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Anais 5º Simpósio de Gestão Ambiental e Biodiversidade (21 a 23 de junho 2016) 135 Sessão Técnica: Sustentabilidade e Urbanismo OFICINA DE PLANEJAMENTO URBANO COMO INSTRUMENTO DE CAPACITAÇÃO PARA REDUÇÃO DE DESASTRES EM ANGRA DOS REIS: ‘A CIDADE COMO UM JOGO DE CARTAS’ Rita de Cássia Santos de Souza; Cássio Veloso de Abreu; Cristiane Silva de Brito; Alba Valéria dos Reis Pereira; Aline da Costa Queirós (Centro de Estudos Ambientais/Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, Prefeitura Municipal de Angra dos Reis, Av. Jair Carneiro Toscano de Brito s/n – Praia da Chácara, Angra dos Reis, RJ, CEP: 23906-80, [email protected]) RESUMO Desde a segunda metade do século XX o município de Angra dos Reis sediou uma série de empreendimentos que provocaram severas transformações socioespaciais em seu território. Os efeitos do processo de ocupação desordenada, associados à elevada precipitação característica da região, fez com que Angra dos Reis vivenciasse, nas últimas décadas, uma sequência de movimentos de massa, resultando na perda de muitas vidas. Dentro desse contexto, a Rede de Educação para Redução de Desastres (RED) estruturou o ‘Curso de Capacitação de Professores para a Redução de Desastres’, convidando a Gerência de Conservação e Projetos Ambientais e a Gerência de Geoprocessamento, da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano para elaboração de um Módulo sobre Planejamento Urbano, direcionado aos professores da rede pública municipal. Propôs-se, assim, a elaboração da oficina ‘A cidade como um jogo de cartas’, objetivando reproduzir ludicamente o exercício democrático da cidade, na produção do espaço urbano, que só se consegue com transparência, mobilização e diálogo. Palavras-chave: participação social, urbanismo, educação, risco, política urbana. INTRODUÇÃO O Município de Angra dos Reis, localizado no contexto geomorfológico da Serra do Mar, na Região Hidrográfica da Baía da Ilha Grande, detém as maiores extensões de remanescentes de Floresta Pluvial Tropical Atlântica do Estado, incluídas entre as maiores do país. Isto faz com que essa região esteja entre as principais áreas brasileiras apontadas como centro de diversidade biológica e endemismo, um verdadeiro hotspot de biodiversidade. Além da riqueza ambiental e paisagística, a baía é notoriamente conhecida por seus atributos culturais, fruto da miscigenação de indígenas, quilombolas e colonizadores, que resultou em diversas populações remanescentes e comunidades tradicionais caiçaras, que ainda vivem da pesca artesanal. De fato, a região tem importância crucial como Corredor da Biodiversidade da Serra do Mar, Refúgio Pleistocênico, Núcleo Histórico e Patrimônio Cultural da Humanidade (Callado et al. 2009). Em função de suas características geográficas, o território de Angra não é totalmente favorável à expansão urbana, uma vez que a proximidade com a Serra do Mar forma uma costa altamente recortada com pequenas áreas de baixada, onde geralmente se distribuem os núcleos populacionais (Figura 1). As planícies encontram-se, portanto, comprimidas entre a serra e o mar e a instabilidade dos taludes e encostas propicia a ocorrência de movimentos de massa. Apesar disso, desde a segunda metade do século XX, o município de Angra dos Reis sediou uma série de grandes empreendimentos que provocaram severas transformações socioespaciais em seu território (Souza 2003). A construção da Rodovia Governador Mário Covas (BR-101) na década de 70, por sua vez, funcionou ainda como um verdadeiro vetor de crescimento, conectando os primeiros núcleos populacionais (Jacuacanga, Centro e Mambucaba) e criando novas manchas urbanas. Ainda na década de 70, o movimento ambientalista destacou os aspectos cênicos e ambientais do litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro, dando um novo valor simbólico para a

