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2º CICLO DE ESTUDO MESTRADO EM LINGUÍSTICA Análise linguística forense das Fichas de Avaliação de Risco em situações de violência doméstica Ana Sofia Carneiro Ferreira M 2019

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2º CICLO DE ESTUDO

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Análise linguística forense das Fichas de Avaliação de Risco em

situações de violência doméstica

Ana Sofia Carneiro Ferreira

M 2019

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Ana Sofia Carneiro Ferreira

Análise linguística forense das Fichas de Avaliação de Risco em

situações de violência doméstica

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Linguística, orientada pelo Professor Doutor

Rui Sousa-Silva

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

novembro de 2019

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Uma análise linguística forense das Fichas de Avaliação de

Risco em situações de violência doméstica

Ana Sofia Carneiro Ferreira

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Linguística, orientada pelo Professor Doutor

Rui Sousa-Silva

Membros do Júri

Professora Doutora Maria Fátima Favarrica Pimenta de Oliveira

Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Professora Doutora Teresa Maria Salgado de Magalhães

Faculdade de Medicina – Universidade do Porto

Professor Doutor Rui Manuel Sousa Silva

Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Classificação obtida: 17 valores

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«(…)

A posse vai-se acabar

no tempo da liberdade

o que importa é saber estar

juntos em pé de igualdade

Desde que as coisas se tornem

naquilo que a gente quer

é igual dizer meu homem

ou dizer minha mulher»

Ary dos Santos

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Sumário

Declaração de honra .................................................................................................................. 8

Agradecimentos ............................................................................................................................. 9

Resumo ........................................................................................................................................ 10

Abstract ....................................................................................................................................... 12

Introdução ................................................................................................................................... 14

Capítulo 1 – Violência Doméstica em Portugal .......................................................................... 22

1.1. Um desafio ao Sistema Judicial ....................................................................................... 28

1.2. A Violência Doméstica na perspetiva da Linguística Forense ......................................... 35

1.3. Interrogatórios e Entrevistas Policiais .............................................................................. 42

Capítulo 2. – Abordagem metodológica ..................................................................................... 49

2.1. – Metodologia e Dados .................................................................................................... 49

2.2. – Descrição do corpus ...................................................................................................... 50

2.3. – Metodologia de análise .................................................................................................. 52

Capítulo 3. – Análise dos dados .................................................................................................. 56

3.1. – Sintaxe ........................................................................................................................... 56

3.2. – Semântica ...................................................................................................................... 63

3.2.1. – Tempo e Aspeto ......................................................................................................... 63

3.2.2. – Léxico e Terminologia ............................................................................................... 67

3.2.3. – Colocações ................................................................................................................. 76

3.3. – Nível Pragmático-Discursivo ........................................................................................ 79

3.4. – Coerência e Coesão ....................................................................................................... 81

Capítulo 4. – Discussão dos resultados ....................................................................................... 88

4.1 – Proposta ......................................................................................................................... 93

Considerações finais .................................................................................................................... 96

Referências bibliográficas ......................................................................................................... 105

Anexos....................................................................................................................................... 110

Anexo 1 ................................................................................................................................. 111

Anexo 2 ................................................................................................................................. 115

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Declaração de honra

Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizada previamente

noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros

autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da

atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências

bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a

prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

[Porto, novembro de 2019]

Ana Sofia Carneiro Ferreira

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Agradecimentos

Agradeço, em primeiro lugar, ao meu orientador, Professor Doutor Rui Sousa-

Silva, por me acompanhar desde o início, por me incentivar e por estar sempre disponível.

Agradeço a ajuda imprescindível e toda a dedicação, a mim e ao tema.

À Benvinda e à Dina por me acompanharem e por marcarem este longo e árduo

percurso. O vosso reconhecimento pelo meu trabalho estimulou o meu empenho e fez-

me ansiar por mais. Especialmente à Benvinda e à Mónica, que nunca me deixaram

desistir, mesmo quando a incerteza e o medo turvavam o caminho: obrigada pelo vosso

apoio incondicional!

A ti, Rute, agradeço por me ajudares ao longo dos dois anos de Mestrado. Agradeço

a companhia e a lealdade. Agradeço a tua amizade e a tua paciência.

Ao Pedro por acreditar sempre em mim. Obrigada pelo carinho e incentivo!

Finalmente, mas não menos importante, agradeço aos meus pais e à minha irmã,

Inês, por investirem sempre em mim e nunca deixarem que desistisse. Por todo o amor e

sacrifícios, obrigada!

A realização deste trabalho deve-se, de alguma forma, a todos e a todas; e a todos

vós me sinto profunda e sinceramente grata!

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Resumo

Este trabalho tem como principal objeto de estudo as “Fichas de Avaliação de Risco”

utilizada em situações de violência doméstica. O tema tem presença assídua nos

noticiários e, materialmente, na vida de muitas mulheres e, embora esteja difundido o

princípio da igualdade de género, o número de vítimas desde o início do ano evidencia a

atual prevalência do género masculino sobre o feminino. Os atos de violência doméstica

manifestam-se não só, mas também através da linguagem, nomeadamente aquando da

apresentação de queixa à polícia e subsequente entrevista policial, o que faz com que as

perguntas sejam um tópico relevante de pesquisa linguística. Assim, propomo-nos a

analisar as perguntas que integram as “Fichas de Avaliação de Risco”, de modo a verificar

se apresentam alguns problemas linguísticos que possam afetar a sua eficácia. Holt &

Johnson (2010) reportam características como a complexidade sintática, falta de clareza,

construções na negativa e “perguntas multifacetadas” em questões colocadas pela polícia.

Os resultados da nossa análise atestam os resultados do estudo de Holt & Johnson (2010),

assim como de Rock (2001), que evidencia a intertextualidade do depoimento da vítima,

e ainda outros problemas nos vários domínios linguísticos. Além disto, a transposição da

resposta oral da vítima para o plano escrito pode afetar a integridade da prova oral, dada

a natureza complexa e pouco clara das perguntas e a vagueza das respostas (Haworth,

2010). A par destes problemas de natureza linguística, verifica-se o risco de generalização

dos casos (Nunes-Scardueli, 2015): tratando-se de um inquérito padrão, as “Fichas de

Avaliação de Risco” não estão preparadas para contemplar as particularidades de cada

caso, tendo em conta, principalmente, o tipo de respostas fechadas que exigem. Por fim,

será apresentada uma proposta de reformulação das perguntas a integrarem a Ficha de

Avaliação de Risco.

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Palavras-chave: Linguística Forense, desigualdade de género, Fichas de Avaliação de

Risco, EARHVD.

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Abstract

This dissertation focuses on the study of the questions asked by the Police to victims

reporting cases of domestic violence (DV). The topic has been regularly in the news in

recent years, as domestic violence reflects on the lives of many women. And although the

principle of gender equality is widespread, the number of victims in Portugal this year

highlights the current domination of males over females. Acts of domestic violence

manifest themselves – not only, but also – through language, particularly when filing a

complaint with the police and being subsequently interviewed by the police. This makes

an analysis of the questions asked a relevant topic of linguistic inquiry. I therefore set to

conduct an analysis of the questions included in the risk assessment forms used by the

police to establish the risk faced by the victims, in order to determine if they present any

linguistic issues that can affect their effectiveness. Holt & Johnson (2010) establish that

similar procedures include issues such as syntactic complexity, lack of clarity, use of

negatives and ‘multifaceted questions’. The results of this analysis are in line with the

findings reported by Holt & Johnson (2010), as well as with those reported by Rock

(2001), who highlights the intertextuality of the victim's statement. This research also

found issues in the diverse linguistic domains. It is also found that transforming the

victim's verbal statement into written form, by using reported speech, may affect the

integrity of the oral version, given the complex and unclear nature of the questions and

the vagueness of the answers, as reported by Haworth (2010) for similar contexts.

Alongside these linguistic problems, there is a generalization of the cases (Nunes-

Scardueli, 2015): as they are part of a standard survey, the forms are not able to address

the peculiarities of each individual case, mainly taking into account the type of closed

answers that they demand. Finally, a proposal is made to rephrase the questions included

in the risk assessment forms.

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Keywords: Domestic violence, gender inequality, Risk Assessment Forms, EARHVD

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Introdução

A manifestação mais explícita e perversa do domínio patriarcal é a violência física

contra as mulheres. Este tipo de violência marca muitas vidas conjugais, onde o papel do

marido se associa ao poder e ao controlo e o das mulheres ao de serem controladas por

eles. As raízes desta desigualdade hierárquica no seio de uma relação são antigas, fortes

e persistem nos dias de hoje. A dominação do masculino, além de implicar a

discriminação feminina (pondo em causa o seu papel na sociedade), privilegia a

legitimação da violência contra a mulher, de onde muitos agressores saem impunes.

Contudo, o “direito” que outrora permitia aos homens baterem nas (suas) esposas

não é mais válido, embora os valores da cultura patriarcal continuem atuais e a gerar

condições que acentuam o papel secundário da mulher, levando, desta forma, ao uso de

violência contra ela. Ao bater na companheira, o homem evidencia a sua descrença na

incapacidade de a mulher corresponder ao modelo de representação de “boa esposa” e,

como se não fosse suficiente, responsabiliza-a pelas agressões (Alves et al., 2016) –

declaração fortíssima da sua desvalorização.

O passado de subordinação feminina é longo, pautado pela associação das

mulheres aos trabalhos domésticos e caracterizado pela consideração da mulher como

mera propriedade do marido. Isto originou uma relação de poder e de dependência

financeira e material da mulher relativamente ao homem. Viviam na sombra dele e o mito

da família feliz escondia a atroz realidade que se vivia em muitos lares. As mulheres eram

castigadas, agredidas, torturadas e assassinadas naquele que é suposto ser um local de

refúgio, paz e amor. Ainda hoje, todos tendem a desejar e a crer que as agressões por parte

de um membro da família são, de alguma forma, menos sérias, menos dolorosas e menos

perversas do que aquelas praticadas por um estranho, tal é a força do mito da família feliz

e o desejo da sua preservação (Dobash & Dobash, 1983). Ainda de acordo com estes

autores, todos se preocupam com os perigos exteriores e previnem-se contra eles, pois

não há dúvida de que ser atacado ou violado por um estranho num beco é assustador,

humilhante, doloroso e até fatal, mas há coisa pior do que isto acontecer dentro de casa e

pelas mãos de um familiar? A verdade é que, para a maioria das pessoas, e especialmente

para as mulheres e crianças, a família é o grupo mais violento ao qual provavelmente

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pertencem (Dobash & Dobash, 1983). De facto, o último Relatório Anual de Segurança

Interna (RASI, 2018) comprova que a maior parte das violações reportadas em 2017

(cerca de 55%) foram consumadas por conhecidos ou familiares. Esta é a principal razão,

segundo uma notícia do jornal Público, para o silenciamento das vítimas, pois muitas não

se identificam como tal “porque julgam que o contacto sexual é uma obrigação que deriva

da formalidade do casamento” (Faria, 2018a), desvalorizando, por isso, qualquer tipo de

agressão que aconteça no seio da relação.

Ao dar prioridade ao valor da privacidade, qualquer ajuda externa ao domínio

familiar era vista como uma violação da santidade do lar. Desta forma, o que acontecia

em casa deveria permanecer em casa. Mas, a partir dos anos 60 do século XX, os

comportamentos agressivos, em contexto familiar, começaram a ser reconhecidos como

anómalos e inadequados, constatando-se, assim, uma maior consciencialização do

problema de violência doméstica. Violência doméstica é entendida, neste trabalho, como

todas as agressões físicas e psicológicas investidas contra as mulheres em contexto de

intimidade. No entanto, encarar a abertura de situações tão delicadas como estas não foi

um processo fácil e imediato, uma vez que punha em xeque a imagem romântica da

família, surgindo, assim, “uma espécie de tabu” (Dias, 2001, p. 104) em torno do assunto.

O tabu, intimamente ligado à vergonha, leva a que muitas mulheres não denunciem a sua

situação, e insistam numa relação tóxica e abusiva. Estes atos conformistas e submissos,

nos anos 60, levaram à teoria da “mulher masoquista”, baseada no pensamento freudiano.

Esta proposta culpabilizava a natureza inconsciente da mulher pelos ataques do

companheiro/ marido, e considerava-a masoquista por, após os maus tratos, continuar

presa naquela relação. Nos anos 70, falava-se em “desânimo aprendido”. A teoria do

“desânimo aprendido” considera que os constantes atos de violência contra a mulher

deixam-na desmotivada e submissa ao agressor, “tonando-se uma pessoa passiva e

desprotegida” (Dias, 2008, p. 158). Nos anos 80, a vítima é vista como “‘sobrevivente

ativa’” (Dias, 2008, p. 158), uma vez que, conforme revelou a investigação realizada, as

vítimas procuram constantemente uma janela de oportunidade para se libertarem da

situação em que se encontram, recorrendo, muitas vezes, a ajuda externa. De acordo com

esta proposta, a violência não só provoca medo, como também insta à ação, ficando, desta

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forma, demonstrado que as vítimas pensam constantemente nas oportunidades de

conseguirem uma vida melhor.

A conceção de subordinação da mulher face ao homem instalou-se no imaginário

comum, e os atos de violência foram banalizados e considerados necessários para punir a

desobediência da mulher (Alves et al., 2016). No entanto, as mudanças sociais,

económicas e políticas que foram ocorrendo, principalmente na época industrial, e que

levaram as mulheres, pela primeira vez, ao mundo do trabalho fora de casa, contribuíram

para a criação de consciência do valor feminino e para o desejo de igualdade no espaço

público e privado. Os séculos XIX e XX pautaram-se pelo surgimento de mulheres

escolarizadas, independentes e ativas na luta pelos seus direitos, contrapondo-se, deste

modo, à mulher que tinha a sua relação com os homens definida, os seus parâmetros de

comportamento estabelecidos, a sua subserviência ensinada e os desvios controlados.

