anais 2012-2013

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Anais Ano III

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ANAISAno III

Brasília2013

ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA

2012 – 2013

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Academia de Medicina de BrasíliaAnais III / Academia de Medicina de Brasília, 2012-2013. – Brasília:

editora do autor, 2013. 272 p.

Coletânea de escritos apresentados em palestras.

1. Medicina – Academia de Medicina. I. Título

CDU 61

Revisão: Simônides Bacelar

Diagramação: Marcos Aurélio Pereira

Capa: Marcos Aurélio Pereira

Academia de Medicina de BrasíliaSGAS 607 – Edi cio Metrópolis – Cobertura 1

Asa Sul – Brasília – DF – CEP 70.200-670Internet: [email protected]

Site: h p://www.academiamedicinadebrasilia.org.br/Tel: 61 3346-3655

O conteúdo dos textos publicados são de responsabilidade dos autores e não expressam necessariamente a posição da Academia de Medicina de Brasília, exceto quando explicitamente indicado por esta. Permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja para fi ns lucrativos quaisquer que sejam. Para reeditoração e republicação de qualquer material, solicitar autorização dos editores.

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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA

DIRETORIA AMeBBiênio 2012-2014

Presidente Acad. Janice Magalhães Lamas1.º Vice Presidente Acad.Luiz Fernando Galvão Salinas

Secretário Geral Acad. Iphis Tenfuss Campbell1.º Secretário Acad.Izelda Maria Carvalho Costa2.º Secretário Acad. José Ullisses Manzinni Calegaro

Diretor Financeiro Acad. Jair Evangelista da RochaDiretor Financeiro

AdjuntoAcad. Marcos Gutemberg Fialho da Costa

Diretor de Patrimônio

Acad. Regina Cândido Ribeiro dos Santos

Diretor de Tecnologia deInformação e Comunicação

Acad. José Paranaguá de Santana

Diretor Científi co Acad. Lucimar Rodrigues Coser CannonComissão Científi ca

Acad. Maria Mouranilda Tavares SchleicherAcad. Álvaro Valentim Lima SarabandaAcad. Roberto Ronald de A. Cardoso

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Comissão de Avaliação das

Credenciais dos Candidatos à

Academia

Acad. Francisco Floripe Ginani

Acad. José Paranaguá de Santana

Acad. Jair Evangelista da Rocha

Membro Comissão de Ética e Bioética

Acad. Luiz Fernando Galvão Salinas

Acad. Procópio Miguel dos Santos

Acad. Regina Cândido Ribeiro dos Santos

Comissão de Eventos

Acad. Lucimar Rodrigues Coser Cannon

Conselho Consultivo

Acad. Antonio Márcio J. Lisboa

Acad. Ely Toscano Barbosa

Acad. Elias Tavares de Araújo

Acad. Laércio Moreira Valença

Acad. José A. Ribeiro Filho

Acad. Renault Mattos Ribeiro

Acad. Francisco Floripe Ginani

Acad. Manoel Ximenes Netto

Acad. Sérgio da Cunha Camões

Acad. José Leite Saraiva

Conselho Fiscal Acad. Renato Maia Guimarães

Acad. Edno Magalhães

Acad. João Eugênio G. de Medeiros

Conselho Fiscal – suplentes

Acad. Iphis Tenfuss Campbell

Acad.Izelda Maria Carvalho Costa

Acad. José Ulisses M. Calegaro

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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA – AMeB

ACADÊMICOS TITULARES

Cadeira n.º 01 Acadêmico Antônio Márcio Junqueira Lisboa

Cadeira n.º 02 Acadêmico Marcus Vinicius Ramos

Cadeira n.º 03 Acadêmico Francisco Pinheiro Rocha

Cadeira n.° 04 Acadêmica Izelda Maria Carvalho Costa

Cadeira n.º 05 Acadêmico Laércio Moreira Valença

Cadeira n.º 06 Acadêmico Pedro Luiz Tauil

Cadeira n.º 07 Acadêmica Janice Magalhães Lamas

Cadeira n.º 08 Acadêmico Luiz Augusto Casulari Roxo Mota

Cadeira n.º 09 Acadêmico Hélcio Luiz Miziara

Cadeira n.º 10 Acadêmico Edno Magalhães

Cadeira n.º 11 Acadêmica Rosely Cerqueira de Oliveira

Cadeira n.º 12 Acadêmico Sérgio da Cunha Camões

Cadeira n.º 13 Acadêmico Elias Tavares de Araújo

Cadeira n.º 14 Acadêmica Maria Mouranilda Tavares Schleicher

Cadeira n.º 15 Acadêmico Marcos Gutemberg Fialho da Costa

Cadeira n.º 16 Acadêmico Eraldo Pinheiro Pinto

Cadeira n.º 17 Acadêmico Procópio Miguel dos Santos

Cadeira n.º 18 Acadêmico Iphis Tenfuss Campbell

Cadeira n.º 19 Acadêmico Jair Evangelista da Rocha

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Cadeira n.º 20 Acadêmico Leonardo Esteves Lima

Cadeira n.º 21 Acadêmica Lucimar Rodrigues Coser Cannon

Cadeira n.º 22 Acadêmico Renato Maia Guimarães

Cadeira n.º 23

Cadeira n.º 24 Acadêmica Regina Cândido Ribeiro dos Santos

Cadeira n.º 25 Acadêmico Oscar Mendes Moren

Cadeira n.º 26 Acadêmico José Ulisses Manzzini Calegaro

Cadeira n.º 27 Acadêmico Ruy Bayma Archer da Silva

Cadeira n.º 28 Acadêmico João Eugênio G. de Medeiros

Cadeira n.º 29 Acadêmico Cleire Paniago Gomes Pereira

Cadeira n.º 30 Acadêmico Francisco Floripe Ginani

Cadeira n.º 31 Acadêmico Paulo Andrade de Mello

Cadeira n.º 32 Acadêmico Francisco de Assis Rocha Neves

Cadeira n.º 33 Acadêmico Roberto Ronald de A. Cardoso

Cadeira n.º 34 Acadêmico Maurício Gomes Pereira

Cadeira n.º 35 Acadêmico Luiz Fernando Galvão Salinas

Cadeira n.º 36 Acadêmico José Paranaguá de Santana

Cadeira n.º 37 Acadêmico Célio Rodrigues Pereira

Cadeira n.º 38 Acadêmico Armando José China Bezerra

Cadeira n.º 39 Acadêmico José Leite Saraiva

Cadeira n.º 40 Acadêmico Álvaro Valentim Lima Sarabanda

ACADÊMICOS EMÉRITOS

Acadêmico André Esteves de LimaAcadêmico Ely Toscano Barbosa

Acadêmico Fábio Lage Correa Rabello

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Acadêmico José Antônio Ribeiro FilhoAcadêmico Leopoldo Pacini Neto

Acadêmico Manoel Ximenes NettoAcadêmico Odílio Luiz da Silva

Acadêmico Renato Ângelo SaraivaAcadêmico Renault Mattos RibeiroAcadêmico Wilson Eliseu Sesana

ACADÊMICOS HONORÁRIOS

Acadêmico Jofran FrejatAcadêmico Rômulo Marocolo

ACADÊMICOS BENEMÉRITOS

Acadêmico Newton Lins Teixeira de CarvalhoAcadêmico Luzia de Paula

ACADÊMICO CORRESPONDENTE

Acadêmico Joaquim Roberto Costa Lopes

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SUMÁRIO

Apresentação ..............................................................13

Janice Magalhães Lamas

Terminalidade da vida .................................................15

Introdução .................................................................15 Janice Magalhães Lamas

Palestrantes ...............................................................18 Ronaldo Sérgio Santana Pereira, Álvaro Achcar, Arthur H. P. Régis

Participação do auditório ..............................................41 Antônio Márcio Junqueira Lisbôa, Edno Magalhães, Renato Maia, Procópio Miguel dos Santos, Annik Persign, José Ulisses Calegaro, Cid Carvalhaes, Mariângela Cavalcante, Maria Mouranilda Schleicher .....................41

Dengue: desafi os atuais e perspectivas de seu controle ..57

Palestrante .................................................................57 Pedro Luiz Tauil

Internação hospitalar voluntária, involuntária, e compulsória para dependentes químicos de álcool, crack, e outras drogas como estratégia de atenção médico-psicossocial e combate ao uso de drogas ........63

Introdução .................................................................63 Janice Magalhães Lamas

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Palestrantes ...............................................................67 José Theodoro Correa de Carvalho, Augusto César de Farias Costa, Antônio Geraldo da Silva

Debatedores ...............................................................90 Bruno de Souza, Roberto Tykanori, José Múcio Monteiro Filho

Participação do auditório ..............................................99 Antônio Márcio Junqueira Lisbôa, José Ulisses Calegaro, Lucimar Cannon, Aldo Zaires, Sérgio Camões, Antônio Geraldo da Silva

Judicialização da saúde ............................................. 107

Introdução ............................................................... 107 Janice Magalhães Lamas

Palestrantes ............................................................. 110 Lucimar Cannon, Eliana Calmon

Debatedores ............................................................. 129 Carlos Vital Tavares Correia Lima, Cid Carvalhaes, Jairo Bisol

Participação do auditório ............................................ 146 Antônio Márcio Junqueira Lisbôa, Renato Maia, Mariângela Cavalcante, Eliana Calmon, Gustavo Arantes, Hélcio Luiz Miziara

Estratégia para ampliar a atenção primária em saúde em áreas pouco assistidas ......................................... 155

Introdução ............................................................... 155 Janice Magalhães Lamas

Palestrantes ............................................................. 159 Felipe Proenço de Oliveira, Lídia Tonon

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Participação do auditório ............................................ 177 José Leite Saraiva, Janice Magalhães Lamas, Suzana Schwerz Funghetto, Thiago Neiva, Felipe Proenço de Oliveira, Leonardo Esteves, Renato Maia

Financiamento da saúde e os impactos sobre a prática médica, ensino e pesquisa médica ............................. 187

Introdução ............................................................... 187 Janice Magalhães Lamas

Palestrantes ............................................................. 190 Sérgio Piola, Adail de Almeida Rollo

Debatedor ................................................................ 207 Jurandi Frutuoso

Participação do auditório ............................................ 212 Rui Nogueira, Marcelo Iglesias, Lucimar Cannon, José Paranaguá

Planejamento estratégico de gestão, tecnologia, insumos e recursos humanos na saúde ...................... 223

Introdução ............................................................... 223 Janice Magalhães Lamas

Palestrantes ............................................................. 225 Elias Fernando Miziara, Jailson Correa

Debatedores ............................................................. 243 Renilson Rehen, Carlos Vital Tavares Correa Lima

Participação do auditório ............................................ 254 Renato Maia, Leonardo Esteves, Paulo Melo, José Ulisses Calegaro, Rosely Cerqueira, Janice Magalhães Lamas, Elias Fernando Miziara, Jailson Correa, Renilson Rehen, Carlos Vital Tavares Correia Lima

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APRESENTAÇÃO

As publicações acadêmicas da Academia de Medicina de Brasília iniciaram-se em 2009, na presidência do Acadêmico José Leite Saraiva.

As atuais são uma continuidade do acervo que serão dispo-nibilizadas online para o download dos interessados.

A tradição é transmitir aos sucessores os pensamentos e debates que animaram nossas mentes, não apenas para o re-gistro saudoso dos atos passados, mas para documentar o pen-samento crítico do período de abril de 2012 a dezembro de 2012. É constituído de palestras e debates ocorridos durante as Sessões Plenárias com a participação de acadêmicos e mé-dicos de todas as especialidades, presidentes das instituições congêneres – CFM, AMBr, Sindicato dos Médicos, Ministros do Tribunal de Contas da União, Presidente do Conselho Nacional de Justiça, Ministério Público, Secretário-Adjunto de Saúde do DF e imprensa.

Cumpriu a fi nalidade de estimular e contribuir com críticas construtivas junto ao poder público, tendo as atividades e tra-balhos desta Academia de Medicina, relativos à medicina, ampla repercussão na sociedade em geral.

O registro desses eventos preserva a memória da história da nossa instituição.

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É com a sensação do dever cumprido em relação à me-mória desta Academia de Medicina, que hoje entregamos estes Anais ao público leitor.

Brasília, maio de 2013

Janice Magalhães Lamas Presidente da Academia de Medicina de Brasília

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PALESTRATERMINALIDADE DA VIDA

(Sessão Plenária ocorrida em 17/4/2012)

INTRODUÇÃO

O direito de morrer com dignidade, sem prolongar o so-frimento de uma doença em fase terminal pelo uso

excessivo de recursos tecnológicos, constituiu o tema central da Sessão Plenária “Terminalidade da Vida”. O dilema de man-ter essa mecanização excessiva que, ao contrário de promover cura, prolonga a morte, se instala pela ausência de legislação específi ca e de prática médica estruturada em adotar todas as medidas possíveis para manter a vida. Nesse particular, há de se ressaltar que, para a sociedade moderna, morrer implica al-guma falha da medicina.

Muitos fatores conduziram o doente terminal às Unidades de Terapia Intensiva, entre eles a supervalorização dos recur-sos tecnológicos disponíveis no momento atual do desenvol-vimento da medicina, bem como a incapacidade e o ônus dos familiares ou médicos não intensivistas de conviverem com o doente terminal. A morte inevitável é retardada pelas medidas excessivas de suporte da vida, perdendo-se a identifi cação dos limites terapêuticos desse ambiente, à custa de alto e infrutífero

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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA

investimento fi nanceiro, social e psicológico para o doente e sua família e para os profi ssionais de saúde.

A questão é complexa pois envolve determinar a defi nição de vida e a característica irreversível do processo de fi nalização da vida.

A Resolução do CFM n.º 1.931/2009 do Código de Ética Médica, Cap. I, dispõe que “nas situações clínicas irreversíveis e terminais o médico evitará a realização de procedimentos, diag-nósticos e terapêutica desnecessários”. Dispõe que é “vedado ao médico abreviar a vida do paciente ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”. Cabe ao médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis.

Diante de uma situação inviável ou sem possibilidade te-rapêutica, a ortotanásia (do grego orthos = certo; thanatos = morte), com a humanização da morte e o alívio da dor, foi acei-ta e aprovada pelo CFM em 2006. A resolução n.º 1.805/2006 garante ao médico brasileiro o direito de limitar ou suspender os procedimentos que não resultarão em cura ou melhora da qualidade de vida para um doente em processo irreversível de morte. No entanto, para muitos médicos intensivistas, a sus-pensão de um procedimento terapêutico entra em confronto com o conceito da sacralidade, no qual cabe a Deus o papel de fi nalizar a vida. Há de se ressaltar que o direito à vida é assegu-rado pela Constituição Federal, sendo inadmissível permitir ao médico, aos parentes ou ao próprio doente abreviá-la.

A ortotanásia não é considerada crime no Brasil. Porém, essa prática pode ser interpretada, no Direito, como eutanásia passiva, e os profi ssionais de saúde estarão sujeitos a proces-sos penais.

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ANAIS • Ano III

A Constituição de 1988, em seu artigo 5.º, garante o direi-to à vida ao mesmo tempo em que veda qualquer tratamento degradante ou desumano. Assim como a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos de 2005 dispõe sobre a neces-sária atenção à dignidade da pessoa, o direito à morte digna decorre do próprio princípio da dignidade humana.

O Código de Ética Médica do Brasil reforça outros princípios fundamentais da relação médico-paciente: benefi cência, justiça e autonomia.

Tratar o doente terminal implica levar em conta esses prin-cípios com cuidado, uso crítico e apropriado da tecnologia sem praticar uma medicina de tratamento intensivo e a qualquer custo.

Estabelecer as situações em que tratamentos dolorosos e invasivos sejam infrutíferos na impossibilidade de cura ou recu-peração é a questão central.

O testamento vital ou diretiva antecipada de vontade, na falta de legislação específi ca, constitui recurso, lavrado em car-tório, em que as pessoas podem manifestar quais procedimen-tos deverão ser rejeitados no caso de serem acometidas de doenças incuráveis, em fase terminal, baseado no princípio da autonomia.

A diretriz do CFM em relação às características desse do-cumento, com o registro da vontade do paciente, poderá dar suporte ético à equipe médica responsável pelos cuidados desse paciente. Ainda são desconhecidas, porém, as consequências da lacuna jurídica de uma lei federal para regular essa matéria, embora a diretriz do CFM possa representar em parte, um su-porte legal.

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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA

O Poder Judiciário, em particular as Supremas Cortes, dian-te da incapacidade técnica de tratar de temas como ortotanásia e, mais recentemente, das diretivas antecipadas de vontade, nunca se debruçaram na análise da terminalidade da vida. Mas, ao manifestarem suas posições em relação à anencefalia, de-monstram que estão abertos a resolver os confl itos que envol-vem o princípio de dignidade humana na terminalidade da vida. As mudanças propostas para o novo Código Penal Brasileiro in-cluem uma nova legislação sobre a ortotanásia.

A Academia de Medicina de Brasília ao propor discussão sobre esses temas de bioética, que envolvem a fase terminal de vida, insere-se no contexto atual do debate de interesse da cole-tividade, que está a exigir normas que deem segurança jurídica e benéfi ca à sociedade. Somos favoráveis à recente Resolução do CFM de agosto de 2012, que defi niu as “diretivas antecipadas da vontade como os desejos, previa expressamente manifestos pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. Tais temas devem fazer parte da grade curricular das disciplinas de Bioética das escolas de Medicina e dos programas de residência médica.

Acad. Dra Janice M. LamasPresidente da Academia de Medicina de Brasília

PALESTRANTES

DR RONALDO SÉRGIO SANTANA PEREIRA (neuroci-rurgião do Hospital de Base do Distrito Federal): É um prazer

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ANAIS • Ano III

participar dessa reunião, sob a coordenação da nova diretoria da Academia de Medicina de Brasília e, por estar em companhia de pessoas que fi zeram parte de minha formação acadêmica.

Vou me ater ao aspecto fi losófi co e diagnóstico de vida e morte, já que temos palestrantes experientes que abordarão os aspectos mais práticos e objetivos relacionados à vida e à morte.

A morte, este fenômeno tão complexo, faz parte do ima-ginário do ser humano desde seus primórdios. Tem conotação muito importante no momento atual da nossa sociedade em que outras experiências se relacionam com o tema, tais como evolução da tecnologia, transplantes de órgãos etc.

Sócrates fi losofou com o problema da morte. “Pois que, se-nhores, o temer a morte não é outra coisa que parece ter sabe-doria não tendo. É, de fato, parecer saber o que não se sabe. Nin-guém sabe se por acaso a morte não é o maior de todos os bens para o homem e, entretanto, todos a temem como se soubessem, com certeza, de que é o maior dos males. É, senão ignorância de todos, o mais provável acreditar saber o que não se sabe.”

Assim, fi losofar sobre a morte era tarefa que cabia somen-te aos fi lósofos, aos estudiosos. Os fi lósofos históricos, bem mais pessimistas, diziam que já se começava a morrer quando se nascia.

Epicuro disse: “Eu não tenho problema com a morte, por-que onde ela está eu não estou, e onde eu estou, ela não está”.

Arthur Schopenhauer, um fi lósofo mais moderno, um pou-co mais ácido, disse: “A vida é apenas a morte sendo evitada e adiada. E cada vez que respiramos afastamos a morte que nos ameaça e, assim, lutamos com ela a cada segundo. Ao fi m ela vence, pois desde nosso nascimento esse é nosso destino”.

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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA

Alguns fi lósofos achavam que, para realmente conseguir ter o entendimento da vida, seria preciso estar em paz com a morte. Albert Camus escreveu: “Só existe uma liberdade, que é a de chegar ao entendimento com a morte. Depois disso tudo, o mais é possível’’.

Martin Luther King afi rmou que “Nenhum homem é livre se tiver medo da morte”. Quando se perde o medo da morte, então se está livre para viver.

Elisabeth Kübler-Ross – que escreveu muito sobre esse as-sunto –, afi rmou: “Na verdade, a chave para entender os pro-blemas da morte simplesmente abriria as portas para a vida”.

A morte é um fenômeno inexorável que nos acomete. O problema não é saber “se vamos morrer”, mas “quando e como vamos morrer”. Isso abre outros aspectos interessantes, como observa Mountain: “A partir desse ponto que a morte é algo inerente ao ser humano, o homem têm direito à própria morte como tem direito à sua vida”. Quer dizer, morrer é um processo humanamente tão importante quanto nascer e viver. Há aspec-tos éticos e bioéticos intrínsecos nessa afi rmativa que podería-mos tomar como tema de discussão.

A atitude de um grupo social perante a morte depende muito de sua cultura, de sua ideologia, de seus mitos, de sua moral, seus atos, seus costumes. Isso implica os aspectos tem-poral e regional. Grupos sociais em épocas e em situações dife-rentes terão posições diversas em relação ao fenômeno morte. Em Esparta, Grécia Antiga, as pessoas que nasciam deformadas eram mortas, atiradas de um monte. Em Atenas, pessoas ido-sas tomavam um líquido chamado conium maculatum para ter uma morte digna e tirar o sofrimento da vida.

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ANAIS • Ano III

Heródoto considerava que a vida era muito agressiva para o ser humano, e a morte seria um refúgio. Platão discorria que a medicina deveria se ocupar mais dos bens constituídos de corpo e alma, deixando morrer aqueles cujo corpo seria mal consti-tuído. Na Índia, as pessoas portadoras de doenças incuráveis tinham suas narinas ocluídas e eram afogadas no rio Ganges para se purifi carem.

A morte é um caminho natural no processo de envelheci-mento da vida de um indivíduo. Para a sociedade moderna, a morte tem uma conotação ruim e assim passamos a ter medo da morte.

Existe hoje uma idolatria pela vida. Somos uma sociedade midiatizada, com mulheres e homens bonitos, saudáveis. A cul-tura e a indústria da beleza, hoje, é uma coisa absurda, como se o próprio envelhecimento fosse um processo ruim, que de-vemos afastar de qualquer maneira. A morte é vista como algo ruim. A sociedade moderna fez a morte se tornar estranha aos nossos olhos.

Em seu livro A morte e o morrer, Elisabeth Kübler-Ross sustentou que o ser humano sempre abominou a morte e, mui-to provavelmente, sempre a repelirá.

Do ponto de vista psiquiátrico, a morte nunca é possível quan-do se trata de nós mesmos. Se a vida tiver um fi m, este sempre será atribuído a uma intervenção maligna, fora do nosso alcance.

Bernard Lown, em seu livro A Arte Perdida de Curar, es-creveu que atualmente a sociedade prefere uma morte lenta a deixar de viver.

Voltamos aos paradigmas do confronto entre a tecnologia e a tradição do morrer. O morrer fazia parte da vida das pessoas, que morriam em casa, com a família. Hoje, a tecnologia tirou

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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA

essa possibilidade – o indivíduo morre num hospital, na UTI, fora desse ambiente familiar. É a desvalorização da morte em relação à bioética. Este é um tema polêmico. Atualmente, os próprios colegas médicos não querem mais tratar doentes em fase terminal, com quadros complexos – isso é tarefa que cabe aos profi ssionais que trabalham na UTI.

Também para a sociedade moderna, morrer é visto como falha da medicina. A pessoa não pode morrer. Quando esta morre é porque a medicina falhou, o médico falhou, o diagnós-tico estava errado. Perdeu-se o entendimento tríade: nascer, crescer e morrer como fenômeno natural da vida. Bernard Lown observou: “A medicina prolongou a vida, melhorou a vida, mas piorou a morte”.

Peccini discorreu sobre “essa idolatria pela vida”. Quando a vida física é considerada o bem supremo e absoluto, acima da liberdade e da dignidade, há interferência direta na medicina, que passa a assimilar parte desse conceito, resultando em in-vestimento complexo nesse sentido.

Vale ressaltar outro paradigma: o médico deixou de ter a missão de “cuidar” para ter a obrigação de “curar” e, para isso, utiliza-se, por vezes, de princípios e excessos. Há inversão de valores entre a pessoa doente e a doença na pessoa. Deixa-se de tratar a pessoa doente para tratar a doença na pessoa.

O conceito vida e morte é tema para discussões complexas e intermináveis, contudo, podemos tentar defi nir vida e morte. Do ponto de vista fi losófi co, são fenômenos intrínsecos entre si. Na fi losofi a clássica, Platão afi rmou que a alma comumente consciente era distinta e inexplicavelmente ligada ao corpo – isto é, morria-se quando a alma se separava do corpo. Para Aristó-teles, a vida era uma alma com forma substancial e princípio

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vital de qualquer ser vivente, ou seja, era uma dimensão espiri-tual, uma unidade. Para o conceito fi losófi co, existia o humano, o bios. Um indivíduo só seria humano a partir do momento em que recebia em si um espírito, isto é, um humano. Sem esse espírito, sem essa parte humana, não existiria a vida. Então, chegou-se a discutir, à época, o que hoje nos é inconcebível, ou seja, Aristóteles discutiu o momento em que um indivíduo recebia em si o “espírito humano”. Para o homem, em torno de quarenta dias após sua concepção; para a mulher, oitenta, ou mais. Entanto, alma como forma corporis, foi defi nida como dogma católico, por volta de 1312, no Concílio de Viena.

Há ainda a visão fi losófi ca utilitarista, pessimista, em que a vida é valorizada a partir de seu contexto social. Pessoas que não têm utilidade social, dementes ou com lesões corticais e morte cerebral estariam mortas sob a visão fi losófi ca utilitarista.

Bernards, em 1831, defi ne morte como a medicina moder-na compreende, isto é, morte como o cessar permanente do funcionamento do organismo, das atividades motoras espontâ-neas, levada a cabo pela desintegração da maioria dos sistemas e da resposta ao ambiente.

Nesse mesmo prisma, João Paulo II, em 1980, defi nindo vida e morte, disse que “a morte se dá quando o princípio es-piritual, que garante a unidade do indivíduo, não pode exercer mais suas funções no e sobre o organismo”.

Retomando a ideia fi losófi ca antiga do bios e do humano, sob o ponto de vista religioso, principalmente da religião cristã, católica e protestante, a vida é um dom de Deus, propriedade de Deus, inviolável, sagrada, em que o indivíduo não é dono da própria vida, é apenas um guardião de sua vida para Deus. Vida é, portanto, um dom divino. A morte, não seria algo natural. Ela

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foi imputada ao homem a partir do pecado original. O homem teria sido criado para viver eternamente no Paraíso. A morte seria a reintegração desse indivíduo no seio da divindade, o ca-minho de transição para a vida eterna.

Dentro desse conceito religioso, bíblico, há vários grupos fi losófi cos. Há aqueles que defendem essa visão da vida de ma-neira absurda e bem intensa, outros defendem mais a qualidade de vida, ou seja, a vida não existe se não houver qualidade de vida ideal para vivê-la. Há ainda aqueles que defendem ser a vida independente, mesmo com sofrimento, a vida é um dom de Deus que não pode ser violada. Ainda há aqueles defensores do vitalismo físico, do valor absoluto de manter a vida biológica independente de qualquer outro valor. A manutenção do indiví-duo independente, da perda de dignidade, da dor, dos proble-mas econômicos etc. Já os utilitaristas, pessimistas, valorizam a vida apenas com base em sua vida social.

Biologicamente, pode-se conceituar vida sob várias aspec-tos: fi siológico, metabólico, genético e biomolecular. É possível afi rmar que, em uma célula é viva, um organismo está vivo, apenas com esses conceitos biológicos, isto é, o ser capaz de realizar funções básicas como metabolizar, excretar, respirar, morrer, crescer, reagir, trocar matéria com o meio ambiente, alterar suas propriedades gerais e se reproduzir.

Defi nir o momento exato da ocorrência da morte é tema cabível de discussão e é uma preocupação muito característica da cultura ocidental. Os gregos e os egípcios achavam que a morte seria uma fase de transição, jamais um instante defi nido.

Ao tentarmos defi nir morte e vida sob o ponto de vista mé-dico, podemos fazê-lo sob o prisma histológico, isto é, a cessa-ção total e permanentemente das funções do organismo e de

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ANAIS • Ano III

sua interação com o ambiente. A extinção gradativa de tecidos e células, a morte concebida tradicionalmente ou o cessar total de qualquer tipo de energia vital, a decomposição da matéria. A morte não seria um fator isolado, mas uma sequência de eventos.

Tínhamos um conceito tradicional de morte, que era morte cardiorrespiratória, que se dava com a interrupção dos bati-mentos cardíacos. O organismo deixava de funcionar e o indi-víduo entrava em decomposição. A partir de 1969, surgiram os primeiros ensaios sobre transplantes de órgãos, o que causou discussões diversas e complexas. Desde então, modifi cou-se o sítio da morte – que deixou de ser no coração e passou a se criar o conceito de morte encefálica. Novamente o bios e o humano, ou seja, o bios estaria presente e vivo desde o momento em que o humano deixasse de existir. Assim, poderíamos intervir nesse bios, já que o humano o teria deixado – o que se constatou com a morte do indivíduo.

Pio XII também disse que a morte encefálica seria a dissolu-ção da unidade da pessoa. Novamente o resgate do conceito dos fi lósofos gregos de bios e humano, a interrupção das funções car-diorrespiratórias, e a morte do “deixar de funcionar do encéfalo”.

Ariaga, em um de seus artigos, fez um questionamento interessante: “Se a vida é, de fato, uma conjunção de duas rea-lidades, poderemos aceitar a possibilidade da existência de uma vida espiritual independente da vida biológica ou vice-versa?”. Nesse sentido, fi lósofos utilitaristas mais modernos fazem criti-cas severas. A defi nição de “morte encefálica” é eminentemente utilitarista, e serviria muito bem para os propósitos da doação de órgãos. Se há um corpo vivo, ipso facto, em termos fi siológi-cos, teoricamente teríamos uma pessoa humana viva. A incons-ciência por si, mesmo a reversível, de uma forma é, de fato, a

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incapacidade cognitiva e não a morte, se desejarmos um con-ceito mais abrangente da situação. O cérebro seria responsá-vel não só pela unidade do corpo, como também mediador das funções integradoras de todo um organismo. Surgem, com base nesse conceito, correntes diversas como o conceito de morte do neocórtex, defendido por Robert Witch. A pessoa que não tem córtex cerebral é considerada morta, mesmo com suas funções básicas funcionantes. Essa pessoa seria doadora de órgãos para transplantes em potencial.

O tema morte é, de fato, complexo, ou seja, a consciência humana, o humano, o espírito ou a alma residiria onde? Difusa do cérebro? No neocórtex? No sistema límbico ou no tronco cerebral? Quer dizer, com a morte encefálica, em que o cérebro e o tronco cerebral estariam mortos, como arriscar uma resposta precisa a tais perguntas? Porque quando tivermos um tronco cerebral to-talmente morto, teríamos também de desprezar as regulações de tônus miocárdicos, de batimentos cardíacos. Há apenas perda das funções corticais cognitivas e funcionais respiratórias, mas a regulação de tônus e batimentos cardíacos persistem. Ter-se-ia morte encefálica em amplo sentido? É algo a pensar.

Esse conceito de morte encefálica é defi nitivo? Será que estamos vivendo um momento em que esses critérios são ape-nas utilitaristas, em função da nossa realidade? O ser humano, quando está diante de um fenômeno complexo, estranho, cria uma teoria e, a partir daí, constrói toda uma sequência de fa-tos. Contudo, as teorias são sempre refutadas por outras mais concebíveis. Este não é um assunto que não podemos aceitar como fi nalizado, preciso.

A pergunta é: Existe vida real no cérebro? Que fenômeno é esse? Qual é o momento da morte? Em que momento real-

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mente a morte ocorre? Quando o córtex desaparece? Quando o corpo se dissolve? Quando a respiração pára? Estes são con-ceitos fi losófi cos que requerem discussões longas, de consenso improvável.

O que tecnicamente é possível por si não é moralmente ad-missível. Não aceitamos desligar aparelhos apesar de haver con-senso em relação ao diagnóstico de morte cerebral, mas aceita-mos levar a pessoa com morte cerebral para doação de órgãos.

Hans-Martin Sass afi rmou: “Se a interrupção da vida cere-bral é critério de morte, há algo também inversamente propor-cional no início”.

A vida humana, teria início aos primeiros sinais de ativi-dade cerebral? Se há um conceito de morte passível para dar diagnóstico de morte, será também que não seria o oposto? A vida também só começaria quando tivesse a função cerebral? Nesta discussão, caberia incluir situações como o aborto, a cria-ção, porque a atividade cerebral não se inicia logo nos primeiros momentos da fecundação. São diversos os dilemas éticos e bio-éticos que envolvem esse tema.

Peter Singer (1946), fi lósofo australiano sobremodo ácido, moderno e mais amargo em relação a essa temática, afi rma que a morte encefálica é uma decisão ética e não científi ca. E o conceito de morte, embasada na atividade do tronco cerebral é prática, porém extremamente arbitrária.

É complexa, portanto, a discussão sobre vida e morte, ter-minalidade de vida, início de vida, início de morte. Implica cor-rentes fi losófi cas e religiosas, atividades e conceitos biológicos e médicos, intrínsecos entre si, no campo moral, temporal e dos valores sociais.

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Concluo com uma frase de Mário Quintana, que muito apre-cio: “Um dia, pronto, me acabo e seja o que Deus quiser. Mor-rer, que me importa, o diabo é deixar de viver”.

DR ÁLVARO ACHCAR (Terapia Intensiva do Hospital San-ta Lúcia): Não serei tão fi losófi co quanto Dr Ronaldo. Abordarei o lado mais prático desse tema.

Inicialmente digo que não temos uma defi nição do conceito de morte e vida em nossa área, o que é um dilema. A defi nição que temos é mais jurídica do que fi losófi ca.

Busquei alguns conceitos gerais bioéticos para demonstrar como se vê um paciente em fase terminal dentro de uma UTI.

O conceito terminalidade da vida e morte teve início com Dra Elisabeth Kübler-Ross em Chicago, em um hospital psiqui-átrico, quando escreveu a respeito de suas observações ao cui-dar de seus pacientes com câncer em fase terminal, os quais sabiam que iriam morrer. Estes não eram internados.

A terminalidade da vida, atualmente, ocorre na UTI. Talvez devido à supervalorização da vida, as pessoas têm difi culdades de lidar com um enfermo terminal em casa, o que implicaria envolver outros fatores tais como custos, bônus, qualidade de vida dos demais integrantes da família etc. Desse modo, a UTI hoje passou a ser o lugar de morrer, embora muitos pacientes sobrevivam.

Compreende-se, dentre muitos conceitos de morte, o de uma condição natural do fi m de todo ser humano. A ideal acei-tação desse fato, seria a garantia da dignidade daquele que está partindo. Esse conceito é muito complexo.

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Segundo Gutierrez (2001), “a terminalidade de vida é quando se esgotam as possibilidades de resgate das condições de saúde e a possibilidade de morte próxima parece inevitável e previsível. O indivíduo se torna ‘irrecuperável’ e caminha para a morte, sem que se consiga reverter este caminhar”. Isto in-depende da ação do profi ssional de saúde sobre o trajeto inexo-rável do enfermo.

Defi nir essa situação é algo complexo. Devemos ou não intervir no processo? Em que momento parar de intervir?

O desenvolvimento tecnológico-médico, a adesão de me-didas de suporte e vida permitem que se prolongue o tempo de vida das pessoas, difi cultando a identifi cação de limites te-rapêuticos no ambiente de UTI. Fazem-se investimentos para a cura de determinado enfermo, contudo, a inversão de seu quadro é algo complexo. Existe um peso cultural, familiar e da própria concepção do médico.

Denomina-se distanásia o prolongamento de vida em casos que não há esperança de cura. Termo muito mal visto, porque é compreendido como terapêutica obstinada, tratamento mé-dico fútil, que não visa a prolongar a vida, mas sim o processo de morte. É uma concepção negativista. A morte inevitável é apenas retardada, o que demanda custo fi nanceiro alto, social, psicológico para o paciente, familiares e profi ssionais da saúde.

O termo ortotanásia signifi ca morte correta (orthos: certo; thanatos: morte) – pelo processo natural, que se opta por não submeter um paciente terminal ou sem possibilidade terapêuti-ca a procedimentos que comprometem sua qualidade de vida, usando-se condutas paliativas. A ortotanásia se aplicaria a um paciente com quadro terminal em uso de terapia intensiva, com procedimentos como hemodiálise, soro parenteral, drogas vaso-

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pressoras, antibióticos, sistema de ventilação, suporte cardíaco. Ao considerá-lo inviável, então os procedimentos tecnológicos são suspensos e são mantidos a nutrição e o suporte para alívio da dor. Isso se traduz em humanização da morte e o alívio das dores e não incorre em prolongamentos abusivos da morte que impõem sofrimentos adicionais. Esse é um risco sério, porque a ortotaná-sia é uma máscara tomada como empréstimo da eutanásia.

A eutanásia é proibitiva, é negada por nós. A eutanásia é um suicídio assistido, em que matamos a pessoa. Contudo, comete-se eutanásia passiva ao substituir ou suspender proce-dimentos terapêuticos?

Morrer com dignidade não deve ser confundido com direito à morte. Esse é um sinônimo de eutanásia ou de auxílio ao sui-cídio, intervenções que causam a morte, antecipando-a. A or-totanásia para alguns pode ser considerada eutanásia passiva.

Em 2006, o CFM publicou uma resolução sobre a termi-nalidade da vida. Dispõe que, na fase de enfermidades graves incuráveis, é permitido ao médico limitar ou suspender proce-dimentos já instalados, garantindo-lhe os cuidados necessários para alívio do sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente e ou do seu repre-sentante legal.

O Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria Ge-ral da República do DF, determinou ao CFM a revogação dessa resolução, por entender que a medida é uma afronta ao direito à vida e constitui incitação e apologia ao homicídio, com amea-ça de entrar com uma ação civil pública na justiça federal caso o CFM não atenda à recomendação.

O ato de suspender medicações é um poder dado ao médi-co. Defendo que, nós, profi ssionais de saúde, temos esse direito.

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No conceito de sacralidade, não temos o direito de tirar a vida das pessoas. Ao decidir suspender um procedimento terapêutico, o médico está assumindo o papel de Deus.

O Ministério Público Federal lembra que ortotanásia e eu-tanásia são tratadas como homicídio no Código Penal Brasileiro. O direito à vida está assegurado pela Constituição Federal. No conceito do Procurador Geral da República Wellington Marques Oliveira é considerado crime até o auxílio ao suicídio. Assim, é inadmissível permitir o médico, parentes ou o próprio doente abreviar a vida, praticar homicídio. O correto é deixar o doente morrer no tempo adequado.

O art. 121 do Código Penal discorre sobre a eutanásia em:

§ 1.º – Se o agente comete o crime impelido por mo-tivo de relevante valor social ou moral, ou sob o do-mínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

O que é morrer dignamente? Isto foi tema de discussão no V Congresso Médico-Espírita. Morrer dignamente é para aquele indivíduo com câncer em fase terminal e não para o doente que entrou numa UTI com possibilidade terapêutica.

Morrer dignamente signifi ca:

• Morrer sem dor, com anelgesia, sem sofrimento físico e na hora certa. Ninguém na UTI, hoje, nas redes moder-nas, morre com dor. Os indivíduos são sedados com alta dose de derivados de morfi na;

• Morrer na presença de entes queridos e ou amigos – uma situação ideal ou desejável;

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• Morrer onde queira morrer: em casa, por exemplo. O indivíduo entra no hospital para se submeter a uma ci-rurgia e, durante o processo cirúrgico, acontecem im-previstos, como uma lesão neurológica, por exemplo. A pessoa deverá ser mantida no hospital;

• Não ser abandonado e, quando possível, participar das decisões, dos cuidados.

Conceitos éticos e religiosos diversos. Para o conceito do profi ssional médico deverá ser o de salvar e manter vidas.

Os avanços tecnológicos, na área da medicina, inviabilizam delimitar os limites das possibilidades terapêuticas. Avançamos em muitas coisas, mas não em relação ao ser humano. Ainda não são bem delineados os limites entre o tratar e o cuidar. Criam-se possibilidades terapêuticas de retardamento da mor-te, indevidamente, em situações em que não se pode identifi car o limite do poder da ciência e da tecnologia na manutenção da vida. Assim, a questão não será do diagnóstico e do prognósti-co. É muito mais ampla, pois envolve a própria defi nição de vida para que se possa determinar o momento de seu término ou a característica irreversível do processo de fi nalização da vida.

Recorremos a questionamentos quando nos sentimos obri-gados a tomar decisões:

• Que critérios defi nem a vida, o momento de seu térmi-no? Quem defi ne? Qual paciente poderá ter o tratamento e os procedimentos terapêuticos suspensos?

• O que é um tratamento fútil ou inútil? Fútil para o quê? Para a cura? Para o prolongamento da vida? Para o alívio da dor e da ansiedade?

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Não se deve admitir o esgotamento dos recursos para a cura ou da qualidade de vida do doente que caminha para o fi m. Há sempre algo a ser feito, tanto para o doente que preci-sa de cuidados quanto à família, com vista ao alívio da dor e à diminuição dos desconfortos. Mas, sobretudo, propiciar a pos-sibilidade da fi nitude da vida, junto de alguém que possa ouvir e dar suporte.

Considera-se luto prolongado o prolongamento da vida dos doentes em situações terminais. Seria esse luto justifi cá-vel em alguma situação? São diversos os tipos de pacientes e o comportamento das famílias. Há famílias que não aceitam esse luto. Visualiza-se, no momento em que o indivíduo en-contra-se no fi m de sua vida, o refl exo do que ele foi durante toda a sua trajetória, bem como seus relacionamentos, suas escolhas. Somos, nós médicos de UTIs, muitas vezes, extre-mamente agredidos por familiares que têm interesses diversos e velados e dependem do enfermo em fase terminal para so-lucioná-los. Somos vistos, nesses casos, como empecilho. Em outros casos, se ele morre, frustramos os familiares, porque “não permitimos que ele fi casse vivo”, falhamos na possibili-dade de cura.

A imagem de um doente terminal em UTI com suporte de alta tecnologia ilustra um exemplo, com certo exagero, de dis-tanásia:

• Onde está o doente? O que estamos fazendo? Estamos tratando a doença ou o doente? Há aparelhos respirató-rios, drogas, tubos. Não é possível ver o paciente;

• A charge mostra o que seria uma brincadeira do mundo moderno. Lê-se: “Ups! Liguei o Control, Alt e Del’’.

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DR ARTHUR H. P. REGIS (Advogado; professor universi-tário; membro da Comissão de Bioética, Biotecnologia e Biodi-reito da OAB-DF; e membro da Diretoria da Sociedade Brasileira de Bioética): Para ilustração – e descontração – do tema, cito inicialmente, ipsis litteris, um trecho do Auto da Compadecida, de autoria de Ariano Suassuna, meu conterrâneo, no qual o personagem Chicó – ao identifi car a morte de João Grilo – grita: “João! Não tem mais jeito! João Grilo morreu! Acabou-se o grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu a sua sentença e encon-trou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino na Terra. Aquele fato sem explicação que iguala o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre”.

A morte está intrinsecamente relacionada ao fenômeno vida, dentro do que seria o ciclo de vida, a expectativa de um ciclo de vida dito normal é nascer, crescer, reproduzir e morrer. A discussão do tema vida persiste ainda na comunidade cientí-fi ca, é mais fácil perceber o fenômeno, a existência da vida do que defi ni-la. Não há uma defi nição ou um conceito fechado, ou seja, há vários conceitos e muita discussão acadêmica.

Por sua vez, o conceito de vida do ser humano estará dire-tamente relacionado ao recorte realizado. A partir desse ponto, dessa janela, pode-se defi nir quando se inicia e quando termina a vida humana. Nesse contexto, a questão da eutanásia, da distanásia e da ortotanásia será discutida sob o prisma jurídico.

A Medicina e as Ciências Biomédicas não constituem Ciên-cias Exatas, como, por exemplo, a Matemática, a Física. O Direi-to também não se enquadra nas Ciências Exatas. Pelo contrário, caracteriza-se como ciência interpretativa. Então, existem duas ciências inexatas – a Medicina (Ciências Biomédicas) e o Direito –

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tentando dialogar. O Direito é um fenômeno histórico-social. Ele evolui e se altera de acordo com as mudanças ocorridas no seio da sociedade.

Um evento bem clássico que bem ilustra a modifi cação, a evolução do Direito, em consonância com as mudanças da so-ciedade, é o fato de que, há cinquenta, setenta anos, sequer se cogitava discutir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, instituição esta reconhecida, recentemente, pelo Supremo Tri-bunal Federal. Isso mostra que ocorreram mudanças históricas e dos paradigmas sociais. O Direito acompanha essas mudan-ças, é mutável.

A Teoria Tridimensional do Direito, do professor Miguel Re-ale, considera que o Direito se fi rma no seguinte tripé: o Direito é um fato social e quando valorado moralmente recebe uma re-gulamentação, uma normatização. Se o legislador entendesse, por exemplo, que o homicídio fosse algo moralmente aceito, ao invés de o agente que cometeu a ação cumprir pena, ele rece-beria uma benesse. O legislador entendeu que foi uma postura inaceitável que merecia ser banida, ser extirpada da sociedade.

Este é um exemplo sobremaneira clássico do Direito en-quanto ciência interpretativa. Ilustra ainda como pequenas questões no Direito vão modifi car a conclusão fi nal de determi-nada análise realizada. Tem-se o seguinte caso hipotético: em um local imaginário, uma pessoa se encontra aguardando sua execução de pena de morte. De repente, a autoridade (monar-ca, presidente, etc.) que poderá livrá-la da pena de morte, po-dendo conceder-lhe o perdão, manda um recado ao carrasco. O carrasco abre o bilhete que contém o recado, que está mal es-crito, ilegível e sujo. O carrasco tem difi culdade para lê-lo, não consegue identifi car mesmo uma vírgula. Então, em uma pri-

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meira possibilidade o bilhete conteria o seguinte teor: “Perdoar, impossível executar a pena”. Em uma segunda versão, apenas modifi cando o posicionamento da vírgula, tem-se a mensagem: “Perdoar impossível, executar a pena”. Percebe-se que “a mera” posição da vírgula altera todo o resultado fi nal praticado pelo carrasco, demonstrando a complexidade do Direito. Ademais, o Direito deve ser interpretado sistematicamente, tendo sempre como norte os ditames e os princípios do texto constitucional.

A Constituição Federal de 1988 discorre sobre a dignidade da pessoa humana como um dos pilares fundamentais da Repú-blica Federativa do Brasil (artigo 1.º, inciso III), garantindo, no caput do seu artigo 5.º, o direito à vida e vedando qualquer tipo de tratamento degradante ou desumano (artigo 5.º, inciso III). O Código Civil de 2002, por sua vez, no seu artigo 15, dispõe que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se com risco de vida, a tratamento ou a intervenção cirúrgica”. No campo internacional, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) também trata sobre a necessária observação à dignidade da pessoa humana. Toda construção jurídica passa por essa proteção, esse reconhecimento ao princípio da digni-dade humana como fundamental para o ser humano.

Por seu turno, a Resolução do Conselho Federal de Medi-cina (CFM) n.º 1.931/2009 – o Código de Ética Médica –, em seu Capítulo I (Princípios Fundamentais) dispõe que, “nas si-tuações clínicas irreversíveis e termináveis, o médico evitará a realização de procedimentos, diagnósticos e terapêuticos des-necessários”. Dispõe ainda que “é vedado a esse mesmo médico abreviar a vida do paciente ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”.

A Resolução CFM n.º 1.805/2006 também dispõe que: “na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao

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médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados neces-sários para aliviar o sofrimento, os sintomas que levam ao sofri-mento”. Seu artigo 1.º reforça o que já foi dito no artigo anterior: “permitir ao médico limitar ou suspender os tratamentos”.

Dentro desse arcabouço jurídico, vejamos os projetos de lei existentes na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, as casas legislativas responsáveis pela elaboração das leis fe-derais.1

Os projetos de lei (PLs) que tratam especifi camente da eutanásia trazem a seguinte conformação: (1) os PLs n.os 4.662/1981 e 732/1983 estão arquivados e permitiam a prática da eutanásia (todos os posteriores PLs – PL n.º 999/1995; PL n.º 5.058/2005; PL n.º 2.283/2007 – tentam inserir a prática da eutanásia no rol dos crimes hediondos – à exceção do PL n.º 1989/1991, já arquivado, que vai dispor sobre a possibilidade de prática da eutanásia em algumas circunstâncias); (2) hoje, tramita o Projeto de Lei n.º 3.207/2008, que vai incluir o indu-zimento e a instigação ou auxilio ao suicídio e à eutanásia e ao aborto provocado nos crimes considerados hediondos. O refe-rido PL tramita em apensado ao Projeto de Lei n.º 4.703/1998, que também dispõe sobre a classifi cação do aborto como crime hediondo.

No que tange à distanásia, não há nenhum Projeto de Lei tramitando no Congresso Nacional. Apenas em 2002 é propos-to o primeiro PL que versa sobre a regulamentação da prática da ortotanásia no Brasil. Os PLs que englobam o tema trami-tam em conjunto e são eles: PL n.º 3.002/2002 (regulamenta

1 As palavras-chave utilizadas na busca foram: “terminalidade da vida; eutanásia; ortotanásia; e distanásia”.

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a prática da ortotanásia no Brasil); PL n.º 6.715/2009 (altera o Código Penal para excluir de ilicitude a ortotanásia); PL n.º 5.008/2009 (proíbe a suspensão de cuidados de pacientes em estado vegetativo persistente); e PL n.º 6.544/2009 (dispõe sobre cuidados devidos a pacientes que se encontrem em fase terminal de enfermidade).

Sobre o tema, um fenômeno que vem permeando o Poder Judiciário é a abertura de Audiências Públicas, ou seja, o Poder Judiciário reconhece sua incapacidade técnica para tratar des-ses temas e pede ajuda à sociedade médica e à comunidade científi ca.

No Poder Judiciário, as Cortes Superiores (Superior Tribu-nal de Justiça – STJ e Supremo Tribunal Federal – STF) nunca foram provocadas, nunca se debruçaram especifi camente para análise da temática da eutanásia, da ortotanásia ou da dista-násia. Entretanto, em relação aos temas relacionados e que perpassam pela dignidade da pessoa humana, ao início e tér-mino da vida, temos a análise da constitucionalidade da Lei de Biossegurança (Lei n.º 11.105/2005). Durante o julgamento, no qual ocorreram audiências públicas, o Supremo Tribunal Federal discutiu sobre a questão dos embriões e se os embriões seriam considerados seres humanos ou não.

Em outro recente julgamento, da ADPF2 n.º 54, relaciona-do à anencefalia, o Supremo Tribunal Federal realizou a oitiva da comunidade científi ca e, nos votos dos ministros, restaram claro o reconhecimento da proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana, servindo como ponto norteador para as dis-cussões que tratem de terminalidade da vida.

2 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF.

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Importante destacar que a Resolução CFM n.º 1.805/2006 (que tratava sobre a ortotanásia) restou liminarmente com seus efeitos suspensos. Depois, ao julgar o mérito da demanda, o magistrado da 4.ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, entendeu pela legalidade da referida Resolução, sob, em sínte-se, os seguintes argumentos: (1) a Resolução trata de ortota-násia e não de eutanásia ou de suicídio assistido; (2) o evento morte é um evento certo e representava uma verdade e, no caso, na impossibilidade de dar conforto ao paciente terminal que terá uma morte menos dolorosa e mais digna; (3) a ortota-násia não é considerada crime no Brasil,3 (4) o direito à morte seria decorrência do próprio princípio da dignidade da pessoa humana. O que está garantido na Constituição Federal não é simplesmente o direito à vida, é o direito à vida digna, uma vida permeada por sua dignidade.