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Sessão Técnica: Sustentabilidade e Urbanismo

OFICINA DE PLANEJAMENTO URBANO COMO INSTRUMENTO DE CAPACITAÇÃO PARA REDUÇÃO DE DESASTRES EM ANGRA DOS REIS: ‘A

CIDADE COMO UM JOGO DE CARTAS’

Rita de Cássia Santos de Souza; Cássio Veloso de Abreu; Cristiane Silva de Brito; Alba Valéria dos Reis Pereira; Aline da Costa Queirós

(Centro de Estudos Ambientais/Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, Prefeitura Municipal de Angra dos Reis, Av. Jair Carneiro

Toscano de Brito s/n – Praia da Chácara, Angra dos Reis, RJ, CEP: 23906-80, [email protected])

RESUMO Desde a segunda metade do século XX o município de Angra dos Reis sediou uma série de empreendimentos que provocaram severas transformações socioespaciais em seu território. Os efeitos do processo de ocupação desordenada, associados à elevada precipitação característica da região, fez com que Angra dos Reis vivenciasse, nas últimas décadas, uma sequência de movimentos de massa, resultando na perda de muitas vidas. Dentro desse contexto, a Rede de Educação para Redução de Desastres (RED) estruturou o ‘Curso de Capacitação de Professores para a Redução de Desastres’, convidando a Gerência de Conservação e Projetos Ambientais e a Gerência de Geoprocessamento, da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano para elaboração de um Módulo sobre Planejamento Urbano, direcionado aos professores da rede pública municipal. Propôs-se, assim, a elaboração da oficina ‘A cidade como um jogo de cartas’, objetivando reproduzir ludicamente o exercício democrático da cidade, na produção do espaço urbano, que só se consegue com transparência, mobilização e diálogo. Palavras-chave: participação social, urbanismo, educação, risco, política urbana.

INTRODUÇÃO

O Município de Angra dos Reis, localizado no contexto geomorfológico da Serra do Mar, na Região Hidrográfica da Baía da Ilha Grande, detém as maiores extensões de remanescentes de Floresta Pluvial Tropical Atlântica do Estado, incluídas entre as maiores do país. Isto faz com que essa região esteja entre as principais áreas brasileiras apontadas como centro de diversidade biológica e endemismo, um verdadeiro hotspot de biodiversidade. Além da riqueza ambiental e paisagística, a baía é notoriamente conhecida por seus atributos culturais, fruto da miscigenação de indígenas, quilombolas e colonizadores, que resultou em diversas populações remanescentes e comunidades tradicionais caiçaras, que ainda vivem da pesca artesanal. De fato, a região tem importância crucial como Corredor da Biodiversidade da Serra do Mar, Refúgio Pleistocênico, Núcleo Histórico e Patrimônio Cultural da Humanidade (Callado et al. 2009).

Em função de suas características geográficas, o território de Angra não é totalmente favorável à expansão urbana, uma vez que a proximidade com a Serra do Mar forma uma costa altamente recortada com pequenas áreas de baixada, onde geralmente se distribuem os núcleos populacionais (Figura 1). As planícies encontram-se, portanto, comprimidas entre a serra e o mar e a instabilidade dos taludes e encostas propicia a ocorrência de movimentos de massa. Apesar disso, desde a segunda metade do século XX, o município de Angra dos Reis sediou uma série de grandes empreendimentos que provocaram severas transformações socioespaciais em seu território (Souza 2003). A construção da Rodovia Governador Mário Covas (BR-101) na década de 70, por sua vez, funcionou ainda como um verdadeiro vetor de crescimento, conectando os primeiros núcleos populacionais (Jacuacanga, Centro e Mambucaba) e criando novas manchas urbanas.

