afirma que os acusados infringiram o art. 16, da Lei nº 7.170/83.19 Pois bem, da análise da tipificação dada aos acusados percebe-se que o tipo penal imputado é o de integrar grupamento que tenha por objetivo a mudança do Estado de Direito, ou seja, o crime cometido pelos denunciados é o de integrar o MST. Ora, se assim fosse todos os militantes e ativistas políticos vinculados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, que durante os anos de 2004, 2005 e 2006 participaram de mobilizações e atos do movimento poderiam ser enquadrados nessa descrição. Sobre isso, Aton Fon afirma que:

19 Art. 16 - Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça. Pena: reclusão, de 1 a 5 anos.

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No plano jurídico a eleição da Lei de Segurança Nacional tem o condão de proibir o exercício da ampla defesa, uma vez que obriga cada um dos réus a justificar todas as ações de qualquer integrante da organização a que pertença, podendo – em tese – virem a ser condenados no Rio Grande do Sul por algum ato que tenha sido praticado por outro integrante da mesma associação – mesmo que sem seu conhecimento – num remoto vilarejo do Amazonas.20

Ao acusar os denunciados de infringir o art. 16, da Lei nº 7.170/83, simplesmente se está criminalizando todo o MST e equiparando-o com uma organização criminosa, isto é, violando o direito constitucional de livre associação, conforme o disposto no art. 5º, XVII, da CF/88. Essa tentativa de equiparar as organizações políticas às organizações criminosas (ex: quadrilha), sob a alegação de que fazem parte de grupo, que constantemente violam o direito de propriedade, já foi rechaçado pelos tribunais superiores do país.21

Portanto, no mínimo, há um erro crasso de hermenêutica constitucional na peça acusatória, pois se o objetivo dos acusados era realizar a reforma agrária, que é uma política pública que deve ser realizada pelo Estado, isto é, um mecanismo jurídico-político assegurado em âmbito constitucional (art. 184 e seguintes, da CF/88), sobretudo, por nosso modelo de Estado Democrático de Direito, que se diferencia dos anteriores por seu caráter dirigente e compromissário. Como poderiam os réus estar praticando atos cujo objetivo era a mudança do Estado de Direito?! Ora, se os meios utilizados pelos acusados ultrapassaram os limites estabelecidos por lei – fatos não comprovados na exordial acusatória, já que estariam tentando realizar a reforma agrária na marra, não é cabível imputar-lhes criminalmente por pertencer a grupamento cujo objetivo é mudança do Estado de Direito, os delitos que poderiam ser imputados, caso viessem a ser comprovados, no máximo, seriam contra a propriedade22 privada de Felix Guerra, que por sinal são delitos que nem competem à justiça federal. Ademais, na jurisdição estadual, o enquadramento de quadrilha dado pela Brigada Militar aos militantes do MST (também se referindo à prática de delitos contra a propriedade privada de Félix Guerra,

20 FON FILHO, Aton; FIGUEIREDO, Suzana Angélica Paim. Estratégias de Criminalização Social. In: Direitos Humanos no Brasil 2008: Relatório da rede social de justiça e direitos humanos.São Paulo: Rede social de justiça e direitos humanos, 2008, p. 45.21 Nessa linha, vejamos o seguinte trecho do voto do ministro Luiz Vicente Cernicchiaro:“(...) Não vislumbro, substancialmente – não obstante o aspecto formal respeitável despacho de prisão preventiva -, no caso concreto, demonstração de existência de crime de quadrilha ou bando, ou seja, infração penal em que se reúnem três ou mais pessoas com a finalidade de cometer crimes. Pode haver do ponto de vista formal, diante do direito posto, insubordinação, materialmente, entretanto, a ideologia da conduta não se dirige a perturbar, por perturbar a propriedade. Há sentido, finalidade diferente. Revela sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual seja a implementação da reforma agrária (...)”.Trecho do voto proferido no Habeas Corpus número 4399/SP, julgado pelo STJ.22 Além disso, no que se refere à existência de crime de esbulho possessório (art. 161, §1º, inciso II, do CP) nas ocupações de terra por parte dos movimentos sociais, a doutrina penal muito tem discutido sobre a configuração, ou não, do elemento subjetivo do tipo, isto é, o dolo, pois o objetivo dos manifestantes não é o de se apropriar da propriedade alheia (para o fim de esbulho), mas por meio do ato político da ocupação pressionar o governo a desapropriá-la.

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no mesmo período), não foi aceito pelo Ministério Público Estadual, sob o fundamento que:

“no caso, pelo que se depreende, a reunião do grupo do MST tem o fim de lutar pela aquisição de terra, não havendo dados concretos de que tivesse o específico fim de praticar delitos, com o que não se pode falar em formação de quadrilha. O fato de serem praticados crimes pelos integrantes não implica concluir que tais fatos sejam considerados como fim do grupo”23

Portanto, se ao analisar os fatos ocorridos à época na propriedade da Fazenda Coqueiros, o próprio Ministério Público Estadual reconheceu que o objetivo no MST é o de “lutar pela aquisição de terra”, isto é, por meio da pressão popular exigir o cumprimento da função social da propriedade, conforme o estipulado na Constituição Federal resta inadmissível juridicamente acatar a afirmativa da denúncia federal de que os militantes sociais estariam buscando a “mudança do Estado de Direito”. Contudo, da análise do segundo fato narrado na peça acusatória, observa-se que este argumento torna-se recorrente, ou melhor, é o eixo central da peça acusatória, pois a ação típica do art. 17, da Lei nº 7.170/83 é a de “Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”. A insistência desse argumento por parte da acusação explicita o caráter político do processo crime em exame, bem como atesta a sua fragilidade argumentativa, pois a narrativa repete boa parte dos argumentos do fato 1.

Nesse sentido, para comprovar que o objetivo do grupo era a mudança do Estado de Direito, o parquet federal afirma que os líderes transformaram os acampamentos do MST num “Estado paralelo”, com organização e leis próprias (...). Esse argumento, no entanto, não foi comprovado na denúncia, pois não há elementos probatórios nos autos que atestem a existência de um “Estado paralelo”. Além disso, é notório que o objetivo do MST é a reforma agrária, que como se sabe é a transformação da estrutura fundiária vigente – excludente e ilegítima - no interior do próprio Estado Democrático de Direito, isto é, não se propõe a constituição de um “Estado paralelo”, que negue a Constituição Federal e o próprio Estado brasileiro.

Portanto, esse discurso demonstra explicitamente a presença do monismo24 jurídico – que nega a legitimidade da produção normativa não-estatal, ou seja, pela própria sociedade -, bem como demonstra a força da

23 Cota de arquivamento do Ministério Público Estadual no processo estadual nº 009/206.0002328-3, requerida pelo Juízo da Primeira Vara Criminal da Comarca de Carazinho, RS.24 Sobre os diversos tipos de monismo, Wolkmer afirma que: “Neste particular, assiste inteira razão a Miguel Reale, quando distingue duas tendências de apreciação da ‘estatalidade’ do direito. Aclarando melhor, assinala o jusfilósofo brasileiro que uma primeira maneira de caracterizar o monismo jurídico é a de estabelecer uma identidade entre o Estado e o Direito, “apresentando o estado como personificação do direito ou como criador do Direito, excluindo toda e qualquer idéia de garantia jurídica fora do Estado. Esta doutrina pode ser do monismo absoluto (Estado=Direito), de estatalismo geral (o estado cria o Direito) ou de estatalismo parcial (o estado só produz o direito positivo). WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001, p. 60.

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tradição política autoritária nas instituições do Estado, pois define como delito a existência de organizações sociopolíticas autônomas. Esse tipo de lógica, portanto, demonstra uma pretensão de controle absoluto dos indivíduos, ou seja, busca uma homogeneidade política, que entende à política apenas como ordem e não como produto e expressão dos conflitos sociais.25

Os acampamentos e assentamentos do MST, como qualquer grupo humano (dos mais simples aos mais complexos), possuem e criam normas de convivência e divisão de tarefas, que por sinal não constituem delito algum. Nesse sentido, é de conhecimento público que os acampados se dividem em: setor de educação; setor da saúde; setor da cultura; setor da produção; etc., os quais servem para gerir melhor os poucos recursos que possuem, assim como cumprir às demandas do coletivo. Além disso, essas normas e divisão de tarefas buscam possibilitar modelos de autogestão26, pois são decididas pelo grupo de forma democrática e servem para iniciar os militantes sociais numa práxis política emancipadora.27

Portanto, para uma teoria do direito pluralista e democrática, isto é, conforme os princípios que regem à Constituição Federal de 1988, a simples existência de uma organização social com normas próprias, não configuram uma afronta ao sistema jurídico estatal. Pelo contrário, nas condições atuais, isto é, num ambiente marcado pela falta de uma cultura constitucional forte,

25 Nesse sentido, Cittadino afirma que: O resultado da pretensão de controle total do individuo e da integração harmônica da vida social – que responde a uma necessidade de ordem –traduz-se na incapacidade de pensar política como espaço público e prática de comunicação normativa (H. Arendt, 1979; Lefort, 1983). Ou seja, a política aqui não pode ser vista como reflexão e prática mediante a qual os indivíduos podem invocar significados diferentes acerca dos princípios de organização da vida em comum.” Se cabe ao Estado, como resultado da manutenção da dimensão-ordem, decidir ‘desde cima’, a política torna-se propriedade sua, na medida em que ocorre a despolitização da ordem social e uma dessocialização da ordem política (J. J. Brunner, 1980; N. Lechner, 1978). Defrontamo-nos, portanto, com a impossibilidade da existência indiferenciada, no seio da ordem social, de atividades e expressões que se contestem reciprocamente. A manutenção da ordem impede a expressão dos conflitos e reprime a elaboração intersubjetiva de sentidos no interior da vida social, como decorrência da necessidade do exercício do Um.” CITTADINO, Gisele. ‘A irresistível Atração pelo Um’ no Pensamento de Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hume e Burke. In: Desordem e processo. Estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho na ocasião de seu 60 aniversário. Org. CHAUÍ, Marilena e LYRA, Doreodo Araújo. Porto Alegre: Fabris, 1986, p. 182.26 A autogestão é um projeto de organização democrática que privilegia a democracia direta. (…) A autogestão parte de uma ambição antropológica, especulando sobre as potencialidades infinitas abertas ao imaginário humano de cidadãos livres do jugo da ideologia dominante. Ela abra caminho para uma idéia de progresso diferente daquele da produção ilimitada de riquezas: o progresso ilimitado de uma democracia criadora. MOTHÉ, Daniel. Verbete: Autogestão. In: HESPANHA, Pedro; CATTANI, Antonio David; LAVILLE, Jean-Louis. GAIGER, Luiz Inácio (Org.). Dicionário internacional da outra economia. São Paulo: Edições Almedina, 2009, pp. 26-3027 Nesse sentido: A emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais sem fim definido. O sentido político da processualidade das lutas distingue-se de outros conjuntos de lutas. E para o campo social da emancipação, esse sentido é a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática social (...) uma tal concepção da emancipação implica a criação de um novo senso comum político. A conversão da diferenciação do político do modo privilegiado de estruturação e diferenciação da prática social tem como corolário a descentração relativa do Estado e do princípio do Estado. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma nova teoria da democracia. In: MOLINA, Mônica Castagna; SOUSA JÚNIOR, José Geraldo; TOURINHO NETO, Fernando da Costa. (org.) Introdução Crítica ao Direito Agrário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, pp. 85-86.

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a pressão política exercida pelos movimentos sociais, serve como mecanismos de transformação do status quo, ou seja, representa uma verdadeira luta pelo Direito28, pois busca dos poderes públicos a concretização/cumprimento da carta constitucional. No entanto, tais teorias se contrapõem à tradição jurídica hegemônica, que tende a defender a centralização do poder econômico, jurídico e político, por meio do poder punitivo e da utilização de conceitos e legislações anteriores ao constitucionalismo de 1988.

Nesse ponto, voltamos a insistir que há um equívoco grave por parte da acusação, já que refere que “os meios empregados pelos acusados (...) foram a violência e a grave ameaça (...) contra o proprietário da Fazenda Coqueiros, Féliz Turbino Guerra, funcionários da fazenda, contratados do dito proprietário, e Polícia Militar”. Assim, se os delitos foram em face do proprietário, funcionários e da Brigada Militar, depreende-se que não há crime contra o Estado de Direito, pois, se assim fosse, se estaria equiparando o bem jurídico tutelado pela norma 7.170/8329 à propriedade de Felix Turbino Guerra. Diante disso, se aceitarmos a tipificação da acusação, teríamos que equiparar a Fazenda Coqueiros ao Estado brasileiro, ou seja, os delitos em face dessa propriedade e de seu proprietário corresponderiam respectivamente aos delitos contra o Estado e contra a majestade, ou melhor, o “Soberano” de Coqueiros.

No tocante à narrativa do fato 3 da peça acusatória, novamente o palco dos delitos e contra quem eles são exercidos são respectivamente o latifúndio da família Guerra, seu proprietário e seus funcionários. Segundo a representante do Ministério Público Federal, tais fatos configurariam o cometimento do delito estipulado no art. 20, da Lei nº 7.170/83.30

Neste aspecto a inépcia da denúncia é patente, uma vez que relata os

28 Esse conceito foi utilizado por Rudolf Von Ihering e é retomado por Pablo Lucas Verdú., que afirma: “(...) o Direito é concebido de forma dinâmica, como um processo mais ou menos difícil de realizar, afastando-se das posições que o vêem como algo definitivamente dado, proposto ou aceito (...) Vimos que o Direito é luta movida por sujeitos humanos, que todo Direito implica, em sua origem, desenvolvimento e posterior consolidação, tensão e luta.VERDÚ, Pablo Lucas. A luta pelo Estado de Direito. Tradução e prefácio de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, pp. 129-132.29 A norma em comento busca a proteção de: Art. 1º - Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I - a integridade territorial e a soberania nacional; Il - o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; Ill - a pessoa dos chefes dos Poderes da União.30 Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas. Pena: reclusão, de 3 a 10 anos. Nesse sentido, Heleno Cláudio Fragoso, referindo-se ao artigo em exame, afirma que: “No art. 20, onde se punem diversas ações heterogêneas, inclusive o terrorismo, encontramos uma das disposições mais defeituosas da lei. A definição legal do terrorismo apresenta dificuldades técnicas consideráveis, porque não há clara noção doutrinária do que ele significa. A nova lei é extremamente imperfeita, porque segue a linha casuística de nossas leis de segurança, misturando terrorismos com crimes violentos contra o patrimônio, com a finalidade subversiva, que não constituem terrorismo. Por outro lado, a lei reproduz o defeito máximo das leis que têm estado em vigor, pretendendo definir o crime com a referência genérica a “atos de terrorismo”. Isso numa lei penal é inadmissível, sobretudo porque não se sabe com segurança o que são atos de terrorismo. FRAGOSO, Heleno C. Sobre a Lei de Segurança Nacional. Revista de Direito Penal, nº30. 1980. Apud: DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e seus inimigos: a repressão política na história do direito penal. Rio de Janeiro: Renavan, 2006.

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fatos abstratamente, menciona somente os verbos nucleares do tipo, não os situa no espaço e no tempo, apenas se refere a eles de forma genérica, fazendo referência às denúncias apresentadas pelo Ministério Público Estadual, bem como às provas produzidas em outros inquéritos pela Brigada Militar, ou seja, não cumpre os requisitos formais, assim como os elementos probatórios não encontram respaldo nas provas produzidas durante o inquérito. Diante disso, a denúncia não especifica os atos e sua correspondente individualização, não expõe o fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, conforme os requisitos estipulados pelo art. 41, do Código de Processo Penal31, para a apresentação da denúncia.

Por fim, no tocante ao fato 4, cuja tipificação consiste em incitar à subversão da ordem política e social, conforme o disposto no art. 23, da Lei nº 7.170/83, a tipificação dada pelo Ministério Público Federal demonstra a forte carga ideológica desse processo, o verbo nuclear do tipo – incitar – já demonstra o objetivo da Lei 7.170/83, pois ao proibir qualquer tipo de manifestação crítica perante a ordem política e social, pela utilização de termos extremamente abertos e ambíguos, inviabiliza o debate democrático e participativo. Os cidadãos perdem o direito de opinião, pois são vistos a priori como possíveis inimigos, razão pela qual devem ser contidos, disciplinados e vigiados.

Da análise do relato apresentado pelo Ministério Público Federal, observa-se que a acusação decidiu construir a realidade de forma arbitrária e seletiva, pois a sua narrativa edita inúmeros aspectos controvertidos sobre os fatos, escolhendo apenas aqueles que interessam à tese de crime contra a Segurança da Nação. Diante disso, uma mera manifestação contrária ao governo estadual e às autoridades policiais, isto é, atividades políticas reivindicatórias, típicas aos movimentos sociais, na mentalidade autoritária do parquet demonstrariam a responsabilidade dos “líderes” do grupo, já que estes teriam incitado a massa contra a ordem política e social. Essa tipificação penal não pode ser aceita num Estado Democrático de Direito, pois se estariam criminalizando qualquer tipo de manifestação pública contrária ao regime, bem como ferindo o direito de resistência.

Por outro lado, devemos ressaltar que a utilização do argumento de que os réus pretendiam incitar à subversão da ordem política ou social, nos remete ao período sombrio da ditadura, já que as barbáries perpetradas pelos agentes do regime - em especial, pelos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), foram “justificadas”, cotidianamente, por esse argumento.