Assim, a cultura patriarcal começa a ser posta em causa por aquelas que até aí tinham

sido vítimas de opressão e subalternidade, para agora lutarem por um papel ativo, com

valor na sociedade e para a sociedade.

Estes novos ideais tiveram, porém, como obstáculo o orgulho de uma herança

patriarcal que não estava pronta a ser questionada nem a ser derrotada. Os movimentos

feministas chamaram a atenção, desde o início, para a necessidade de direitos iguais,

independentemente do género, defendendo “vínculos pessoais estabelecidos de forma

igualitária e de total domínio e autonomia interpessoal” (Santos, 2009:3). Deixaria de

haver, numa relação, domínio de um membro sobre o outro, instituindo-se uma parceria,

onde as pessoas têm igualmente direitos e deveres (Mill, 1977). O “abalo da identidade

dominante masculina” (Santos, 2009, p. 3) (que passou pela desmistificação da perspetiva

do homem enquanto ser viril, insensível e agressivo, características que se alimentavam

do poder e influência que detinham sobre a mulher) não tardou a surgir e, como resultado,

a manifestação de masculinidade começou a traduzir-se, principalmente, por atos de

violência. Em contrapartida, a consciência das mulheres sobre a construção social de uma

imagem da mulher veiculada pela religião foi-se alterando com o tempo, e muitas são as

que reagem às agressões, pondo, ainda mais, em causa o modelo de autoridade masculino.

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A par de todas estas mudanças, o desamparo da mulher perante a lei também se

alterou, mas nem assim a integração desta ficou facilitada, pois a norma social ainda é

masculina; as mulheres ainda não conseguem atingir todos os patamares da sociedade,

pelo menos com a facilidade de um homem, nomeadamente no meio profissional, onde

continuam a existir alguns cargos destinados preferencialmente a pessoas do sexo

masculino. Portanto, durante muito tempo, a realidade não correspondeu ao nível formal

da lei por não se achar legítima tal legalidade. Significa isto que, apesar das tentativas

emancipadoras de um discurso que pune as agressões físicas e psicológicas ao cônjuge

ou ex-cônjuge, continuava a imperar (erroneamente) o velho ditado “Entre marido e

mulher não se mete a colher”, tratando-se única e exclusivamente de uma mudança

superficial e ilusória. Dobash & Dobash (1983) referem que o domínio patriarcal por meio

da força é sustentado por uma ordem moral que reforça a hierarquia matrimonial e

dificulta, às mulheres, o combate contra as formas de dominação e controlo masculinas,

porque as batalhas são vistas como erradas, imorais e uma violação do respeito e da

lealdade que é suposto a mulher ter para com o marido.

Ainda hoje existem mulheres que ocultam a sua situação por vergonha, medo ou

naturalização das agressões, e não recorrem aos seus direitos, resignando-se a situações

de violência (Alves et al., 2016). Esse silenciamento impede que recebam a proteção que

o Estado disponibiliza. É garantida segurança à vítima e, se necessário, à sua família. A

vítima encontra ainda serviços e organizações prontos para prestar qualquer tipo de apoio,

nomeadamente psicológico. São, também, assegurados apoios sociais, como a

justificação de faltas, apoio ao arrendamento, ao tratamento clínico no Serviço Nacional

de Saúde e a isenção de taxas moderadoras. Além disso, em situação de grave carência

económica é possível pedir um adiantamento, ao Estado, da indemnização que é devida

pelo/a agressor/a. A vigilância policial ao local de residência ou de trabalho da vítima e

o contacto entre o agente da polícia e a vítima são aumentados em caso de elevado nível

de risco, bem como é reforçado o distanciamento que o agressor deve manter da vítima

(República Portuguesa, 2009).

Porém, o contexto privado em que as agressões – físicas e psicológicas – ocorrem

dificulta a intervenção das autoridades, e, então, a polícia prende mais facilmente

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indivíduos envolvidos em atos não violentos fora de casa do que prendem maridos por

agressões cometidas em casa (Dobash & Dobash, 1983), uma vez que, sem provas ou

testemunhas, é difícil prosseguir com o processo de acusação. Por outro lado, nos casos

denunciados, muitas vezes os agressores saem impunes por os “‘danos físicos provocados

não [assumirem] especial gravidade’” (Oliveira, 2018a). Este tipo de afirmações provoca

nas vítimas o sentimento de desmotivação e ceticismo no sistema judicial.

Considerando todo este contexto, linguisticamente este estudo incidirá,

principalmente, sobre a forma como a linguagem utilizada em contexto policial, nos casos

de violência doméstica, se manifesta tendenciosa ou parcial, pendendo para os valores

masculinos consagrados numa outra época social. Da mesma forma que noutros contextos

se privilegia os depoimentos escritos, também em ocorrências de violência doméstica são

favorecidas as declarações por escrito (como, por exemplo, as participações de queixa e

os autos de inquirição), podendo, inclusivamente, “falar” pela vítima.

Nos interrogatórios policiais, os intervenientes são sujeitos às perguntas de

profissionais. Estes encontros têm como principal objetivo a recolha e o registo por escrito

das evidências que, por sua vez, têm um valor probatório maior do que os relatos orais

nos quais se baseiam. No entanto, a colocação das perguntas é exigente, pois questionar

de maneira direta e sem margem para mais do que uma interpretação nem sempre é fácil

para os especialistas na área, assim como é difícil avaliar com precisão a capacidade de

perceção do entrevistado relativamente à pergunta (Johnson, 2006). Desta forma, torna-

se necessária uma análise linguística das características linguísticas e formais das

questões, já que os entrevistados são confrontados com algumas complexidades. Holt &

Johnson (2010) expõem algumas delas: uso da forma negativa em perguntas, justaposição

de tópicos que não estão diretamente relacionados, nominalizações e até perguntas

ambíguas. Estes traços dificultam o processamento das perguntas, mas, como afirmam as

autoras, são questões linguisticamente táticas que desenham o seu efeito a partir do facto

de que, por vezes, a conversa é projetada para fazer a testemunha submissa, e criar

material significativo para o ouvinte (Holt & Johnson, 2010).

Apesar de os depoimentos serem vistos como a voz da testemunha, são, na

verdade, o resultado de múltiplas repetições da mesma história, nas quais alguns detalhes

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se perdem, principalmente em perguntas fechadas, como os que são propostos às vítimas

de violência doméstica. Milne & Shaw (1999) consideram que o depoimento escrito é

visto como um substituto da testemunha, para falar ao longo das investigações quando as

próprias testemunhas não estão presentes e, por isso mesmo, é importante que os

depoimentos contemplem todas as particularidades do caso e não se concentrem em

generalidades. Os depoimentos deveriam conter as ideias que foram apresentadas na

primeira narração dos eventos, sem que nenhuma fosse adicionada ou retirada. Neste

sentido, as palavras da vítima deveriam ser mantidas no depoimento escrito, para assim

se obter o máximo de pormenores fornecidos pelo discurso original, constituindo-se,

então, um relatório fidedigno. Contudo, é preciso ter em conta que a informação

considerada importante ou necessária pelas vítimas difere daquela que a polícia requere

como prova – até para efeitos de avaliar, de forma prática e imediata, o potencial de risco

para a vítima. Esta divergência na valorização de factos faz com que a transposição escrita

siga um dos lados e descuide o outro – neste caso é a perspetiva da polícia que prevalece

no depoimento escrito. Durante o processo de registo da informação, o entrevistador pode

fazer várias coisas, algumas delas menos neutras do que aquilo que o processo de registo

sugere (Rock, 2001). Os detalhes que são descartados podem, mais tarde, revelar-se

cruciais para a investigação.

Deste modo, as tão ambicionadas valorização, defesa e salvaguarda dos direitos

da vítima ficam condicionadas à versão dos eventos definitiva, que é da responsabilidade

da polícia. Ainda que de forma subtil, a verdade é que a culpabilização da mulher pelas

agressões sobre ela investidas é uma realidade atual, mesmo não passando de um mero

preconceito (Alves et al., 2016; Artinopoulou et al., 2018; Balestro & Gomes, 2015;

Gebrim & Borges, 2014). Neste sentido, a análise da linguagem utilizada nos

interrogatórios é essencial para que esta se torne o mais clara e objetiva possível, menos

preconceituosa e tendenciosa, no sentido de influenciar a resposta da vítima.

O leque de emoções a que a entrevistada está exposta no momento da entrevista

policial também influencia consideravelmente as suas respostas, e, por esta razão, o

inquérito é efetuado duas vezes de forma a haver distanciamento temporal suficiente.

Porém, é necessário que o segundo inquérito não substitua de forma alguma o primeiro,

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pois neste, de acordo com a polícia (comunicação pessoal), as emoções influenciam a

neutralidade da descrição dos acontecimentos ao estarem à flor da pele, levando as

vítimas a agir mais impulsivamente, e podendo, por consequência, adulterar os factos.

Por outro lado, no momento do segundo inquérito, fatores externos como a família ou o

próprio agressor podem levar a vítima a desistir da queixa, consciente ou

inconscientemente.

O objetivo primordial deste trabalho é analisar linguisticamente as questões das

“Fichas de Avaliação de Risco” com as quais as vítimas são confrontadas, após denúncia

de situação de violência doméstica e, deste modo, perceber se a formulação das perguntas

tem em conta o registo no qual serão aplicadas (oral) e a condição de fragilidade

emocional da vítima que, perante perguntas complexas, poderá ter dificuldades a entendê-

las e a responder.

Neste sentido, pretende-se responder a algumas questões, nomeadamente:

• Quais as características da linguagem dos inquéritos policiais em

contextos de violência doméstica?

• A integridade da resposta da vítima é completamente salvaguardada no

depoimento escrito?

• A versão (d)escrita dos factos influencia a sentença do agressor?

Este estudo está organizado em quatro capítulos. A primeira parte corresponde ao

estudo teórico da violência doméstica, relacionando-a com o problema da desigualdade

de género e com a forma como se tem manifestado no seio familiar ao longo do tempo

(Capítulo 1.). Neste primeiro capítulo, discutir-se-á a evolução que se deu no tratamento

das mulheres e, consequentemente, da violência doméstica, e como esta mudança

constituiu um desafio para o sistema judicial. Focamo-nos, ainda, numa abordagem da

violência doméstica sob a perspetiva da Linguística Forense, concluindo a primeira parte

com uma secção sobre interrogatórios e entrevistas policiais.

A segunda parte, o Capítulo 2, dedica-se ao estudo empírico realizado. Nela faz-

se uma breve introdução ao corpus analisado e explicita-se a metodologia de análise do

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mesmo. Num segundo momento, descreve-se o corpus que será objeto de análise e

explicita-se a metodologia de análise adotada para realização do estudo.

Após esta descrição dos dados e do seu tratamento, no Capítulo 3 inicia-se a

análise linguística das questões constantes das “Fichas de Reavaliação de Risco”, tendo

em conta algumas áreas da linguística (sintaxe, semântica, nível pragmático-discursivo,

coerência e coesão), e confronta-se essa análise com relatórios da Equipa de Análise

Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD), que nos servirão de

suporte na análise.

O Capítulo 4, por seu turno, é reservado à discussão dos resultados obtidos no

capítulo de análise. Segue-se uma proposta de reformulação das perguntas a integrar as

“Fichas de Reavaliação”, seguindo o modelo da ficha já existente.

Esta dissertação termina com considerações finais sobre o trabalho realizado,

discutindo os possíveis contributos do mesmo, e propondo possibilidades de trabalho

futuro.

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Capítulo 1. – Violência Doméstica em Portugal

A família é idealizada por todos como uma instituição protetora e feliz; é pensada

como o “lugar dos afectos” (Dias, 2010, p. 246) quando, na verdade, a realidade contradiz

este estereótipo, pois “[m]ais de metade dos violadores são familiares ou conhecidos das

vítimas” (Faria, 2018a), assim como acontece relativamente aos perpetradores de

violência doméstica: 82,5% das vítimas são mulheres, das quais 28,2% são casadas e

23,1% são solteiras (APAV, 2017). O seio familiar revela-se, desta forma, o local mais

violento e perigoso para as mulheres, já que a sua privacidade inerente significa

“isolamento social e invisibilidade das situações de opressão” (Dias, 2004, p. 35),

dificultando a intervenção das autoridades. Porém, a família continua a ser vista segundo

uma conceção religiosa enquanto “instituição que transcende os seus membros” (Dias,

2010, p. 247) e que os protege dos perigos do mundo exterior (conceção religiosa),

quando a ameaça, na maior parte das vezes, se encontra no seu íntimo.

Durante muito tempo, o homem teve o direito de “exercer atos violentos sobre a

mulher em determinadas circunstâncias (…) uma situação que perdurou até aos finais do

século XIX na generalidade dos países europeus” (Martins, 2013, p. 12). Tal direito

relaciona-se com o papel desigual desempenhado pelo homem e pela mulher nas relações

sociais e íntimas: as mulheres, durante séculos, não eram dignas de usufruir de quaisquer

direitos e estavam submetidas à autoridade masculina. Elas eram vistas única e

exclusivamente como garantia de descendência – neste ponto a religião exerce uma forte

influência, disponibilizando “às mulheres modelos de representação que estas têm

tendência a aceitar passivamente como naturais e não como históricos e socialmente

construídos” (Mota-Ribeiro, 2000, p. 2). O homem, por outro lado, exercia todo e

qualquer poder sobre ela, tendo o direito de reprimir os comportamentos desadequados e,

sendo assim, as agressões eram vistas como punições necessárias e naturais no exercício

do poder de chefe de família:

“e tinha concretização em normas que estabeleciam a quase impunidade do homicídio

da mulher pelo marido em flagrante adultério, a legitimidade da violação da

correspondência daquela por este ou mesmo a impossibilidade de cometimento do

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crime de violação entre cônjuges, uma vez que este tipo legal pressupunha a

inexistência de casamento”.