Em breves considerações fi nais, é certo que há uma lacu-na legal no que tange à matéria sobre terminalidade da vida, o que causa insegurança jurídica. As resoluções do Conselho Federal de Medicina, dentro da hierarquia das normas, jamais suplantam ou afastam um dispositivo do Código Penal ou de qualquer outra Lei Federal. Entende-se que o processo de ela-boração dessa norma ainda inexistente deva ser fi ado dentro de um processo de discussão democrático e bioético, com debates com a sociedade e com a comunidade científi ca; e que a norma deve permitir o exercício da autonomia do paciente.4

3 Destaca-se, porém, como já exposto, que o Direito é de natureza interpretativa. Então, pode ocorrer que essa prática venha a ser interpretada pelo membro do Ministério Público como sendo alguma forma de eutanásia passiva e o profi ssional da área de saúde pode responder a um processo penal, ainda quando ao fi m o processo penal seja julgado improcedente. Re-conheço que essa possibilidade é possível.

4 Entende-se que a nova legislação deve ser nos moldes da Lei de Transplantes (Lei n.º 9.434/1997) no que tange à competência do Conselho Federal de Medicina para defi nir os critérios de diagnóstico da morte. Dessa forma, consegue-se dar maior elasticidade à norma. Caso contrário, toda vez que os critérios foram alterados pela evolução das Ciências Biomédi-cas, a norma perderá sua aplicação.

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Por fi m, aproveito o espaço oferecido e informo a todos que no ano de 2011 foi realizado pela Comissão de Bioética, Biodireito e Biotecnologia da OAB-DF o “1.º Seminário de Saúde Pública do Distrito Federal” que resultou da formulação da “Car-ta Brasília Para Humanização da Saúde”. Uma das propostas, tendo em vista o desenvolvimento das biotecnologias, é a cria-ção de Comitês de Bioética Hospitalar, como elemento auxiliar dos profi ssionais de saúde nas tomadas e no auxílio de decisões nas situações limítrofes. Um fragmento da citada Carta traz ex-pressamente o “apoio à Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde, Movimento Humaniza SUS e seu com-prometimento com a implantação dos Comitês de Bioética Hos-pitalar na Rede Pública do Distrito Federal”.5

Ademais, informo que, no presente ano de 2012, nos dias 8, 9 e 10 de maio, foi realizado o “II Seminário de Saúde Pública do Distrito Federal”. Foram abordados os temas: Saúde Pública na visão da Bioética e dos Tribunais; Código de Ética Médica e Responsabilidade Civil; Aspectos Éticos e Legais nos Comitês de Bioética. Foi apresentada uma proposta de Projeto Normativo para os Comitês de Bioética Hospitalar.

Nesse contexto, é do interesse da Comissão de Bioética, Biodireito e Biotecnologia da OAB-DF caminhar em harmonia com a Academia de Medicina de Brasília nos debates sobre as temáticas bioéticas, no fortalecimento da sociedade e da demo-cracia.

Mais uma vez, agradeço o honroso convite e coloco-me à inteira disposição. Boa noite.

5 A íntegra da “Carta Brasília Para Humanização da Saúde” está disponível no sítio da OAB (http://www.oabdf.org.br/sites/1600/1678/CartaBrasiliaparaHumanizacaodaSaude.pdf).

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PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO

Acad. Dr Antonio Marcio Junqueira Lisbôa (Ex-Presi-dente da AMeB): Escrevi um livro, A Criança e a Natureza, em que dediquei um capítulo ao tema da morte. Abordei questões como: Quando é que devemos conversar sobre a morte com a criança? Quando e em que momento a criança compreende a morte? Quando a criança perde um ente querido, qual deve ser a conduta das pessoas e principalmente dos médicos?

Porque eu, com meus 62 anos de Pediatria, e outros, que sentimos quando morre uma criança, não queremos dar a notí-cia? Se possível, delegamos às enfermeiras ou ao Serviço Social essa tarefa. Sempre deleguei essa missão a alguém, porque nun-ca gostei de dar a notícia à família. Inclusive, nós, médicos, não temos conhecimento sobre o tema. Não aprendemos na academia a lidar com essas questões relacionadas ao problema da morte.

Uma conduta errônea é protegermos a criança, impedindo que ela veja o corpo do ente querido – pai, mãe etc. O mesmo ocorre com relação ao cônjuge que se enviuvou. Nesse caso, a pessoa, a criança, é impedida de viver o luto e, mais tarde, apre-senta problemas psiquiátricos. É salutar que a criança vivencie o luto, ter ciência de que o pai morreu mesmo e não voltará jamais, que não foi para o céu, que não foi para lugar nenhum, que ele morreu. Deve-se aproveitar e ensinar a criança quando, por exemplo, ela perde um bichinho de estimação. Deve-se dizer a ela, oportunamente, que todo mundo nasce e morre.

Certa vez, vivenciei um problema muito sério. Atendi a uma criança, fi lha de um lavrador, que chegou em choque ao hospital. Teve gangrena na perna, e o pai não permitiu que amputassem

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aquele membro da criança. Foram feitos todos os procedimen-tos – ou amputaria a perna da criança ou ela morreria. Tentei falar com o Conselho Regional de Medicina, falar com a OAB, com uns amigos meus e não obtive resposta. O problema teria que ser resolvido de imediato, ninguém dizia nada, eu não ti-nha suporte nenhum. O pai me disse: “Não admito que corte a perna do meu fi lho e vou levá-lo para fora desse hospital, que é um direito meu”. Apresentou-me os seus motivos, o que me chocou, quando disse: “Doutor, como é que uma criança pode viver sem pé? Como é que uma pessoa pode viver sem pé”? Era um lavrador. Então ele se foi levando o fi lho do hospital.

Então devemos trazer a debates questões relacionadas à atuação do médico diante do tema morte. Questões estas que abordam a atuação do médico com relação à família, à socieda-de, ao enfermo, como conversar com o enfermo, com a família. Como preparar o indivíduo para morrer.

Agradeço aos palestrantes por essa aula de Filosofi a e Direito.

Acad. Dr Edno Magalhães: Necessito antes justifi car uma questão. Se perguntássemos a um grupo de pessoas que trabalham constantemente com pacientes em estado grave: Quando se deve começar uma reanimação cardiorrespiratória? A resposta correta seria: A qualquer momento em que haja uma parada cardiorrespiratória. Nós ouvimos aqui que a Consti-tuição Brasileira proíbe tratamentos ou que se tenham atitudes durante o tratamento que possam ser consideradas desumanas e degradantes.

Por outro lado, parece-me, o sistema jurídico brasileiro as-segura o direito à vida, mas não assegura pelo menos de forma normatizada o direito de morrer. Como eu poderia classifi car,

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sem peso de consciência, sem medo de errar, que um tratamen-to é supérfl uo?

Dr Álvaro Achcar: Essa questão não está defi nida. É bas-tante clara para nós, mas nem sempre muito bem defi nida.

Às vezes, não se trata de uma reanimação. É deixar o pa-ciente falecer. Há quando se instituem certas terapêuticas, em que já chegou ao nosso limite, a recomendação é a não reani-mação. Esses pacientes são intitulados como para não serem submetidos à reanimação. Em caso de parada cardiorrespira-tória, o paciente não deve ser submetido à reanimação. Isso quando tiverem sido esgotadas todas as possibilidades terapêu-ticas, a família já ter sido avisada e o paciente já estiver em fase terminal. A própria enfermidade do paciente indicará isso. Não devemos nos basear em critérios como a idade do paciente, por exemplo. Isso é um procedimento proibitivo. Quanto maior for o estado patológico do paciente, considera-se o estado em que ele se encontra. Esse paciente não vai ter uma parada, mas uma morte. Ele vai falecer.

Acad. Dr Edno: O senhor evitaria então tratamento supér-fl uo quando se tratar de um paciente exclusivamente terminal?

Dr Álvaro Achcar: Exatamente. Quando se esgotaram to-das as possibilidades terapêuticas.

Acad. Dr Renato Maia (geriatra): Boa-noite, meus cum-primentos à presidente por essa discussão, aos palestrantes.

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Morrer custa caro. Estudos de economia em saúde mos-tram que o maior gasto em saúde, no mundo, se realiza nos seis últimos meses de vida do indivíduo. É normal pensarmos que morrer custa caro. Gasta-se mais com a morte nos últimos seis meses de vida do indivíduo.

A morte tem representado cada vez mais custos, porque a partir da década de 60 houve hospitalização da morte. Até a década de 60, a morte podia ocorrer em casa, com o doente cercado pelos fi lhos, vizinhos, amigos. A partir da década de 60, houve uma hospitalização da morte. A partir da década de 70, eu diria que, até mais que uma hospitalização da morte, houve uma UTIzação da morte.

Qual o resultado disso? Houve uma melhoria de qualidade? Houve mais humanização? Não. Nenhum ganho em termos mo-rais ou humanos com a hospitalização da morte. Com isso tudo, o que é mais grave ainda é que as gerações de médicos – e aí já são duas ou três gerações – passaram a ter medo da morte. A morte na Medicina passou a ser associada ao fracasso. A cura sim é o sucesso, a morte é o fracasso. E ninguém quer o fracasso.

O tema morte não é discutido no Curso de Medicina. Não se pode praticar medicina sem haver uma base fi losófi ca. O fato de a morte ser considerada um fracasso provoca polêmica entre os jovens médicos. Morreu um paciente no hospital à noite. Quem é que vai assinar o atestado? Vira uma correria! O médico se esconde para não assinar o atestado de óbito. Ninguém quer. É como se fosse assinar um fracasso, uma vergonha.

A crítica ao médico é porque agimos também em termos de expectativas sociais. O médico não é um ser independente. Agimos de acordo com nossa cultura e com expectativas sociais em relação a isso.

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A questão da distanásia é indiscutível. O “vale-tudo” na Medicina ninguém discute. A ortotanásia tem sempre um procu-rador para discutir. A distanásia não. A distanásia é não respei-tar muitas vezes o doente terminal. Eu pergunto aos colegas: Por que um paciente que tem doença de Alzheimer em fase fi nal é admitido na UTI? Porque falta alguém com peito para dizer: “Esse paciente vai morrer. Ele não tem mais qualidade de vida”.

Portanto, acho que precisamos parar de falar em qualidade de vida e discutir o que seja qualidade de morte. Morrer tem que ter qualidade. Porque não se pode afi rmar que na UTI se morra sem dor. Mundialmente, o consumo de morfi na em re-lação ao número de óbitos por câncer doloroso, por exemplo, ósseo, é muito inferior, ou seja, a dor é uma companheira na morte no mundo inteiro.

O que precisamos saber é que morrer é menos uma ques-tão de tratamento intensivo que uma questão de cuidados pa-liativos. Cuidado paliativo não é o cuidado que não deu certo; não é cuidar da turma que não sabe entubar; não é o cuidado daquele que não estudou direito Medicina. É uma forma de cui-dado que tem de ser discutida e valorizada.

Quanto à legislação, eu sou cético. No Congresso Nacio-nal, a questão do aborto é dramática, porque envolve a mulher pobre, miserável, inculta – esta morre. É um assunto difícil, in-digesto, porque atinge a mulher pobre, inculta e sem dinheiro. Porque duvido que não haja, entre os políticos brasileiros, pelo menos uma ou duas parentes que não recorreram ao aborto. Mas aí, no caso, é um aborto caro, pago, elegante e que não se pode comentar. Pensar que o Congresso Brasileiro vai discutir eutanásia é pensar que vamos acabar com a corrupção pura e aberta.

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Auditório: Existem na Europa os centros que praticam medicina voltada ao cuidado paliativo. Trata o doente terminal com dignidade, cuidado e tecnologia sem praticar essa medicina intempestiva de tratamento intensivo a qualquer custo. No Bra-sil, não podemos falar muito sobre o tema, mas existem cada vez mais, nos Estados Unidos e na Europa, esses centros de tratamento paliativo.

Existe sim, no Brasil, uma UTIzação da morte. Se construís-semos três mil leitos de UTIs, seriam poucos, porque hoje todos querem ir para a UTI. O trabalho médico, o próprio médico, hoje, não quer tratar o doente em estado grave, o doente complexo.

Não que eu seja contra a UTI, porque eu também gostaria de ir se precisasse. Mas penso que estamos invertendo deter-minados valores. Exemplo: o doente é operado em um hospital privado, será tratado de rotina na UTI. O mesmo não ocorre no serviço público – caso contrário, o sistema fi caria conges-tionado, porque não há como tratar todos os doentes na UTI. Alguns tentam implantar isso no Hospital de Base. Um doente de neurocirurgia deve ser tratado na UTI? Então não se pode operar. Na verdade, UTI não é pela doença, é pela complicação do doente. Mas se criou hoje a expectativa no meio médico de que tudo deve ir para a UTI. Isso aí passa por esse processo também, na terminalidade da vida ou na morte.

Dr Arthur Regis: Morrer é complicado. Contudo, se custa caro é porque muitos estão lucrando com isso. Há uma série de interesses nesse fenômeno, nesse processo de morrer.

Infelizmente, a história mostra que o nosso Congresso é fa-lho. Mas ele é falho também porque, em parte, nossa sociedade

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é falha, e porque nós, eu me incluo, não fazemos nosso dever de casa de pressionar os parlamentares, de organizar, de fi sca-lizar, de cobrar. Posso afi rmar, porque já fi z estudos no Congres-so, que essa temática não interessa aos nossos parlamentares.

Dr Álvaro Achcar: Essa questão de ter coragem para de-clarar ou deixar o paciente com Alzheimer terminal, etc., eu considero certo o que a lei determina. O que vale é a legislação, o Código Civil e o Código Penal. Não é por conceito fi losófi co. O indivíduo está com um parente dele com Alzheimer, fase termi-nal, dependendo do médico ou do assistente dele. Ele não está preparado. Ele quer que o parente dele vá para a UTI e viva. Interessa que o coração dele bata e que ele respire. Essa é uma difi culdade muito grande para a UTI. O paciente morre e a famí-lia já vai à polícia fazer um boletim de ocorrência de homicídio e ainda faz um processo. Todo mês respondemos a processos.

Dr Arthur Regis: Trabalho no Comitê Distrital de Saúde. Ocorre frequentemente uma decisão judicial para que um deter-minado hospital disponibilize vaga na UTI. As vagas já estavam todas ocupadas. A resposta do médico, que veio do hospital, foi: “Decida Excelência, decida senhor juiz, quem é que eu devo tirar daqui desse leito para colocar essa pessoa que V. Exa está determinando, que está aqui com a força policial, porque eu não vou escolher quem vai sair do leito de UTI para cumprir uma decisão judicial”. Essas são questões, que estão sendo debati-das e não são de fácil resolução e é para isso que esses eventos ocorrem. Ainda que a gente caminhe com passos de formiga, ao que me parece, estamos no norte certo.

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Acad. Dr Procópio Miguel dos Santos: Gostei muito das explanações. É também um prazer ver aqui o Dr Ronaldo, com o qual tive oportunidade de conviver na UnB na época em que ele fez a tese de doutorado, assim como na Escola Superior de Ciências da Saúde, quando trabalhamos juntos. Gostei muito da palestra de Dr Arthur Régis, uma pessoa tão jovem e engajada com a saúde pública. E Dr Álvaro eu já conhecia por intermédio de Dr Callegaro.

O que eu gostaria de dizer é, em relação à diretiva anteci-pada de vontade, questão discutida em um encontro nacional Conselhos de Medicina aqui em Brasília. Tivemos a ajuda do promotor Dr Diaulas – em que o próprio paciente e às vezes um familiar poderá fazer essa declaração. O próprio paciente pode fazer antes uma declaração antecipada de vontade, se ele não quer que faça tudo que possa lhe causar sofrimento. Então pro-vavelmente vai ser criada uma Resolução.

Gostaria de perguntar ao Dr. Arthur Régis e até aos outros componentes da Mesa também, se for sair mesmo essa Reso-lução da diretiva antecipada de vontade – o que acham dessa diretiva antecipada? Perguntei: Por que “diretiva” e não “decla-ração antecipada”? Dr. Diaulas Ribeiro disse: “Não, porque foi assim traduzido”. Do que ele viu em vários países, inclusive Es-tados Unidos, sobre essa diretiva antecipada, ele só pode então fazer seu argumento.

Dr Arthur Régis: Ao que parece, pela informação, a di-retiva foi trazida de um sistema norte-americano. No sistema norte-americano, a autonomia da vontade é exacerbada em re-lação ao nosso entendimento de princípio biomédico, de princí-pio ético normatizador.

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Essa diretriz do CFM vai, sem dúvida, auxiliar. Mas de manei-ra alguma poderei afi rmar que, com base nessa diretiva, o pro-fi ssional médico poderá se isentar de responder a um processo criminal mais à frente. Ainda permanece aquela questão do lim-bo jurídico, da lacuna jurídica de uma lei federal para regular essa matéria.

No que se refere à ortotanásia, se a prática for diferente, pelo menos as discussões serão em prol da pessoa que está em estado terminal como doente e que nenhum medicamento ou tratamento vai mais fazer efeito para prolongar seu estado de vida. Nessa perspectiva, o médico não terá ação. O mundo jurídico é interpretativo e, em tese, não se consegue tipifi car, adequar uma conduta ao que preconiza o Código Penal. Um promotor, um delegado, poderão ter uma interpretação errônea e responder juridicamente por isso.

Auditório: Isso é um aspecto interessante e vale a pena discuti-lo, porque um dos princípios básicos da dignidade huma-na e da bioética é a autonomia. O indivíduo tem autonomia so-bre sua vida, seus direitos, seus bens. Posso decidir não querer me submeter a uma cirurgia, a um tratamento, recusar tomar determinado medicamento, mas não posso decidir se eu quero ou não morrer? Esse é um debate fi losófi co. A autonomia deve ser respeitada em sentido lato. Se eu tenho condições intelec-tuais e emocionais para tomar decisões, posso decidir de modo fi losófi co, porque tenho esse direito.

Dr Arthur Régis: Deixem-me trazer um pouco mais de le-nha, de elementos para essa discussão a respeito da autonomia.

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Eu posso dispor sobre os meus bens em vida. Posso dispor a minha casa para minha esposa. Há segurança jurídica nessa disposição. Contudo, minha declaração de doação ou não doação dos meus órgãos não dispõe de nenhuma validade jurídica. Isto é paradoxal. Posso doar meus bens, e minha vontade será res-peitada, mas quanto ao fato de eu ser ou não um doador, a le-gislação dispõe que será alguém da minha família que irá decidir após minha morte. Este é mais um tema para essa discussão referente à diretiva antecipada da vontade. O Código Civil asse-gura ao indivíduo o direito de ele não ser obrigado a se submeter a nenhum tratamento médico. Eu posso recusar a me submeter a um tratamento médico e minha vontade ser respeitada. Mas mesmo se o paciente aceitar o tratamento, se durante algum procedimento acontecer um imprevisto emergencial, o médico deve tentar um procedimento alternativo para salvar o paciente, sem a expressa autorização do paciente ou recusaria, assumin-do o risco de ser depois penalmente responsabilizado?

Dr Álvaro Achcar: O médico deverá ir até o fi m. Não in-terromper nada. “Ajoelhou, tem que rezar”. Porque ocorre que quem vai nos julgar não será o paciente, não será nossa ação benevolente, de boa moral. Quem vai nos julgar será a famí-lia, o Judiciário. O paciente está sob tratamento? Teremos que tentar. Não existe a defi nição de estar ou não morto. Serei ou não acusado de homicida. Esse é o problema mais sério. Mui-tas vezes, estamos segurando uma situação, realizamos todos os procedimentos possíveis em estados vegetativos – não são nem persistentes, são defi nitivos, porque o doente está há seis meses e vai fi car três, quatro anos naquele estado. Há exa-mes comprobatórios. Futuramente, pode aparecer algo novo,

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no campo da genética ou com células-tronco, que salvará aque-le doente vegetativo. Contudo, está comprovado que o quadro é irreversível e não podemos fazer interrupção do tratamento.

Constata-se que, atualmente, há situações críticas em que existe paciente terminal cuja família depende de sua pensão. A morte dele não signifi ca apenas morte, mas a perda de dinheiro na família. A família não permite que seja interrompido o trata-mento em hipótese alguma. Temos o exemplo de uma ex-espo-sa, pensionista, de um procurador que tinha uma aposentadoria em torno de 25 a 30 mil reais, e as fi lhas dependiam da aposen-tadoria. Morrer era algo inconcebível, uma loucura! O paciente estava em coma, quase um vegetal e não podia morrer.

Auditório: E o inverso, quando a família quer usufruir dos bens e almeja a morte do paciente?

Dr Álvaro Achcar: Quer que morra? Aí seria o outro lado da moeda. O profi ssional de saúde sempre vai ser culpado caso algo suceda mal e será responsabilizado. Então vamos ser cau-telosos e não agir de acordo com conceitos fi losófi cos. Ou se modifi ca a Constituição para nos dar subsídios ou não obedece-remos a critérios advindos de declarações de procedência inter-nacional, a exemplo da que temos advinda dos Estados Unidos. Faremos uma medicina defensiva, com base em nossa realidade.

Auditório: A prática diária deve ser muito mais rica e mui-to mais complexa. Por exemplo, eu assinei a diretiva antecipa-da de vontade, não recebi tratamento e venho a falecer. Minha

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mulher depois representa contra o médico alegando que não foi observado o que o havia no histórico. Que naquele momento, eu estaria com problemas de depressão, talvez demência. Isto ocorre na prática, e o profi ssional de saúde precisa se resguar-dar de tais eventualidades.

Sra Annik Persign (Comissão de Bioética-OAB): Ao Dou-tor Procópio. Sou universitária, da Comissão de Bioética da OAB. Conheço o trabalho do Professor Diaulas Ribeiro. Ele escreveu cerca de três artigos sobre diretivas ou diretrizes antecipadas de vontade – como ele conceitua. Dr Diaulas polemiza a ques-tão. Ele defende duas teses incríveis. Por mais que se tenha uma Resolução do Conselho Federal de Medicina, há os Códigos Civil e Penal e a Constituição. No que diz respeito às diretivas, há que se ter ampla discussão sobre ortotanásia, distanásia, eutanásia.

Acad. Dr José Callegaro: Parece que chegamos a um círcu-lo vicioso referente a algumas questões fi losófi cas, como: O que é vida? É o curso da morte. O que é a morte? É o curso da vida. Circulamos dentro do que se criou a respeito da terminalidade.

Vale ressaltar dois aspectos. Importa refl etirmos a respeito da dignidade da morte e da dignidade da vida. Porque a vida já não tem mais dignidade para um paciente terminal em estado vegetativo.

Outro aspecto importante a ser discutido, talvez para nos resguardarmos como profi ssionais médicos, na Medicina, há que se tratar cada caso distintamente. Caso a caso. Cada cir-cunstância deve ter tratamento ímpar.

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Dr Cid Carvalhaes (AMe/SP): Sou membro da Academia de Medicina de São Paulo, me chamo Cid Carvalhaes. Cumpri-mento a Mesa, na pessoa do meu querido amigo Ronaldo Sérgio, de antigas andanças. Agradeço à nossa presidente.

Trago aqui três experiências vivenciadas em momentos distintos de vida profi ssional.

Por volta de 1995, vivenciamos um episódio ocorrido numa UTI de um hospital em São Paulo, o qual nos inspirou escrever o livro “UTI muito além da técnica”. Este foi, durante um bom pe-ríodo, referência para diversas UTIs no Brasil. Apresentamos a terminalidade da vida, discutindo, por exemplo, quais as possi-bilidades terapêuticas, de prognóstico fechado, enfi m, questões ainda não muito bem confi guradas na Medicina. Concluímos que, na maioria das vezes, a problemática se refere ao hospital ou à UTI e à relação direta médico-paciente. Entendemos que relação médico-paciente substancia o binômio consciência-con-fi ança de reciprocidade com a morte.

Somos, às vezes, o refl exo do Congresso Nacional e, este, o nosso refl exo. Tive a honra de integrar a Comissão Nacional de Revisão do Código de Ética Médica. Foram três anos de dis-cussão em âmbito nacional. Tivemos a oportunidade de ouvir os mais distintos segmentos da sociedade, o que nos trouxe muito mais dúvidas do que certezas, muito mais problemas do que soluções, por ser discussões regionalizadas, partida-rizadas, elitista, de interesses religiosos, por estratifi cação socioeco nômica.

Também sou advogado, membro da Comissão de Direitos, Planos Médicos e Hospitalares da OAB de São Paulo. Em nossas discussões, não chegamos a uma conclusão se a legislação bra-sileira, numa sociedade efetivamente democrática e de direito

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que somos, não prover parâmetros estabelecidos que nos ga-rantam segurança jurídica. A autonomia, os princípios da bioéti-ca, do bom senso e do respeito fundamental à dignidade da vida nos faz lembrar o Papa João Paulo II que, em seu leito de morte, disse: “Chega. Deus me quer e está na hora de eu entregar a alma ao Senhor”.

Dra Mariângela Cavalcante (médica da Pastoral da Saú-de): Sou médica da Pastoral da Saúde. Anualmente temos um Congresso Brasileiro de Humanização da Saúde promovido pela Pastoral da Saúde em São Paulo. Tive a oportunidade de ler a tese do Dr Léo Pessini, doutor em Biologia Moral, sobre a dista-násia. Quer dizer, até quando prolongar a vida? Ele é um grande defensor dos cuidados paliativos, dispostos como uma situação urgente para a saúde pública no Brasil.

Tivemos muitos progressos científi cos nos últimos anos, a ponto até de coisifi car a pessoa humana com o propósito de enaltecer, endeusar a tecnologia e a ciência.

É fundamental a continuidade dessa discussão, também a respeito da emergência e da urgência dos cuidados paliativos na saúde pública do Brasil.

Acad. Dra Maria Mouranilda Schleicher: A fi nitude da vida não é discutida na família, nem se discute nas faculdades o tema terminalidade da vida. Poucos médicos têm a oportunidade de fazer um bom curso de Bioética para obter uma formação quanto aos aspectos fi losófi cos na Medicina. Eu tive essa opor-tunidade depois de muito tempo de formada, ao término da dé-cada de 90. Trabalhava com diálise e transplante e, à época, me

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deparei com várias situações, de ter que dialisar um paciente em condições terminais, sem perspectivas e nos submetíamos às intervenções da família por medo do delegado. O mesmo ocorria no Pronto-Socorro do Hospital de Base, em que tínha-mos que atender a determinações do juiz, mesmo sem leitos disponíveis na UTI.

Trabalhando com transplante, à época, minha monografi a foi sobre doação presumida de órgãos. À época, de acordo com nossa legislação, todo brasileiro era um doador de órgãos. Os brasileiros não foram consultados, o modelo foi importado da Espanha, e a lei não vingou. Hoje a família decide quanto à do-ação de órgãos do ente querido que venha a falecer.

Minha preocupação, hoje, refere-se aos estudantes de gra-duação, aos residentes, aos professores de medicina. Contudo, há dez anos, os temas bioéticos que envolvem a fase terminal da vida fazem parte das diretrizes curriculares do médico e dentre outros como aborto, situações persistentes nas urgências etc. A Bioética no currículo é incipiente em muitas faculdades.

Minha proposta é incluirmos esses temas no currículo de residência médica como obrigatoriedade. Leciono para a Resi-dência Médica pelo CRM, o curso de atenção hospitalar é obri-gatório.

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PALESTRADENGUE: DESAFIOS ATUAIS

E PERSPECTIVAS DE SEU CONTROLE (Sessão Plenária ocorrida em 22/5/2012)

PALESTRANTE

O dengue é a principal doença reemergente do mundo. Dois e meio bilhões de pessoas estão expostas ao risco

de adquirir essa doença em países tropicais e subtropicais da Ásia, África e América. Sua transmissão é fundamentalmente urbana e diurna.

Após a II Guerra Mundial, a partir do sudeste asiático, sua incidência vem aumentando e apresentando formas clínicas mais graves, inclusive letais.

Há referências de casos de dengue desde o século XVIII, na África, Ásia e América do Norte. No Brasil, há relatos em 1846, no Rio de Janeiro, em 1852 e 1916, em São Paulo, em 1923, em Niterói (RJ) e no período fi nal de 1981 e início de1982, em Boa Vista, RR. Em 1986, houve a primeira grande epidemia no País, no Estado do Rio de Janeiro.

É uma doença metaxênica e seu principal vetor é o mosqui-to Aedes aegypti. Este é atualmente o único elo vulnerável da cadeia epidemiológica para redução da transmissão do dengue, pois ainda não há tratamento nem vacina efi caz e segura.

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Os fatores responsáveis pela reemergência do dengue não são totalmente conhecidos, porém o aumento da densidade de infestação das áreas urbanas pelo mosquito Aedes aegypti é um dos principais. Dado o tipo de criadouro preferencial desse mos-quito (depósitos artifi ciais de água), esse aumento deveu-se a vários fatores, entre eles, o processo intenso e rápido de urba-nização da população, as condições precárias de saneamento e a habitação de boa parte dessa população, os processos produ-tivos modernos, privilegiando embalagens não biodegradáveis, o aumento do número e da frequência de viagens marítimas e aéreas, aumento da produção de veículos automotores, com destino inadequado de pneus usados e a inefi cácia de progra-mas de controle vetorial.

O Brasil e mais dezoito países das Américas, nas décadas de 1950 e 1960, eliminaram esse mosquito de seus territórios, numa luta contra a febre amarela urbana, também transmitida pelo Aedes aegypti. Porém, essa eliminação não foi sustentada e atualmente apenas o Canadá e o Chile não registram a pre-sença desse vetor.

As difi culdades para o controle vetorial são numerosas. Po-dem ser destacadas a necessidade de um contingente muito grande de servidores para inspeção domiciliar periódica, proble-ma da segurança e acesso às habitações, falta de atendimento às demandas de abastecimento regular de água e coleta de lixo, multiplicidade de borracharias, depósitos de ferro velho, terre-nos baldios e cemitérios, considerados pontos estratégicos de proliferação de mosquitos e resistência do vetor aos larvicidas e inseticidas disponíveis.

No Brasil, de 2000 a 2011, foram registrados 4 a 5 milhões de casos prováveis, 580.431 hospitalizações no SUS, 71.677

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casos graves e 2.195 mortes, segundo dados do Ministério da Saúde. O Aedes aegypti está registrado em todos os estados e no DF, em mais de quatro mil municípios do País. Altos custos estão relacionados a controle, prevenção, diagnóstico e trata-mento dos casos.

A incidência do dengue tem seguido sua história natural pela baixa efi cácia das medidas de controle atualmente dispo-níveis. No Brasil, a doença tende para o padrão epidemiológico asiático, ou seja, predomínio da maior incidência e gravida-de em menores de 15 anos etários, pela imunidade adquirida aos quatro sorotipos pelos adultos sobreviventes. Os objetivos do programa nacional de controle são a redução dos óbitos, redução da gravidade, redução das dimensões das epidemias e redução da incidência. Os dois primeiros dependem funda-mentalmente do setor saúde, o que garante acesso oportuno a diagnóstico e atendimento de qualidade, já normatizado, aos casos suspeitos. Os dois últimos dependem fundamentalmen-te da articulação entre diferentes setores da sociedade como, educação, abastecimento regular de água, coleta regular de resíduos sólidos, habitação, controle da migração rural-urbana, controle de pontos estratégicos de proliferação do vetor e con-trole da produção e destino adequado de embalagens descar-táveis e pneus.

Há necessidade de novos instrumentos científi cos e tecno-lógicos para aprimorar o controle da dengue, entre eles, testes de diagnóstico laboratorial rápido, tratamento da causa, vacina protetora efi caz e segura, novos inseticidas e larvicidas para superar a resistência do mosquito aos atualmente disponíveis, indicadores de infestação mais acurados e medidas de controle vetorial mais efi cazes.

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Inicia-se o uso de um teste de detecção do antígeno NS1 (glicoproteína não estrutural) no soro, a partir do primeiro até o terceiro dia da doença. Algumas drogas antivirais estão sendo testadas ainda na fase pré-clínica. Alguns produtos candidatos a vacina já se encontram em fase avançada de desenvolvimen-to, tanto tetravalentes, com vírus atenuados, quimérica com o vírus da febre amarela, como as tetravalentes com vírus atenu-ados isolados.

Entretanto, a luta contra o Ae. aegypti terá que continuar, pois ele também pode transmitir outras arboviroses, como os vírus da febre amarela, da encefalite equina do Leste, da en-cefalite equina do Oeste, os vírus Mayaro, La Crosse e o Chi-kungunya, além da microfi lária Dirofi lária immitis. Quanto ao vírus Chikungunya, três casos já foram confi rmados no Brasil, oriundos da Indonésia e da Índia. Há risco de transmissão no Brasil. Essa doença tem um quadro clínico semelhante ao den-gue, porém com menor letalidade e maior tempo de duração de dores articulares.

Há necessidade de novos indicadores mais acurados de in-festação pelo mosquito vetor, pois os atuais não dimensionam adequadamente o nível da infestação. Novos indicadores estão sendo testados, como os que avaliam a infestação por insetos adultos.

Novas tecnologias de controle vetorial para ação combina-da estão em desenvolvimento, entre elas inseticidas e larvicidas ecologicamente mais seguros e efi cazes para a supressão de mosquitos adultos e larvas, busca de mosquitos geneticamente modifi cados com vida mais curta para impedir que se trans-formem em infectantes e mosquitos infectados com a bactéria Wolbachia, resistentes à infecção pelos vírus do dengue.

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O controle do dengue no mundo, não apenas no Brasil, é um dos maiores desafi os atuais para a saúde pública dos países tropicais e subtropicais. Espera-se que novas armas de controle da doença sejam desenvolvidas o mais rapidamente possível.

Acad. Prof. Dr Pedro Luiz Tauil

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PALESTRAINTERNAÇÃO HOSPITALAR – VOLUNTÁRIA,

INVOLUNTÁRIA E COMPULSÓRIA PARA DEPENDENTES QUÍMICOS DE ÁLCOOL, CRACK

E OUTRAS DROGAS, COMO ESTRATÉGIA DE ATENÇÃO MÉDICO-PSICOSSOCIAL E

COMBATE AO USO DE DROGAS (Sessão Plenária ocorrida em 26/6/2012)

INTRODUÇÃO

O Dia Mundial de Combate ao Uso de Drogas – 26 de ju-nho de 2012, foi escolhido pela AMeB para se discutir

a questão da internação voluntária, involuntária e compulsória dos dependentes químicos de álcool, drogas e crack como tema da Sessão Plenária, colocando em debate ações preventivas mais abrangentes, em contraposição às de repressão, priorita-riamente assumidas tanto pelo governo como pela sociedade.

Este debate se afl ora pela crescente escalada do uso de drogas na atualidade, o que afl ige toda a sociedade, e pela ne-cessária inclusão dos dependentes químicos na política de hu-manização e atenção à saúde.

Do ponto de vista jurídico, pode-se suplantar a autonomia da vontade, como um dos direitos fundamentais assegurados pela constituição, quando há limitações intrínsecas à liberdade.

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Ao perder o controle de si mesmo, o usuário de drogas pode ter sua liberdade cerceada.

A internação voluntária, a qual se dá com o consentimento do usuário, é prescrita pelo médico, porém, há de se levar em conta que os dependentes químicos têm difi culdade de acesso ao sistema formal de saúde, público ou privado.

A internação involuntária se dá sem o consentimento do enfermo ou a pedido de parente. O Pro-SUS controla, fi scaliza e avalia a necessidade de internação. Pesquisa da Datafolha indicou aprovação da internação involuntária, por parte da po-pulação, tendo por pano de fundo o caráter higienista de acordo com a teoria da invisibilidade ou da delegação.

A internação compulsória pode ser entendida como uma estratégia de acesso ao serviço de saúde, indicada após avalia-ção técnica do CAPS, com fi nalidade terapêutica desprovida do caráter permanente ou de clausura, sendo fundamental a etapa seguinte mais importante, que é dada pelo suporte da Rede de Saúde Mental e da própria família.

A internação compulsória é determinada pela Justiça em face da indicação médica de necessidade da internação. A famí-lia, diante da incapacidade de solucionar a questão, delega esta à Justiça.

O crescente consumo de drogas no País tem despertado confl itos a respeito do estabelecimento da melhor forma de tra-tar os dependentes químicos de álcool, drogas e crack, já que a questão resulta da desigualdade social, do desemprego, das facilidades do tráfi co, que exigem ações mais enérgicas e inves-timentos, em última análise, em educação, acesso ao trabalho e justiça social.

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Como epidemia entre os jovens, sobretudo nas classes me-nos favorecidas, o uso de crack exige medidas mais efi cientes que os recursos extra-hospitalares com o objetivo de contê-lo. Impõe, entanto, avaliar quais das modalidades de internação estão mais indicadas – caso a caso:

• internação involuntária – a pedido de terceiros, da família;

• internação compulsória – determinada pelo juiz;

• independentemente do tipo, a fi nalidade deve ser a rein-serção social.

Quando a integridade do usuário e de sua família corre risco, a decisão de internar compulsoriamente baseia-se na pro-teção humana, e a avaliação médica deve preceder a determi-nação da Justiça. Torna-se importante estabelecer tratamento de suporte após a alta hospitalar, seja pelos CAPS, seja por am-bulatórios, com fi nalidade de inserir o dependente em seu meio social, familiar, com a perspectiva de poder trabalhar.

A internação, em todas as modalidades, não se torna viável pela falta de infraestrutura hospitalar com número insufi ciente de leitos para internação e baixa cobertura da Rede CAPS, sen-do insufi ciente a articulação destes com a Atenção Básica e as Ações do Programa Saúde da Família.

Há de se ressaltar a pouca capacitação dos profi ssionais envolvidos – saúde, assistência social e educadores.

Como bem ponderou o Ministro do Tribunal de Contas da União, presente a este debate temático nesta Academia, Dr José Múcio Monteiro Filho, a droga constitui problema de países ricos e pobres, porque envolve princípios religiosos, educacionais e de família.

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O número de usuários e dependentes é crescente pela atu-ação avassaladora do tráfi co, que movimenta mais de quatro-centos bilhões de dólares no mundo, sendo o Brasil o segundo maior consumidor de cocaína, seguido dos Estados Unidos. Se-gundo o Ministro, a proposta de mudança à lei n.º 11.343/2006 tem por base o fracasso das políticas de combate ao tráfi co, pela legislação proibitiva e repressiva, a qual só favorece o nar-cotráfi co e os policiais corruptos. Considerou a descriminaliza-ção do consumo para uso pessoal e limitada a uma estratégia para reduzir o tráfi co pelo crime organizado.

A descriminalização do porte de drogas, baseada na pre-missa de que o dependente químico necessita de tratamento e não de condenação carcerária, deve ser mais bem avaliada com base em argumentações irrefutáveis de evidências científi cas, recentemente publicadas, a respeito do efeito irreversível da maconha nos neurônios.

A liberação de consumo individual de drogas como a maco-nha tornará o usuário mais vulnerável e susceptível ao consumo de drogas mais nocivas. O aumento do consumo de drogas, em particular do crack, e a semente da violência encontram razões na desestruturação da família, como bem afi rmou nosso queri-do Acadêmico e fundador Antônio Márcio Junqueira Lisboa. Nas-ce um bandido quando nasce uma criança que a família rejeita, quando a agride fi sicamente, quando é modelado na mentira, na desonestidade e em falsos valores. Nesse particular, é im-portante o papel da escola na formação das crianças, que deve ir muito além da alfabetização e passa pelo ensinamento de valores morais e éticos. A questão é que a criança não assimila valores quando nem a família nem a escola a ensinam.

Enfrentar o problema das drogas implica também desesti-mular o prazer compulsivo – seja resultante de drogas lícitas,

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como álcool e fumo, ou aliado ao apelo do consumismo, desta-cando-se a compulsão do uso de Iphones por crianças e ado-lescentes, na atualidade, como ponderou o Diretor da Saúde Mental da Secretaria de Saúde do DF, Dr César Augusto.

A busca da sensação de felicidade que as drogas momen-taneamente propiciam refl ete a falta de amor e de sonhos dos jovens e da multidão de adultos frustrados pelas ambições não contempladas de riqueza, sucesso e beleza, impostas por uma sociedade competitiva e egocêntrica.

Acad. Dra Janice M. LamasPresidente da Academia de Medicina de Brasília

PALESTRANTES

DR JOSÉ THEODORO CORREA DE CARVALHO (Pro-motor de Justiça do MPDFT. Doutor em Direito. Conselheiro do CONEN-DF. Professor de Direito Processual Penal): Boa-noite a todos, à presidente, aos colegas debatedores – Dr Augusto Costa, Sr Bruno de Souza, Dr Antônio Geraldo, Dr Roberto Tykanori.

Muitíssimo obrigado pelo convite. É uma satisfação imensa somar a esta ilustríssima plateia em um debate tão interessan-te, hoje, Dia Mundial de Combate ao Uso de Drogas. Esta é uma questão importante que afl ige a todos nós. Parabenizo a Acade-mia de Medicina pela iniciativa.

Eu divido o tema com os demais debatedores. Irei focar o aspecto jurídico da questão. Inicio analisando, constitucional-mente, a possibilidade ou não de suplantarmos a autonomia de cada cidadão, em relação à internação involuntária ou com-

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pulsória e discutiremos se será possível suplantarmos ou não a autonomia da vontade.

Deve-se observar, primeiramente, que os direitos funda-mentais são relativos, uma vez que todos os direitos encontram limitações externas, bem como em si mesmos. O direito à vida, por exemplo, aparentemente absoluto, se torna relativizado quando estamos em situação de confronto, de perigo, ou que exija defesa própria. Então, em legítima defesa ou em estado de necessidade, posso suplantar uma vida diante dos valores que estão em jogo. Outro exemplo: a liberdade – segundo o princípio jurídico, somos livres para fazer o que quisermos, in-clusive com o nosso corpo.

Há limitações intrínsecas ao valor da liberdade. Exemplo: não sou livre para me sentar no mesmo lugar ocupado por outra pessoa, que exerceu o seu direito à liberdade de se sentar, an-tes de mim. Assim, há limitações em minha liberdade, que é a liberdade exercida por outrem. Outro exemplo quanto à limita-ção da liberdade ocorre quando essa liberdade encontra ou en-tra em choque com outros valores ou bens: a integridade física de alguém. Não sou livre para sair despreocupado movendo os meus braços, estapeando a face de alguém, porque a integrida-de física do outro limita minha liberdade.

Há situações em que é juridicamente possível restringir a liberdade para proteger o direito à saúde ou à vida. Uma pessoa usuária de drogas, quando perde o controle de si mesma, pode ter sua liberdade cerceada e necessitar de intervenção.

A liberdade e o consumo de drogas é uma questão muitíssi-mo discutida. Recentemente, uma comissão de juristas apresen-tou proposta de reavaliação do Código Penal para permissão, e não mais criminalização, do consumo de drogas. Este é um tema

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tormentoso, difícil, porque juridicamente se defendem os dois pontos de vista. Uma pessoa, juridicamente, tem o direito de fazer o que lhe aprouver com o próprio corpo, mas faz-se neces-sário avaliar os aspectos sociais nos quais o problema se insere.

Defendo que, do ponto de vista social, devemos manter a proi-bição do consumo de drogas. Juridicamente é possível a permissão do consumo de drogas. Sem quaisquer sanções estatais. Mas so-cialmente isso se faz inviável, uma vez que teríamos aumento do número de consumidores, da necessidade de mais programas de Atenção à Saúde e de segurança pública. Se for dito: “Use drogas livremente”, o usuário de drogas perderá a percepção de risco e poderá vir a perder o autocontrole, sendo incentivado a praticar crimes por estar sob efeito da droga ou para obtenção desta.

Temos legislação que assegura internação involuntária? Em 1921 e 1932, tivemos as primeiras normas relativas ao tema, posteriormente, em 1938, surgiu uma lei que tratava de toxi-comania. Esta, antiga, nunca foi revogada. Portanto, há pos-sibilidade de internação, segundo o disposto no artigo 27 do Decreto-Lei n.º 891/1938:

Artigo 27. A toxicomania ou a intoxicação habitual, por substâncias entorpecentes, é considerada doença de notifi cação compulsória, em caráter reservado, à autoridade sanitária local. (Não é permitido tratamen-to em domicílio.)

§ 1.º A internação obrigatória se dará, nos casos de toxicomania por entorpecentes ou nos outros casos, quando provada a necessidade de tratamento adequa-do ao enfermo ou for conveniente à ordem pública. Essa internação se verifi cará mediante representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público, só se tornando efetiva após decisão judicial.

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A Lei Antimanicomial n.º 10.216/2001 assegura o trata-mento com direito a presença médica, hospitalização excepcio-nal, ambiente terapêutico com meios menos invasivos, serviços comunitários, conforme discorre o artigo 4.º:

“A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insufi cientes.”

Assistência integral:

§ 2.º O tratamento em regime de internação será es-truturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo--se serviços médicos, de assistência social, psicológi-cos, ocupacionais, de lazer e outros.

É vedada a internação em instituições asilares:

§ 3.º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com caracte-rísticas asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos re-cursos mencionados no § 2.º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2.º.

O artigo 6.º traz a regra que nos interessa:

Artigo 6.º A internação psiquiátrica somente será re-alizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize seus motivos.

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:

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I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário, o paciente tem ciência que precisa de internação, esta é prescrita pelo profi ssio-nal médico;

II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro. O paciente é considerado incapaz e a um parente é de-legada a função do pedido de internação, que é reco-mendada por um psiquiatra. O Ministério Público de-verá ser comunicado em 72 horas, segundo disposto no § 1.º: “deve haver comunicação em 72 horas ao Ministério Público”. No Brasil, a Pró-SUS é a promo-toria que controla, fi scaliza e avalia a necessidade de internação;

III – internação compulsória: aquela determinada pela Justiça artigo 9.º: o juiz determina a interna-ção observando a indicação, da especialidade médica, quanto à necessidade de internação.

[...]

Artigo 9.º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz compe-tente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do pacien-te, dos demais internados e funcionários.

O Estatuto da Criança e do Adolescente também discorre a respeito da internação compulsória. De acordo com o disposto no artigo 98, havendo necessidade de medida socioeducativa, a autoridade competente poderá, dentre outras medidas, inciso V: (i) determinar requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico em regime hospitalar ou ambiental; (ii) inclusão em programa ofi cial ou comunitário de auxílio; (iii) orientação

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e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; (iv) acolhimento ins-titucional, isto é, em abrigo; (v) a inclusão em programas de acolhimento familiar; (vi) colocação em famílias substitutas.

Nas situações relacionadas ao uso de drogas e nas quais um menor se encontra em situação de rua, faz-se necessária a intervenção compulsória, que poderá ocorrer por meio de: acolhimento institucional; tratamento terapêutico; inserção fa-miliar ou em família substituta, em programa de tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

Outro desafi o, além de observar o ordenamento jurídico, é o de avaliar, investigar se há anuência por parte da popula-ção. Após debates sobre o tema, no Rio de Janeiro, a Datafolha realizou uma pesquisa e constatou que a população aprova a internação involuntária, porque considera que é dever do Es-tado “recolher” as pessoas que vivem em situação de rua. De-preende-se que a população, ao priorizar a internação, quer se livrar do “problema”. Ressalto, nesse sentido, o caráter higie-nista e a teoria da invisibilidade ou da delegação: “Se eu não estou vendo, o problema não existe. Se eu limpei das ruas, então, nossa sociedade é maravilhosa”! A família, diante de sua incapacidade de resolver o problema, delega-o a alguém: “Fiz minha parte: mandei o problema para alguém, agora eu estou com a consciência tranquila”. Contudo, não caberá ao juiz ou à família avaliar se a internação se faz necessária, mas ao pro-fi ssional médico.

Contudo, a internação – voluntária, involuntária ou com-pulsória – se depara com o problema da falta de infraestruturas. Há iniciativas governamentais que objetivam ampliar e adequar locais de internação já existentes. Há ONGs empenhadas em trazer a sociedade para esse debate – as comunidades tera-

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pêuticas, por exemplo. Não há leitos sufi cientes para atender à demanda que necessita de internação. Dessa forma, como atender compulsoriamente quem não quer tratamento se não há disponibilidade do serviço nem aos que o reivindicam volun-tariamente?

O mesmo se observa em relação à população carcerária. Reunimo-nos, os promotores, com Dr Rafael Barbosa (Secretário de Saúde), Dr Alírio Neto (Secretário de Justiça) e com Dr San-dro Avelar (Secretário de Segurança Pública) para tratarmos da situação carcerária. No sistema prisional do Gama, existe a Ala de Tratamento Psiquiátrico – ATP. Contudo, se constata precarie-dade no tratamento, porque não se difere do sistema prisional convencional, habitualmente com cerca de cem detentos, inim-putáveis ou semi-imputáveis, agrupados em cinco, seis celas.

Assim, se pretendemos um modelo de tratamento no qual o dependente químico seja privado de liberdade, então seria melhor que o adotássemos primeiramente no sistema prisional, uma vez que já existe um “cenário” apropriado para um mode-lo piloto – o que não seria exatamente um tratamento ou uma internação compulsória ou involuntária. Destarte, seria impres-cindível respeitar a vontade de cada detendo quanto à aceita-ção ou não do tratamento. Não existem, contudo, no âmbito do GDF, infraestruturas seguras para contenção daqueles que ne-cessitam internação compulsória, e faltam vagas para aqueles que, voluntariamente, desejam tratamento.

Concluindo-se, a liberdade não é um bem ou um direito absoluto. Para a internação compulsória ou acolhimento invo-luntário faz-se necessária a observação da legislação vigente. Há que se diferir internação de acolhimento. Aquela se refere à internação por indicação médica, esta é indicada ao menor em

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situação de risco. O menor que vive em situação de rua deve ser “acolhido” pelo Estado, para tratamento, independentemen-te de ter doenças mentais ou de ser usuário de drogas. Como já foi dito, falta infraestrutura para internação do menor; para o adulto existem os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que estão aumentando em número, paulatinamente, cada dia.

Considero que deve ser priorizado o tratamento voluntário, mas, para tanto, há que se pensar em locais adequados para atendimento aos dependentes químicos que necessitem de inter-venção terapêutica. O tratamento involuntário é possível, mas a medida deve ser excepcional, individualizada e avaliada conforme critérios exclusivamente médicos, jamais para atender à pressão social, tampouco a interesses políticos que objetivam ostentar um Brasil sem drogas, sem brasileiros vivendo em situação de rua, com projetos sazonais de “limpeza” das ruas das metrópoles brasileiras como em época de Copa do Mundo, Olimpíadas etc.

Agradeço a todos pela atenção.

DR AUGUSTO CÉSAR DE FARIAS COSTA (Gerente da Saúde Mental-SES-DF): Boa-noite a todos – Dra Janice, mem-bros da Academia de Medicina de Brasília, colegas, Dr Theo-doro, Dr Geraldo – Vice-Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Dr Tykanori – Coordenador Nacional do Programa Saúde Mental.

Vou tratar de dois temas: o Plano Diretor de Saúde Mental e o Plano Distrital de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas.

O Plano Diretor de Saúde Mental foi construído, na gestão do Dr Ricardo Lins, pelas ofi cinas de planejamento estratégico. Embasado na Política Nacional de Saúde Mental ele preconiza,

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primeiramente, a reinserção psicossocial como modo principal das intervenções em saúde mental. Remontando-se aos primór-dios da história da psiquiatria, esta nasce nos navios. Porém, ressaltamos aqui a sua reforma, em fi ns do século XVIII, em Paris, na França.

Philippe Pinel, ao escrever seu Tratado Médico-Filosófi co Sobre a Alienação Mental ou a Mania (1801), caracteriza a lou-cura e dá início à psiquiatria moderna. O tratamento psiquiá-trico por meio de internação em hospital era uma prática mais lógica que durou cerca de duzentos anos, até, possivelmente, o fi m da Segunda Guerra Mundial. A internação era um procedi-mento que atendia às necessidades da sociedade, dos próprios psiquiatras ‘higienistas’ à época.

Primeiramente, a “psiquiatria clínica” compreendia interna-ção em hospital psiquiátrico, que era considerado um ambiente social onde se instalava a loucura, isto é, se instalavam os ‘lou-cos’. Depois, surgiram os hospitais-colônia.