Além disso, na atualidade, a doutrina penal vem realizando severas críticas ao mero argumento de garantia da ordem pública, que em muito se assemelha a ordem política e social, como justificativa para decretar a prisão. Portanto,

31 O art. 41, do CPP, afirma que: A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.

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diante da ambigüidade desse argumento, ele não é válido, pois apresenta uma carga semântica e axiológica genérica e abstrata, ou seja, pode ser utilizado em qualquer situação e, assim sendo, não é cabível em nenhuma, em função de sua excessiva generalidade.

Portanto, a denúncia apresenta pelo Ministério Público é inepta, uma vez que narra um fato lícito, isto é, o exercício do direito de livre associação, mas também nem especifica adequadamente a imputação, ou seja, de que forma se pretendia mudar o Estado de Direito, conforme exige o artigo 41 do Código de Processo Penal. Dessa forma, no tocante à tipificação dada aos acusados, Aton Fon aduz que:

Percebe-se que de quatro dispositivos penais utilizados, o primeiro criminaliza a pertinência a uma organização política; o segundo criminaliza a ação dessa organização política. O quarto criminaliza a divulgação de seu ideário, e o terceiro é aquele cujo objetivo é apenas o de intitular de terrorista a associação política que se quer destruir.32

Assim, após uma observação analítica da denúncia e dos fatos por ela narrados, resta evidente o objetivo político desse processo, isto é, que a criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), pretendeu deslegitimar e negar a importante trajetória histórica desse movimento na luta pela terra. Os oito denunciados, nada mais são que os bodes expiatórios do processo político autoritário perpetrado pelas instituições públicas do Sistema de Justiça Criminal em face do movimento, ou seja, a materialização simbólica da lógica política; amigo-inimigo, tão recorrente nas ditaduras latino-americanas, e infelizmente, ainda, presente nas “democracias”.

V – De que Democracia estamos falando?!

Da análise jurídico-política do processo de criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) por parte dos Ministérios Públicos (MPE e MPF) do Rio Grande do Sul e, sobretudo, após o estudo analítico do processo nº 2007.71.18.00017-3, com base na Lei de Segurança Nacional (nº 7.170/83), percebemos uma profunda incompatibilidade dessa ação, isto é, da prática política do poder punitivo com o projeto político da Carta Constitucional de 1988. Essa incompatibilidade pode ser observada, sobretudo, em face dos Princípios Fundamentais da República, expostos no art. 1º da CF, já que a partir de 1988 o país se constituiu como um Estado Democrático de Direito, que respeita o pluralismo político e cuja soberania emana do povo.

Diante disso, o novo modelo estatal,33 plasmado na Constituição, tem

32 FON FILHO, Aton; FIGUEIREDO, Suzana Angélica Paim. Estratégias de Criminalização Social. In: Direitos Humanos no Brasil 2008: Relatório da rede social de justiça e direitos humanos.São Paulo: Rede social de justiça e direitos humanos, 2008, p. 45.33 Esse novo modelo, isto é: O Estado Democrático de Direito teria a característica de ultrapassar não

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como característica principal de seu projeto político a transformação do status quo, ou seja, o Estado Democrático de Direito diferencia-se substancialmente, ao menos em tese deveria, dos modelos de Estado anteriores, pois passa a ser um fomentador da participação pública no processo de construção e reconstrução de um projeto de sociedade34.

Portanto, a partir de 1988 a Constituição deixa de ser apenas do Estado, para ser também da sociedade35, portanto, ela pressupõe uma filosofia da acção, ou seja, um accionalismo que se dirige à produção, reprodução e alteração da sociedade.36 Diante dessa nova realidade normativa as organizações da sociedade civil, em especial, os movimentos sociais assumem uma importância ímpar na construção histórica do país. Esse protagonismo político ocorre, sobretudo, porque as normas constitucionais necessitam de políticas públicas que os instituam e realizem.

Além disso, cabe lembrar que com o surgimento de complexas contradições culturais e materiais inerentes às sociedades contemporâneas e o aumento dos conflitos entre grupos e classes sociais, os instrumentos tradicionais da legalidade estatal (poder punitivo) intensificam o seu viés repressivo. Ou seja, tendo em vista que o aparato de regulamentação estatal liberal-positivista e a cultura normativista lógico-formal já não desempenham a sua função primordial, qual seja a de recuperar institucionalmente os conflitos do sistema, o paradigma da legalidade incorre numa disfuncionalidade, deixando de dar respostas às necessidades humanas fundamentais e aos conflitos sociais emergentes,37 razão pela qual cada vez mais surgem organizações e movimentos sociopolíticos que buscam transformar a ordem estabelecida, ou até produzir ordenamentos normativos diferenciados. Nesse sentido, Warat afirma que:

As práticas de autonomia nos mostram que uma sociedade está sempre em confronto com suas contradições, que existe sempre o perigo de uma petrificação das opiniões, das condutas e das crenças. Por outro lado existe sempre a possibilidade de fazer valer novos direitos, de combater os projetos que pretendem restringir a uma minoria de privilégios a riqueza, a cultura e o próprio direito. Não se pode nunca deixar nas mãos dos que possuem a riqueza e o saber a possibilidade de definir o sentido da democracia, nem a democracia como sentido de uma forma de sociedade. É necessário entender que os “donos” do saber e da riqueza unicamente conseguem produzir significações

só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do Estado Social de Direito – vinculado ao welfare state neo-capitalista – impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade. Dito de outro modo, o Estado Democrático é plus normativo em relação às formulações anteriores. STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 93.34 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 97.35 BERCOVICI, Gilberto. A Problemática da Constituição Dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. In: Revista de Informações Legislativa, Brasília, nº 142, abr./jun. 1999, p. 38.36 CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra, 1994, p. 458.37 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001.

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que servem para a conservação de seus privilégios.38

Diante disso, observamos a necessidade de retomar, brevemente, o debate constitucional, a partir de duas questões centrais; a idéia de Poder Constituinte e da Soberania Política Democrática, pois para a tradição liberal-positivista - representada, no processo analisado alhures, pelos defensores da ordem política e social39 -, o poder constituinte (proveniente e exercido pelo povo40) é compreendido em termos indiretos, representativos, ou seja, um poder exercido de forma mediada pelo povo.41 Essa visão fundamenta-se na Ideologia da Segurança Nacional que sustentou as ditaduras civil-militares42 dos Estados Burocrático-Autoritários43, sobretudo, no que se refere à idéia de Inimigo (sujeito político contra-hegemônico) da Nação, utilizada como ente abstrato, que personifica e homogeneíza a política às diretrizes daqueles que estão exercendo o poder. Na atualidade, o processo de criminalização dos movimentos sociais, em especial, o caso estudado, demonstra a manutenção dessa lógica burocrático-autoritária, pois os militantes sociais (inimigo), não são reconhecidos como membros do contrato social (cidadãos), isto é, sujeitos de direitos, que no caso de descumprimento da ordem constitucional por parte do Estado (in casu a irrealização da reforma agrária) tem o direito à resistência. Assim, as instituições estatais veem nas atividades e mobilizações políticas das classes populares fonte de criminalidade.

Os indivíduos não podem invocar sentidos adversos acerca dos grandes lemas,

38 WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito III. O Direito não estudado pela teoria Jurídica Moderna. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 99.39 O principal expoente dessa política autoritária, sem dúvida é o Procurador de Justiça Gilberto Thums, que em palestra aos Comerciários, afirmou que “o país está cupinizado” pelos movimentos sociais. Ou seja, equiparou os militantes sociais a cupins. Disponível em: <http://www.diariodamanha.com/principal.php?id_menu=noticia&id_noticia=15592&segmento=GE> Acesso em: 12 jun. 2009.40 Contrapondo-se à visão liberal do Poder Constituinte, Bercovici afirma que: Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx afirma que, na democracia, que consiste na verdadeira unidade do universal e do particular, a constituição é a autodeterminação do povo. Ou seja, a constituição não existe em si, mas segundo a realidade, em seu fundamento real, o povo concreto. A constituição é um produto livre do homem. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição. Para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 237.41 Ibid., pp. 30-31.42 Nesse sentido, é importante recordar, que nos Atos Institucionais os militares se auto-intitulavam os representantes da Nação, razão pela qual estariam instituídos do Poder Constituinte do povo brasileiro.43 “As características que definem o tipo BA são: a) as posições superiores de governo costuma ser ocupadas por pessoas que chegam a elas depois de carreiras bem sucedidas em organizações complexas e altamente burocratizadas – Forças Armadas, o próprio Estado, grandes empresas privadas; b) são sistemas de exclusão política, no sentido de que pretendem fechar os canais de acesso ao Estado do setor popular e seus aliados, assim como desativá-los politicamente não só pela repressão mas também pelo funcionamento de controles verticais (corporativos) por parte do Estado sobre os sindicatos; são sistemas de exclusão econômica, porque reduzem e pospõem para o futuro indeterminado as aspirações de participação econômica do setor popular; d) são sistemas despolitizantes, ou seja, pretendem reduziras questões sociais e políticas públicas a questões ‘técnicas’, a resolver mediante interações entre as cúpulas das grandes organizações acima mencionadas; e) correspondem a uma etapa de importantes transformações nos mecanismos de acumulação das suas sociedades, que por sua vez formam parte de um processo de ‘aprofundamento’ de um capitalismo periférico e dependente, mas dotado de uma extensa industrialização.” .O’DONNELL, Guillermo. Reflexões sobre os estados burocrático-autoritários. 1. ed. São Paulo: Vertice, 1987, p. 21.

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crenças ideológicas e os princípios de organização social. O desconhecido é sempre domesticado, circunscrito ao registro do conhecido. O Estado aparece como legitimador da ordem (ainda quando a violenta descaradamente) – legitimidade atingida pelas práticas simbólicas de um projeto de socialização que despreza a questão do “outro”, a questão do ser. 44

Diante disso, podemos dizer que, no plano político-constitucional, temos um sofisticado texto jurídico-político, fruto de tensões políticas de uma determinada época e contexto (democratização do país), reflexo do constitucionalismo dirigente, compromissário e social, com a pretensão de atender as promessas da modernidade e, no plano institucional, uma cultura autoritária arraigada nos representantes do Estado, cuja tradição patrimonialista-conservadora garante a exclusão socioeconômica das classes populares.45 Portanto, é preciso reconhecer as condições e as possibilidades para a construção e o exercício de um poder político democrático no âmbito do Estado brasileiro. Cabe referir, que essas questões surgiram a partir da análise do discurso utilizado (em nome da defesa do Estado de Direito e da ordem política e social) pelas instituições jurídicas, com a finalidade de legitimar as ações de criminalização e repressão dos movimentos sociais e da realidade sócio-econômica (desumana) dos integrantes do MST, que lutam pela democratização do direito constitucional à terra. Portanto, estão fundadas em dois pontos chaves; o lugar da política do/no direito e da democracia na/para a sociedade. Nesse sentido, adquire relevância o debate sobre:

A democracia como dimensão simbólica da política é sempre um “além” do social, a permanência de um sonho incerto, de um sonho que não pode ser burocratizado, nem pode ficar prisioneiro de uma versão de regras que escondam a ambigüidade de suas representações e efeitos. A democracia é um sonho em aberto. Ela pressupõe o direito fundamental do homem à criatividade, o direito de ter um imaginário sem policiamentos: a invenção democrática como imaginação que nos leva diante do novo46

Observamos, também, que o processo repressivo executado por meio do poder punitivo materializa o embate jurídico-político sobre que Estado Constitucional e que Democracia almejamos? O Estado de Direito liberal? Ou um Estado Democrático? A Democracia substancial? Ou a Democracia formal?47 Nesse sentido, ao longo de nossas pesquisas, verificamos que há

44 WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito III. O Direito não estudado pela teoria Jurídica Moderna. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 92.45 Nesse sentido, Paulo Bonavides, afirma que: “a constante contestação da legitimidade do poder e da ordem social no Brasil é reflexo não da crise constitucional, mas da “crise constituinte” que diz respeito à inadequação do sistema político e da ordem constitucional ao atendimento das necessidades básicas da ordem social. A questão na periferia está ligada aos limites históricos e estruturais que o poder constituinte encontra para se manifestar plenamente como formação da vontade soberana do povo. A soberania de um Estado Periférico é uma soberania bloqueada, ou seja, enfrenta severas restrições externas e internas que a impedem de se manifestar em toda sua plenitude”. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição. Para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, pp. 35-36.46 WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito III. O Direito não estudado pela teoria Jurídica Moderna. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 94.47 Como nos recorda Marilena Chauí : “Desde a Revolução Francesa de 1789, essa democracia declara

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uma confluência de fatores econômicos, culturais, jurídicos e políticos, que possibilitaram a hegemonia da tradição liberal-positivista de Direito e de Estado, ao longo do breve século XX48, e que castraram a possibilidade transformadora do regime democrático, pois:

A democracia concebida como sentido normativo de um consentimento em torno das decisões coletivas termina sendo reduzida a um sistema de legalidade onde o consentimento se converte na necessidade de obedecer disciplinadamente à lei. A democracia é, então entendida como consenso disciplinador de órgãos e cidadãos para um ordem simbólica, apresentada como racionalidade formalmente homogênea e exclusiva (…) fundada em uma racionalidade formal, única e uniforme. Deste modo, estereotipa-se uma idéia monologicamente totalitária de democracia.49

Sendo assim, nosso objetivo limita-se à demonstração da legitimidade das lutas sociais camponesas perante a Constituição de 1988, haja vista o papel transformador da mobilização social, pois, nestas breves linhas, pretendemos apenas profanar50, isto é, restituir ao uso comum humano algumas das estruturas e modelos forjados pela tradição jurídico-política hegemônica, que reduziu a democracia à formalidade da lei e da ordem instituída.51 Em busca disso, devemos (re)pensar os conceitos basilares da filosofia-política, do modelo de Estado Constitucional e do próprio constitucionalismo, assumindo a conexão estrita entre Estado e Constituição, bem como perceber a necessidade de aprofundar o debate sobre a relação entre Democracia e Política. Pois, assim como Marilena Chauí52, entendemos que a democracia é a reinvenção contínua da política, ou seja, se pretendemos construir uma cultura democrática devemos entender que as instituições estatais (no nosso caso, especialmente, as pertencentes ao Sistema de Justiça) precisam ser constantemente repensadas e readequadas às necessidades e conjunturas da sociedade que representam. Um Estado Democrático de Direito não pode ser um modelo definitivo e acabado, pois, assim, o adjetivo Democrático passaria a ser um mero conceito retórico. A democracia é um processo de construção

os direitos universais do homem e do cidadão, mas a sociedade está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a maioria da população. A democracia formal não é concreta”. CHAUÍ, Marilena. A Sociedade Democrática. In: MOLINA, Mônica Castagna; SOUSA JÚNIOR, José Geraldo; TOURINHO NETO, Fernando da Costa. (org.) Introdução Crítica ao Direito Agrário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, p. 33348 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.49 WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito III. O Direito não estudado pela teoria Jurídica Moderna. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 101.50 Utilizamos esse termo a partir dos escritos: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.51 “Partindo desta perspectiva, percebe-se que a questão dos direitos humanos e da democracia precisa ser pensada como um projeto global de libertação do homem em todos os níveis: social, político, psíquico, econômico, ético e estético. Em última análise, forçar o social a afirmar-se como imprescindível cenário de conflitos, das práticas de auto-autonomia e das reviravoltas das verdades instituídas”. WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito III. O Direito não estudado pela teoria Jurídica Moderna. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 92.52 Prefácio à tradução brasileira do livro de LEFORT, Claude. A invenção democrática: Os limites da dominação totalitária. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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diária, um eterno vir-a-ser.53

Desta maneira, é imprescindível vincular o modelo democrático participativo adotado pelo constitucionalismo brasileiro de 1988 à idéia de transformação social como projeto de realização efetiva das dívidas modernas, em particular, aquelas relacionadas à garantia do acesso à terra por parte da população camponesa do nosso país. Nesse aspecto, necessitamos fortalecer mecanismos de participação política, que intensifiquem o processo de superação da nossa tradição burocrático-autoritária por meio da construção de uma cidadania fundada na participação popular, ou seja, no reconhecimento do outro, da legitimidade do conflito, da luta pelo direito, de seu papel transformador.54

Assim, mesmo não podendo ter conclusões absolutas sobre a problemática posta, temos percebido a necessidade de por em prática um constante repensar do instituído por meio de uma cultura jurídica mais democrática, pois “(...) a marca da democracia é a criação de novos direitos e o confronto com o instituído, a prática democrática não cessa de expor os poderes estabelecidos aos conflitos que os desestabilizam e transformam, numa recriação contínua da política.55 Portanto, o sentido de político, ou melhor, da Política não deve ser reduzido à atividade relacionada ao poder legítimo da coação física de uma autoridade, como foi utilizado pelo pensamento político moderno hegemônico. Não é apenas no sentido político-estatal, pois a política pressupõe diálogo, não autoridade. Assim, pretende-se superar o conceito baseado na lógica amigo inimigo (Schmitt), cujo meio específico era a força, passando a utilizar o conceito de Política no sentido de participação e discussão sobre questões de interesse coletivo, construindo, assim, uma práxis jurídica capaz de responder