(Carmo, 2018, p. 39)

As mulheres eram, pois, vítimas, não só do comportamento agressivo investido

contra si, mas também de um sistema que as preparou para a aceitação de uma condição

de subalternidade.

A forma de pensar o género feminino foi-se alterando ao longo dos tempos;

porém, como em qualquer mudança, o processo foi longo e lento e a “noção de igualdade

entre homens e mulheres é difícil de implementar” (Martins, 2013, p. 16). Ainda que o

estatuto da mulher tenha sido reconhecido com mais direitos, as relações violentas

persistiram, fruto das raízes históricas de discriminação da mulher, suscitando, ainda,

“práticas sociais que permitem ataques contra a sua integridade, desenvolvimento, saúde,

liberdade e vida” (Gebrim & Borges, 2014, p. 59).

A denúncia do problema da violência contra as mulheres enquanto violação dos

direitos humanos deveu-se em grande parte aos grupos feministas que denunciaram casos

de maus tratos confinados ao espaço íntimo, tornando-os numa questão pública e política

(Casimiro, 2008). Este movimento abalou a conceção idílica do espaço familiar ao expor

situações de mulheres vítimas dos próprios maridos no contexto íntimo, chamando, ainda,

a atenção para o silêncio imposto socialmente sobre as agressões. Em Portugal, só em

2000 passou a identificar-se a violência entre cônjuges como crime público, através da

Lei nº7/2000 do Código Penal. A classificação deste tipo de violência como crime público

significa que a apresentação de queixa não depende unicamente da vítima; qualquer

pessoa que tenha conhecimento de uma situação de violência doméstica pode denunciá-

la junto das autoridades (APAV)1. Iniciou-se, desta forma, a desconstrução do ditado

popular “entre marido e mulher não se mete a colher”, e, em 2007, foi determinado o

crime de violência doméstica – artigo 152º do Código Penal, na versão da Lei nº59/2007,

de 4 de setembro (Carmo, 2018).

1 https://apav.pt/vd/index.php/joomla/na-justica

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Apesar do reconhecimento legal deste crime, a verdade é que o ato de violência

doméstica continua envolvido em conservadorismos e preconceitos relativos ao papel da

mulher numa relação. As vítimas continuam a ser culpabilizadas pelos atos investidos

contra si (“Se contasse ia ser outra vez a ‘violada’, a ‘maluca’, a mentirosa’”(Faria,

2018b)), predominando a “filosofia do ‘puseste-te a jeito’” (Faria, 2018b), para além de

que a condenação dos agressores é sentida como uma absolvição para as vítimas, pois

apenas 37% dos agressores de crimes sexuais foram condenados a uma pena de prisão

efetiva. Porquê? Porque os “danos físicos provocados não assumem especial gravidade”

(Oliveira, 2018a), ou porque “a culpa dos arguidos situa-se na mediania, ao fim de uma

noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não

premeditação)” (Oliveira, 2018b), como se referiu relativamente a um caso de violação

coletiva ocorrido recentemente num bar em Vila Nova de Gaia. Numa entrevista ao jornal

Público, Isabel Ventura, autora da tese de doutoramento Medusa no Palácio da Justiça

ou Uma História da Violação Sexual, esclarece que:

durante séculos as leis eram feitas por uma elite que não tinha grandes receios de

protecção pessoal, mas pretendia sobretudo proteger a sua propriedade. “Daí que os

crimes contra a propriedade eram punidos de forma mais pesada do que os crimes

contra as pessoas” (…). A situação alterou-se na letra da lei nos últimos anos, mas

nem sempre se consegue que os juízes respeitem o seu espírito.

(Oliveira, 2018b)

Em casos de violência doméstica, “[a]penas 10% dos condenados (…) vão para a

prisão” e “só 14% dos processos por violência doméstica resultam numa condenação”

(Cordeiro, 2015). Esta notícia do Público relata ainda que “as penas suspensas superaram

em muito as penas de prisão efetiva (…). Assim, o condenado fica muito mais vezes em

liberdade, e isso não só suscita dúvidas sobre os perigos para a vítima”, como também

nelas suscita medo por não se sentirem seguras.

Estudos de Conley & O’Barr (2005) mostram que o sistema legal dá mais

credibilidade a um discurso impactante, enquanto que aos discursos menos fortes é

atribuída uma menor probabilidade de serem credíveis (Hildebrand-Edgar & Ehrlich,

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2017, p. 90). A lógica é a de que, por a vítima ser capaz de se impor verbalmente,

demonstra ter a capacidade de resistir aos atos investidos contra si. Contudo, no caso R v.

Wagar, ocorrido no Canadá, e que foi estudado por Hildebrand-Edgar & Ehrlich (2017),

as autoras revelam que a falta de credibilidade da queixosa se deve ao facto de proferir

um discurso poderoso, demonstrando, nesse sentido, traços de assertividade e confiança

que, aos olhos do juiz, eram incompatíveis com os traços de personalidade que uma vítima

evidenciaria: ser vulnerável e indefesa (Hildebrand-Edgar & Ehrlich, 2017, p. 104). Deste

modo, podemos constatar que, pelo estilo de fala, são ativados os estereótipos sexuais –

neste caso sobre aquilo que é uma vítima sexual feminina.

Em Portugal existe o mesmo (tipo de) preconceito relacionado com o género

feminino, marcado por discursos como “o testemunho de [uma] mulher ‘autónoma’ não

é credível”, insistindo na ideia de que uma “mulher moderna” e independente não se

sujeita a uma relação opressora e violenta (Pereira, 2019b). Define-se, assim, uma

tipologia de vítimas quando, na verdade, todos podemos ser vítimas deste crime,

independentemente do nosso nível de estudo, estatuto social, etnia, religião ou estado

civil. Acresce ainda o facto de, no nosso país, não se levar a cabo um processo porque a

vítima faltou a uma audiência ou porque desistiu da queixa. Estas atitudes são, aos olhos

da nossa Justiça, interpretadas como falta de interesse por parte da ofendida. É esquecido,

no entanto, que a esse silêncio se pode associar a fraqueza da vítima e a sua intimidação

por terceiros, inclusive pelo próprio agressor.

Assim, “o silêncio é uma categoria do discurso que faz do não dito o lugar da

palavra que, apesar de não ter sido verbalizada, precisa ser desvelada” (Nunes-Scardueli,

2017, p. 28). O silêncio da vítima não pode ser interpretado somente como uma melhoria

da situação, pois este tipo de violência só raramente ocorre de forma isolada. Geralmente,

estes crimes tendem a escalar com o tempo e, aquilo que começa por ser agressões

ocasionais culmina, muitas vezes, na morte da vítima (Artinopoulou et al., 2018, p. 58).

Além disso, “quanto mais íntima for a relação entre ambos, mais violento tende a ser o

abuso e maior tende a ser o sentimento de traição” (Dias, 2004, p. 36) por parte de um

“homem que lhe prometeu amor e confiança” (Dias, 2004, p. 36) e, mesmo assim, há

ainda muitas mulheres que não denunciam a sua situação, não só por medo ou banalização

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das agressões (físicas ou psicológicas), mas também por acreditarem que nada pode ser

feito para as ajudar e que a intervenção da polícia será indiferente, bem como a perceção

da tolerância para com o agressor, a falta de informação sobre os seus direitos e até medo

do estigma social (Artinopoulou et al., 2018, p. 73). A conceção tradicional do feminino,

divulgada pela igreja, continua a influenciar bastante as mulheres da sociedade

contemporânea (Mota-Ribeiro, 2000), e constitui outra razão para as vítimas não

denunciarem os abusos.

O género continua a impor-se como “princípio de pensamento e de estruturação

do mundo social [referindo-se] aos comportamentos e expectativas socialmente

aprendidos a propósito de ambos os sexos” (Dias, 2008, p. 153). Não só “constitui uma

categoria social que estabelece as nossas possibilidades de vida [como também] orienta

as relações sociais” (Dias, 2008, p. 154), contribuindo para o silenciamento de muitos

casos de violência doméstica. Desde os primórdios da humanidade que existe

desigualdade de género, presente desde logo na divisão de tarefas entre homens e

mulheres. Este desequilíbrio não encontra raízes na religião, mas esta é uma justificação

para que continue a ser perpetuado ao longo dos tempos.

Embora vivamos numa sociedade que se diz igualitária quanto ao género, os

tribunais continuam a rotular as mulheres como o sexo frágil e, portanto, não é possível

que uma vítima “autónoma” seja de facto uma vítima. Isto simboliza a hipocrisia do

presente, porque os valores patriarcais e “assimétricos de género” (Dias, 2008, p. 154)

continuam a imperar num “mundo onde a norma é masculina” (Dias, 2008, p. 154),

espelhado no tratamento da violência doméstica (e, por vezes, nas decisões dos tribunais),

acabando por contribuir para o silenciamento das vítimas, pois estas têm “medo da

retaliação, das dificuldades emocionais que vão enfrentar se forem a tribunal, com medo

do estigma social e com dúvidas – justificadas – quanto à capacidade de o sistema ser

capaz de responsabilizar criminalmente o agressor” (Faria, 2018a). Daqui podemos

depreender que até a perspetiva do estilo de linguagem usada por homens e por mulheres

é estereotipada: Johnson & Ensslin (2007) mostram que o uso masculino da linguagem

tende a evoluir positivamente e a nível estético de uma forma agradável, associado a uma

abertura ou quebra de tabus. Por outro lado, a linguagem feminina foi menos passível de

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ser considerada positivamente e, quando o foi, tal ocorreu no contexto das limitações

típicas de género. Os autores concluíram, contudo, que a linguagem feminina tipicamente

estereotipada não é boa (Baker, 2013). As mulheres vítimas de violência doméstica

devem, então, começar a queixar-se de forma assertiva e a desligar-se dos estereótipos

sociais, pois só assim se pode começar a percorrer um caminho justo e igualitário na

justiça quanto à questão de género, possibilitando a desconstrução de que só as mulheres

frágeis são vítimas.

A sujeição das mulheres aos homens, ainda que encarada como natural, não deixa

de ser infundada, tal como defende Mill (1977). É, antes, arbitrária, prevalecendo a lei do

mais forte (fisicamente).

O início de 2019 foi dramático no que toca a crimes de violência doméstica: a 4

de fevereiro as vítimas mortais eram já nove e, apesar de as “técnicas de investigação”

(Cordeiro, 2015) estarem num bom caminho, a verdade é que a “morte de mulheres não

está a baixar” (Faria, 2019). A prevenção de atos de violência doméstica é feita junto da

comunidade, aliando “a sensibilização, a informação, com ações que permitam mudar

uma cultura patriarcal” (Faria, 2019); porém, a prevenção dos “femicídio[s]” (Faria,

2019) começa no momento de apresentação da queixa e consequente inquérito à vítima.

Não se pode negar que o processo é muito lento, mas podemos interrogar-nos se, caso os

inquéritos fossem mais eficazes, o resultado não seria diferente. Como podemos encarar

que “[n]o papel existe um compromisso claro com o combate à violência doméstica, mas

(…) não são abraçados da mesma forma por todos os profissionais que lidam com as

vítimas” (Flor, 2019) se é pedido ao agente para avaliar o risco em que a vítima incorre

baseando-se na sua experiência profissional? Se nem todos os profissionais lidam da

mesma forma com as vítimas é natural que nem todos os casos “[estejam] a ser

devidamente classificados e punidos como tal” (Flor, 2019).

Um dos elementos a ter em conta na análise das denúncias de violência doméstica

é o nível de risco a que a vítima se encontra exposta. Não sendo o intuito deste trabalho

analisar os fatores de risco em situações de violência doméstica contra as mulheres nas

relações íntimas, pareceu-nos relevante, tendo em conta que o objeto de estudo deste

trabalho é a formulação das questões constantes da “Ficha de Avaliação de Risco”, fazer

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o levantamento de alguns comportamentos de risco, que podem condicionar a avaliação

de risco pelas forças policiais. As crenças culturais (Viana, 2014) e as características

psicológicas do agressor (como o défice de controlo da frustração, o desemprego ou até

um passado marcado por uma situação de violência doméstica entre os pais/educadores)

agravam o risco de violência nas relações. Além disto, o consumo abusivo de substâncias

como álcool e outras drogas está, também, associado a comportamentos de risco. No que

toca às mulheres, é mais provável que sejam vítimas nas relações íntimas aquelas que

tenham uma situação económica superior à do companheiro, mas também uma situação

de gravidez e problemas de saúde física e mental tornam as mulheres mais vulneráveis a

estas situações (Morais-Gonçalves et al., 2018) . Por outro lado, as vítimas são mais

propensas a “comportamentos de risco para a saúde, tais com o consumo de tabaco, álcool

e droga” (Graça, 2015, p. 17). Todos estes fatores contribuem para uma maior

probabilidade de agressões futuras (Morais-Gonçalves et al., 2018) – e,

consequentemente, para um nível de risco mais elevado.

Um tratamento porventura mais justo dos casos de violência doméstica dar-se-á

quando não for descurada a vertente linguística que, apesar de esquecida ou simplesmente

desconhecida, é tão importante e pertinente quanto uma intervenção a nível legislativo.

Afinal, as marcas de género estão presentes na linguagem e é exatamente isso que deve

ser combatido para que as vítimas sejam tratadas com isenção. Por outro lado, podemos

interrogar-nos se as perguntas feitas às vítimas são colocadas de forma a estas perceberem

exatamente o que lhes é exigido como resposta. Perguntamo-nos se os formulários, tal

como estão redigidos, não levantam problemas aos agentes que têm de lidar com eles.

Com efeito, a abordagem linguística pode elucidar sobre problemas de nível semântico,

sintático e pragmático existentes na formulação das questões que poderão estar a causar

entraves à aplicação das perguntas e das respostas.