No Brasil, ao fi m da década de 60, a reforma psiquiátri-ca culminou com a reformulação democrática do hospital psi-quiátrico. Assim, surgiram os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), as comunidades terapêuticas, os centros de cultura e lazer que visam a garantir, ao paciente e à sua família, atendi-mento nas diversas fases de seu adoecimento, de sua recupe-ração e sua inserção social.

Diante do disposto, a lógica da internação psiquiátrica che-ga ao século XXI, ocupando o imaginário social como único e melhor procedimento dentro da Psiquiatria. Nessas últimas três décadas, vêm-se demonstrando que a internação psiquiátrica – preconizada na Lei n.º 10.216 – é um procedimento que deverá ser realizado depois de esgotados os demais.

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Devemos estar alertas para o fato de que, atualmente, quando se fala em ‘louco’, fala-se em internação, por ser um procedimento de aprovação social e dos profi ssionais de saúde e saúde mental, mais precisamente. Contudo, a internação não é ‘o procedimento’, mas ‘um dos procedimentos’ que a medicina atualmente disponibiliza.

O Plano Distrital de Enfrentamento ao Crack e Outras Dro-gas foi elaborado pensando-se em atender a essa perspectiva. Construído por quinze Secretarias de Estado, foi lançado em 31 de agosto de 2011 pelo Governador Agnelo Queiroz no dia 31 de agosto do ano passado. Constitui um ‘plano de enfrentamen-to’ que busca a intersetorialidade com enfoque na intervenção exclusivamente médica – único modo de abordar a questão das drogas, dada sua complexidade.

A Presidente da República, no dia 7 de dezembro de 2011, lançou também um plano denominado O Crack é Possível Ven-cer – que objetiva, em síntese, a intersetorialidade, a diversida-de dos procedimentos e a reinserção social.

O Plano de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas en-cerra dois eixos temáticos, que são ações estruturantes e ime-diatas, a saber, prevenção, tratamento, inserção, capacitação, mobilização social, pesquisa e redução de oferta.

Dentre as linhas de prevenção do plano, destacam-se pro-jetos educacionais de cunhos artísticos e culturais, como Viva a Vida, Droga Comigo Não Rola, Programa Saúde e Prevenção nas Escolas, Picasso Não Pichava, Esporte à Meia-Noite e uma série de providências, encaminhamentos e ações desenvolvidas por secretarias diversas – palestras, campanhas publicitárias.

Vale ressaltar a mudança da nomenclatura de Secreta-ria Nacional de Políticas ‘Sobre’ Drogas e não mais Secretaria

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Nacional de Políticas ‘de Combate’ às Drogas, porque o modelo de ‘combate’ foi abolido quando se considerou o contexto co-lombiano em que os Estados Unidos não conseguiu vencer o narcotráfi co. Hoje se trabalha com o conceito de ‘enfrentamen-to’ e de ‘políticas sobre drogas’.

A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) promoveu, recentemente, um curso de capacitação para qui-nhentos profi ssionais de saúde e de serviço social.

Temos, atualmente, no Distrito Federal, dois Centros de Referência de Capacitação para Álcool, Crack e Outras Drogas – um na Universidade de Brasília e outro na Escola de Supe-rintendência da Saúde da Secretaria de Saúde. Esses centros têm perspectiva interdisciplinar e têm capacitado profi ssionais da área de saúde mental, que atuam no enfrentamento do ál-cool, do crack e de outras drogas, bem como profi ssionais com atuação em hospitais em geral.

O modelo de assistência em saúde mental é composto de equipes constituídas de profi ssionais de especialidades diversas – clínico geral, ginecologia, obstetrícia, pediatria. Temos tam-bém os Centros de Diagnóstico e de Pesquisa com estudos epi-demiológicos, mapeamento, georreferenciamento e sala de uso.

A Casa Civil da Presidência da República e o Ministério da Saúde pactuaram diversas ações em âmbito da saúde e reinser-ção ao serviço social. Somos apoiadores do Ministério da Saúde e da Diretoria de Saúde Mental nessas ações, e eu, particular-mente, como Diretor da Saúde Mental da Secretaria.

Outras ações estão sendo implementadas, a saber, refor-mulação dos Caps – ad III Brasília, ad III Taguatinga, ad III Cei-lândia, ad III Rodoviária, ad III Samambaia e criação da Área

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de Acolhimento de Adultos em Samambaia, Ceilândia e Brasília e Área de Acolhimento Infantojuvenil em Brasília e Taguatinga.

Vale salientar que as unidades de acolhimento atuam na fase pós-desintoxicação, assistem o paciente que recebeu trata-mento de desintoxicação e que, por motivos de desentendimen-to familiar ou contato com cenas de uso, necessitam ser aco-lhidas por um período de aproximadamente seis a oito meses. Nos Caps ad III, o indivíduo, além do atendimento médico-psi-cossocial, recebe aporte de políticas públicas de inserção social e familiar oriundas das Secretarias de Estado – como emprego, capacitação profi ssional, lazer, esporte, educação.

Foram elencadas ações para atender aos 26 leitos da Aten-ção Integral à Saúde Mental no hospital universitário; dez leitos de Atenção Integral no Hospital Materno-Infantil; cinco destina-dos a gestantes e puérperas usuárias de drogas, no caso, com transtorno mental; e cinco a crianças; dez leitos da Atenção Integral no Hospital de Sobradinho; três leitos de Atenção In-tegral no Hospital Regional de Ceilândia. Alguns outros leitos já estão em funcionamento de desintoxicação, como é o caso do Guará, do Hospital do Guará, que conta com cinco leitos de de-sintoxicação e está funcionando como unidade de treinamento da rede. É comandado por uma especialista em álcool e drogas. Além disso, os Consultórios de Rua, com capacitação da atual equipe de Consultório de Rua; os Caps da Rodoviária coman-dam a capacitação das equipes de Consultório de Rua.

Já existem dezenove cenas de uso no DF. Então é neces-sário que se ampliem os Consultórios da Rua, porque é outra forma de abordagem. No Consultório de Rua, a equipe é trei-nada para a abordagem, seja criança, adolescente ou adulto na situação de rua em que ele se encontra. Ele não é morador de

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rua, está em situação de rua por uma série de motivos. Então, essa equipe o aborda e constrói esse vínculo e faz esse usuário começar a perceber a necessidade que ele tem de tratamento.

Há critérios para encaminhar ao Caps os moradores do ter-ritório, entendendo-se que território é onde a pessoa vive. Não é só uma questão geográfi ca – o local onde ela trabalha, estu-da, reside são bem-vindos como território.

São sintomas graves e persistentes ideação suicida, aluci-nação; uso abusivo de substâncias psicoativas; depressão mo-derada, grave, egressa e internação psiquiátrica com várias in-ternações, inclusive os egressos da medida de segurança dado o tratamento psiquiátrico no presídio feminino. São critérios para encaminhamento de urgência a hospital geral: componen-te clinicocirúrgico; intercorrência clinicocirúrgica em pacientes psiquiátricos; intoxicações por álcool, crack e outras drogas. O pronto-socorro do Hospital de Base é o pronto-socorro refe-renciado para intercorrências clinicocirúrgicas e de alta com-plexidade; transtorno psicótico em adolescente de 3 a 18 anos etários. O pronto-socorro do Hospital São Vicente de Paulo é destinado a receber pessoa com tendência de autoextermínio, com agressividade, autonegligência, sem suporte familiar, não adesão e impossibilidade de seguir tratamento ambulatorial.

Assumi a Diretoria de Saúde Mental no dia 21 de janeiro de 2011 e Coordenei a Saúde Mental no Governo Cristovam de 1995 a 1998. Tive condição de vivenciar a realidade de 31 de dezembro de 1992 a 1998. Vale salientar que, em referência à infância e à adolescência, o investimento nos doze anos seguin-tes foi nulo. Cabe então refl etir o que se fez em três governos quando não investiram nada para a infância e a adolescência. Não criaram nenhuma unidade nova. A unidade de Caps que

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existe é a mesma que deixamos em 1998, bem como a do Hos-pital São Vicente. Em nenhum desses governos, em nenhum momento, a saúde mental foi priorizada.

Outro dado é o seguinte: quando assumimos a rede, ha-via um défi cit de mil horas semanais, o que signifi ca cinquenta psiquiatras com um contrato de vinte horas ou vinte e cinco psiquiatras com um contrato de quarenta horas. Em relação a psicólogos, já existia um banco de reserva, o que não ocorreu em relação à assistente social é a terapeuta ocupacional. Este ano fi zemos um concurso que não atendeu ao preenchimento de vagas.

Ao longo do segundo semestre do ano passado, na VIII Vara de Fazenda Pública, junto com o Ministério Público, a De-fensoria Pública e a Procuradoria do DF elaboramos um Termo de Ajustamento de Conduta. Isso permitiu, mediante contrato temporário e em razão de a Lei de Responsabilidade Fiscal, con-tratar vinte e dois psiquiatras inicialmente, depois mais sete. No segundo semestre deste ano, haverá um concurso, não só para psiquiatra, mas para outras especialidades, quando pre-tendemos preencher, no mínimo, sessenta vagas para psiquia-tras. Vale salientar que, no primeiro concurso, conseguimos um aporte interessante de psiquiatras para preencher essas vagas e esperamos conseguir mais.

Então, não se pode analisar essa questão sem fazer essa retrospectiva. Não vou falar daquela questão de “Herança Mal-dita”. Um dado que deve ser levado em consideração é que todo o mundo conhece a Lei n.º 8.112 e o ritual que é fazer um con-curso, ou seja, nada pode ser feito de última hora. Um concurso leva no mínimo quatro meses para se realizar.

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A linha de cuidados de desintoxicação começa com o usuá-rio no pronto-socorro do Hospital Regional, onde ele é subme-tido à avaliação pela clínica médica e a um protocolo de desin-toxicação da pediatria, da clínica médica, que já estão elabora-dos. Estão em funcionamento nesses hospitais no contexto de pactuação dos leitos de hospital geral. A partir dessa avaliação, o paciente pode ser encaminhado da maneira implicada. Um en-caminhamento implicado é um encaminhamento que não con-siste apenas no papel de encaminhamento. É um telefonema, o contato com o profi ssional e a garantia de que o paciente chegou onde se pretendeu que fosse encaminhado. Esse enca-minhamento implicado poderá ser para uma unidade de acolhi-mento, um Caps de álcool e drogas ou mesmo uma comunidade terapêutica. A comunidade terapêutica é obrigada, do ponto de vista contratual, a levar o paciente ao Caps, pelo menos uma vez cada quinze dias no mínimo.

Vale salientar que, no Plano de Enfrentamento ao Crack, o Governador do Distrito Federal autorizou a contratação de vagas. Não tínhamos problemas de leitos porque, como são dis-positivos de suporte social, reservamos a palavra leito para os dispositivos de saúde. Assim, foram contratadas 250 vagas para o acolhimento dessas pessoas e a manutenção do tratamento delas dentro do Caps. Em caso de recaída, a pessoa teria ga-rantida – o que é muito frequente, pois 40% dos usuários de drogas recaem – em voltar a percorrer esse circuito no âmbito da doença e da dependência química de que está acometido. Há ainda a construção do projeto de vida, que envolve moradia, escola, trabalho e renda, cultura, esporte e lazer.

Sobre a questão especialmente da Lei n.º 10.216, vale sa-lientar os principais aspectos dessa Lei, que são:

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• reorientação de modelo assistencial;

• direito dos usuários por melhor tratamento em serviços comunitários;

• reinserção da comunidade;

• aumento da capacidade contratual do paciente mediante os programas de geração de renda, quando ele puder voltar à comunidade e à família sem ser um peso morto;

• direito a cuidados integrais;

• responsabilidade do estado em desenvolver políticas pú-blicas destinadas à população;

• afi rmação da internação psiquiátrica como último recurso terapêutico e sua tipifi cação nas três modalidades;

• proibição de internações nas instituições asilares;

• políticas específi cas ao paciente longamente internado, no caso de manicômio ou paciente submetido a medida de segurança.

A Ala de Tratamento Psiquiátrico conta com um projeto téc-nico para seu funcionamento. Junto com o Ministério Público da Área de Execução Penal, com o Juiz da Execução Penal, o Tribunal de Justiça e o setor psicossocial da Vara de Execução Penal, estamos formatando também nosso modelo de atendi-mento integral ao paciente judiciário. O paciente poderá ter o relaxamento da sua medida de segurança mediante procedi-mentos que envolvem o Ministério Público, no sentido de sua emancipação da medida de segurança. Isso já foi implantado em outras unidades da Federação, notadamente em Belo Hori-zonte e Goiânia.

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A Lei n.º 10.216 dispõe que as internações sejam feitas por meio de laudo médico. É necessário que este seja elaborado por psiquiatra para a indicação de internação.

Quanto às modalidades voluntária, involuntária e compul-sória, cabe salientar que a adesão para o tratamento da po-pulação submetida à internação involuntária chega a ser 3%. É baixíssima porque não há consenso. O consenso sobre a in-ternação é construído no vínculo, na relação com a equipe de saúde mental, não impositivamente. Nesse sentido, temos um questionamento enorme acerca da efi cácia da internação invo-luntária ou mesmo compulsória como sendo, de fato, um ins-trumento efi caz no sentido da recuperação do indivíduo. Vale também salientar que, no caso de internação compulsória, o paciente, às vezes, se sente um criminoso, e isso afeta também a noção dele em relação à doença.

Salienta-se também que 40% dos doentes usuários de drogas também têm alguma comorbidade psiquiátrica. Signifi ca que ele tem de ser acompanhado também dentro da internação compulsória. Ele não é exclusivamente um usuário de droga.

Nesse sentido, cabe também talvez uma refl exão: Que tipo de sociedade estamos construindo em que pessoas precisam usar algum tipo de droga? Seja uma droga lícita – como álcool, tabaco, mas também podemos pensar em jogo, em compras, em cirurgias plásticas, em outras formas de prazer compulsi-vo, como academia de ginástica. Enfi m, que está havendo com nossa sociedade que não pode renunciar ao prazer, que é a grande base para a dependência química se instalar mediante a compulsão? A incapacidade do indivíduo perante a constru-ção de um modelo social de felicidade baseado no consumo, na acumulação, em estereótipos de êxito – como grifes e similares,

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quando o indivíduo não pode deixar de ceder a nenhuma apelo. Especialmente nossas crianças, na questão do vídeo game, que se tornam escravas de uma compulsão, em razão da má relação com o prazer que nossa sociedade está desenvolvendo.

Muito obrigado.

DR ANTÔNIO GERALDO DA SILVA (Presidente da Asso-ciação Brasileira de Psiquiatria): Boa-noite a todos. Agradeço pela oportunidade de estar nesta Sessão Plenária da Academia de Medicina de Brasília.

Dependência química é um fenômeno dimensional. Apre-senta-se em vários graus de gravidade, relaciona-se, quase sem-pre, ao uso de drogas, como cocaína e crack. A gravidade é que vai determinar o nível de intervenção a ser oferecido. Cada caso é peculiar e, por isso, necessita ser tratado individualmente.

A elevada prevalência de comorbidades entre os depen-dentes químicos implica avaliação e tratamento ou intervenção de um profi ssional psiquiatra. Não há como ‘desmedicalizar’ ou afastar o médico do sistema do tratamento.

Os dependentes químicos, em sua maioria, não buscam, no sistema formal de saúde – público ou privado – a solução para a dependência química. Quando o buscam, geralmente en-contram difi culdades de acesso.

Quando o paciente se encontra dependente, incapaz de res-ponder à retomada do controle de situações junto ao sistema de saúde, sua família pode ser acionada ou adicionar os recursos necessários para sucesso do tratamento. Na ausência ou omis-são da família, a extensão natural da família são os instrumen-tos de autoridade do Estado, que devem garantir a segurança

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do dependente químico, mesmo que se utilize o recurso do tra-tamento compulsório, quer em ambulatório, quer em regime de internação. As pessoas esquecem que também há possibilidade do recurso do tratamento compulsório ambulatorial.

A preservação do capital social, representada em saúde do dependente químico, interessa a toda a comunidade. Oferecer tratamento compulsório implica internação, uso de recursos das áreas da saúde, social e da segurança pública. Não se restringe a intervenções de nível primário, mas a de alta complexidade, incluindo-se o seguimento de longo prazo.

Dizendo isso, retiro a impossibilidade de não tratar de for-ma direta e objetiva o tema, a despeito do que pensa a Asso-ciação Brasileira de Psiquiatria. Nós médicos somos obrigados a fazer nossa declaração de confl itos de interesses para entender quem estamos atendendo ou o que estamos atendendo.

Sou Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Pro-fessor da Residência Médica da Unimontes, do Hospital Universi-tário Clemente Farias e Professor Convidado da Santa Casa Mi-sericórdia do Rio de Janeiro. Não tenho nenhum vínculo empre-gatício ou qualquer outro com organizações não governamen-tais, laboratórios farmacêuticos, federações de hospitais, estado etc. Até o momento, esses são os meus confl itos de interesses.

A revista Discussão, do Senado, trata das audiências pú-blicas do Senado Federal. Foi publicada uma revista que abor-dou, unicamente, a temática dependência química, com a capa: “Crack assusta e revela no Brasil um país despreparado”.

Dr. Augusto César disse que esteve, até 1998, na Secre-taria de Saúde. Tive a oportunidade de entrar na coordenação junto a Josimar França nos anos subsequentes. Tenho cópia de toda essa documentação, que comprova como era ruim o

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quadro que encontramos. O número de psiquiatras era muito baixo e não era possível atender à demanda do DF. Consegui-mos, à época, contratar mais 34 psiquiatras e remanejar, da Secretaria de Administração, 37 psicólogos. Conseguimos, à época, implantar na Secretaria um primeiro Centro de Atenção Psicossocial – Caps AD, criado pelo Distrito Federal – e, ainda, o Caps do Guará e outro Caps também implantado no Paranoá. Deixamos um plano de governo, à época, para a área de saúde mental – com R$ 960 mil para criar serviços estruturados.

Deixamos de criar um Caps, que conseguimos junto aos promotores do meio ambiente, em uma fábrica de cimento em Sobradinho. Mas José Geraldo Maciel, engenheiro, disse que não era de interesse haver ali um Centro, porque não havia densidade populacional para voto. Óbvio, que tinha que ser em Sobradinho, porque o plano ambiental tinha sido em Sobradi-nho. Perdemos por uma questão de governo. É uma pena isso. Mas pelo menos deixamos bem um Caps AD e nove projetos de Caps no Distrito Federal, que depois desapareceram.

A revista que mencionei traz: “Droga: já deve ter chegado a 1,2% da população brasileira”. Isso não é novo, é de 1980. Nessa mesma revista, aparecem as indicações: “Álcool cau-sa mais danos; crack aparece em terceiro lugar”. No entanto, constatamos haver campanha de incentivo ao uso do álcool, 24 horas por dia, na televisão brasileira. Quem motiva o abuso do álcool vai colher dependência química. Esse é um problema social grave, algo que precisamos resolver com muita urgência. Ferreira Goulart, quando foi capa da revista Época, disse: “Dói ter de internar um fi lho, às vezes não há outro jeito”. Quando disse isso, não falou de dependência química, falou de seus dois fi lhos padecentes de esquizofrenia.

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A Constituição Federal de 1998 dispõe: “Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo aos seus brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a in-violabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-rança e à propriedade nos termos seguintes. É livre a locomo-ção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Nós temos direito à liberdade e à vida, e o direito à vida suplanta o direito à liberdade.

O que é internação involuntária na prática? O médico não tem interesse de internar ninguém involuntariamente. Não é bom para o médico e nem para ninguém. Embora desagradável, a in-ternação involuntária é uma conduta médica. Não é procedimento exclusivo da prática em psiquiatria. Qualquer médico pode deter-minar a necessidade de internação de uma pessoa para algum tratamento específi co. Se a pessoa não aceitar, ela terá que assi-nar um termo de responsabilidade, porque caso ela venha a fale-cer, ele não vai responder criminalmente nem eticamente, porque fez a indicação do que era adequado para aquele caso.

A internação involuntária é um evento raro na grande prá-tica clínica em psiquiatria. O prognóstico do paciente depende mais de como se dá a alta do que como ocorre a internação. Há artigos do Código de Ética Médica relacionados à internação voluntária. Este estabelece no capítulo dos Direitos Humanos, art. 22: É vedado ao médico deixar de obter o consentimento do paciente ou do seu representante legal, após esclarecer sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

A Lei n.º 10.216 é a Lei de Reforma para o Modelo de As-sistência em Saúde Mental do Brasil. A internação involuntária é

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um ato humanitário. Há evidências de que constitui boa prática médica a internação involuntária cuja efi cácia é igual à da vo-luntária. Há vários trabalhos que demonstram isso com resulta-dos efetivos.

A Associação Brasileira de Psiquiatria não é contra nem a favor da internação involuntária. É a favor da melhor prática médica, baseada em evidências científi cas de efi cácia. Não se pergunta a um paciente que está com pneumonia dupla grave se ele quer ser internado ou não. Nós indicamos a internação. Se um transplante de coração terá que ser realizado, não se per-gunta ao paciente se ele quer ou não ser internado. O médico faz a indicação da internação por ser necessária. A ABP defende a questão por ser um ato médico. Há necessidade de internação? Faz-se a indicação baseada na prática médica, que julga o que será melhor para o doente. Somos completamente contrários a situações como higienização, limpeza, internação compulsórias as quais juízes querem determinar sem ouvir o médico. O juiz não pode defi nir internação psiquiátrica sem que haja indicação médica. A ABP acredita que a internação involuntária deva ser conduzida dentro da melhor prática médica, contando-se para isso com instalações adequadas para o sucesso clínico. A visão é salvar a vida, é dar a possibilidade àquela pessoa de ser tra-tada, de melhorar, viver com qualidade de vida. Somos a favor da indicação com base em evidências científi cas. Não pode ser baseada em premissas pessoais nem por determinação social.

A comunidade e o indivíduo se benefi ciam pela coopera-ção mútua e pelas ações de solidariedade, ações estas que têm contribuído para a preservação da saúde. A internação invo-luntária do dependente químico trará restrição à sua liberdade. Algumas medidas restritivas mostraram resultados positivos e

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deveriam ser levadas adiante. Imaginem quantos milhões de pessoas morreram e morrem com o uso do tabaco, baseadas na liberdade do direito de fumar? O mesmo ocorre em relação ao álcool. Quantas pessoas estão morrendo jovens, sadias, em razão das consequências de dirigir embriagadas, de usar drogas e dirigir e outras situações, inclusive as da violência urbana.

Preocupa-me que os presídios se convertam em novos ma-nicômios. Isso é possível devido à defi ciência de local adequado para a internação do paciente. Não se acaba com a doença por decreto, nem há necessidade de tratar uma pessoa por decreto.

Somos contra toda e qualquer situação em que o doente viva sem condições dignas de tratamento, quer seja em hospital psiquiátrico, quer seja hospital geral, ginecológico, ortopédico ou cardiológico. Temos que cuidar dos locais. Fazemos hoje me-dicina privada no Brasil de altíssima qualidade. Não temos mais os milionários, os bilionários que saem do Brasil para se tratar fora. Pelo contrário, o Brasil recebe pacientes de outros países, a exemplo de nossa medicina esportiva.

Acreditamos que todo e qualquer tratamento em psiquia-tria deva ser multidisciplinar e interdisciplinar. Cinco das dez causas de incapacitação ao trabalho são consequentes a doen-ças mentais. Acreditamos que é possível dar aos pacientes a possibilidade de voltar ao trabalho. Temos um sistema diferen-te. Se, no sistema privado, a resolutividade é alta, nós afasta-mos pouquíssimos pacientes do trabalho. Precisamos trabalhar no serviço público com a mesma qualidade do sistema privado, seja em relação à psiquiatria, à psicologia, nutrição ou ao ser-viço social.

Um juiz de Belo Horizonte fez uma afi rmação muito inte-ressante: “Como é que nós vamos continuar vendo as pessoas

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morrendo nas ruas usando crack e não fazer nada”? É um pro-blema grave. Ás vezes, há necessidade de internação involuntá-ria, pelo quadro que o paciente apresenta. Contudo, nada disso é válido sem a participação médica.

Temos alguns serviços no DF de acompanhamento ambu-latorial. No entanto, todos acabam sobrecarregados pela quan-tidade de dependentes químicos nas ruas e, com a população prisional, a demanda é incalculável. Hoje, 12% da população prisional é portadora de doença mental grave, como mostra tra-balho realizado pelo Dr José Geraldo Vernet Taborda, procura-dor aposentado e psiquiatra forense.

O que a Associacão Brasileira de Psiquiatria defende é a saúde pública de qualidade, o melhor tratamento para os pa-cientes e prover serviços públicos com a mesma qualidade dos serviços privados no Brasil.

Era isso o que eu tinha para dizer. Estou aberto às ques-tões.

Muito obrigado.

DEBATEDORES

SR. BRUNO DE SOUZA (Auditor – Tribunal de Contas da União): Boa noite a todos. Agradeço à Dra Janice Lamas pelo convite. Eu não sou médico.

O Tribunal de Contas da União, em 2010, realizou uma auditoria operacional para avaliar as ações da Política Nacional sobre Drogas do Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvi-mento Social e a Senad – Secretaria Nacional de Políticas So-bre Drogas. Foi um trabalho extenso de pesquisa, com visitas

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a diversos Caps, entrevistas com professores universitários do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais federais, pesquisa eletrônica junto à gerência de Caps, Centro de Referência da Assistência Social. Objetivou diagnosticar como vêm sendo exe-cutadas essas ações quanto a tratamento, prevenção e reinser-ção social.

A auditoria então constatou o que segue.

• Baixa cobertura da Rede Caps – são poucos os municí-pios que disponibilizam esse serviço à população e me-nor ainda o número de municípios com instituições es-pecializadas para tratamento de dependentes químicos do álcool, do crack e de outras drogas. Em 2010, apenas duzentas cidades em 258 municípios dispunham dessas instituições. Um número relativamente pequeno, com-parando-se o número de municípios em todo o Brasil.

• Insufi ciente articulação dos Caps com a Atenção Básica e as ações do Programa Saúde da Família.

• Número insufi ciente de leitos em hospital geral para in-ternação e posterior acolhimento em Caps.

• Pouca agilidade quanto à viabilidade do edital para fi nan-ciamento das ações junto às comunidades terapêuticas. Aproximadamente 55% das comunidades terapêuticas selecionadas pelo Ministério da Saúde não tinham se-quer a licença sanitária. Nota-se inobservância à Resolu-ção n.º 101 – sem consulta prévia à Anvisa.

• Com relação à prevenção, há insufi ciência de cursos de capacitação oferecidos pela Senad a profi ssionais de saúde, da assistência social e educadores que atuam nos Caps, Cras, nos Creas e em hospital geral.

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• Insufi ciente e escassa articulação entre Caps, Creas, Cras, ou seja, falta de comunicação e troca de infor-mações e experiências entre os profi ssionais que atuam nessas unidades da saúde. Com isso, o Tribunal propôs recomendações ao Ministério da Saúde, ao Ministério do Desenvolvimento Social e à Senad.

A internação voluntária, à época da auditoria, não foi abor-dada. Todavia, temos condições de contribuir com um debate sobre esse tema.

DR ROBERTO TYKANORI (Coordenador Nacional de Saú-de Mental-MS): Boa-noite a todos. Agradeço pelo convite e pela oportunidade de somar a esta mesa de debates nesta Academia.

Estamos a discutir internação involuntária e compulsória, tema que vem causando polêmica pelo fato de o paciente ser considerado incapaz de decidir quanto a sua internação para tratamento, bem como ter o médico papel fundamental na ques-tão. Conhecer o doente e se inteirar de seus problemas psicos-sociais faz-se imprescindível para o profi ssional médico atuar como interventor na escolha do tratamento a ser indicado.

A internação compulsória – determinada por um juiz – é comum nos dias atuais. Para tanto, os juízes decidem indicar um tratamento, por meio de internação compulsória, como o mais efi ciente e adequado sem dialogar com o profi ssional de saúde, ao atender a pressões familiares, social ou da própria polícia. O juiz decide pela internação compulsória, sem levar em conta a indicação do profi ssional médico, e este é quem está, de fato, apto a indicar o tratamento necessário, ou seja, tanto

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para a sociedade como para a família e o Estado, o problema do dependente químico, que causa transtornos à sociedade, tem solução na internação e, para isso, o juiz expede um mandado judicial.

A Lei n.º 10.216 – que altera a Lei Penal – reza que interna-ção compulsória só poderá ocorrer “de acordo com a legislação vigente” e, nos casos de medida preventiva, quando aplicada a infratores portadores de doenças mentais, diagnosticados como inimputáveis e que necessitem de tratamento psiquiátrico. Con-tudo, essa medida, de acordo com a lei, tem que ser tomada mediante diagnóstico de um profi ssional médico e terá anuência do Ministério Público. Ainda, a decisão não poderá ser tomada exclusivamente pelo juiz, porque o tema é complexo, envolve doença, a saúde, a questão social.

Assim, a internação involuntária, ou compulsória, deverá observar o devido processo legal. Mas essa medida está sendo tomada por juízes de modo indiscriminado como para ‘solucio-nar’ um problema junto à sociedade, fato este corriqueiramente de fácil constatação no Rio de Janeiro. Há também que ressal-tar os casos de ‘isolamento’ ilícito decidido pela família e pelo serviço de saúde privado, em que o doente mental ou depen-dente químico é ‘sequestrado’ de seu convívio social e familiar e enclausurado em clínicas de tratamento, muitas vezes longe da residência, em outro estado. Isto custeado pela família, que chega a pagar em torno de trinta mil reais para se ‘livrar’ do problema.

Então, o indivíduo tem sua liberdade ‘cassada’, a priori, por aquele que se nomeou seu representante legal e julga ser a internação a medida mais adequada de tratamento. Sabemos que o problema não se solucionará dessa forma. Seria como, a

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título de ilustração, decidirmos fazer uso do serrote na falta do bisturi – a tragédia será inevitável e irreparável.

Enquanto médicos, penso, devemos atuar veemente como interventores nessa decisão. Pesa sobre nós a responsabilidade para fazer valer o que reza a legislação brasileira. Este papel de decisão cabe ao médico e não ao Judiciário, à família, à so-ciedade, tampouco a instituições de saúde privadas que visam exclusivamente ao lucro mercadológico.

O problema da dependência química é fruto da pobreza, da desigualdade social, da falta de empregabilidade, e é uma das maiores causas da violência em nosso país. Portanto, é papel do Estado prevenir o uso de álcool, de crack e de outras drogas com políticas públicas, bem como garantir o adequado trata-mento.

Não sou especialista na área de álcool, de crack ou de outras drogas. Sou psiquiatra com formação na USP e tenho doutorado na Unicamp em saúde coletiva, mas este é um tema que me in-teressa – tenho me informado junto a autoridades internacionais com experiências contundentes no enfrentamento dessa questão.

Constata-se inefi ciente o tratamento por meio de interna-ção involuntária. É relativamente baixo, em relação a outras intervenções, algo em torno de 25%, segundo pesquisa. O Mi-nistério da Saúde deve reformular suas estratégias e ofertar todo tipo de ferramenta para termos bom êxito quanto a esse problema, que é de saúde pública e não meramente judicial.

Outra questão que se deve levar em consideração é o custo aos cofres públicos para o tratamento compulsório, que deve ser avaliado pelo Judiciário. Este é um tema para debate.

Obrigado.

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DR JOSÉ MÚCIO MONTEIRO FILHO (Ministro do T.C.U.): Boa-noite a todos. Cumprimento Dra Janice, os palestrantes, os presentes.

Sinto-me aqui constrangido, sentindo-me um tanto como Pilatos no credo, porque esta não é a minha área de atuação no Tribunal. Vou dizer aos presentes apenas que as providências urgentes estão sendo tomadas. Mas me questiono se realmen-te, com as medidas tomadas, estamos, de fato, combatendo o problema. Enquanto os senhores cuidam dos doentes, há um grupo fabricando doentes.

Narro aqui alguns fatos concretos a título de ilustração quanto à internação voluntária ou à involuntária. Algumas his-tórias reais vivenciadas por mim me motivaram a vir a este de-bate promovido pelos senhores.

Certa ocasião, na madrugada de um sábado, fui desper-tado em minha residência ao toque da campainha. Um jovem de vinte e poucos anos, neto de um amigo meu, desesperado, me disse que precisava de dois mil reais no prazo de meia hora – que era uma questão de urgência e não podia me dizer o mo-tivo. Fiquei impressionado. Ele praticamente me ‘obrigou’ a lhe dar os dois mil. Na segunda-feira seguinte, procurei o avô dele e lhe narrei o fato. Foi quando a família teve ciência de que o jovem era dependente químico.

Contudo, a aceitação desse fato foi a primeira difi culdade que a família teve que vencer, porque o rapaz, bem nascido, fora educado para não se envolver com drogas. A segunda difi culda-de foi convencer aquele jovem de que ele era um dependente químico e necessitava de ajuda. A família, de poder aquisitivo alto, me pediu ajuda para trazê-lo à Brasília para tratamento.

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A internação se deu numa instituição privada de saúde por um período de oito meses. Eu o visitava. O tratamento ofertado in-cluía amarrá-lo e algemá-lo à noite enquanto ele dormia. O jo-vem fi cou bom, recebeu alta e a família fi cou muito agradecida. Ele regressou ao convívio da família em Recife. A família gastou uma fortuna com o tratamento terapêutico daquele jovem. Ele foi internado à força, por decisão da família, mas meses depois, por infl uência de más companhias, ele regressou ao mundo das drogas e continuou um dependente químico. Conclui-se que esse jovem pertence a uma família de classe econômica eleva-da, que pode pagar o tratamento.

Mas, estamos aqui discutindo a questão dos dependentes químicos pobres, que não podem pagar. E a droga está em to-das as camadas sociais brasileiras. Por um lado, há os abastados que não necessitam assaltar, delinquir-se para uso da droga, mas outros ingressam no mundo do crime porque necessitam manter o vício.

Vou narrar outro caso trágico ocorrido no interior de São Paulo. Recentemente um conhecido meu, ao chegar em casa, deparou-se com o fi lho estrangulando a própria mãe, porque queria dinheiro para comprar drogas. Na tentativa de defen-der sua mulher, ele entrou em luta corporal com o fi lho, que foi morto por um tiro disparado acidentalmente por ele mesmo com a própria arma que portava. O pai, sentindo-se culpado da morte do fi lho suicidou-se a seguir.

Certa vez, no Congresso Nacional, ouvi um famoso trafi -cante brasileiro dizer: “Quando os senhores virem nos jornais que fomos detidos portando duzentos quilos de cocaína, este-jam certos de que foram quatrocentos, porque duzentos fi ca-ram para fi nanciar parte da Polícia”.

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O problema de enfrentamento ao álcool, ao crack e outras drogas não se refere a aporte fi nanceiro. Na fronteira do México com os Estados Unidos, há um efetivo de vinte mil homens para atuar em três mil quilômetros de extensão territorial fronteiriça, e diariamente a mídia noticia assassínio em massa. O Brasil tem dezesseis mil quilômetros de extensão territorial fronteiriça e um efetivo três mil homens. Pergunta-se: Falta aporte fi nancei-ro ou o problema está sendo enfrentado de forma errada? Penso que esta é uma batalha que o mundo inteiro perde por questões sociais, religiosas e de preconceito.

Enquanto ouvia os doutores aqui falarem, fi z um quadrinho ilustrativo. Temos a droga, o trafi cante, o viciado, a polícia, o governo e a família. Supondo-se que tenho um fi lho viciado e ele deseja se tratar, se internar, mas precisa de cem gramas de cocaína. Precisarei ou de um policial corrupto ou de um trafi can-te, dos quais não me livrarei jamais. Quero dizer com isso que, entre o doente, a família e a aquisição da droga, há a interven-ção de terceiros que não têm interesse na solução do problema. Não estou propondo a liberação da droga, mas estou propondo que nós “desbandidemos” o problema, porque hoje, enquanto os senhores curam alguns, outros fabricam novos doentes.

O Tribunal de Contas terá condições de nos informar do investimento e dos prejuízos quanto a essa questão. Essa histó-ria que narrei ilustra o fato de que tudo o que a família investiu para tratamento daquele jovem foi em vão, porque o trafi cante não desiste em “fabricar” doente para a sociedade. A máfi a nos Estados Unidos teve seu surgimento com a produção do álcool.

Penso que o problema das drogas será mais facilmente con-trolado se, no Brasil, fosse permitida a sua venda, por exemplo, em bancas de revistas, bares, com propaganda nos meios de

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comunicação de massa. Será mais fácil, assim, cuidarmos do dependente químico. Prefi ro a cura do meu fi lho, usuário de drogas, em vez de vê-lo procurando um trafi cante para aquisi-ção do produto. Nesse caso, em vez de usuário, ele poderá vir a ser um criminoso.

A palavra que trago é a de estímulo ao trabalho de todos senhores e dizer que estamos, hoje, resolvendo o problema. Reconheço o grande trabalho que o Ministério Público e os se-nhores psiquiatras, profi ssionais de saúde, vêm realizando.

A droga é um problema que independe de governos, de países, de investimentos fi nanceiros etc., porque envolve ques-tões de preconceitos religiosos, educacional, familiar. Essa é uma guerra perdida. Se fosse por questões fi nanceiras, os nor-te-americanos já teriam resolvido o problema do tráfi co com o México. Na Ásia, a droga é vendida no meio da rua. Muitos países perderam essa guerra. Outros são mantidos pela droga.

A sociedade médica, aqui, está tratando dos doentes usuá-rios de drogas. Contudo, fi ca a pergunta: Qual é a solução para excluir do processo o trafi cante e deixar envolvidos somente família, o doente e o médico?

Em visita à Holanda, observei que o usuário de drogas é mais descriminalizado que aqui no Brasil, porque lá os usuários se reúnem em uma praça para se drogarem, e as empresas de turismo levam os turistas para visitação a estes lugares. Lá é fácil diferenciar quem usa de quem não usa drogas.

Ouvi hoje aqui, segundo pesquisas, que, no Brasil, no ano passado, houve maior consumo e apreensão de cocaína e de crack. Isso porque houve mais circulação – o mesmo ocorre em âmbito mundial. Por isso, reafi rmo que a questão independe de

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vontade política. É uma questão de princípios que envolve a igre-ja, a sociedade. Um único país não resolverá o problema. Este é um desafi o para todos os países existentes no mundo. Hoje, se estima que 1,2% da população brasileira é usuária de drogas, e pedimos a Deus que nosso fi lho não integre esse número.

Muito obrigado.

PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO

Acad. Dr Antonio Marcio Junqueira Lisbôa (Ex-Presi-dente da AMeB): Há 25 anos que estudo o problema. Escrevi um livro sobre isso. A solução do problema está na fabricação do indivíduo honesto. O Correio Braziliense publicou um artigo mostrando o aumento do crack em Brasília. Cerca de 90% das famílias dos usuários estão desestruturadas. E como é que se forma uma família estruturada? Nós sabemos.

Há somente uma solução. A semente da violência do ban-dido é implantada na criança nos primeiros anos de vida. Nasce um bandido quando nasce uma criança que a família rejeita. Assim surge um bandido. O pai e a mãe estão fabricando um bandido ao mentir para o fi lho, ao tratar mal, agredir fi sicamen-te o fi lho.

Vocês discutiram aqui medidas paliativas que não resolve-rão o problema.

Há dez anos, escrevi o livro A Primeira Infância e as Raí-zes da Violência. Pela quarta vez sou convidado a conferir uma palestra sobre como é que nós formamos indivíduos corretos. A solução é fácil. Em meu tempo de estudos, havia no currículo

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escolar, no ensino fundamental, a disciplina de Educação Moral e Cívica em que se ensinava civilidade – respeito ao diretor, ao professor, à família; cantávamos o Hino Nacional, o Hino da Bandeira. Acabaram com a disciplina de Educação Moral e Cívi-ca nas escolas brasileiras.

Recentemente foi noticiada a morte de um diretor de es-cola aqui em Brasília. Agressões físicas nas escolas são uma constante. No meu tempo, era inconcebível um aluno levantar a voz a um professor.

Onde a criança aprenderá a ser honesta se a família e a escola não a ensinar? Certamente não aprenderão com nossos governantes, porque nossa política está contaminada de bandi-dos corruptos, desonestos. Há, em nossa sociedade, cidadãos pobres, honestos capazes de devolver uma mala de dinheiro en-contrada num carro, que um indivíduo rico provavelmente não a devolveria. Como extinguir o trafi cante de nossa sociedade?

Entanto, Ministro, o problema terá solução se os planos fo-rem traçados, pensados por psicólogos, agentes do serviço so-cial, sociólogos – estes é que têm condições de escrever como é que se forma um cidadão correto, como tornar honesto um cidadão. Porque combate à violência é problema da Polícia e do Judiciário, mas formação de crianças cabe aos pensadores da educação. Foi dito aqui, pelo representante do Ministério da Saúde, que não há um programa, em Brasília, voltado à infân-cia, e isso se constata em âmbito de Brasil – o que é lamentá-vel. Dessarte, continuamos fabricando bandidos. Em meu livro A Primeira Infância e as Raízes da Violência abordo esta ques-tão, argumento como é que a sociedade fabrica um marginal e apresento soluções para evitar a marginalização do indivíduo – maternidade responsável, como a família dever ser educada,

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o papel da escola. A escola não tem só que alfabetizar, mas en-sinar valores morais e éticos, como lealdade, honestidade. Do contrário, não haverá solução para o problema.

Abordo ainda em meu livro o papel imprescindível da Polí-cia – devemos aumentar o efetivo com mais cinco mil policiais. O que abordo em meu livro foi dito por um pediatra em 1914.

Em Brasília, há planos de combate à violência. Contudo, os meios de comunicação de massa noticiam que a violência piora cada dia nessa cidade com aumento do número de sequestro e outros casos.

Obrigado.

Acad. Dr José Callegaro: Considero extremamente perti-nentes essas observações.

Retrocedendo um pouquinho na história, recordo-me de um fato histórico. No século XIX, quando a guerra ainda domi-nava dois terços do mundo, a China tentou eliminar o tráfi co de entorpecentes. Contudo, a Inglaterra e o Ocidente – Alemanha, França, Estados Unidos – promoveram duas guerras para ma-nutenção do tráfi co. Assim, não nos surpreendem a evolução das coisas. Naquela ocasião, a Inglaterra alegava problemas de ordem econômica e outros.

Tive formação em escola pública, estudando apenas um ano em escola particular, porque meu pai julgava ser o melhor ensino na ocasião. Considerei baixo o nível de ensino na esco-la privada do Brasil. Fiz vestibular e fui aprovado em todos os vestibulares sem ter frequentado cursinhos preparatórios. Isso mostra a efi ciência no ensino da rede pública brasileira da épo-ca. Hoje não temos muitas escolas de boa qualidade no Brasil.

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Acabaram com a nossa escola pública. Os mandatários estão acabando com nossa sociedade.

Temos as respostas ao problema da violência, do uso e trá-fi co de entorpecentes no Brasil. É vergonhoso vermos governos permearem esse tipo de situação.

Este debate se faz imprescindível, porque nos leva a refl etir seriamente sobre o que somos e o que pretendemos ser. As res-postas, como bem ressaltou Dr Lisbôa, estão ao nosso alcance. Quero saber se vamos adotá-las.

Acad. Dra Lucimar Cannon: Em meu cotidiano profi ssio-nal, tenho lidado com judicialização. A área de saúde mental me traz muito estresse. Considero que a institucionalização interfe-re na saúde coletiva ao determinar que se cumpra alguma coi-sa que uma pessoa pediu em detrimento de milhões de outras pessoas. Isso me machuca muito.

Refl ito diariamente sobre a problemática de a nossa socie-dade em não compreender o que signifi ca, de fato, saúde. Tudo o que foi dito hoje aqui, inclusive por meu ilustre professor, jus-tifi ca a ignorância de nossa sociedade quanto à questão saúde. Em verdade, cerca de 30% dos procedimentos voltados à saúde se fazem no sistema saúde ou menos. Saúde se promove fora do sistema saúde. Estamos apagando incêndio, mas não produ-zindo saúde. Eu queria deixar só essa refl exão.

Tenho uma experiência profi ssional. Participei, certa oca-sião, de uma reunião do Executivo, na Casa Civil, como repre-sentante do Ministério da Saúde. Discutia-se a elaboração de um relatório anual, que seria encaminhado ao Congresso Nacional anual. Contávamos com a presença de um grande presidente

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da República, que comentou: “É uma pena que nós não con-seguimos avançar muito em saúde”. Era a primeira vez que eu participava de uma reunião desse nível, me sentia intimidada, mas disse ao presidente: “Senhor Presidente, depende do que o senhor está falando. Se o senhor avançou em educação, em emprego, em urbanismo também avançou em saúde”. Enfi m, eu argumentei, e as pessoas estavam atônitas, pois eu havia contradito o presidente da República. Uma semana depois, fui indicada pelo presidente da República para negociar sobre o se-tor saúde com o Banco Mundial.

Precisamos realmente pensar saúde em seu sentido mais amplo e dizer à sociedade o que realmente signifi ca saúde. Não podemos culpar o sistema de saúde pelo que produzimos.

Dr Aldo Zaires: Meu nome é Aldo Zaires, sou do Ministé-rio da Saúde e do Conselho Nacional de Políticas Sobre Álcool e Drogas, do Ministério da Justiça.

Como ouvinte apenas, sintetizo alguns princípios.

Considero que, em vez de internação compulsória, melhor dizer educação compulsória, porque se trata de uma questão de educação com abrangência do indivíduo em seus vários aspec-tos – convívio social, por exemplo. Devemos refl etir sobre ques-tões como o fato de pensar que um indivíduo se torna depen-dente químico por desonestidade ou se é o dependente químico um problema tão gigantesco para a sociedade e sobre qual o melhor tratamento a ser indicado. Devemos, portanto, abordar o âmago da questão, isto é, onde nasce o problema. A tortura, a enclausura, não serão a melhor opção. O fundamental seria fomentar as políticas públicas já existentes.

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Dra Lucimar nos apresentou os princípios de saúde, de-fi nidos na Conferência de Alma-Ata no Cazaquistão em 1978. Saúde não como ausência de doenças, mas como um estado de bem-estar social, psíquico, que envolve emprego, educação, urbanismo.

Não se pode resolver o problema, em âmbito criminal, por decisão judicial, mas com educação em sentido amplo, educa-ção compulsória.

Acad. Dr Sérgio Camões: Honra-me muito estar nesta reunião. Sou um dos acadêmicos mais antigos, tenho dito ao Lisbôa que eu sou fundador da Academia.

Congratulo-me com os palestrantes pelas extraordinárias e bem-vindas palestras. A droga é um problema de Brasília e do Brasil inteiro. Dr Lisbôa nos mostrou – o que já havia nos dito há muitos anos, logo no início da Academia – que o bandido se forma nos primeiros anos de vida.

Acabaram-se as escolas de professores no Brasil, as cha-madas escolas normais de formação de professores. Hoje o des-respeito é total. Tratava-se o professor com o mesmo respeito com que se tratava o pai. Hoje o professor não é chamado de senhor, mas de tio, de você. Eu sempre repreendi meus fi lhos por mencionarem seus professores de faculdade como “o Fula-no, o Sicrano”, porque o professor não é um moleque que está a ministrar uma aula, uma palestra, mas uma pessoa digna, capacitada. Dizia-lhes para respeitar o professor, inclusive para não dar a este liberdade para desrespeitá-los como alunos.

Foram brilhantes nossos conferencistas em suas palestras. Considero que não deve impor a internação porque não temos,

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em âmbito de Brasil, estruturas físicas para isso. O Brasil está, infelizmente, defi citário em quase tudo. Os indivíduos ricos são benefi ciados sempre, e os pobres são os mais desassistidos pelo Estado brasileiro.

Dr Antônio Geraldo da Silva: A Associação Brasileira de Psiquiatria está promovendo uma campanha nacional sobre Psi-cofobia. Esta se confi gura como preconceito contra pessoas com defi ciência e transtornos mentais e profi ssionais da área de saú-de mental. O papel do psiquiatra na sociedade brasileira é um tema que abordaremos nesta campanha.

Parabenizo Dr Tykanori pelos 25% de bons resultados em seu trabalho e recomendá-lo para constar entre as extraordi-nárias bibliografi as de trabalhos realizados com internações vo-luntárias e involuntárias com autores como Laranjeira, Carlos Salgado, Carla Ambik, com resultados em torno de 70%. Seu trabalho é importante e precisa subir de 25% para 67%.

Dizer ao Ministro o que disse em um evento no Senado Federal, que o problema do tráfi co e do uso de entorpecentes deve ser tratado em sua origem. Temos condições de rastrear a produção dos psicotrópicos e seu fechamento, inclusive dos antibióticos e casos similares. A folha de coca é produzida em três países – insumo que será transformado em pasta base. O Brasil não produz a folha, mas é produtor de insumos de psico-trópicos, e não temos o controle da Anvisa quanto a produção, armazenamento, transporte, venda e exportação desses pro-dutos. Se controlarmos essa produção, isso difi cultará a venda ilegal da droga. Disse isso a promotores, em visita ao Conselho Nacional do Ministério Público.

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A Associação Brasileira de Psiquiatria possui vasto mate-rial bibliográfi co sobre internações voluntárias e involuntárias, e quem tiver interesse em adquirir publicações poderá nos pro-curar.

Abordamos a internação involuntária sob a visão do pro-fi ssional médico que somos. Não diagnosticamos nem tratamos com previsão de resultados, porque estes independem da von-tade do profi ssional médico ou do psiquiatra. Mas pensamos em resultados.

Faz-se imprescindível trabalharmos com promoção, manu-tenção e prevenção da doença. Enquanto tivermos campanha de incentivo ao uso do álcool, colheremos a dependência quími-ca, porque, às vezes, o uso do álcool pode levar ao uso do crack e de outras drogas.

Obrigado.

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PALESTRA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

(Sessão Plenária ocorrida em 28/8/2012)

INTRODUÇÃO

A Constituição Cidadã de 1988 garante a saúde como direito do cidadão e dever do Estado, independente-

mente de haver ou não recurso ou disciplina legislativa. Pela Carta Constitucional, o Poder Judiciário tem a incumbência de fi scalizar a efi ciência do serviço prestado, com ingerência sobre as políticas públicas, entre elas, as da saúde.

Possíveis violações desse direito por parte do Estado têm motivado crescente demanda de ações judiciais e decorrem do pensamento de que o acesso universal e gratuito à saúde deve ser efetivado a qualquer custo, sem levar em conta se há recur-sos, se atende a protocolos clínicos já estabelecidos ou se está assentado em consensos terapêuticos e na medicina baseada em evidências.

Sendo o acesso à Justiça um princípio constitucional, um número cada vez maior de brasileiros recorre ao Judiciário para garantir o direito não cumprido para aquisição de medicamen-tos, procedimentos diagnósticos, internação ou tratamento.

A Acadêmica Dra Lucimar Cannon, em sua explanação so-bre Judicialização da Saúde em Sessão Plenária, demostrou que

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os gastos dos estados em compra de medicamentos para aten-dimento às demandas judiciais são maiores do que os gastos realizados por meio das vias normais de aquisição. A burocracia no acesso à saúde e a debilidade do sistema em ofertar serviços e incorporar novas tecnologias são fatores que têm contribuído para o aumento das ações judiciais.