53 Sobre isso, Bolzan afirma que: “Afinal, democracia é, antes de tudo, um compromisso assumido com a liberdade. (...) a estabilidade jurídica, campo de estabelecimento de normas conviviais, não pode significar aprisionamento, o congelamento, de uma vez por todas de seu conteúdo. Não pode significar o fim da democracia. Alteração, mudança, renovação constante não significam caos. Ao contrário conduzem ao engajamento, à identificação, mas nunca à uniformização. Que seja eterno enquanto dure, dizia o poeta, sobre o amor. O amor deve ligar o homem à democracia as suas regras (normas) devem ter a estabilidade inerente a continuidade democrática, que se liga à elaboração de “hipóteses sobre o aproveitamento da desordem, entretanto na lógica da conflitualidade”, quando então “nascerá uma cultura de readaptação contínua nutrida de utopia”. BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. A Subjetividade do Tempo. Uma perspectiva transdiciplinar do Direito e da Democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul. RS: Edunisc, 1998.54 “A idéia do Direito encerra uma antítese que nasce da idéia, da qual é completamente inseparável: a luta e a paz; a paz é o término do Direito, a luta é o meio para alcançá-lo. (...) Poder-se-ia objetar –continua – que a luta e a discórdia são precisamente aquilo que o Direito se propõe a evitar, visto que semelhante estado de coisas implicaria um transtorno, uma negação da ordem legal, e não uma condição necessária para a sua existência. A objeção poderia ser justa no caso de se tratar da injustiça contra o Direito. Mas aqui se falada luta pelo Direito contra a injustiça. Se nessa hipótese o Direito não luta, ou seja, não oferece uma heróica resistência contra aquela, acabará negando a si mesmo (...). A luta não é, assim, um elemento estranho ao Direito; pelo contrário, trata-se de uma parte integrante de sua natureza e uma condição de sua própria concepção”. VERDÚ, Pablo Lucas. A luta pelo Estado de Direito. Tradução e prefácio de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 132.55 Prefácio à tradução brasileira do livro de LEFORT, Claude. A invenção democrática: Os limites da dominação totalitária. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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às problemáticas decorrentes de uma sociedade plural e complexa. 56

Nesse aspecto, há que reconhecer a importância e a legitimidade das lutas promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, uma vez que os suas novas formas de organização social (re)politizaram aqueles que são sujeitos da história, isto é, os trabalhadores camponeses, associando-se, lutando, resistindo, possibilitam novos espaços de socialização da política, ou seja, abrem campos para a criação da igualdade através das exigências e demandas dos sujeitos sociais.57 Por isso, torna-se necessário romper com a tradição liberal-positivista, que restringe a política, a democracia e o direito à forma limitada do instituído. Temos que fortalecer ações e reflexões críticas sobre a realidade posta, pois:

O Direito é, antes de tudo, liberdade militante, a afirmar-se, evolutivamente, nos padrões conscientizados de justiça histórica, dentro da convivência social de indivíduos, grupos, classes, povos - e isto que dizer que o Direito é então substância,processo e modelo de liberdade conscientizada ou conscientização libertadora, na/para a práxis transformativa do mundo; e não ordem social (que procure encerrá-lo e detê-lo), nem norma (que bem ou mal o pretende veicular), nem princípio abstrato (que o desvincule das lutas sociais concretas).58

Temos que ter claro que a Reforma Agrária é essencial para que o Brasil seja um país realmente democrático, ou seja, que as reivindicações dos Movimentos Sociais, seja em âmbito nacional (MST) ou pela consolidação de redes de apoio e solidariedade internacional (Via Campesina), isto é, constituindo uma sociedade civil global expressam a verdadeira transformação democrática. Assim, num ambiente marcado pela desigualdade e injustiça, o conflito e a resistência, isto é, as lutas promovidas pelos Movimentos Sociais, são a expressão do contrapoder social59 que cotidianamente reinventará

56 Nesse sentido, Friedrich Müller, nos alerta que é de fundamental importância o fortalecimento de uma sociedade civil global, ou seja, que se fortaleçam modelos alternativos de organização social: “Desde a fase final do século XX, a galáxia global de organizações não-governamentais pela democracia, pelos direitos humanos e por uma mundialização diferente tornou-se portadora de todos esses movimentos – do protesto, da ação simbólica, de propostas construtivas, de provocações bem-sucedidas ao Judiciário (para colocá-lo em movimento): enquanto consciência social mundial, fator de perturbação da rotina da opressão e exploração, da dominação mundial não-democrática, efetivamente não existente, gerador de alternativas inteligentes; enquanto globalização descentralizada “de baixo para cima”, sem exercício de dominação, eficaz por meio de lobismo e pressão sobre a opinião pública; em resumo, no papel de uma sociedade civil global em vias de consolidação. MÜLLER, Friedrich. A Limitação das possibilidades de atuação do Estado-Nação face à crescente globalização e o papel da sociedade civil em possíveis estratégias de resistência. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÉ, Faya Silveira (Org.). Constituição e Democracia. Estudos em homenagem ao Prof. J. J. Canotilho. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 215.57 CHAUÍ, Marilena. A Sociedade Democrática. In: MOLINA, Mônica Castagna; SOUSA JÚNIOR, José Geraldo; TOURINHO NETO, Fernando da Costa. (org.) Introdução Crítica ao Direito Agrário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, p. 335.58 LYRA FILHO, Roberto. A nova filosofia jurídica. In: MOLINA, Mônica Castagna; SOUSA JÚNIOR, José Geraldo; TOURINHO NETO, Fernando da Costa. (org.) Introdução Crítica ao Direito Agrário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, p. 90.59 CHAUÍ, Marilena. A Sociedade Democrática. In: MOLINA, Mônica Castagna; SOUSA JÚNIOR, José Geraldo; TOURINHO NETO, Fernando da Costa. (org.) Introdução Crítica ao Direito Agrário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, p. 335

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a Democracia, pois ao fortalecer um Sentimento Constitucional que é a expressão de uma cultura política assimilada e sentida pelas pessoas acerca dos principais alicerces jurídico-políticos de convivência60, supera-se a baixa constitucionalidade das instituições do Sistema de Justiça e, por conseguinte, se passa a estar em Constituição e se deixa de apenar ter Constituição.61

Nessa perspectiva, verificamos que o processo de criminalização dos movimentos sociais, em especial, o caso analisado, afronta os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (Arts. 1º e 3º, da CF/88). A ideologia securitária que sustenta esse processo de criminalização reduz a política à coerção, o direito à lei, e a democracia ao consenso disciplinador, ou seja, funda-se numa racionalidade formal incompatível com o projeto político constitucional, uma vez que serviu de fundamento ideológico para boa parte das ditaduras implantadas no continente americano e, na atualidade, serve para assegurar os objetivos do latifúndio e do agronegócio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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60 VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximações ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Trad. de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.16-17.61 VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximações ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Trad. de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.16-17

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Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002;STÉDILE, João P. O MST e a questão agrária. Estudos Avançados, vol. 11, nº 31, São Paulo, Set/Dec, 1997. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?pid=S01034014997000300005&script=sci_arttext&tlng=pt> Acesso em: 20 Set. 2010. STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010;TEDESCO, J.C. CARINI, J.J. Conflitos agrários no norte gaúcho 1960-1980. Porto Alegre, EST edições, 2007. p. 142, apud FOSCHIERA, Elisabeth Maria. A Fazenda Coqueiros e a luta pela terra na atualidade. Disponível em: <www.upf.br/ppgh/download/Elisabeth%Maria%20Foschiera.prn.pdf> Acesso em: 20 Set. 2010;VERDÚ, Pablo Lucas. A luta pelo Estado de Direito. Tradução e prefácio de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2007;VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximações ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Trad. de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004;WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito III. O Direito não estudado pela teoria Jurídica Moderna. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997;WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001;ZAFFARONI, Eugenio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Trad. de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.Endereços Eletrônicos utilizados: <http://www.diariodamanha.com/principal.php?id_menu=noticia&id_noticia=15592&segmento=GE> Acesso em: 12 jun. 2009.<www.prrs.mpf.gov.br/iw/iol/puplicp.php?publ=50827> Acesso em: 20 Set. 2010.

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TERRENOS DE MARINHA E ACUMULAÇÃO URBANA CAPITALISTA: ESPECIFICIDADES NA ORLA MARÍTIMA DE NATAL

Daniel Araújo Valença1

1 Introdução

Desde o período colonial, o Estado detém o domínio de uma faixa de terras que se estende por toda a orla do país. Denominada terrenos de marinha e seus acrescidos, pode-se defini-los, preliminarmente, como áreas contíguas ao mar pertencentes ao Estado. Sua previsão legal decorre da necessidade, à época, de tê-las sob seu domínio para a defesa da costa, e, por outro lado, à dependência do litoral por parte das atividades econômicas da colonização exploratória de capital mercantil.

A partir do século XIX, todavia, as terras de marinha foram se tornando passíveis de ocupação privada, mediante pagamento de taxas por particulares ao Estado, em função do gozo de imóveis pertencentes à União.

Atualmente, tais áreas, na prática, têm sido fonte de forte pressão imobiliária e acumulação capitalista. Para compreensão deste processo, a presente pesquisa apresenta como suporte referências teóricas que visualizam interseções entre a propriedade fundiária, a produção do espaço e o desenvolvimento do sistema capitalista, tais como HARVEY e LEFEBVRE. Afirma-se, entretanto, que os terrenos de marinha, como terras estatais de localização privilegiada, revelam uma função estratégica para a consecução dos fins objetivados pelo Estado.

Constituindo-se em parte da pesquisa de mestrado sobre a função social dos terrenos de marinha na orla de Natal, este artigo apresenta como universo os terrenos de marinha situados no bairro de Ponta Negra, orla marítima da cidade do Natal – Rio Grande do Norte.

Como instrumentos metodológicos, a pesquisa contou com levantamento de campo e consulta aos dados básicos dos imóveis disponíveis nos Registros Imobiliários Patrimoniais (RIPs) da Secretaria do Patrimônio da

1 Professor Assistente II da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, em regime de dedicação exclusiva, doutorando em ciências jurídicas pela UFPB, linha direitos humanos. É membro da secretaria executiva nacional do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais - IPDMS. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2006) e especialização em Direito Urbanístico pela PUC Minas. É mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, tendo sido bolsista Capes e obtido conceito A, com louvor, na defesa pública da dissertação. Coordena o Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina e atua principalmente nos seguintes temas: movimentos sociais e América Latina, marxismo, educação jurídica e popular, direitos humanos, novo constitucionalismo latinoamericano, assessoria jurídica popular, democracia, propriedade fundiária, terrenos de marinha, direito urbanístico - http://lattes.cnpq.br/8171295182122890

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União (SPU), cedidos pela Gerência Regional do Patrimônio da União do Rio Grande do Norte (GRPU-RN).

Na primeira parte do artigo, visa-se traçar a relação entre a propriedade e o desenvolvimento do sistema capitalista – aquela se transformou de propriedade coletiva em propriedade privada absoluta. Depois, os terrenos de marinha são contextualizados e conceituados para, por fim, se adentrar no universo abordado e nas conclusões do estudo. 2 A propriedade voltada à acumulação capitalista

O ordenamento legal do padrão de uso e ocupação do solo se dá de maneiras diversas, dependendo dos processos históricos de cada sociedade, dos interesses e conflitos de classes presentes em cada uma delas.

MARX, em Formações Econômicas Pré-Capitalistas, retratou a propriedade fundiária comunal e a transição para a propriedade privada. Para ele, na antiguidade, há uma diversidade de formas de apropriações do solo, que dependem de uma série de elementos, dentre os quais, das “disposições naturais da tribo e, em parte, das condições econômicas em que a tribo realmente se comporta enquanto proprietária em relação à terra, isto é, se apropria dos seus frutos pelo trabalho” (MARX, 1991, p. 18). Nesse sentido, MARX reuniu os tipos de relações entre os membros da comuna ou da tribo e a terra nas seguintes possibilidades:

A propriedade mediatizada pela existência da comuna  pode aparecer como propriedade comum, não  sendo aqui o indivíduo mais do que não existe. Ou então a propriedade apresenta-se sob a dupla forma de propriedade de Estado e de propriedade privada, coexistindo uma ao lado da outra, sendo, todavia, esta condicionada por aquela, de tal modo que só o cidadão é e deve ser proprietário privado, ao mesmo tempo que a sua propriedade como cidadão possui uma existência particular,  ou ainda a propriedade comunal não é mais que o complemento  da propriedade individual, mas esta, enquanto base da comuna, não tem outra existência para si que não seja no seio da reunião dos membros da comuna e da sua união com vista a fins coletivos. (MARX, 1991, p.18)

A relação do ser humano com a terra, dessa forma, apresentava-se vinculada ao pertencimento e à existência da tribo ou comuna, sendo que em “todas estas formas, a propriedade fundiária e a agricultura constituem a base da ordem econômica; por conseqüência, o objetivo econômico é a produção de valores de uso (grifo nosso), a reprodução do indivíduo nas relações particulares da sua comuna [...]” (MARX, 1991, p.16).

Para Marx, “originariamente, portanto, a propriedade não significa mais do que o comportamento do homem face às  suas condições naturais de produção como fazendo com ele um só, como sendo suas, e tais quais foram dadas  conjuntamente com a sua própria existência” (MARX, 1991, p.25).

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Naquele momento, portanto, a propriedade privada, quando existia, estava condicionada à vida e reprodução da comunidade como um todo e não se apresentava ainda como valor de troca.

Abordando o desenvolvimento da divisão do trabalho e da absolutização da propriedade privada fundiária, LEFEBVRE comenta sobre a transposição da propriedade coletiva para a propriedade privado-comunitária e a posterior sacralização da propriedade privada, coexistindo, entretanto os “direitos da cidade sobre o território” (o que só viria a ser perdido com a revolução industrial):

[...] Consideremos apenas a cidade arcaica (grega ou romana) de que partem as sociedades e as civilizações ditas “ocidentais”. Esta cidade resulta geralmente de um sinecismo, reunião de várias aldeias ou tribos estabelecidas num território. Esta unidade permite o desenvolvimento da divisão do trabalho e da propriedade mobiliária (dinheiro) sem, todavia, destruir a propriedade coletiva ou antes ‘comunitária’ do solo. Assim se constitui uma comunidade no seio da qual uma minoria de livres cidadãos detém o poder sobre os outros membros da cidade: mulheres, crianças, escravos, estrangeiros. A cidade liga seus elementos associados à forma de propriedade comunal (‘propriedade privada comum’ ou ‘apropriação primitiva’) dos cidadãos ativos, os quais se opõem aos escravos. Esta forma de associação constitui uma democracia, mas os elementos dessa democracia são estreitamente hierarquizados e submetidos às exigências da utilidade da própria cidade. É a democracia da não-liberdade (Marx). No transcorrer da história da cidade arcaica, a propriedade privada pura e simples (do dinheiro, do solo, dos escravos) se fortalece, se concentra, sem abolir os direitos da cidade sobre o território. (LEFEBVRE, 2006, p.28)

Já na Idade Média (especificamente no continente europeu), destarte a exploração do ser humano sobre seu semelhante permanecer sobre nova roupagem – a servidão em substituição à escravidão – a propriedade revelava características próprias:

[...] a cidade e o Império romanos foram destruídos pelas tribos germânicas, ao mesmo tempo comunidades primitivas e organizações militares. Desta dissolução da soberania (cidade, propriedade, relações de produção), resulta a propriedade feudal do solo, com os servos substituindo os escravos. Com o renascimento das cidades, há por um lado organização feudal da propriedade e da posse do solo (as comunidades camponesas têm uma posse costumeira e os senhores a posse ‘eminente’, como mais tarde se dirá) e por outro lado uma organização coorporativa das profissões e da propriedade urbana. Ainda que no princípio dominada pela propriedade senhorial do solo, esta dupla hierarquia contém a condenação dessa propriedade e da supremacia da riqueza imobiliária. (LEFEBVRE, 2006, p.31)

A propriedade, finalmente, revelou uma nova face com a superação do feudalismo: “o desenvolvimento capitalista transformou a terra em propriedade privada, e a terra transformada em propriedade privada promoveu o desenvolvimento capitalista”. (MARÉS, 2003, p.81)

Não era apenas a terra se transformando em propriedade privada; como levantado, isto é anterior ao capitalismo. O valor de troca da terra se sobressai, tornando-se uma mercadoria fundamental para a acumulação capitalista.

A terra e seus frutos, a partir desse momento histórico, passam a ter

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donos, que dispõem de um direito excludente, acumulativo, individual. Direito este tão geral e pleno que continha em si o direito de não usar, não produzir (MARÉS, 2003, p.12).

Para Marx, aquela propriedade em sua existência primitiva – com particularidades de cada povo, porém, com características gerais em comum - viu-se reduzida “ao comportamento do sujeito face às condições da produção”. (MARX, 1991, p.26)

A absolutização da propriedade privada revelou-se requisito para o processo de acumulação primitiva de capital, descrita por HARVEY como “a dissociação dos trabalhadores dos meios de produção e da terra, o que se deu através da força e da violência, como, por exemplo, na prática do cercamento na Inglaterra” (HARVEY, p. 91, 2005).

Sobre esse aspecto, SMITH assinala que

o tratamento abstrato enquadrado numa totalidade dialética, onde a propriedade fundiária se constitui em pressuposto das relações capitalistas, tem sua mediação concreta baseada no fenômeno dos enclosures que se processam na formação histórica e social inglesa entre os séculos XVI e XVIII. Corresponde ao processo de destruição do campesinato, mediante o despojamento de seus meios de produção e de subsistência, e que fará aparecer a miserável figura do homem livre, mercador de sua força de trabalho, conduzida na história ao mundo “fantasmagórico” da mercadoria (SMITH, 1990, p.18)

Isto porque o capital não é produto físico, e sim, antes de tudo, relação social (HARVEY, 2005, p.113). Sua acumulação só é possível pela separação dos trabalhadores dos meios de produção e do acesso a terra. A circulação da mercadoria, fabricada a partir da mão de obra assalariada, permite ao capitalista extrair a mais-valia necessária para a acumulação.