1.1. Um desafio ao Sistema Judicial

A luta feminina por direitos igualitários prolonga-se historicamente sem ainda ter

conseguido alcançar, completa e idealmente, os seus desígnios. As raízes histórico-

culturais são os principais entraves ao progresso que se tem vindo a tentar impor (Santos,

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2009), pois não é fácil construir e implantar a imagem da mulher enquanto ser

independente e igualitário numa sociedade assente na cultura patriarcal.

Ao olharmos para o percurso histórico da mulher vemo-lo desprovido de qualquer

apoio ou proteção legal, durante séculos. A violência no casamento era considerada

natural e autorizada desde a Idade Média, altura em que as mulheres “através do

casamento (…) perdiam a sua identidade legal individual, passando a constituir,

juntamente com os maridos, uma entidade legal única, cujo representante era o homem”

(Dias, 2010, p. 250). Este princípio rebaixava ainda mais a posição social da mulher ao

conceder ao homem o direito de bater na esposa.

A hegemonia masculina prolongou-se por demasiado tempo, enraizando ainda

mais a ideia do homem enquanto ser superior e a interiorização por parte das mulheres

dos “ideais dos quais elas se devem aproximar” (Toldy, 1998, p. 27). Somente no século

XX ocorreram as primeiras mudanças no estatuto legal das vítimas de violência doméstica

(Dias, 2010, p. 52). A disseminação deste problema pelos grupos feministas e

consequente consciencialização social sobre a atipicidade destes comportamentos fez

com que o problema ganhasse lugar na agenda política, ainda que se insistisse na

salvaguarda da união familiar, uma investida contra os interesses da vítima, que se via

forçada e incentivada, moral e legalmente, a permanecer com o agressor. Portugal é um

país com valores católico-apostólico-romanos, onde a lei da Igreja – preservação a todo

o custo da família – ainda se sobrepõe, principalmente em locais mais rurais, à lei dos

tribunais; esta última, apesar de tentar ser o mais justa possível, também não se dissocia

do seu peso cultural. O polémico acórdão do juiz Neto de Moura, que justificou o uso de

violência do agressor sobre a vítima com base no pressuposto de que “o adultério da

mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente” (Oliveira,

2019a) – e, por isso, invocou uma passagem bíblica que defende a morte da mulher

adúltera para defender o seu ponto de vista, evidencia precisamente a sobreposição, por

um operador da Justiça, da lei da Igreja à lei dos Tribunais.

Enquanto cidadãos, somos fruto da sociedade em que estamos integrados e, por

isso, não é possível cortar o cordão umbilical repentina e drasticamente; a mudança é

gradual e deve começar pelos membros da Justiça (juízes e polícias, especialmente nestes

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casos), pois são eles que têm o poder de dar voz à verdadeira intenção da lei. As

condicionantes histórico-culturais não podem, assim, servir de desculpa para a estagnação

do sistema (Mill, 1977; Mota-Ribeiro, 2000).

Em Portugal, até 1990 “não existia legislação especificamente voltada para a

violência doméstica” (Dias, 2010, p. 257); contudo, a partir de então começaram a

aparecer medidas centradas na proteção das vítimas, impulsionadas por movimentos

internacionais como: a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação Contra as

Mulheres, de 7 de novembro de 1967; a Convenção sobre a Eliminação de todas as

formas de Discriminação contra as Mulheres, de 8 de dezembro de 1979; a Declaração

para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, adotada em 1993 pela Assembleia

Geral da ONU; e a Declaração de Pequim e a Plataforma de Ação da IV Conferência

Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres, de 1995 (Freitas, 2013). O crime de

violência doméstica foi mencionado pela primeira vez no Código Penal de 1982; no

entanto, nessa altura teria de ficar provada a natureza de “malvadez ou egoísmo” (Freitas,

2013, p. 10) das agressões, caso contrário seria posto em causa o crime. Em 1995 passou

a prever-se “os maus tratos psíquicos (…) [e] a exigência da ‘malvadez e egoísmo’ foi

eliminada do corpo do texto” (Freitas, 2013, p. 11). No ano 2000, consagraram-se os maus

tratos enquanto crime de natureza pública, permitindo, assim, a intervenção de qualquer

cidadão conhecedor de uma situação de violência. Porém, mais uma vez, a opinião

pública não acompanha o progresso teórico da lei, pois o ditado “entre marido e mulher

não se mete a colher” continua a ter mais força. Em 2007, a revisão Penal “autonomizou

o crime de maus tratos, desdobrando-o em três crimes distintos (…): o crime de violência

doméstica; o crime de maus tratos e o crime de violação de regras de segurança” (Freitas,

2013, p. 11). No ano de 2009, com a Lei nº 112/ 2009, é atribuído às vítimas de violência

doméstica o “Estatuto de vítima” (Freitas, 2013).

Mesmo assim, estas medidas não se mostraram, nem se mostram, suficientemente

eficientes, tendo em consideração o número de casos de violência doméstica e mortes que

daí culminam. Uma vez mais, este desfasamento entre a existência de leis e a perpetuação

sistemática de violência sobre as mulheres relaciona-se, indubitavelmente, com a

preservação dos valores patriarcais. Apesar de a lei portuguesa ser atual e zelar pelos

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direitos das vítimas, a sua execução não se mostra eficaz, levando, muitas vezes, as

vítimas a desistirem da queixa por sentirem que a lei e o sistema são impotentes para com

o poder do agressor; além disso, todo o processo é muito moroso e financeiramente

dispendioso para o Estado. Entre a denúncia e a aplicação de uma medida de coação dá-

se um compasso de espera que aumenta a vulnerabilidade da vítima e, muitas vezes, esta

vê-se “obrigada” a abandonar a sua casa para sua própria segurança: “a morosidade da lei

não só poderá colocar a vítima numa situação de risco, como também poderá acentuar a

vitimação secundária” (Freitas, 2013, p. 34). Independentemente dos esforços de

intervenção com as vítimas, ainda há a “necessidade de continuarmos a apostar no

desenvolvimento de outras práticas de intervenção que possam, de algum modo, minorar

o sofrimento de quem foi lesado, restituindo a confiança, a segurança individual e o

sentimento de justiça que, não raras vezes, são abalados” (Sani & Caridade, 2013, p. 16).

A difícil conquista de importância por parte das mulheres desafiou o sistema

judicial a abrir-se a um mundo onde a justiça deveria equilibrar os direitos dos homens e

os das mulheres, bem como protegê-las daquilo que, até aí, era visto como simples

punição por um comportamento desadequado. No Direito, a questão do género é

relativamente recente e provavelmente o discurso jurídico ainda possui uma “ideologia

sexista que, em última instância, acaba por redobrar juridicamente a força normativa

sociológica dos [fenómenos] sociais” (Freitas, 2016, p. 132). O papel da mulher na

sociedade foi-se desenvolvendo, mas ainda hoje a igualdade de género não é totalmente

executada: no mundo profissional pode ainda observar-se a desigualdade salarial entre

um homem e uma mulher que desempenhem a mesma função e, judicialmente, continuam

a ser invocados alguns valores naturais e religiosos da cultura patriarcal para justificarem

os abusos cometidos contra o género feminino – se, em séculos passados, o adultério da

mulher era uma atenuante de homicídio, hoje em dia são os ciúmes a servirem de

atenuante ao agressor (Lusa, 2018c).

Os mitos relacionados com a família enquanto lugar de paz e felicidade continuam

a existir e constituem um obstáculo à intervenção do sistema, e mesmo a própria

linguagem jurídica move-se “por um ideal impregnado de valores tradicionais (…) que

se orientam para a preservação do casamento” (Freitas, 2016, p. 136). O momento da

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denúncia “implica, quase sempre, grande desorganização individual [e] familiar” (Sani &

Caridade, 2013, p. 16). Em Portugal, os relatórios da Equipa de Análise Retrospetiva de

Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) mostram esta desagregação familiar,

que ocorre no seio das famílias que vivem esta realidade: “Estavam separados (…), mas

residiam na mesma habitação” (EARHVD, 2017, p. 4), pelo que a morosidade do

processo não ajuda em nada a continuidade da acusação. O tempo traz dúvidas às vítimas

sobre a sua decisão e “certezas” de que são dependentes do agressor, não só

monetariamente, mas também afetivamente.

O incentivo à denúncia é quase anulado pelo sentimento de impotência despertado

pelos resultados de condenações pela prática deste crime. Um sistema no qual as vítimas

confiam, que aplicará a lei, justa e imparcialmente, é o mesmo que, em 2014, condenou

a prisão efetiva 73 agressores e 138 agressores a uma pena de prisão suspensa; em 2015,

foram 15 os condenados a penas efetivas e 203 a penas suspensas; em 2016, o número de

penas efetivas aumentou para 90, mas 1.390 foram penas suspensas (Poças, 2019); em

2017, 119 agressores foram condenados a uma pena de prisão efetiva e 1.287 a uma pena

de prisão suspensa (Palma, Barros, & Frazão, 2019). Ou seja, as vítimas confiam que o

sistema aplicará a lei, justa e imparcialmente, e cada vez mais sobressai o número de

condenações por este crime, embora o número de penas suspensas se destaque das penas

de prisão efetiva.

Embora nem sempre isto reflita uma tomada de decisão desproporcional por parte

da Justiça, a perceção suscitada na opinião pública é, muitas vezes, de injustiça. Esta

diferença significativa entre o número de prisões efetivas e o número de prisões

suspensas, aliada a todos os casos que ficam suspensos por falta de provas, suscita

frequentemente a ideia de impunidade do agressor perante os tribunais, transparecendo,

deste modo, a falta de importância dada à violência doméstica. Fica, assim, uma perceção

genérica de que a Justiça e todos os membros que a exercem encaram os casos como mero

desequilíbrio das relações. Embora o artigo 152º do Código Penal Português defina

violência doméstica como a sujeição “de modo reiterado ou não [a] maus tratos físicos

ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a)

[a]o cônjuge ou ex-cônjuge; b) [a] pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente

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mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem

coabitação; c) [a] progenitor de descendente comum em 1º grau; ou d) [a] pessoa

particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou

dependência económica, que com ele coabite” (República Portuguesa, 2011, p. 98), este

crime continua a ser apontado como um problema que pode ser resolvido com uma

conversa de reconciliação entre vítima e agressor: “C informou os militares [da GNR] do

que se estava a passar. Os militares estiveram à conversa, quer com B, quer com C,

aconselhando-os a terem calma e para resolverem os problemas de forma educada e

amigável e que andar um atrás do outro não se resolve nada.”(EARHVD, 2018b, p. 10).

Todavia, a realidade não é assim tão simples ou ideal.

As medidas de coação, por seu turno, levantam também alguns obstáculos à

proteção das vítimas. Segundo o artigo 200º do Código de Processo Penal (CPP), “o juiz

de instrução pode impor ao arguido a proibição de contacto, por qualquer meio, com

determinada pessoa, ou a proibição de frequência de certos lugares ou certos meios”

(Freitas, 2013, p. 25); porém esta medida de afastamento só é “permitida se existirem

fortes indícios da prática de um crime doloso, punível com pena superior a 3 anos”

(Freitas, 2013, p. 25). Por outro lado, no artigo 16º, nº2 da lei nº61/912 está prevista a

possibilidade de “sempre que tal medida de coação [de afastamento da residência] tenha

sido imposta, a pena que vier a ser aplicada só poderá ser suspensa com a condição de o

arguido não maltratar física ou psiquicamente a mulher”3. A questão que se coloca é se

será que basta a palavra do agressor para se confiar que não mais maltratará a vítima. O

princípio de que a liberdade humana exige responsabilidade é plenamente anulado, pois,

enquanto seres livres, somos responsáveis pelas nossas escolhas; se a nossa conduta

prejudica alguém, então espera-se que seja penalizada, ainda que de forma socialmente

justa e proporcional, não esquecendo, por conseguinte, a futura reintegração na sociedade.

Freitas (2013) considera que “[t]al como está, a lei portuguesa ainda protege demasiado

os arguidos e deixa a vítima como que perdida no meio do sistema criminal” (Freitas,

2013, p. 33). Será pertinente questionarmos, no entanto, se será a lei portuguesa a proteger

2 Esta é uma lei de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica; o artigo mencionado diz respeito às medidas de coação para o agressor. 3 http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=277&tabela=leis

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os valores conservadores do patriarcado, ou os membros que exercem a Justiça.

(Freitas,2016)

A evolução da conceção do género feminino, apesar do conceito de universalidade

vigente, ainda não abarca todas as culturas, e as mulheres ainda não alcançaram o mesmo

patamar que os homens no que diz respeito à sua forma de tratamento. O relativismo

cultural não pode, no entanto, servir como impedimento à implementação total dos

direitos humanos:

Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-

relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma

global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora

particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim

como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados

promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais

forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.4

Não se espera que a tolerância cultural seja passiva, mas antes que procure almejar

a promoção de um espaço comum, de respeito pelos direitos fundamentais, sem renunciar,

porém, às singularidades de cada cultura. Estes ideais defendidos pela Declaração

Universal dos Direitos Humanos não amparam as decisões judiciais, marcadas por

processos padronizados e ritualizados (Freitas, 2016).

O que faz, então, da violência doméstica um crime tão sólido e difícil de

combater? Os valores culturais, difundidos ao longo de várias gerações, sobre o papel da

mulher na sociedade em geral, e nas relações de intimidade em particular, estão assentes

em justificações bíblicas, conferindo mais força à crença na desigualdade. Posto isto, o

combate a este problema começa numa “mudança cultural” (Lusa, 2018b) e de

pensamento. O grande peso cultural dos valores da família desde sempre defendidos

acerrimamente pela Igreja e pelo Estado Novo continuam a perpetuar-se ao longo dos

tempos, mesmo que a igualdade dos direitos já tenha sido (parcialmente) alcançada. Dar-

se-á uma mudança de atitude sobre o crime da violência doméstica quando deixar de

4 http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/viena.htm

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haver empatia com valores que defendem a preservação da família a todo o custo, o que

normalmente implica a sujeição das mulheres a situações intoleráveis.