A Ministra Eliana Calmon considerou, no debate promovido sobre Judicialização na AMeB, que os magistrados são, na maio-ria, despreparados para atuarem, tendo que se pautarem nas informações dos planos e serviços de saúde da Anvisa (Rena-me). É preciso considerar as distorções introduzidas no sistema de saúde quando os medicamentos não constam de listas do SUS ou não há autorização da Anvisa. Nesse aspecto, a Judi-cialização contribui para acelerar o processo de inclusão de no-vos medicamentos e a incorporação de novas tecnologias pelo Ministério da Saúde, haja vista a Lei n.º 12.401, aprovada em maio de 2011, cuja fi nalidade é estabelecer critérios de efi cácia, segurança e custo-efetividade para a inclusão de novos medi-camentos e tecnologias, foco das demandas judiciais na saú-de. O Judiciário, como bem afi rmou a Ministra Eliana Calmon, necessita de suporte do pessoal técnico da saúde – médicos, nutricionistas, farmacêuticos, odontólogos, para conhecer as políticas públicas preestabelecidas em relação a tratamentos, medicamentos e procedimentos tecnológicos. Diante disso, a Judicialização seria um mecanismo de concretização do direito à saúde em suas violações pelo Estado. Esta Câmara Técnica teria mais qualifi cação em avaliar com propriedade a pertinência da ação judicial.

Torna-se necessário ouvir os que entendem de medicina para que, isentos, esses magistrados possam decidir os confl itos.

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O Conselho Nacional de Justiça está forçando a aproximação da magistratura e especialistas em saúde.

Segundo a Acadêmica Dra Lucimar Cannon, no Distrito Fe-deral, foi criado o Núcleo de Judicialização em 4 de fevereiro de 2011 na Secretaria de Estado da Saúde, formado por uma equi-pe multidisciplinar, que constitui a porta de entrada das ações judiciais. De fevereiro de 2011 a dezembro de 2011, 2.481 ofícios da Defensoria Pública foram encaminhados ao Núcleo com solicitação de medicamentos, procedimentos ou serviços de saúde. Nesse particular, ressaltou a importância da apro-ximação Judiciário e Comunidade da Saúde na resolução das demandas.

Dr Carlos Vital Tavares Correa Lima, do CFM, ponderou que a indicação de determinado tratamento e a relação médico--paciente são regidas pela autonomia. Abrir mão dessa prer-rogativa exige avaliar se o tratamento indicado seria o único recomendado diante dos protocolos estabelecidos para o caso. Dispor de critérios racionais no julgamento das ações judiciais iria não apenas atender ao direito da saúde, que é um direito, como permitiria o equilíbrio fi nanceiro dos órgãos de saúde.

A judicialização, embora importante como processo de am-pliação da cidadania no direito à saúde, não atinge a todos por-que depende do grau de escolaridade, do nível social, e da mo-bilização daqueles que demandam ações na Justiça.

A intervenção direta no poder executivo, imposta pelas li-minares dos magistrados para aquisição de medicamentos ou execução de serviços para uma pessoa em particular, interfe-re no orçamento e na condução da política de saúde. O que deve ser avaliado é a intensidade de interferência do Judiciário no setor Saúde ao atender às demandas judiciais e determinar

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despesas para prover o direito à saúde, considerando-se os poucos recursos públicos da área e as políticas já defi nidas para sua aplicação.

O acesso à saúde e aos seus bens deixam de ser um direito garantido a todos pela constituição para ser uma conquista dos que os disputam por via judicial.

A judicialização constitui instrumento de um grupo que faz uso do direito de acesso à Justiça, em detrimento da maioria desinformada. A educação, a maior participação da sociedade e seu amadurecimento político darão, no futuro, um equilíbrio na atuação conjunta do Judiciário e do Executivo, como fi nalizou a Ministra Eliana Calmon, no debate sobre Judicialização nesta Academia de Medicina.

Acad. Dra Janice M. LamasPresidente da Academia de Medicina de Brasília

PALESTRANTES

ACAD. DRA LUCIMAR CANNON (Chefe do Núcleo de Ju-dicialização da Secretaria de Saúde do DF): Boa noite a todos. Senhora Ministra, é uma honra estar aqui e poder discutir judi-cialização. É até um atrevimento de minha parte aceitar partici-par dessa mesa com tão ilustre profi ssional do Judiciário.

Autoridades presentes, colegas acadêmicos, senhoras e senhores.

Minha experiência com a judicialização da saúde remonta a dois anos, após regressar da Organização Mundial da Saúde, onde fui consultora, e me aposentar por idade. Em 2010, fui

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convidada por Dra Fabíola Aguiar, Secretária de Saúde do DF, para fazer uma análise sobre como ocorria o processo de “judi-cialização” na Secretaria. Aceitei o convite e, claro, me apaixo-nei pelo tema. Minha impressão é que temos avançado muito em Judicialização da Saúde – título de minha apresentação – termo pouco aceito, mas que aproxima o Judiciário e a Saúde.

Irei discorrer sobre o tema, analisando se há judicialização da saúde apenas no Brasil, bem como no SUS-DF.

Há uma revisão de literatura sobre o tema, ainda no prelo, da Organização Pan-Americana de Saúde, Organização Mundial da Saúde. Trouxe alguns dados dessa revisão.

Constata-se que a judicialização ocorre, na maioria das ve-zes, em países com sistemas universais de saúde.

O México é uma exceção, pois não dispõe de sistema uni-versal clássico, mas tem um instituto que trata somente das questões de má prática, ações populares contra o sistema de saúde mexicano. É um sistema que muito difere da judicializa-ção que temos no Brasil.

Foram revisados trinta estudos organizados que tratam do tema. Dezenove realizados no Brasil, dez na Colômbia e um em Costa Rica. Observa-se muita similaridade em termos de judi-cialização, nos três países, no que se refere às suas causas, à sua natureza, às suas repetições. Observou-se, nesses países, que, na maioria dos casos, a decisão judicial é favorável ao de-mandante. As mulheres demandam mais que os homens, fato este que ocorre porque aquelas procuram mais o sistema saúde que estes. Não há, no Brasil, um mapeamento nacional da ju-dicialização, nenhum estudo realizado em âmbito nacional. Os estudos são sempre restritos a um determinado município ou a um estado.

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Em 50% dos estudos colombianos, observou-se que o custo judicial foi maior do que o serviço demandado, ou seja, conclui-se que o Judiciário gasta muito com judicialização. No Brasil, as demandas por medicamentos são a maior parte das ações judiciais. Não se analisam demandas relacionadas a pro-cedimentos, a tratamentos.

Um fato comum nos três países avaliados, bem como no Distrito Federal, é a questão de que uma ação judicial pode plei-tear até seis tipos diferentes de medicamentos não constantes da relação nacional de medicamentos (Rename, no Brasil) ou vários procedimentos.

Constatou-se, nos três países, que a judicialização é conse-quência do desabastecimento dos sistemas de saúde. As espe-cialidades que foram mais demandadas são neurologia, oncolo-gia, reumatologia e oftalmologia.

No Brasil, quase todas as demandas são relacionadas com medicamentos de dispensação excepcional. Foram verifi cados, ainda, burocracia no acesso à saúde, debilidade do sistema de saúde na oferta de prestação de serviços e demora na incorpo-ração de novas tecnologias. Os gastos do Estado com a com-pra de medicamentos para atender às demandas judiciais foram maiores do que a compra por vias normais, quer dizer, com-prando-se pela judicialização, o custo é maior do que quando se compra por via de procedimentos normais.

No Brasil, os pacientes recorrem à justiça para aquisição de medicamentos excepcionais em razão da burocracia exis-tente na via administrativa, como documentação incompleta, solicitação em desacordo com os critérios de dispensação, longa espera etc.

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Embora sem comprovação, os estudos – apenas descritivos e não analíticos – realizados nos três países apontam que as de-mandas judiciais, em sua maior parte, estão relacionadas com a indústria farmacêutica, com o envolvimento de profi ssionais médicos e de advogados.

No Distrito Federal, em 2010, foi criada a Comissão de Ju-dicialização instituída pela Portaria 137, de 8 de setembro de 2010, com designação de quatro profi ssionais – médico, ad-vogado, farmacêutico e enfermeiro. Essa Comissão, da qual fi z parte, analisou 414 ações judiciais recebidas pelo GAB-SES de 1.º de setembro a 30 de novembro de 2010. Observou-se que a Secretaria de Saúde e suas muitas áreas técnicas não es-tavam preparadas para responder às demandas judiciais que recebiam, por diversos fatores, a saber, desconhecimento do volume de ações recebidas e das categorias de demandas exis-tentes; falta de uma metodologia institucional para o controle do recebimento, do cumprimento das ações e das respectivas respostas ao judiciário; necessidade de sensibilização interna sobre o atendimento das demandas judiciais; ausência de um fl uxo para facilitar o acompanhamento das ações judiciais den-tro da Secretaria; ausência de memória institucional sobre a judicialização.

Com a reestruturação da Secretaria de Saúde, em dezem-bro de 2011, a Comissão de Judicialização ganhou atenção es-pecial, o que possibilitou desenvolver um trabalho de forma mais organizada, dar mais celeridade às respostas e efi cácia na análise das ações judiciais. Foi criado o grupo de trabalho AJL/SES-DF (Portaria n.º 10, de 4 de fevereiro de 2011) e, em dezembro de 2011, foi instituído o Núcleo de Judicialização, for-mado de uma equipe multidisciplinar com dezenove membros,

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isto é, quinze servidores (dois médicos, uma enfermeira advo-gada, uma farmacêutica, uma auxiliar de enfermagem, uma as-sessora em importação, uma assessora técnica e sete técnicos administrativos); um conveniado pela Funap; um estagiário de nível superior e dois estagiários de nível médio.

Hoje, o Núcleo de Judicialização é a porta de entrada de todas as ações, de todos os ofícios e requerimentos. Temos o arquivo-memória da Judicialização e, dentre seus atributos, citam-se a análise dos processos e resultados; o atendimen-to de demanda espontânea do público; o acompanhamento de todos os processos para reduzir o tempo de cumprimento; os subsídios à defesa do GDF da Procuradoria do GDF – Promai; a prestação de informações ao Poder Judiciário, Procad, MPDFT, a Procuradoria Geral e Defensoria Pública do DF e da União e a articulação com todas as áreas e unidades da SES-DF. Enfi m, é um trabalho árduo.

A título de informação, apresentamos o panorama das de-mandas recebidas de fevereiro a dezembro de 2011: houve 2.481 ofícios advindos da Defensoria Pública do DF com soli-citação à Secretaria de Saúde de medicamentos, procedimen-tos e outros serviços assistenciais. Foram 1.126 requerimentos administrativos (um tipo de via existente na Secretaria, usada para encaminhamentos ao Disoc-DF, antigo posto do Inamps, com reinvindicações pautadas em prescrições médicas); 492 do Prosus; 501 do Promai; 1.092 de ações judiciais. Ao todo, tra-mitaram 5.692 documentos no Núcleo de Judicialização, fora as reiterações realizadas consequentes à demora das respostas.

Segundo a revisão da literatura mencionada, as ações ju-diciais demandaram itens diversos para uma mesma ação. Os medicamentos estão no topo da lista de itens demandados, com

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46,52% das ações. Nas 508 ações judiciais recebidas e relacio-nadas a medicamentos, foram encontrados 685 princípios ativos diferentes, distribuídos, para análise, em classes terapêuticas. Em 2011, houve um problema com relação a enfermos hemo-fílicos, que aumentou muito o número de demandas, mas hoje está solucionado. Em relação a tratamentos, o maior índice de ações foi dirigido a radio e quimioterapia (68%); seguido de oxi-genoterapia domiciliar (13,64%); câmara hiperbárica (12,12%) – não disponibilizada pela SAS-DF, somente pelo Hospital das Forças Armadas e por uma clínica privada; home care (4,55%); fertilização in vitro (1,52%). Enfi m, é uma miscelânea de solici-tações e, dentre mais outras: cópia de prontuário; indicação de assistente técnico; indenização; transporte para hemodiálise, para IML; UTI; internação hospitalar.

Com relação à internação psiquiátrica o número de deman-das foi elevado. O grande desafi o a enfrentar no cumprimento dessas demandas refere-se ao fato de que a rede de atenção aos usuários de drogas ainda não está completa, há uma dico-tomia entre a SES-DF e a Secretaria de Justiça-DF. Em síntese, a internação psiquiátrica ainda carece de muita discussão. De fevereiro a dezembro de 2011, foram recebidas 34 ações – tre-ze determinaram internação compulsória, que foram cumpridas em hospital da rede ou em clínicas privadas contratadas pela SES-DF. Esta ofereceu o tratamento a todos doentes, mas, em alguns casos, a família não concordou com o local da internação ou o enfermo abandonou o hospital.

O custo com as aquisições de medicamentos para o atendimento de ações judiciais alcançou o valor total de R$ 9.526.000,00. Foram gastos R$ 5.754.420,86 em aquisições de medicamentos importados.

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O atendimento às ações judicias teve grande avanço com a criação do Programa de Atendimento às Demandas Judiciais – Padjud – instituído pelo Decreto n.º 33.257, de 10 de outu-bro de 2011 e normalizado pela Portaria n.º 223 de 24 de no-vembro de 2011. Os recursos fi nanceiros repassados ao Padjud totalizam R$150.000,00, para utilização bimestral. As compras se dão por meio de dispensa de licitação e leva-se de vinte a trinta dias para completar o processo. Para atendimento utiliza--se como critérios de compra a priorização das necessidades do paciente.

Em 2012, até 31 de julho, foram demandados 2.586 do-cumentos entre ações judiciais (597), ofícios e requerimentos (1.989). Dentre as classes terapêuticas, os medicamentos mais demandados foram: psicotrópicos (20,73%), antineoplásicos, (16,35%) e cardiovasculares (9,64%). Os procedimentos cirúr-gicos mais judicializados foram ortopédicos (40,38%), cardio-vasculares (12,50%); oftalmológicos (11,54%) e neurocirúrgi-cos (8,65%), seguidos das cirurgias oncológicas, de cabeça e pescoço e urológicas.

Dos exames solicitados quase todos não são oferecidos na rede.

Foi criada na SES-DF uma unidade específi ca para cum-primento do grande número das judicializações referentes aos CPAPs-BIPAPs, ou seja, à medicina do sono – e estão levantan-do discussões junto ao Comitê Distrital de Saúde sobre o tema.

Como profi ssional de saúde pública, considero o volume de demandas muito grande, porque cada ação judicial implica uma série de reivindicações. O atual Governo tem apostado na solução da judicialização dando aportes fi nanceiros e humanos para viabilizar seu atendimento.

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Outros fatores que inviabilizam o atendimento das deman-das referem-se aos prazos de cumprimentos. Estes são muito exíguos para a compra dos medicamentos, o que depende de licitação e, às vezes, a documentação do fornecedor é incom-pleta ou está vencida.

O sentimento é de retrocesso, pois até na vida privada é difícil o acompanhamento pari passu do avanço tecnológico. A evolução da tecnologia versus alocação de tecnologia é real-mente uma guerra. Demandas com valores muito baixos são quase impossíveis de serem cumpridas, como a compra de água boricada, em que a demanda chega a custar menos que qua-renta reais. Eu compreendo que esta quantia é um valor signi-fi cativo no orçamento de uma pessoa pobre, mas a compra de medicamento, em si, é tarefa árdua por dispensa de licitação, quando os custos são muito baixos.

Sob meu ponto de vista profi ssional, outro fator preocu-pante refere-se ao tratamento odontológico porque, em saúde pública, a primeira preocupação odontológica é evitar um foco infeccioso no paciente. Sabe-se que as infecções dentárias po-dem ser a causa de complicações cardíacas, renais, articula-res e podem até resultar em óbito. Em odontologia, avançamos pouco em prevenção e promoção da saúde odontológica. Muito me assustaria se começássemos a ser demandados para reali-zar implantes dentários.

Para atendimento às ações que dizem respeito às questões do álcool e outras drogas, há poucas clínicas especializadas. Conta-se com uma Política de Saúde Mental no Distrito Federal, há um protocolo de atendimento, há hospitais gerais equipados para desintoxicação, mas ainda se esbarra na questão de inter-nação de longo prazo, por falta de espaços com infraestruturas especializadas sufi cientes para atendimento às demandas.

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Registram-se como progresso obtido o Programa de Aten-dimento às Demandas Judiciais – Padjud; a Central de Compras da SES-DF; a reestruturação da SES-DF com criação do Núcleo de Judicialização subordinado ao Gabinete do Secretário; a pa-dronização de novos medicamentos; a atualização e elaboração de protocolos clínicos; a defesa e resposta ao juízo; o contato direto do Grupo de Judicialização com a Defensoria Pública por e-mail e telefone e com juízes das Varas de Fazenda Pública; o Comitê Executivo Distrital de Saúde (Res. 107 do CNJ, de 6 de abril de 2010) – o mais signifi cativo dos progressos alcançados; a centralização e o controle sobre o processo; a celeridade das respostas; e os dados disponíveis para a tomada de decisão.

Conclusões

Sem dúvida, a judicialização evidencia a debilidade do sis-tema saúde – no acesso, na incorporação de novas tecnologias e ou no processo de gestão. Há ações diversas para terminologias específi cas e vale a pena analisar a incorporação ou não, ao sis-tema, de determinadas tecnologias. Os protocolos terapêuticos, as guias, as diretrizes devem ser atualizados como norma do Sistema de Saúde. Faz-se imprescindível a aproximação entre o Judiciário e a comunidade de saúde para que se estabeleçam di-álogos e se unam forças e conhecimentos para aperfeiçoamento e funcionamento do processo de judicialização.

Vale ressaltar que o Brasil ainda disponibiliza pouquíssimos estudos que tratam da judicialização. Faz-se urgente o incen-tivo ao estudo e à pesquisa nesse campo para a descoberta de nossos caminhos.

Em minha experiência acadêmica e profi ssional, percebo que saúde não se restringe ao sistema de saúde em si. O conceito

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vai além de procedimentos médicos e assistência terapêutica. Saúde, assim como educação, é a interface de maior relevân-cia na sociedade, porque interage com todas as demais áreas sociais. Assim, a intersetorialidade pode contribuir muito para viabilização e melhora do sistema de saúde. Isso não ocorre normalmente. O Núcleo de Judicialização e a Defensoria Pública precisam andar de mãos dadas.

Investe-se muito em políticas públicas voltadas ao siste-ma saúde, que sofrem infl uências do Poder Judiciário. Contudo, há que se abrir a discussão a outros atores que possam trazer contribuições importantes, como legisladores, membros do Ju-diciário, analistas políticos, a mídia, etc. Este ano foi realizado um seminário para discussão sobre o tema Judicialização. Hou-ve participação signifi cativa, e os resultados foram excelentes. A interação com entes dos vários setores se faz imprescindível.

Considero de alta importância que se intensifi que a par-ticipação das Secretarias de Estado da Saúde no Comitê Exe-cutivo Distrital de Saúde (Res. 107 do CNJ, de 6 de abril de 2010) para aprimoramento da judicialização e implantação de políticas públicas de saúde. É possível discutir as políticas pú-blicas de saúde no Comitê Distrital de Saúde, em que ocorrem tomadas de decisões em conjunto com os gestores estaduais e municipais de saúde. Não se podem tomar decisões de caráter individual, nem se ter uma judicialização centralizada. Há que se levar em conta uma política de saúde pública voltada ao coletivo, com todos os atores políticos envolvidos no processo. Considero, portanto, como avanço maior e primordial a criação do Comitê Distrital de Saúde, hoje incluído na agenda da Se-cretaria de Estado da Saúde (SES).

Obrigada.

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EX.MA SRA. ELIANA CALMON (Ministra do STJ/CNJ): A ju-dicialização da saúde se torna interessante quando olhada em ângulos diferentes: sob a perspectiva da área da saúde, social e jurídica. A judicialização da saúde sob o prisma do meu papel na Corregedoria do STJ, mas sem a abrangência das questões sociais e atendo-se às questões que envolvem o Judiciário, há muitas ações desencontradas.

Cada ator tem um discurso, um argumento individualiza-do. Em alguns momentos, observa-se que a Justiça não está se entendendo. Têm-se justifi cativas diversifi cadas dos diferentes atores, sob o ponto de vista sociológico. Pode-se dizer que o Brasil, hoje, só tem 23 anos no que se refere à democracia, aos direitos sociais, aos direitos individuais, ao respeito a esses di-reitos sociais. Porque foi a partir da Constituição de 1988, que se tem o atual conceito de direitos sociais.

O direito à saúde sempre foi um conceito abstrato, apesar de ser um direito garantido pela Constituição Federal, pois eram as elites que ditavam as regras, que decidiam sobre o que cum-prir e o que não cumprir na atividade pública.

Atuo como juíza desde antes da Constituição de 1988 ser promulgada. Nós, juízes, estabelecemos na Constituição o se-guinte: “Está na Constituição, mas é norma programática. É preciso esperar a regulamentação da norma constitucional para que o direito coletivo se faça valer”. Isso aconteceu porque o Brasil atrasou muito em fazer a revisão crítica em seu Direito, por uma série de circunstâncias políticas, dentre as quais a Re-volução de 1964. Só em 1988 foi possível fazer uma Constitui-ção moderna.

Essa revisada e denominada Constituição Cidadã estabe-leceu que tudo o que está na Constituição é para ser cumprido

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independentemente de haver ou não recurso ou disciplina legis-lativa. Tudo o que está previsto em matéria de políticas públicas é da alçada do Governo.

Está na Carta Constitucional de 1988 que o Poder Judiciário tem a incumbência de participar da elaboração das políticas pú-blicas e de fi scalizar a efi ciência do serviço prestado. Então, pela primeira vez, o Poder Judiciário tem ingerência sobre as políti-cas públicas, dentre as quais a política de saúde, que é conside-rada um dos primeiros direitos sociais, porque é o direito à vida. Sendo direito à vida, é um direito de segunda geração, que é o da igualdade, em que todos têm igual direito.

Daí, nós juízes e magistrados começamos a enfrentar di-fi culdades, porque no passado, antes da Constituição de 1988, o Poder Judiciário era parceiro dos outros poderes. Quando, por exemplo, uma lei ainda não tinha sido regulamentada, ou pelo Legislativo ou pelo Executivo, o juiz a desconsiderava, lavando as mãos a respeito do problema, até que a lei fosse regulamentada.

A parceria entre o Poder Judiciário e os poderes Legislativo e Executivo se rompeu com a promulgação da Constituição de 1988. Portanto, se o Estado descumprir, o Poder Judiciário tem força sufi ciente para fazer cumprir uma política pública. Isso ex-plica a crise que foi estabelecida entre os três poderes. O Poder Judiciário de parceiro passa a ser fi scal dos outros dois poderes, forçando-os ao cumprimento das políticas públicas. Assim, o Poder Executivo considera o Poder Judiciário um perdulário, que o faz gastar muito dinheiro; o Poder Legislativo entende que o Poder Judiciário está tomando as rédeas para assumir o lugar de legislador. Mas isso se dá devido à incompreensão das elites políticas e econômicas, que não compreendem como funciona

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o novo sistema em vigor desde a Constituição de 1988, quando houve a revisão crítica do Direito como um todo.

No que se refere à saúde, há ainda um complicador – o Brasil abriga uma sociedade paupérrima, com difi culdades eco-nômicas inclusive para aquisição de alimentos. Os profi ssionais médicos, presentes, sabem que não se pode substituir o bife por um medicamento. Em pessoa mal alimentada, remédio não vai fazer milagre. Assim, neste país subdesenvolvido, com um Judiciário sobremaneira evoluído, um Executivo ainda com sé-rios problemas econômicos, a judicialização tem que adminis-trar a “grita” do povo brasileiro, que começou a chegar ao Poder Judiciário com demandas diversas e constantes, porque um dos princípios da Constituição é acesso à Justiça. Hoje, juízes têm obrigações de estabelecer práticas que levem as pessoas à Jus-tiça. O acesso à Justiça é um princípio constitucional. Fomos tomados de assalto porque, de repente, a Justiça cresceu de forma assustadora. O povo brasileiro, todas as vezes que sente um direito não cumprido, apela para o Judiciário e o Judiciário tem que atendê-lo.

Esse é o pano de fundo no qual se desenvolve a questão básica de saúde. Nesse quadro traçado sob o ponto de vista po-lítico, o Brasil tem uma defasagem econômica para atendimen-to à população e uma saúde pública ruim em razão da falta de saneamento básico, hospitais, vacinação, educação. Tudo isso leva à precariedade da saúde. Diante do exposto, compreende--se o comportamento de um magistrado quanto ao direito do cidadão de acesso à justiça para aquisição de medicamentos, internação, etc. Como um juiz se comporta diante de tal reali-dade? Despreparado para atuar e fazer valer o direito do cida-dão que teve acesso à justiça para cumprimento de um segundo

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direito, que é o direito à saúde, garantido constitucionalmente. Assim, desinformado, o magistrado vai se pautar pelas infor-mações prestadas pelos planos de saúde ou pelos serviços de saúde pública, ou ainda pela Anvisa, no que se refere à Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – Rename.

Vale ressaltar que constam dessa lista medicamentos que podem ser substituídos por outros e, ao se cumprir uma ordem judicial com a prescrição de determinado medicamento, subs-tituindo-o por outro equivalente, se estabelece o descrédito, a desordem em relação ao serviço público. Ao demandar uma me-dicação prescrita pelo profi ssional de saúde e peticionado pelo advogado, o paciente e o juiz não aceitam que o medicamento seja substituído por outro.

Como juíza do STJ, tenho deparado questões dessa natu-reza, que reputo de relevante importância. Por exemplo, uma pessoa sofria de vitiligo. Dizem que em Cuba há o melhor tra-tamento possível para o vitiligo. Segundo a bibliografi a médica, não há comprovação de efi cácia, efi ciência para esse tratamen-to. Por isso mesmo, o serviço de saúde não o autoriza. Mas a pessoa que está com a doença só aceita o tratamento médico no exterior. Isso implica passagens, estada do doente mais um acompanhante, despesas de viagens de ida e volta a Cuba, cada seis meses, para realização de consultas, ou seja, o magistra-do, sem o preparo necessário, atende porque é uma questão de saúde, e saúde confi gura direito à vida.

Nesse caso do vitiligo, fui voto vencido, porque não aceitei que o paciente fosse fazer o tratamento no exterior, pela não comprovação do sucesso desse tratamento. Mas meus colegas entenderam que melhor seria fazer o tratamento do que não fazê-lo. Ninguém brinca com saúde. Isso está levando a um

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abuso desmesurado, porque pessoas que não precisam estão recorrendo à Justiça e muitas vezes, naturalmente, com remé-dios altamente sofi sticados e de resultados duvidosos.

Diante desse quadro que está se repetindo muito, o ma-gistrado, com medo de errar e errar contra a vida, está saindo com decisões absolutamente disparatadas. Isso tem desagra-dado demasiadamente o Governo em razão de decisões que deixam a desejar. Por isso é que, em 2009, o Conselho Nacional de Justiça tomou uma providência, que foi a aproximação, para diálogo, da Magistratura com os médicos, com os serviços mé-dicos, com a Medicina, com os técnicos.

Hoje temos a ideia de que, como magistrados, não pode-mos funcionar como ilhas, isolados. Temos que ouvir os atores que entendem de medicina, de remédios, de tratamento, para que façam assessoria necessária e, dessa forma, absolutamen-te isentos, possam deixar o magistrado à vontade para decidir por um lado ou por outro. Essa foi a solução encontrada pelo CNJ, ainda que demorada.

O que é o Conselho Nacional de Justiça? O CNJ tomou uma dimensão muito abrangente, com ampla visibilidade, contudo, poucos conhecem o seu trabalho. Foi criado para ser o órgão de controle do Poder Judiciário, cuja gestão era péssima, o que infl uenciava exatamente na fi nalização – o resultado da pres-tação jurisdicional. Em 2004, foi feita a reforma do Judiciário que criou esse órgão, que com base em dados fornecidos pelos tribunais iniciou uma investigação para verifi car o que existia no âmbito do Poder Judiciário. Órgão fechado, hermético, impene-trável uma espécie de “caixa preta”.

Em 2010, por meio de uma resolução de 2009, foi possí-vel se ter conhecimento de alguns dados, parcialmente, porque

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nem todos os órgãos se dispuseram a informar. Assim, foi pos-sível obter informações sobre a quantidade de ações demanda-das em saúde na Justiça Brasileira – um número grande de de-mandas. Na Justiça Federal, registraram-se 36.710 ações com demanda de prestação de serviço de saúde: medicamentos, procedimentos, internações etc. Na Justiça Estadual, 185.967. São dados de 2010. Não obtivemos dados em 2012 por falta de alimentação desses cadastros, que surgiram a partir de 2010.

Criou-se então um núcleo, um foro nacional do Judiciário para monitoramento da resolução das demandas de assistência à saúde. O foro nacional, criado com o objetivo de aproximar Judiciário e técnicos, contou com um grupo seleto de magistra-dos, médicos, farmacêuticos, que se incumbiram de analisar os contratos relativos aos planos de saúde, a pensar as cláusulas que eram leoninas, absurdas, e as isenções que fi caram fora dos contratos – doenças diversas que o juiz não sabe analisar. O Núcleo se incumbiu de verifi car, em cada demanda, a pos-sibilidade de otimizar a conciliação por meio da mediação do conciliador, anulando assim a ação do Judiciário. Contudo, o Conselho Nacional de Justiça, com a difi culdade de acesso aos dados cadastrais, está em débito com a sociedade por não de-sempenhar bem seu papel, que é fazer a política de gestão do Poder Judiciário, de modo que este resolva com mais celeridade seus problemas.

O CNJ vem caminhando com vagar. O avanço ocorreu em relação aos planos de saúde, dos quais muitos contratos já foram analisados, mas ainda se encontra incipiente no que se refere a dar respostas rápidas e precisas às questões da judicialização. Ocor-re que não há, por parte do Tribunal, normas delimitadas, baliza-doras, que possam orientar o juiz em sua prestação jurisdicional.

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Dessa forma, no que se refere às questões de saúde pública, tanto o Judiciário quanto o Legislativo encontram-se debilita-dos, despreparados, incipientes na prestação jurisdicional e na elaboração de políticas de saúde pública. Como Corregedora, tenho constatado essa realidade nos estados que visito. São muitas as queixas.

O problema se verifi ca mais fortemente nas regiões Norte e Nordeste, quando os tribunais se aliam ao governo, agem voltados para a política e, por essa razão, nem sempre atuam de modo que atendam aquele que precisa do tratamento, do medicamento, da internação.

Essa é a realidade da Justiça brasileira, que precisa se po-sicionar dentro de um patamar de equilíbrio. É o que eu tinha a dizer aos senhores, não me isentando da culpa que reputo ao Poder Judiciário pela falha da prestação jurisdicional.

Direi ainda que tudo o que foi dito por Dra Lucimar são dados absolutamente verídicos, corretos. A magistratura de pri-meiro grau sempre dá as sentenças, geralmente em favor do particular, do doente. Mas os tribunais, especialmente os do Norte e Nordeste, tendem a aceitar a desculpa do Estado de faltar recursos, o que para o Judiciário isso é absolutamente irrelevante, porque saúde é prioritária e dever do Estado. Este, que recebe os impostos, segundo o ponto de vista do Supremo Tribunal Federal, tem a obrigação de resolver os problemas re-lacionados à saúde e atender o paciente.

A questão mais grave, que vejo e que me deixa confusa, refere-se a doenças mais graves, com necessidade de trans-plante de órgãos, de células etc., o que custa muito caro. É grande a preocupação com os pacientes nas fi las de espera de

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transplantes, que são muito grandes. A demanda cresce e o atendimento é precário. Pacientes em estados mais graves de-vem ser atendidos com prioridade, mas esbarram na burocra-cia. A Justiça já tentou uma solução para a organização das fi las de espera: por ordem de chegada, por idade, por risco etc., e não se chega a uma conclusão, porque em realidade, o proble-ma é a falta de recurso. Fui relatora do caso de uma menina de quatro anos de idade, com leucemia, que entrou em fi la e não conseguiu o transplante. Pela gravidade de sua doença, ela deveria ser atendida com prioridade. O SUS recusou aten-dimento. A família então se desfez de seu patrimônio e buscou tratamento nos Estados Unidos com recursos próprios. Viajou toda a família, inclusive a irmãzinha para o caso de ser a doa-dora compatível. A criança recebeu o transplante. O resultado foi muito bom. Regressaram ao Brasil, necessitaram apenas de acompanhamento médico pós-transplante. A criança bem suce-dida no transplante, por um erro de enfermagem, veio a óbito. O pai me procurou, narrou toda a história e pediu indenização por todos os gastos que teve com o tratamento médico da fi lha. Tive que negar o pedido dele, por causa de seu advogado, que não soube peticionar adequadamente. Ele quis responsabilizar o Estado por suas perdas e por seu prejuízo fi nanceiro, e seu pedido de indenização foi indeferido por incompetência do ad-vogado. Este é outro problema no qual o cidadão se esbarra – advogados despreparados que não sabem conduzir ações que demandam a prestação jurisdicional nas questões de saúde. De forma que eu, como brasileira, tenho difi culdade de aceitar o que se passa na saúde pública do Brasil.

O que se constata é que as empresas de prestação de ser-viço no setor saúde estão ganhando dinheiro com a prestação

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dos serviços de limpeza, de segurança, de fornecimento de ma-terial, porque as licitações são todas superfaturadas e o dinhei-ro destinado à saúde não chega à ponta, o qual é consumido por essa rede de corrupção. Rede de corrupção esta que se sustenta à custa de nossa política eleitoral. De modo que precisamos, precipuamente, nos educarmos como cidadãos para combater-mos o mal pela raiz. Do contrário, o dinheiro não chegará à ponta.

Se olharmos os orçamentos públicos, vamos verifi car o quanto de dinheiro que se gasta em saúde. Mas vamos aonde ele se consome. Certamente não o é com folha de pagamento do profi ssional, do médico, e este está ganhando pessimamen-te; não é na compra de medicamentos, mas com atividades que não tem nada a ver com a saúde. E eu, como sou uma juíza que atua numa parte da área criminal, vejo bem para onde é que vai o dinheiro: para essas empresas de fornecimento de material, serviços de limpeza por meio dessas licitações emergenciais. Sem falar a respeito do lixo hospitalar, que é outra fonte de corrupção. De modo que temos um problema grave, que está interligado a muitos outros.

Sinceramente, não estou vendo uma solução imediata, em curto prazo e médio prazo. O Conselho Nacional de Justiça está se esforçando para fazer essa aproximação da Magistratura com os técnicos e, dessa forma, amenizar um pouco toda essa con-juntura. Em longo prazo, só vejo uma solução, que se dará por meio da cidadania, que é a educação, a educação pelo voto, porque reforma política parece que não vem nunca. Eu estou com 67 anos, estou cansada de esperar.

Muito obrigada

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DEBATEDORES

DR CARLOS VITAL TAVARES CORREIA LIMA (Presi-dente em exercício-CFM): Excelentíssima Ministra Dra. Eliana Calmon, ilustre colega Dra. Lucimar Cannon; demais preclaros colegas, autoridades, senhoras e senhores.

Registro, inicialmente, minha satisfação em participar de uma reunião em que tenho a oportunidade de compartilhar a mesa com uma pessoa que me faz acreditar no futuro des-te país, a Ministra Eliana Calmon; e com Dra Lucimar Coser, uma profi ssional dedicada com notório conhecimento na área de saúde pública.

Não há como não ser repetitivo, porque nossas brilhantes palestrantes esgotaram o tema, de modo que dispenso qual-quer auxílio técnico – fi ca fácil raciocinar após ouvir palestras tão ilustres.

Na Medicina, como no Direito, construímos o futuro com um olhar no passado. Por sinal, foram as primeiras profi ssões a serem ensinadas de forma metodológica nas escolas medie-vais e têm princípios fundamentais muito próximos. Talvez o maior exemplo seja o da não malefi cência, expresso por inter-médio dos princípios in dúbio pro reo e primum non nocere, ou seja, primeiro não fazer o mal. Ambas as profi ssões têm com-promissos humanísticos e humanitários e utilizam ferramentas comuns, como os princípios da razoabilidade e o da proporcio-nalidade. São realmente profi ssões muito próximas, contudo, fi nalísticas em termos da concepção de seus objetivos.

Estamos aqui, na realidade, como disse Dra Eliana Calmon, tratando de direitos garantidos por uma Carta Magna. Com a devida venia, diria até que estamos falando de direitos naturais.

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São aqueles direitos sem os quais as pessoas não seriam tra-tadas como pessoas. São direitos que se impõem ao legislador e mesmo ao legislador constitucional, aos juízes, aos juristas e a todas as pessoas. São bases ontológicas superpositivistas da dignidade humana, exigência da ideia de direito. Direito à vida, saúde, intimidade e à personalidade. São direitos irrenun-ciáveis, intransmissíveis. São hoje cláusulas pétreas em nossa Constituição Federal. É disso de que estamos falando.

Para uma divisão de caráter metodológico, dessas rápi-das considerações, dividiremos o desenvolvimento temático em segmento público e área privada.

Na área pública, temos o que aqui a Ministra nos expôs de maneira magistral. Temos uma defi nição de direito e de de-ver. Dever do Estado e direito do cidadão. Temos o princípio da reserva do possível, mas que já foi frustrado – a Ministra nos informa de maneira pontual. Indubitavelmente, não se poderia falar em reserva do possível, a Lei n.º 8.080 está aqui muito clara, é Sistema Único de Saúde.

Mas as experiências internacionais mostram que não existe sistema único de saúde se pelo menos 70% do gasto sanitário total não forem bancados pelo Estado. Aqui, no Brasil, não chega a 45%. Por outro lado, no site do IBGE, se expõe: no orçamento da União de 2010 – 45% do orçamento geral da União foram destinados ao pagamento de juros dos títulos emitidos para fa-zer face à dívida interna. Títulos comprados por bancos e fun-dos de pensões privados. Este é um ponto radical do problema: fi nanciamento. Mas somam-se a isso, é óbvio, fatores outros como gestão profi ciente, combate à corrupção, desvio do parco investimento existente, que agudiza ainda mais a questão.

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Temos, além desse processo na área da saúde pública, a visão muito clara de que a imensa maioria dessas ações que, de certo modo, chama-se judicialização. Parece-me de maneira dúbia, como se um estigma estivesse embutido nessa expres-são. Prefi ro dizer: Justiça faz bem à saúde. Dentro desse fórum, Justiça faz bem à Saúde, não podemos deixar de ver que as maiores ações, mais numerosas, são para ácido acetilsalicílico, água boricada. A Doutora nos expôs isso. Mas há procedimen-tos caros. Há procedimentos bem indicados e outros que não estão bem indicados.

Mas sabemos das ações corajosas de cidadania, de resti-tuição de um pouco de crédito ao País, que Dra Eliana Calmon tem feito na área da magistratura. A classe médica não é dife-rente. Toda classe profi ssional abriga pessoas das quais ela se orgulha e outras que ela renega. Temos indicações que não são precisas e, além disso, não são mesmo corretamente indicadas e até interesses outros, partidários de causas menores, de cau-sas inclusive absurdamente não recomendáveis, censuráveis. Mas isso é minoria.

O médico, não obstante a natureza contratual dos seus ser-viços, se dedica a uma prestação de serviço diferenciada pelo próprio objeto. Juridicamente diferenciada pela manutenção da saúde, da vida do ser humano e da sua dignidade.

Eu tenho um contrato verbal com meu paciente. Nesse con-trato verbal, deixa-se claro que tenho a obrigação de oferecer a esse paciente o melhor que está disponível para a manutenção, preservação, recuperação da sua saúde – manutenção de sua vida. Ele tem que fazer o que eu peço para que consigamos bom êxito nos objetivos inseridos nessa relação. Mas esse contrato que tenho com meu paciente é o prevalente. O juiz quando

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fundamenta sua ação passa por cima do direito contratual feito entre partes e vai à Carta Magna. Poderia ir acima dela e ir num Direito superpositivista, Direito natural. O médico tem isso nes-se contrato com seu paciente. Óbvio, se tenho um estimulador imunitário que me causa febre, dores musculares generalizadas, palpitação intensa, náuseas, vômitos e custa mais barato; mas, tenho outro que não me causa nada disso e é até um pouco mais efi caz, sem efeitos colaterais. Em nome do interesse co-letivo, vou usar o mais barato em detrimento daquele contrato individual que tenho com meu paciente? Nem sempre o direito individual se sobrepõe ao coletivo. A ética utilitarista tem seu espaço, mas sem detrimento de certos interesses prioritários.

É dentro dessa visão que o Conselho Federal de Medicina tem procurado contribuir. Reconhece a autonomia do profi ssio-nal médico. Esta tem matriz nos princípios valorativos e jurídi-cos da dignidade e na Constituição, mas precisa ser legitimada pela idoneidade, pela competência. Dispomos da Resolução n.º 1.931 de 2009, em vigência a partir de 2010, o atual Código de Ética Médica, em que fi ca bem claro até onde vai a auto-nomia do médico, em que alicerce ela tem que estar fi ncada. Certamente no Código está dito que é vedado ao médico indi-car procedimentos desnecessários. Mas o médico não pode se submeter a restrições que impeçam a efi cácia inserida em seu contrato com o paciente. Nenhuma restrição, de nenhuma au-toridade, de forma alguma poderá interferir sobre esse contrato em detrimento do paciente. Isso está no Código. Se formos além do Código, temos a legislação específi ca sobre órteses e próteses procurando a conciliação dentro desse processo de in-dicação e procurando mais uma vez dentro de uma forma posi-tivista, com força de lei como todas essas resoluções, defi nir de que maneira essa prescrição deve ser feita. Não se pode indicar

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uma prótese expositiva com uma marca estrangeira apenas, há de se oferecer opções, há de se discutir protocolos com normas que venham contribuir para evitar excessos e abusos.

Mas podemos dizer, posso inclusive asseverar, com expe-riência de quinze anos de atividade em conselhos de medicina, que o segmento de classe médica que foge às regras e não orgulha a classe é minoria, uma ínfi ma minoria dessa classe. Infelizmente nos causa prejuízos imensuráveis, mas a imensa maioria dos médicos não pode ser penalizada por uns poucos que faltam com a ética.

Precisamos sim contribuir, cada vez mais, com o Judiciário deste País porque, se ele está sendo muito demandado, sem dúvida o raciocínio é simples e lógico – o Executivo e o Legisla-tivo não estão fazendo bem o seu papel. Se o estivessem fazen-do, não haveria demanda judicial.

A partir de 1990, o povo deste País – com a promulgação da Lei n.º 8.078, o Código de Defesa do Consumidor, apesar de um índice hoje aumentado para 74% de analfabetos funcionais –, compreendeu um pouco mais o que é exercício de cidada-nia e busca a Justiça, no amplo sentido do termo, o seu Poder Judiciário. Esse Código de Defesa do Consumidor é um código de princípios. É um código de seguridade social e de seguros. Determina a inversão do ônus da prova na hipossufi ciência do reclamante, segundo as regras ordinárias, da experiência, a cri-tério dos juízes. Estabelece o Código de Defesa, bem como o Código de Ética Médica de 1988 e o Código de 2009, o atual, que o paciente tem status epidemiológico mais elevado para tomar decisões pessoais sobre o que deve ser feito com o pró-prio corpo, por meio de diálogos francos com seu médico, que façam nascer relações fi duciárias, radicadas no décimo valor

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ético-social da recíproca confi ança. É o consentimento livre e esclarecido, indispensável hoje na prática médica. O doente, empoderando-se da cidadania, apenas indica o exercício de di-reitos que lhe são naturais e que estão previstos em nossa Car-ta Magna de 1988.

Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina continua à disposição aqui em Brasília, e temos tido a oportunidade de contribuir desde o primeiro fórum do CNJ no Rio de Janeiro com a Universidade Fluminense e a Universidade Paris Des-cartes em São Paulo. E agora, no TJDFT, com os excepcionais trabalhos que Dr Donizete vêm desenvolvendo, que também contribui com esse fórum. Recebemos convite de Dr Luís Mário, de Dr Mozart, para contribuição dentro de uma comissão que está sendo formada no próprio CNJ para que possamos, juntos, construir realmente um país melhor, com justiça no exato sen-tido do termo.

Era o que eu queria deixar como contribuição inicial e me colocar à disposição para o desenvolvimento dos debates. Rei-tero os agradecimentos pela oportunidade e pelo privilégio de estar aqui presente.

DR CID CARVALHAES (Presidente do Sindicado dos Mé-dicos-SP): Estou quase me sentindo um cidadão numa cidade com duas placas: “Seja bem-vindo” e “Boa Viagem”. Porque diante de observações tão brilhantes da Excelentíssima Senhora Ministra Eliana Calmon, que nos traz aqui uma ação de cidada-nia, de resgate da honra do cidadão brasileiro, da dignidade que o cidadão deve ter na sua postura intrínseca de direitos, e que mostra exatamente sua grandiosidade.

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Senhora Ministra, nos honra tê-la como representante dos tribunais superiores e a senhora nos dá a segurança necessária de que podemos perseguir ainda o direito à Justiça. Temos um enfoque muito especial de Dra. Lucimar Coser, que traz uma visão muito apropriada do que é efetivamente aquilo que se passa no setor público. E Dr. Vital, meu caro amigo Dr. Vital, sempre nos traz uma ilustração ética muito bem cunhada den-tro de preceitos e ainda na grandeza do que se discutiu aqui.

Senhora Ministra, eu sou um indivíduo que ainda não me defi ni na vida, porque tenho dualidade, também sou advogado. Então, é muito interessante que tenhamos a visão do advogado. Esta é algo muito apropriado dentro deste curso, porque esta-mos analisando um aspecto que conseguiu unanimidade: con-trariar a todos. Temos a contrariedade de quem paga a conta, que é o serviço público, a empresa privada que recebe lucros desabusados. Temos a contrariedade dos governos e dos gesto-res, de uma maneira geral. Temos a contrariedade dos nossos pacientes, dos médicos, dos advogados e da Magistratura, inse-rindo aí a Vigilância do Ministério Público. É uma contrariedade de todos e que perseguimos constantemente uma solução ade-quada na qual, em muitos momentos, o direito individual tenta sobrepujar o direito público.

Sabemos que os princípios constitucionais pregam, exata-mente, o contrário, e essa dualidade leva, talvez, a uma difi -culdade muito grande de decisão do magistrado. Isso nos traz o conceito de discussão maior da cidadania, que vai refl etir em nossa qualifi cação normativa, legislativa legal dentro de um Es-tado Democrático de Direito. Se invocarmos isso, a saúde, os médicos em especial, talvez sejam o segmento de maior nor-matização que exista no País. A Carta Magna nos obriga a todas

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as leis complementares, leis suplementares, portarias, códigos profi ssionais, instituições estatutárias em que trabalhamos e que nos impõem uma série de normas que, às vezes, é difícil termos efetivamente uma solução adequada.

Do ponto de vista do advogado, é preciso que se tenha uma preparação mais adequada, e as aventuras jurídicas, as aventuras advocatícias, que a senhora expôs de maneira muito apropriada, são muito grandes.

Mas Dr Vital traz à baila outro aspecto. Temos um percen-tual de médicos que efetivamente ou atendem a conveniên-cias não assentadas em pilares sólidos de ética ou efetivamente estão compromissados com interesses secundários, questioná-veis, dentro do princípio elementar da cidadania, do direito do paciente. Mas, por outro lado, há de se também invocar que, em muitas oportunidades, observamos que a reivindicação indi-vidual extrapola os limites de direito.

A pretensa igualdade não obedece ao princípio da equida-de. É preciso que estabeleçamos, dentro dos preceitos funda-mentais da Justiça, exatamente o equilíbrio entre a igualdade e a equidade. Se pregarmos a igualdade como direito essencial de todos, em limites amplos da universalidade, seguramente deve esbarrar nos preceitos da Justiça para que de fato dê a cada um aquilo que é seu. O princípio do equacionamento jurisdicional no Estado para garantia de direitos realmente deve ser feito, e apenas esbarramos com as difi culdades de conhecimento da Magistratura.

Digo a Dr Bisol que me perdoe. Já o ouvi em algumas opor-tunidades, tenho admiração especial pela sua postura, mas o Ministério Público às vezes também extrapola. Sabemos disso

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e temos essa convicção. Todos evidentemente são movidos por um princípio essencial: o princípio da perseguição da Justiça e o princípio da aplicação do Direito. Então, está nos faltando diálogo. A percepção que o movimento sindical tem e que nós, advogados, também temos, permito-me falar como médico e advogado simultaneamente, faz que persigamos uma conver-gência que é exatamente a do diálogo. Então, quando se veem iniciativas de comitês que discutem a saúde, poderíamos cha-mar de uma câmara “pré-técnica” ou uma comissão de asses-soramento de todos, talvez seja o imputamento das distâncias que perseguimos no sentido de fazer valer os princípios essen-ciais do direito à Justiça.

Então, partimos de algumas premissas constitucionais, es-pecialmente que a vida é um bem indisponível, que a saúde é um direito de cidadania e uma obrigação do Estado. Temos que administrar alguns confl itos. Em primeiro lugar, não temos uma política de saúde, uma política de Estado para a saúde. Em se-gundo lugar, temos subfi nanciamento, tanto na saúde pública como na saúde privada, e as coisas se confundem dentro de dois princípios que, embora diametralmente opostos, são exa-tamente idênticos. Na saúde pública, na orçamentação pública, temos contingenciamento de despesas e, na chamada saúde privada, temos a restrição de procedimentos por perseguição de lucros. O resultado fi nal é a indisponibilidade fi nanceira e, portanto, a restrição dos atendimentos. Isso é um ponto básico e fundamental que nos leva a uma refl exão muito ampla e mui-to séria no sentido de perseguir uma solução.

O outro aspecto é que temos uma incapacitação dos ges-tores de todos os setores. Temos o despreparo de nós, médi-cos, temos o despreparo de nós, advogados, as difi culdades

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dos senhores representantes do Ministério Público, temos as difi culdades dos gestores, temos os atropelos e as difi culdades da magistratura. Então, se todos reconhecemos isso em um fórum dessa natureza, com tamanha propriedade e importân-cia, signifi ca que temos de encurtar as distâncias e começar a estabelecer um diálogo mais franco, amplo e convergente para que possamos discutir de forma concreta e objetiva na busca de soluções adequadas.

Trabalhamos com difi culdades em um país pobre. A Presi-dência da Federação Nacional dos Médicos me deu uma oportu-nidade ímpar de percorrer este país inteiro. Em várias oportu-nidades estivemos juntos. Tive oportunidade de visitar cento e cinquenta instituições de saúde no País. A precariedade é muito grande. As políticas públicas e privadas são péssimas. A possi-bilidade de solução é muito difícil. Então, convivemos com uma contradição séria. Um princípio efetivamente defendido pela Constituição Federal, de que saúde é um direito de cidadania, uma obrigação do Estado.

É natural que façamos a pregação e a defesa de quem realmente cumpre com a função do Estado, que é o agente do Estado. De fato, faz falta uma carreira de Estado para o médi-co, assentada num plano de cargos e salários. É preciso ter a oportunidade plena de estabelecer toda a sequência defi nida para recrutamento de recursos humanos, que tenha poder de atuação para perseguir soluções mais claras, mais ágeis e mais imediatas.

Essas refl exões são para a provocação do auditório. Não temos solução, mas problemas a serem trazidos.

De forma muito afetuosa, cumprimento Dra Janice, presi-dente da Academia de Medicina de Brasília, pelo brilhantismo da

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propositura de uma programação desta ordem, com exposições tão brilhantes com que fomos brindados aqui. Muito obrigado.

DR JAIRO BISOL (Promotor de Justiça de Defesa da Saú-de do DF-PROSUS): É um privilégio muito grande poder partici-par deste debate, nesta noite, com essas duas grandes mulhe-res por quem nutro grande admiração.

Cumprimento os debatedores, bem como Dr Cid Carvalha-es e Dr Carlos Vital, pelos quais tenho grande admiração.

Em relação à “esquizofrenia do Judiciário” mencionada pela Ministra Eliana Calmon, lembro-me de minha primeira aula na Faculdade de Direito. Tive uma professora de Direito Civil que sustentava ser o Direito uma norma, que o Código Civil é nor-ma. Tive, também, um professor de Direito Constitucional que defendia o Direito como realidade, fatores reais de poder, evo-cando Ferdinand Lassalle.