Nesse sentido, considerando a propriedade dentro do contexto das contradições entre as forças produtivas e as relações de produção, destaca HARVEY que:

A política implementada nos países coloniais, como aquela de Wakefield, na Austrália, era de os recursos da propriedade privada e do Estado serem usados para excluir os trabalhadores do fácil acesso às terras sem donos, para preservar um conjunto de trabalhadores assalariados no interesse da exploração capitalista. Assim, nas colônias, a burguesia foi forçada a reconhecer o que procurava esconder em seu país natal: o trabalho assalariado se baseia na separação forçosa do trabalhador do controle dos meios de produção (HARVEY, 2005, p.113)

Caso o acesso a terra, mesmo que em termos de pequena propriedade, fosse possível e recorrente, parcela significativa das pessoas poderia escolher viver da subsistência, o que proporcionaria uma valorização da mão-de-obra disponível, representando entrave para a acumulação de capital. Era fundamental, portanto, que os trabalhadores não tivessem condições de produzir autonomamente, para que fossem forçados a se tornar força de trabalho no capitalismo incipiente.

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Dentre as colônias citadas por Harvey, aparece o Brasil: durante o período colonial, os portugueses visavam inserir a “terra descoberta” no circuito mercantilista, favorecendo o capital mercantil, essencialmente através do tráfico de escravos e da exportação de produtos primários. Para isto, instituiu o sistema das sesmarias: a concessão de grandes propriedades pela Coroa assegurava a propriedade estatal das terras e a exigência de produtividade, sendo que “a conjugação entre propriedade fundiária não absolutizada e o escravismo se dá dentro de uma condicionante, de que a terra não tem ‘valor’ porque o que tem ‘valor’ é o escravo” (SMITH, 1990, p.159).

Em 1822, pouco antes da Independência, o regime da sesmaria finalmente se exaure no campo formal, apesar de, na prática, por muito tempo ter sido incontrolável pela Coroa, tendo ocorrido apossamentos de grandes glebas sem a anuência estatal. Só o regimento das confirmações de sesmarias continuou em vigor.

Advém, então, em 1850, a Lei de Terras – segundo a qual a terra passava a ser acessível apenas mediante a compra-e-venda -, sob influência da doutrina de WAKEFIELD, para não apenas confirmar a apropriação privada de extensas terras até aquele momento, mas, essencialmente, evitar que os não proprietários tivessem como acessar os meios de produção naquele momento. A terra então adquire “valor” no Brasil – o valor de troca supera o valor de uso característico dos séculos anteriores.

Apenas no final do século XX, após as lutas populares contra a ditadura civil-militar brasileira e pela construção de uma sociedade baseada em alicerces distintos daqueles, os movimentos de luta pela terra e pela moradia – especialmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o da reforma urbana – e partidos políticos de esquerda, conquistam a inserção do princípio da função social da propriedade, rural e urbana, privada ou pública, na Constituição Federal de 1988.

O sistema capitalista e a propriedade privada foram preservados; o valor de troca da propriedade permaneceu expressivo. Porém, a partir daquele momento, condicionado ao cumprimento de determinados requisitos.

DI PIETRO nos traz que:

Hoje, prevalece o princípio da função social da propriedade, que autoriza não apenas a imposição de obrigações de não fazer, como também as de deixar fazer e, hoje, pela Constituição, a obrigação de fazer, expressa no artigo 182, § 4º, consistente no adequado aproveitamento do solo urbano. (DI PIETRO, 2008, p.114-115)

Portanto, todas as propriedades, e aí se incluem aquelas situadas

na faixa dos terrenos de marinha e acrescidos, devem atender ao princípio constitucional. Para nós, por serem áreas públicas e de localização privilegiada, tanto do ponto de vista ambiental quanto urbanístico, tais espaços incorporam uma importância ainda maior.

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3 Terrenos de marinha: contextualização histórica e conceituação legal atual

No Brasil colônia todas as concessões de terras aos sesmeiros excetuavam as terras de marinha, que se caracterizavam por serem áreas de uso comum, possibilitando o comércio e o trânsito livre na orla, além da defesa do território quando necessário.

No século XIX os terrenos de marinha passam a gozar de outra destinação: foram previstos na lei orçamentária de 15 de novembro de 1831 para fins de aforamento e arrecadação de rendas, o que foi regulamentado através da Instrução do Ministério da Fazenda de nº 348 de 14 de novembro de 1832 (ALMEIDA, 2008, p.56).

ALMEIDA ressalta que “daí por diante, os terrenos de marinha assumem o seu caráter de elemento gerador de renda, registrado em leis orçamentárias e a regulamentação de todos os casos que surgiram foi, toda ela, feita por meio de atos administrativos” (ALMEIDA, 2008, p.57).

Neste momento da história brasileira, o Estado aparenta trasladar o debate liberal sobre a propriedade no país – época em que foi instituída a lei de terras, e o acesso a terra ficou vinculado não a seu uso adequado, mas ao poder de compra-e-venda dos interessados - para o instituto dos terrenos de marinha, visualizando-os apenas como faixas de terras passíveis de ocupação privada mediante contraprestação de taxas.

Seguiu-se, então, uma intensa ocupação particular nas áreas de marinha, aprofundada no início do século XX, quando o mar como valor cênico e paisagístico, e a praia como espaço para o lazer, foram incorporados ao repertório urbano da sociedade brasileira:

Possuir um imóvel ou passar as férias em frente ao mar vira sinônimo de status e por todas as cidades de porte – capital ou não – surgem bairros que foram construídos à semelhança de Copacabana. A via beira-mar transforma-se em pólo aglutinador da população e a praia assume a função urbana do parque, sendo utilizada como centro de lazer por um público amplo. (MACEDO, 2007, p.50)

A conceituação legal de tais áreas, ainda vigente, se deu logo em seguida,

no Decreto-Lei 9.760/46, que dispõe sobre os bens da União, recepcionado pela Constituição Federal:

Art. 2º - São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:         a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;         b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.         Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que

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ocorra em qualquer época do ano.         Art. 3º São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha

A posição da linha do preamar-médio (LPM) de 1831 é estabelecida pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), sendo que o STF já pacificou o entendimento de que apenas o procedimento da demarcação pode ser colocado em xeque, já que o domínio da União das áreas abarcadas pela linha remonta à colonização.

Assim como os demais bens públicos, as terras de marinha podem ser classificadas em bens de uso comum, de uso especial e dominicais. Respectivamente, estão destinados: ao uso por qualquer pessoa indistintamente; à utilização para serviços da administração pública; não apresentam uma destinação específica (afetação), constituindo-se patrimônio estatal passível de ocupação por particular com o intuito de promover maior arrecadação para o Estado.

Como visto, os terrenos de marinha, de início, atendiam a uma destinação que poderia o caracterizar como bem de uso comum – apesar de voltado à acumulação no padrão mercantilista – e, no século XIX, passou a atender a outros interesses e se constituir em bens passíveis de gozo particular. O referido decreto apresenta uma série de instrumentos legais que possibilitam esse uso pelo particular. Nos deteremos a somente dois, a ocupação precária e o aforamento, por serem aqueles encontrados na pesquisa sobre a orla de Ponta Negra.

A Inscrição da Ocupação é um ato administrativo precário, resolúvel, que  pressupõe o efetivo aproveitamento do terreno pelo ocupante (SAULE JÚNIOR, 2006, p. 97) e a contrapartida do pagamento anual de uma taxa de ocupação, correspondente a 2% ou 5% do valor do domínio pleno do imóvel. Por ser um ato administrativo precário e resolúvel, a inscrição e o pagamento da taxa de ocupação não importam no reconhecimento, pela União, de qualquer direito de propriedade do ocupante sobre o terreno. Além disso, cabe ressaltar que:

Art. 132. A União poderá, em qualquer tempo que necessitar do terreno, imitir-se na posse do mesmo, promovendo sumariamente a sua desocupação, observados os prazos fixados no § 3º, do art. 89. § 1º As benfeitorias existentes no terreno somente serão indenizadas, pela importância arbitrada pelo S.P.U., se por este for julgada de boa fé a ocupação.

Já o aforamento encontra-se extinto em termos de direito privado. Todavia, sua modalidade no direito público continua em vigor: é ato por meio do qual a União atribui a terceiros o domínio útil de imóvel de sua propriedade (Decreto-Lei nº 9.760/46, Art. 64, § 2º), estando o particular, a quem se

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denomina “foreiro”, obrigado  ao pagamento de pensão anual denominada foro, equivalente a 0,6% do valor do terreno, sob pena de caducidade (perda do aforamento) de acordo com os requisitos previstos legalmente. Dessa maneira, o particular pode gozar do bem da União e transmiti-lo a terceiros em ambos os casos.

Essa contextualização fornece elementos importantes para analisarmos à que se destinam, atualmente, os terrenos de marinha e acrescidos situados na orla de Ponta Negra.

4 Terrenos de marinha na orla de Ponta Negra: novas dinâmicas de acumulação

O litoral da cidade do Natal constitui-se pelas praias da Redinha, do Forte, do Meio, dos Artistas, de Areia Preta, Via Costeira e Ponta Negra. O município enfrenta problemas na estruturação do espaço urbano, comuns às demais capitais do litoral, tais como: forte pressão imobiliária nas áreas beira-mar; segregação sócio-espacial da população, restando poucas áreas no litoral adensadas por famílias de renda de até três salários mínimos - especificamente os bairros das Rocas e Santos Reis; concentração de equipamentos públicos e privados na Zona Sul da cidade, onde, predominantemente, residem os setores médios e altos da população, privilegiando-se os trechos da orla situados nesta região.

O bairro de Ponta Negra situa-se nesta zona e teve origem na Vila, onde os moradores subsistiam da pesca, da agricultura comunal e do artesanato. Até a década de 1960, a praia de Ponta Negra era ocupada pelos moradores da Vila e por veranistas, que construíram suas casas à beira-mar, constituindo-se em segundas residências (SILVA, BENTES SOBRINHA, CLEMENTINO, 2006, p.144).

Com a emergência do turismo nos anos de 1980, e sua re-estruturação pós Programa do Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (PRODETUR-NE)  na década de 1990, consubstancia-se a possibilidade de “segundas residências” para um público não-local (SILVA, BENTES SOBRINHA, CLEMENTINO, 2006, p. 144), formado, principalmente, de estrangeiros.

As casas de veraneio foram, portanto, ao longo das duas últimas décadas, reformadas, vendidas, deixando de existir pelas ofertas proporcionadas a partir da  especulação imobiliária nas terras beira-mar. Surgiram pousadas, hotéis, estabelecimentos comerciais e uma tipologia não muito conhecida no litoral do município até então – os flats.

Nesse sentido,

No bairro  de Ponta Negra, a valorização imobiliária foi  intensificada no final da década de 1990,  com o Projeto de Urbanização da Orla  (construção do calçadão e quiosques), saneamento  e drenagem de um trecho do bairro,  paisagismo na Av.

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Engenheiro Roberto Freire (avenida de acesso ao bairro) entre investimentos públicos (SILVA, BENTES SOBRINHA, CLEME-NTINO, 2006, p.154)

Os terrenos beira-mar, então, transformaram-se em objeto valorizado, emergindo um “novo” capital imobiliário, “consolidando uma nova modalidade de produção espacial, destinada a uma modalidade de consumo que  está sendo chamada, pelo mercado, de ‘turismo imobiliário’ [...]” (SILVA; FERREIRA, 2008, p.16).

Dessa forma,

A habitação,  para além de seu valor de uso, transforma-se  num produto financeiro interessante em  termos de aplicação de poupança ou investimento.  Aqui, no além-mar, do outro lado do Atlântico, essa dinâmica imobiliária residencial global, européia, tem assumido  a forma de: a) uma segunda residência, ora  destinada às férias em paraíso ensolarado, ora destinada à ampliação da renda doméstica pela possibilidade de arrendamento  (aluguel) do imóvel durante todo  ano, num pool de hotelaria ou hospitalidade  turística; b) um segundo negócio ou  expansão de empreendimentos, que requer um capital de investimento e a associação com grupos locais e nacionais ligados ao imobiliário ou ao turismo. (SILVA, BENTES SOBRINHA, CLEMENTINO, 2006, p. 142)

Os autores fazem uma ponte entre essa novidade no litoral nordestino com a teoria de Harvey a cerca da ordenação espaço-temporal em contextos de crise de sobreacumulação. Harvey argumenta que:

Essas crises são tipicamente registradas como excedentes de capital (em termos e mercadoria, moeda e capacidade produtiva) e excedentes de força de trabalho lado a lado, sem que haja aparentemente uma maneira de conjugá-los lucrativamente a fim de realizar tarefas socialmente úteis (HARVEY, 2005, p.78).

Prossegue defendendo que:

Esses excedentes podem ser potencialmente absorvidos pelos seguintes fatores: (a) o deslocamento temporal mediante investimentos em projetos de capital de longo prazo ou investimentos sócias (como a educação e a pesquisa) que adiam a futura reentrada em circulação de valores de capital; (b) deslocamentos espaciais por meio da abertura de novos mercados, novas capacidades produtivas e novas possibilidades de recursos, sociais e de trabalho, em outros lugares; ou (c) alguma combinação de (a) e (b) (HARVEY, 2005, p.94).

Os fluxos de capital, dessa forma, são retirados do circuito primário - caracterizado por tempo de giro curto, com maior rendimento de mais-valia (HARVEY, 2005, p.50) para o circuito secundário de capital fixo e de formação de fundo de consumo ou para um circuito terciário de gastos sociais e de pesquisa e desenvolvimento.

Nesta perspectiva, Harvey comenta que

uma parcela do capital que vai para o circuito secundário é incorporada à terra e forma um banco de ativos fixos num dado lugar – um ambiente construído para a produção e

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o consumo [...] Constituem, para dizê-lo com clareza, bem mais do que um setor menor da economia. Podem absorver e absorvem imensos montantes de capital e trabalho, particularmente, como veremos, em condições de expansão geográfica (HARVEY, 2005, p.94).

Partindo-se destes marcos teóricos, a presente pesquisa buscou pistas sobre os terrenos de marinha e seus acrescidos na orla de Ponta Negra: atualmente estão inseridos nesta lógica de novos padrões de acumulação, ou, como áreas públicas, desempenham uma função social?

Para tanto, elaborou-se um cadastro com os principais dados de imóveis da União, com informações colhidas a partir do Registro Imobiliário Patrimonial (RIP), cedido pela GRPU.

Elaborou-se, então, a seguinte tabela:

Particulares em bens da União

Tipologia Flat Porcentagem

Brasileiro 01 0,4

Estrangeiro 20 9,3

Empresa do RN - outros ramos

129 60

Empresa de outros estados – outros ramos

23 10,6

Empresa estrangeira 42 19,5

TOTAL 215Fonte: Gerência Regional do Patrimônio da UniãoNota: Elaborado pelo autor

Escolheu-se um recorte sobre a modalidade de Flat por representar esse novo momento do cenário imobiliário turístico a qual a orla de Ponta Negra se vê inserida.

Os dados supracitados refletem a quantidade de apartamentos em áreas de marinha e acrescidos, e não a de edifícios padrão flat em si.

Como se percebe, em termos de pessoas físicas, tal modalidade é majoritariamente apropriada por estrangeiros. Um deles dispõe de cinco apartamentos no mesmo flat. Há, certamente, uma busca para além do valor de uso, visando maiores acumulações com o aluguel e a permanente valorização de tais áreas.

Quanto às pessoas jurídicas, visualiza-se a inserção de grupos estrangeiros, em proporção nada desprezível e, quanto às nacionais, há presença de empresas de outros estados, para além das do próprio Rio Grande do Norte. Todas estas atuam/atuavam em outros ramos, para além do imobiliário, tais como, por exemplo, a Constel Construções e Telefonia LTDA. e a

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Agropecuária Floresta LTDA., e resolveram ampliar suas áreas de investimento para o turismo imobiliário.

Aparentemente, dentre os terrenos de marinha e acrescidos pesquisados, há a configuração da lógica de acumulação capitalista descrita por Harvey.

Para dar maiores subsídios à pesquisa, realizou-se levantamento de campo com mapa cedido pela GRPU que delimita quais imóveis estão presentes em terrenos de marinha e acrescidos.

Verificou-se que há um total de 102 terrenos, todos com vista para o mar, nesta faixa de terras públicas. Destes, atualmente, vinte e um se configuram como vazios urbanos. Nos demais, aparecem flats, hotéis, pousadas, casas e diversos estabelecimentos comerciais.

O único equipamento público, nestas áreas estatais, é o calçadão de Ponta Negra, construído com a urbanização da orla – que também retirou as barracas da praia (estavam irregularmente, já que a praia constitui-se em área de uso comum do povo) e as transferiu para quiosques dispostos ao longo do calçadão.

O calçadão representa nova etapa para a orla de Ponta Negra: urbanizada, com a praia livre das barracas para os transeuntes, possibilidade de prática de esportes, lazer e contemplação paisagística, atendendo à função social dos terrenos de marinha.

Como se percebe, não há bens de uso especial na área de terrenos de marinha da orla de Ponta Negra, onde poderia vir a existir, como exemplo, um posto de saúde para atendimento de urgência dos freqüentadores da orla, seja no período diuturno ou noturno.