Ainda na década de 70, o movimento ambientalista destacou os aspectos cênicos e ambientais do litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro, dando um novo valor simbólico para a

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região, que ficou conhecida como Costa Verde. A partir deste valor simbólico, o espaço angrense começa a figurar no turismo de alta classe. Ocorreu, assim, uma rápida valorização das poucas planícies ocupáveis e uma forte especulação imobiliária nas áreas próximas ao litoral. O aumento do valor do solo urbano, associado aos processos migratórios, direcionaram a população de menor poder aquisitivo para as áreas florestadas, de preservação permanente e de risco geológico, potencializando sua instabilidade e causando degradação ambiental, seja por desmatamento ou por lançamento de esgoto in natura (Figura 2).

O processo de crescimento urbano desordenado, associado aos eventos de elevada

precipitação característicos da Serra do Mar, fez com que Angra dos Reis vivenciasse, nas últimas décadas, uma série de movimentos de massa, resultando na perda de muitas vidas. O maior desastre registrado no município ocorreu na noite do dia 01 de janeiro de 2010, onde em um intervalo de 36 horas choveu cerca de 420mm, mais do que esperado para todo o mês de janeiro. Dezenas de bairros tiveram registros de ocorrências envolvendo deslizamentos. A situação mais grave ocorreu nos bairros Morro da Carioca (região central) e Praia do Bananal (na Ilha Grande), vitimando fatalmente, 31 e 22 pessoas, respectivamente (Figura 3).

Passados os anos desde a tragédia de 2010, as cicatrizes ainda marcam a memória

dos moradores da cidade. Atualmente, milhares de famílias ainda encontram-se em situações de risco e vulnerabilidade social (Figura 4). Muitas vezes, a ocupação de uma área de risco é a única opção para uma população. Não raro, durante reuniões com as comunidades, ou até

Figura 1 – Imagem via satélite da parte continental de Angra dos Reis, RJ, mostrando os núcleos urbanos distribuídos ao longo da BR-101 (Fonte: Google Earth 2016).

Figura 2 – Desmatamento na Gamboa do Belém (A) e língua negra na Praia da Biscaia, Ponta Leste (B) (Fonte: Prefeitura Municipal de Angra dos Reis).

B) A)

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mesmo em ações educativas nas escolas, o assunto vem à tona, com relatos de mortes de parentes e conhecidos e perdas materiais em deslizamentos ou enchentes. Os desastres naturais fazem parte do cotidiano dos cidadãos de Angra dos Reis necessitando, portanto, de medidas de caráter permanente e contínuo, voltadas para a proteção humana.

Entende-se que o risco é a percepção por um indivíduo ou grupo social de um perigo

possível, mais ou menos previsível (Veyret 2007). Essa é uma de suas dimensões, e é historicamente determinada, resultando de um passado nem sempre conhecido e de escolhas políticas ou econômicas compreendidas em diferentes contextos geopolíticos ao longo dos anos. Ou seja, o risco representa “algo construído social, cultural e politicamente” (Douglas 1992, p. 24-25), cuja percepção é tanto técnica quanto subjetiva, definida pelo grupo social (Zanirato et al. 2008). Essa ótica é importante para os debates e enfrentamentos sobre políticas públicas para prevenção de desastres.

O grau de vulnerabilidade de uma população em risco pode ser avaliado por uma série de fatores que vão desde as suas representações mentais, práticas de convivência com o risco, passando por medidas de prevenção e até emergenciais a serem tomadas na ocorrência de desastres. Dentre os fatores mencionados, a prevenção ainda é a estratégia fundamental para possibilitar um melhor enfrentamento dessas situações, diminuindo a vulnerabilidade dos habitantes em risco. A percepção do risco deve, portanto, mobilizar os especialistas a comunicar seus efeitos ao público, muitas vezes distante da compreensão do potencial de perigo de um determinado evento.

B)

Figura 4 – Moradias irregulares na Sapinhatuba II (A) (Foto: Fábio Martins) e pessoas sendo removidas após enchente no Parque Mambucaba (B) em janeiro de 2016 (Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/).

A) B)

A)

Figura 3. Deslizamento no Bananal, Ilha Grande (A) (Fonte: http://revistaepoca.globo.com/) e no Morro da Carioca (B) (Fonte: http://noticias.uol.com.br/) em 2010.