Se o Direito é norma das oito as dez e realidade das dez ao meio-dia, o que é Direito afi nal? Essa esquizofrenia me acom-panha em todo o estudo de Direito. Afi nal, o que é Direito? É norma ou realidade? Vivemos num Estado de Direito e me per-gunto se esse Direito é norma ou realidade. Hoje aqui se trata do fenômeno da Judicialização, cuja contraface é uma política de Estado não efetivada. Se é política de Estado e não é reali-zada pelo Estado, ela compõe o Estado? O SUS é uma parte do Estado brasileiro. Se não está realizando, efetivando essa políti-ca, não está efetivando o Estado brasileiro. Nesse viés, o Estado se mostra como fantasia.

Se não há essa efetivação da política pública vinculante, norma constitucional, não temos condições, mecanismos ou

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ferramentas para garantir a efetividade pela via judicial. Creio que seria uma grande ousadia pensar que seria possível or-ganizar um Poder Judiciário de tal forma que ele garantisse a efetivação de uma política não efetivada por falta de vontade política muito clara dos sucessivos governos. Este é o cenário que testemunhamos, da Constituinte até hoje. Se em vez de olharmos para a política de Estado, olharmos para o Estado de Direito, perguntaremos: O Estado de Direito existe mesmo? Se realmente vivemos num Estado de Direito, o Poder dentro des-sa estrutura se organiza e se exerce nos limites do arcabouço normativo? As normas são efetivamente cumpridas pelas estru-turas dessa microimagem abstrata que é o Estado de Direito?

O eixo, a espinha dorsal do poder do Estado, é o conceito de soberania, o qual vem da Idade Média e se consolida e se consagra no Estado Absoluto. Este conceito estabelece a rela-ção entre poder e direito, entre poder e validade normativa, que é o Direito. Esse conceito diz que soberano é o poder de editar normas válidas. Construiu-se o sistema absoluto dessa forma. O príncipe tinha poder soberano, e o Direito era uma expressão da vontade do príncipe. É a consagração do conceito de sobera-nia que vem sendo construído ao longo dos séculos.

Usando-se de linguagem metafórica, quando cortamos o pescoço dos reis e transformamos o Estado Absoluto em Estado de Direito, colocamos o conceito de “pernas para o ar”. Estabe-lecemos que não é mais o poder que determina a norma válida, mas é a norma válida que determina o poder, ou seja, no Estado de Direito, o poder não passa de um feixe de competências de órgãos do Estado, determinado por uma norma válida. Esta é a fi gura do Estado de Direito. Então, para acreditar na fi gura do Estado de Direito não posso cair nessa esquizofrênia da tensão

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entre normativismo e realismo. Tenho que consagrar a estru-tura, o arcabouço normativo do Estado, tenho que exigir essa consagração.

O que vivemos no Brasil, nesse campo da saúde pública, foi uma grande aventura, que talvez nos encaminhe para uma grande tragédia. Vivo profundamente angustiado pelos cami-nhos que o SUS está tomando. Um sonho que está, em grande medida, sobre alguns aspectos, se transformando em pesadelo.

Nós brasileiros queremos efetivamente fazer SUS? Não é só a estrutura esquizofrênica do Direito. A estrutura esquizofrênica está em nossa Constituição Federal. Se queremos fazer SUS, por que inventamos a ANS? Para que uma ANS, se queremos fa-zer saúde pública? Ou queremos fazer saúde pública (SUS), um sistema de saúde regido pela visão da dignidade humana, um sistema público que tem de estar calçado na Atenção Primária, porque se deixar adoecer não há dinheiro que o fi nancie. E não é gratuito – não gosto dessa palavra – é fi nanciado pela socie-dade. Ou queremos um sistema regido pela lógica do lucro, por-que aí sim se pode “varrer às favas” a Atenção Primária, porque bom mesmo para o sistema econômico funcionar é a população adoecer, como ocorre nos Estados Unidos da América.

Agora, nós brasileiros temos a Constituição Federal consa-grando um SUS. Estivemos a inventar fantasias para destruir o SUS e levá-lo para um modelo de privatização, que é o obje-tivo do modelo. Não há como fazer saúde pública comprando serviços da iniciativa privada. Eu me lembro da ex-secretária Fabíola, que dizia muito claramente: Olha, o papel da iniciativa privada não é entrar no campo do serviço. O papel é a parte da produção de insumos, equipamentos. Aí o Estado teria até que investir. Por que não fazem isso?

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A sociedade brasileira tem hoje uma imagem do SUS ven-dida pela mídia, que é a da assistência, que não está funcionan-do. A parte boa, que avançou muito, não aparece.

Os médicos querem o SUS? Creio que foi em São Paulo, Dr Cid, que me chamaram para falar do futuro da profi ssão médica. Eu não vejo futuro para vocês. Não é muito bom o que eu vejo. Eu repeti isso num congresso a convite do Conselho e do Sindicato da Saúde, em Maceió. Não vejo futuro, porque o SUS não está sendo realizado. As atividades são terríveis. Por falta de vontade política. Defi niu-se um modelo de gestão, estabeleceu-se o subfi nanciamento e implode-se o sistema por toda uma lógica da corrupção. Esta é a bandeira mais difícil e mais importante – reforma política já! Não vamos fazer grandes aventuras de construção do nosso futuro sem reforma política.

Falta mesmo vontade política para fazer o SUS. Também falta uma defi nição de todos nós. Se os médicos não realiza-rem o SUS, não acreditarem e investirem no SUS, vão comer na mão das operadoras. Que futuro terão lá? Nenhum. A única saída, me parece, é o governo do Estado – ou é o SUS que está aí ou inventar outro sistema.

Quem quer fazer o SUS? Aí, o Direito está dado. O SUS, como sistema universal, garante o direito à população. O Estado tem o dever de cumprir as ações de serviços e traduzir o direito como um direito prestacional. O direito prestacional nos empur-ra para a ideia como se fosse direito obrigacional. Caímos na esparrela das ações cominatórias. As ferramentas processuais são verdadeiros “calhambeques”. As ações cominatórias, indivi-dualizadas fragmentam o Direito, que tem de pensar de forma coletiva. Embora tenha natureza prestacional, ele não pode ser concebido como direito individual exclusivamente, embora não

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possamos rasgar seu alcance individual e tirar o poder da ação individual, senão se destrói o Direito.

As ações deveriam ser para a realização do Direito cole-tivo, porque as ações individuais que se multiplicam são de-sestruturantes do sistema. De um lado, elas desestruturam o sistema porque não há como fazer gestão com um volume imenso de ações. O tapete já é curto. Entra a lógica da inter-venção judicial e desestrutura a capacidade de organização da gestão e do planejamento. De outro lado, em contrapartida, essa tsunami das ações desestrutura o Judiciário. Então, é um movimento de desestruturação recíproca, a tsunami das ações individuais. Observe-se que essa tsunami ainda é uma “maro-la”, embora já esteja insuportável. Quando se garantir inclusão judicial para a população brasileira, ela tragará o Judiciário, efetivamente.

Aqui em Brasília, se está ainda começando a estruturar a Defensoria, porque ações individuais é papel das defensorias. A maior parte do Brasil não tem Defensoria organizada e mesmo na capital da República ainda é muito tímida. Se garantirmos acesso judicial, de demandas individuais a todos os brasileiros, dentro da consciência dessa possibilidade – acabou.

Por outro lado, há o problema das ações estruturantes. Há outra judicialização que não se comenta, que é a judicialização que o Ministério Público movimenta. Nessa judicialização, ainda há necessidade de evolução de pensamento dentro do Judiciário brasileiro sobre a questão da tutela de políticas públicas. Ainda há o ranço de um argumento de que é uma intervenção ilegíti-ma do Judiciário na discricionariedade administrativa. Como se houvesse discricionariedade administrativa no campo de uma política de Estado, que é política vinculante. Não temos ain-

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da cultura jurídica capaz de começar a avançar em respostas nesse campo. A própria estrutura do Judiciário, com a reforma política, precisava fazer a democratização do Judiciário. Des-concentrar o poder judicial das cortes judiciais e vincular as ações judiciais à sociedade e não à estrutura do Estado como hoje estão vinculadas. Uma das mulheres mais corajosas que se tem pronunciado sobre isso se chama Ministra Eliana Calmon. Ela tem denunciado inclusive o que ocorre dentro dessas cortes, como se reproduz a lógica da dissimulação e da corrupção com uma coragem absolutamente admirável.

Eu peço desculpa pela palavra. Minha palavra é uma pala-vra meio pesada, mas se não defi nirmos um caminho para fazer SUS, vamos fazer SUS? Vamos defi nir um modelo de gestão pú-blica, vamos garantir recursos, fazer um fi nanciamento digno, crescer aos poucos, pois o País não pode suportá-lo em curto prazo.

Vamos parar um pouco com essa hegemonia da área eco-nômica sobre a social. A hegemonia cria embaraços norma-tivos tão grandes na República, descompassos “republicanos” tão grandes, que vivemos a tragédia de dispor, há dois anos e meio, da quantia de quinhentos milhões de reais investidos no mercado fi nanceiro. Recursos do SUS que caracterizam inexe-cução orçamentária. Isso é muito grave e não é dado do Distri-to Federal. Há três ou dois anos e meio, houve o escândalo da investigação do Denasus – dos duzentos milhões de reais que estavam investidos no mercado fi nanceiro aqui no DF, hoje são quinhentos milhões, mais os duzentos, trezentos, quatrocentos milhões em São Paulo, trezentos milhões em Minas Gerais, du-zentos e cinquenta milhões no Rio Grande do Sul. Não é uma característica de Brasília e hoje se vê isso.

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Hoje a gente vê, Ministra, com meus poucos fi os de cabelo em pé, quinhentos milhões de reais em caixa e um défi cit na ordem de cinquenta por cento de pessoal na Secretaria de Saú-de. E o governo passando maus bocados para fazer gestão, com difi culdades de execução desse orçamento, por limitações. Uma das mais angustiantes atribulações que tem o governo é não poder resolver o défi cit de pessoal usando-se os recursos apli-cados no mercado fi nanceiro, porque a Lei de Responsabilidade Fiscal não permite.

Então vivemos em uma República que quer fazer SUS e diz que os serviços de saúde são de relevância pública. E o gover-nante não cumpre sua responsabilidade sanitária, um gestor da saúde descumpre sua responsabilidade sanitária, alegando responsabilidade fi scal. Mas a Constituição Federal defi ne a res-ponsabilidade sanitária como superior à fi scal, ao se referir às ações de serviços de saúde como sendo de relevância pública. Só que temos uma lei de responsabilidade fi scal e punição para o descumprimento dela. Mexeu-se, aí, na imunidade do chefe do Executivo. E que punição temos para o descumprimento da responsabilidade sanitária? Onde está a nossa lei de responsa-bilidade sanitária? Parece que está namorando a reforma políti-ca em alguma gaveta do Congresso Nacional.

Então, temos problemas. Creio que o Comitê Distrital de Saúde cumpre, dentro dos limites e da possibilidade, um papel importante. Quanta dor se está evitando conseguindo-se dimi-nuir o impacto dessa desorganização do fenômeno da judicializa-ção? Com isso, cada dor que se resolve justifi ca o Comitê. Mas, se queremos realmente resolver o problema da saúde, como bra-sileiros temos que tomar decisões mais sérias e mais profundas.

Muito obrigado.

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PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO

Acad. Dr Antônio Marcio Junqueira Lisbôa (Ex-Presi-dente da AMeB). Eu acho que teríamos que pensar um pouco sobre o que a Ministra falou sobre a formação do Estado.

Nada do que foi dito aqui vai funcionar se não atuarmos como cidadãos. Vocês sabem quando é que se forma um cida-dão honesto? Até os seus seis anos de idade. Ou ele aprende honestidade até os seis anos ou ele não será honesto. Daí para frente, ele poderá fazer o que quiser. Se formarmos bons cida-dãos, teríamos os melhores médicos, advogados melhores. A ministra não viria com a bandeira que ela vem defendendo, o que me tornou fã dela. Nada. Porque o cidadão bem formado é um indivíduo útil. E ele não vai tratar mal o doente, não vai se tornar corrupto; não será um magistrado corrupto, um policial corrupto.

O que vocês estão vendo, por exemplo, na área da vio-lência, que venho estudando há 25 anos – esse livrinho que eu dei à senhora é para dizer como é que se transforma um bebê em um marginal. Então, a senhora vê marginal juiz, policial, padre, há todo tipo aí incluso para a senhora saber como é que se fabricam todos esses personagens pela falta de educação e de formação.

Essa palestra sobre Prevenção da Violência e Formação da Personalidade, já realizei quatro vezes no Senado. Neste ano, escrevi uma monografi a que será prefaciada pelo senador Pedro Simon.

Nesse livrinho, há o que deve ser feito para formarmos um bom cidadão. Porque se formarmos um bom cidadão, oitenta por cento dos problemas, sobre os quais estamos conversando

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aqui, vão acabar. Agora, se estamos formando indivíduos corrup-tos que não têm amor ao próximo, desleais, malandros. O médi-co que trata bem o rico e trata mal o pobre não é bom cidadão.

Essa formação depende principalmente dos seis primeiros anos de idade. Pediatras e psicólogos sabem disso. A estrutura da personalidade é feita nos primeiros anos de vida. Esse livri-nho mostra como é que se forma um bom cidadão.

Nele resolvi escrever os programas para formar um bom ci-dadão. Sabe quantos programas o governo está desenvolvendo para formar um bom cidadão? Nenhum. Eu aprendi isso desde meu curso primário. Aprendi a tratar o próximo, o meu dire-tor de escola, a minha família, meu pai, minha mãe – tudo foi aprendido. O bebê não nasce sabendo isso.

E o que fi zeram? Tiraram tudo. Foi retirada a disciplina Educação Moral e Cívica. Em nosso tempo de infância, tínhamos que cantar o Hino Nacional, o Hino à Bandeira, o Hino da Inde-pendência, marchávamos no Dia da Independência do Brasil, aprendíamos a respeitar o País, o próximo, o nosso diretor. Isso era ensinado, e hoje não se ensina mais nada sobre o assunto. E o que está acontecendo? É o que estamos vendo. Enquanto diminuímos os números de indivíduos honestos, os de bandidos estão crescendo.

Esse dinheiro que deveria ser do SUS está sendo pago na área de segurança. Em Brasília, os custos passaram de dois bi-lhões de reais. O que está acontecendo é que, em 2012, o nú-mero de crimes dobraram nessa cidade, com todos os dois bi-lhões que foram aplicados no ano passado. Por que a Polícia e a Justiça não vão resolver o problema? Porque estamos formando bandidos diariamente e não vai chegar cadeia para isso tudo. Vamos ter que virar um presídio total. Sei lá o que vai acontecer.

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Eu queria deixar aqui a mensagem: se não pensarmos na educação da criança, na formação do indivíduo, do bom cida-dão, o que é factível, o que é possível, não resolveremos os problemas que tratamos aqui.

Acad. Dr Renato Maia: Boa noite. Cumprimento a Acade-mia por esta iniciativa.

Dentro do que foi dito e que Dr Lisboa falou, devo lembrar uma frase antiga de que a criança é o “pai do homem”. Se a gente quer saber quem é o homem de amanhã no Brasil, basta visitar as escolas públicas de hoje. Se a imagem for boa, tere-mos uma boa cidadania no futuro. Caso contrário, nosso futuro estará ameaçado.

Também desejo cumprimentar não apenas Dra Lucimar, mas também a Ministra Eliana Calmon pela sua explanação franca, atitude de que precisamos no Brasil.

Em relação ao comentário dos nossos debatedores, venho dizer a Dr Jairo Bisol: em minha opinião, nunca se quis fazer um SUS no Brasil. Tanto o é que quem propôs a criação do SUS foi a Constituinte, que juntou senadores e deputados. Existe um de-partamento médico no Senado e um departamento médico na Câmara dos Deputados. Ambos privados. Se quisessem, o SUS começaria lá dentro. E nunca começou. Um senador tem gastos indefi nidos com saúde. Se ele quiser se tratar amanhã em São Paulo e depois de amanhã em Nova Iorque estará tudo coberto. Então, nunca quiseram fazer o SUS. Existe um departamento médico na Câmara, no Senado, cada ministério tem o seu, cada departamento tem o seu. O SUS virou uma coisa.

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Em relação ao que Dr Cid comentou sobre necessidade de haver carreira médica, em Brasília nós temos, Dr Cid. Oitenta por cento dos médicos de Brasília pertencem ou pertenceram ao SUS. Posso garantir que os salários não são ruins. O salário ini-cial pode chegar a quatro mil ou cinco mil reais, mas o salário, depois de vinte anos, chega a vinte mil reais. Muito mais do que um professor universitário.

Posso dizer ao senhor também que isso poderia funcionar muito melhor. Porque a questão não é carreira e não é salário. É gestão. Não temos gestão em saúde no Brasil. O principal res-ponsável, o Secretário de Saúde –, ou é um amigo do governa-dor ou é médico do governador, ou é sócio do governador ou tem ainda motivações menos nobres do que essas. Não é um gestor de saúde. Ainda que eu seja médico e preze minha profi ssão não signifi ca que nós, médicos, sejamos gestores de saúde. Gestor é gestor. É outra coisa. Ficamos nos intrometendo em adminis-tração de hospital pessimamente. Se os hospitais públicos não tivessem dinheiro público já teriam todos falido em Brasília.

Em relação ao que Dr Carlos Vital comentou, acho extre-mamente importante. A convicção que eu tenho é que infeliz-mente os médicos que trabalham por motivos menos confessá-veis ou inconfessáveis são muito mais do que 5% infelizmen-te. Os médicos que dominam os exames que eles solicitam; os médicos que internam pacientes na UTI com participação em seu acompanhamento; os médicos, Ministra, que prescre-vem prótese importada, um percentual da prótese vai para ele; ainda o médico que prescreve medicamentos para câncer, o que garante sua participação no Congresso, dele e da pró-pria mulher, infelizmente ao todo esses médicos constituem taxa superior a 5%. Trinta por cento seria uma estimativa

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mais próxima. Isso não denigre os outros 70%. Eu me lem-bro de estar nos 70%, mas infelizmente nós já superamos há muito os 5%.

Dra Mariângela: Diante das brilhantes apresentações da ministra, dos debatedores, aqui estou como uma formiguinha.

Vou dirigir uma pergunta à Ministra, assim como fazer um informe aqui, porque sou do Observatório da Saúde da CNBB, onde estamos fazendo uma discussão da 5.ª Semana Social Brasileira que é sobre o “Estado: de Quem e para Quem”. Tenho aqui um documento também do Grito dos Excluídos, que será no dia 7 de setembro, o 18.º Grito dos Excluídos no Brasil.

Nessa semana brasileira, tenho um documento que mos-tra o Estado que temos e o Estado que queremos. Também o documento “Reforma Política Já”. Eu queria passar então este kit para a presidente da Academia de Medicina de Brasília, uma presidente mulher e que, inclusive, me honra muito tê-la como presidente, porque foi minha colega de turma na faculdade. Te-mos 35 anos como médicas em Brasília. Queria passar então para Dra Janice este kit.

Dirijo-me à Ministra para perguntar: Como vamos desen-gessar esse Estado? A saúde está do jeito que está porque o Estado está engessado. Principalmente por causa da Lei de Res-ponsabilidade Fiscal, que é uma reforma “bresseriana” de Es-tado, uma reforma neoliberal do Estado. É essa reforma que o Estado está implantando e não a Constituição Federal, a qual estabelece que a saúde privada é complementar. Isso não está sendo feito no Brasil.

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Ex.ma Sra. Eliana Calmon: Entendo que a Lei de Respon-sabilidade Fiscal é um grande avanço para a democracia. O que existe é uma péssima gestão. Nesta gestão, a única coisa que se pode fazer e que se faz é exatamente o empreguismo. Isso sempre exaure a verba necessária para a manutenção do qua-dro funcional e deixa as atividades essenciais sem profi ssionais adequados.

Creio que temos necessidade de fazer reforma política e, a partir da reforma política, começarmos a redesenhar um mo-delo de administração que queremos. Não considero a Lei de Responsabilidade Fiscal uma lei ruim. Até acho que ela é um excelente instrumento de democracia, porque limita a atividade do administrador dentro de percentuais preestabelecidos. Ago-ra, é um desvio de opção do administrador que tem um quadro aumentado e desnecessário para a manutenção de uma ativi-dade essencial.

Dr Gustavo: Com a palavra que me cabe quero primeira-mente dizer da honra para nós do Sindicato de estarmos aqui com todos, presentes a essas brilhantes palestras.

Não poderia deixar de dar uma palavra aos colegas aqui presentes, porque na batalha que o Sindicato vem tendo, den-tro das causas judiciais, tivemos a honra de sermos recebidos pela Ministra Eliana Calmon, que nos concedeu atenção muito especial e nos incentivou na luta que estamos fazendo contra algumas coisas, como disse Dr Jairo Bisol: “O que é o Direito, o que o Civil, o que é Constituição”? Isso é uma coisa bem inte-ressante, porque também fui estudar Direito, resolvi me inscre-ver agora para fazer Direito. Minha grande dúvida é exatamente

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isso. O que vale é o que está na Constituição? O que está fora da Constituição? É a política? O que está valendo, afi nal de contas?

Então, para o Sindicato é realmente uma honra estarmos aqui presentes e deixar registrada aos colegas, a importância da Ministra Eliana Calmon nessa nossa luta que temos tido em prol da manutenção dos nossos direitos constitucionais e que estão querendo nos tirar. É uma grande honra. Muito obrigado.

Acad. Dr Hélcio Luiz Miziara: Na qualidade de médico le-gista, que sou até hoje, quando procurado para resolver alguns problemas pertinentes à morte de uma pessoa, e a família me procura para fazer autópsia, a primeira pergunta que faço é a se-guinte: Vocês querem que eu faça a autópsia para saberem a ver-dadeira causa da morte ou vocês querem entrar na Justiça contra o médico ou contra o hospital? Na maioria das vezes, segundo eles dizem, querem que o hospital ou o médico devolvam recursos.

Então, o direito que o cidadão adquiriu está extrapolando esse direito, porque de todo jeito ele colocou o médico na ber-linda. O que estamos vendo? O SUS está fracassando porque todo médico que tem um pouco de juízo vai pedir todos os exa-mes necessários para atender seu doente.

Não tenha dúvida. A medicina brasileira se encareceu de-mais, seguindo o exemplo da medicina norte-americana. Por-que se o médico cometer algum erro, se deixar de fazer algum exame, ele vai para a Justiça.

Quando a senhora fala do Judiciário, concordo num as-pecto: a maioria dos juízes, perdoe-me a franqueza, não têm competência para julgar esse problema, que é muito grande. Às vezes, sentimos que o juiz está cometendo um erro, está

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punindo um médico, quando na verdade o médico não tem cul-pa nenhuma. Recentemente, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, se não me engano, culpou o laboratório porque a pa-ciente tomou Novalgina e esta desencadeou dermatite alérgica. Não estou defendendo o laboratório, mas acho errado isso. Ela tomou um medicamento, Novalgina, que é dada para milhões de pessoas e teve o azar de ter uma reação alérgica. Mas o Tribunal condenou um laboratório, alegando que o laboratório tinha de ter avisado a paciente sobre aquele tipo de reação.

Então, minha grande preocupação é sobre a Justiça. Será que os juízes estão bem preparados? Será que os juízes têm bons peritos médicos para assessorá-los? É isso que tenho acompanhado. Às vezes vou ao Tribunal depor como assistente médico ou até como testemunha e vejo que existe muita coisa errada. Realmente estou pessimista. Espero que a Justiça me-lhore essa maneira de ver nossa profi ssão. A medicina no Brasil está cara porque todos os médicos têm que pedir tudo quanto é exame possível. Se não pedir, se der azar, eles sofrem processo.

Muito obrigado.

Dra Janice: Ministra, agradeço à senhora, pela honra que nos deu com sua presença e com seus ensinamentos. A senho-ra, que é uma pessoa de notório saber e querida por todos, não só aqui na Academia, mas principalmente pelo povo brasileiro, que reconhece o que a senhora fez por todos.

Aos demais colegas que vieram também, Dr Carlos Vital, Dr Cid Carvalhaes, Dr Jairo Bisol, caríssima Dra Lucimar Can-non. Quero deixar aqui o nosso agradecimento da Academia por esse encontro memorável na Academia de Medicina de Brasília. Muito obrigada, Ministra.

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PALESTRAESTRATÉGIA PARA AMPLIAR A ATENÇÃO

PRIMÁRIA EM SAÚDE EM ÁREAS POUCO ASSISTIDAS(Sessão Plenária ocorrida em 18/9/2012)

INTRODUÇÃO

A Academia de Medicina propõe, no debate Estratégia para Ampliar a Atenção Primária em Saúde em Áreas

Pouco Assistidas, uma refl exão ampla sobre as ações desenvol-vidas, no sentido de ampliar a atenção à saúde em áreas desas-sistidas, e sobre se essas ações seriam efi cazes para modifi car a desigualdade de distribuição de médicos no País.

A pesquisa do Conselho Federal de Medicina (CFM), relata-da no livro de sua lavra, Demografi a Médica do Brasil, mostra que há distribuição desigual geográfi ca e funcional. Enquanto o Distrito Federal tem o maior número de médicos no País em proporção populacional, com 4,2 médicos por mil habitantes, bem como o maior número de médicos especialistas, com 2,11 por mil habitantes, o Maranhão conta com 0,68 médico por mil habitantes, e a Região Norte tem 0,83 especialista por mil ha-bitantes.

A oferta de vagas nos programas de residência médica pode ser determinante quanto ao tipo de assistência e concentração de médicos por região. A maior densidade de especialistas em

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áreas mais desenvolvidas pode ter relação com maior oferta de residência médica em especialidades. Segundo Dr Felipe Proen-ço do Provab, serão abertos até 2014, quatro mil vagas em re-sidência médica, sendo 64% dos pedidos de abertura de origem na Região Sudeste. Esta região é atualmente contemplada com 63,5% das vagas para especialidades e 54,97% dos médicos fi -xados. Nesse contexto, não se pode desconhecer a infl uência do mercado de trabalho sobre a distribuição dos médicos no País, em particular no que tange à educação continuada, à segurança e aos atrativos das cidades. A fi xação tanto de médicos gene-ralistas quanto especialistas vai além de incentivos e remune-ração. Depende das possibilidades de crescimento profi ssional, condições de trabalho, suporte para estabelecer família e reco-nhecimento pelos pares.

A restrição de vagas em residência médica para as especia-lidades, em particular nos serviços públicos de saúde, e a oferta maior em áreas básicas de atenção à saúde poderiam atenuar essa distorção. Além disso, este contingente de médicos espe-cialistas egressos de residência médica vai atuar preferencial-mente na saúde privada, em que há 3,9 vezes mais médicos que na rede pública, segundo publicação do CFM.

O curso médico, essencialmente teórico, posterga a aqui-sição de habilidades práticas aos programas de residência mé-dica. A continuidade da formação médica está centrada nas especialidades oferecidas pelo sistema de saúde convencional, de forma fragmentada, inclusive no próprio sistema público de saúde que oferece residência médica. A formação, tanto na graduação como nos programas de residência de médica, deve contemplar com maior ênfase as estratégias de saúde da fa-mília. O currículo da graduação em Medicina poderia abranger

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mais conteúdos que refl etissem a situação de saúde das áreas pouco assistidas, com incentivos a bolsas ou prêmios. O Sis-tema Único de Saúde, como empregador e gestor, contribuiria para modifi car o perfi l do profi ssional de saúde que ingressa nas residências médicas participando da Comissão Nacional de Residência Médica.

Assim, tanto a formação acadêmica quanto o da residência médica poderiam modifi car o padrão de fi xação do profi ssional de saúde e contribuir para a resolução do desafi o de prover áre-as pouco assistidas na atenção básica, contemplando, com mais ênfase, as estratégias de saúde da família.

Bonifi car em 10% a 20% a entrada de médicos nos progra-mas de residência médica, nos moldes da proposta do Provab – Programa de Valorização do Profi ssional de Assistência Básica e Ministério da Saúde, constitui atrativo para a disputa. Pode, no entanto não resolver a questão do provimento e da má distri-buição da assistência no País, considerando-se que os serviços médicos em atenção básica serão temporários, com retorno dos profi ssionais um a dois anos depois para tentar ingressar na residência.

O Provab pretende incentivar profi ssionais de saúde a atu-arem em regiões menos assistidas em atenção primária à saú-de. Mas o médico constitui apenas um dos elementos do pro-cesso contínuo de atenção à saúde, já que esta supõe trabalho de equipe nos serviços de saúde. Prover áreas pouco assistidas implica colocar todos os atores a desempenhar ações de saú-de, de forma coordenada, para promoção de saúde, prevenção, diagnóstico e tratamento dos agravos. Ainda são pouco conhe-cidos, porém, os resultados dessa intervenção, considerando-se

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as limitações do ensino supervisionado e a distância, bem como as condições estruturais do exercício da medicina em relação aos recursos tecnológicos disponíveis.

Alterar a forma de revalidar diplomas de cursos de medici-na para favorecer a “importação” de médicos de formação du-vidosa, sob a condição de atuarem em áreas pouco assistidas, trará novos e piores problemas para o próprio sistema de saúde e, principalmente, para a população.

A questão central da assistência médica no País consiste em defi nir o modelo assistencial, se este privilegia as especiali-dades ou estrutura as condições que favoreçam a formação de generalistas qualifi cados.

Estudos recentes do CFM mostram que 45% dos médicos no Brasil são generalistas e que isso seria um fator positivo na resolução as desigualdades de distribuição se forem promovi-dos os estímulos estruturais com a criação da carreira de estado de médico.

A progressão de carreira, com possibilidade de educação continuada e condições mínimas de trabalho para prática da medicina constituem fatores determinantes para a ampliação da atenção à saúde em áreas desassistidas.

O setor público, tanto nos programas de residência médica quanto da assistência, seria organizado para prover médicos de carreira, segundo as necessidades de expansão da rede, com incentivos de melhores salários para as áreas pouco assistidas.

Acad. Dra Janice M. LamasPresidente da Academia de Medicina de Brasília

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PALESTRANTES

DR FELIPE PROENÇO DE OLIVEIRA (Diretor de Progra-ma da Secretaria do e Educação na Saúde – Provab – Programa de Valorização da Atenção Básica, MS): Boa noite. Inicialmente desejo agradecer à Academia de Medicina de Brasília pelo con-vite. Acreditamos que esta é uma importante oportunidade para discutir sobre as medidas que vêm sendo tomadas e quais são as propostas para a questão do provimento de médicos em áre-as remotas em nosso país.

Vamos trazer rapidamente algumas informações, em que temos trabalhado, sobre a distribuição dos médicos no País. Posteriormente, veremos quais as várias ações que temos de-senvolvido nesse sentido. Em virtude do curto tempo disponível, vou me concentrar no Provab, nosso Programa de Valorização do Profi ssional da Atenção Básica.

Como o motivo foi a estratégia para ampliar a atenção pri-mária, acabei trazendo todas as propostas em que temos traba-lhado. Vou focalizar um pouquinho mais o Provab. Foi pensada a quantidade de médicos que existe para cada mil habitantes em nosso país, e o que temos discutido um pouco é o aspecto comparativo com outros países, principalmente com os que têm centros universitários de saúde, assim como é o nosso Sistema Único de Saúde.

Eles trabalharam a questão do quantitativo de profi ssio-nais médicos. Isso vai chamar a atenção para a diferença en-tre os países. O Brasil com 1,8, e um estudo da demografi a aponta 1,9, de médicos para cada mil habitantes, diferente de outros países que têm sistemas universais de saúde, como o Reino Unido com 2,7, a Espanha – que vem mantendo o sistema

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universal apesar de sua recente crise econômica –, tem quatro. Estes são números mencionados no sentido de mostrar a dife-rença de proporções internacionalmente.

Além de haver essa diferença internacional, é claro que dentro do País a distribuição varia muito. Temos informação que, no Distrito Federal, há um número de médicos para cada mil habitantes maior do que em outros estados, até chegar ao Maranhão, como já se afi rmou, com 0,6 médico para cada mil habitantes.

Quando se observa a questão da distribuição das escolas de Medicina, também surge a variação de número conforme a região considerada. Considerando-se a residência médica, exis-te importante concentração dessa formação profi ssional na Re-gião Sudeste do País – onde há também maior número de vagas para o curso de medicina por dez mil habitantes –, a proporção atinge 1,05. Em comparação, na Região Nordeste, por exemplo, essa taxa é de 0,6. Há, então, uma distribuição diferente entre as regiões do País.

Ocorre uma evolução do número de vagas em Medicina. Esses números retrocitados são de 2010, sabendo-se que o nú-mero de vagas para curso de Medicina é um número elevado. Mas só em 2010 foi um pouco menor. Boa parte dos estudantes que ingressam nos cursos de Medicina concluem o curso. A taxa de abandono é pequena.

Um dado que nos tem chamado muito à atenção, de um estudo feito a partir do Nescon da Universidade Federal de Mi-nas Gerais, mostra como comparação o número de egressos dos cursos de Medicina em relação a quantos registraram o primei-ro emprego na Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho, que vale como empregos formais.

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Então, de 2009 a 2010, de quase treze mil egressos dos cursos de medicina, foram registradas quase vinte mil vagas para o primeiro emprego desses médicos. O que nos leva a analisar, e estamos procurando esse estudo, que possivelmente eles este-jam casando com os dois primeiros empregos para cada médico egresso – isso somente no mercado formal. Existe maior con-centração do trabalho médico na equipe pública de saúde, 58%, na área privada, o número é 18% e, na área privada lucrativa, é de 24%. Mesmo com todas essas informações, em termos de primeiro emprego e de quantitativo de médicos, temos nos ajustado sobre o problema da escassez de médicos.

Se olharmos o mapa de distribuição e o exemplo de equipes de atenção básica que estão sem esse profi ssional, poderemos chegar a um quadro de escassez de médicos principalmente nas regiões Nordeste, Norte do País e em alguns municípios da Re-gião Centro-Oeste. É claro que, nas outras regiões, a distribui-ção varia um pouco conforme seja o local focalizado. O interes-sante sobre esse mapa é que ele tem semelhança com o mapa da proporção de domicílios abaixo da linha de pobreza, também na região Norte e Nordeste do País, assim como há semelhança com o mapa da mortalidade infantil.

Então, é claro que não é só a escassez de médico que expli-ca a alta mortalidade infantil. Esta é uma questão multifatorial. Mas é interessante observar essas semelhanças nos mapas, pois há municípios com grande difi culdade de prover habitação e fi xação de médicos, que também estão distribuídos nessas regiões.

Quais estratégias a Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde tem desenvolvido por intermédio do Minis-tério para prover o Provab, bem como fi xar médicos? De acordo

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com dados do Ministério da Saúde, a criação de vagas em re-sidências médicas é um problema importante. Vou passar rapi-damente, então, pelo teste de saúde da residência médica para chegar ao Provab e depois falar um pouco sobre o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), do Ministério da Educação, e do sistema de carreira que iremos fazer.

O Tele Saúde é um programa com viabilidade de realização por meio da Tele Assistência. Segundo opinião formativa, do telediagnóstico e da tele-educação, os profi ssionais que estão nas Unidades Básicas de Saúde têm contato com a equipe da universidade que vai ajudar a discutir questões sobre as quais ele tenha dúvida a respeito de pacientes que estejam acompa-nhando. Está implícita uma série de outros projetos que temos desenvolvido.

Estes são os pontos aos quais nos temos aplicado no País – são 1.733 pontos de Tele Saúde nas Unidades Básicas de Saúde do território nacional. Se juntarmos tudo o que vem sendo de-senvolvido dentro do Ministério da Saúde, chegaremos ao pró-ximo ano com a meta de 4.777 municípios atendidos pelo Tele Saúde. É uma oportunidade de o profi ssional se qualifi car.

O Portal Saúde Baseada em Evidências está acessível a todos os profi ssionais com inscrição no Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição. O Ministério da Saúde fi nancia esse portal, que dá acesso a uma série de bases de dados para aju-dar na tarefa de atualização e na fi xação permanente do profi s-sional, sobretudo com relação a médicos especialistas, também uma avaliação importante, conforme sua distribuição no País, e isso está relacionado em parte com a questão da residência médica.

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Vamos olhar para alguns lugares do País que não têm for-mação de grande quantidade de médicos, por exemplo, a Re-gião Norte. Até 2011 não se formou nenhum neonatologista nessa Região. Esta é uma questão preocupante quando se quer combater a mortalidade infantil. Vamos considerar também ou-tras especialidades, com seus zeros de residência médica em relevante aumento.

Estamos implantando redes de Atenção à Saúde, de Ur-gência e Emergência, atentos à questão do cuidado com a área técnica infantil. Na formação de profi ssionais, existem vazios importantes em medicina de urgência, cancerologia. Estamos desenvolvendo atenção à prevenção do câncer de mama e, prin-cipalmente, do câncer do útero, mas temos poucos profi ssionais nessa área. Enfi m, é possível refl etir um pouco mais com calma.

Temos difi culdade com a ocupação das vagas de residência médica em algumas áreas e em alguns estados. Por isso, vimos trabalhando para ampliar em mil vagas por ano em residência médica para responder a essa diferença entre o quantitativo de profi ssionais que estão egressos dos cursos de medicina e as vagas que temos em residência no País. A meta é criar mais quatro mil vagas de residência até 2014 pelo Ministério da Saú-de, que subsidia, atualmente, em torno de 1.700 bolsas para a residência médica. São projetos que temos desenvolvido nessas especialidades prioritárias, essencialmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, para criar programas de residência médica.

O Provab teve início este ano. É um programa de valoriza-ção da atenção básica. É um apoio, um incentivo para que pro-fi ssionais atuem na atenção básica de municípios com carência de profi ssionais, em áreas de extrema pobreza, bem como em

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regiões metropolitanas. Para isso, utilizamos um mapa de es-cassez, de difi culdade de habitação. Foram observados os locais onde as equipes de atenção básica estão sem médico e foi ofer-tada a possibilidade de ele se inserir nessas equipes.

Foram discutidos outros objetivos também, como ampliar a integração do ensino e dos serviços nas comunidades, forta-lecer essas iniciativas, assim como possibilidades de trabalho supervisionado pelo desenvolvimento de competências para a atenção básica.

Então, o médico recém-formado está na equipe de atenção básica e tem possibilidade de supervisão para discutir sobre seu processo de trabalho, para discutir sobre como está a gestão do trabalho na unidade de saúde, além da oferta sobre a qual vou falar também, da especialização em saúde da família.

Um quarto objetivo é a valorização do compromisso social, nos critérios de avaliação para ingresso nos programas de re-sidência médica. Nesse quadro, se inclui o acréscimo de 10% à nota fi nal da seleção para o médico que participou do Provab e que se inscreveu para os concursos de residência médica. Con-tudo, na nota da prova (em alguns lugares se têm confundido isso), quem tiver nota zero não vai partir de 10. Esse acrésci-mo tem muito a haver com o desempenho desse profi ssional. Refi ro-me ao instrumento de avaliação, que temos analisado, como a inserção desses profi ssionais na atenção básica de acor-do com uma avaliação realizada periodicamente em que se ana-lisam as habilidades e o desempenho obtido.

Uma discussão a que temos nos referido muito é que, para o estudante de medicina, participar de um Congresso e apresentar um trabalho, é fundamental em sua formação, e isso tem que ser valorizado no ingresso à residência médica.

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Entendemos também que a vivência em trabalho supervisiona-do com oferta de especialização em um ano também tem que ter valorização no momento da seleção ou quando já estiver na residência médica.

Essa distribuição de acordo com esse programa nasceu em março deste ano (2012) e estamos bem recepcionados pelas Unidades Básicas de Saúde. Entendemos que este é um pri-meiro momento do Provab –, é um projeto piloto. Temos 360 médicos distribuídos pelo País, com destaques em alguns esta-dos. O Ceará tem 125 médicos, Minas Gerais 48, São Paulo 27, esses principalmente nos municípios de extrema pobreza, mas também nas regiões metropolitanas do País. Temos o manual com que as instituições supervisoras fazem o acompanhamen-to desses médicos, e isso tem sido um grande desafi o. Quan-do falo de serviço em comunidades, se são regiões em que os médicos não chegam às equipes de atenção básica, imagine-se como tem sido um desafi o para essas regiões e essas cidades desenvolver esse processo de supervisão. Essa supervisão é a distância –, por via da internet ou do telefone e por via, é claro, do Tele Saúde –, e presencial com visitas quinzenais que faz o supervisor a essas equipes. Há disponibilidade de contato para soluções de problemas ou de urgências. Com a universidade aberta do SUS são ofertados módulos de especialização para esses profi ssionais em questão. Dentro das responsabilidades dos supervisores, também se fi zeram planos de formulação para esses profi ssionais e aqueles irão também avaliar os pro-fi ssionais nesses processos.

Uma passagem rápida pelas instituições que estão fazen-do o processo de supervisão. Havíamos previsto inicialmente um supervisor para cada dez participantes do Provab, mas hoje

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trabalhamos com, em média, um supervisor para cada quatro participantes em algumas regiões do País. No município que fi ca muito distante, há um supervisor só para aquele participante do Provab.

No Distrito Federal, não há médico participando do Provab, portanto, não há nenhuma inscrição aqui combinada. Além des-sas inscrições, existem mais dez que fazem parte da universida-de egressa do SUS, fase em processo que oferta especialização em saúde da família. São instituições com apoio, bem como há apoio a esse processo. Uma das atividades que fi zemos, por intermédio do Ministério da Saúde, foi visitar diversos municí-pios em que há médicos participantes do Provab, exatamente para analisarmos quais são suas condições de trabalho, desde a forma de contratação. Observamos que a média salarial do médico do Provab está acima da média salarial do médico que trabalha na atenção básica em geral. Foi interessante verifi car as unidades para incluí-las no programa de requalifi cação das Unidades Básicas de Saúde, e quais as condições de moradia dos médicos nesses locais. Fomos analisar o processo de traba-lho e as atividades desenvolvidas pelo profi ssional e como estão as atividades de supervisão, e isso foi uma atuação pedagógica para esses profi ssionais. Fomos verifi car como está o uso do teto de saúde por esses profi ssionais.

Dispomos de fotos que mostram essas visitas e a infraes-trutura das unidades de saúde nos municípios, para ilustrar um pouco como é esse município e como o programa possibilita a inserção de médicos em municípios que geralmente têm grande necessidade desse profi ssional.

Uma das questões interessantes que notamos nessas visi-tas ao conversarmos com cada um dos profi ssionais é que existe

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atuação do programa voltada à valorização do compromisso so-cial na residência médica. Foi esse fator que 40% desses pro-fi ssionais alegaram como importante para estar no programa. Mas 60% das pessoas apresentaram outras motivações, como a possibilidade de experiência profi ssional supervisionada, a re-muneração do município, a possibilidade de fazer um curso de especialização e o interesse em atuar na estratégia de Saúde da Família.

Temos participantes do Provab que pediram para adiar seu ingresso à residência para poder vivenciar, durante um ano, esse programa. Vimos desenvolvendo o processo de habilita-ção desses profi ssionais, tanto do ponto de vista informativo, quanto do ponto de vista somativo, por meio de diversos ins-trumentos que buscam dimensionar a exata complexidade do trabalho do médico. Consta a avaliação do supervisor, temos o acompanhamento do gestor local, da equipe de saúde e a pró-pria autoavaliação do profi ssional.

Na questão da avaliação formativa, em um primeiro mo-mento, são aplicados os instrumentos de avaliação e, com isso, é obtido o retorno do profi ssional sobre como está seu desen-volvimento dentro do programa, de modo que tais cuidados possibilitam seu aperfeiçoamento também. Assim, não ocorre avaliação somente somativa ou apenas a original do programa. Há ainda ferramentas como relatos de experiências, um proje-to de interpretação que o profi ssional tem de desenvolver com base em análises críticas sobre aquela realidade em que ele se encontra.

Temos momentos da avaliação somativa para certifi car aquilo que se está desempenhando no ambiente, que é o espe-rado no programa, para valorizar a atenção básica. Dessa forma,

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a nota sai da avaliação ao longo do programa, em que 7 é o ponto de corte. O profi ssional que tiver nota abaixo desse ponto não estará apto a receber a certifi cação do programa e, portan-to, a receber o incentivo de 10% na avaliação para a residência.

É isso que está estabelecido no programa. É claro que, num primeiro momento, o profi ssional tem a possibilidade de identifi car quais são suas difi culdades ao estar se aperfeiçoan-do. Enfi m, num panorama geral sobre o quanto o Provab vem desenvolvendo, aquelas visitas ainda estão em processo de consolidação, bem como seus relatórios.

Nas próximas semanas ou na semana que vem, certamen-te teremos mais resultados com relação às visitas no âmbito do programa que desenvolvemos.

Outra possibilidade para a questão do provimento de pro-fi ssionais é o abatimento do Fundo de Financiamento Estudan-til. Os médicos benefi ciados por este ao longo da sua graduação e do curso de especialização e, após concluí-lo, estar trabalhan-do nas equipes de Saúde da Família, vão ter abatimento sobre o que lhe foi fi nanciado. Se for para as especialidades médicas defi nidas como prioritárias para o Sistema Único de Saúde, du-rante a residência, eles terão uma extensão do prazo de carên-cia do mencionado fi nanciamento.

A ideia era falar em vinte minutos sobre todos esses pro-gramas que vimos desenvolvendo, principalmente com enfo-que no Provab. Entendemos de Provab enquanto projeto piloto em seu primeiro ano de desenvolvimento. Responder a essa necessidade de profi ssionais num país com as dimensões que tem o nosso é um desafi o bem importante. Estamos aperfeiço-ando uma série de questões do programa, como essa questão da supervisão, de como se está chegando a esses locais mais

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distantes. Entendemos que, por essa primeira inserção de 360 profi ssionais no programa exposto é importante que este preci-se ser ampliado nos próximos anos em termos do que se vem discutindo sobre provimento e fi xação de profi ssionais no terri-tório nacional. Obrigado.

DRA LÍDIA TONON (Assessora Técnica do Conselho Na-cional de Secretários de Saúde – Conass): Boa noite aos cole-gas. Saúdo a todos em nome do Conselho Nacional de Secretá-rios de Saúde – Conass e esta importante iniciativa da Acade-mia de Medicina de Brasília.

Cumprimento em especial a presidente Dra Janice Lamas e meu amigo Dr Paranaguá de Santana, um dos maiores estudio-sos e profi ssionais da área de Recursos Humanos do País e da América Latina. Paranaguá fez parte de um grupo de profi ssio-nais que tomaram uma série de iniciativas na área de formação de Recursos Humanos, contribuindo decisivamente para a im-plantação do Sistema Único de Saúde – SUS.

O colega Dr Felipe Proenço, do Ministério da Saúde, apre-sentou dados interessantes e atuais sobre o tema. Percebo que utilizamos a mesma fonte, ou seja, os dados fornecidos pela Estação de Pesquisa de Sinais de Mercado – ESPM do Nescon – FMUFMG

A questão de provimento de recursos humanos em regiões desassistidas e ou de difícil acesso e provimento não é apenas um problema restrito à categoria médica, mas pelo menos a mais duas categorias, ou seja, enfermagem e odontologia. Nes-ta apresentação, irei reportar-me a três importantes contribui-ções descritas a seguir.

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• Aumentar o acesso do pessoal sanitário em regiões re-motas ou rurais, melhorando a fi xação. Recomendações para uma política mundial, Organização Mundial da Saú-de – OMS 2010.

• Convenção on-line sobre Recursos Humanos em Saúde: escassez e fi xação de profi ssionais de saúde em áreas remotas e desassistidas, EPSM-Nescon-FMUFMG – se-tembro 2010.

• Proposta preliminar da comissão especial, Portaria GM-MS n.° 2.169 de 28-7-2010.

Para o Conass, ao discutir este tema, temos de ter conden-sado entre nós de qual proposta de sistema de saúde estamos tratando e qual atenção primária defendemos. Certamente não é aquela que não garante a integralidade da atenção. Acredita-mos que, além das defi nições constitucionais e das leis federais que a normalizam, a portaria GM/MS 4.279 de 30-12-2010 traz uma importante contribuição, construída pelo Conass, Conasems e MS, sobre as Redes de Atenção à Saúde.

A Rede de Atenção à Saúde – RAS é defi nida como arran-jos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a inte-gralidade do cuidado.

O ordenamento ou a comunicação do cuidado é rea-lizado pela Atenção Primária em Saúde.

Portanto, ao discutir a Atenção Primária em Saúde incorpo-ramos em seu conceito o de ordenar a Rede de Atenção à Saúde em seus diversos aspectos. De acordo com a mesma portaria:

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“A Atenção Primária à Saúde é o centro de comunicação da RAS e tem um papel chave na sua estruturação como ordenadora da RAS e coordenadora do cuidado. Para cumprir esse papel, a APS deve ser o nível fundamental de um sistema de atenção à saúde, pois constitui o primeiro contato de indivíduos, famílias e comunidades com o sistema, trazendo os serviços de saúde o mais próximo possível aos lugares de vida e trabalho das pes-soas e signifi ca o primeiro elemento de um processo contínuo de atenção. Deve exercer um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a pro-teção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o trata-mento, a reabilitação e a manutenção da saúde. A coordenação do cuidado é desenvolvida por meio do exercício de práticas ge-renciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando-se a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. Cabe a APS integrar verticalmente os serviços que, normalmente são ofertados de forma fragmenta-da, pelo sistema de saúde convencional”.

Garantir profi ssionais adequados e capazes de executarem esse papel tem sido a preocupação atual da Organização Mun-dial da Saúde. O documento ao qual me referi, como primeira contribuição ao debate, foi construído por expertos em recursos humanos de diversos países, patrocinados pela OMS e que se reuniram em seis encontros realizados nos anos de 2009 a 2010.

Este é um problema afeto a quase todas as regiões do mundo, portanto, não é um problema do Brasil, da África ou da Índia. Ele está presente no Canadá, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França dentre outros países. Segundo esse

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documento, trabalhando-se com o resumo proposto por Gilles Dussault, podemos elencar os principais entraves à disponibi-lização de recursos humanos em regiões desassistidas (RDs):

• econômicos: pobreza, incapacidade para pagar;

• culturais: crenças, desinformações, tradições, valores religiosos;

• geográfi cos: local de residência, ausência de transporte.

Acrescentamos ainda as evidências de que o custo de for-mação de pessoal de saúde é cada vez mais oneroso, requer cada vez mais tempo em número de anos, os serviços são tam-bém mais onerosos, aumentam os distanciamentos culturais e a tendência do jovem profi ssional é a de procurar se localizar em grandes centros, com maior estrutura de serviços e profi s-sionais, bem como melhor estrutura em outros serviços e mais bem valorizada profi ssionalmente.

Com base nessas constatações vou reportar-me às propo-sições de soluções mais relevantes em sequência.

Educação: recrutamento de alunos em regiões desassisti-das, inclusão de conteúdos próprios da realidade dessas regiões nos currículos, o contato com elas durante a graduação de alu-nos, o oferecimento de cursos pós-graduação de acordo com as necessidades dessas regiões, bem como a existência de campus ou instituições nessas regiões desassistidas.

Medidas de regulação e outras: ampliar o escopo das práticas profi ssionais delegadas nas regiões desassistidas, ex-pandir o número de profi ssionais de nível médio nessas regiões,

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nelas melhorar as condições de vida e estabelecer medidas de reconhecimento público quanto às atividades ali desenvolvidas.

Incentivos fi nanceiros: além daqueles relativos a me-lhores salários, bolsas “comprometidas” a estudantes, subsídios especiais compensatórios tais como lazer, férias “duplas”, mora-dia, transporte para a família e outros.