Também não há espaços destinados à atividade cultural pública, feira de artesanato ou para desenvolvimento de atividades pesqueiras – todas elas viriam a beneficiar não apenas um particular ou classe de pessoas, mas à população em geral, valorizando a orla não a partir da lógica especulativa, mas a partir de uma perspectiva de direito a cidade colocada por Lefebvre:

[...] Entre esses direitos em formação figura o direito à cidade (não à cidade arcaica mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais, etc.). a proclamação e a realização da vida urbana como reino do uso ( da troca e do encontro separados do valor de troca) exigem o domínio do econômico ( do valor de troca, do mercado e da mercadoria) e por conseguinte se inscrevem nas perspectivas da revolução sob a hegemonia da classe operária. (LEFEBVRE, 2006, p.143)

Os vinte e um imóveis que configuram vazios urbanos, todavia, se situam nas áreas mais valorizadas do município. É tão intensa essa pressão imobiliária que um deles, donde se demoliu uma antiga casa de show, está à venda por um milhão de reais. Há outros ao longo da beira-mar desta praia, mas que não estão compreendidos dentro da LPM. Para estes, o cumprimento da

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função social só é possível mediante estabelecimento do IPTU progressivo, instrumento do direito urbanístico que visa combater a especulação fundiária em áreas dotadas de infra-estrutura.

Entretanto, quanto ao universo abordado em nosso estudo, defendemos que o IPTU progressivo pode vir a ser implementado naqueles imóveis que foram alvo de aforamento – já que o domínio útil foi transladado ao particular, pela municipalidade.

Aqueles em que figura a ocupação precária devem ter tratamento diferenciado: a ocupação perde o sentido se o particular não a destina um adequado aproveitamento (SAULE JR, 2006, p.97). Estes vazios urbanos representam a possibilidade de se assegurar equipamentos em terras estatais para fruição e gozo de toda a população.

É a possibilidade de se assegurar o direito a cidade:

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade. (LEFEBVRE, 2006, p.135)

5 Considerações finais

A orla da praia de Ponta Negra passou por mudanças substanciais ao longo das últimas três décadas, especialmente a última delas, sob o comando não apenas das alterações intra-urbanas do município, mas também vinculadas à globalização e aumento do turismo estrangeiro.

As áreas mais visadas da orla são justamente os terrenos de marinha, que se situam beira-mar e dispõe de localização privilegiada. Na atualidade, estes parecem refletir ainda o “modelo” a eles atribuídos no século XIX: uma propriedade privada como outra qualquer, voltada para a acumulação e reprodução do capital, todavia, com pagamento de taxa ao Estado. Para além: agora assumem uma nova dinâmica ligado ao crescimento do turismo imobiliário, à inserção de capitais estrangeiros, inclusive de pessoas físicas, e empresas que alteraram sua “missão” para se adaptarem a novos padrões de acumulação capitalista.

Estes novos padrões de acumulação contrastam com as possibilidades de cumprimento de função social que a propriedade pública em si é capaz de desempenhar. Principalmente em se tratando de terras públicas com localizações tão privilegiadas.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, José Mauro de Lima O’ de. Terrenos de Marinha: Proteção Ambiental e as Cidades. Belém: Paka-Tatu, 2008.

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BRASIL. Decreto-Lei nº 9.760/46, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sobre os bens imóveis da União e dá outras providências. Publicado no Diário Oficial da União [Brasil] de 06 de setembro de 1946, p. 12500. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del9760.htm>. Acesso em: 08 abr. 2009.DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21 ed. 2º reimpr. São Paulo: atlas, 2008.HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Annablume, 2005.HARVEY, David. O Novo Imperialismo. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias, 4º ed. São Paulo: Centauro, 2006.MACEDO, Sílvio Soares. Paisagem, litoral e formas de urbanização. In: BRASIL, Ministério do Meio Ambiente e Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Projeto Orla: Subsídios para um Projeto de Gestão. Brasília, 2004. p.45-64MARÉS, Carlos Frederico. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003.MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. Introdução de Eric Hobsbawm. São Paulo: Paz e Terra, 1991.SAULE JÚNIOR, Nélson. [et al.]. Manual de Regularização fundiária em Terras da  União. São Paulo: Instituto Pólis; Brasília: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2006.SILVA, A. F. C.; FERREIRA, A. L. A.. Para Além do Muro Alto: turismo imobiliário e novas configurações sócio-espaciais na região metropolitana do Natal. In: VALENÇA, M. M.; BONATES, M. F. (Org.). Globalização e Marginalidade: o Rio Grande do Norte em foco. Natal: EDUFRN, 2008, v. 2, p. 457-467.SILVA, A. F. C.; BENTES SOBRINHA, M. D. P.; CLEMENTINO, M. L. M.. Novas Tipologias Perante a Expansão do Capital Imobiliário Turístico em Natal. Cadernos Metrópole (PUCSP): 2006, v. 16, p. 141-162.SMITH, Roberto. Propriedade da Terra e Transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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ORGANIZAR-SE PARA DESORGANIZAR: O PLURALISMO JURÍDICO COMO UM INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, E AS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NO MLB

Magnus Henry da Silva Marques1

Saulo Araújo Medeiros2

1. INTRODUÇÃO

A realidade dos países do capitalismo periférico, dentre eles o Brasil, é injusta quando se trata de um acesso igual aos serviços públicos. A imposição de princípios liberais aprofunda ainda mais as desigualdades classicistas, uma vez que traz consigo a falência dos órgãos públicos garantidores de direitos fundamentais como a educação, o transporte, a moradia, entre outros.

A teoria monista do Direito, nesse tipo de sociedade marcada por profundas desigualdades, pode ser contrária ao objetivo maior dos dispositivos jurídicos que é a promoção da Justiça. Tendo em vista que o acesso às instituições democráticas e à vida pública não é igual para todos, a formulação das normas estatais favorece a apenas um determinado grupo social, no nosso caso, uma elite muitas vezes perversa. É visível o caráter excludente do Direito no nosso país quando relembramos a Lei de Terras de 1850 que dificultou o acesso à terra a diversos brasileiros, e também o caráter elitista do Código Civil de 1916.

Não são apenas as leis escritas as responsáveis pela ineficácia do Direito. As decisões do poder judiciário, de magistrados ligados aos formalismos e distantes dos anseios sociais também são coniventes com a propagação de um sistema opressivo e não garantidor da Justiça. Os conflitos coletivos por efetivação de direitos muitas vezes são decididos mediante a aplicação de uma lei injusta e opressora como no caso de Diadema citado por Wolkmer. Nesse caso o juiz Antonio da Silveira decidiu de forma contrária às reivindicações populares e em favor de uma única pessoa, mandando executar a reintegração da posse, liminarmente, acabando com a ocupação em uma área de 240 mil metros quadrados no Jardim Inamar. A execução dessa decisão causou conflito

1 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, tendo cursado um período em mobilidade acadêmica externa do curso “Droit et Science Politique” na Université Lumière Lyon 2. Atualmente é mestrando na Universidade de Brasília no Programa de pós-graduação em Direito. Associado ao Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), participa do Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos em comunidades inígenas e urbanas e do Escritório Popular. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos, Constitucionalismo latinoamericano, filosofia do Direito e Teoria do Estado. - http://lattes.cnpq.br/96569943559569992 Graduando do Curso de Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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entre os moradores e a polícia militar resultando em 80 pessoas feridas e 2 mortos.3

Devido à ausência estatal nos países de capitalismo periférico dentro de vários espaços da sociedade, da inobservância de sua ação para garantir direitos existenciais dos cidadãos, surgem conflitos de natureza coletiva entre grupos sociais. De um lado estando um grupo que luta pela efetivação de seus direitos básicos, os movimentos sociais, e do outro uma elite reacionária e conservadora apoiada pelo Direito Positivo estatal.

O surgimento desses grupos organizados, que procura se contrapor a essa suposta ordem, objetiva desorganizar esse sistema opressor que os exclui, promovendo uma efetiva emancipação da sociedade. Assim sendo, essa desorganização não está relacionada com a geração de uma realidade caótica, mas sim, da reorganização da estrutura social permitindo uma igualdade de oportunidades, de fato, a todos.

Buscamos estudar o fenômeno do Pluralismo Jurídico como um meio de efetivação da democracia e dos direitos existenciais no capitalismo periférico. Nossa análise foi feita a partir da revisão da literatura sobre o assunto, da aplicação de 100 questionários através de entrevista realizados pelos membros do núcleo urbano do programa Lições de Cidadania na comunidade Leningrado em Natal/RN para verificar a ausência do Estado, e de uma entrevista com o líder do Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas, e Favelas (MLB), Wellington Bernardo, através de e-mail.

2. HISTÓRIA E CONCEITO DO PLURALISMO JURÍDICO

Antes de conceituarmos o fenômeno do pluralismo jurídico nós devemos fazer um resumo da sua história e, quiçá, cada um tirar seu próprio conceito sobre essa questão.

Pode-se considerar que já na pré-história existia uma certa organização jurídica que poderia ser tratada como um possível início para a diversidade de normas. Nas sociedades de então (vale ressaltar que os grupos sociais daquela época não possuíam os mesmos moldes dos atuais) já era possível se perceber a existência de várias formas de direito mesmo que não fossem escritos. Em um período no qual pouco se tinha conhecimentos científicos, a religião tomava pra si a necessidade de criação de mitos que justificasse diversos fatos do cotidiano assim como a criação de normas que controlassem os grupos sociais. Portanto os direitos de cada grupo, naquela época, eram fortemente carregados por um conceito religioso, que também era plural, acarretando o surgimento de inúmeras ordenações jurídicas. Esse controle geralmente se dava pela criação

3 WOLKMER, 2001, p.99-100.

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de tabus pelas religiões, que caso fossem descumpridos, o sacerdote poderia estabelecer penas para o infrator. Alguns dos primeiros códigos de direito conhecidos são o de Ur-Nammu (cerca de 2040 a.C.), o código de Esnunna (1930 a.C.), o código de Hamurábi (1694 a.C.), as tábuas de Mari (1650 a.C.) e os códigos assírios (desde 1950 a.C.).

Dando um salto na história e chegando à Idade Média observa-se ainda mais evidentemente a existência do pluralismo jurídico. Tratando sobre esse assunto nessa época, John Gilissen afirma:

O Direito das etnias germânicas era essencialmente consuetudinário. De facto, não havia ‘um’ direito germânico, mas uma variedade de costumes, mais ou menos diferentes, vivendo cada povo segundo o seu próprio direito tradicional; a situação era semelhante à de qualquer outro povo arcaico.4

Em uma época marcada pela descentralização política, por uma sociedade essencialmente rural e pela dificuldade de comunicação, o terreno ficou fértil para que os vários grupos sociais se fechassem a seus espaços físicos, o espaço do feudo, levando cada um desses a formarem seus próprios regramentos internos, caracterizando-se como um sistema plural de normas. Apesar disso, podemos citar algumas leis que foram vigentes em algumas regiões, não se limitando aos feudos, entre elas a Lex Sálica, a Lex Ribuaria e a Lex Saxonum. Toda essa conjuntura favoreceu a inexistência de um direito hegemônico, mas sim do prevalecer de uma diversidade de pequenos ordenamentos jurídicos.

Em contraposição a esse contexto, ao passo que o sistema político-econômico feudal entrava em decadência e o estado absolutista forte e centralizador surgia, abria-se espaço para a unificação do direito dentro de cada Estado Nacional, formando-se um direito hegemônico. Um dos principais exemplos da positivação e da sistematização do direito é o Código Napoleônico de 1804. Porém tal fato não acarretou a extinção do pluralismo jurídico, mas deu-lhe a posição de um direito informal, uma vez que está paralelo ao do Estado e muitas vezes os dois até se chocam. Isso decorre de o direito estatal ser carregado por uma ideologia burguesa, excluindo os grupos sociais de menor poder aquisitivo. Então, uma vez marginalizados pelo próprio poder estatal, esses sentem a necessidade de ter um regramento próprio como acontece em favelas, ocupações dos movimentos sociais, penitenciárias como forma de suprir o que o governo promete, o que a constituição garante, mas nada é cumprido.

Ao fim de toda essa retrospectiva histórica sobre o pluralismo jurídico, nota-se que esse é um fenômeno antigo e até pré-histórico, porém seu estudo é uma atividade recente, que vem se intensificando nas últimas três décadas e, por isso ainda é carregado de diferenças na sua conceituação. Diversos

4 GILISSEN apud LEMOS FILHO 2005, p.161

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estudiosos do fenômeno dão conceitos próprios como Wolkmer e Ana Sabadell. Para ele a existência de normas paralelas às do Estado são nada mais que a “consolidação de direitos plurais informais, com mais legitimidade que as decisões impositivas do Direito Estatal, provenientes de sujeitos coletivos e segmentos populares”5. Assim sendo, Wolkmer (apud, BRANDÃO; BRANDÃO, 2006) defende que a pluralidade de normas não anula o Poder Judiciário Estatal, mas sim que eles atuam paralelamente, dependendo de onde elas serão postas em prática. Se for em locais onde o Estado está presente, as normas positivadas serão eficazes, mas se for em locais onde há a ausência dessa unidade governamental as normas locais, criadas por aquele povo, serão as buscadas em primeira instância.

Por outro lado, Ana Sabadell (apud, BRANDÃO; BRANDÃO, 2006) dá uma conceituação diferente para pluralismo jurídico. Ela denomina as normas com diversas origens, que não a Estatal, de infradireito ou fenômenos infrajurídico.

Trata-se, na verdade, de sistemas de controle social não oficiais, que concorrem com o direito (estatal), mas que não têm o poder de substituí-lo. Os fenômenos infrajurídicos constituem sistemas de regras de comportamento, cuja vigência é limitada e fluida, faltando sanções obrigatórias e reconhecimento oficial.6

Para essa autora as normas oriundas de grupos sociais têm uma facilidade muito grande de se adaptar a dinâmica social. Isso acarreta uma instabilidade jurídica, uma vez que nem os próprios componentes do grupo conseguem acompanhar o período de vigência de diversas normas. Além disso, elas são limitadas a pequenas regiões como favelas, ocupações de movimentos sociais e presídios, sendo específicas para cada grupo, não alcançando uma unanimidade nas regras. Em virtude disso, Sabadell considera que, jamais, essas normas conseguiram alterar as normas jurídicas estatais. Sabatell (apud, BRANDÃO; BRANDÃO, 2006) ainda reforça dizendo que a afirmação desse direito paralelo ignoraria as especificidades do direito moderno estatal como a certeza, a centralização, a estabilidade, a execução assegurada pelo emprego de violência legal e legítima, aplicação por juristas profissionais e, sobretudo, utilização da forma escrita que fixa as regras7.

3. A FALÊNCIA DO MONISMO JURÍDICO E DO JUDICIÁRIO

A raiz da crise da jurisprudência estatal está na sua legitimação. O monismo jurídico como hoje existe tem suas bases no movimento racionalista que foi o responsável pela criação das teorias e das ideologias responsáveis

5 Doc. On-line, não paginado.6 Doc. On-line, não paginado.7 Doc. On-line, não paginado.

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pela justificação do poder burguês. O Direito, para a teoria monista, se origina unicamente do poder estatal e seu grande foco é a sanção, o uso da força como forma de repressão.

A estrutura do Estado, em países como o Brasil, garante que apenas uma parcela da sociedade tenha acesso a ela, ou seja, as decisões dos poderes públicos (legislativo, executivo, judiciário) não favorecem a todos, apenas àqueles que comandam a máquina estatal. Essa estrutura típica do capitalismo periférico desvia o Direito de sua função ideal, transforma-o em um mero instrumento de controle do discurso8 e garantidor de um status quo opressor e desumano.

Não explicitamente, o modelo institucionalizado de produção legislativa e judiciária, aliado com outros mecanismos de dominação como a educação bancária9, impede a participação de grande parte dos cidadãos na vida pública, permitindo que a elite econômica se favoreça do poder público, esquecendo das obrigações estatais de garantir direitos básicos (existenciais ou não) de toda a população. Outro garantidor dessa realidade é o caráter quase hermético do conhecimento jurídico, o Direito Positivo Estatal se utiliza de uma linguagem própria e procedimentos complexos que impedem o cidadão comum de conhecê-lo de fato. Aliado a isso, temos um ensino jurídico elitizado e pouco preocupado com a realidade em que o direito se insere e com a contextualização dos estudantes nos assuntos mais polêmicos como os de gênero, a questão da terra, os movimentos sociais, entre outros. Esse tipo de formação é um dos grandes responsáveis de decisões judiciais preconceituosas como a do caso Richarlysson10.

Até hoje não se conseguiu promover um acesso democrático à Justiça. Ainda temos um sistema processual moroso e caro que desestimula os cidadãos e os sujeitos coletivos (movimentos sociais) a procurarem os órgãos do judiciário para resolver seus conflitos e resguardarem seus direitos, tendo de recorrer a mecanismos “não-oficiais” para terem suas demandas atendidas. A cultura positivista e monista impregnada nos profissionais do Direito, tendo em vista a problemática (possível falência) da nossa democracia representativa e da produção legislativa, “infeccionam” todo o poder judiciário, transformando-o em um instrumento em favor das elites, despreparando-o para tomar decisões sobre conflitos coletivos, não os resolvendo. Sobre isso Wolkmer afirma que:

Pode-se perfeitamente verificar que tanto o Poder Judiciário quanto a legislação civil, ambos refletem, tendo presente a especificidade brasileira, as condições materiais

8 Cf. FOUCAULT, 2006.9 Para uma maior explanação sobre a educação bancária e a prática de uma pedagogia libertadora Cf. FREIRE, 1987.10 Os advogados do jogador de futebol ajuizaram uma ação por conta de um comentário feito pelo diretor administrativo do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, em junho de 2007 em um programa exibido pela TV Record. O caso em questão ganhou grande notoriedade graças à decisão do juiz da 9ª Vara Criminal de São Paulo movido por uma evidente homofobia. A sentença foi amplamente divulgada na internet.