A mudança deve ser encarada, no plano jurídico, tendo em conta o tipo de

linguagem utilizada, começando no contacto com as vítimas. Significa isto que há

características específicas do discurso da lei, a que a polícia recorre, que não fazem parte

da linguagem geral (Cabré, 1999) ) e que, naturalmente, interferem com a sobrecarga

cognitiva da vítima. Como poderemos constatar adiante, as “Fichas de Avaliação de

Risco” exibem marcas da linguagem específica do Direito, envolvendo intenções e

expectativas de resposta que não serão atendidas pelos intervenientes leigos como seriam

pelos falantes especializados (nomeadamente, os operadores do Direito), aumentando o

risco potencial de falta de sucesso da comunicação (Cabré, 1999).

Recentemente, um estudo da Universidade do Minho comprovou que, de facto, a

linguagem dos tribunais é bastante complexa, descrita até como “hermética e totalmente

enigmática” (Lusa, 2018a), realçando a necessidade de uma simplificação da linguagem

(Oliveira, 2019b). O mesmo problema coloca-se relativamente aos inquéritos da polícia.

O desafio ao sistema judicial passa, precisamente, pela atualização da linguagem

empregue. Fala-se em desafio, uma vez que a área do Direito é muito conservadora,

nomeadamente no tipo de linguagem utilizada, que passa por uma terminologia

extremamente específica, não acessível a todos os intervenientes. Consideramos, então, a

inevitabilidade de um alargamento no campo de intervenção nos crimes de violência

doméstica, que passa justamente pela atuação linguística.

1.2. A Violência Doméstica na perspetiva da Linguística Forense

A Linguística Forense é a interface entre a Linguagem e o Direito (Gibbons &

Turell, 2008) e, como tal, dedica-se ao estudo da linguagem em contextos forenses,

nomeadamente ao estudo da linguagem legal e em situações institucionais, como os

interrogatórios e entrevistas policiais. Possui, por isso, uma natureza multidisciplinar

(Sousa-Silva & Coulthard, 2016).

Se, no início, o crescimento da Linguística Forense foi lento, a verdade é que a

complexidade da prática legal e, mais especificamente, da linguagem legal (leis, contratos

e outros documentos legais) incentivou vários estudos nesta área. O principal intuito era

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o de desmistificar alguma obscuridade inerente à linguagem legal, bem como estudar em

que medida o Direito e o conservadorismo ainda seguem de mãos dadas, não só, mas

principalmente, em tribunal, onde a linguagem atinge o seu auge de complexidade (Holt

& Johnson, 2010, p. 23) e se envolve em formalidades alheias à sociedade comum. Os

problemas de justiça social emergentes da linguagem escrita e falada no Direito, bem

como depoimentos pouco fiáveis escritos pela polícia e até contradições na tradução e

interpretação de textos legais (Gibbons & Turell, 2008), contribuíram para que, nos

últimos anos, o número de linguistas forenses chamados a atuar como testemunhas

periciais aumentasse (Coulthard & Johnson, 2009), pelo menos em alguns países. Além

disso,

[a] investida de linguistas sobre o campo social tornou-se possível a partir de

uma concepção de linguagem que, em vez de priorizar categorias formais,

busca um deslocamento para o uso efectivo da língua em sociedade e das

exigências reais e imediatas de seus usuários.

(Freitas, 2016, pp. 128-129)

A lei, tal como a conhecemos, é impensável e inconcebível sem linguagem e,

portanto, todos os problemas que possam advir da sua aplicação não são mais do que

questões linguísticas (Gibbons, 1994). Por vezes, a lei – um texto linguisticamente

ambíguo e que por isso mesmo permite diferentes leituras e interpretações – nem sempre

é justa no verdadeiro sentido da palavra, e injustiças são cometidas, e até deliberadamente

adotadas por políticos e por outros membros que lidam com textos legais e, neste sentido,

há áreas que merecem especial atenção de forma a evitar essas injustiças (Gibbons, 1994).

Mas o que é justo, afinal? O conceito de justiça não é de fácil definição, pois, mesmo que

o entendamos como um tratamento igualitário, uma vez proporcionado nem sempre

assegura verdadeiramente justiça, muito menos dentro do sistema legal – principalmente

se tal forma de tratamento tiver emergido de uma cultura e interesses de uma elite

poderosa (Gibbons, 1994, pp. 195-196).

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Uma vez que o próprio sistema judicial é pautado por assimetrias, manifestam-se

no discurso jurídico desigualdades e parcialidades (Freitas, 2016) e, como esse sistema e

as suas decisões “tendem a refletir e construir relações assimétricas de poder entre os seus

operadores e membros de grupos com menos status social, é temerária a visão desse

sistema como veículo imparcial do bem social” (Freitas, 2016, p. 130). Embora as

características do registo legal se distingam das do registo quotidiano pela sua

complexidade sintática e pelo seu léxico específico (Gibbons, 1994), e, por isso mesmo,

“o sentido das frases ou mesmo de palavras individuais pode ser de importância crucial

em alguns julgamentos” (Coulthard, 2016, p. 19) ainda subsiste algum preconceito no que

concerne a prova linguística, pois alguns juízes teimam que “a função do tribunal [é]

decidir sobre o sentido” (Coulthard, 2016, p. 20). Difunde-se assim, de certa forma, a

ideia de que qualquer pessoa que saiba ler e escrever tem a capacidade de descodificar o

verdadeiro sentido de uma expressão (Rock, 2010) e todos os seus valores, tendo em conta

quando, onde, por quem, porquê e o que foi dito. Contudo, há casos que demonstram

exatamente o contrário desta convicção: um dos exemplos mais claros é o de Derek

Bentley e Chris Craig, caso que ocorreu em 1950. A interpretação errada de uma

expressão ambígua e os depoimentos forjados conduziram à condenação à morte por

enforcamento de Bentley. Este caso realça a necessidade de uma prova linguística em

casos deste género, para que um depoimento pouco fidedigno não seja apresentado em

tribunal como verdadeiro e incontestável quanto à sua autoria.

A Linguística Forense, apesar de mais conhecida no seu sentido restrito, enquanto

linguagem como prova (e, nomeadamente, em matéria de análise de autoria), pode ter um

papel extremamente útil em casos de violência doméstica, principalmente na análise da

linguagem usada nos interrogatórios da polícia às vítimas. Estes têm sido o foco de muitas

investigações e têm sido alvo de muitas análises linguísticas nos últimos anos (Aldridge,

2010; Auburn, Drake, & Willig, 1995; Gibbons, 1996; Heydon, 2012; Holt & Johnson,

2010; Nunes-Scardueli, 2015; Rock, 2001, 2010).

A linguagem pode constituir, tal como as impressões digitais – e ainda que não do

mesmo modo – (Coulthard & Johnson, 2009), uma evidência numa investigação. Em

casos de difamação, por exemplo, a linguagem – escrita ou falada – é protagonista e um

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linguista forense pode auxiliar na identificação do autor do texto difamatório. Cada

indivíduo exibe características singulares na sua forma de escrever ou de falar,

influenciadas por diversos fatores, nomeadamente extralinguísticos (como o meio onde

cresceu, nível de escolaridade, género, entre outros). A análise comparativa das

características estilísticas (escolha de vocabulário, formulação sintática, existência de

erros sistemáticos ou até gralhas) do texto acusado de ser difamatório com outros textos

de possíveis autores permitirá ao linguista forense afirmar qual o autor da difamação. Por

outro lado, há casos em que a testemunha, a vítima ou até mesmo o réu afirmam não ter

dito o que está escrito nos depoimentos elaborados pela Polícia. Uma vez que não há um

guião explícito sobre os procedimentos a usar e sobre o que pode ou não ser omitido,

surgem estes problemas relacionados, também, com a falta de tato linguístico

relativamente a propriedades como a entoação, repetição de vocábulos ou expressões,

enunciados inacabados e palavras não pronunciadas completamente – propriedades,

geralmente, filtradas no momento de fixar o relato da vítima por escrito. Esta falta de

identificação com o depoimento escrito por parte de quem o disse pode, de algum modo,

estar relacionada com a descontextualização provocada pela falta de alguma propriedade

acima mencionada e de outras, como, por exemplo, a omissão de partes do discurso. O

conhecimento de um linguista sobre as normas de relato indireto de narrativas é, por

vezes, crucial para evitar este tipo de “reclamações” (Coulthard & Johnson, 2009).

Uma das preocupações desta disciplina é precisamente o discurso institucional –

aquele que tem lugar no âmbito de um padrão pré-estabelecido a nível profissional

(Coulthard & Johnson, 2009) e que é motivado pelas necessidades ou objetivos da

instituição que representa, o que não significa que seja claro para os leigos que com ele

contactam. Pelo contrário, a linguagem usada pela polícia evidencia características

sintáticas complexas, exigindo ao interlocutor um maior esforço de compreensão (Holt &

Johnson, 2010). Por outro lado, a violência perpetua-se através da linguagem, portadora

de estereótipos, nomeadamente relativos à questão de género – a base da violência

doméstica (Nunes-Scardueli, 2015). Por isso, acredita-se que uma análise linguística dos

interrogatórios policiais poderá apontar exatamente “valores culturais construídos,

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difundidos, alterados e transmitidos de geração em geração” (Nunes-Scardueli, 2015, p.

28).

Estes traços podem exercer um efeito contrário àquele que se pretende com os

inquéritos de violência doméstica: como lutar contra o problema de género se a própria

linguagem for conservadora ou demasiado complexa? Para estes casos é crucial a

elaboração de inquéritos isentos de quaisquer preconceitos relativamente ao papel da

mulher. No entanto, a própria interação institucional é tipicamente assimétrica, pois o

poder e o controlo estão do lado dos participantes institucionais, em vez de estarem

distribuídos equitativamente (Coulthard & Johnson, 2009). Essa desigualdade pode ser,

não só constatada no facto de, nos depoimentos e relatórios feitos pela polícia, prevalecer

a perspetiva institucional da versão dos eventos e não a das vítimas (Coulthard & Johnson,

2009), mas também na própria natureza do discurso – que emprega termos, de forma

consistente, distinguíveis como uma competência profissional, o que é atípico em textos

produzidos por falantes e escritores leigos (Coulthard & Johnson, 2009, p. 77). Este

emprego coloca em desvantagem qualquer indivíduo que seja inquirido ou interrogado

pela polícia, pois os inquiridos estão perante alguém com total domínio sobre o registo

da linguagem usada, colocando o interveniente leigo à disposição do interrogador.

Adicionalmente, a linguagem da polícia é orientada de modo a afirmar o seu controlo

durante uma interação.

Nesse contexto interacional a polícia procurará manter o foco na informação que

considera relevante (Hall, 2008), prevalecendo a sua versão dos factos: os fatores

emocionais e psicológicos, não sendo considerados evidências factuais, não constarão no

relatório; não esquecendo a possibilidade destacada por Stephen Lawrence, em 1993, de

informação importante poder escapar aos entrevistadores por não a considerarem

relevante na altura e, mais tarde, revelar-se crucial (Rock, 2001). Além disto, o facto de,

no depoimento final, não constar unicamente a voz do entrevistado, mas também a da

instituição (Coulthard & Johnson, 2009) tem levantado problemas aquando da leitura do

depoimento, pois, tanto vítimas, como detidos manifestam-se afirmando que não

disseram o que está escrito, ou pelo menos não o disseram daquela forma (Rock, 2001).

Tal não aconteceria se o depoimento se constituísse pelo que foi dito, exatamente, pelo

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entrevistado (Rock, 2001), ou se a linguagem jurídica obedecesse à neutralidade e

objetividade ideal a que se propõe, e não se procedesse a uma retextualização envolta em

supressões e inserções de material linguístico (Freitas, 2016, p. 135).

Dada a influência do texto escrito nos casos legais, a natureza dialógica do

depoimento pode influenciar todo o processo, pois o depoimento não é apenas usado para

corroborar o ponto de vista da vítima, suspeito ou testemunha, mas, uma vez fixado no

papel, torna-se o texto oficial, podendo ser usado contra a fonte original da informação

(Rock, 2001). A recolha de informação é um processo bastante complexo; não se trata

apenas de extração de factos, mas também de trabalhar com essa informação de modo a

elaborar-se um texto conjuntamente; é a esta informação filtrada que é dada a supremacia

sobre aquela que é dita diretamente pela pessoa (Rock, 2001) e é a essa informação que

deve ser dada atenção para verificar se é incontestável ou não.

Estudos realizados anteriormente, nomeadamente no Brasil, apontam para

questões e valores tradicionais sobre o género no tratamento da violência doméstica.

Freitas (2016), no seu estudo “Valores Tradicionais sobre Género em Processos da Lei

Maria da Penha”, explorou, num corpus de 25 processos, a forma como tal problema é

abordado e tratado no sistema jurídico, constatando que os próprios textos jurídicos estão

impregnados de vestígios que desvalorizam e menosprezam o género feminino, mesmo

quando se trata de textos cujo principal objetivo é a defesa da vítima, como, por exemplo,

a referência ao sexo feminino como sendo frágil, ou então a invocação da defesa da honra

masculina ou até sentenças totalmente adequadas ao género masculino que proíbem o

agressor de frequentar “bares, boates, prostíbulos e casas de jogos” (Freitas, 2016, p. 143),

atividades estas natural e tipicamente masculinas. Por outro lado, os “Termos de

Retratação” (estas retratações são “exigidas em casos de difamação e calúnia” (Freitas,

2016, p. 138) que as vítimas têm de assinar quando decidem desistir de uma queixa são

bastante explícitas quanto à consideração pelo género feminino, pois, tal como a autora

mostrou, são nada mais, nada menos, do que uma declaração de culpa e de

irresponsabilidade, absolvendo totalmente o agressor.