Incentivos profi ssionais e outros: apoio à educação permanente, de especialistas, ambiência adequada, supervisão e equipe adequada, trabalho em rede, períodos de descanso especial e programa de desenvolvimento de carreiras.

Essas propostas foram desenvolvidas em vários países. Hoje, existem faculdades de medicina nos Estados Unidos que reservam em torno de 10% a 20% de suas vagas para as re-giões desassistidas. Na Austrália, há um programa muito in-teressante de valorização cultural dessas regiões por meio de exposições nacionais e de prêmios. Estes são apenas exemplos de como é possível atuar nessas regiões. Não vamos esquecer que hoje podemos fazer uso de tecnologias de atendimento mo-nitorado a distância.

A segunda contribuição diz respeito aos resumos da Con-venção on-line sobre Recursos Humanos em Saúde: Escassez e Fixação de Profi ssionais de Saúde em Áreas Remotas e Desas-sistidas realizada pela EPSM-Nescon-FMUFMG no período de 10 a 20 de setembro de 2010. Participaram dessa discussão cerca de quatrocentas pessoas. A participação foi livre, e houve con-tribuição de sindicalistas, gestores, expertos, conselheiros de saúde, estudantes e interessados pelo tema.

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De acordo com a coordenação da EPSM a “Convenção On-line pretende um espaço para a discussão pública no qual serão identifi cados os problemas relacionados à escassez de profi ssio-nais de saúde e seus determinantes, bem como as estratégias desenhadas para o seu enfrentamento. Trata-se de uma con-venção virtual, realizada à distância (por via da internet), em que os participantes poderão acompanhar e participar de dis-cussões temáticas, durante um período de dez dias, no tempo que melhor lhes convir, por meio de mensagens postadas numa plataforma web especialmente construída para esse propósito.”

Os tópicos abordados foram:

• problemas com a distribuição de pessoal;

• determinantes da escassez, atração e fi xação de recur-sos humanos;

• experiências inovadoras;

• propostas legislativas e síntese.

A apresentação dos tópicos nomeados acima, contou com expertos nacionais e internacionais e, em seu relatório, constam propostas similares a apresentadas pelo documento da OMS, o que sinaliza que a realidade brasileira não difere substantiva-mente da internacional.

Há um tópico interessante na discussão estabelecida pela Convenção on-line, a saber, o da apresentação do levantamento das iniciativas parlamentares em andamento, seja na Câmara dos Deputados, seja no Senado, por iniciativa dos deputados ou do poder executivo, sobre Serviço Civil Obrigatório, sobre Incentivos Financeiros a regiões desassistidas, sobre o Servi-ço Militar Obrigatório, sobre a Carreira de Médico do Estado e

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sobre os critérios para abertura de escolas médicas, o que com-prova a importância do tema.

Por fi m, apresento as principais sugestões da Proposta Pre-liminar da Comissão Especial estabelecida pela Portaria GM-MS n.° 2.169 de 28-7-2010.

Contou com a participação de técnicos do Ministério da Saúde, Conass e Conasems e propõe a criação da Carreira Es-pecial para áreas de difícil acesso e ou provimento. Sugere que sua implantação seja iniciada pelas Regiões Norte e Nordeste a fi m de corrigir desigualdades sociais e garantir direitos consti-tucionais.

Estabelece a conceituação de áreas de difícil acesso e ou provimento, a saber: “São áreas carentes ou desassistidas de profi ssionais de saúde, sem acesso a cuidados básicos, em ra-zão de barreiras econômicas, geográfi cas e culturais”. A partir dessa conceituação, propõe critérios de elegibilidade para áreas a seguir:

• indicadores de oferta de profi ssionais e pesos;

• medida ou indicador de alta necessidade de saúde;

• medida ou indicador de necessidades ou carências socio-econômicas;

• características da população;

• indicadores de capacidade instalada;

• indicadores de utilização de serviços por segmento po-pulacional;

• medida de distância física e em tempo, e localização como medida de acessibilidade ou barreiras geográfi cas.

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As principais características da proposta da Comissão Es-pecial são:

• responsabilidade dos entes federativos;

• carreira nacional com base estadual ou regional;

• vínculo federal sob gestão municipal;

• “circuito” fechado nos municípios defi nidos;

• mobilidade estadual ou regional;

• salários diferenciados;

• gratifi cações diferenciadas;

• carreira de vinte anos.

A criação dessa carreira estaria direcionada a médico ge-neralista, clínico geral, de saúde da família e comunidade, a enfermeiro generalista, de saúde da família e comunidade, a odontólogos e, em relação a outras especialidades, em confor-midade com as necessidades e o porte populacional.

Os princípios que norteiam essa Carreira são:

• concurso público ou seleção pública;

• Gestão Partilhada da Carreira;

• carreira como instrumento de gestão;

• educação permanente;

• avaliação de desempenho;

• compromisso solidário entre os entes federativos.

Questões para refl exão

• Há consenso sobre o que sejam áreas remotas, de difícil acesso e provimento e a necessidade de estabelecer cri-térios de elegibilidade.

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• Há consenso sobre as medidas de intervenção nacio-nal com os diversos atores que, de regra, se comparam àquelas praticadas em outros países. Esse consenso está expresso no trabalho apresentado pela Comissão Espe-cial, mas infelizmente até o momento está sem resposta por parte do Ministério da Saúde.

• Há consenso sobre as necessidade de adotar medidas organizacionais compatíveis com a questão em tela.

• Há consenso sobre a necessidade de monitoramento e avaliação sobre as propostas implantadas, a fi m de ins-truir as demais decisões sobre o tema.

Muito obrigada pela atenção.

PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO

Acad. Dr José Leite Saraiva: Em primeiro lugar, eu gos-taria de cumprimentar os palestrantes e os debatedores dos temas aqui apresentados. Muito me preocupa o problema do Provab: se isto não traz uma solução permanente para as áreas desassistidas, que não vai fi xar o médico. Ao contrário, ele fi ca-rá lá enquanto houver uma gestão que paga por alguma razão maior, e não por um juízo de projeto. Digo isso, porque sou da Amazônia, conheço os Srs. Secretários de Estado, conheço a Amazônia, os Secretários Gerais Adjuntos do Ministério da Saú-de, e fui responsável pela saúde da Amazônia Legal, em que a maioria dos municípios nem sequer tem Secretaria Municipal de Saúde. Não há infraestrutura. Tenho dúvidas se esse pro-grama de valorização vai ocorrer nesses pontos estratégicos.

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A Amazônia Legal constitui 60% do território nacional. Só o Es-tado do Amazonas tem 1.560.000 quilômetros quadrados e sua capital – Manaus. Tudo se concentra na capital. Poucos são os municípios que têm algum desenvolvimento entre os 63 exis-tentes. Saindo de Manaus para um determinado município, o rio é a nossa estrada, com até 45 dias de viagem. Fala-se: “Ah, mas nós temos o Tele Saúde”. Eu participei da discussão do Tele Saúde no Ministério da Saúde”. É muito interessante a tec-nologia de ponta, a medicina à distância, para as metrópoles, para as grandes capitais, com excelente resultado.

São equipamentos que requerem recursos humanos de alta formação e, como foi dito aqui, nem todos os profi ssionais que-rem ir para lugares difíceis. É outra preocupação. Eu acho que fi xar o médico nesse interior do País vai muito além do Provab. O médico a ser fi xado na área rural, no agreste do Nordeste e na Amazônia Legal, vai precisar de outros valores e de outras con-dições para ser fi xado. O médico recém-formado hoje vive sob a perspectiva da tecnologia de ponta, em que os equipamentos, guardadas as exceções da regra, são os principais instrumentos na relação médico-paciente. Então, onde ele vai encontrar essa tecnologia nesse mundo afora dos desassistidos?

Não se fi xa um médico recém-formado com a visão de re-torno, porque ele quer acesso à melhoria de vida profi ssional e familiar evidentemente. Então, considero que uma das tentati-vas de suavizar essa situação, no primeiro momento, começa com a carreira de estado. É preciso fi xar um médico como ocorre com um juiz, um promotor, um delegado ou as próprias Forças Armadas. Há um retorno, um progresso até chegar à origem de uma capital. Aí ele faz uma carreira. O senhor há de dizer: “Mas isso é difícil de fazer aqui no Brasil.” Olha, tudo é difícil quando

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não há vontade política de fazer. Estive em país menos desenvol-vido que o Brasil. São sete países da Amazônia não brasileiros, entre os quais, Colômbia e no Peru, em que só se efetua registro no CRM correspondente ao nosso depois de o recém-formado prestar o serviço, assistido no interior do seu país. Depois ele volta mediante a carreira de estado, é promovido e tem acesso até o último estágio da carreira profi ssional. Há uma perspectiva de futuro para esse médico. No Provab, não vejo perspectiva de futuro. Vejo apenas uma atividade. Por outro lado, esquece-se o médico. Fico preocupado com o Provab: jovens, médicos, sob supervisão. Desafi o qual supervisor irá fazer sistematicamente uma supervisão, nesse processo do Provab, no interior do País, no agreste do sertão? Então, são dois aspectos sobre os quais eu gostaria de que o Ministério da Saúde fi zesse uma refl exão – a ideia de ocupar os espaços desassistidos e a forma como isso vai ser consolidado, o que é fundamental.

Em relação ao Revalida, o governo não pode abrir exceção para alunos formados em países cujos cursos deixam muito a desejar em relação aos nossos cursos aqui no Brasil. Constitui discriminação quanto ao estudante brasileiro, que se subme-te aos rigores da Lei, com vestibular para disputar uma vaga, enquanto outros fi nanceiramente apoiados concorrem com um médico recém-formado no Brasil em melhores condições, sem esforço nenhum. O governo tem que avaliar esses aspectos quando se dispõe a revalidar o diploma do médico formado fora, seja da Bolívia, da Colômbia, da Venezuela, do Canadá, dos Es-tados Unidos ou da Inglaterra.

Acad. Dra Janice: Obrigada. Eu gostaria de fazer uma pergunta à Dra Suzana a respeito do Revalida. Há notícias de que o governo estaria tentando fl exibilizar um pouco o Revalida.

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Os médicos teriam acesso à revalidação se trabalhassem dois anos antes em áreas pouco assistidas. Isso é verdade?

Sra. Suzana Schwerz Funghetto (Coordenadora-Geral de Avaliação do INEP): Em relação àquilo que eu falei do Reva-lida, cabe ao INEP operacionalizar o exame. A decisão de como vai ser feito o processo cabe ao Ministério da Saúde e ao Minis-tério da Educação. Pelo que a gente saiba, isso não é verdadeiro.

Sr. Tiago Neiva (Diretor do Sindicato Médico): Vou dizer, para separar os confl itos de interesses, que sou Diretor do Sin-dicato Médico, fundador da Associação de Medicina de Família aqui em Brasília.

Sou Conselheiro de Saúde no DF, especialista em medicina de família e comunidades. O que nos chama à atenção é que o especialista em atenção primária é o médico de família e co-munidades. No entanto, somos tão desprestigiados que nem a categoria médica nos conhece, nem os próprios médicos nos tratam pelo nome da especialidade e não estamos nesse fórum para discutir um assunto, que é a nossa casa – a Atenção Pri-mária à Saúde. Vejam o quanto somos desprestigiados!

Acredito que o Ministério da Saúde, em especial o Departa-mento de Atenção Básica, tem cometido uma falha muito grave. Qual seria essa falha grave? A qualifi cação do médico que atua na atenção primária é dada de modo a colocar à parte as enti-dades médicas, reforçando a ausência da identidade do médico.

Um dos elementos fundamentais para a fi xação do provi-mento é o reconhecimento do profi ssional. O médico de família e comunidade não é conhecido nem pelos seus pares.

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No Brasil, as primeiras residências médicas começaram na década de 80. Em sua gênese, houve um confl ito intenso com os profi ssionais da saúde coletiva. Na Sociedade de Medicina de Família, ocorreu uma discussão intensa, calorosa, que tem a ver, em minha opinião, com esse tratamento discriminatório do Ministério da Saúde.

Existe um especialista chamado Médico de Família de Co-munidade. Nós, no Brasil, ao contrário do que sucede em qual-quer país que tem Atenção Primária forte, queremos reinventar. Existem coisas maravilhosas criadas no âmbito de ações coleti-vas, como clínica ampliada e vários outros conceitos fundamen-tais para nós, profi ssionais médicos de família.

Sem identidade, o especialista e generalista do Brasil, cha-mado Médico de Família e Comunidade, não irá prestar a aten-ção da família. Agora estamos no movimento do especialista para fora da saúde da família, em direção à iniciativa privada. Por quem a atenção à saúde é realizada no serviço público? Somos uma espécie de vira-lata. Qualquer um é médico de fa-mília, e esses conceitos são a mesma coisa, para os médicos e para população. Eu, como especialista, me sinto extremamente desestimulado, assim como os demais colegas médicos de fa-mília. A prova é que, para os programas de formação para mé-dico de família, o Ministério não o chama de médico de família, chama-o de profi ssional de saúde da família.

Dr Felipe Proenço: Em relação ao Provab, enquanto polí-tica de provimento, isoladamente vai dar resposta à fi xação. Daí a preocupação pela questão da residência médica e a proposta de abertura de quatro mil vagas de residência médica até 2014.

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O edital foi aberto para novos pedidos de vagas de residência médica: 64% dos pedidos estão na Região Sudeste. Por mais que a residência médica seja um fator importante de fi xação, estudos mostram que a residência e a graduação continuam reproduzindo um modelo de concentração. Como vamos fazer para fi xar médicos em outros lugares? Acho que é um elemento importante para debate. O profi ssional da supervisão do Provab recebe uma bolsa de três mil reais para fazer visitas quinzenais e, mesmo assim, encontra uma série de difi culdades. O Provab tem um papel de provimento. Há várias iniciativas de serviço civil obrigatório. Nós não fomos por esse caminho agora.

Fico muito à vontade de ouvir o Dr Tiago porque sou mé-dico de família e comunidade e tive a felicidade de formar os primeiros MSFs de Sergipe e da Paraíba. A medicina em família e comunidades, em nossa apresentação, foi contemplada com 901 vagas, e apenas 274 estão ocupadas.

Montamos um Grupo de Trabalho especifi camente para dis-cutir medicina de família e comunidade e chamamos a Socieda-de Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, reconhecen-do a importância dessa sociedade, para fazer essa discussão. Estimular, como buscar preencher, com certeza é uma das nos-sas preocupações.

Nós temos experiências no País, como experiência da Fun-dação Estatal de Saúde da Família na Bahia.

O que é a Fundação Estatal? É quando um conjunto de mu-nicípios faz um concurso unifi cado e tem um plano de carreira unifi cado.

Os municípios do Estado da Bahia resolveram se juntar e fazer concurso único. É uma nova experiência no País, e estarem se debruçando sobre ela e vendo como apoiar novas carreiras

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de atenção básica. A grande questão é que a atenção básica é pressuposto do município e não cabe ao Ministério da Saúde fazer um concurso do Ministério para estabelecer profi ssional médico do Ministério nos municípios.

Não se há de olhar carreira só do ponto de vista do Ministé-rio da Saúde. Apoiamos experiências inovadoras, por meio dos cursos, do Projasus, de formação de gestores e de residência médica em saúde coletiva.

Acad. Dr Leonardo Esteves: Parabenizo o debate e os palestrantes. Não acredito que um programa único seja o ver-dadeiro para o País. Se orientarmos o Brasil como um gestor, a oferta e a procura irão dizer onde é que se deve fi xar um médi-co, onde é que não se precisa mais de médico – e há a questão salarial. Mas com certeza os estados têm a função de estimular o ganho e a formação do médico em cada região. Não creio que o Revalida ou os programas de gestão sejam a solução do pro-blema para o País. Faltam debates desse tipo e maior congre-gação entre a área médica, seja com participação do Conselho Federal de Medicina, da Associação Médica e ou do Ministério, para que exista um compasso de atitudes coerentes, desde a formação do médico até sua fi xação. O especialista só haverá de entrar numa região se ali for necessário aquele especialista, e o generalista tem que ser estimulado a ir para a região onde não existe generalista. Isso passa por todos os passos que foram trazidos aqui, desde a formação ao estímulo fi nanceiro. Acho que as soluções ora apresentadas devem ser mais debatidas em um fórum como este, que ocorreu nesta Academia, formado por instituições governamentais. O paciente só pode chegar ao especialista depois de ser visto pelo generalista. Com certeza a

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gripe comum vai ser resolvida, e não haverá necessidade de um pneumologista para tratar um resfriado. Isso acontece em vá-rios países do mundo. Falta orientação no serviço público nes-se sentido. A situação da distribuição de médicos no País deve estar de acordo com a lei do mercado, ou seja, se falta médico da Região Norte, ele tem que ganhar muito mais, o dobro ou o triplo do ganharia na Região Sudeste onde há dez vezes mais médicos. O profi ssional terá estímulo para chegar lá.

Acad. Dr Renato Maia: Tenho a impressão de que esta-mos discutindo aqui ausência de médico ou sua má distribuição. Devemos falar é de ausência de saúde, de pessoal de saúde. Se a gente diz apenas médico, vamos limitar muito a questão de saúde, como um evento restrito a nós, médicos. Saúde não está atrelada a muitos médicos. O Chile tem um sistema de saúde muito mais moderno que o nosso e tem menos médicos que o Brasil. Então, não é uma questão de número de médicos. Se assim fosse, os Estados Unidos teriam uma saúde perfeita e se-quer saúde pública eles têm. Esse é o primeiro ponto. O segun-do é que nós, brasileiros, detestamos ter memória, detestamos o nosso passado, detestamos as experiências bem-sucedidas. Eu não ouvi uma única palavra sobre a Fundação Cesp, que foi uma experiência vitoriosa em levar a assistência onde esta não havia, ou seja, assistência multidisciplinar, médico, enfermeira, condições sanitárias e água. Ninguém fala sobre a Fundação Cesp. E é uma fundação que tem muito mérito, o que precisa ser rediscutido. A feliz proposição da necessidade do médico de família está absolutamente correta. O médico para estar no in-terior deve ser principalmente o de família. Finalmente, a ques-tão da carreira médica. O primeiro mandamento da carreira mé-dica deveria ser o seguinte: “Fica proibida a dupla militância.

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Ou você é público ou você vai se virar no lado privado.” E essa dupla militância tem que ser coibida, inclusive na residência médica. Não há cabimento a Secretaria de Saúde do Distrito Federal formar um mundo de especialistas para a área privada se não há como aproveitá-los na área pública.

Vamos organizar a área pública com carreira médica, e a alocação de médicos em áreas pouco assistidas dentro dessa carreira com benefícios.

Acad. Dra Janice Magalhães Lamas: Dr Renato, então eu acho que – a questão fundamental passa pela formação do médico, pela carreira do médico estatal, não com fi nanciamento de uma prefeitura ou de um município, mas dentro do próprio Ministério da Saúde, como o que está agora no Congresso sen-do discutido.

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PALESTRAFINANCIAMENTO DA SAÚDE E OS IMPACTOS SOBRE A PRÁTICA MÉDICA, ENSINO E PESQUISA MÉDICA

(Sessão Plenária ocorrida em 23/10/2012)

INTRODUÇÃO

A constituição cidadã de 1988 previu que 30% da receita da Previdência e Assistência Social fossem aplicados

na área da saúde, o que nunca foi cumprido por falta de regu-lamentação.

A participação federal em ações e serviços públicos de saúde tem sido gradativamente reduzida, desde 2000, quan-do a Emenda Constitucional n.º 29 foi aprovada. Apenas doze anos depois, sua regulamentação foi publicada, por meio da Lei Complementar n.º 142, com a defi nição dos valores mínimos a serem aplicados pelas esferas do poder – União, estados e municípios.

A Emenda Constitucional n.º 29, ao fi xar percentuais para estados e municípios, estabilizou em linha reta a parte da União, segundo a variação nominal do PIB e não dependente da receita bruta.

Restringir o aporte de recursos por parte da União, com base na premissa de má gestão e inefi ciência, não justifi ca as

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diferenças na base de cálculo dos valores aplicados por estados, municípios e pela União: para estados e municípios um percen-tual da receita (12% e 15% respectivamente) e para a União o mesmo empenhado em saúde no ano anterior, corrigido pela va-riação nominal do PIB. Há de se ressaltar que a receita tem um crescimento maior que o PIB, o qual depende do comportamen-to da economia e do cenário internacional, hoje desfavorável.

Nessa questão, centralizaram-se as controvérsias. Somos favoráveis a uma defi nição de percentagem fi xa de investimen-tos por parte do governo federal com a mesma base de cálculo para os três níveis, como bem foi demonstrado na sessão ple-nária desta Academia de Medicina.

O subfi nanciamento do sistema de saúde público ou Sis-tema Único de Saúde (SUS), a pouca regulação pública e a má qualidade da gestão dos recursos levam a um impacto negativo sobre a prática médica em particular e ao sistema de bem-estar social como um todo.

Embora os gastos com saúde representem 8,8% do PIB (dados de 2009), 55,2% são do setor privado. Nesse particular, os subsídios ou as desonerações fi scais que contemplam em-presas ou famílias promovem o crescimento do setor privado da saúde, em relação à prestação de serviços e assistência, quan-do permitem a dedução de tributos a serem pagos por esses entes privados, baseados na justiça tributária. A proposta de um teto na dedução de gastos com a saúde é um aspecto que deveria ser discutido com a sociedade.

A assistência aos servidores públicos por planos de saúde privados, em grande parte fi nanciada por recursos do estado ou da União, constitui evidência clara da sobreposição da estrutura dos sistemas de saúde público-privada. A falta de regulação das relações entre o sistema público de saúde e os planos e seguros

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de saúde permite perpetuar a injustiça fi scal e sangra os recur-sos do fi nanciamento à saúde. A identifi cação de todos os usuá-rios, independentemente do acesso por via do SUS ou de planos e seguros de saúde, poderia regular os gastos, tornando mais simples e fácil de ser demonstrada a compensação fi nanceira dos serviços de saúde utilizados.

É relevante o gasto privado com saúde das famílias, que representou 6% do orçamento familiar, sendo o quarto item considerado após habitação, alimentação e transporte, o que penaliza os mais pobres, principalmente no que tange a medi-camentos.

Os medicamentos consumidos no Brasil têm alta carga tribu-tária, que inclui, além do imposto de importação, o imposto sobre produtos industrializados (IPI), sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Contribuição para o Financiamento da Segurida-de Social entre outros, atingindo cobrança de até 35,7%. Reduzir essa carga tributária irá benefi ciar a população mais pobre.

O SUS adquire gradativamente o formato de setor de saú-de de má qualidade destinado aos pobres, idosos e aposenta-dos, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, cobre procedi-mentos e medicamentos caros pelos mecanismos de descontos tributários, renúncia fi scal, isenções e abatimentos.

O cenário é o de empresas multinacionais ligadas a saúde e bancos que se preparam para oferecer seguro popular, haja vista a recente compra da Amil e de outros grupos nacionais, em substituição ao SUS.

É necessária uma atitude para impedir esse caos.

Acad. Dra Janice M. LamasPresidente da Academia de Medicina de Brasília

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PALESTRANTES

DR SÉRGIO PIOLA (Consultor do IPEA e Presidente da Associação de Economia da Saúde da América Latina e Caribe): Inicialmente, quero agradecer à Academia de Medicina de Bra-sília pelo convite. Nesta apresentação, vou fazer uma aborda-gem mais geral sobre o fi nanciamento da saúde no Brasil.

Gostaria de usar a exposição que Dr Adail vai fazer como complemento. Penso que, com a junção das duas exposições, poderemos abordar as implicações do fi nanciamento da saúde sobre prática médica, ensino e pesquisa médica de forma mais completa.

Em todos os países, os serviços de saúde são basicamente fi nanciados com recursos das famílias, das empresas, do gover-no e recursos externos. Tais recursos externos são geralmente importantes para os países menos desenvolvidos e representam empréstimos e doações de organismos internacionais. O que muda no fi nanciamento da saúde nos diversos países é a par-ticipação relativa de cada uma dessas fontes de recursos. Em alguns, a participação das famílias é maior e, em outros, a do governo, como veremos mais adiante.

Nos primórdios da medicina, havia relação direta entre pa-ciente e provedor no tocante à retribuição pelo atendimento. Isso ainda existe, mas, no início da prática médica, esse tipo de relação era predominante. Com o tempo, foi surgindo a fi -gura do terceiro pagador com o objetivo de agregar os recursos para o fi nanciamento da saúde e dividir riscos. Essa agrega-ção do fi nanciamento da saúde ocorre nos sistemas públicos e então temos diferentes modelos de fi nanciamento da saú-de. Nos sistemas dos países nórdicos (Suécia, por exemplo) o

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fi nanciamento se faz pelo governo com recursos fi scais. Em pa-íses como a Alemanha, são os recursos de contribuições sociais que predominam, mas o princípio é o mesmo. Os recursos são reunidos e agregados em algum lugar, na previdência social ou no orçamento fi scal para dividir os riscos. Os planos e seguros privados de saúde também exercem essa função de agregação de recursos e, de certa forma, de divisão de riscos.

Essas inovações no fi nanciamento da saúde são derivadas da expansão dos direitos sociais, mas também do custo da as-sistência médica que, como se sabe, se tornou inacessível para a maioria das famílias. Os gastos com a assistência à saúde cresceram em todo o mundo. Representavam 3% do PIB mun-dial em 1948. Subiram para 8,7% em 2004. Nos Estados Uni-dos, onde há maior crescimento nos gastos da saúde, os gastos passaram de 5.2% do PIB, em 1960, para 16% em 2006. Um conjunto de fatores contribuiu para essa evolução – o perfi l epi-demiológico e demográfi co são dois deles, mas não necessaria-mente os mais importantes, como veremos adiante.

Os gastos com a assistência à saúde são também infl uencia-dos pela resposta esperada dos sistemas de saúde, em termos de grau da cobertura populacional, elenco dos serviços ofereci-dos e grau e velocidade na incorporação de novas tecnologias. Em relação ao grau da cobertura populacional, evidentemente um sistema, como o do Brasil, que se propõe a dar cobertura universal, vai precisar de um volume maior de recursos. Nosso sistema público se propõe a dar atendimento integral, ou seja, desde o atendimento mais simples ao mais complexo. Logica-mente, a depender do pacote de serviços de saúde que cada país se compromete a oferecer, os gastos do seu sistema vão aumentar. Mas um fator muito importante na determinação dos

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gastos com saúde é o grau e a velocidade de incorporação de novas tecnologias.

Também infl uencia o volume dos gastos com saúde a forma de organização para a produção dos serviços: mais ou menos livre mercado, maior ou menor regulação e condução pública do sistema. Com o exemplo dos Estados Unidos, onde o sistema se organiza de forma mais livre, ou o sistema da Inglaterra, que se organiza de forma mais regulada, há uma diferença muito grande em termos de gastos como proporção do PIB nesses dois países. Os Estados Unidos gastam 16% do PIB com saúde. A Inglaterra gasta bem menos, cerca de 9% do PIB com saúde. O aumento das especialidades médicas é outro fator que, con-forme diversos estudos, contribui para o aumento dos gastos com saúde. Os gastos também se elevam com a melhora das condições sociais e econômicas da população – como renda, educação, urbanização –, quanto mais aumenta a renda da po-pulação, mais se gasta com saúde.

A educação é outro fator importante, a urbanização tam-bém leva a maiores gastos. Mas as mudanças tecnológicas são consideradas o principal fator do aumento dos gastos. As mu-danças contribuíram com mais de 50% de incremento entre 1940 e 1990, segundo estudos de diversos autores. Isso é uma coisa sobremaneira fácil de perceber. Se pensarmos no tempo em que o apoio que o médico tinha na atenção à saúde se resu-mia a alguns poucos equipamentos e todos os recursos de que dispõe hoje, em termos de equipamentos de diagnose e terapia, realmente aí parece ser o ponto principal de incremento dos gastos com saúde.

Farei um primeiro resumo dessa parte. O aumento de gas-tos com saúde é uma tendência universal. Quase nenhum país

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foge disso, quase todos apresentam crescimento nos gastos com saúde. Pode-se, no entanto, fazer escolhas para que os custos sejam suportáveis pela sociedade. As escolhas podem ser feitas, por exemplo, em termos da atualização tecnológica do sistema. Pode-se ter um sistema que seja tecnologicamente muito avançado, mas com custos insuportáveis para a socieda-de. Afi nal, a sociedade também tem outras necessidades e pre-ferências, além da saúde, ou seja, como os recursos materiais e fi nanceiros são quase sempre limitados, a defi nição das priori-dades deve considerar o momento histórico, social e econômico de cada país.

Então, isso é, de certa forma, uma referência que deve ser buscada e se devem verifi car as prioridades do momento. De qualquer forma, olhando ao nosso redor, vemos que, com poucas exceções, nos países mais ricos, o gasto público é maior que o privado. O desembolso direto, no ato do atendimento, pa-radoxalmente tem maior participação nos países mais pobres. Pode-se observar que, nos países com os níveis mais baixos de renda, a participação pública é menor. Nos países de renda baixa, apenas 25,9% do gasto total é proveniente de recursos públicos, e o resto procedente de recurso privado.

Nos países de renda média baixa, 45% dos recursos são públicos e, nos países de renda média alta e renda alta, 53% e 60% do gasto em saúde, respectivamente, são gastos públicos. E como se coloca o Brasil nessa história? O gasto total do Brasil foi estimado em 8,8% do PIB em 2012. Em verdade, os dados são de 2009. O que nos distingue é que, no Brasil, a participa-ção pública é baixa para um sistema universal de atendimento integral. No Brasil, apenas 43,6% do gasto total em saúde é gasto público, e a participação do gasto privado é muito alta, isto é, 56,4% do gasto total.

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Olhando-se um conjunto de países, por exemplo, no Cana-dá, 70% do gasto é público; na Espanha, 73%; no Reino Unido, 84%; no Uruguai, 65%. Parecido com o Brasil, temos o Chile, onde também menos de 50% do gasto é público, e os Estados Unidos, onde também a participação privada é superior à pública.

Na maioria dos países, tanto em desenvolvimento como desenvolvidos, a maior parte dos gastos é originária do setor público. Mas como se distribui o gasto no Brasil? O público re-presenta 43,6% do gasto total. O gasto privado alcança 56,4% do total. Do total de gasto, 32,26% são o que chamamos de desembolso direto. É o pagamento que as famílias fazem quan-do vão a uma consulta, fazem um exame ou quando adquirem um medicamento. Por outro lado, 24,13% do total é gasto por intermédio de planos e seguros privados de saúde.

O gasto com saúde nas famílias brasileiras tem peso signi-fi cativo. É o quarto item de gasto familiar, depois de habitação, alimentação e transporte, representando em média 6% do or-çamento familiar em 2002-2003.

Já saiu a nova Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF-IBGE) de 2009, e essa classifi cação não mudou, continua a mesma. A saúde continua como o quarto item de gasto no orçamento das famílias. Nos primeiros décimos de renda, quando se dividem as famílias por renda, os 10% mais pobres e depois os 10% menos pobres, até os mais ricos, a maior parcela do gasto é com me-dicamentos. Enquanto nos décimos com renda mais elevada, os maiores gastos são com plano de saúde, medicamentos e planos odontológicos, isso nos gastos das famílias, aquele gasto direto. Quanto aos 10% mais pobres, quase 80% do gasto é despendi-do com medicamentos. A compra de seguros é o terceiro item e corresponde a apenas 4,46% do gasto das famílias mais pobres. Enquanto nas famílias mais ricas, a maior parte dos gastos ocorre

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com planos e seguros de saúde em cerca de 40%, depois vêm os gastos com medicamentos com 26% e consulta odontológica e tratamento dentário com 13%.

Mas por que se diz que o fi nanciamento público é baixo no Brasil? Essa é uma afi rmação que, suponho, os senhores ouvem toda hora. Existe até uma campanha em prol do aumento do orçamento público para a saúde, a Saúde Mais 10. Primeiro, em um país com um sistema universal e de atendimento integral, um gasto público em torno de 44% do total é completamente destoante do que se observa na média dos países da Organiza-ção para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, por exemplo, em que o gasto público está em torno de 70% do total.

Outra evidência de que nosso gasto público é baixo: a re-ceita per capita do segmento de Planos e Seguro Privados de saúde em 2009 no Brasil era de quase mil e quinhentos reais, ou seja, mais que o dobro do per capita do SUS no mesmo ano, um dispêndio equivalente a seiscentos e cinquenta reais. Posso até tirar a parte da população brasileira que tem plano de saú-de, que esses seiscentos e cinquenta de gasto público sobem para menos de novecentos reais. Mesmo assim, o investimento público no SUS continua sendo bem menor que a disponibili-dade que o segmento de planos privados tem para fi nanciar a saúde dos seus usuários.

Outra especifi cidade do fi nanciamento público da saúde no Brasil é que, apesar de ser inferior a cinquenta por cento do gasto total de saúde, o fi nanciamento público se estende com menor ou maior intensidade por todos os segmentos que compõem o sistema nacional de saúde. Que quero dizer com isso? O fi nanciamento público se estende por meio do subsídio (renúncia fi scal) à compra privada de serviços de saúde. Todos nós como pessoas físicas podemos descontar na declaração de

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imposto de renda aquilo que gastamos com assistência à saú-de. As empresas também podem descontar quando prestam serviços ou adquirem planos de saúde para seus funcionários e podem descontar parte desse gasto no imposto de renda das pessoas jurídicas.

Também há renúncia fi scal para entidades fi lantrópicas e para medicamentos. O poder público contribui com recursos para assistência à saúde (seletiva) de seus servidores. Somen-te o Governo Federal gasta quase dois bilhões de reais por ano com assistência à saúde de servidores.

Claro, estou juntando uma série de coisas que são muito diferentes. Renúncia fi scal com medicamentos é uma boa coisa, o governo não está a toda hora desonerando a linha branca, diminuindo o IPI dos carros? Por que não pode fazer isso com mais intensidade com os medicamentos? Se os medicamentos representam 70%, quase 80%, do gasto das famílias mais po-bres com saúde, por que não diminuir ainda mais o peso dos impostos sobre medicamentos? Os impostos representam 33% do custo dos medicamentos.

Agora vamos ver como se distribui a renúncia fi scal. O im-posto de renda de pessoas físicas elevou-se a quase cinco bi-lhões de reais em 2012, e o imposto de pessoa jurídica, 3,1 bilhões no mesmo ano. A renúncia das instituições fi lantrópicas está em torno de 2,5 bilhões, e os medicamentos também têm isenção com quase R$ 4,5 bilhões.

Há outro resumo dessa parte. O gasto público com saúde no Brasil é baixo para se ter um sistema de acesso universal e atendimento integral. Temos que convencer os políticos e a população, de uma forma geral, de que o volume de recursos

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públicos é insufi ciente, que tem de ser mais bem aplicado, que precisamos de maior volume de recursos.

Outra constatação é que o fi nanciamento público não se destina somente ao SUS, que é o sistema a que toda população tem direito. Essa é outra discussão que também deveria ser le-vada à sociedade.

Em outras áreas, educação por exemplo, há limite de des-conto no imposto de renda, mas em saúde este não existe. Quer dizer, acho que o governo devia estabelecer qual é sua prioridade em termos de alocação de recursos públicos para a saúde. A prioridade deve ser o SUS, sistema que atende a todos os brasileiros, ou o Governo vai continuar com essa política de aumentar a renúncia fi scal para os planos e seguros privados de saúde? Mas isso é uma questão que deve ser discutida pela sociedade e pelos políticos para ver qual o caminho mais ade-quado a seguir.

Agora, vamos apresentar uma rápida informação a respei-to da evolução dos gastos do sistema único de saúde. Com a Emenda n.º 29, de 2000, que vinculou recursos dos estados e municípios e da própria União para a área da saúde, houve crescimento de recursos para o SUS. Eles passaram de 2,89% do PIB, em 2000, para 3,65% em 2010, quer dizer, houve um crescimento de 0,76 de pontos percentuais no PIB. O cresci-mento real do gasto per capita das três esferas foi 90%. Um ótimo número.

A participação de estados e municípios cresceu de 40% do gasto do SUS, em 2000, para 55% em 2010. Quer dizer, todas as três esferas contribuíram para o aumento dos recursos dos SUS. Mas o que ocorreu em relação aos gastos federais? Estes, apesar de também crescerem, tiveram a participação relativa

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diminuída em relação às receitas da União. Os gastos do Go-verno Federal com o SUS representavam, em média, 8,37% da Receita Corrente Bruta (RCB) da União no período de 1995 a 2001. Foram reduzidos para 7,1% da RCB de 2002 a 2009.

Apesar de a Emenda Constitucional n.º 29 ter aumentado a disponibilidade de recursos para o SUS, a demora em sua re-gulamentação – ela é de 2000 e só foi regulamentada em 2012, ou seja, doze anos depois –, provocou perdas para o fi nancia-mento do sistema público. Alguns dados: por exemplo, em 2008 e 2009, mais da metade dos Estados não cumpriram o percen-tual de 12% da receita que, para o SUS, se todos os Estados o cumprissem, seriam mais ou menos três bilhões de reais para o sistema público cada ano. No caso da União, seria da mesma forma. Se a União cumprisse religiosamente a Emenda Constitu-cional n.º 29, o SUS teria alguns bilhões a mais de 2000 a 2008.

Às vezes, a despesa é empenhada, e ninguém faz um con-trole do que acontece com esse empenho, quanto é cancelado e quanto é efetivamente realizado. Quer dizer, se fossem feitas todas essas contas, o valor que a União deixou de aplicar não seria desprezível.

Mas a regulamentação da Emenda Constitucional n.º 29 foi fi nalmente aprovada em 2012. Infelizmente a regulamentação frustrou as expectativas mais otimistas. Quase todos espera-vam que fosse resolvida a questão da participação dos recursos da União, que fosse revista a participação dos recursos da União no fi nanciamento do SUS, o que não ocorreu. O desejo era que a participação fosse de 10% da Receita Corrente Bruta.

Em verdade, a saúde não tem sido prioridade do Governo Fe-deral nos últimos anos. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, o gasto social federal, que inclui os

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gastos com assistência social, incluindo-se o Bolsa Família, com educação, habitação, previdência e saúde, passou de 11,2% do PIB em 1995 para 15,8% do PIB em 2009. Por sua vez, os gastos federais com saúde fi caram estagnados, em todo esse período, em 1,8% do PIB. Quer dizer, em outras áreas sociais, houve crescimento importante, mas não na área de saúde. É bem verdade que com a descentralização de estados e muni-cípios estes passaram a ter maiores responsabilidades com a saúde, mas a União, em meu entendimento, deveria dar trata-mento mais adequado para a área em termos de recursos.

Como vimos, um gasto público equivalente a 40% do gasto total é muito pouco para um país que pretende ter um sistema universal e de atendimento integral. Nunca vai haver serviço de boa qualidade com o nível de investimento público que se tem.

Para alçar o SUS como prioridade, é necessário, em pri-meiro lugar, recuperar a participação de recursos federais no fi nanciamento do SUS. Segundo, estabelecer limites ao incenti-vo – por renúncia fi scal – à atenção privada, sinalizando-se para a sociedade a prioridade dada ao SUS. Essa segunda questão é extremamente polêmica, mas é preciso não postergar sua dis-cussão. A última vez que o Congresso fez um projeto de lei ten-tando regulamentar a renúncia fi scal na saúde foi por meio de um projeto de lei do ex-deputado Eduardo Jorge no ano 2000. O projeto passou por algumas comissões, mas não foi em frente. É uma questão muito delicada. Envolve muitos interesses. É claro que, se a população, principalmente a que tem mais capacidade de reivindicação, não passar a utilizar com maior intensidade o sistema público, o SUS corre o risco de se perpetuar como um sistema pobre para a população mais pobre.

Acho que a sociedade brasileira tem que enfrentar essa questão. O que ela realmente quer? Ela quer ter um sistema

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efetivamente universal ou vai se espelhar no sistema norte--americano? Atualmente, há o movimento Saúde Mais 10, em que se está juntando assinaturas para uma proposta de emenda constitucional, de iniciativa popular, estipulando a destinação de 10% da RCB federal para o SUS. Isso estava na proposta de regulamentação da Emenda n.º 29, mas não passou.

Mas o que signifi ca vincular 10% da Receita Corrente Bruta da União ao SUS? Em 2011, signifi caria um aporte do montante de R$102,9 bilhões. Signifi caria incremento de R$30,6 bilhões a mais no orçamento do Ministério da Saúde daquele ano.

Para fi nalizar, essa proposta de 10% da Receita Corrente Bruta federal para o SUS não seria a solução defi nitiva, mas, pelo menos, seria um bom começo para tentar resolver a crô-nica questão da insufi ciência de recursos do Sistema Único de Saúde. Obviamente, e aqui fi nalizo, temos que ter bem cla-ro que os problemas do SUS não se resumem à questão da insufi ciência de recursos fi nanceiros. Hoje estamos falando da demora do atendimento na rede pública. Para as pessoas con-seguirem fazer uma cirurgia de vesícula, elas entram na fi la e a demora chega a três anos. É inacreditável. Agora, o governo federal quer fazer um mutirão para reduzir esse tempo de es-pera. Se o SUS tivesse mais recursos, esses problemas se re-solveriam automaticamente? Creio que não. O problema não é só insufi ciência de recursos fi nanceiros, é também de gestão. É uma combinação das duas coisas – o SUS precisa de melhor gestão, mas precisa também de maior volume de recursos.

DR ADAIL DE ALMEIDA ROLLO (Diretor de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento – MS): De acordo com a Constituição Brasileira de 1988, 30% do orçamento da

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Seguridade Social seria destinado ao SUS como forma de fi -nanciamento, que signifi caria hoje em torno de R$ 141 bilhões. No entanto, isso não foi efetivado, e o orçamento destinado ao sistema público de saúde brasileiro, desde então, esteve muito aquém do esperado.

A Emenda Constitucional n.º 29, de 2000, trata sobre o fi nanciamento do SUS e defi ne regras de aplicação de ações e serviços públicos de saúde. Assim como a Lei Complementar n.º 141, de 13 de fevereiro de 2012, que veio delinear claramente o que é gasto em saúde, trazendo um dispositivo importante de fi scalização, controle e de regulação dos gastos em saúde.

De acordo com os resultados sobre a despesa executada em saúde pelo SUS nas esferas do governo desde 2009, os mu-nicípios contribuíram com 1,1% do PIB, enquanto os estados, com 1%, e a União, com 1,7%, resultando num gasto per capita público de 642 reais com as três esferas, cerca de 320 dólares, muito abaixo dos países que contam com sistemas universais de saúde.

No período de 2003 a 2011, as despesas empenhadas pe-las três esferas de governo no setor saúde mostraram aumen-to real dos gastos na esfera federal, executada pelo Ministério da Saúde, em torno de 66%. Já os estados tiveram gasto real maior que o Ministério, num total de 86%. Nos municípios, o aumento dos gastos foi 115%. Isso comprova a tese da impor-tância que os municípios vêm tendo no fi nanciamento do SUS. Como um todo, o aumento real das despesas de 2003 a 2011 do SUS foi em torno de 84%.

As despesas empenhadas pela esfera federal no setor saú-de, por unidade orçamentária, no período de 2003 a 2011,

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mostram que as fundações vinculadas ao Ministério da Saúde ti-veram o melhor desempenho nesse período. A Fundação Oswal-do Cruz teve uma variação de 226% (em milhões de reais), a Anvisa, 97% e a Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS) teve variação de 50%. Nessa trajetória, a Fiocruz tem mantido um papel muito grande na produção de medicamentos imunobiológicos, o que compõe um pilar importante de susten-tação a inovações no sistema de saúde.

Quanto às despesas – empenhadas no setor saúde em transferências pelo Fundo Nacional de Saúde (FNS) por bloco de fi nanciamento do SUS, composto atualmente de seis blocos que orientam a transferência federal para os estados e municípios –, a evolução do bloco da atenção básica no período de 2003 a 2011 aumentou de seis bilhões para 11,5 bilhões com variação real máxima de 88%. Com relação ao bloco de média e alta complexi-dade houve uma variação de 16,6 bilhões para 28,6 bi, represen-tando 72%. Já o bloco de fi nanciamento de vigilância em saúde teve uma variação real de 35% composto pelas ações coletivas. Com relação ao bloco de assistência farmacêutica o aumento foi 1,2 bilhão para 3,1 bilhões, o que representa aumento de 164%.

O valor do bloco de fi nanciamento de gestão do SUS, que era de 32 milhões em 2003, agora em 2012 é de 287 milhões, o que representa aumento de mais de 750%. É um valor bai-xo considerando-se a necessidade de melhora da qualidade da gestão. O bloco de investimentos e transferências voluntárias apresentou em 2003 o valor de 1,7 milhões e, em 2012, subiu para 2,6 milhões, representando aumento de 49% com uma fl utuação relacionada às emendas parlamentares.

No entanto, o investimento em fi nanciamento e em estru-turação ainda é muito baixo, comparado ao que se gasta, dada

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a necessidade de estruturação física e de equipamentos dos serviços de saúde no Brasil.

Os impactos da ocupação profi ssional em saúde por atividades

O segmento que mais emprega no setor saúde é a saúde pública, a qual engloba as atividades de saúde dos três en-tes federados, com aproximadamente 1.404.000 trabalhadores empregados. O segundo setor que mais emprega é a atividade relacionada ao comércio de produtos farmacêuticos, médicos, ortopédicos e odontológicos, que emprega em torno de mais de 750 mil trabalhadores. Portanto, o total de ocupações exis-tentes no comércio com produtos em saúde é maior do que os hospitais empregam, que é em torno de 250 mil.

É inegável a importância do setor saúde para a economia brasileira no que concerne à sua contribuição para produção de riqueza, emprego e postos de trabalho. As ocupações em saúde passaram de 4,4% do total de ocupações em 2007 para 4,5% em 2009. Em números absolutos, em torno de mais de 139 mil novos postos de trabalho foram criados pelas atividades de saú-de no período. Dessa forma, gastar em saúde produz trabalho, renda, desenvolvimento e inclusão social.

Distribuição de médicos e vagas de cursos de Medi-cina no Brasil

Há uma inequidade na distribuição de médicos e vagas dos cursos de Medicina nas regiões do Brasil. Na Região Norte, há em torno de 0.9 médico por mil habitantes, 1.09 no Nordeste, 2.4 no Sudeste, 1.7 no Centro-Oeste e 1.9 no Sul. Os países que têm sistemas universais, com acesso adequado – Espanha,

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Inglaterra, Canadá e os Estados Unidos –, em geral, apresen-tam índice de 2.7.

Outro aspecto a ser ressaltado é que há no Brasil a exis-tência de estados exportadores de médicos e estados recepto-res de médicos. Por exemplo, o Amazonas tem 3.530 médicos formados e 3.049 ativos. Assim, este é um estado exportador. O estado mais signifi cativo, porém, com função de exportador de médicos é o Pará, que tem formados 9.646 e ativos 5.580. O Rio de Janeiro também é um exportador de médicos com 72.271 médicos formados e em torno de 54.000 profi ssionais ativos. São Paulo já se comporta como um estado receptor de profi ssionais médicos com mais de 70.000 formados e mais de 100.000 médicos ativos no estado.

Com relação ao número de médicos em estabelecimentos de saúde por grupos de especialidades cerca de 135.680 traba-lham com atenção primária. Médicos que atuam nas especialida-des clínicas representam mais de 110.000. Nas especialidades cirúrgicas, mais de 103.000 e, na parte de medicina diagnóstica e terapêutica, mais de 43.000. Em outras especialidades, há mais de 20.000 profi ssionais.

Prioridades de projetos de pesquisa do Ministério da Saúde

É prioridade do Ministério da Saúde a implementação de quatro redes temáticas nas Regiões de Saúde que são: a aten-ção obstétrica e neonatal, que é a Rede Cegonha, que pos-sui recursos de cerca de nove bilhões para até 2014; a Rede de Urgência, que é uma grande prioridade, com o Samu, as UPAs, as grandes emergências, com recursos estimados na or-dem de dezenove bilhões até 2014; a Atenção Psicossocial no

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enfretamento do álcool, drogas e crack com uma previsão de 3.8 bilhões até 2014; e as condições crônicas como o câncer, doença cardiovascular, as endócrinas com recurso estimado de 7.5 bilhões até 2014.

A atenção básica tem um programa de qualifi cação, com a construção de quatro mil novas unidades, qualifi cação de quinze mil unidades, com uma gratifi cação por resultado, um programa de melhoria da qualidade e de acesso e tem recursos estimados na ordem de quarenta bilhões até 2014.

Do ponto de vista da agenda de pesquisa da Secretaria de Ciência e Tecnologia, do Ministério da Saúde (DECIT/SCTIE/MS), as prioridades de projetos de pesquisa e montante de re-cursos fi nanciados incluem temas centrais compostos de 24 subagendas. A Ciência e Tecnologia do Ministério iniciou o pro-jeto com um orçamento em torno de quarenta milhões em 2003 e atualmente está com orçamento anual por volta de trezentos milhões. Houve de fato uma progressão no orçamento de pes-quisa portanto. Dentre as prioridades de projeto de pesquisa estão a alimentação, a nutrição, a assistência farmacêutica e o complexo produtivo da saúde, que tem de ter maior recurso para diminuir a dependência da produção de insumos do Mi-nistério da Saúde. Há outras prioridades que fazem parte das subagendas, como doenças crônicas, doenças transmissíveis, doenças não transmissíveis.

Com relação às prioridades da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde (SGTES-MS), o orçamento executado em ações de formação em saúde apresentou grande crescimento do investimento em ações de apoio à graduação e à pós-graduação em áreas estratégicas para o SUS. Os estados e municípios têm aumentado o apoio à formação de nível superior,

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considerando-se o período de 2003 a 2011. Em 2003, não ha-via nenhum apoio à formação universitária. Hoje, existe uma agenda de bolsas, principalmente para as áreas de formação de médicos residentes.

Quem mais emprega os médicos atualmente são os mu-nicípios. O governo federal repassa os recursos. O estado tem empregado mais atenção especializada. No entanto, não tem sido fácil para os prefeitos conseguir a fi xação dos médicos em suas regiões.

Os gestores dos municípios utilizam então as seguintes es-tratégias para fi xação de médicos, como fornecimento de salá-rios mais altos, planos de cargos e carreira, auxílio transporte e alimentação, moradia, vínculo de trabalho, carteira assinada, boas condições de trabalho, fl exibilização da jornada de traba-lho, processos de capacitação e oferecer oportunidade de tra-balho para o cônjuge.

Outra estratégia de fi xação de médicos nos municípios, rea-lizada pelo Ministério da Saúde, é o Telessaúde, que contempla o portal da medicina baseada em evidência, e a criação dos núcle-os de Telessaúde. Atualmente há cerca de mil e oitocentos mu-nicípios com pontos de Telessaúde, com uma sistemática de ma-nutenção da teleconsultoria para a segunda opinião formativa.

Prioridades da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES/MS)

Dentre as prioridades da SGTES do MS, estão a ampliação de vagas para residência médica em locais que dispõem de rede de serviços próximas a áreas de difícil provimento; o Programa Nacional de Apoio à Formação de Médicos Especialistas em Áreas

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Estratégicas – a Pró-Residência; e o fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior – FIES.

O Ministério, por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, tem procurado ampliar a formação médica em áreas carentes. Há ainda o programa de qualifi cação dos residentes, de receptores de residência, para formar novos profi ssionais. Portanto, há um mapeamento das regiões e áre-as prioritárias. As especialidades que estão sendo priorizadas no programa de bolsas fornecido pelo Ministério da Saúde são: medicina de família, clínica médica, pediatria, cirurgia geral, gi-necologia e obstetrícia, anestesia, traumato-ortopedia, neona-tologia, psiquiatria, medicina intensiva em função da rede de emergência, medicina de urgência, geriatria, câncer, oncologia, medicina intensiva pediátrica, outros, défi cit muito grande que temos no SUS, cirurgiões do trauma, neurologia, neurocirurgia, cancerologia cirúrgica. O maior percentual é para os médicos de família.