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Em meio a tantos desafios e diante da necessidade em se buscar uma maior resiliência frente aos desastres, surgiu em Angra dos Reis a Rede de Educação para Redução de Desastres (RED) (Figura 5), a partir da articulação do Grupo de Pesquisas em Desastres Sócio-Naturais da Universidade Federal Fluminense (GDEN/UFF) com as Secretarias de Educação, de Defesa Civil e de Meio Ambiente do Município de Angra dos Reis e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN). O objetivo do grupo é criar, executar e aprimorar projetos educacionais para redução do número e da magnitude dos desastres, inserindo temas ligados à redução de riscos em práticas educativas formais e não formais, tendo como princípios básicos o respeito mútuo, a cooperação e a liderança coletiva.

Os atores escolares da rede pública de ensino (professores e alunos) e os moradores de

áreas de risco como principais parceiros na construção das estratégias adotadas. Além das iniciativas já executadas por instituições da RED (como os Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil – NUPDECs e o Sistema de Alerta e Alarme Comunitário), as reuniões com os professores de algumas das escolas públicas municipais culminaram com a elaboração do primeiro projeto conjunto da RED – Angra dos Reis: o ‘Curso de Capacitação de Professores para Redução de Desastres’. Os professores entendem a importância do tema para suas vidas cotidianas, especialmente para os alunos, mas sentem a necessidade de uma capacitação específica para integrar o assunto ao conteúdo das disciplinas que lecionam. O objetivo do curso é o de estimular as trocas de experiências entre todos os envolvidos, auxiliando os professores a incorporar o tema da redução de desastres em sua prática didática, adaptando e catalisando a chegada destes conhecimentos aos alunos da rede de ensino.

Sabe-se que o fenômeno urbano é algo dinâmico e que a cidade evolui e modifica-se com o tempo (Kohlsdorf 1985). Para compreendê-la é necessário analisar sua dinâmica, sua geografia e sua história. Dentro deste contexto, o tradicional papel dos arquitetos na busca pelo desenho de cidade ideal deu lugar à compreensão da cidade real, com tudo o que ela abarca, seus aspectos sociais, culturais, ambientais, arquitetônicos e seus fluxos, conferindo ao planejamento urbano um caráter de interdisciplinaridade, envolvendo a participação de outros profissionais como sociólogos, antropólogos, biólogos e engenheiros florestais e ambientais. Planejar a cidade significa escolher um conjunto de ações consideradas mais adequadas para promover a produção, estruturação e apropriação do espaço urbano, buscando melhorias na qualidade de vida das comunidades.

O Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257 de 10 de julho de 2001, deu um novo rumo à política urbana brasileira, estabelecendo diretrizes para a construção de cidades

Figura 5 – Rede de Educação para Redução de Desastres (RED), reunida no Auditório da Defesa Civil, em Angra dos Reis (Fonte: Prefeitura Municipal de Angra dos Reis).

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sustentáveis e socialmente justas, reafirmando a função social da propriedade e da cidade como um todo. Esta lei aponta ainda uma série de instrumentos para a gestão democrática da cidade, prevendo Conselhos de Política Urbana, debates, audiências, consultas públicas, conferências e iniciativas populares de projetos e planos.

Diante deste olhar diferenciado sobre a cidade, sobre a prática do planejamento urbano e a ênfase na democratização dos processos, a educação entra em cena como um elemento transformador, que une teoria e prática. Por este motivo, é importante que o tema se torne mais presente nas escolas, estimulando a reflexão sobre o papel do cidadão na produção do espaço urbano e no desenvolvimento das cidades. Assim, como parte integrante do ‘Curso de Capacitação de Professores para a Redução de Desastres’, a Gerência de Conservação e Projetos Ambientais e a Gerência de Geoprocessamento, setores da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano de Angra dos Reis, foram convidadas pela RED para elaboração de um Módulo sobre Planejamento Urbano, direcionado aos professores da rede pública municipal.