Noutro estudo, Marques & Gago (2016) mostraram de que forma o ambiente

institucional condiciona os direitos e os deveres dos participantes na interação. A “fala

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institucional” (Marques & Gago, 2016, p. 299) é inferencial e, portanto, uma pergunta

feita pelo agente não é interpretada como um simples pedido de informação, mas antes

como uma “solicitação de prova” (Marques & Gago, 2016, p. 299). No seu estudo, os

autores mostraram que, no Boletim de Ocorrência, em casos de violência doméstica, estão

presentes duas vozes: a da vítima, que apresentou a queixa e, portanto, é responsável pela

informação contida nesse documento, e a voz de quem redigiu o texto, concluindo, assim,

os autores que a interação institucional é marcada pela “presença de um discurso repleto

de encaixamento de vozes” (Marques & Gago, 2016, p. 318). Por outro lado, os autores

verificaram que, a par dos procedimentos já pré-definidos (como, por exemplo, o “ritual”

da tomada de turnos durante uma conversa), começa a existir espaço para elementos

inovadores, tais como a possibilidade de os intervenientes interferirem na leitura,

discordando ou concordando com o que está a ser lido e acrescentando algo que tenha

ficado por dizer. O facto de alguém discordar com o que está a ser lido realça a ideia da

existência de uma segunda voz no documento, que perturba a integridade do depoimento

original.

Ética, profissionalismo e imparcialidade devem andar a par, afastando qualquer

juízo de valor. Os agentes da polícia devem manter uma postura neutra e imparcial, de

forma a assegurar uma comunicação eficiente (Artinopoulou et al., 2018), não

descartando, claro, a empatia (capacidade de entender como a outra pessoa se sente), sem,

contudo, se deixar envolver pessoalmente pela situação. Rock (2001) alerta, no entanto,

para a “preocupação simulada” do entrevistador no momento de recolha de um

depoimento enquanto a vítima luta por relembrar os detalhes do evento, emergindo,

assim, uma imagem conflituosa do ouvinte. A confiança é vital para a obtenção dos

objetivos, mas, ao mesmo tempo, uma vez que não é uma relação social, a atividade pode

ser vista como exploradora, manipuladora e um abuso de poder (Coulthard & Johnson,

2009).

A análise linguística dos inquéritos de violência doméstica será, assim, essencial

para investigar e revelar alguns dos problemas mencionados acima e que foram já

descortinados em estudos prévios noutros países. Este crime move-se entre a sociedade

portuguesa e parece imune a qualquer investida judicial. A linguagem constitui uma frente

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de ataque e não deve ser desvalorizada, uma vez que se trata de um veículo de

preconceitos e valores enraizados socialmente que, só quando desconstruídos e

eliminados, permitirá obter interrogatórios imparciais em questões de género. O género,

“criação inteiramente social das ideias sobre os papéis dos próprios homens, das mulheres

e de outras identidades sexuais” (Freitas, 2016, p. 130), está de tal forma enraizado na

sociedade que, como Freitas (2016) demonstrou, mesmo quando se trata da defesa das

vítimas, o discurso jurídico evidencia marcas de conservadorismo e tradicionalismo ao

recorrer a termos como “sexo frágil”. O entendimento desta questão vai para além da

escrita e da fala. Nós, humanos, fruto de uma cultura maioritariamente patriarcal, estamos

programados para a supremacia natural, mas injusta, da ordem masculina. A prova da sua

naturalidade é o facto de, como afirma Bourdieu (1999), dispensar justificação ou

legitimação, tal é a força dos costumes. Argumentos anacrónicos continuam presentes em

muitos documentos, e apenas quando deixarmos de recorrer a expressões inspiradoras de

desigualdade entre os sexos, social e judicialmente, conseguiremos, talvez, obter um

tratamento justo e imparcial da violência doméstica.

1.3. Interrogatórios e Entrevistas Policiais

Os interrogatórios e as entrevistas policiais são processos formais essenciais em

qualquer investigação criminal. É importante distinguir o termo “interrogatório” de

“entrevista”, pois, apesar de terem em comum o objetivo de recolher toda a informação

relevante sobre o delito e, assim, determinarem o seu responsável, comportam

entendimentos diferentes. O primeiro termo, “interrogatório”, traz consigo uma

significação pejorativa, pois na terminologia policial interroga-se suspeitos de delitos. Os

profissionais que comandam o interrogatório são vistos como alguém que usa (e, por

vezes, abusa) do seu poder, que desafia, avisa, acusa, exige e domina, por vezes para

incitar à ação e reação do interrogado e, se possível, à sua confissão. Por outro lado, os

entrevistadores são vistos como alguém que faz menos uso do seu poder. Um

entrevistador pergunta, mas não desafia, sugere em vez de exigir (Shuy, 1998). Na

verdade, os interrogatórios não têm de oprimir. Embora, o objetivo dos interrogatórios

seja obter informação junto de suspeitos, o seu objetivo final tal como o das entrevistas,

é reunir factos que possam ser usados como evidência em tribunal. Do ponto de vista

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processual, os dois termos são utilizados, assim, de modo diferente: os interrogatórios

aplicam-se a réus e suspeitos; as entrevistas aplicam-se a vítimas e testemunhas.

Na interação subjacente às entrevistas policiais, o interveniente leigo é orientado

por profissionais que interrogam com o objetivo de recolher informação que ateste

inequivocamente a existência de um delito e identificar o seu autor. As respostas são

importantes para que se possa dar seguimento ao processo de investigação; contudo nem

sempre as respostas são colocadas da melhor forma. Johnson (2006) refere que o

entrevistador tem que enfrentar alguns desafios no momento de inquirição. Esses desafios

passam pela avaliação que deve ser feita à capacidade de processamento da questão por

parte do interlocutor, pois as respostas só serão objetivas e rigorosas se as perguntas forem

explícitas e concretas. No entanto, perguntar de forma clara é outro obstáculo com que os

entrevistadores têm de lidar. Não é só difícil responder; perguntar também o é, uma vez

que exige do entrevistador um esforço para colocar a pergunta de forma a que o

entrevistado entenda exatamente o que o outro espera como resposta. Além disso, o

momento de fixação do relato oral em depoimento escrito é de grande responsabilidade,

pois as informações registadas devem corroborar o ponto de vista da vítima, uma vez que

podem chegar a representá-la na sua ausência. Deste modo, as competências de escrita –

como a transcrição de relatos e o registo do discurso –, apesar de negligenciadas (Rock,

2001), são fundamentais para simplificar o processo de entrevista. Assim, a ideia de que

ler e escrever são faculdades suscetíveis de serem usadas por todos de igual forma é

errónea (Rock, 2010).

Os depoimentos escritos deveriam conter as ideias apresentadas na primeira

narração sobre os eventos: nenhuma ideia deveria ser adicionada, assim como nenhuma

removida (Rock, 2001). Porém, durante a recolha, e apesar dos melhores esforços da

pessoa que reúne a informação, esta é passível de ser sumariada ambiguamente ou mesmo

perder-se (Rock, 2001, p. 70). Adicionalmente, os dados orais sofrem algumas alterações

no momento da transcrição, afetando, assim, a integridade do testemunho. Esta

contaminação dos registos orais afeta a preservação das provas físicas, que o tratamento

forense deveria manter o mais intactas possível (Haworth, 2010, p. 169).

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A vítima é chamada a depor mais do que uma vez e, portanto, o depoimento final

é uma adaptação de todas as versões contadas. Possivelmente, de versão para versão

perdem-se alguns detalhes e outros são transformados (Coulthard & Johnson, 2009, p.

81), sem se ponderar que podem vir a constituir informação útil – e, muitas vezes, a versão

oficial, e.g. em tribunal. Por isso, as características sintáticas, semânticas, de léxico e

formais revelam-se de grande interesse linguístico, uma vez que as perguntas que se

pretendem diretas, simples e claras são, na verdade, complexas. Brennan (1994) mostrou

que o uso da negativa, a incorporação de informação descontextualizada e perguntas

“multifacetadas” são características inerentes às questões policiais. Esta complexidade

sintática obriga o ouvinte a fazer um maior esforço de compreensão da pergunta e

elaboração da resposta. De facto, as perguntas feitas em inquéritos policiais destinados às

vítimas de violência doméstica demonstram alguns destes traços, incluindo a

imparcialidade (ou falta dela) presente no uso de adjetivos e de advérbios de modo.

Em Portugal, os inquéritos aplicados às vítimas de violência doméstica (através

do documento designado “Ficha de Reavaliação de Risco” – RVD 1L e RVD 2L)

obedecem a um modelo pré-definido, comum a todo o país. A Ficha RVD 1L corresponde

à primeira fase deste processo de apuramento dos factos e é aplicada quando há uma

participação de violência doméstica. Nesta fase, todas as vítimas respondem às mesmas

perguntas, que serão repetidas na segunda fase (constituída pela “Ficha de Reavaliação

de Risco – RVD 2L”, que é realizada num momento posterior à da participação de

ocorrência), culminando na generalização das situações reportadas. Esta “padronização

dos textos pode silenciar enredos e histórias de vida, que se transformam em indicativos

numéricos, deixando à deriva a questão das singularidades envolvidas em cada situação”

(Nunes-Scardueli, 2015, p. 30) – não obstante o facto de, nas circunstâncias em que são

utilizadas, os agentes policiais necessitarem de um instrumento que lhes permita avaliar

rapidamente o nível de risco potencial a que a vítima está sujeita.

Chamamos “inquéritos” às “Fichas de Avaliação de Risco” por se tratarem de

formulários que exigem da vítima respostas fechadas. Nesta fase, as vítimas de violência

doméstica em Portugal não têm a possibilidade de contar aberta e detalhadamente a sua

história, ou pelo menos não fica registada (toda) a sua narrativa, o que pode terminar em

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“mal entendidos”, no momento da classificação de risco de homicídio. Ou seja, na

ausência de informação relevante, pode acontecer que o Ministério Público acuse que “a

narrativa descrita pelo órgão de polícia criminal na denúncia, não pareceu ser de

gravidade manifestamente elevada” (EARHVD, 2018a, p. 14). A vítima reconta a sua

história na fase de entrevista (momento de recolha de informação sobre acontecimentos

específicos) e, embora fosse pertinente analisar o discurso indireto das vítimas relatado

pelos agentes, este procedimento não é o foco deste trabalho.

Uma vez que as entrevistas policiais influenciam as práticas legais, quer a nível

investigativo, quer a nível judicial, o método de conversão do relato oral não deve ser

descurado, pois o que fica escrito pode determinar a medida de coação ao agressor e,

consequentemente, a futura segurança da vítima.

A acessibilidade de comunicação entre a instituição e os cidadãos deve ser

promovida, pois não pode ignorar-se o facto de que a forma como o interrogatório é

conduzido pode induzir determinadas respostas e, como resultado, conclusões diferentes.

O equilíbrio entre a informação que a polícia requere e aquela considerada importante

pela vítima também deve ser estimulado.

Em Portugal, as vítimas de violência doméstica repetem a “Ficha de Avaliação de

Risco” passados uns dias da primeira, porque, de acordo com a Polícia, aquando do

preenchimento da primeira ficha, a vítima estava dominada por sentimentos “à flor da

pele” e é necessário um certo distanciamento para que as afirmações sejam mais

verdadeiras. Porém, a primeira versão dos acontecimentos não deve ser rejeitada nem

desconsiderada. Entre as duas versões pode ser exercida alguma influência sobre a vítima

que a leve a desvalorizar as situações e, consequentemente, a alterar as suas convicções

sobre o sucedido e, inclusivamente, a modificar o seu depoimento.

Quando observamos as perguntas que compõem as fichas, podemos constatar que,

apesar das mudanças sociais sobre o papel das mulheres nas relações e apesar das políticas

encorajadoras, ainda persistem muitas crenças sobre esse papel. Além disso, nestes

inquéritos ainda podemos depreender que o consumo de álcool e o uso de drogas surgem

como causas das agressões, uma vez que constituem fatores de risco. Algumas perguntas

parecem não acompanhar as mudanças sociais, assim como o método de respostas precisa

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de atualizações. As vítimas não deveriam ter de ver as suas respostas restringidas a

perguntas fechadas, de tipo binário (não obstante, como referido acima, a necessidade de

os agentes disporem de um método rápido de avaliação do nível de risco da vítima). Pelo

contrário, a possibilidade de poderem responder abertamente permitiria que daí se

pudesse extrair mais informação, rejeitando, deste modo, qualquer ambiguidade

resultante das perguntas, e simultaneamente permitindo a consideração das circunstâncias

individuais de cada caso.

Os crimes de violência doméstica, bem como os de violência sexual, ainda estão

envolvidos numa negra nuvem de silêncio. Geralmente, o segredo associado a estes

crimes relaciona-se com a vergonha, medo de represálias, mas também pela descrença no

trabalho da polícia e, acima de tudo, descrédito no sistema judicial.

Durante o contacto com a vítima, o agente deve demonstrar empatia com esta, ou

seja, deve tentar conhecer e perceber o estado em que a pessoa se encontra: deve ficar a

par dos seus sentimentos, pensamentos e pontos de vista; contudo, empatia não significa

compaixão (Artinopoulou et al., 2018, p. 95). Além disso, é essencial que o agente se

mantenha imparcial a qualquer preconceito relativo ao género, raça, etnia ou antecedente

socioeconómico ou profissional da vítima (ainda que alguns destes possam constituir

elementos importantes na avaliação do nível de risco). A neutralidade é outro princípio

básico de uma comunicação eficiente e, normalmente, é expressa através do tratamento

igual de qualquer indivíduo; a objetividade, por sua vez, refere-se à posse de uma atitude

imparcial ao evitar influências de estereótipos. Quando o agente perde a sua objetividade,

pode distorcer a informação facultada pela vítima ou avaliar erroneamente a informação

– que pode ser subestimada ou sobrestimada (Artinopoulou et al., 2018, p. 95). A

neutralidade e a objetividade salvaguardarão o processo de interação, ao conservar um

equilíbrio entre o relato da vítima e os pensamentos do entrevistador (Artinopoulou et al.,

2018, p. 96).