DEBATEDOR

DR JURANDI FRUTUOSO (Secretário Executivo do Con-selho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Médico, ex--Secretário de Estado da Saúde do Ceará): O mundo se debate em busca de soluções para os problemas dos sistemas de saúde e discute como ofertar à população um sistema que possa ir ao encontro do anseio da população e cumpra os preceitos consti-tucionais. No Brasil, não é diferente. Uma das principais causas da anormalidade no setor é incoerência entre o modelo assis-tencial vigente e o perfi l epidemiológico.

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O Brasil, em especial, tem um modelo de saúde voltado às condições agudas, quando mais de 70% da nossa carga de doença são de pacientes crônicos. Essa incoerência agrava a situação sanitária brasileira.

Nas décadas 60 e 70, o papel das intervenções médico--sanitárias na determinação do estado de saúde esteve sem-pre presente, e Thomas McKeown, epidemiologista britânico, afi rmou que foi a mudança no padrão nutricional o que mais contribui para a redução da mortalidade entre os anos 1730 e 1840; entre 1840 e 1935, as medidas ambientais, em particular a oferta de água tratada e esgoto e, só depois do início da Se-gunda Grande Guerra, é que as intervenções médicas causaram impacto signifi cativo.

Como vemos, o Brasil tem menos de 50% de cobertura de saneamento básico e ainda convive com o problema de desnu-trição, acumulando também taxas de obesidade crescente e, além disso, predominam doenças infectocontagiosas como o dengue, por exemplo. Este é, portanto, o nosso desafi o: supe-rar a condição epidemiológica vigente num ambiente de deter-minantes sociais desfavoráveis dentro de um modelo assisten-cial com prioridade invertida.

A outra preocupação é com o dilema do subfi nanciamento crônico embotado pelo discurso da má gestão dos serviços de saúde. Afi nal, é má gestão ou subfi nanciamento? A imprensa e a sociedade, principalmente aquele segmento o qual acha que não usa o SUS, apontam a má gestão como causa única do mau desempenho do SUS. Particularmente, atribuo o mesmo peso aos dois, mas afi rmo que, com o atual fi nanciamento, não há espaço para qualifi car a gestão.

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A Constituição de 1988 é generosa quando declara que a saúde é universal, equânime e gratuita – “um direito do povo e dever do Estado”. Todavia, o correspondente fi nanceiro para que ela se efetive não foi garantido, e o dilema instalou-se: saúde para todos, a qualquer preço e a qualquer hora, mas em ambiente de escassez fi nanceira. Impossível! É essa a crise do modelo institucional que a sociedade tem que resolver. Que tipo de saúde nós queremos e quanto estamos dispostos a pagar por ela.

O que não pode e não deve continuar é a inversão de priori-dades quando a Constituição garante saúde universal e gratuita e para cada cem reais gastos com saúde no Brasil apenas qua-renta reais serem recursos público, com o agravante de 60% do gasto privado ser do bolso do cidadão. E mais: do gasto público apenas pouco além de 40% são recursos da União, que passou a se retrair depois da criação da Emenda Constitucional n.º 29, que obrigou estados e municípios a aplicarem 12% e 15% do seu orçamento em saúde. Hoje, 100% dos municípios brasilei-ros gastam acima do mínimo constitucional e quase a totalidade dos estados também. Se continuar a regressão proporcional dos gastos da união, o SUS chegará rapidamente ao “ponto de não retorno” em que sua inviabilidade será posta. O governo federal tem que fazer sua opção pela proteção do sistema de saúde, e a sociedade pode obrigá-lo a isso, embora assim não proceda.

O SUS vive nova fase de normatização quando o Decreto 7.508/2011 fi nalmente regulamentou a Lei 8.080/1990 e a Lei 141/2012 fi nalmente regulamentou a Emenda Constitucional n.º 29. Caminha célere no Congresso Nacional a aprovação a Lei de Responsabilidade Sanitária, que penaliza os gestores pelo não cumprimento das ações programadas. O Decreto n.º 7.508

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dá nova governança ao sistema de saúde e muda radicalmente a relação entre os gestores e destes com o Ministério Público, fortalecendo a responsabilidade dos agentes públicos. O grave, além das condições sanitárias da população, é o grau de exi-gência feito ao gestor num cenário de escassez de condições fi nanceiras para cumpri-la.

As questões do subfi nanciamento nos levaram a criar em 2012 o Movimento Saúde Mais 10 na tentativa de coletar 1,5 milhão de assinaturas para entrar com Projeto de Lei de Inicia-tiva Popular que obrigue a União a comprometer 10% das Re-ceitas Correntes Brutas com a setorial saúde no seu orçamento anual. Estados e municípios juntos gastam mais com a área da saúde do que a União, quando a lógica inversa seria o normal.

Quanto à formação de recursos humanos para a saúde, o Ministério da Saúde e as demais esferas governamentais têm procurado desempenhar suas obrigações constitucionais, embo-ra muito mais devesse ser feito, visto como o que se observa é a formação ocorrendo sem que se busque adequar os currícu-los escolares às necessidades do sistema da saúde. A formação médica, por exemplo, está desfocada da necessidade sanitária brasileira e precisa ser ajustada. Na residência médica, ocorre o mesmo problema já que estamos formando especialistas de acordo com as representações das entidades médicas e não pela necessidade do SUS. A formação inadequada e o subfi nancia-mento comprometem a estrutura e o funcionamento, o que com-promete a qualidade da medicina praticada no Brasil. Isso é fato!

A expansão de cobertura da Atenção Primária com mais de trinta mil equipes de Saúde da Família e mais de vinte mil equi-pes de saúde bucal, o crescimento do número de transplantes, o que torna o Brasil o segundo país transplantador, com mais de

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90%, sendo, no serviço público, a força do Programa Nacional de Imunização, a criação e a cobertura ampliada do Samu, o avanço na psiquiatria com a criação dos CAPS (Centro de Apoio Psicossocial), o Programa de Aids, dentre outros têm dado des-taque internacional ao Brasil.

Infelizmente o desafi o da porta de entrada nas emergências brasileiras, mesmo com a criação das UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), deixa a desejar e deslustra os demais avanços. Para mim está claro que o sistema foi bem concebido e está sendo executado com razoabilidade, mas precisa de mais apoio do Governo Federal, que precisa defi nir se saúde é ou não é prioridade porque para ser tem que estar no orçamento, além do discurso. Os resultados obtidos até aqui estão por conta do es-mero, da vontade, da competência e do esforço de profi ssionais e de gestores da saúde que não medem esforços para manter o sistema funcionando. A crítica procede, mas a dose é excessiva.

Lembro-me da década de 1970, no século passado, quan-do a mídia massacrou a classe médica, batizando-a de a “máfi a de branco” para criar as condições para a entrada dos planos de saúde. Nos anos 2000, trucidou o SUS para fortalecê-los e agora destrói os próprios planos para facilitar a aquisição destes pelos grandes grupos internacionais que, não tendo mais espa-ço para crescimento na Europa e nos Estados Unidos, se expan-dem para a Ásia e América do Sul. Nada é por acaso. Acabaram de comprar a Amil.

Como propostas, sugiro: 1) que o governo assuma a saúde como prioridade. Para mim, prioridade é quando está no orça-mento, só no discurso não vale; 2) a sociedade – que faz apro-priação indébita do SUS, usa-o, mas não o defende – tem que estar atenta e colaborativa; 3) os prestadores e trabalhadores

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têm que ser mais responsáveis e solidários com a gestão do sis-tema. No serviço público, o gestor apenas paga a conta, e quem preenche o cheque é o profi ssional de saúde. Há desperdício no Brasil! 4) a gestão deve ser fortalecida e profi ssionalizada. Os desafi os postos e as exigências não dão lugar para amadores ou protegidos políticos.

Finalizo dizendo que somos responsáveis pela manutenção de um sistema de saúde que cumpra os preceitos constitucio-nais e garanta ao povo brasileiro saúde com qualidade, no lugar certo e no tempo certo. Um bom sistema de saúde é fundamen-tal para o equilíbrio social do País e para a garantia do direito inalienável – o direito à vida.

PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO

Dr Rui Nogueira: Boa noite a todos. Minha formação é em policlínica, mas trabalhei durante quase toda a minha vida pro-fi ssional como médico de família, inclusive desenvolvendo um projeto sobre Medicina Comunitária por mais de 25 anos.

Precisamos defi nir qual é a doutrina de saúde do Brasil. Não temos a defi nição. O SUS está sendo consumido pelas bei-radas. O SUS não é iniciativa de nenhum governo, de nenhum partido político – é iniciativa popular. Foram sindicatos e as-sociações que pugnaram durante muitos anos pela assistência médica universal. Isso porque saúde é um bem fundamental, é um bem essencial e tem que ser universal.

Há famílias que acompanho há mais de vinte anos. Mas o que ocorre hoje? Hoje, o médico se forma e não é preparado para a saúde pública. Ele está cada vez mais vitimado pelas

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propagandas dos meios de comunicação para ter sucesso, ter especialidade, mesmo que seja em algum lugar desconhecido do exterior.

Cerca de 80% dos concursos de hoje são para médico de família. Até porque politicamente interessa mais aos prefeitos ter médicos de família para ajudá-los nas propagandas políti-cas, visto como o proselitismo político religioso no Brasil é feito em causa da saúde. A avaliação fi ca centralizada em números de atendimentos e não em resolubilidade dos casos atendidos.

Quatro ou cinco faculdades têm currículo programático re-almente voltado à medicina de comunidade. Muitos profi ssio-nais estão fazendo concurso para médico de família enquanto não conseguem cursar uma residência médica.

Em medicina de família, o médico tem que atingir a quota de cinquenta doentes, porque há uma meta estabelecida pelo próprio Ministério da Saúde. Quando fui trabalhar nessa área, uma enfermeira me perguntou: “Posso fazer a agenda do se-nhor?”. Respondi, então: “Não, minha agenda faço eu”. Não abro mão da agenda, porque vou examinar o doente, vou fazer o diagnóstico, vou acompanhar o paciente e pretendo acompa-nhá-lo pelo resto da minha vida. Então, não se podem progra-mar as consultas e abandonar o atendimento imediato também da mãe, cujo fi lho está com febre, por exemplo. É um absurdo ela atravessar a cidade inteira para ter um atendimento.

A mentalidade do atendedor de doentes é fazer estatística para acolher proselitismos políticos. Há metas em vacinação, metas em atendimento, metas de um amontoado de exames e uma série de protocolos de coisas que nem se imagina.

Hoje o ambiente está segmentado, e cada um segmenta o atendimento do doente. Não há saúde global. Em saúde da

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família, existem diabéticos, hipertensos – todos com rótulo. Os doentes estão tomando duas, três, quatro vezes mais remédios do que precisam. O agente de saúde foi transformado em esta-feta de entregar remédio para agradar o prefeito.

Vi e tenho documentado e testemunhado com os meus pró-prios olhos que numa campanha de vacina, o paciente entra em fi la para ser vacinado, e o agente comunitário muito benévolo e bem intencionado com a saúde da população o atende, verifi ca seu cartão e diz: “Seu menino vai ser vacinado contra menin-gite, contra febre amarela e contra poliomielite”. Então, à mesa em frente, se posta um auxiliar e toma-se nota na papeleta para fazer estatística das vacinas. Passa-se para outra pessoa que toma nota da rotina das vacinas. Então, há anotação dupla para atingir metas. Tanto isso é verdade que, ao olhar as es-tatísticas, há municípios e locais que atingem metas de 120%, 130% de vacinações realizadas.

Para encerrar, em geral as faculdades de medicina têm um hospital de clínicas. Mas nenhuma faculdade de medicina tem uma comunidade de estudos. Como fazer residência médica, ser médico de família e de comunidade se ele quase nada sabe sobre o que se passa na comunidade, se ele não tem um local para que possa acompanhar realmente o efeito da atuação e os resultados das medicações realizadas? Assim, é impossível. En-tão, ele se torna mero atendedor de doentes e vai satisfazer a todo o esquemão político do sistema médico fi nanceiro fazendo barbaridades.

Dr Marcelo Iglesias: Eu trabalho nas três pontas: sou médico do SUS em Brasília, trabalho no hospital privado Santa

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Úrsula toda semana e sou auditor médico do Ministério Público, concursado, efetivo de carreira há quinze anos.

O sistema brasileiro não se compara a lugar nenhum no mundo, em que os médicos que operam no serviço público são os mesmos que fazem exames na iniciativa privada, são os mes-mos que auditam e atendem os pacientes nos dois lados. Está um caos e não sei para onde o caos vai nos levar.

O que tenho visto hoje? O médico do serviço público, com péssimos recursos e salários, com enganação nos plantões, en-ganação no ambulatório, atendimento de péssima resolubilida-de. Basta passar em qualquer pronto-socorro hoje à noite e tentar resolver qualquer caso, simples que seja.

Resolução hoje no serviço público é para acidentado, trau-matizado, parto, cesárea, situações agudas. Qualquer outra in-vestigação diagnóstica, exame patológico, cirurgia eletiva – não funciona. Sabe-se que 97% dos exames de ambulatório são de resultados normais. As pessoas pedem exames complementa-res para ver o que dá. Não existem mais hipóteses de diagnós-tico, exames clínicos. É somente pedir exames e indicar proce-dimento cirúrgico, pois é o que traz dinheiro, principalmente na área privada.

Como auditor médico do Ministério Público, analiso o plano de autogestão, sem fi ns lucrativos, dos servidores, em que o governo cobre parte dos custos. A maior prova da falência do sistema é o servidor público não procurar o serviço público de saúde – ele usa convênios. Como auditor, pago quatro a cinco vezes mais caro material ortopédico, de oito a dez vezes mais caro em relação a suplementos de nutrição enteral, pago taxas e custos hospitalares superfaturados todos os dias.

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As tabelas são elaboradas pelos fabricantes de remédios e fabricantes de próteses. Outro dia, em quatro telefonemas, re-duzi a conta do material utilizado numa cirurgia aqui em Brasí-lia, de 170 mil reais para 100 mil, quando afi rmei que iria entrar com uma auditoria contra hospital. Alguém, então, deixou de comprar um carro zero.

Então, o fi nanciamento está ruim, mas o dinheiro vai para o ralo da corrupção, em todos os níveis, inclusive da categoria médica, que está se vendendo em todos os níveis – comissão para material cirúrgico, comissão para indicar exame, comissão para fazer negociatas.

Sou novo, tenho 42 anos, me formei na USP, em Ribeirão Preto, que dispunha de uma comunidade de atendimento em que se fazia medicina de família.

Brasília é a prova do que não funciona. Temos quatro médi-cos para cada mil habitantes no Distrito Federal, quase o maior número proporcional do Brasil.

O sistema público aqui está falido, o sistema privado está corrompido. Hoje várias pessoas que conheço estão abando-nando cursos de Direito e de outras áreas para fazer Medicina em faculdade privada, pagando mensalidade para depois dar plantão e tirar facilmente dez ou quinze mil reais em regimes de plantão. Que vocação essas pessoas têm para medicina?

Sou comandado por chefes de hospital que não sabem nada de recursos humanos nem administrar hospital. São diretores de hospital, gerentes regionais que estão, por indicação política, dentro do sistema. Podem colocar dinheiro nesse sistema que não vai melhorar.

Independentemente do número de médicos, não adianta fa-zer revalidação de diplomas de médicos estrangeiros. O médico

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formado na Bolívia, por exemplo, virá para o Brasil trabalhar em São Paulo, Brasília e Rio. Ele irá para os grandes centros.

Não adianta abrir milhares de vagas para as escolas priva-das de Medicina. Todas vão formar, em grande parte, dermato-logistas, cirurgiões plásticos, endocrinologistas, áreas que dão dinheiro. Quase ninguém fala em medicina da família. Ninguém quer cuidar de pessoas. Ninguém quer fazer saúde preventiva.

Se não houver interferência de um Estado forte para regu-lar a formação de médico e seu trabalho no SUS, não se irá aca-bar com essa monstruosidade de médicos trabalhando em todos os sistemas ao mesmo tempo. O Estado deve assumir de forma determinada, disciplinada, de cima para baixo, numa política pú-blica de saúde que regulamente o mercado – ou essa selva, esse capitalismo que está no sistema de saúde vai inviabilizar qual-quer emenda, qualquer 10% a mais no orçamento, inclusive os planos privados de saúde que trabalham corretamente.

Acad. Dra Lucimar Cannon: Acho que tanto Dr Sérgio Piola quanto Dr Adail Rollo deram a base do que o Dr Jurandi Frutuoso falou, com muita propriedade sobre o que deveríamos fazer para salvar o SUS.

Trabalho na saúde pública desde que o SUS começou e, às vezes, eu me pergunto se queremos de fato fazer um SUS. O sistema sempre foi desfi nanciado. O SUS tem um erro na base, na sua raiz. É que, quando começamos a criar o SUS, ele foi cercado com tanta proteção que deixamos de compartilhar a boa nova com a sociedade e passou-se o tempo.

Os médicos que operam no sistema de saúde público ope-ram no sistema privado, encaminham doentes de um para outro

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e vice-versa. Sabemos disso há certo tempo. Isso é um defeito por não termos tempo de criar condições para que o médico tra-balhasse num só lugar. Se ele é um médico da saúde pública, que ele se comporte como tal. Mas desfi nanciado isso é impossível.

Do mesmo jeito que se faz propaganda para algumas coisas de governo, nós temos que fazer propaganda positiva do SUS e trazer a população para essa discussão, porque não há sombra de dúvidas que não existe nenhum outro sistema de saúde no mundo melhor que o sistema de saúde universal. A população não sabe disso. A população sofreu no bolso quando saiu da escola pública e teve que pagar a escola privada. Na hora em que o SUS terminar e tivermos que pagar todos os tratamentos de politraumatizados, de urgências, de transplantes – vai doer muito no bolso da população, do mesmo jeito que dói o estudo dos fi lhos. Nós estamos destruindo o sistema público de saúde da mesma forma que destruímos a escola pública. Acho que temos de continuar lutando, porque não podemos perder essa instituição valiosa.

Acad. Dr José Paranaguá: Eu só me animei a falar por-que vejo um tom muito pessimista. O SUS vai continuar, sabe por quê? Porque há muita gente vivendo à custa do SUS.

A medicina privada é um dos maiores negócios do mundo, não vai acabar e vai melhorar cada vez mais. Pode perguntar àquele Prêmio Nobel da Economia se ele se assustou com a cur-va do PIB da saúde nos Estados Unidos em 10%. Ele entendia do que estava falando – hoje está em 16%. Na época em que perguntaram se era estranho passar de 10%, ele disse: “Não. Vai aumentar mais”.

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O sistema de saúde aqui em Brasília cada dia tem um pré-dio mais bonito, consultórios, laboratórios. O problema é que estamos perpetuando a situação de desigualdade que já existia há muito tempo. E é no mundo inteiro, não é só aqui.

No começo do Iluminismo, época que todo mundo come-çou a inventar, virou dogma, pior que religião, que a ciência e a técnica iriam curar e salvar a humanidade. Trezentos anos dessa crença levou-nos a essa situação. De lá para cá, a dife-rença entre renda per capita do país mais pobre e o mais rico do mundo, na época de um para quatro, passou hoje de um para seiscentos. No século XX, de 1900 a 2000, essa diferença cresceu nos primeiros sessenta anos, muito menos do que nos últimos quarenta anos.

Não tenho uma visão catastrófi ca. Acho que vai haver mais dinheiro para o SUS. O dinheiro da saúde causa um pouco de inveja ao resto dos dirigentes da esplanada, porque acham que o Ministério da Saúde é o mais rico.

A medicina privada vai ser cada vez mais opulenta. O pro-blema não é pensar se o mundo vai se acabar desse jeito. O problema só é uma questão de justiça social, de desigualdade. Esse é o foco do problema.

Vivemos a dizer hoje que estamos reduzindo a desigualda-de do Brasil. O problema é o modelo. Nosso modelo de atenção à saúde é igualzinho ao modelo de formação de cidadania, de educação das pessoas, que é a educação em geral. Para todos é cada vez pior, não em termos absolutos. Vai-se dizer que o pobre, hoje, do interior do Piauí, que é a minha terra e eu pos-so falar do jeito que eu quiser, está pior hoje do que no tempo do meu avô? De jeito nenhum. A diferença entre meu avô, que era coronel e uma das pessoas mais ricas do interior naquele

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tempo, e a pessoa mais pobre que havia lá no município de Corrente, em 1940, era muito menor do que a diferença entre o prefeito e a pessoa mais pobre do município. A diferença é que está piorando.

Isso é intolerável, porque as pessoas não se conformam em estar um pouco melhor. Elas sempre veem a diferença do outro e aí vão para o crime, vender droga, se prostituir e tudo isso vai depois para o sistema de saúde.

Vejo que a crise do sistema de saúde é importante. Gostei muito da apresentação de todos. Agora, a discussão mais grave é qual política social nosso país está decidindo fazer.

Há hoje no Brasil cerca de três mil seguros de saúde. É um absurdo, já que deveria só haver uns cem. Então, existem 2.900 para ser fechados e comprados por empresas mais ca-pazes, porque é assim que funciona o sistema capitalista. E o Brasil é um país capitalista, não um país socialista. No sistema capitalista, o que vale é quem seja capaz de prestar melhor ser-viço, com melhor custo e benefício e produzir maior lucro.

Dou toda a razão ao que vocês dois disseram. Não estou tapando o sol com peneira e dizendo que está bom, mesmo ten-do esse número de seguros de saúde. Acho que se vai continuar vendendo seguro de saúde no Brasil e vai haver mais dinheiro para o SUS também.

Para concluir, acho que existe coisa que meu querido con-terrâneo do Ceará disse não ser verdade. É preciso decidir se é para haver sistema público no Brasil ou não, porque este que existe agora não é público. O sistema brasileiro é privado. Cer-ca de 80% das internações são no setor privado e a mesma proporção de exames complementares está no setor privado. Nosso sistema de saúde é privado.

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Acad. Dra Janice Lamas: Obrigada, doutores. Encerro a sessão plenária com o agradecimento da Academia de Medicina. A tendência da piora do SUS vejo também na área privada. A recente venda da Amil para a maior empresa norte-americana e multinacional de saúde norte-americana irá trazer para o setor privado de saúde grandes problemas, porque são grupos for-tes que estão vindo com isenção de impostos para seus equi-pamentos. Será sombria, daqui a alguns anos, a situação. Na verdade, defendo muito a iniciativa privada. Trabalhei tanto na pública quanto na iniciativa privada e penso que devemos se-parar o joio do trigo, porque há iniciativas que fazem pesquisa, que trabalham junto com universidades, que fomentam teses. A iniciativa privada é importante e ela tem que se tornar mais próxima das conquistas sociais.

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PALESTRA PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DE GESTÃO, TECNOLOGIA, INSUMOS E

RECURSOS HUMANOS NA SAÚDE(Sessão Plenária ocorrida em 13/11/2012)

INTRODUÇÃO

O Planejamento Estratégico de Gestão, Tecnologia, Insu-mos e Recursos Humanos na Saúde exige não apenas

administrar a situação atual em curto prazo, mas planejar o futuro com políticas no médio e longo prazo.

Na sessão plenária sobre Planejamento Estratégico de Gestão, Tecnologia, Insumos e Recursos Humanos na Saú-de, realizada em 13-11-2012, na Academia de Medicina de Brasília, o Secretário-Adjunto da Secretaria de Saúde do Dis-trito Federal, Dr Elias Fernando Miziara, fez uma explanação sobre a Saúde Pública no Distrito Federal para o período de 2012–2015, cujo planejamento assenta-se em três pilares: (1) atenção à saúde, com foco na qualidade de vida e promoção à saúde dos cidadãos; (2) qualifi cação da gestão e (3) melhora da infraestrutura e tecnologia, com ampliação do acesso aos serviços de saúde.

O Distrito Federal, por apresentar vantagens no sistema de saúde em relação ao Entorno, tem criado um fl uxo migratório

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que sobrecarrega o setor. Essa dinâmica demográfi ca, apoiada na oferta de moradias para famílias de baixa renda sem imóveis próprios, feita por governos anteriores, é atualmente reforçada pelo padrão de acumulação de capital em Brasília e a expansão do setor de serviços.

Promover a saúde implica, portanto, ampla abordagem dos setores e ações sobre os determinantes da saúde – sociais, eco-nômicos, políticos, culturais e ambientais. A maior parte das doenças é consequência das condições em que as pessoas nas-cem, vivem, trabalham e envelhecem. Assim, cabe aos gestores da saúde interagir com todos os setores da sociedade e dos ór-gãos governamentais para assegurar que as políticas e as ações de outros setores possam melhorar a área da saúde.

Há de se considerar que a gestão em saúde pública no DF faz parte de uma agenda ampla de atuação política que amplia a capacidade de agir dos agentes públicos na promoção da saú-de e do bem-estar. A coerência política como centro da questão, pode tornar a saúde um valor partilhado nos diferentes setores.

Em relação à qualifi cação de gestão, supõe-se efi ciência operacional da atuação do governo, ou seja, garantia de efi ci-ência com o melhor uso dos recursos disponíveis. A gestão de pessoas orientadas por competências poderá favorecer a im-plantação de políticas na saúde

É importante analisar a qualidade do gasto na moderniza-ção dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos.

O aumento da oferta de serviços com tecnologia de alto custo requer regulação para que a incorporação tecnológica e a expansão da rede sejam de acordo com as necessidades da atenção à saúde, atendendo aos princípios de universalidade e

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equidade e não sob pressão dos interesses do mercado, sem levar em conta o impacto na efi cácia.

A ação burocrática do Estado no setor saúde deve levar em conta as crescentes inovações da tecnologia de informação, com ênfase na efi ciência. A efi ciência dos gastos e a qualidade dos serviços prestados poderiam ser mais bem alcançados com a identifi cação dos usuários dos serviços de saúde, quer sejam públicos quer sejam privados. Entretanto, a capacidade de re-gular a porta de entrada dos usuários dos serviços públicos e privados de saúde implica envolver o Ministério da Saúde.

Acad. Dra Janice M. LamasPresidente da Academia de Medicina de Brasília

PALESTRANTES

DR ELIAS FERNANDO MIZIARA (Secretário – Adjunto da SES–DF). A Academia me honra com o convite para falar sobre o planejamento estratégico de gestão na Secretaria de Saúde do DF. Abordarei a Análise Situacional da Saúde e o Pla-nejamento 2012–2015. Aproveito esta sessão para informar que o Conselho de Saúde do Distrito Federal aprovou, hoje, o planejamento de todo programa que foi elaborado para os pró-ximos quatro anos.

Temos em nosso território 31 regiões administrativas, numa dimensão de, quase, 7.800 quilômetros quadrados com uma população, segundo o Censo 2010, em torno de 2.570.000 (dois milhões quinhentos e setenta mil). O crescimento populacional,

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nos últimos dez anos, foi 25,3%, o que representa 519 mil no-vos habitantes no Distrito Federal. Esse impacto não foi acom-panhado pelo necessário e obrigatório crescimento da máquina pública em todos os setores, especialmente na saúde.

O Distrito Federal tem o maior crescimento populacional da Região Centro-Oeste, a quarta unidade da Federação que mais cresceu e a terceira em percentagem de idosos, que representa uma população que demanda mais serviços de saúde. O gasto anual per capta com a saúde está entre os cinco maiores do Brasil, quase 750 reais per capta, sendo a média nacional trezentos reais.

O défi cit estimado de profi ssionais na área da saúde, está calculado em 13.330 e, na categoria médica, calcula-se que te-nhamos um défi cit de 3.684 profi ssionais no contrato de vinte horas. Teremos, até 2015, uma taxa de aposentadoria esperada em torno de 30% da massa, hoje, trabalhadora. Um proble-ma agravante a ser considerado é a morosidade dos processos administrativos. Muitos aqui dentre nós somos vítimas dessa morosidade, principalmente aqueles que tentam se aposentar e veem a quantidade de meses que se passam e não se con-segue aposentadoria. A morosidade também afeta seriamente a logística de aquisição e a distribuição de medicamentos, os insumos em geral, assim como a contratação de serviços de manutenção.

Existe uma fortíssima infl uência da região do Entorno, que tem 22 municípios e 1.250.000 habitantes, englobando-se Goi-ás e Minas Gerais. A população do Entorno equivale à metade da população do DF, o que demanda muito mais atenção do sis-tema público de saúde. Os valores percentuais de aplicação de recursos do governo nos serviços públicos de saúde em 2012, apontam o valor de 16%. Há expectativa de que se mantenha

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superior em 2013. A estimativa de necessidade de servidores, nessas diferentes situações, principalmente na atenção primá-ria, é de 3.213. Nas unidades de pronto atendimento, estima-mos a contratação de mais 3.290. Aguardamos aposentadorias de 3.193 até 2015. Como recomposição dos quadros, em média de 5% ao ano, há necessidade de mais 1.410. Considerando-se todos esses fatores, então, necessitamos, de fato, de 13.330 novos servidores para que a saúde possa, do ponto de vista do fator humano, dar assistência adequada à população. Tive-mos mais de seis mil nomeações até agora, neste governo, com 4.400 admitidos e 30% de desistências.

Convocar novos funcionários leva tempo. Há apelações e recursos. Os contratos temporários, tentando-se colocar novos servidores são sempre pressionados principalmente pelo Minis-tério Público, que a todo instante interpõe obstáculos, obrigando--nos a buscar mais e novas soluções. Há situações em que não se consegue, até mesmo pelas difi culdades da nossa legislação.

A estrutura da SES inclui dezesseis hospitais, sessenta e seis centros de saúde, quarenta e um postos de saúde, um Ins-tituto de Saúde Mental, uma policlínica, três unidades mistas, trinta unidades básicas de saúde, uma unidade conhecida como Centro de Orientação Médico-Psicopedagógica (COMPP), quatro unidades de pronto atendimento, sete de atenção psicossocial. Temos 4.097 leitos operacionais, 163 equipes do Programa Saú-de da Família, 1.561 consultórios em nível de ambulatórios, 395 leitos de UTI, dos quais 324 são do próprio sistema público de saúde, que representam 80% de leitos de UTI.

O DF já foi referência em transplante no passado. Depois fi camos, praticamente, sem realizar transplantes no Distrito Fe-deral. A partir do ano passado, retomamos as atividades com

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muito vigor. Fizemos, até agora, 326 transplantes, em 2011 e 2012, sendo 205 de córneas, 17 de coração. Hoje não temos paciente no Distrito Federal aguardando transplante de coração. Fizemos 88 de rim e 16 transplantes de fígado. Recente publica-ção do registro brasileiro de transplante, mostra que atingimos a meta de vinte doadores por milhão de habitantes, ultrapas-sando São Paulo. Estamos em terceiro lugar nacional, logo abai-xo do Ceará e Santa Catarina, que são os dois que lideram na questão dos transplantes. Iniciamos o cadastro de transplantes de medula no Distrito Federal.

Os três pilares do planejamento estratégico da gestão são: 1) a Atenção à Saúde, com foco no cidadão e nas necessidades de saúde, levando-se em consideração a qualidade de vida, 2) a qualifi cação da gestão, com o objetivo de aumentar a resolubili-dade e a efi ciência do Sistema Único de Saúde, e 3) a melhoria da infraestrutura e da tecnologia em saúde, com a ampliação do acesso aos serviços de saúde. O objetivo é garantir atendimen-to integral e humanizado à população do Distrito Federal.

Para a copa mundial de 2014, pela primeira vez, a FIFA aceitou que o sistema público de saúde seja responsável pela assistência à saúde dos estádios. Apenas em Brasília, a assis-tência no estádio será feita pela Secretaria de Saúde, quer di-zer, o SUS. Nas demais capitais do País, os sistemas privados é que serão contratados.

As principais estratégias da gestão é ampliar a cobertura do programa de saúde da família, promover a ampliação das redes temáticas: a rede cegonha, a rede de urgência e emer-gência do hospital, a saúde mental, a oncologia e a questão das pessoas com defi ciência, propiciando à população o acesso integral em todos os níveis de atenção. Pretendemos atuar nos

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fatores desencadeantes, considerando-se aspectos ambientais, aspectos genéticos, populacionais que determinam as causas de morbimortalidade da população.

O segundo eixo, aborda o aprimoramento dos processos de estabelecer ciclos de melhoria contínua no sistema de gestão, para aumentar a efi cácia e a capacidade de resolução do siste-ma. Para tal, ampliaremos a regulação do acesso para consultas especializadas e leitos em geral. Temos três áreas clínicas de consultas reguladas, todo o sistema de UTI, o sistema de trans-plantes.

Vejo aqui presentes alguns ex-secretários de saúde, os quais homenageio cada vez mais. Diretores de hospital pas-sam o tempo todo atendendo telefonemas de político pedindo leito para alguém. Com a regulação, isso não acabou, mas pelo menos temos como resposta: o paciente tem que entrar pela regulação.

Evidentemente, temos de inovar as práticas de gestão do trabalho e da educação. Temos que trazer situações novas, em funções de novas tecnologias, de novos conhecimentos que são agregados ao nosso dia a dia.

O terceiro eixo é a adequação da infraestrutura e tecno-logia em saúde. Pretendemos completar a informatização das unidades de saúde. Recebemos uma rede com baixa informa-tização, inclusive, com dois hospitais, praticamente, sem infor-matização: os de Planaltina e os de Taguatinga. Por outro lado, há uma pressão, tanto dos órgãos de fi scalização como da po-pulação, por novas tecnologias.

Em relação à Atenção à Saúde, ampliamos de 11% para 34% a cobertura da Estratégia da Saúde da Família. Nossa meta é atingir o número de quatrocentas equipes, assim como o

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programa Saúde na Escola, com atenção em 58 escolas. Pre-tendemos implantar vinte e uma equipes de Atenção Domiciliar. Conseguimos contratar o Home Care, com quarenta pacientes podendo ser atendidos. Temos dezessete equipes de atenção à saúde no sistema prisional, e a unidade móvel, a carreta da mulher, que já realizou mais de 21 mil exames. Registro que a qualidade da mamografi a na carreta é maravilhosa e é digital. Estamos levando a carreta para a população que não consegue vir até os nossos sistemas. A implantação da Rede Cegonha, já está implantada, com cadastramento de mais de 2.600 gestan-tes nos sistema pré-natal, no sistema web.

As campanhas preventivas de infl uenza sazonal, poliomie-lite e vacinação antirrábica, superam as metas nacionais. Em relação ao dengue, houve neste primeiro semestre, 582 casos, comparando-se com o ano passado, quando houve 1.611. A SES do Distrito Federal tinha um custo de milhões de reais por mês e por ano, em pagamentos de terapias intensivas, de leitos na rede privada. Houve uma total inversão disso. Muito importante observar a criação de 79 leitos de UTI neonatal; vinte de UTI e vinte de intermediária, trinta leitos destinados ao neurotrauma.

Aqueles que conhecem bem o Hospital de Base sabem que durante décadas o Hospital teve apenas os mesmos oito leitos de UTI de neurotrauma. A gestão de leitos permitiu a diminui-ção de permanência de internação de 6,7 dias para 4,8 dias. Com isso, houve rotatividade dos leitos. Ressalta-se também a ampliação para onze salas operacionais de centros cirúrgicos no Hospital de Base. No entanto, a rede elétrica instalada não suporta a carga dessas novas salas. Estamos em tratativas com a CEB para instalar uma subestação, tanto uma para o prédio do Pronto-Socorro, como uma para o prédio principal, porque

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a rede, hoje, existente, não suporta a quantidade de aparelhos que estão sendo instalados e utilizados.

Em 2012, houve aumento do número de leitos de UTI pú-blicos: 352 leitos, e diminuiu os privados: 75 leitos. O total subiu para 437 leitos de terapia intensiva. Ainda assim, nunca temos menos de cinquenta pacientes na fi la de espera por te-rapia intensiva. Então, a demanda por esse tipo de leito está cada vez maior, o que é fruto, também, não só do crescimento da população, como da vinda de pacientes muito graves para o Distrito Federal. Ampliamos as consultas pelo mecanismo de regulação com aumento de 58% do volume de procedimentos ambulatoriais.

A central de compras foi criada em agosto do ano passado e, hoje, voltamos a ter nossa própria central de compras, que realiza a aquisição de todos os produtos. Temos 28 equipes ins-critas no programa de melhorias do acesso e da qualidade. Prin-cipalmente buscando o Quali Sus para RIDE e a Rede Cegonha.

Fortalecemos a Classifi cação de Risco, fazendo que aqueles classifi cados de verde e azul, que são tipicamente pacientes am-bulatoriais, não fi cassem nos prontos-socorros. Todos sabemos que 70% a 85% das pessoas que estão nas fi las de prontos--socorros não demandam o serviço de urgência. A Classifi cação de Risco que implantamos nas regionais pretende garantir que esses pacientes classifi cados como verdes e azuis tenham aten-dimento garantido em centros de saúde, em geral, próximos aos hospitais.

A revisão dos planos de carreira, cargo e remuneração es-tão em andamento e deve sair ainda esse ano. Estamos implan-tando o ponto eletrônico para aumentar a efetividade e diminuir as horas extras. Em relação à tecnologia, adquirimos o nosso

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próprio DataCenter e foi elaborado um novo Plano Diretor de Tecnologia da Informação com implantação do projeto SIS – Prontuário Eletrônico. Em relação aos centros de saúde, dezes-sete foram concluídos, quatro estão em obras e 37 em processo de reforma. As reformas também ocorrem em todos os hos-pitais da rede, num total de quinze. Há projeto de onze clíni-cas de Saúde da Família, seis já construídas e cinco iniciadas. Uma nova sede do SAMU foi inaugurada no setor de indústria, além das quatro unidades de Pronto Atendimento: Samambaia, Núcleo Bandeirante, Recanto e São Sebastião. Um novo Bloco Materno Infantil foi recentemente inaugurado em Sobradinho e está por terminar o bloco de Internação do Hospital de Base. A Unidade de Terapia Intensiva do Gama, também foi ampliada e reformada. A Central de Material Esterilizado do Hospital de Base, por não estar reformada, foi causa de descredenciamen-to no passado, como hospital de transplante. Os transplantes feitos lá, nos anos anteriores, não foram sequer cobrados pelo Ministério da Saúde e nem computados, porque o Hospital não era autorizado a realizar esses transplantes. O bloco de Neuro-trauma do Hospital de Base será ampliado para 120 leitos de UTI. A construção do Banco de Leite de Planaltina, o Centro de Oncologia de Taguatinga são projetos em andamento. O Centro de Diabetes em Taguatinga terá estrutura física para um pro-grama que tem repercussão internacional, que tem à frente a doutora Ermelinda Pedrosa.

Estamos assumindo o Hospital Cauí, no Bandeirantes, um es-queleto abandonado que será reformado para ser um hospital de referência para leitos de retaguarda. A implantação da Central de laudos em radiodiagnósticos e a futura aquisição de três aparelhos de ressonância magnética, um de hemodinâmica, um tomógrafo computadorizado e um Pet Scan são projetos prioritários.

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As Unidades da Família, para mim, são as coisas mais en-cantadoras que temos, pela beleza e pelo quanto se aproxima da população. As UPAS já contam com 120 mil atendimentos, desde fevereiro de 2011, quando foi inaugurada a primeira, com a média de 450 atendimentos por unidade, por dia. Estamos com processo de licitação para adquirir mais doze carretas, por-que o benefício trazido e a repercussão junto à população, que tem buscado exames preventivos, são enormes. Temos trinta e uma ambulâncias ativadas com contratações de motoristas e quatorze motoambulâncias.

Para concluir, ressalto a nossa visão: ter um sistema que a população conheça, preze e confi e, sendo excelência e refe-rência na atenção integral à saúde, apresentando os melhores indicadores de saúde do País. Queria eu que fossem escritos para o mundo, mas resolveram que eu não poderia ser tão me-galomaníaco. Muito obrigado.

DR JAILSON CORREA (Diretor do Departamento de Ciên-cia e Tecnologia do Ministério da Saúde): No Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, temos, de um lado, o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, representado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, as agências de fomento à pesquisa, CNPq, Finep, o Ministério da Educação com a Capes, as agências de fomento à pós-graduação e, do outro lado, o sistema universal de saúde, de fato, demandante, do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia. No meio, a saúde como um caminho para o desenvolvimento.

A tecnologia constitui um instrumento do desenvolvimento da economia social. Temos o privilégio, de estar numa Secretaria

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liderada por Dr Carlos Gadelha um dos acadêmicos que impul-sionou o conceito de complexo industrial da saúde, hoje Secre-tário e gestor desse projeto, fortemente apoiado e incentivado pela agenda que o próprio Ministro Alexandre Padilha assumiu para sí como meta de governo. A saúde tem grande importância hoje, no ambiente nacional, que se traduz pelo desenvolvimen-to. O fato de isso ocorrer, com a liderança do Ministério da Saú-de, é algo inédito e de poucos precedentes no mundo inteiro.

Num debate sobre sistemas universais de saúde e o papel da ciência e da tecnologia, que ocorreu recentemente em Beijin na China, o Brasil, de fato, teve algo de novo para dizer nesse aspecto. Foi o único país, entre aqueles com mais de cem mi-lhões de habitantes, que hoje tem um sistema de saúde univer-sal para seus cidadãos.

Em relação à tecnologia e aos insumos estratégicos, sa-bemos que a produção de conhecimentos nem sempre conver-sa com a prestação de serviços em saúde. Muitas vezes, as agendas parecem pertencer a universos diferentes. No entanto, basta um gestor em saúde conversar com um pesquisador que as coisas começam a se aproximar um pouco mais. Mas nem sempre esse diálogo é uma realidade.

Por outro lado, os serviços de saúde dialogam com a ques-tão do complexo industrial, que é o complexo produtivo da saú-de, como aquele que envolve o desenvolvimento e a produção de vacinas. Talvez esse seja um dos exemplos mais emblemáti-cos de como isso funciona no Brasil, e é modelo para o mundo. Hoje, o Brasil tem um dos melhores e mais abrangentes siste-mas ou programas de imunização do mundo, e mais de 90% dessas vacinas são produzidas no País, com instrumentos de transferência tecnológica e instrumentos de desenvolvimento

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nacional. Há necessidade do diálogo entre as instituições cien-tífi cas e tecnológicas para haver mais difusão e incorporação dessa tecnologia ao serviço de saúde.

Sou médico de formação, mas trabalho como economista, e creio que esses dados econômicos gerais, macroeconômicos, parecem ilustrar de forma importante a questão da cadeia de valores da saúde no País, saúde como promotora da cidadania, mas também como promotora de investimentos, inovação, em-prego e renda.

Muitas vezes, os representantes do Banco Mundial e re-presentantes de várias indústrias ou de vários organismos in-ternacionais pretendem frear o custo da saúde a todo preço. Enquanto o Brasil dá um drible nessa lógica, mostra que investir em saúde e agregar tecnologia às práticas do sistema univer-sal de saúde, na verdade, ajuda a produzir riqueza, emprego e renda no País.

A área da saúde representa quase 10% do nosso PIB, mais precisamente 8,8% do Produto Interno Bruto, e emprega um em cada dez brasileiros. Os gastos superam cem bilhões de dólares por ano, juntando-se o gasto das famílias com os planos de saú-de e os gastos privados, bem como o gasto público contido no orçamento do Ministério da Saúde. É uma signifi cativa fonte de receitas e um importante alvo de pesquisa e de desenvolvimento.

O crescimento populacional do País, a transição demográfi -ca com o envelhecimento populacional, o progressivo aumento de renda, que causa maior percepção de cidadania e maior co-brança por mais direitos e, ainda, os avanços tecnológicos na área de saúde têm contribuído para o aumento da demanda e do consumo e, de forma importante, do aumento da balança comercial no setor saúde.

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A diferença entre o que o Brasil exporta, em termos de produtos e insumos de saúde, e o que o Brasil importa, está bei-rando, em 2011, cerca de onze bilhões de dólares. Isso equivale à toda produção agropecuária do Estado de Mato Grosso, que é produto de exportação do Brasil.

Como o Ministério da Saúde, então, lida com essa ques-tão do insumo estratégico? Priorizando políticas e investimentos voltados para pesquisa e inovação em saúde, para o desenvol-vimento produtivo e tecnológico, portanto, diminuindo a depen-dência tecnológica que temos de países mais ricos.

Torna-se importante a avaliação e a incorporação de tecno-logias, para entender aquilo que vale a pena incorporar, e aquilo que vale a pena desincorporar, como as práticas que não têm efi ciência, mas que continuadamente são usadas no sistema e precisam deixar de ser usadas. Além disso, é importante ter como foco assistência, prevenção e promoção à saúde, tendo como carro-chefe o programa de assistência farmacêutica.

Muito boa notícia ter, no Distrito Federal, remontada a cen-tral de compras, porque é o poderio de compra do estado que faz a negociação de preços poder ser bastante vantajosa para o sistema de saúde do governo brasileiro. As cifras e os cálculos sobre as economias que se fazem a partir da compra centrali-zada pelo Ministério da Saúde são da ordem de bilhões de reais cada ano. Tudo isso é focado com quase obsessão, nas palavras do Ministro Alexandre Padilha, para o qual, um dos principais problemas do sistema único de saúde brasileiro é o acesso da população a esse sistema.

Uma vez vencida a primeira barreira, dentro do sistema inclusive, o grau de satisfação dos nossos usuários costuma ser relativamente bom, dadas as devidas difi culdades. Na área da

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Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, há quatro grandes pólos de atuação, a sa-ber, o pólo da Pesquisa e do Desenvolvimento, área que dirijo atualmente; o pólo da produção e inovação, que lida direta-mente com a indústria brasileira de capital nacional e mesmo a indústria de capital internacional, que tem feito algum esforço de desenvolvimento no País; o Departamento de Gestão e In-corporação de Tecnologias em Saúde – DGITS, representado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias – Coni-tec, que avalia a incorporação e a desincorporação de insumos, medicamentos, tratamentos e abordagens terapêuticas e pro-cedimentos.

Foi feito um esforço muito grande de alinhamento da políti-ca nacional da saúde, pactuado no Conselho Nacional de Saúde, no Plano Nacional de Saúde, com a Política Nacional de Ciência e da Tecnologia e Inovação para a Saúde. Foram ouvidos, tam-bém, os atores do controle social, assim como os da gestão dos representantes do governo nesse processo, além da Academia. A ideia é transformar esse conhecimento em riqueza social e substituir a ação fragmentada de atuação por uma articulação com os dezesseis objetivos estratégicos do Plano Nacional de Saúde, apresentados na gestão Alexandre Padilha.

Os grandes objetivos estratégicos vêm desde a garantia do acesso de qualidade, em tempo adequado, às necessidades de saúde dos cidadãos, aprimorando a política de atenção básica e atenção especializada num grande guarda-chuva, com a pa-lavra-chave – acesso. São prioridades a promoção da atenção integral à saúde da mulher e da criança e à Rede Cegonha; a questão da rede urgência-emergência; a saúde mental e a de-pendência de drogas, álcool e crack; a atenção integral à saúde

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da pessoa idosa. O Brasil terá participação num consórcio inter-nacional de estudos sobre saúde da pessoa idosa, que é algo de grande relevância, um estudo longitudinal da saúde do idoso, que começará em 2013, em que o Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit-MS) será o fi nanciador desse estudo. Na maioria dos outros países, o fi nanciamento é externo. No Brasil, assumimos a responsabilidade sobre esse estudo. Então, aqui também se apresenta a saúde indígena. Aqui, há a questão da formação, alocação, qualifi cação nas relações de trabalho dos profi ssionais e trabalhadores da saúde. Vejo que são objetivos amplos.

Há a questão da assistência farmacêutica. Vou me deter um pouco neste segundo item. É preciso fortalecer o complexo produtivo de ciência, tecnologia e inovação em saúde como ve-tor estruturante da agenda nacional de desenvolvimento econô-mico e social sustentável, reduzindo a vulnerabilidade do aces-so à saúde.

Faço um paralelo ao lembrar em relação aos Estados Unidos que parte da economia norte-americana depende da indústria bélica, a indústria da defesa, desde aquelas que fazem inovação e que produzem os uniformes dos soldados, até as de alta tec-nologia de aviões não tripulados. Tudo isso conduz a uma gran-de atividade econômica apoiada no poder de compra do Estado. Isso, muitas vezes, chega ao debate político, à divisão histórica entre republicanos e democratas, mas, no fi m, todos investem demasiadamente na defesa como parte da estratégia.

Apliquemos esse mesmo raciocínio – a insumos para a saú-de em vez de balas, comprimidos em lugar de navios, tomógra-fos e aparelhos de radioterapia em lugar de tanques de guerra. Esse é um programa nacional recém-lançado e absolutamente

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fantástico, porque vai conseguir capilarizar, diminuir as fi las para radioterapia no País, com a produção nacional de aparelhos de radioterapia. Além disso, há de se ressaltar a contribuição da saúde para a erradicação da extrema pobreza no País.

Então, são objetivos muito diversos, e as pesquisas, apoia-das, seguem a mesma lógica, tanto naquilo que o Ministério da Saúde apoia, como também todos os órgãos relacionados: An-visa, Agência Nacional de Saúde Suplementar, Hemobrás, Fio-cruz. As instituições de pesquisa são contempladas pelo Minis-tério da Saúde com projetos de pesquisa, quando se produzem dissertações, teses, doutorado, mestrado.

Mas, de forma muito importante, salientamos que não é sufi ciente falar de número de artigos brasileiros publicados ou número de patentes brasileiras. O Ministério da Saúde tem que ir além, tem que estar na saúde dos brasileiros. Assim, um novo produto para a saúde bucal tem que estar na boca dos brasilei-ros. Um novo produto para o tratamento de uma doença crônica da pele tem que estar na pele dos brasileiros.

Essa nossa quase obsessão pelo acesso deve nos guiar à atividade. Com esse objetivo temos vários programas e, en-tre eles, o programa com os parceiros estaduais. A Secretaria Estadual Distrital de Saúde, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal e a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Distrito Fe-deral contribuem para um projeto chamado PPSUS – Programa Pesquisas para o SUS, um programa de muito sucesso no País inteiro em que para cada real aplicado pelo Estado, pelo Distri-to Federal, de um a dois reais são aplicados pelo Ministério da Saúde, a depender da condição econômica daquele Estado. Para fazer pesquisas de relevância para o sistema de saúde local e ajudar, portanto, a pensar o sistema, a refl etir, a avaliar e con-tribuir para a sua melhoria.

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Muitos programas envolvem redes nacionais, ou seja, a Rede Nacional de Terapia Celular, a Rede Nacional de Avaliação de Tecnologias de Saúde, a Rebras. São 44 instituições mem-bros, inclusive aqui no Distrito Federal, cinco instituições nacio-nais gestoras e os Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Hos-pitais de Ensino, que ajudam, no próprio ambiente do hospital, a refl etir sobre insumo, sobre tecnologia daquele ambiente. A Rede Nacional de Pesquisa Clínica tem vários centros espalha-dos pelo País.

Entre 1990 e o ano 2010, a produção científi ca brasileira saiu de apenas 0.2% da produção mundial e aumentou para 1,8% proporcionalmente, quase dez vezes. Os estudos clínicos feitos aqui no País ainda são fortemente estudos de fase 3, em que muitos protocolos, elaborados por instituições no exterior, que trazem seus protocolos para arrolamento de pacientes bra-sileiros, compondo-se aí uma massa de dados internacionais que, aliás, são muito importantes para toda terapêutica que praticamos no dia a dia da nossa atividade médica.

Entretanto, a grande inovação, com potencial de trazer de-senvolvimento e recursos para o País, está nas fases mais pre-coces, quando moléculas de estudos brasileiros trabalham mais nessas fases, como em testes de agentes terapêuticos. Temos feito um grande esforço para desviar isso. O mundo inteiro pes-quisa quase de forma igual as fases 2, pesquisa de forma inicial com novas moléculas, por exemplo, enquanto nós nos concen-tramos muito na fase 3.