Com o objetivo de adaptar didaticamente uma temática tão abrangente como o Planejamento Urbano e tão distante do universo da Educação Básica, buscou-se na abordagem ‘cristalina’ (Olivieri 2007, p. 145) e precursora do urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos a essência da metodologia a ser aplicada. Propôs-se, assim, a elaboração de uma atividade participativa, dialógica e autorreflexiva, que pudesse reproduzir ludicamente o exercício democrático da cidade, que só se consegue com transparência, mobilização e diálogo. Partindo dessas premissas, surge a oficina ‘A cidade como um jogo de cartas’, em homenagem à obra homônima de Carlos Nelson, publicada em 1988.

Santos (1988) compara a produção do espaço urbano como um jogo, onde a mesa é o território, ou seja, o sítio urbano. A cidade concebida por ele é um lugar de múltiplos encontros, interações, combinações e trocas, como também disputas, conflitos e contradições, indispensáveis para o seu equilíbrio dinâmico. Nesse meio, juntam-se parceiros que se enfrentam segundo grupos e filiações a que pertençam. Dentre os atores sociais que fazem e refazem a cidade constantemente, existem os pertencentes ao grupo do Poder Público (políticos, técnicos e funcionários das esferas federal, estadual e municipal); os representantes do Setor Econômico (empresários dos setores industrial, comércio e serviços, com destaque especial para o capital do ramo imobiliário e da construção civil); e, por fim, a População, representada pelos mais diversos grupos (associações, grupos excluídos, vizinhança, moradores e etc.).

São muitas as estratégias que podem ser usadas no jogo urbano. Mas, para que ele dê certo, é preciso que todos conheçam bem as cartas e sejam esclarecidos quanto as regras, ou seja, todos devem conhecer os princípios através dos quais os espaços são ocupados, participando ativamente das decisões. Se apenas alguns tiverem acesso às normas e puderem manipulá-las, provoca-se o desequilíbrio.

MATERIAL E MÉTODOS

A oficina foi realizada no dia 25 de maio de 2016 no auditório da Defesa Civil, localizado no bairro São Bento, em Angra dos Reis, para duas turmas de professores, técnicos da prefeitura e graduandos, prevendo-se um tempo médio de 1h de duração para cada turma. O jogo consiste basicamente em quatro elementos: 1 – Os personagens; 2 – A Cidade; 3 – Os instrumentos da Política Urbana; e 4 – Os desafios (missões e decisões a serem tomadas).

Inicialmente, fez-se uma introdução sobre o ‘jogo urbano’ e sobre o processo de produção da cidade. Discute-se sobre a importância do Estatuto da Cidade e dos Planos Diretores, que fornecem os instrumentos e diretrizes para o ordenamento territorial e garantem os direitos básicos como moradia, inclusão social, mobilidade e qualidade ambiental. Em seguida, foram apresentados os personagens do jogo: Poder Público (Estado), Empresários

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(indústria, comércio e serviços), Setor Imobiliário (proprietários de terras, corretores imobiliários e construtoras) e Sociedade Civil. Cada personagem possui características e interesses próprios, e objetivos bem definidos, que são explicados aos participantes, de acordo com a Tabela 1.

Personagem Características

Poder Público (Estado)

Atua na organização espacial da cidade. Deve primar pelo interesse da coletividade, buscando a diminuição das desigualdades e melhor aproveitamento do espaço urbano, não desconsiderando as influências e interesses do mercado, porém entendendo que a cidade é para todos. Deve ainda procurar soluções éticas e sustentáveis para os principais problemas urbanos, priorizando a função social da propriedade e o direito fundamental à inclusão social, à moradia e ao ambiente equilibrado.