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e interesses político-ideológicos de uma estrutura de poder consolidada, no início do século, no contexto de uma sociedade burguesa agrária-mercantil, defensora de uma ordenação positivista e de um saber jurídico inserido na melhor tradição liberal-individualista11.

Além disso, vivenciamos também uma crise no sistema penal punitivo. O Jus Puniendi, nas mãos de quem controla o Estado, garante o status quo, não sendo, portanto, um protetor da vida em sociedade, mas um garantidor do sistema social vigente. Sendo assim, o sistema punitivo como implantado agora, tem seu alvo já pré-estabelecido, apesar de ser tido como funcional a todos, a punição é de fato imposta, geralmente, apenas aos oprimidos da sociedade, aos “excluídos” do contrato social. Há, na realidade, uma punição por ser pobre, a pena é imposta tendo em vista o perfil do infrator e não do delito. É constatada, também, a pouca eficácia da pena mais usual, a restritiva de liberdade, na ressocialização. Esse tipo de pena, nas reais condições de nossos presídios, na verdade se comporta como uma estrutura que marginaliza determinados setores da sociedade, um transgressor dos direitos humanos.

A pesquisa feita no Leningrado retrata perfeitamente a negligência estatal na busca pela garantia dos direitos sociais – regulados pelo capítulo II da nossa Constituição Federal. O art. 6º CF garante aos cidadãos brasileiros direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, e a alguns outros. Entretanto o Estado não cumpre com seu dever de promovê-los a todos.

O Leningrado, uma das maiores conquista do MLB, é uma comunidade localizada no bairro Planalto habitada por pessoas a quem anteriormente lhes foram negado o direito à moradia. Mas adianta só a casa? Apenas duas estradas levam à comunidade que é cercada por dunas e por vegetação, o caminho até a parada de ônibus mais próxima é sem iluminação e longa. Muitos dos entrevistados reclamaram da dificuldade em sair para trabalhar ou levar os filhos para a escola, relatando, inclusive, casos de estupro, assalto e assassinato no caminho que leva os moradores do Leningrado aos demais lugares. Um melhor acesso à comunidade permitiria que a população pudesse exercer os seus outros direitos.

Apesar de o isolamento ser o maior dos problemas, ele não é o único. Houve muitos que reclamaram da segurança, e alguns dos que consideraram a comunidade pacífica afirmaram que ocorriam assaltos com frequência. Um dos moradores afirmou que o seu único lazer era assistir aos roubos que ocorriam nas ruas.

Os dados mais importantes para o assunto aqui tratado são tão alarmantes quanto esses. Dos moradores que precisaram buscar o poder judiciário, a maioria teve auxílio de advogados particulares. Um número maior ainda (62) disse não conhecer a Defensora Pública e nem o Ministério Público (65), órgãos

11 WOLKMER, 2001, p. 87

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tão fundamentais para a democratização da Justiça. Quando questionados se achavam as leis justas, muitos responderam que elas favoreciam apenas a alguns, e que por isso não as consideravam como tal.

Causou-nos um grande impacto constatar que 82 dos entrevistados não conheciam a tão idealizada e consagrada Constituição Cidadã. Embora ela seja considerada pelos acadêmicos e juristas como a Lei Maior, a grande reguladora da ação estatal, esse dado nos mostra que para os cidadãos comuns sua existência se passa despercebida visto que muitos dos direitos contidos nela não são efetivados.

Não fica clara, destarte, a legitimidade das leis estatais para esses cidadãos excluídos do contrato social. A busca pela diminuição das desigualdades, pela efetivação da justiça e pelo aperfeiçoamento da democracia parece exigir que as comunidades excluídas regulem a resolução dos seus próprios conflitos através de regras nascidas do consenso entre os sujeitos individuais que a compõem.

4. OS MOVIMENTOS SOCIAIS NA LUTA PELA EFETIVAÇÃO E CRIAÇÃO DE DIREITOS, E A PRÁTICA DE UMA JUSTIÇA PLURAL E PARTICIPATIVA

A situação opressiva dos países do capitalismo periférico e o grande número de conflitos, não só individuais, mas principalmente coletivos, permite que surjam sujeitos que lutem pela real efetivação da democracia e por seus direitos existenciais. Um Estado ineficaz e um sistema judicial extremamente formalizado, burocrático, lento e dominador provocam um desconforto em alguns dos excluídos, que verificando as desigualdades existentes, não se conformam e lutam para desfazê-la.

Esses sujeitos coletivos são berçários de novos direitos, o mais eficaz caminho para exigir que o Estado cumpra o seu dever, e de tornar a democracia possível. Indignados com a primazia da ética de mercado, os movimentos sociais procuram ser ouvidos e atendidos pela sociedade, tentando fazer da ética Humana o motor da sociedade. O monopólio legislativo por parte das elites dificulta a ação desses grupos e o atendimento de suas reivindicações, usando do seu poder criador de leis para criminalizar a ação dos oprimidos que procuram desfazer essa ordem opressiva, como dissera Paulo Freire, indo de encontro à vocação humana de ser mais12.

A mais legítima das fontes do Direito é o povo e não o Estado. São as necessidades e evolução da sociedade que deveriam mover a capacidade legislativa do poder público. Uma das maneiras de os cidadãos positivarem as suas demandas sem se submeter às vias extremamente formais e muitas vezes ineficazes permitidas pelo Estado são os movimentos sociais, os sujeitos

12 FREIRE, 1987

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individuais não favorecidos pela administração pública tornando-se coletivos. Sem a movimentação do povo não haveria hoje a emancipação feminina, sem a luta popular não haveria CLT. Assim, fica evidente a grande importância das ações desses sujeitos coletivos para a realização da Justiça, concretização de direitos existenciais, garantidos ou não por um Direito Positivo, de fiscalizar a ação estatal tentando impedir que se perpetuem as negligências constatadas no tópico anterior e de tornar digna a sobrevivência dos “esfarrapados.”

A existência e sobrevivência desses sujeitos coletivos não institucionalizados exigem que os mesmos possam se auto-regular. O Direito positivado não atende às suas necessidades, dessa forma, é fundamental para os movimentos sociais uma organização interna que atue como o judiciário, regido por leis próprias nascidas do consenso dos participantes do movimento. Diferentemente do judiciário estatal, a sanção dessas normas não se baseiam na força ou repressão, mas sim na retórica e na persuasão “centradas na cooperação dialógica entre subjetividades individuais e coletivas” (WOLKMER, 2001, p. 294).

As injustiças causadas pelos órgãos responsáveis pela aplicação do Direito deslegitimam o consagrado monismo jurídico que foi tão defendido por positivistas como Hans Kelsen. Ordenamentos distintos surgem para suprir as suas falhas. As leis criadas pelos movimentos sociais garantem requisitos básicos de sobrevivência, e ainda são formuladas pelos próprios participantes da luta. A jurisprudência também é feita pela comunidade, havendo uma participação de todos os sujeitos individuais na administração da Justiça. O Direito Comunitário retira o monopólio da jurisprudência e do conhecimento jurídico das mãos dos juízes e intelectuais provenientes, em sua maior parte, da elite da sociedade, e os torna acessível a todos13.

Esse tipo de pluralismos jurídico é libertador e respeitador das autonomias comunitárias, impede ainda que a jurisprudência sirva de instrumento de opressão pelas elites que comandam o poder estatal. Um paradigma jurídico baseado no pluralismo e na participação do povo na prática da justiça é, sem dúvida alguma, uma opção mais democrática que o monismo jurídico.

5. A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NAS OCUPAÇÕES DO MLB

O MLB é um movimento nacional fundado em Pernambuco em 1999 cujo lema é “Lutar pela reforma urbana e pelo socialismo!”. Ele surgiu em resposta à negligência do setor público com uma parcela significativa da população, procurando assim, garantir uma vida digna a diversos moradores e trabalhadores do cenário urbano. Sua luta não se limita a busca por casas, mas sim por uma moradia digna, para que todos tenham acesso à saúde, ao

13 WOLKMER, 2001, p. 300

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emprego, a uma boa educação, ou seja, reivindica igualdade de oportunidades. A proposta do movimento também se estende à busca de uma melhor relação de gênero, aliando-se, assim, a vários setores feministas.14

A necessidade de auto-gestão do movimento, destarte, exige a criação de regras de convivência que todo participante das ocupações precisam seguir. As sanções dadas aos infratores surgem de um consenso da comunidade, e não é baseado na repressão. São três as formas de pena: uma advertência, a perda do direito de voto nas assembléias, e nos acontecimentos mais graves ou de reincidência, o membro infrator pode ser expulso da comunidade. Os casos de infrações mais leves são resolvidos pela coordenação do movimento, os mais graves (em maior parte aqueles em que o transgressor pode ser expulso), depois de passar por ela, são levados às assembléias para que toda a comunidade possa julgar.

As regras para permanência dos membros do movimento são simples, por exemplo: é proibido roubar (aquele que for flagrado pode ser expulso se a assembléia assim decidir), deve-se pagar uma contribuição para a efetivação da luta, todos votam nas assembléias, dentre outras. A preocupação com uma relação justa entre os gêneros também se faz presente nas suas normas de convivência, o membro que bater na mulher levará uma advertência da coordenação, se a prática persistir, na terceira vez, o membro é expulso da comunidade.

Questionamos ao líder do movimento se seus membros costumam procurar o Estado para resolver os conflitos nascidos dentro da ocupação, e o mesmo respondeu que a grande maioria dos casos é resolvida pela própria comunidade, visto que a Justiça estatal é lenta, enquanto as assembléias, palavras dele, agem rapidamente. Segundo Wellington, os conflitos mais recorrentes dentro dos assentamentos são as brigas de casais, pequenos furtos e discussões entre vizinhos.

A prática da justiça dentro do MLB exemplifica o tipo de pluralismo proposto nos itens anteriores, sua existência se justifica na perda da legitimidade do Estado para decidir sobre os conflitos surgidos dentro dos próprios movimentos sociais, e pela sua ineficácia em responder às suas demandas.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar do grande esforço midiático e das classes centrais da sociedade hodierna em ridicularizar as ideologias e de tratá-las de forma pejorativa e promotoras de ações irracionais, o próprio monismo jurídico não está livre

14 Maiores informações sobre as propostas e demandas do MLB estão disponíveis no site do movimento (http://www.mlbbrasil.net/)

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delas. Sua permanência como paradigma para as formulações sobre jurisdição é responsável por manter o poder nas mãos de poucos e pela sobrevivência de um sistema desigual e opressor nos países de mesma situação que a brasileira. Defendendo, assim, um capitalismo feroz e excludente que não protege os direitos básicos de sobrevivência para toda a população, mas apenas para uns poucos privilegiados.

Aqueles que defendem a primazia do ordenamento estatal sobre os nascidos da comunidade afirmam que esse pluralismo comunitário-participativo acarretaria uma insegurança jurídica, uma desestabilização das relações legais, como assim verificamos no posicionamento de Sabadell. Com as nossas pesquisas verificamos o contrário. O poder de legislar e de resolver conflitos concentrados apenas nas mãos de alguns, na verdade são grandes motivadores do surgimento de diversos conflitos comunitários, enquanto que nas ocupações do MLB verificamos que o ordenamento originado do próprio consenso de seus moradores é o responsável por regular as relações sociais, alcançando, com muito maior eficácia, a pacificação da comunidade.

Tendo em vista a excessiva e proposital formalização da atividade jurisdicional e legislativa hoje vigente que dificulta a aquisição de direitos, o pluralismo aparece como uma alternativa muito mais dinâmica, justa e democrática, e que respeita as peculiaridades de cada localidade. A sua legitimação não é a autoridade, mas a capacidade e possibilidade de deliberação e diálogo de cada sujeito individual.

A teoria que prega a preponderância do Direito estatal, nos países menos desenvolvidos e marcados pelas injustiças da desigualdade classicista, se revela um mecanismo em favor de uma elite agrária e endinheirada. É imprescindível transformar o Direito em um fomentador da Justiça e de transformações sociais que garantam uma sobrevivência digna a todos os cidadãos. Tendo em vista que o paradigma então vigente não foi capaz de fazê-lo, fica evidente a necessidade de formulações teóricas menos excludentes.

O Direito Alternativo é fundamentado na prática popular, e sua propagação tornaria possível um maior controle sobre as ações do Estado e a efetivação de Direitos emergentes das novas relações sociais e “necessidades humanas fundamentais”. A aceitação de um ordenamento jurídico popular possibilitaria o rompimento com as estruturas formais que aprisionam o Direito e o torna manifestação da vontade de algumas poucas classes. Permitiria que ele fosse originário das lutas, conquistas, anseios e deliberações populares15, lhe dando maior legitimidade.

A substituição do paradigma jurídico pelo pluralismo comunitário-participativo é, dessa forma, um meio de permitir a autonomia da sociedade em geral, e principalmente, daqueles grupos não favorecidos pelo Positivismo

15 WOLKMER, 2001, p. 304

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Jurídico Estatal. O pluralismo proposto na obra de Wolkmer é o mesmo que verificamos na nossa pesquisa realizada no MLB, uma vez que ele é de cunho libertador e emancipatório, baseado na participação de toda a comunidade na resolução de conflitos.

O proposto não é o desaparecimento do ordenamento criado pelo Estado, mas sim o fim da hierarquia existente entre ele e aqueles provenientes espontaneamente das relações civis. Permitindo que a sociedade se auto-regule e busque a real efetivação de um valor há muito esquecido pelas elites: a Justiça. As lutas dos sujeitos coletivos por uma vida digna e suas práticas jurisdicionais não devem ser silenciadas, pois esse ato mesquinho e egoísta de negligenciar as suas requisições e seus direitos desfaz o trajeto humano rumo à democracia.

Organize yourself to litter: Legal pluralism as an instrument for the empowerment of social movements and forms of conflict resolution in MLB.

ABSTRACT

The countries of periferic capitalism as Brazil don’t guarantee the access of its population to  public services, causing the deepening of social inequalities and, consequently the start social groups excluded. This absence of the state is sponsored by the legal monism, wich doesn’t promote an effective access to justice. What’s more has the contributing of juridic decisions, that there are very conservative, becoming accessary to the oppressive and unjust system.  Because of this conflicts between the dominant class versus oppressed class emerges. These new movements  fight for realizations of their rights. While they don’t have a state law guaranteed, they do their own laws. We call this legal pluralism. This phenomenon permits the social organization where the State doesn’t arrive. Wanting to know more about this reality, the urban nucleus of Lições de Cidadania applied one hundred questionnaires in Leningrado community in Natal/RN, and also interviewed the leader of Movimento de Luta em bairros, vilas e favelas (MLB) in the same city, Wellington Bernardo, trough e-mail. The knowledge was completed with the reading of several book about the subject. At the end we proved that the social movements organize themselves in order to disrupt the current social structure and build a new model where they are also inserted.

 Keywords: law; juridic pluralism; social movements

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REFERÊNCIAS

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FAVELA DO TRANQUILIM: UMA JUSTA RAIVA ACHADA NAS RUAS

João Paulo do Vale de Medeiros1

A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de

“ser mais” inscrito na natureza dos seres humanos (Paulo Freire)

1. INTRODUÇÃO: RESISTÊNCIA NO SEMI-ÁRIDO NORDESTINO

O nordeste brasileiro é uma região historicamente desprezada. Seu processo de colonização/exploração, seguido pelo cultivo da cana-de-açucar e agravado pela política coronelista e de latifúndio fez dele uma das regiões mais pobres do país. Fatores esses que, aliados às secas frequentes, afastaram o homem do campo, empurrando-o para os grandes centros urbanos, gerando com isso o inchaço populacional e em consequência o déficit habitacional.

Em contrapartida, os poderes estatais não conseguem dar respostas às demandas populacionais básicas, nem o direito dito oficial se propõe a operar qualquer mudança nesse quadro, ao contrário, por vezes atua como criminalizador das camadas populares que se utilizam de metodos alternativos para efetivação de seus direitos.

Nesse cenário, os movimentos populares reagem à seu modo, de forma organizada ou instintiva, buscam o reconhecimento e efetivação de seus direitos por meio da resistência ativa que a situação de espoliados legitima. Dada essa realidade, o povo nordestino segue sendo antes de tudo um forte, como assentou Euclides da Cunha em “Os Sertões”, bem como Francisco Julião,2 um dos principais líderes das heróicas ligas camponesas:

O nordeste sempre deu boas lições de história; sempre foi uma região sensibilizada e sempre se pôs à frente dos grandes movimentos libertários desse país. Não é de admirar que, se não encontramos uma saída pacífica, legal para este problema de base, tal como a reforma agrária, isso bem pode conter em seu bojo a própria revolução brasileira. Se surgir, pois, um convulsão nesse país, o nordeste não poderá permanecer

1 É professor da graduação em direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e da especialização em direitos humanos da mesma universidade. Possui graduação em direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2009). É especialista em Direitos Humanos pela Universidade do Rio Grande do Norte (2012) e mestre em Meio ambiente e desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2013). É coordenador do Projeto Ser-tão de assessoria jurídica e educação popular no semiárido. Advogado popular. Atualmente pesquisa nas áreas de Direitos Humanos, direito agrário, direito crítico e pluralismo jurídico - http://lattes.cnpq.br/5940183303013046. E-mail: [email protected] STEDILE, João Pedro. (Org.) A questão agrária no Brasil: história e natureza das Ligas Camponesas- 1954-1964. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 170

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alheio, porque ele tem um general formidável comandando a região, que é o general-fome.