Contudo, serão estes princípios cumpridos por todos? As “Fichas” pedem que o

agente colabore com a sua experiência profissional para a avaliação do risco. A

imparcialidade e a objetividade podem ser cumpridas pelo agente encarregue do caso

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específico; contudo, essa imparcialidade é relativa, na medida em que poderemos

perguntar-nos se, se fosse outro agente, o resultado da avaliação seria o mesmo.

A atitude neutra permitirá que o entrevistador recolha informação e que a registe

sem falsas alegações, pois a informação escrita é suprema relativamente à oral e todo o

processo será influenciado por essas declarações. O entrevistador é a entidade que

“medeia” e determina o que incluir e excluir, bem como quais as formulações a usar com

base no que a vítima contou. Contudo, essa avaliação é parte do processo de produção

textual e não parte do texto em si (Rock, 2001, p. 62). Deste modo, no momento em que

a história dá corpo ao depoimento, já foi transformada na voz da instituição, relacionando-

se de forma dialógica com o texto original (Coulthard & Johnson, 2009, p. 81). Se o

depoimento fosse registado transcrevendo exatamente as palavras da vítima, então não

haveria qualquer interferência do entrevistador na informação fornecida pela vítima

durante a recolha do depoimento (Rock, 2001, p. 65). Além do mais, não será razoável

esperar-se que os entrevistadores façam perguntas, anotem as respostas, identifiquem

contradições e construam um texto, tudo simultaneamente, num mesmo processo, o que

leva Rock (2001) a afirmar que os depoimentos escritos são “espetáculos contruídos”

(Rock, 2001, p. 69)5, pois o grau de certeza e incerteza da vítima relativamente a alguns

factos revelados durante alguma entrevista tanto podem, como podem não constar no

depoimento final, e a informação pode “perder-se durante a recolha de testemunho”

(Rock, 2001, p. 69)6. Assim, a preservação dos documentos originais contribuiria

inegavelmente para uma maior transparência do depoimento da vítima e do seu ponto de

vista.

Em suma, ao longo deste capítulo, procuramos mostrar como o processo de

recolha de informação requer uma maior sensibilidade linguística por parte dos elementos

da polícia, pois, como demonstraram diversos autores citados, e como se procurará expor

nos próximos capítulos, as perguntas construídas pela polícia falham ao nível da

simplicidade e objetividade. Além do mais, a elaboração de um depoimento escrito requer

capacidades de escrita orientadas precisamente para uma fixação o mais fiel possível dos

5 “[W]ritten statements are crafted shows” (Rock, 2001:69) 6 “Information may be ‘lost’ during a statement taking” (Rock, 2001:69)

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dados orais, pois é a prova escrita que ganhará destaque em tribunal, mesmo que a

informação não esteja de acordo com o que a vítima, agressor ou testemunha haviam dito.

No próximo capítulo inicia-se a parte empírica deste trabalho; primeiramente faz-

se considerações metodológicas sobre a investigação nesta área, após o que se descreve

o corpus utilizado e, finalmente, os métodos de análise adotados.

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Capítulo 2. – Abordagem metodológica

2.1. – Metodologia e Dados

Os documentos objeto de análise neste trabalho são as “Fichas de Avaliação de

Risco” utilizadas pelas forças policiais em situações de violência doméstica. Ao longo

dos próximos capítulos descrever-se-á detalhadamente estes documentos que constituem

o corpus, bem como a sua aplicação. Será feita uma análise linguística das perguntas que

compõem as fichas e, uma vez que as perguntas não diferem entre a ficha RVD-1L e

RVD-2L, não foi feita qualquer distinção entre as duas.

Chamamos inquérito a estas fichas, e não um interrogatório ou uma entrevista,

uma vez que, formalmente, se apresentam como tal: são compostas por 20 perguntas de

resposta fechada. Além do aspeto formal, o título faz também alusão ao formato, uma vez

designarem-se “Fichas de Avaliação de Risco”, indicando de imediato não se tratar de

interrogatórios ou entrevistas comuns, numa situação de investigação criminal.

A diferença entre o inquérito que será analisado e os inquéritos normais é que,

geralmente, os últimos são preenchidos pelos próprios inquiridos. Pelo contrário, não são

as vítimas de violência doméstica que preenchem esta “Ficha”, mas sim o/a agente

policial. Este colocar-lhes-á as perguntas e registará as suas respostas. Este procedimento

levanta algumas questões: 1) O inquérito é minuciosamente respeitado? Ou seja, as

perguntas são colocadas exatamente como estão formuladas e pela ordem em que se

encontram? 2) As respostas estão a ser fixadas exatamente conforme a resposta da vítima?

Além disto, poderemos constatar mais adiante se as perguntas tal como estão

concebidas se adequam ao registo oral – aquele em que estão a ser aplicadas – ou se, por

outro lado, a própria construção sintática das questões, os termos técnicos utilizados, as

colocações, o uso de certos tempos verbais, o recurso a adjetivos qualificativos e a

advérbios de modo fazem das perguntas construções elaboradas, até para o registo escrito.

Quando pronunciadas oralmente pelo agente, estas poderão, ao ouvido da vítima –

fragilizada emocionalmente – soar confusas e até ser de difícil entendimento.

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Relativamente à análise do corpus, elegeram-se, em primeiro lugar, algumas áreas

linguísticas sobre as quais irá incidir a análise e que, com base na literatura abordada,

serão relevantes para investigar os aspetos discutidos no capítulo 1. A análise recai, então,

sobre os níveis sintático, semântico, pragmático-discursivo, e ainda sobre a coerência e

coesão das perguntas e da própria ficha enquanto texto.

Depois de selecionadas estas áreas de análise, procedeu-se uma análise exaustiva das

perguntas, procurando encaixar aquilo que nos parecia uma questão problemática em cada

uma das áreas mencionadas previamente.

Feito o levantamento dos problemas e uma vez inseridos na respetiva categoria,

recorreu-se aos relatórios da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência

Doméstica (EARHVD), ao CETEMPÚBLICO e ao Corpus de Referência do Português

Contemporâneo em busca informação que corroborasse ou, pelo contrário, que rejeitasse

os resultados da análise realizada.

2.2. – Descrição do corpus

As “Fichas de Avaliação de Risco” constituem o primeiro passo integrante num

processo de violência doméstica, e são o objeto de estudo deste trabalho. Os documentos

analisados foram recolhidos numa esquadra da PSP, onde foram dadas algumas

explicações acerca da sua aplicação. Estas fichas, contudo, também se encontram

disponíveis online para livre consulta.

Após a apresentação de queixa, é elaborado um Auto de Violência Doméstica,

sendo aplicada a primeira “Ficha de Avaliação de Risco” (RVD-1L) aquando da

realização desse Auto. A Ficha RVD-1L é constituída por vinte perguntas globais, de

resposta fechada, às quais a vítima deve responder obrigatoriamente. As perguntas são

colocadas oralmente à vítima e a sua resposta, afirmativa ou negativa, é registada por

escrito na ficha pelo/a agente policial.

As perguntas da ficha dividem-se em três partes diferentes: a primeira parte integra

as perguntas 1 a 10, que dizem respeito à vítima e à situação de violência a que ficou

exposta; as perguntas 11 a 16 focam-se em problemas relacionados com o agressor e que

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poderão exercer algum efeito desencadeador de violência; a terceira parte da ficha integra

as perguntas 17 a 20, que são perguntas centradas em assuntos respeitantes a ambos os

membros da relação, como é o caso da questão da guarda dos filhos.

De acordo com as instruções da ficha, as questões devem ser colocadas exatamente

como estão apresentadas, “mediante eventuais adaptações/ introduções” que sejam

consideradas úteis pelo agente policial. No final do preenchimento deste documento, será

indicado o nível de risco correspondente àquela situação de violência doméstica.

Consoante o número de respostas afirmativas e de respostas negativas, o risco pode ser

classificado como baixo, médio ou elevado. O nível de risco obtido na ficha RVD-1L não

é, no entanto, definitivo, sendo essencial uma reavaliação após uns dias. Acresce ainda o

facto de que, para além do nível de risco cotado pelo número de respostas “sim” e “não”,

é solicitada a experiência profissional do elemento policial na classificação do nível de

risco.

Após emitido o nível de risco, são adotadas algumas medidas para proteção da

vítima, entre as quais o estabelecimento de contactos periódicos com a vítima, a apreensão

de armas (caso existam) e o reforço junto da vítima sobre a hipótese de se afastar do

agressor, recorrendo à ajuda de familiares, amigos ou até a uma casa-abrigo.

Se o risco emitido for elevado, então a reavaliação deve ser feita entre 3 a 7 dias;

se for médio, pode ser realizada num prazo até 30 dias; e se for baixo, até 60 dias. Para a

reavaliação de risco é aplicada a segunda “Ficha de Avaliação de Risco” (Ficha RVD-

2L).

As questões da Ficha RVD-2L são, em tudo, idênticas às da Ficha RVD-1L; a ficha

é composta pelas mesmas vinte perguntas, igualmente de resposta fechada, não

permitindo, portanto, à vítima expor totalmente a sua história, narrando-a, nem lhe dando

a oportunidade para que esta seja fixada por escrito de forma detalhada. Um dos aspetos

em que as duas fichas diferem assenta, exatamente, no facto de, na segunda ficha, haver

um espaço para detalhar as respostas, identificando aspetos atenuantes ou agravantes. Isto

não constitui, no entanto, uma oportunidade para a vítima ver a sua história contada aberta

e detalhadamente, uma vez que é um espaço apenas para identificar alguns aspetos.

No final da ficha RVD-2L é, também, emitido um nível de risco, tendo em conta

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os resultados da mesma. Poderão ser adotadas novas medidas de proteção da vítima, caso

o nível de risco aumente, ou então retiradas, caso o risco baixe. Como se pode ler nas

instruções, o nível de risco desta ficha também não é definitivo, pelo que deverá continuar

a ser avaliado.

Visualmente, uma primeira observação sugere que as perguntas não são

uniformes, na medida em que umas são estruturalmente mais longas do que outras, da

mesma forma que a informação parentética também é maior nuns casos do que noutros.

Parecem existir também alguns mecanismos linguísticos que complicam a própria

estrutura da frase (é o caso das construções coordenativas, subordinativas completivas,

relativas e gerundivas encaixadas na oração matriz; ou do uso do sinal gráfico “/”),

tornando-a confusa e ambígua, uma vez que não é imediata e infalível a interpretação que

se pode retirar das frases.

O comprimento das frases poderá, igualmente, constituir um problema, porque

sendo as perguntas colocadas à vítima oralmente, esta pode não ter a capacidade de

relembrar o que foi dito no início da pergunta. O facto de muitas delas se apresentarem

como sendo uma só pergunta, mas na verdade estarem formuladas como mais do que

uma, não nos permitirá saber a que pergunta corresponde a única resposta que a vítima

dará. Desta forma, a vítima fica, pois, exposta a uma sobrecarga cognitiva dado o excesso

de informação que cada pergunta veicula. A compreensão das perguntas ficará afetada e

a mensagem pode não ser completamente apreendida.

2.3. – Metodologia de análise

Em primeiro lugar, a análise focou-se, essencialmente, em quatro níveis: Sintaxe,

Semântica (tempo e aspeto, vocabulário e colocações), nível Pragmático-Discursivo e,

por último, Coerência e Coesão das perguntas, entre perguntas e da ficha enquanto

unidade de texto.

A estrutura sintática será analisada conforme a complexidade que confere ao texto.

Essa complexidade advém do recurso a orações coordenadas e subordinadas que

introduzem mais do que um assunto na mesma pergunta e do uso de frases na forma

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negativa. Estes tópicos são relevantes para este trabalho, pois, neste contexto discursivo,

espera-se que o discurso seja simples, de forma a não complicar a compreensão do

inquirido sobre o que lhe foi perguntado, e assim dar as respostas adequadas.

Quanto aos aspetos semânticos, o estudo dos tempos verbais revelou-se um aspeto

importante a desenvolver nesta investigação, dada a natureza da flexão verbal verificada

nas perguntas. Sabendo que o tempo expresso morfologicamente nem sempre expressa a

mesma ideia de localização temporal da situação, num dado momento do tempo,

procurou-se investigar de que modo a escolha dos tempos e modos verbais usados nas

perguntas se comportam temporal e aspetualmente, juntamente com as expressões

adverbais temporais com que ocorrem.

Adicionalmente, procedeu-se a uma análise do vocabulário e das colocações. No

primeiro (vocabulário) explorou-se, essencialmente, o uso de certos termos técnicos,

como por exemplo “ameaça” e “armas”, uma vez que, quando usados por um falante leigo

em Direito, estes conceitos não adquirem as mesmas significações que o termo técnico

empregue por profissionais da área. Por esta razão, o enfoque neste tópico é fundamental

para, de alguma forma, mostrar as possibilidades de interpretação destes termos e como

estão a ser usados de forma diferente entre os intervenientes, e quais as consequências

que daí podem resultar.