Empresários

São, em razão da dimensão de suas atividades, grandes consumidores de espaço. Necessitam geralmente de terrenos amplos e baratos que satisfaçam requisitos locacionais pertinentes às atividades de suas empresas – junto a portos, aeroportos, malhas ferroviárias e rodoviárias, que garantam amplo acesso. Podem buscar meios de obter do Estado os investimentos de infraestrutura necessários para suas atividades, oferecendo alianças e contrapartidas. Podem também ser grandes parceiros em projetos de intervenções urbanas.

Setor Imobiliário

São agentes que realizam as operações de incorporação, financiamento, estudo técnico, construção ou produção física do imóvel, comercialização ou transformação do capital-mercadoria em capital-dinheiro, acrescido de lucro. Possuem, por isso, uma tendência a especulação imobiliária. Interessam-se em atrair investimentos para áreas potenciais, de modo a valorizá-las. Também manifestam interesse em atuar na construção de habitações populares, desde que representem lucro e rentabilidade (grande número a um baixo custo).

Sociedade Civil

Constituem os moradores da cidade, os grupos excluídos, as organizações civis, associações, trabalhadores. Tem interface com praticamente todos os desafios do jogo. Devem atentar para as decisões do governo e as negociações que estão sendo feitas durante o jogo. Tem liberdade para intervir, opinar, relutar, questionar e propor.

Logo após a introdução, os participantes foram divididos em quatro grupos,

numerados de 1 a 4, cada um representando um dos personagens apresentado. Os grupos ficaram livres para escolherem seus personagens, à medida que foram sendo motivados para tal. Cada grupo foi, então, instruído sobre as características de seu personagem, os objetivos, as estratégias e interesses envolvidos.

O passo seguinte foi explorar o tabuleiro sobre o qual se desenrola o jogo: a cidade. Para representá-la, elaborou-se um painel constituído por um mosaico de áreas com cores distintas (Figura 6). Cada cor representa uma zona urbana, com suas características e potenciais de uso, de acordo com a Lei Municipal de Uso e Ocupação do Solo (Lei nº 2.092/2009). As zonas foram escolhidas de forma a representar diversidade de usos potenciais, que vão desde áreas de interesse ambiental de proteção (ZIAP – Zona de Interesse Ambiental de Proteção), passando por zonas rurais (ZORDE – Zona Rural de Desenvolvimento Especial), Zonas Residenciais (ZR) e Comerciais (ZC) de maior e menor adensamento e zonas de desenvolvimento turístico (ZIT) de pequeno e grande porte. Dentro de cada uma dessas áreas, existirão vários elementos, como empreendimentos, condomínios, estabelecimentos comerciais, ocupações irregulares, áreas públicas e particulares disponíveis e desmatamentos. Os grupos ficam posicionados em torno no painel.

Após este “tour” pelo ambiente urbano os grupos receberam um conjunto de fichas com instrumentos da Política Urbana (as regras do jogo), a saber: Estudo de Impacto de Vizinhança, Outorga Onerosa do Direito de Construir, Outorga Onerosa da Alteração de Uso, Zona Especial de Interesse Social, IPTU Progressivo, Unidade de Conservação, Regularização Fundiária, Usucapião Especial Urbana, Fiscalização e Operação Urbana

Tabela 1 – Características dos personagens que compõem o jogo

Fonte: Os autores (2016).

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Consorciada. As fichas contêm uma breve descrição de cada instrumento e de sua aplicação. De posse dos instrumentos, os participantes tiveram cerca de 10 minutos para analisá-los.

Decorrido o tempo de familiarização com os instrumentos, inicia-se a rodada. Cada grupo possui um jogo de cartas com desafios específicos, que correspondem a tarefas a cumprir ou escolhas a fazer (Figura 7). Ao todo, foram elaborados 34 desafios, contemplando situações e dilemas urbanísticos presentes no dia-a-dia da cidade, para cada personagem. A equipe iniciante deve sortear uma carta de desafio, ler para todos e atender ao que está sendo solicitado. Diversos desafios envolvem mais de uma equipe, outros possibilitam diferentes caminhos, ilustrando a complexidade das questões e relações do espaço urbano. Os mediadores, neste caso os técnicos que elaboraram a oficina, instigam, estimulam o diálogo e chamam a atenção dos participantes quanto a conflitos de uso, arbitrariedades cometidas por algum dos grupos ou ainda possíveis soluções para os impasses (Figura 8).