Esse panorama de forma alguma é exclusividade da parte nordeste do Brasil, em todo território nacional encontramos discrepâncias sociais gritantes, bem como grupos populacionais insurgentes. Não obstante, por seu processo de colonização e suas condições climáticas desfavoráveis (secas freqüentes), o nordeste, em especial a região semi-árida, ainda se apresenta como retrato da desigualdade social no país.

Com efeito, impulsionados pelo “general-fome” e seus comandantes desemprego, exploração e falta de moradia, as populações excluídas começam a construir por elas mesmas a sua realidade social, ao passo que, ainda que contra legem, criam um novo direito, não mais atrelado aos vícios de um Estado sob bases capitalistas, mas agora adequado às suas demandas sociais, com os ascepções de justiça e participação democrática.

Aqui trataremos da experiência da Comunidade do Tranquilim, em Mossoró/RN, ocupação urbana que de forma instintiva e na justa raiva constroi o seu direito na rua.

2. A FAVELA DO TRANQUILIM

A comunidade do Tranquilim, ocupação urbana com cerca de 500 famílias, situa-se na cidade de Mossoró/RN, semi-árido nordestino, “onde o sol seca e resseca tudo que existe”3. Com 259.886 habitantes4 e uma política econômica baseada na extração de sal e petróleo, além de monocultura de exportação, Mossoró enfrenta os principais problemas de uma cidade em crescimento, destacando-se o déficit de moradia e a favelização.

Os primeiros barracos que dariam origem à atual comunidade apareceram por volta do ano 2000 de maneira desordenada e expontânea. Famílias inteiras de sem-tetos se destinavam diariamente a um grande terreno baldio na porção leste da cidade. Lá começariam a instalar seus barracos feitos à base de madeira, barro e papelão. Assim, sobre o chão vermelho e seco nasceram dezenas de vielas estreitas e desconexas, que passados mais de 10 anos abrigam cerca de 3.000 mil pessoas, entre crianças, adultos e idosos.

Hoje seus habitantes convivem diariamente em meio a animais, doenças e a ausência total de serviços públicos regulares. O saneamento básico é inexistente, nenhum barraco conta com banheiro. Toda a água da comunidade é retirada de um único ponto de distribuição e a energia elétrica é irregular,

3 BRANDÃO, Carlos Rodrigues de. O que é método Paulo Freire. São Paulo: Editora Brasiliense. 1985.4 Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Censo Demográfico 2010 - Disponível em: <ibge.gov.br> Acessado em: 18 de abril de 2011.

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usufruida por meio dos conhecidos “gatos”. Assim vivem os moradores do “Tranquilim”, cuja origem semântica do

nome que remete à tranquilidade não condiz com a realidade. Seus dias são traçados entre a luta pela sobrivência diária e a irresignação perante o poder público, através de protestos, ocupações e resistências ao poder policial. Desda forma operam a construção de seus direitos à margem de qualquer processo tecno-legislativo formal, como à frente comentaremos.

3. MONISMO POSITIVISTA ESTATAL: UM DIREITO MORIBUNDO

É bem verdade que o objetivo principal desse trabalho é a análise do fenômeno do pluralismo jurídico manifestado nos movimentos populares, em especial na ocupação urbana do Tranquilim. Porém, torna-se imperioso que, antes, à título de aprofundamento na dialética, façamos um recorte e nos debrucemos também sobre o monismo jurídico, para que melhor entendamos a necessidade de sua permuta por um “novo” direito, agora plural e participativo.

O que seria, então, monismo jurídico e como ele se manifesta? Para responder a essa indagação, trazemos a conceituação oferecida por Antônio Carlos Wolkmer,5 um dos maiores pesquisadores da relação monismo-pluralismo jurídico na atualidade. Segundo Wolkmer, o monismo jurídico “atribui ao Estado Moderno o monopólio exclusivo da produção de normas jurídicas, ou seja, o Estado é o único agente legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas de relações sociais que se vão impondo”.

Sob tal ótica, todo o direito nasce no Estado, não o sendo aquele originário de outra fonte que não a estatal. Mais, o único sujeito capaz de dar aplicação e efetividade ao direito é o próprio Estado, detendo, pois, o monopólio de sua gênese, sustentação e aplicação por meio de normas positivadas.

Partindo do pressuposto de que a concepção de direito em dada sociedade é fruto da totalidade de suas estruturas organizativas sociais, recheada de seus interesses e concepções ideológicas, não há como analisar um pensar jurídico em sua profundidade “se não for identificado a que tipo de organização social está vinculado e a que espécie de relações estruturais de poder, de valores e de interesses reproduz”6.

Assim, o monismo positivista nasceu atrelado à sociedade capitalista burguesa, sob forma de mutualismo, ajudando a construir e que sobre sua base foi construído. Como nos lembra Weber7 “o moderno capitalismo racional não necessita apenas de meios técnicos de produção, mas também de um

5 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. 3ª Ed. São Paulo: Alfa Ômega, 2001. p. 466 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. São Paulo: Alfa Ômega, 2001. p. 267 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2ª Ed. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 31.

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sistema legal calculável e de uma administração baseada em termos de regras formais”.

No mesmo sentido, Wolkmer8 afirma que nosso sistema jurídico positivo-monista “não existe por si só, como instância autônoma e acabada, mas que realiza, num alto grau de racionalização, as condições de produção econômica capitalista, da sociedade liberal-individualista [...]”

Concebe-se, desta forma, que a estrutura jurídica formalista foi concebida desde o seu início para assegurar os privilégios de uma determinada classe – a burguesa – realidade que se manifesta prolongada nos dias atuais. Nesse contexto, onde a única fonte de produção de direitos passa a ser o seio do Estado, direito e poder chegam a se confundir.

Ao se admitir o direito como fruto apenas de uma vontade estatal positivada que, em regra geral, não representa os anseios da maioria da população, está se legitimando a consolidação dos interesses de uma classe dominante, historicamente no poder.

Assim, através de normas gerais e abstratas, o sistema procura regular a pluralidades de interesses no corpo social. Nesse passo, facilmente se constata que tal “forma da construção do jurídico faz com que haja um distanciamento entre a norma e a realidade social que deveria ser o seu conteúdo básico, e que, se assim fosse, necessariamente, resultaria em uma ordem social mais justa9”.

Thomas More10, em sua obra clássica Utopia escrita no ano de 1516 já nos falava da produção de leis tendo como objetivo a manutenção de um poder estabelecido:

Os ricos diminuem cada dia alguma coisa no salário dos pobres, não só por meio de manobras fraudulentas, mas ainda decretando leis com tal fim. Recompensar tão mal aqueles que mais merecem da república parece-nos à primeira vista uma evidente injustiça, mas os ricos fazem desta monstruosidade um direito, sancionando-os em leis.

Com efeito, não é de se estranhar que tal forma de pensar jurídico não corresponda à pluralidade de interesses imersos na teia social, em particular em um país com elevados índices de discrepâncias sociais. Hoje esse paradigma encontra-se em crise, ao passo que um novo modo de construção jurídico-social emerge das camadas historicamente excluídas do processo de positivação de direitos. Chega-se, portanto, “ao esgotamento do paradigma da legalidade que sustentou, por mais de três séculos, a modernidade burguês-capitalista11”.

8 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. São Paulo: Alfa Ômega, 2001. p.309 FARIAS, Maria Eliane Menezes. As Ideologias e o Direito. In SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org). Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora Unb, 1988. p. 1910 MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Editora Rideel, 2005. p. 155. 11 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. São Paulo: Alfa Ômega, 2001. p.59

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4. JUSTA RAIVA: UMA EXPERIÊNCIA ACHADA NA RUA

A vontade de sobrevivência é inerente ao ser humano, seu impulso de resistência da mesma forma. Paulo Freire12 em sua obra “Pedagogia da Autonomia” expõe muito bem esse espírito libertário, o qual ele nomeia de Justa-Raiva:

Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque, histórico, vivo a historia como tempo de possibilidade e não de determinação. Se a realidade fosse assim porque estivesse dito que assim teria de ser não haveria sequer por que ter raiva. Meu direito à raiva pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo pré-datado, mas um desafio, um problema.

O criador da pedagogia do oprimido relata não só o seu direito de “ter raiva” – que se estende à todos/as – mas expõe de forma clara a historicidade na qual estamos inseridos. Ele justifica a possibilidade de sua justa-raiva em razão de ser “a história um tempo de possibilidade e não de determinação”, mais, continua afirmando que a experiência histórica não é algo formatado e imutável, mas em construção. Assim se dá a construção de direitos.

Continua Paulo Freire:

A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de “ser mais” inscrito na natureza dos seres humanos. Não posso, por isso, cruzar os braços fatalistamente diante da miséria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no discurso cínico e “morno”, que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim. O discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio imposto de que resulta a imobilidade dos silenciados, o discurso do elogio da adaptação tomada como fado ou sina é um discurso negador da humanização de cuja responsabilidade não podemos nos eximir.

As palavras do educador servem como um verdadeiro ode à luta dos oprimidos. Por diversas vezes essa justa raiva anda lado a lado com as injustiças sociais, ao passo que quando detectamos uma situação de opressão, ali também se expressa uma manifestação de resistência.

Dificilmente qualquer morador da Comunidade do Tranquilim tenha lido a Pedagogia da Autonomia ou qualquer obra do gênero, mas sua situação de espoliado deu-lhes a legitimidade instintiva de lutar por seu direito de morar a viver. Assim se expressou a comunidade desde a ocupação do terreno onde hoje se localiza. Com efeito, o fato de construir suas moradas em um espaço que – pelo direito oficial – não lhes pertence e lhes é defesa a posse, já se caracteriza como um ato de resistência de grande porte.

12 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 45

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A justa ira dos moradores do Tranquilim não parou na ocupação do imóvel. Cientes que sua dignidade não se resume à habitação precária e solúvel em barracos de barro e papelão, os moradores construíram um processo sólido de reivindicação de direitos nos três últimos anos.

Destaca-se nesse processo a criação da associação dos moradores do Tranquilim no ano de 2009, que contou com participação popular significativa. Pela primeira vez a comunidade se viu na posse de um órgão deliberativo e representativo, onde os moradores possam levar suas demandas e angústias.

No mesmo ano os moradores participaram em grande número das manisfestações do gritos dos/as excluídos/as13. Por meio de espaços de luducidade como cartazes, faixas e casas em miniatura feitas de papelão, chamaram a atenção da sociedade de forma contundente.

Por esse momento, além da pressão exercidade pela própria comunidade, parte da população do município já tinha conhecimento da realidade por eles enfrentada e se envolvera com a causa, cobrando resposta do poder público municipal.

Com isso, em meados do mês de outubro de 2009 o poder público municipal anunciou a doação de um terreno onde poderiam ser construídas 500 casas. Apesar do imóvel não ter vindo acompanhado da verba para as construção das casas, a comunidade avaliou que foi uma grande vitória de suas lutas, não tendo sido, de forma alguma, benesse do poder público.

No ano seguinte, 2010, por mais uma ocasião a comunidade se fez presente no grito dos/as excluídos/as, e, da mesma forma, levantou-se a discussão sobre a problemática da moradia. De forma concomitante, os moradores buscam periodicamente reuniões com as secretarias municipais (saúde, urbanismo, educação) além de encontros na própria comunidade para discutir suas demandas de médio e curto prazo.

Assim se caracteriza a luta pela construção da cidadania e reinvindicação de direitos da comunidade do Tranquilim, que tem estreitas semelhanças com a luta de outros movimentos espalhados pelo país. A indagação que transparece é única: Teriam os moradores conseguido esse terreno se não fosse sua indignação perante as injustiças que se manifestou em seus atos? A comunidade é harmônica em afirmar que não. Roberto Lyra Filho14, em sua obra clássica “O que é direito”, nos explica bem esse fenômeno que seria batizado de direito achado na rua ao afirmar que “o direito, em resumo se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da justiça social que nela se desvenda”.

O processo de resistência dos movimentos populares se materializa em um fenômeno de pluralismo jurídico que, nas palavras do sociólogo Boaventura

13 O grito dos/das excluídos/das é uma manifestação organizada pelos movimentos sociais que acontece em várias cidades do país que tem por objetivo denunciar as exclusões sociais. 14 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 124

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de Sousa,15 configura-se “sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica”.

No caso em análise, podemos observar a existência de duas ordens jurídicas paralelas. Uma, a ordem do direito oficial monista-positivista, que, não obstante a existência de legislações que proponham a necessidade da função social da propriedade (constituição federal, estatuto das cidades e plano diretor), ainda insiste no paradigma da sacralidade da propriedade privada, a qual se manifesta nas três funções estatais. Na função legislativa, omissa quanto à produção de leis com uma concepção de direito mais coletivo e atreladas ao conceito de justiça. No poder executivo, ineficiente na fiscalização e desapropriação das propriedades onde se configura a especulação imobiliária e não cumprimento da função social. E o judiciário, que, na grande maioria dos casos, defere liminarmente reintegrações de posse em latifúndios inocupados em detrimento de centenas de famílias sem-teto.

A segunda ordem jurídica, ou melhor, processo jurídico, é do direito achado na rua, construído na subjetividade da resistência dos oprimidos, tendo como norte a materialização do conceito de justiça social.

Por vezes os “dois direitos” entram em conflito, momento em que “A reinvindicação do direito de morar emerge da mobilização e da orgnização das ações comunitárias orientadas em movimentos de resistência contra a ação repressiva configurada na derrubada de ‘barracos’”16, De um lado, centenas – ou milhares - de sujeitos de direito e do outro a sacro-santa e especulativa propriedade imobiliária cujo “modelo de produção do espaço urbano, recorrente no sistema capitalista e, ao longo dos anos, assimilado como algo ‘natural’ pela sociedade, leva à apropriação por setores mais ricos do sítio natural e da estruturação urbana17”, que na maioria das vezes é privilegiada pelo poder oficial.

O cancionismo popular expressou através da composição Saudosa Maloca, de autoria de Adoniram Barbosa, o sentimento de angústia que se repete amiúde quando da derrubada dos barracos: “Veio os homi cas ferramentas/ O dono mandô derrubá/ Peguemo todas nossas coisas/ E fumos pro meio da rua/ Aprecia a demolição/ Que tristeza que nóis sentia/ Cada táuba que caía/ Duia no coração18”

Não obstante esse embate constante, mesmo que de forma instintiva, os

15 SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de pasárgada. In SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org). Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora Unb, 1988. p. 4616 SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Um direito achado na rua: o direito de morar. In SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org). Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora Unb, 1988. p. 3817 VALENÇA, Daniel Araújo. Terrenos de Marinha: Terras Públicas com Função Social? Um Estudo da Orla Marítima de Natal. 2010. 180 f. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte. p. 48.18 Disponível em <letras.terra.com.br/adoniran-barbosa/43969> Acessado em: 18 de abril de 2011

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movimentos populares em geral continuam seu processo de reinvindicação de direitos por seus meios alternativos. É por tal razão que necessitamos ter em mente que o direito, antes de qualquer formulação legislativa, nasce nas ruas, na dialética diária enfrentada pelos movimentos sociais, é o direito criado pelos movimentos populares, que muitas vezes é até contra legem, mas sinônimo de justiça.

José Geraldo de Sousa Júnior19 relata bem esse processo:

Fundamentalmente, em face de uma situação que opõe duas pretenções jurídicas antiteticas, a legalidade alternativa da favela constitui sob o pressuposto de que é impossível às classes trabalhadoras, nas sociedades capitalistas periféricas, o acesso à propriedade imobiliária, já que seus direitos sacrificados na espoliação das comunidades marginais são declarados ilegais pelo sistema legal oficial

Continua o mesmo autor20:

Os cenários mais frequentes deste processo tem sido armados nas periferias das cidades e nas áreas rurais onde vem ocorrendo inúmeras manifestações de grupos e classes populares empenhados em afirmar o seu direito de cidadania e em organizar formas concretas de defesa e de promoção dos seus interesses

Com isso o direito começa a despir-se da toga e do latim alienígena. Ensaia passos de pés descalços e pronuncia enxada, terra, porteira e barraco. Assim é a construção dos direitos pelas camadas populares, que cansaram de esperar a positivação estatal. Como lembra Hannah Arendt21 “A lei realmente pode estabilizar e legalizar uma mudança já ocorrida, mas a mudança em si é sempre resultado de ação extralegal”, o qual Wolkmer22 complementa ao afirmar que:

A demanda e a implementação desses “novos” direitos ainda não contemplados – ou, quando reconhecidos, só formalmente, em nível de normas programáticas sem efetividade prática – pela legislação e pelos códigos positivos, na maioria das vezes só são conseguidos ou assegurados através de um processo de lutas comunitárias e conflitos coletivos

É o que acontece hodiernamente na comunidade do Tranquilim e em tantas outras ao longo do país. Luta essa que se manifestou na comunidade de forma mais clara pela última vez às vesperas do Natal de 2010, quando a companhia energética do estado, acompanhada de dezenas de policiais, retirou todo o bastecimento elétrico da comunidade, alegando “irregularidades”, o qual deixou as 500 famílias que ali residem no escuro.

19 SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Um direito achado na rua: o direito de morar. In SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org). Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora Unb, 1988. p. 3820 Id.21 ARENDT, Hannah. Desobediência Civil. Em: ARENDT, Hannah. Crises da República. 2ª Ed. Editora Perspectiva. 1999. p. 73.22 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. São Paulo: Alfa Ômega, 2001. p. 91

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Diante da inércia do poder público municial em resoler a situação, os moradores resolveram por si só construir o seu direito a energia elétrica, mesmo que arriscando as próprias vidas. O ato dos moradores de religamento do abastecimento de energia, baseado na subjetividade de resistencia que lhe é inerente, consegiu ser mais rápido do que qualquer liminar apócrifa de habeas corpus consedida a banqueiro ou reintegração de posse movida por latifundiário.