Destaco aqui o Elza, que é o estudo longitudinal do adul-to, principal estudo epidemiológico já fi nanciado com recursos brasileiros, que segue uma população de indivíduos de 35 a 74 anos de idade ao longo de vários anos. O Brasil, até pouco tempo

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atrás, não se arvorava em fazer esse tipo de estudo: estudo longitudinal de condições de vida e de bem-estar da população idosa. Nós também apoiamos pesquisas que nos ajudam a en-tender os vazios assistenciais que o Brasil tem, e que formulem a alocação e a fi xação de recursos humanos para a saúde, in-clusive, médicos e, de forma muito especial, algumas especia-lidades médicas. Estudos que possam nos ajudar a entender quais opções estruturantes ou políticas podem superar essas difi culdades. No leque, incluo pesquisa clínica, estudos da saúde da mulher e da criança.

Tenho muito orgulho de ter contribuído para uma iniciativa a ser lançada nas próximas semanas, com o apoio da Fundação Bill & Melinda Gates, para atacar o problema da prematuridade na saúde da mulher e da criança.

Em relação à pesquisa clínica, à Rede Nacional de Pesquisa e Doenças Negligenciadas, o edital acabou de fechar. Temos a expectativa de que em 2013, a partir dessa chamada pública, teremos uma rede nacional para pensar pesquisas e doenças negligenciadas. Na área da medicina tropical com pediatria tro-pical, as pesquisas são muitas vezes segmentadas. Falta um pouco de integração na visão das doenças negligenciadas.

O único produtor mundial do Betazol, que trata doença de Chagas aguda, é o laboratório farmacêutico de Pernambuco, Lafep, que além de produzir o medicamento para o País, pro-duz para o mundo. Obviamente, isso é um arranjo institucional em que empresas privadas também ajudaram a construir esse evento histórico.

Mas também falamos de alta tecnologia, em que o Brasil é pioneiro, por exemplo, no campo da terapia celular. Penso que, por fi m, há um conceito que vem sendo discutido há algum

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tempo, a respeito do qual fazemos muito esforço para que seja trazido para o ambiente da discussão nacional, que é a pesquisa translacional.

Esta pesquisa ocupa-se da tradução entre as áreas e as disciplinas, ocupa-se de usar pesquisadores que têm conheci-mentos fundamentais de biologia, conhecimentos de bancada, para conversar, discutir e dialogar com clínicos, com pesquisa-dores clínicos que entendam os problemas do indivíduo e que possa, por meio dessa interação, acelerar o processo que se dá, as décadas que se passam, desde que um novo produto promis-sor aparece na bancada e que, eventualmente, venha a chegar a uma aplicação clínica.

O que chamamos de pesquisa translacional tardia é aquela que, depois de publicada em uma grande revista internacional, sabe-se de sua efi cácia, mas levam-se décadas para que aquele novo tratamento preconizado possa chegar à beira do leito ou à farmácia popular, para que nossos pacientes, nossos indivíduos e a população brasileira que precisa daquele tratamento possam ter acesso. Então, a pesquisa translacional cuida para fazer fun-cionar toda essa roda que abrange pesquisa biomédica, biotecno-lógica, suas fases pré-clínicas, a pesquisa clínica, a pesquisa e o desenvolvimento de produtos e insumos, bem como os próprios mecanismos inovadores de produção, nos quais os laboratórios brasileiros têm papel importante, em âmbito público inclusive.

Assim, a palavra acesso é nossa grande obsessão para que todo conhecimento esteja disponível a preços pagáveis median-te o Sistema Único de Saúde ou a preços pagáveis pelas famí-lias, para que tenhamos, então, o acesso à saúde, do ponto de vista da aplicação da tecnologia para a nossa sociedade.

Obrigado.

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DEBATEDORES

DR RENILSON REHEM (Diretor do Hospital da Criança de Brasília, Consultor no Conass e ex-Secretário Adjunto da Se-cretaria de Saúde do Estado de São Paulo): Em primeiro lugar, eu queria cumprimentar todos os presentes e agradecer à Aca-demia pelo convite e dizer da minha satisfação em estar aqui nesta noite. Em dez minutos, fi ca difícil debater dois temas tão amplos, porque são dois enfoques muito distintos. Pretendo fa-zer alguns comentários oportunos.

Sem entrar em detalhes, uma questão importante que ocorreu, em período recente, no Distrito Federal, bem como tem ocorrido no Brasil e em outros países –, é a rápida transição demográfi ca.

Realmente, prestamos pouca atenção a isso e não planeja-mos a respeito. Não vou dizer que nos planejamos mal. Não nos planejamos para enfrentar tão grande transformação demográ-fi ca, favorecida pela redução da mortalidade infantil e pelo au-mento da expectativa de vida. Isto fez que o sistema público da saúde fosse pego de surpresa.

Por outro lado, vale referir-se ao desenvolvimento tecno-lógico ocorrido no período. O desenvolvimento tecnológico em medicina intensiva, aliado a relevante crescimento do número de partos prematuros e de crianças de baixo peso, fi zeram que tivéssemos uma enorme demanda por leitos de terapia intensi-va, e o sistema de saúde não havia se preparado para isso.

Observamos que os dados do Distrito Federal com esse crescimento da população, de 25%, ocorrido em uma década, é um desenvolvimento muito forte. Vemos que não houve plane-jamento preparatório para fazer frente a esse crescimento tão

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signifi cativo. De fato, o recente planejamento assume o défi cit de uma década atrás para tentar fazer isso ir para frente.

No caso desses movimentos de população e alterações de-mográfi cas, não só migração, mas redução da mortalidade, não adianta se queixar, não adianta chorar o leite derramado. É pre-ciso planejar para fazer frente aos desafi os que já estão presen-tes e aqueles que virão.

O Distrito Federal ainda tem um detalhe especial, que é o Entorno, com o qual tem uma interação muito forte, não só do ponto de vista da saúde, mas também do ponto de vista de tra-balho, emprego e renda, já que a maioria dessa população tra-balha no Distrito Federal. Mas, sem dúvida, a interação é muito maior no caso da saúde.

Ainda surge uma questão que Dr Miziara expôs e que me-rece destaque – é a questão dos recursos humanos. De fato, uma área em que fundamentalmente se depende de gente é a saúde. Se não há recursos humanos, não se tem pernas para fazer muito no campo da saúde. Acrescenta-se que o défi cit por ele apresentado é altamente signifi cativo, isto é, há estimativa de que, em 2015, haverá necessidade de mais treze mil profi s-sionais de saúde.

Antigamente era mais simples, porque seria, essencial-mente, necessidade de médicos e enfermeiros. Mas, cada dia que passa, o leque se torna muito mais aberto, mais amplo, de profi ssionais.

Ele não nos forneceu mais destaques, mas o ponto que eu queria enfatizar é que há uma difi culdade que torna a adminis-tração publica ainda muito mais difícil. Sem dúvida – o que tem ocorrido no Brasil nas últimas duas ou três décadas – é qua-se uma inviabilidade da administração pública movimentar-se

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com tantas regras, tantas contenções, tantos engessamentos. Sobrepondo-se a isso, surge um enorme processo de judiciali-zação. O gestor de saúde não sabe, então, se planeja, se toca o dia a dia do sistema da saúde ou se atende a uma chuva de ações judiciais, o que vai comprometer severamente o processo de planejamento, o que é uma questão muito séria.

Dos pilares do planejamento que ele mencionou, só queria destacar que, na atenção à saúde, sem dúvida, é preciso fi car com um olho na atenção básica e outro na média e alta comple-xidade. Se não enfrentarmos os desafi os da atenção básica, ja-mais iremos dar vencimento à demanda por serviços de média e alta complexidade. Não se pode, porém, olhar apenas a atenção básica, porque como vamos fazer transplantes, neurocirurgias e outras coisas necessárias?

Do ponto de vista da gestão da saúde, pretendo destacar a questão da regulação. Creio serem a ação mais nobre do po-der público a regulação do sistema e a regulação do acesso. Mas ocorre que a regulação é uma etapa do processo, em que só é possível regular se houver oferta minimamente adequada. Observa-se que, sem tal oferta minimamente adequada, a re-gulação se transforma em mecanismo de contenção. Então, ao invés de ser uma aliada, tornou-se inimiga do usuário, porque ela se transformou muito mais em contenção de demanda do que em garantia de acesso, que é seu papel fundamental.

Gostaria de fazer um rápido comentário sobre o que Dr Jaílson apresentou. Sem dúvida, é uma questão fundamental. Entendo que é difícil identifi car uma área em que haja desen-volvimento tecnológico tão forte como a área da saúde. Só que a tecnologia na área da saúde tem um comportamento comple-tamente diferente de qualquer outra área. Se contemplarmos,

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por exemplo, a área da indústria, observa-se que, normalmen-te, incorporar tecnologia reduz mão de obra, aumenta produti-vidade, diminui custos e substitui uma tecnologia anterior. Na saúde não ocorre nada disso. Agrega-se uma tecnologia que se associa a uma tecnologia preexistente, aumentam-se os cus-tos, aumenta-se o uso de mão de obra e o rendimento diminui. Só no laboratório de patologia clínica é que se aplica a regra de outras áreas, mas em outros campos, não. Quanto mais in-corporam tecnologia, mais encarecem a saúde. É claro que os resultados são extremamente importantes do ponto de vista de melhoria da atenção à saúde da população.

Entretanto, a questão da inovação, difusão e incorporação de tecnologia é um ponto fundamental para o sistema da saú-de, sobretudo o sistema que se pretende universal. Penso que, nesta última década, tem havido avanços extremamente im-portantes nessa área, mas é inegável que ainda estamos muito distantes do lugar a que precisamos chegar. Na realidade, a incorporação de tecnologia também sofre um comprometimen-to altamente signifi cativo quando o fi nanciamento do sistema é insufi ciente, ou seja, se há disponibilidade de recursos para custear a nova tecnologia, a tendência é restringir a incorpora-ção dessa tecnologia.

Temos, no Brasil, um fi nanciamento insufi ciente na saú-de, particularmente o fi nanciamento público. Temos a menor proporção de fi nanciamento público de qualquer outro país que tenha sistema de saúde universal. Temos o gasto com saúde numa proporção do PIB comparável com países desenvolvidos, só que mais da metade desse fi nanciamento é privado e não público, ou seja, gastos realizados por empresas, pelas famílias e pelas pessoas.

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Mas é evidente que não se pode esperar a resolução de um problema para o enfrentamento de outro problema. Entendo que está certo o governo brasileiro em investir na regulação da incorporação de tecnologia, na avaliação de novas tecnologias, mesmo com as restrições que temos do ponto de vista do fi nan-ciamento.

Tentei respeitar os dez minutos que me foram oferecidos, rapidamente fazendo alguns comentários na condição de deba-tedor dessas duas apresentações.

Muito obrigado.

DR CARLOS VITAL TAVARES (Vice-Presidente do CFM): Primeiro, agradeço à doutora Janice, pelo convite, que só nos prestigia e honra. Agradeço pela oportunidade de ouvir todas as palestras. Registro minha satisfação, como amigo e colega, de ouvir Dr Miziara, interessado em uma gestão profícua e as-sistência à saúde cada vez melhor no Distrito Federal. Ele nos deu a satisfação de mostrar seus trabalhos e esforços. Para mim isso não causa surpresa, porque já conheço sua profi ciência em outras searas e não seria diferente nesta.

Doutor Jailson me brindou com aquela tradicional objetivi-dade e efi cácia em suas apresentações, fruto, na verdade, do acúmulo de êxitos em seus trabalhos. Não é um falso pernam-bucano, é um pernambucano honorário e honorífi co, que nos honra como pernambucano.

Não cabe a um debatedor trazer fala ou apresentação mol-dada ou estudada. A função do debatedor, me parece, exata-mente, ouvir, assistir e interagir com aquilo que é apresentado, procurando apresentar críticas no sentido construtivo, no âmbito

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do que foi oferecido. O doutor Miziara nos traz alguns dados muito importantes sobre seu trabalho e o trabalho do Secretário de Saúde no DF.

Embora doutor Jailson nos apresente, de forma genérica, a questão insumos, gestão, pesquisa, acho que devo iniciar di-zendo que não cabe a nós, aqui, fazer juízo de valor. Em relação ao juízo, já dizia o nosso grande mentor: a vida é breve, a arte longa, a ocasião fugaz e o juízo difícil. Todos nós médicos sabe-mos, assim como os gregos, que é difícil fazer juízo de valor. E mágica, é muito difícil. É heroísmo ser gestor da assistência à saúde no Brasil, porque temos, como bem afi rmou doutor Re-nilson, a questão do fi nanciamento.

Muito em breve, seremos a quinta economia do mundo e ocupamos o octogésimo quarto lugar em desigualdade social, entre algo em torno de 187 países em consideração. Somos um país com pujança econômica, após tantos obstáculos trans-postos. Todos sabem, no entanto, que temos 45% dos nossos municípios sem coleta de esgoto.

Temos uma proposta e uma afi rmação do legislativo, de um sistema único de saúde que é tripartite. Mas, para efetiva-mente ser tripartite, precisaria da capacidade de fi nanciamento dos três atores, dos três agentes do sistema – União, estados e municípios.

Em 1988, o ano da Constituição, a União tinha, em torno de 45% dos recursos humanos na área da saúde. Hoje não che-ga a 6%. Por outro lado, sabemos que a carga tributária desde 1988 aumentou fundamentalmente em cima de contribuições, não de impostos, porque os impostos aumentam em estados e municípios. Se a carga tributária aumenta fundamentalmente e se não fi zemos melhorias, a dedução é óbvia – os estados e os

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municípios tiveram mais encargos e perderam valores, empo-breceram.

A dívida interna é hoje nosso calcanhar de Aquiles. Para fa-zer essa dívida interna, fi zemos títulos de capitalização para re-munerar, e juros em torno de 45% do orçamento geral da União em 2010, não sendo tão diferente em 2011. Em 2010, fi cou algo em torno de 635 bilhões, o melhor investimento do Planeta naquele ano. Se reduzíssemos 10% daqueles 635 bilhões, ainda assim, teria sido o melhor investimento do Planeta em 2010. Economistas, não só nacionais mas franceses, inclusive escrito-res do jornal Le Monde e de outros periódicos que se dedicam à área da economia, atestam isso. É um ensaio de Berger. Com essa difi culdade orçamentária o município não cumpre seu pa-pel da forma como deveria.

Esse é um problema, mas, a gestão é, naturalmente, ne-cessária. É preciso que seja feita da melhor forma possível, in-dependentemente do aporte de recursos que recebe. É uma questão só de racionalidade e tem que ser a mesma. Havendo recursos melhores ou maiores, ou não. Dentro desse processo de gestão com qualidade, doutor Miziara expôs de maneira mui-to detalhada os seus três eixos. O primeiro eixo: da saúde da família, rede cegonha, urgência e emergência e saúde mental. O segundo eixo: gestão da rede de consultas especializadas e leitos gerais, inovando a gestão da educação para a valorização do profi ssional. Recursos humanos é fundamental no processo de assistência à saúde. O termo humanizada foi usado com al-guma frequência em sua fala. Eu diria, uma assistência à saúde rica em humanidade. Humanizada ela vai sempre ser, feita sem-pre por pessoas, por seres humanos. Mas gente rica em huma-nidade, isso é importante. Mas como ser rica em humanidade, se não há um quadro de recursos humanos capazes? Para ser

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capaz, é preciso ser valorizado e ser bem formado, estar satis-feito. É um processo de formação e de valor agregado.

Doutor Jailson, nosso amigo, mostrou coisas importantís-simas. Citou, por exemplo, a indústria bélica norte-americana. Mas como a Alemanha, hoje, ganhou essa guerra sem disparar uma bala? Toda a Europa está em crise, mas a Alemanha está bem. Ganhou a guerra e não disparou uma bala. Ela ganhou em cima do investimento na área da saúde, porque o multiplicador do investimento da saúde é grande. O IPEA sabe disso, os vol-tados à pesquisa sabem disso. A Alemanha fez o que Dr Jailson mencionou: indústria farmacêutica, equipamentos, tomógrafos e ressonância magnética.

Temos, no Brasil, um número muito razoável de pesquisas, mas não temos patente. A desproporção entre pesquisa e pa-tente é terrível. No Brasil, não se faz patente, ou seja, não há objetividade na pesquisa para seu uso e sua aplicação realmen-te prática e necessária em determinadas áreas.

Outro ponto trazido a estimular nossas interações é a ques-tão da incorporação de novas tecnologias. Vivemos num mundo capitalista hegemônico. Ele precisa ser domesticado, moldado, trabalhado. Não se pode aplicar em cima de valores absolutos, uma regra pura e simples de mercado. Mas é o capitalismo, predatório por sua essência. Competição enseja competição. As regras na área da saúde porém, têm que ser outras, precisam da regulação do Estado.

Nesse âmbito, sabemos, como são fortes as pressões. Em-presários querem abrir escolas de medicina, que não podem, que não devem abrir. Não vou considerar se se precisa ou não de escola de medicina no Brasil. Estou dizendo que a distri-buição é totalmente aleatória, é desrespeitosa, é anárquica.

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Temos, hoje, abertura de escolas onde jamais poderia se abrir outra escola. Mas quem autoriza é o poder executivo. É o Minis-tério da Educação e Cultura.

Temos, hoje, importação de tomógrafos, de ressonâncias. Em relação à robótica, já estamos hoje com quatorze robôs importados, porque isso cria competição. Falo para alertar. A operadora vai até fazer propaganda: Faço cirurgia robótica. Em síntese, para importar um tomógrafo, é preciso mostrar neces-sidade, comprovar haver demanda para aquele aparelho. O go-verno tem se afastado disso.

A incorporação Politec foi um grande avanço, que tem uma grande missão pela frente. Mas é preciso ter resistência, porque sabemos das infl uências do capital, seja para um registro de medicamento na Anvisa, seja para incorporação de uma nova tecnologia. É difícil e politicamente não é simples ou fácil resis-tir a essas pressões. Mas esperamos que possamos aprender. Esperamos também que o executivo, de maneira muito própria, com muita racionalidade, possa superar a questão política e apoiar a questão técnica.

Gostaria de ter ouvido, um pouco, dos palestrantes, sobre a questão dos paradoxos. Por exemplo, temos a questão do neurotrauma. O IPI para motos foi isento, e há moto no País à vontade, com acidentes de moto em todo canto, com motivação de campanhas.

Vim de São Paulo, fui a um fórum do Ministério Público, que congregou entidades para discutir um projeto popular, em que se determinou que, a partir de 0.5 grau, a bebida seria consi-derada alcóolica. Duas latinhas de cerveja atingem o que o ba-fômetro registra e a lei determina, isto é, estar sem capacidade ou condição de dirigir. Então, para a lei do Contran e Denatran,

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0.5 é teor de bebida alcoólica, mas para a lei brasileira é de 13 graus. Da bebida alcoólica consumida no Brasil, 46% é con-sumida pelos jovens dos 13 aos 29 anos de idade. Para nossa grande surpresa, tive o conhecimento que 35% da população brasileira é abstêmia, não bebe, o que foge a toda regra do pri-meiro mundo, que está em torno de 10%. Talvez assim o Brasil se explique, principalmente, porque 25% da população é evan-gélica e, por questão de fé, os evangélicos não bebem. Isso foi demonstrado pelo doutor Ronaldo Laranjeira, que apresentou um trabalho, uma pesquisa séria, com metodologia científi ca bem feita, e apresentou isso hoje. Mas entra aí o que estou as-sinalando – é o lobby da indústria do álcool que não deixa tra-mitar os projetos que estão há dez anos no Congresso Nacional. A bancada do Rio Grande do Sul retirou, na época, a questão do vinho. Em síntese, essas questões são fundamentais.

É interessante, nesse debate, se colocar em pauta algo que não foi contemplado em sua apresentação, Dr Jailson, mas deve existir sim, que pela plêiade de pontos, de enfoques, você não pôde fazer. Mas dentro de um país continental como o nosso, deve haver um sistema nacional de controle e avaliação efi caz, efi ciente, privilegiado, que possa, naturalmente, verifi car não só a probidade, mas a qualidade do serviço prestado. Ao mes-mo tempo, surge a questão epidemiológica dentro desse con-texto de avaliação, porque é com conhecimento epidemiológico que se pode, realmente, programar e planejar. Temos doenças, como vocês sabem, como a hanseníase. Não temos, na verda-de, um índice no País, de forma qualitativamente efi caz, efetiva, condizente com a realidade. Estamos num país continental, com uma série de difi culdades, mas a questão epidemiológica pre-cisa ter certa prioridade dentro das questões de planejamento, sobretudo nas Regiões Norte e Nordeste e, eu diria também, em

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todo o Centro-Oeste. Creio que não temos de ter preocupações no sentido de incapacidade, porque nossa capacidade foi de-monstrada em todos os setores da área da saúde.

Eu diria que falta um pouco mais de incentivo à área da pesquisa para que possamos resolver questões em termos de condições de uso prático. Mas em todas as outras áreas, incluin-do-se as áreas da saúde, temos exemplos e exemplos, vitórias e vitórias dentro do Sistema Único de Saúde, apesar de todas as difi culdades, que precisam ser comemoradas e lembradas. Mas, temos também de saber que há muita distância entre a construção que se propõe e a realidade que temos hoje. Temos grandes difi culdades em urgências, emergências, até em aten-ção primária, em relação à qualidade.

Não se pode aumentar o acesso ao exame pré-natal e co-meçar a ter, novamente, problemas na mortalidade infantil. Acesso não basta, há de haver acesso com qualidade, como você bem afi rmou. Não posso aumentar o acesso à educação e aumentar o número de analfabetos funcionais no País. É preciso qualidade e é em cima disso que deveríamos focar na gestão, não só do Distrito Federal, mas do Ministério da Saúde, porque sabemos da competência das pessoas que lá estão, sabemos dos seus compromissos. Queremos nos posicionar como eter-nos parceiros, para que possamos enfrentar muitos adversários. Os senhores sabem quem são esses adversários; há interesses.

Agora, temos uma ação que está sendo proposta e que é necessária. Avaliar drogas novas, doenças raras. Doenças raras não são aquelas negligenciadas, são as doenças raras. A nossa constituição diz: integrar o acesso. Mas, há de haver muita perspicácia, muito cuidado e, talvez até, pensar em pe-quenas mudanças, por exemplo, a depender das possibilidades

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socioeconômicas de cada indivíduo, o sistema que é fi nanciado em determinados setores da assistência, ter possibilidade de compartilhamento. São pontos que vislumbramos para que as interações possam trazer mais subsídios e enriquecer a gestão da assistência à saúde no País.

Muito obrigado.

PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO

Acad. Dr Renato Maia: Cumprimento-os todos pela ex-posição clara, muito me valeu a pena ter saído de casa. Três pessoas citaram a transição demográfi ca. Transição demográfi -ca implica redução da mortalidade, diminuição da mortalidade infantil, aumento do número de idosos. No entanto, no plane-jamento, seja do Ministério da Saúde ou, em particular, dentro da nossa Secretaria, vi ações voltadas à gravidez, à criança, e é justo que estas tenham ocorrido. Mas devo lembrar que o coefi -ciente de fecundidade no Brasil é 1.85, ou seja, cada vez nasce menos crianças e, assim, temos menos partos. No entanto, não vi uma única ação voltada ao que vai desfalcar o sistema de saúde privado e o sistema de saúde público.

Os últimos dias da nossa vida podem não ser os melhores, mas são os mais caros. O doutor Miziara diria que temos aqui um sistema de assistência domiciliar. De fato, temos. Porém, das dezenove equipes existentes, nenhuma tem sequer um car-ro para visitar o doente em casa. Então, isso não é assistência domiciliar. É assistência domiciliar que depende da boa vontade do diretor do hospital.

Precisamos começar a discutir o que representa o impacto do crescimento populacional em nosso sistema. Devo lembrar

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que, no início da década de 60, a pressão demográfi ca dos Esta-dos Unidos atingiu o ponto que nós temos hoje. As seguradoras disseram que não fi cariam sozinhas com a questão. Ou o Estado entrava ou estariam fora. O Estado mais privaticista do mundo, que é o norte-americano, passou a aplicar enorme quantidade de dinheiro na saúde e apresentou difi culdades por causa dos impostos.

Os hospitais públicos brasileiros estão geriatrizados, ou seja, 60% das pessoas atendidas são idosas. Nas UTIs, 60% pacientes são geriátricos. Então, é um ponto que temos de dis-cutir. O segundo ponto é uma sugestão ao Miziara. Se faltam 3.500 médicos, será que não seria hora de criarmos a carreira de médico do Distrito Federal? Não apenas com salário maior, mas com quarenta horas de dedicação exclusiva. É preciso iden-tifi car nossos soldados, quem é da nossa turma e quem quer fi car na área privada. É preciso identifi car quem tem quarenta horas de dedicação exclusiva na Secretaria, cobrar quarenta ho-ras, exigir produtividade e comprometimento com a Secretaria, porque 3.500 pessoas signifi cam muito dinheiro.

Infelizmente devo reconhecer, por ser médico, que um elevado número de funcionários da nossa Secretaria não tem comprometimento com a própria Secretaria. Apesar de termos direito de fazer críticas à Secretaria, reconheçamos que os salá-rios do médico em Brasília, principalmente para quem tem mais de dez anos de trabalho, não são salários que possamos criticar por serem muito baixos. Então, eu queria fazer essa menção so-bre o planejamento à assistência idosa, que é muito defi ciente e uma sugestão de que se discuta a carreira do médico de estado do Distrito Federal, com quarenta horas, dedicação exclusiva e dedicação à Secretaria de Saúde.

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Acad. Dr Leonardo Esteves: qual a proposta que os co-legas gestores têm para que um projeto previsto e que tenha razão de iniciar, possa ser fi nalizado? Acho que um dos nossos maiores problemas são as ideias abortadas no meio do cami-nho, de forma sequencial, porque um acha que a ideia do outro não era boa e acaba-se com um projeto e começa-se outro. Deveria haver garantia da continuidade do projeto.

Acad. Dr Paulo Melo: Aos visitantes, parabéns pelas apresentações. Sou Paulo Melo, estou há 52 anos na cidade. Algumas décadas se passaram e, em alguns momentos, tive-mos esperanças, fi cávamos animados com as perspectivas do futuro. Às vezes, houve alguns gestores mais audaciosos, ou-tros mais discretos. Alguns muito medíocres tivemos ao longo desses anos. Acabo de concluir a revisão de mestrado de uma aluna, que levantou um quadro em que 540 pacientes morre-ram em Brasília, Distrito Federal, em um ano, com acidente vascular cerebral. Desses 540, aproximadamente 40% foram aneurismas ou más formações vasculares, condições perfeita-mente tratáveis.

Em 1980, ao término da década de 70, tínhamos um índice de mortalidade de aneurisma de 40%, idêntico ao que havia no resto do mundo. Aqui, chegamos à conclusão de que podería-mos baixar esse número, com base em uma política de treina-mento de equipes. Conseguimos criar uma geração de especia-listas em microcirurgia, com o primeiro microscópico cirúrgico.

A primeira operação em hérnia de disco feita com micros-cópio e publicada neste país ocorreu em Brasília. O acesso à tec-nologia foi realmente importante. Derrubamos o elevado índice

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de mortalidade. Em 1984, publicamos cem casos de aneurismas com 6% de mortalidade, em comparação com 40% da década anterior. Isso foi igual ao panorama do mundo, na Inglaterra, na Alemanha, nos Estados Unidos. Nessa busca por melhores resultados, foi importante o acesso à tecnologia.

Ao longo dessas últimas décadas, tem faltado audácia aos gestores da saúde para encarar o problema do doente em es-tado grave. Realmente, as considerações que o doutor Renato Maia expôs aqui, sobre o paciente idoso, estão fora de dúvidas.

Tínhamos um serviço de neurocirurgia em que se realiza-ram 1.100 cirurgias por ano. O número de pacientes que têm acesso à tecnologia neurocirúrgica é muito mais restrito agora. Esses pontos mostram que precisávamos ter um pouco mais de audácia. Entendo que as limitações de recurso e de pessoal são grandes, mas é preciso assumir atitudes mais audaciosas, que estavam no projeto do plano de saúde de Brasília, que eram os centros de especialidades avançadas. Isso está faltando e ja-mais foi feito. É preciso ter um pouco de audácia em relação ao doente neurocirúrgico ou ao cardiovascular, nos quais estão as grandes enfermidades.

Esses pacientes estão sem campo. A solução encontrada pela administração foi ampliar a terapia intensiva em cem lei-tos ou mais, criar um centro de neurotrauma. Se alguém for agora ao pronto-socorro, verá que 40% dos pacientes que lá estão sofrem doenças vasculares cerebrais. Mais outro tanto são acometidos de tumores e neoplasias. Esses pacientes estão sufocados, sem alternativa.

Meu apelo ao doutor Miziara, bem como às autoridades da área federal, é voltado à criação de um centro especializado nessa área, como também em outras áreas, com maior concentração

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de tecnologia. Precisamos ter o Hospital de Base de volta ao plano original, que era ter um centro realmente especializado. Então, fi ca aqui o meu apelo, que não é uma crítica, mas uma constatação, uma observação.

Sei que, realmente, os colegas tentam acertar. Em relação à pesquisa, estou muito cético quando o colega menciona que somos o primeiro país em experimentação da terapia celular. Mas em terapia celular, toda a tecnologia é importada, isto é, equipamentos, reagentes. Não temos quase nada fabricado no Brasil. Que tecnologia é essa se importamos ressonância mag-nética recauchutada, que os países do primeiro mundo estão vendendo, ansiosos por ampliar seu mercado? Estamos com-prando, mas não produzindo. Se fabricamos submarinos e avi-ões, porque não conseguiríamos produzir um tomógrafo, apare-lho de uma tecnologia mais simples?

Acad. Dr José Calegaro: Ainda trabalho no Hospital de Base, e alguns comentários que eu possa fazer vêm dessa expe-riência. Nunca parei de trabalhar quando havia um regime públi-co em funcionamento. Mas, nos últimos anos, parei de trabalhar várias vezes. Creio que falta, no sistema público, ferramentas mais efi cazes para gerir as coisas. Havia um regime de fundação que permitia fl exibilidade administrativa para solucionar vários problemas. Posteriormente, fomos para um engessamento ad-ministrativo, para a Secretaria de Estado, e essa fl exibilidade de-sapareceu, o que desampara tremendamente o gestor na busca de soluções. Não se trata de pouca vontade ou algo do gênero.

O segundo aspecto que tenho vivido no Hospital de Base – que é um hospital de ponta, onde existe mais tecnologia do

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que outros primários ou secundários – é que a demanda técnica que um profi ssional faz está atrelada a um trâmite político ad-ministrativo quando deveria ser o contrário, ou seja, a demanda técnica atrairiam as soluções dos problemas políticos adminis-trativos.

Tive a grata surpresa de ter ouvido do doutor Miziara que disporíamos futuramente de um aparelho de tomografi a de du-pla fonte – DSCT. Este postulado eu havia feito há oito anos, mas encerraram o processo. Atualmente, já não se fala só em DSCT, mas também da ressonância nuclear magnética.

Acad. Dra Rosely Cerqueira: Vou falar do lado completa-mente oposto ao da alta tecnologia. Vou falar da vigilância em saúde.

Em sua fala, doutor Miziara, vi que existem programas que nos dão prioridade, como o plano de vigilância e saúde. Não se conseguem recursos humanos para essa área, que não está es-tabelecida apenas na Secretaria de Saúde, mas distribuída em todas as regionais de saúde, dentro dos hospitais regionais, nas unidades de saúde de centros de saúde. Não se conseguem pes-soas para trabalhar nessa área, porque é uma área sem visão muito clara. O pessoal que trabalha na epidemiologia, não tem insalubridade, embora trabalhe com doenças. Não existe con-curso nessa área hoje. Para médico sanitarista, o último deve ter sido admitido na década de 90. Outros profi ssionais estão se especializando na área de vigilância e compõem as equipes de vigilância. Mas os médicos sanitaristas estão desaparecendo, estão se aposentando como eu há um ano. Vejo essa fragilidade na estrutura da vigilância em saúde.

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Hoje, as zoonoses representam mais de 60% das doenças infectocontagiosas no mundo e constituem as zoonoses emer-gentes e as antigas. Mais de 60% das moléstias infectoconta-giosas são zoonoses. A área de vigilância ambiental encontra-se mais relegada do que a própria vigilância epidemiológica. Não existe concurso específi co para esses profi ssionais. Fomos re-ferência na área de vigilância epidemiológica por muitos anos e treinamos pessoal. Mas hoje só apagamos fogo. Acho que o DF pode ter atitudes mais propositivas para controle de zoonoses, como a leishmaniose canina.

Acad. Dra Janice Lamas: Eu só gostaria de levantar a questão do rastreamento mamográfi co com equipamentos vo-lantes, móveis. Acho que o programa tem que pensar na assis-tência, oferecer o exame, mas ver como ele está sendo feito. Não apenas em termos de equipamento, se é um equipamento digital, sem os problemas do processamento químico, mas se há pessoas qualifi cadas para a leitura das mamografi as.

A questão da auditoria infelizmente é relegada no País. Há de se pensar em controle de qualidade total, não apenas da imagem, mas de quem a interpreta. Do contrário, o custo dos falsos positivos, das muitas indicações de biópsias desneces-sárias pode ser tão grande que vai ser tão ruim para a popula-ção quanto não ter biopsiado. Os custos serão grandes também para a própria assistência pública.

Fica aqui a recomendação de que o programa dentro da rede pública de saúde do rastreamento mamográfi co atenda às recomendações do programa de certifi cação de qualidade do Colégio Brasileiro de Radiologia tanto em relação à imagem quanto à auditoria de resultados.

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Dr Elias Fernando Miziara: Nosso maior problema, e os nossos debatedores comentaram isso com toda clareza, é a for-mação do recurso humano. Temos condições de comprar um mamógrafo digital, mas eu não formo radiologista. E por que? Não temos vagas sufi cientes para a formação de radiologistas. Mesmo havendo vagas, aqueles que estão nos programas de treinamento em radiologia, geralmente, se dedicam muito mais à tomografi a, à ressonância e à ecografi a do que à mamografi a.

Na Cidade do México, no lançamento do Outubro Rosa, o Secretário de Saúde da capital do México-DF me confi denciou que eles estavam chegando perto de um milhão de mamogra-fi as feitas, e o grande drama era o diagnóstico quantitativo e qualitativo.

Um grupo propôs a leitura dos exames radiológicos trans-mitidos por internet, que foi a solução dada nos Estados Unidos, até que consigamos fazer nossa central de laudos e alocar nos-sos radiologistas num único sistema interligado, maximizando--se a utilização desses profi ssionais.

A questão da assistência à saúde do idoso é semelhante por-que temos baixíssima formação de profi ssionais específi cos para isso. O programa de atenção domiciliar é muito amplo, e a parcela idosa é importante e impactante na atenção domiciliar. Hoje temos mil e duzentas pessoas, atendidas em nosso programa de atenção domiciliar, ainda que possa haver difi culdade no transporte.

Os numerosos obstáculos que temos na Saúde não serão resolvidos nem mesmo em dez anos, a começar pela formação. Cada um abordou o lado de sua percepção em relação à saú-de. Se fôssemos atender às áreas de cada um, seguramente isso incluiria cem por cento da população. Quando o observador olha o conjunto, a imagem vai ser outra. Qual é a imagem que

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tínhamos do Distrito Federal e tivemos que enfrentar? Prontos--socorros lotados.

Pergunto aos senhores e à Dra. Rosely, que é sanitaris-ta, se conhecem algum programa de atenção básica da saúde, que resolveu o problema das emergências? Não existe. Entre-tanto, é programa apoiado, prioritário do Ministério da Saúde, prioritário do nosso governo. Sabem quantos profi ssionais de saúde temos na divisa, que é a nossa vigilância sanitária? Não há nenhum. Todos os que estão lá são de outras profi ssões que não da área de saúde; são esses os dados. O concurso é feito e atrai engenheiros, advogados. Mas médicos, farmacêuticos, biólogos, enfermeiros, por alguma razão, não estão lá, seja por-que não passaram no concurso ou porque não se interessaram. Por isso, a lei nos obriga a trabalhar, outro tema abordado pelos nossos debatedores seguramente.

Não falei da judicialização porque, como fi z referência no começo, houve aqui um grande debate só sobre judicialização.

A pergunta de Dr Leonardo Esteves é estruturante. É a manutenção das políticas. Eu diria que, em nosso governo, nós não mudamos essencialmente os programas. Fizemos algumas mudanças, mas mantivemos, aprofundamos, aprimoramos al-gumas coisas que já existiam e acrescentamos várias outras. O que aconteceu entre 95 e 98, período em que Dra. Rosely Cerqueira foi muito ativa na diretoria de saúde pública, foi man-tido. Naquele período, houve muitas transformações e, em 99, tudo veio a ser destruído, a começar pelo saldo de casa. Lamenta-velmente, muitos colegas nossos participaram dessa destruição.

Na discussão da judicialização, falávamos sobre o tema da ressonância magnética. O único aparelho existente até hoje,

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aqui, foi comprado em 98 e instalado em 99. Desde lá para cá, não houve nenhuma incorporação. Agora é que estamos com-prando três.

Dr Paulo Mello falou em ressonância recauchutada, mas a única ressonância que há não é recauchutada, e as que iremos comprar também não serão recauchutadas. Mas, temos mamó-grafos e tomógrafos que estavam em péssimas condições, que simplesmente estamos abandonando porque não vale mais a pena investir no reparo delas.

Dr Paulo Melo, meu professor, falou na criação de um cen-tro. Apresentamos o centro de neurotrauma, que vai ser cons-truído e estará pronto para a Copa de 2014, mas não será sim-plesmente de trauma, mas de neuro e de trauma – um centro de referência para toda a parte da neurocirurgia.

O Hospital da Criança, construído no governo anterior e inaugurado em nossa gestão, numa associação da Abrace, é uma entidade fi lantrópica.

Nosso país, em 1988, ao criar a nova Constituição e seus sucedâneos, como a Lei 8.080, que traz a Lei do SUS, reco-nhece a existência de dois sistemas de saúde no País, ou seja, o sistema público, por meio do SUS, e o sistema privado, com a chamada Medicina Suplementar ou Atenção Suplementar à Saúde. De certa maneira, o governo fi nancia os dois, porque quem paga plano de saúde desconta do imposto de renda e ao descontar suprime do erário. É claro, portanto, que o cofre pú-blico sustenta os dois sistemas.

Durante a gestão do sistema público, se é obrigado a fi car atado a leis que defi nem determinadas coisas que são impra-ticáveis. O Tribunal de Contas do Distrito Federal exige, para licitação da alimentação da rede hospitalar, o cálculo de custos.

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Querem saber quanto custa cada concha de arroz. Para cada tipo de dieta há um valor e para cada hospital o valor difere. E agora imaginem como calcular o custo de grão de arroz. É só pegar o preço do quilo, alguém diria. Muito bem, mas e o pre-paro? O gás que se gasta? A energia elétrica? A mão de obra? Tudo que envolve aquele preparo tem que estar presente ao cálculo. Depois disso tudo calculado, consideram-se os impos-tos que irão incidir lá. Isso é uma planilha de custos. E quem é que sabe fazer isso? Ninguém sabe fazer, mas tem que ser feito. Caso não se faça, não se autoriza a licitação.

Não podemos fazer o regular, mas somos obrigados a fazer o urgente, o que é ilegal, isto é, o próprio Tribunal nos empurra à ilegalidade, não nos permite agir. Isso está presente em todas as situações. Falei sobre a concha de arroz, mas eu poderia fa-lar da contratação do profi ssional, da compra de medicamentos. As situações são várias, de tal maneira, presidente, talvez teria sido um tema a se discutir aqui, se já não foi discutido e eu não estive presente à discussão –, no tema Gestão de Sistemas de Saúde Pública. Só este tema ocuparia várias noites de debates. Aí então, poderíamos trazer a debate a questão que hoje é pri-mordial, ou seja –, vamos gerenciar a saúde pública por inter-médio de um sistema público infl exibilizado.

A questão da Fundação, como doutor Calegaro lembrou bem, poderia resolver? Hoje estamos apostando nessa solução. Cogita-se sobre a associação de organizações sociais, como os exemplos de Pernambuco, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, de São Paulo e vários outros estados. Seria um caminho, uma solução, a relação com as organizações sociais ou com entida-des fi lantrópicas. Para encerrar, vamos lembrar que em Brasília praticamente não temos fi lantropia, exceto essa associação com

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a Abrace, que é um exemplo, e aqui eu aproveito para parabe-nizar doutor Renilson, diretor daquele hospital. É exemplo de efi ciência e efi cácia. Mas não temos aqui santas casas ou outras entidades similares que possam apoiar o sistema público.

Doutor Leonardo, termino dizendo ao senhor que segura-mente estamos tentando construir de forma institucionalizada todas essas ações, de maneira que não possam, depois, futuros governantes alterar totalmente. Nossa missão é criar um siste-ma que a população preze, confi e e adote como sendo propria-mente dela. A faixa de pedestre em Brasília, como exemplo, não foi extinta porque a população continuou a respeitá-la.

Dr Jailson Correa: Sinto-me muito contemplado com a fala de doutor Elias. Quando conversamos com pesquisadores a respeito de qual seria o principal problema do País, há tendên-cia de o pesquisador construir uma visão com muita estatística. Isso acaba nos convencendo que aquele problema específi co é o que merece toda a atenção do sistema de saúde, quando o importante seria a avaliar o global, o todo.

Percebo, em minha curta estada em Brasília, que esta Aca-demia é uma associação médica diferente. Não diferente, ne-cessariamente de tantas outras no País, mas que mostra uma qualidade nos trabalhos que vêm sendo feitos, a questão do engajamento, a altíssima qualifi cação das pessoas como mem-bros, aqui presentes, vários ex-secretários de saúde.

A Academia de Medicina constitui um espaço privilegiado, que contribui para debates construtivos, que apontam proble-mas, porque obviamente é isso que alimenta o gestor, cuja fun-ção é auxiliar.

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A crítica e os reparos são algo absolutamente balizadores do trabalho. É fundamental que haja postura crítica, educada e construtiva como foi aqui alçada de forma muito interessante. Penso que uma academia de medicina desse porte, a favor da discussão da construção do sistema de saúde, tem extraordiná-ria força simbólica.

Venho aqui falar da altura de quem está no Departamento de Ciência e Tecnologia, e colocar a pesquisa como instrumento desse processo de pensar. Claro que só a pesquisa não basta, mas a sinalização de que a pesquisa é necessária é algo presen-te na linha das diretrizes estratégicas do Ministério.

Quando convocamos a comunidade acadêmica brasileira para propor trabalhos nessa área, constatamos uma carência muito grande nesse sentido. Nossas escolas médicas estão le-vando muito tempo para se adequar a um modelo de encampar a questão epidemiológica, papel certamente aqui cumprido pela Academia de Medicina de contribuir para esse debate. Não es-távamos prontos para isso. Mas isso não signifi ca que não de-vamos agir nessa direção.

Eu queria fazer um comentário sobre o que foi mencionado em relação à questão do lobby, da incorporação de tecnolo-gias. O número de tomógrafos computadorizados per capita de Caruaru, terra de minha família, era dez vezes maior que o nú-mero de tomógrafos per capita da cidade de Liverpool, Inglater-ra, Esses tomógrafos lá em Caruaru serviam a uma população de 15% a 20% dos usuários do sistema suplementar de saúde. O mecanismo de funcionamento dos tomógrafos era escandalo-so. Colegas, médicos, estavam envolvidos nesses mecanismos de funcionamento.

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Então, penso que, enquanto sociedade, precisamos fazer um debate muito sério e perceber que as pressões estão pre-sentes em todos os pontos do quebra-cabeças ou do xadrez. Precisamos ter um debate, enquanto sociedade, bastante ma-duro nesse sentido, sobre a questão do lobby para incorporações que deveriam estar condicionadas essencialmente a pareceres técnicos, em cuja comissão tenha assento o Conselho Federal de Medicina, para indicar se uma determinada tecnologia deve ser incorporada ou não.

As academias de medicina, os sindicatos e as demais ins-tituições médicas têm papel fundamental na elaboração de di-retrizes terapêuticas que sirvam de baliza, sobre aquilo que é efi caz, que é efetivo, que vale a pena incorporar, porque se não, fi camos exatamente na situação de reféns de um sistema em que o prescritor deixa de ter CRM e passa a ter uma toga.

Precisamos avaliar, em longo prazo, o impacto sobre a qua-lidade daquilo que o sistema de saúde incorpora ou deixa de incorporar.

Meu mestrado foi sobre leishmaniose. Então, um pouco, me sinto preocupado com a situação de Brasília. Do ponto de vista ecológico, Brasília e o Distrito Federal têm condições ecoló-gicas para, uma vez instalado o calazar, certamente, seria uma questão de tempo para que tenhamos a leishmaniose visceral humana.

O problema é, de novo, aqui? Creio que cabe tecnologia, não necessariamente tecnologia de rádio, de laser, mas tecnolo-gia de processo, de avaliação. Por exemplo, estratégias de usar coleiras impregnadas, técnica relativamente simples e que pode ter alguma efi cácia.

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Passados todos esses anos – e o Brasil sendo um dos paí-ses que mais tem tradição de pesquisa em medicina tropical –, não encontramos respostas à seguinte pergunta: A eliminação dos cães contaminados é efi caz no combate à transmissão da doença? Existe uma enorme interrogação. Será a pesquisa que vai defi nir isso. São estudos de intervenção, são modelos mate-máticos de previsão e são estratégias de inovação de processos.

Segundo creio, precisamos pensar em processos e inova-ções em todo o sistema, de processos de formação de gestão. É necessário criar mecanismos inovadores de gestão para, de alguma maneira, ajudar a construir uma sociedade brasileira que possa, de vez, romper com suas tradições de burocracia lusitana e avançar no sentido do monitoramento e do controle. Deverá haver monitoramento ativo, maduro, com mecanismos inteligentes.

Dr Renilson Rehem: Queria reforçar o que o Dr. Elias Fernando Miziara afi rmou sobre a garantia da continuidade dos programas de saúde e das políticas públicas. Não será uma lei que garantirá isso. Pode-se aprovar uma lei para cada programa estruturado que não se garantirá continuidade. O que vai ga-rantir continuidade é a sociedade se apropriar disso. Quando a sociedade se apropriar das políticas públicas, o governante não irá acarretar mudanças questionáveis.

Sobre a questão da gestão, das limitações e infl exibilidades da administração pública e o fi m do regime fundacional, estas são questões muito sérias, em que não se consegue fazer licita-ção regular e recorrem-se a contratos urgentes porque o Minis-tério Público e o Tribunal de Contas não permitem fazer gestão.

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Tenho grande admiração por quem tem coragem de assu-mir, hoje, um cargo público no Brasil, porque, sinceramente, é algo a se cogitar muito. Tenho um amigo que foi Secretário de Saúde de Goiás e, mesmo passados dez anos, de vez em quando, tem ele que responder a alguma questão no âmbito da Justiça porque alguém levantou que a nota fi scal X não tinha duas vias ou não estava carimbada. Isso ocorre porque tudo é controle de processos, não há controle de resultados. No Brasil, se valoriza muito mais se a nota fi scal estiver com duas vias do que se o medicamento foi comprado e utilizado pelo paciente. Creio que isso é, realmente, um problema extremamente grave.

Eu queria agradecer à Academia pelo convite, reconhecer e elogiar a disposição de todos que estão aqui até essa hora. Obrigado.

Dr Carlos Vital: Vou ser, realmente, breve. Renato, você me estimulou a pensar um pouco nessa questão. Você colocou um contraponto ao que tem sido asseverado por muitos, que é o bônus demográfi co que o Brasil tem. O que você levanta é uma visão prática, objetiva dentro de um segmento de análise que é importante. Mas, apesar disso, considero que temos de analisar o que você levanta dentro de outra perspectiva, que não é antagônica, mas complementar, ou seja, somos um dos poucos países que ainda tem uns vinte anos de bônus demográ-fi co para usar bem.

O importante não é ter pressa. Chega mais depressa quem escolhe o caminho certo. Nós precisamos escolher esse cami-nho certo agora.

No governo Fernando Henrique Cardoso, em 1998, o Ibope de 49% da população apontou a saúde como principal problema

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do País. Fernando Henrique, 2002, 51% dos brasileiros aponta-ram a saúde como principal problema do País. Lula, 2007, 45% dos brasileiros desaprovaram o professor Serra na saúde. Lula, 2009, 49% da população apontou a saúde como principal pro-blema do País. Governo Dilma, 2011, 52% da população apon-tou a saúde como principal problema do País. E agora, 2012, o Ibope, 61% da população volta a asseverar que a saúde é o principal problema do País. Mas então, sem dúvida é o principal problema do País. Agora, os principais problemas são a falta de infraestrutura; isto é um fato. Há de haver tempo para chegar a uma infraestrutura adequada.

Políticas de trabalho efi ciente para médicos e outros profi s-sionais não temos. Essa é uma realidade. Isso não é afi rmação corporativista. Falo por uma instituição que é de médicos, mas não é dos médicos, é da sociedade. É uma autarquia federal que também é da sociedade, apesar de que tem a honra de ser ge-rida por um médico, se me permitem a imodéstia. Porque ainda é uma classe de maioria muito própria.

Mas, em síntese, há também a questão do fi nanciamento que não permite novos investimentos. Como vai haver para a pesquisa, se não há nem para a assistência? O que é adequado.

Mas espero que isso mude. Novas demandas da sociedade não serão contempladas com esse fi nanciamento limitado. Aqui não importa se são cem milhões ou se são dez milhões. E o in-vestimento per capita é que é necessário. Sendo o Brasil a quin-ta economia do mundo, poderíamos tê-lo. É uma questão de prioridade política. Não acredito que não haja, não porque não se queira, até se deseja colocar no programa político do governo que prioridade política é saúde. Não será, porque os interesses

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que tornam um país governável não vão deixar. E saúde não é prioridade, como também não é educação, porque ainda não se conseguiu, politicamente, enfrentar esses interesses em ne-nhum governo que nós assistimos, desde o Alcântara pelos Car-dosos e agora do Rousseff.

Em síntese, eu queria só lembrar que nós diminuímos, em número, muitos leitos hospitalares. A demanda aumentou, mas o número de leitos hospitalares diminuíu. Sobretudo, em unida-des de terapia intensiva.

Essas constatações são estatísticas, tiramos do IBGE. Não estamos criando informações estatísticas, estamos utilizando as que o executivo disponibiliza. É com elas que estamos fazendo essas ponderações.

Achamos que a gestão, dentro desse universo, não pode ser criticada. É uma gestão de pessoas com experiências, com-petentes, que têm feito o que podem fazer.

O problema é previsão, cheguei à conclusão que é previ-são. Eu tenho que ter capacidade de fazer previsão. Se daqui a dois anos vou precisar de mais funcionários, então, começo o concurso hoje. Se vou ter tantas bocas para alimentar a mais com arroz, contrato um profi ssional para elaborar a planilha hoje, e se compra arroz seis meses ou um ano na frente, em previsão.

Se essa cultura se criou, não foi à toa. A questão da fi sca-lização e do controle existe por haver uma cultura de corrupção que, neste país, infelizmente, é rica em exemplos e mais exem-plos, que a todos nós envergonham. Temos que partir para a previsão para nos tornarmos competentes nessa área. Muito obrigado, doutora Janice, mais uma vez, e sempre às ordens.

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ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA

Acad. Dra Janice Lamas: Como encerramento, gostaria de agradecer a presença dos palestrantes e debatedores ilus-tres que nos brindaram neste debate, ao auditório, aos queri-dos acadêmicos e aos outros presentes. Entrego o diploma de cada um, como parte do ritual da Academia de Medicina. Vamos fazer uma foto, com todos, para constar em nosso site. Muito obrigada.

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