A medida que as decisões vão sendo tomadas e as tarefas vão se cumprindo, a cidade

modifica-se, com acréscimo de áreas para regularização fundiária, criação de unidades de conservação, implantação de empreendimentos imobiliários, intervenções culturais e urbanísticas, investimentos, etc. O grande painel que representa o espaço urbano hipotético do jogo torna-se um verdadeiro mural das iniciativas dos participantes.

Figura 6 – Painel elaborado, representando a cidade, com suas zonas caracterizadas e elementos constituintes (destaque à direita) (Fonte: Os autores, 2016).

Figura 7 – Alguns dos desafios a serem escolhidos pelo grupo que representa o Poder Público (Fonte: Os autores, 2016).

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Ao final, todos são convidados a refletir sobre o padrão de cidade que foi criado a

partir de suas decisões/interesses, sobre como se deu o processo no jogo e como ele é na realidade. Sobretudo, os participantes refletiram também sobre como eles podem interferir neste processo, enquanto professores e cidadãos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Durante a execução da oficina para as duas turmas do curso da RED, foi possível observar boa interação entre os participantes dentro do mesmo grupo e entre grupos distintos, o que corrobora com o perfil de atuação colaborativo da RED, diferentemente das aulas expositivas tradicionais. Vários professores compuseram de fato seu personagem, assumindo posturas e sobressaindo-se de alguma forma, seja por estratégias definidas, propostas de arranjos econômicos e políticos complexos ou pelos seus argumentos. Isto rendeu momentos de descontração, mas também gerou muitos conflitos.

Diversos projetos foram “criados”, alguns em parceria entre o setor público e o setor privado (como uma galeria para pequenos artesãos) e com a sociedade (como a implantação de um horto em uma área degradada). Ambas as turmas depararam-se com conflitos de posse, avaliando com cuidado aspectos de remoção (por tratar-se de área de risco) e regularização fundiária. Todas tiveram urgência em resolver tais problemas: “É área de risco, não pode!” – afirmava insistentemente um representante da Defesa Civil, muito provavelmente em reflexo de sua experiência pessoal e profissional no assunto.

Em relação aos instrumentos da política urbana que lhe foram fornecidos, as turmas desenvolveram diferentes metodologias: alguns distribuíram as fichas entre suas equipes, com leituras individuais (turma 1), outros leram conjuntamente (turma 2). A segunda turma mostrou uma maior utilização dos instrumentos urbanos, possivelmente em função da leitura conjunta. Foi possível perceber a preocupação destes participantes em observar todas as fichas antes do jogo iniciar (gerando um verdadeiro silêncio no auditório), embora tenham sido informados de que as mesmas estariam disponíveis durante a partida. De fato, nessa turma, por mais de uma vez, observou-se grupos intervindo nos instrumentos a serem utilizados por outros grupos, independentemente de ser ou não sua vez de jogar. Isto reforça a importância da apropriação dos instrumentos e normativas por parte da comunidade, afinal, são as ‘regras do jogo’.

Os jogadores que se colocaram representando o Poder Público eram, por vezes, encurralados e pressionados a tomarem decisões, muitas das quais obviamente não tinham plena segurança em relação aos impactos futuros. Após o jogo, alguns confessaram um certo desconforto no papel, face à grande responsabilidade, mesmo tratando-se de um jogo.

Figura 8 – Aplicação da dinâmica com os alunos do Curso de Capacitação de Professores para a Redução de Desastres (Fonte: Os autores, 2016).