5. CONCLUSÃO: O DIREITO DE MORAR COMO UMA EXIGÊNCIA ONTOLÓGICA

O sociólogo português Boaventura dos Santos em seus estudos sobre Pasárgada ressaltou o caráter sistêmico da existência de pluralidades jurídicas em áreas relegadas. Conforme o sociólogo23 “A favela é um espaço territorial, cuja relativa autonomia decorre, entre outros fatores, da ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial brasileiro”.

Em parsárgada Boaventura detectou a existência de dois fenômenos de pluralismo jurídico. O primeiro que se manifestava em um conjunto de leis internas que regiam as relações sociais na própria comunidade, regida na maioria dos casos pela associação de moradores. O segundo, o direito de morar, contraposto ao direito oficial de supremacia do interesse da propriedade privada.

No caso do Tranquilim não observamos a construção plural de normas internas de convívio social em concomitância ao direito estatal como em Pasárgada, que, conforme Boaventura, necessita de um alto grau de organização. Não obstante, percebe-se facilmente a criação de um direito – ou direitos – que vão de encontro aos imperativos categóricos das normas positivadas, mas que buscam satisfazer as necessidades materiais e subjetivas das camadas oprimidas.

Com efeito, a justa ira que se insere na história da comunidade do Tranquilim opera a gênese de um processo contínuo de florescência da justiça social, conforme nos lembra José Geraldo de Souza júnior, em seu poema “Pelo Direito de Morar”: Do teu direito humano/fizeste leito/para abrigar teus músculos proletários./No teu direito humano/ Amortalhaste os ossos/No suor de teus esforços/Pelo direito de morar24

Justa raiva essa que é um mosaico de resistência, indignação e esperança, essa última, como afirmou Paulo Freire25, “não por pura teimosia, mas por

23 SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de pasárgada. In SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org). Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora Unb, 1988. p. 46/4724 SOUSA JÚNIOR, José Geraldo.Direito como liberdade: O direito achado na rua. Experiências populares emancipatórias de criação de direito. 2008. Tese de doutorado em direito apresentada à Universidade de Brasília. p. 21225 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e

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exigência ontológica”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Desobediência Civil. Em: ARENDT, Hannah. Crises da República. 2ª Ed. Editora Perspectiva. 1999BRANDÃO, Carlos Rodrigues de. O que é método Paulo Freire. São Paulo: Editora Brasiliense. 1985.FARIAS, Maria Eliane Menezes. As Ideologias e o Direito. In SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org). Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora Unb, 1988FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2003Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Censo Demográfico 2010 - Disponível em: <ibge.gov.br> Acessado em: 18 de abril de 2011.LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1999MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Editora Rideel, 2005SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org). Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora Unb, 1988SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Direito como liberdade: O direito achado na rua. Experiências populares emancipatórias de criação de direito. 2008. Tese de doutorado em direito apresentada à Universidade de BrasíliaSOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Um direito achado na rua: o direito de morar. In SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org). Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora Unb, 1988.STEDILE, João Pedro. (Org.) A questão agrária no Brasil: história e natureza das Ligas Camponesas- 1954-1964. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006. VALENÇA, Daniel Araújo. Terrenos de Marinha: Terras Públicas com Função Social? Um Estudo da Orla Marítima de Natal. 2010. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do NorteWEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2ª Ed. São Paulo: Martin Claret, 2007WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. 3ª Ed. São Paulo: Alfa Ômega, 2001

Terra, 2003. p. 68

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RESUMO

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DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA: O RETRATO COTIDIANO DO SETOR CANAVIEIRO PAULISTA

 Roberto Galvão Faleiros Júnior1

José Roberto Porto de Andrade Júnior2

Pretende-se demonstrar neste artigo que a estrutura produtiva na qual se assenta o setor canavieiro paulista reproduz cotidianamente práticas que tornam a propriedade sucroalcooleira descumpridora de sua função social. Partindo de uma exposição analítica do conteúdo técnico-dogmático do preceito de função social da propriedade encartado no texto constitucional brasileiro, demonstra-se que o descumprimento incide integralmente sobre as quatro subfunções em que o conceito estrutura-se: ambiental, trabalhista, produtividade e bem-estar. O setor canavieiro descumpre a subfunção ambiental ao utilizar sistematicamente práticas agrícolas degradantes como a queima da cana-de-açúcar, o uso de agrotóxico e o plantio monocultural. Ele descumpre a subfunção trabalhista pela imposição de precárias condições de trabalho, pelos padrões de remuneração subhumanos utilizados e pela exploração desenfreada imposta ao trabalhador rural. Descumpre, também, a subfunção bem-estar através da promoção da concentração fundiária, da concentração de renda, da concentração de poder político e do aumento da desigualdade social. Descumpre, por fim, (“até”) a subfunção produtividade quando ela é considerada numa perspectiva macro-econômica mais abrangente que as estritas determinações contidas na legislação infra-constitucional. A importante conquista jurídico-política, representada pela positivação desses preceitos constitucionais é adequadamente compreendida ao se agregar sentido e efetividade à percepção concreta da função social da terra na análise crítica do setor canavieiro. Através dela, evidencia-se que o descumprimento da função social da terra e o desrespeito às determinações constitucionais vinculam-se ao cerne do próprio modo de produção e reprodução da vida humana em que esse setor produtivo se assenta, indicando uma premente necessidade de transformação desse modo de produção econômico-social. 

 Palavras-chave: função social da terra; setor canavieiro; meio ambiente; bem-estar humano; modo de produção

 

1 Possui graduação e Mestrado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Franca. Especialista em Direito Público. Advogado. Membro do Núcleo de Estudos Tutela Penal dos Direitos Humanos. Pormotor do Ministério Público do Estado do Paraná. Falecido a 1º/06/2014 - http://lattes.cnpq.br/9218652124411509

2 Assessor da Diretoria da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo (ESMP/SP). Professor Universitário. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), com período sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Conselheiro do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (COMDEMA) de Ribeirão Preto-SP entre 2012 e 2014. Bacharel em Direito pela UNESP. - http://lattes.cnpq.br/0362852405167157

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HOMENAGEM PÓSTUMA A ROBERTO GALVÃO FALEIROS JÚNIOR

No ano de 2014, às vésperas da realização do IV Seminário Direito, Pesquisa e Movimentos Sociais, em Curitiba, perdemos a presença material de um dentre aqueles jovens pesquisadores e promotores de justiça que se engajaram, desde Franca (em especial, dentro do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo – NEDA/UNESP), na construção do IPDMS. Mais do que isso, de um jurista dedicado à crítica do direito em tudo aquilo que ele representa de obstáculo à satisfação das necessidades dos movimentos sociais, mas também dedicado a construir utopicamente um direito alternativo que pudesse ser achado, dentre outros lugares populares, na barranca do Rio Grande. Roberto Galvão Faleiros Junior ou Rob, como era mais conhecido, apresentou trabalho em 2011 no seminário de São Paulo (cujo resumo foi reproduzido aqui, nos presentes anais), bem como foi responsável por várias reuniões de articulação no estado paulista para apoiar a criação de nosso Instituto. Ao ser aprovado em concurso para promotor de justiça no Paraná não se furtou a fazer contato com a secretaria do IPDMS e colocar-se à disposição. Em homenagem a sua querida lembrança, gostaríamos de dedicar a presente publicação, recordando o compromisso que assumiu com os movimentos sociais e a afeição que gerou em todas aquelas e aqueles que o conheceram, do que as notas e textos a seguir são definitivamente representativos.

Nota de pesar

É com imenso pesar que o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) comunica o falecimento do querido companheiro Roberto Galvão Faleiros Junior no último domingo (dia 01/06). Roberto fez graduação e mestrado em direito na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP-Franca e lá foi membro do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo (NEDA). Recentemente tornou-se Promotor de Justiça no estado do Paraná e publicou o livro “Direitos Humanos e tutela penal: um diálogo marginal”. Também foi um dos principais articuladores, no estado de São Paulo, para a criação do IPDMS. Sem dúvidas, foi um grande lutador pela construção de um pensamento jurídico crítico e por uma sociedade mais justa. Resta nosso sentimento de perda e de eterna admiração.

Junho de 2014Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais

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Nota de Falecimento

Com imenso pesar comunicamos o falecimento do Promotor de Justiça Roberto Galvão Faleiros Júnior, ocorrido na madrugada deste domingo (01/06) em acidente automobilístico. Profissional valoroso e amigo querido por todos, Roberto deixa um vazio profundo no Ministério Público do Paraná. O velório acontece no Cemitério Municipal de Patrocínio Paulista/SP. O sepultamento acontecerá nesta segunda-feira (02), pela manhã, no mesmo local. Ao registrarmos nossas condolências, manifestamos nosso apoio e solidariedade aos familiares.

01/06/2014 Associação Paranaense do Ministério Público

Adeus a Roberto

Em sua rápida passagem entre nós, Roberto Galvão Faleiros Junior nos deixa saudades. Tal qual na história de Liesel, contada pela morte (A menina que roubava livros), esta o colheu no arvorar de sua existência, como o fez com alguns personagens próximos a ela, durante os horrores do nazismo. E como a morte mesma nos lembra, no texto de Marcus Zusak, embora seja mais procurada na guerra ou, em tempos de paz, na longevidade, algumas vezes certos humanos a impressionam a ponto de mudarem esta ordem natural de sua interferência no ciclo da vida. Talvez seja para ganhar a companhia antecipada de alguns poucos que se destacam em bondade, generosidade e leveza de alma. Pouco tempo de convivência, mas uma eternidade de admiração e intensa afinidade institucional. Obrigado Roberto por nos ter entregue sua juventude e muito de seu ideal. Aos seus familiares, a homenagem e a profunda gratidão do Ministério Público do Estado do Paraná, por nos ter confiado seu destino. Que Deus possa assegurar que se transforme, junto a Ele, em mais uma bela estrela a irradiar, no firmamento, a inefável luz de sua graça sobre nossos caminhos.

01/06/2014 Gilberto Giacoia

Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná

Os que lutam

O Núcleo de Estudos de Direito Alternativo está em luto pela perda de um grande e querido companheiro. Roberto Galvão Faleiros Junior tornou-se nedista até mesmo antes da graduação, quando assistiu a uma palestra do professor Antonio Alberto Machado, decidindo, a partir de então, fazer direito na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP-Franca. Desde os primeiros momentos na graduação, foi um nedista disposto a questionar e problematizar

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o direito, denunciando o direito torto e desafiando anunciar, senão novos caminhos, outras formas de se caminhar no direito. O NEDA teve a honra e a alegria de acolher e ter como membro um companheiro como Roberto, ou simplesmente Rob, pessoa extremamente querida no grupo, comprometida e engajada na luta por um direito crítico e por outra sociedade, mais justa. O Rob ajudou na construção de vários Simpósios de Direito Alternativo, mesmo já formado, e colaborou na construção da teoria crítica do direito, sendo um dos principais nedistas idealizadores da teoria crítica do direito a partir da “barranca do Rio Grande”, ou seja, a partir das reflexões e debates travados, sobretudo em Franca e região. Além disso, recentemente tornou-se Promotor de Justiça no estado do Paraná, comprometendo-se na luta por um Ministério Público efetivamente democrático e em sintonia com as demandas do povo. Foi um lutador, que lutou a vida toda. Um companheiro imprescindível, como bem anunciava Brecht em seu versos “Os que lutam”.

2 de junho de 2014NEDA Unesp Franca

A utopia está de luto

Por um desses golpes amargos do destino, perdemos há poucos dias o Roberto Galvão Faleiros Júnior. Ele era bacharel e mestre em direito pela Unesp de Franca, foi um dos membros mais atuantes e mais entusiasmados do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo (NEDA/Unesp), e atualmente era Promotor de Justiça no Estado do Paraná, onde já iniciava uma carreira comprometida com o uso democrático do direito, com o aprofundamento da democracia e com a luta em prol das causas populares.

Deixou-nos tão cedo e de maneira tão inesperada que ainda não conseguimos, sequer, dimensionar o tamanho da sua ausência. Nós, os seus professores, amigos, familiares, companheiros de luta e de sonhos, somos todos uma única dor. Pudera, perdemos o amigo/irmão, o aluno, o filho, o visionário, o guerreiro… Enfim, perdemos alguém imprescindível, daquelas pessoas que não se deveria perder nunca, pois, além dos atributos pessoais que faziam dele um companheiro de verdade, era um “homem revoltado” com as diversas formas de injustiça, um militante incansável.

Muito consciente dos nossos graves problemas sociais, inconformado com as imensas desigualdades que fazem deste país um dos países mais injustos do planeta, Roberto Galvão Faleiros Júnior assumiu desde cedo o compromisso, jamais abandonado, de pôr o seu saber/fazer jurídico a serviço da justiça social, da dignidade humana, do direito autêntico e da construção de uma sociedade substancialmente igualitária, pacífica, justa e eticamente sustentável.

A confiança e o entusiasmo demonstrados constantemente pelo Roberto Faleiros, que se entregava de corpo e alma a tudo o que fazia, era e continuará sendo a força que impulsiona o NEDA/Unesp, e o estímulo para seguirmos com o projeto de construir uma cultura jurídica crítica a partir do lugar a que ele gostava de se referir, com um misto de orgulho e bom humor, como a

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“Barranca do Rio Grande”. É verdade que agora a “Barranca do Rio Grande” ficou um pouco menor, um pouco mais frágil, perdeu alguma luz, mas certamente continuará unida.

As injustiças nos uniram, as lutas continuam nos unindo, e agora até a dor e a crueldade da sorte haverão de nos fazer mais unidos ainda!

Como o Roberto Faleiros, com evidente generosidade e exagero, costumava atribuir a mim a sua inspiração e escolha por fazer o curso de direito na Unesp de Franca, e como ele dizia também que eu o havia inspirado a usar o direito como instrumento de mudança, de justiça social e de democracia, ficou-me a sensação estranha de que esse aluno notável foi embora levando consigo um pouco do muito pouco que eu possa ter realizado como modesto professor e profissional do direito.

Ficou-me também uma espécie de dívida, um sentimento de falta e omissão, pois não tive tempo de dizer ao Roberto o quanto ele nos ensinava com a sua perseverança e com os seus exemplos de superação; faltou-me dizer-lhe ainda o quanto nos persuadiu, e o quanto lhe sou pessoalmente grato, por ter nos ensinado que é preciso manter a esperança e ter sempre, como ele tinha, um coração de menino para conseguir acreditar, para não desanimar nunca, para continuar sonhando e fazendo, sem cansaço nem trégua, tudo aquilo que se pode fazer por um mundo melhor.

Creio que o Roberto Faleiros será para sempre aquela presença diáfana dos que desapareceram precocemente no meio de um sonho! A esperança e a utopia estão de luto, mas não podem morrer. É preciso continuar sonhando, seja porque é exatamente isto o que nos salvará, seja porque é necessário afirmar que nem as utopias nem as lutas e nem a vida do nosso eterno Rob foram em vão.

05/06/2014Antonio Alberto Machado

membro do Ministério Público do Estado de São Paulo professor livre docente do Curso de Direito da Unesp/Franca-SP

Dedicatória

À memória viva de Roberto Galvão Faleiros Júnior, presença amorosa, alma que transcendia os estritos contornos da individualidade, que andou com fé, pé por pé, e assim, fez do sonho realidade, da realidade ofício a serviço do Outro e então liberou-se, voou, transcendeu passando a habitar o coração de cada um de nós.

Larissa Ambrosano PackerDedicatória do livro da autora intitulado “Novo código florestal e pagamentos por

serviços ambientais: regime proprietário sobre os bens comuns”, publicado em 2015 pela editora Juruá

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Eterno

Há gente que a gente nunca esquece,agentes do amor e da vida.

Estes são eternos.

No sempre de uma eternidade concreta,feita das nossas relações e das memórias que nos compõem.

Por nós ele será eterno.Em nós ele será eterno.

De terno e sapato ou camisa e chinelo.Na “baguncinha” ou militância: “tamo junto!”“Pé por pé”.

A você meu caro Rob,que é a gente sendo nós e agente sendo ti,meu obrigado e um até sempre!

Doutor Roberto de Moraes.

José Roberto Porto de Andrade Júnior

A Deus, Gauche! À noite escuto o som do meu pensamento...É a sua falta que me corrói por dentro...Recolho-me em meu silêncio. E sinto a dor da história, da luta, da glória... e da perda. A manhã é cinza, de domingo.Não fomos ao parque...Não mais iremos...Não neste mundo. Você não foi daqui.Foi ser gauche.E aqui foi...Sussurrou seu brado pela justiça a todos... E foi justo, bom e humilde... como Francisco.Amou, deleitou-se pelos prazeres de viver.E agora foi visitar Simone, a linda de Beauvoir.Nosso meninosartre em cerimônia de adeus...

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Com a companhia, a pé por pé, juntos estiveram os seus,Em todos os minutos!Até nos últimos minutos de seu corpo aqui e sua alma lá... O poeta andou com fé e morreu longe do lar....Teria sim a menina do sonho lhe visitado? Sem saber?Não buscou a glória, mas a teve na memória dos que ficaram.Meu irmão, minha fé “faiou”,Mas ainda há fé!Vamos nos encontrar de novo!Algum dia em algum lugar!Porque a fé, a pé por pé, não costuma “faiar”!

Rodrigo Galvão de Souza Faleiros

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