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De um modo geral, os participantes buscaram discutir e ponderar sobre suas decisões e demonstraram bastante sensibilidade, sobretudo com a classe excluída. Todos mostraram-se preocupados em propor rapidamente medidas que evitem novas ocupações em áreas de risco e preservação, após a realização das remoções, destinando recursos e projetos para estas áreas. As medidas indicadas para destinação destas áreas contemplaram desde projetos de recomposição florestal, implantação de equipamentos públicos (praça, mirante) até criação de unidades de conservação. Segundo um dos grupos representantes da Sociedade Civil indicou a necessidade de envolvimento deles mesmos nos projetos e intervenções propostas.

As reflexões feitas pelos participantes reforçaram a complexidade das discussões e relações e a necessidade da participação social nos processos. Alguns professores, ao final da atividade, mostraram interesse em obter informações sobre o Conselho Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente e sobre legislações urbanísticas e ambientais municipais. Muitos disseram-se motivados a adaptar e reproduzir a oficina em sala de aula. Com esta finalidade, todo o roteiro elaborado, bem como os arquivos com as fichas, desafios, personagens e modelo de painel foi disponibilizado na plataforma virtual da RED.

CONCLUSÃO

Tendo a educação como prática libertadora e transformadora da sociedade, partindo de uma concepção dialética, humanista e conscientizadora, a percepção da realidade na qual a comunidade está inserida é fundamental para criar possibilidades de produção e construção do conhecimento. É, portanto, missão do educador reforçar a capacidade crítica do educando, estimulando a reflexão sobre sua realidade e condições concretas, levando-o à tomada de consciência de sua condição existencial (Freire, 1996).

A construção da dinâmica ‘A cidade como um jogo de cartas’ buscou reproduzir, de maneira lúdica, o processo de transformação da cidade, que envolve grandes conflitos de interesse entre os diferentes atores sociais que compõem o ambiente urbano. Considerando-se o risco como fruto tanto de processos naturais, antrópicos e tecnológicos, como também de uma representação política e social, é de extrema importância ampliar o conhecimento sobre os instrumentos de controle do uso do solo urbano, dos objetivos da cidade, trazendo à tona o seu cenário contraditório.

A atividade teve boa aceitação por parte dos professores, sendo bastante elogiada, mostrando que, efetivamente, atendeu as expectativas da equipe da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano. Pôde-se notar, ainda, o efeito positivo da ludicidade na apropriação dos conteúdos por parte dos alunos da RED, integrando-os à proposta do módulo e estimulando a autorreflexão.

Diante de todos os aspectos abordados no presente trabalho, pode-se concluir que a oficina, inspirada no urbanismo dialógico de Carlos Nelson e na educação libertária de Paulo Freire, certamente contribuirá para facilitar a abordagem do Planejamento Urbano no ambiente escolar, independentemente da roupagem que o educador dará para sua aplicação em sala de aula. Sua importância reside, principalmente, na inspiração de ideias e no estimulo a reflexões, mais do que no rigor de sua metodologia. É, portanto, uma atividade concebida livremente, para ser um instrumento de educadores conscientes de seu papel na formação de cidadãos críticos de que a sociedade tanto necessita. REFERÊNCIAS Callado, C.H.; Barros, A.A.M.; Ribas, L.A.; Albarello, N.; Gagliardi, R.; Jascone, C.E.S. 2009. Flora e cobertura vegetal. In: O Ambiente da Ilha Grande. Rio de Janeiro: UERJ/CEADS, p 91-162. Douglas, M. 1992. Risk and blame. Essays in cultural theory. Londres e Nova Iorque: Routledge. Freire, P. 1996. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. 148p. Freire, P. 2005. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 213p. Kohlsdorf, M.E. 1985. Breve histórico do espaço urbano como campo disciplinar. In: O espaço da cidade – contribuição à análise urbana. São Paulo: Projeto. Pp. 15-72.

Page 10: Anais 5º Simpósio de Gestão Ambiental e Biodiversidade (21 ... · Propôs-se, assim, a elaboração da oficina ‘A cidade como um jogo de cartas’, objetivando reproduzir ludicamente

Anais 5º Simpósio de Gestão Ambiental e Biodiversidade (21 a 23 de junho 2016)

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