Por outro lado, a coocorrência de determinadas palavras levantou algumas

questões e, por isso, o estudo focou-se também na análise de certas colocações que não

são comuns em português europeu contemporâneo. O facto de as coocorrências de

palavras analisadas não serem usadas frequentemente pelos falantes pode gerar uma

maior dificuldade na assimilação da mensagem. De forma a verificar a frequência com

que algumas colocações são usadas pelos falantes, recorremos ao corpus do

CETEMPúblico. Importa, no entanto, referir que os dados desta plataforma não são

atualizados há mais de dez anos (a última atualização foi em 2008). Mesmo assim,

continua a ser um dos maiores corpora de língua portuguesa e, portanto, fazia todo o

sentido recorrer a ele, tendo em conta o nosso objetivo. A par do CETEMPúblico, foi

consultado, também, o Corpus de Referência do Português Contemporâneo (CRPC), de

maneira a complementar as informações recolhidas no CETEMPúblico, contrariando os

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seus resultados ou confirmando-os, conforme as ocorrências. Também este corpus é

composto por textos antigos, datados do século XX até 2006 e, por isso, em nenhum dos

dois temos o fator da atualidade.

A coerência e a coesão são aspetos importantes a ter em consideração em qualquer

texto, em geral, e em textos de natureza forense, em particular, pelo que são essenciais na

análise das perguntas das “Fichas de Avaliação de Risco”, uma vez que são

indispensáveis para que o texto funcione como uma unidade. Algumas questões põem em

causa a coesão temporal (pela combinação de tempos verbais e expressões adverbiais de

valor temporal contraditórias) e lexical (através da substituição de uma expressão por

outra sem que sejam sinónimas), por um lado, e, por outro, a coerência textual é

questionada pela falta de uniformização entre as conjunções copulativa e disjuntiva e o

sinal gráfico de barra, “/”. Esta questão da coerência estende-se ainda ao nível da

interação das perguntas, uma vez que se verifica que a ordem das questões não segue um

fio condutor coerente.

Em paralelo, a análise das perguntas sustenta-se em relatórios da EARHVD –

Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica. Esta é uma

equipa que, tal como o nome indica, analisa retrospetivamente casos (já julgados ou

arquivados) de homicídio em contexto de violência doméstica. O seu principal objetivo

é, a partir da análise dos casos analisados e das conclusões retiradas, conduzir à

implementação de novos métodos de prevenção. São, ainda, feitas recomendações sobre

os procedimentos a executar às entidades envolvidas, quer sejam públicas ou privadas7.

Os relatórios desta equipa foram úteis à investigação, no sentido em que proporcionaram

o acesso a alguns pormenores de casos reais, nomeadamente as perguntas da ficha e

respetiva resposta da vítima, onde se pôde procurar e encontrar algumas incongruências

relacionadas com os problemas levantados nesta análise. Adicionalmente, permitem

confrontar os resultados da análise linguística com a apreciação feita pela Equipa, e

avaliar a importância da análise linguística forense neste contexto.

No próximo capítulo dar-se-á início à análise dos dados recolhidos. Em primeiro

lugar, focar-nos-emos no nível sintático, passando depois ao nível semântico. Depois

7 https://earhvd.sg.mai.gov.pt/Pages/default.aspx

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disto, teremos a secção dedicada ao nível pragmático-discursivo. A coerência e a coesão

serão, também, foco de análise.

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Capítulo 3. – Análise dos dados

3.1. – Sintaxe

A “Ficha de Avaliação de Risco” é composta por interrogativas globais,

formuladas com o objetivo de receberem uma resposta afirmativa ou negativa por parte

do inquirido (Brito, Duarte, & Matos, 2003). As perguntas são, maioritariamente, frases

complexas, ou seja, formadas por mais de uma oração. As orações pautam-se pela

coordenação disjuntiva e copulativa, bem como pela subordinação completiva infinitiva,

relativa e restritiva. Neste trabalho, adotamos a mesma definição de frase e oração

empregue pela Gramática do Português. Assim, uma frase complexa é formada por

orações que contêm outras orações que desempenham nela uma função gramatical, e uma

oração como uma “sequência de palavras gramatical, que tem um conteúdo proposicional

e como elemento nuclear um verbo” (Raposo, 2013, p. 314).

Sintaticamente, as perguntas revelam-se estruturalmente complexas, desde logo

porque muitas delas incluem perguntas alternativas: como se pode ver pelo uso das

conjunções copulativa e disjuntiva8: “e/ou” (pergunta 5), assim como pelo uso de vários

verbos auxiliares (pergunta 6), pelas orações gerundivas inseridas na frase matriz

(pergunta 10), pelo uso da negação em interrogativas (pergunta 11) e, ainda, pelas

estruturas de coordenação e de subordinação (pergunta 8).

5. Foi necessária atenção médica após alguma agressão e/ou as lesões

comprometeram as atividades diárias da vítima ou as de outros familiares?

6. O número de episódios violentos e/ou a sua gravidade tem vindo a aumentar

no último mês?

8. Acredita que o/a ofensor/a seja capaz de a/o matar ou mandar matar (está

convicta de que ele/a seja mesmo capaz)?

10. O/A ofensor/a persegue a vítima, intimidando-a intencionalmente, demonstra

ciúmes excessivos e tenta controlar tudo o que a vítima faz?

8 As conjunções disjuntivas podem ser exclusivas (se obrigarem à seleção de um termo em detrimento de outro) ou inclusivas (quando os termos coordenados são compatíveis entre si) (Matos, 2003)

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11. O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/psicológica e não está a ser

acompanhado/a por profissional de saúde ou não toma a medicação que lhe tenha sido

receitada?

As duas primeiras perguntas da “Ficha de Avaliação de Risco” são relativamente

simples quando comparadas com as restantes: não há verbos auxiliares, apenas um verbo

principal no pretérito perfeito do modo indicativo e os seus objetos, direto e oblíquo. No

entanto, a partir da pergunta 3, constata-se a complexidade sintática das perguntas.

Em primeiro lugar, as perguntas 3 a 12 e 16 a 20 incluem alternativas de resposta,

isto é, o uso da conjunção copulativa “e”, da conjunção disjuntiva “ou” e do sinal gráfico

“/” introduz novas orações, aumentando o número de respostas diferentes que a vítima

poderá ter para cada pergunta incorporada noutra.

A pergunta 3 é constituída por uma oração subordinada completiva infinitiva e

por uma oração coordenada disjuntiva:

3. O/A ofensor/a já tentou estrangular (apertar o pescoço), sufocar, afogar a

vítima ou outro familiar?

permitindo, assim, que seja desdobrada em múltiplas perguntas:

a) O/A ofensor/a já tentou estrangular a vítima?

b) O/A ofensor/a já tentou sufocar a vítima?

c) O/A ofensor/a já tentou afogar a vítima?

d) O/A ofensor/a já tentou estrangular outro familiar?

e) O/A ofensor/a já tentou sufocar outro familiar?

f) O/A ofensor/a já tentou afogar outro familiar?

A pergunta 9 é marcada pelo mesmo tipo de complexidade: presença de duas

orações completivas infinitivas (“O/A ofensor/a já tentou matar a vítima?” e “O/A

ofensor/a já ameaçou matar a vítima?”), e contém ainda um objeto direto alternativo,

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introduzido pela conjunção disjuntiva (“ou outro familiar”). Neste sentido, também a

pergunta 9 pode ser desdobrada em quatro perguntas diferentes:

9. O/A ofensor/a já tentou ou ameaçou matar a vítima ou outro familiar?

a) O/A ofensor/a já tentou matar a vítima?

b) O/A ofensor/a já ameaçou matar a vítima?

c) O/A ofensor/a já tentou matar outro familiar?

d) O/A ofensor/a já ameaçou matar outro familiar?

O mesmo acontece na pergunta 7, que, além de uma oração subordinada

completiva selecionada por um quantificador (“O/A ofensor/a já utilizou algum tipo de

arma?”), possui também uma oração subordinada completiva infinitiva (“O/A ofensor/a

já ameaçou utilizar algum tipo de arma?”). Esta pergunta apresenta ainda mais duas

alternativas pelas conjunções disjuntivas, sendo que a última introduz uma oração

coordenada disjuntiva (“ou tem acesso fácil a arma de fogo?”). Sendo assim, a pergunta

7, na verdade, não corresponde a uma única pergunta, mas sim a cinco:

7. O/A ofensor/a já utilizou/ameaçou usar algum tipo de arma contra a vítima ou

outro familiar ou tem acesso fácil a arma de fogo?

a) O/A ofensor/a já utilizou algum tipo de arma contra a vítima?

b) O/A ofensor/a já ameaçou usar algum tipo de arma contra a vítima?

c) O/A ofensor/a já utilizou algum tipo de arma contra outro familiar?

d) O/A ofensor/a já ameaçou usar algum tipo de arma contra outro familiar?

e) O/A ofensor/a tem acesso fácil a arma de fogo?

O sinal gráfico “/” também é causador de complexidade sintática, uma vez que,

como a ficha é para ser lida à vítima, então podemos supor que esse sinal será substituído

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oralmente pela conjunção alternativa “ou”. Também neste caso é dada origem a uma nova

oração e pergunta. Isto acontece na pergunta 18:

18. A vítima separou-se do/a ofensor/a, tentou/manifestou intenção de o fazer?

Esta questão, efetivamente, incorpora outras. A incorporação de diferentes

perguntas na pergunta 8 deve-se ao uso de três verbos principais (“separou-se”,

“manifestou” e “fazer”), e um verbo auxiliar (“tentou”):

a) A vítima separou-se do/a ofensor/a?

b) A vítima manifestou intenção de o fazer?

c) A vítima tentou fazê-lo?

O texto introduz complexidade sintática acrescida também devido à utilização

errada de tipos de frase. Em particular, a ficha apresenta interrogativas construídas na

negativa que complicarão (e potencialmente condicionarão) o tipo de resposta da vítima.

11. O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/ psicológica e não está a ser

acompanhado/a por profissional de saúde ou não toma a medicação que lhe tenha sido

receitada?

As perguntas na forma afirmativa são mais simples de processar e permitem uma

resposta esclarecedora, ao passo que as perguntas na negativa não são respondidas da

mesma forma que a uma feita na forma afirmativa. Isto significa que a uma interrogativa

negativa, a resposta SIM é interpretada como um “marcador de negação concordante”

(Martins, 2016, p. 589).

A pergunta 11 é exemplo de uma construção de negação oracional simples, em

que os operadores de negação “não” precedem imediatamente o verbo: neste caso, se a

vítima quiser dizer que o ofensor não está a ter acompanhamento médico, quando lhe é

perguntado, a resposta terá de ser negativa:

a) P: O/A ofensor/a não está a ser acompanhado/a por profissional de saúde?

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R: Não

O uso da negativa na resposta acima estaria a confirmar que o ofensor/a não teria

acompanhamento médico. Contrariamente, se a pergunta estivesse na forma afirmativa e

se a vítima quisesse negar a existência de acompanhamento médico, seria mais natural a

resposta na negativa, ao contrário do exemplo anterior:

b) P: O/A ofensor/a está a ser acompanhado por profissional de saúde?

R: Não

Tendo em conta que as vítimas estão emocionalmente fragilizadas, o que afeta a

sua capacidade de processamento cognitivo, esta estrutura sintática é obscura e de difícil

compreensão. Adicionalmente, a formulação da resposta também não é fácil, uma vez

que ocorre de forma contrária ao comum. Além do mais, não se pode esquecer o outro

interveniente na conversa – o agente policial. É necessário perceber se este tem

consciência da dificuldade inerente a uma interrogativa na negativa e se está preparado

para entender a resposta da vítima, de forma a que o registo escrito seja fiel ao depoimento

oral.

Na pergunta 11 não há só uma oração construída na negativa, mas duas, piorando

o cenário de compreensão e resposta por parte da vítima e do avaliador:

11. O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/psicológica e não está a ser

acompanhado por profissional de saúde ou não toma a medicação que lhe tenha sido

receitada?

Para além das interrogativas negativas, podemos constatar também a presença de

uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva (“que lhe tenha sido receitada”), assim

como uma coordenada copulativa (“e não está a ser acompanhado por profissional de

saúde”) e disjuntiva (“ou não toma a medicação que lhe tenha sido receitada”), que

introduzem perguntas alternativas, resultando em cinco perguntas encaixadas:

a) O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/ psicológica?

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b) O/A ofensor/a não está a ser acompanhado/a por profissional de saúde?

c) O/A ofensor/a não toma a medicação que lhe tenha sido receitada?

d) O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/ psicológica e não está a ser

acompanhado/a por profissional de saúde?

e) O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/ psicológica e não toma a

medicação que lhe tenha sido receitada?

Como se pode ver pelas diferentes combinações de orações, todas constituem

possíveis perguntas. É importante relembrar que a vítima pode, unicamente, responder

“SIM” ou “NÃO”. Esta é uma questão que, de tão multifacetada, se torna confusa, tendo

em conta, especialmente, o uso de duas negativas. Isto leva-nos, de certa forma, a

questionar a qualidade com que é fixada a resposta das vítimas. Todas as perguntas

formuladas nos exemplos 3 a 7 podem ter respostas diferentes; porém, sendo este um

inquérito de perguntas fechadas, não há oportunidade para uma resposta adequada.

3. O/A ofensor/a já tentou estrangular (apertar o pescoço), sufocar, afogar a

vítima ou outro familiar?

4. O/A ofensor/a já exerceu violência sexual sobre a vítima ou outro familiar?

(ex: abuso, violação ou tentativas)

5. Foi necessária atenção médica após alguma agressão e/ou as lesões

comprometeram as atividades normais diárias da vítima ou as de outros familiares? (ex:

trabalho/ escola/ tarefas domésticas)

6. O número de episódios violentos e/ou a sua gravidade tem vindo a aumentar

no último mês?

7. O/A ofensor/a já utilizou/ ameaçou usar algum tipo de arma contra a vítima ou

outro familiar ou tem acesso fácil a arma de fogo?

Veja-se o que acontece na pergunta 5, por exemplo:

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5. Foi necessária atenção médica após alguma agressão e/ou as lesões comprometeram

as atividades normais diárias da vítima ou as de outros familiares?

A pergunta transcrita pode ser desdobrada nas seguintes perguntas:

a) Foi necessária atenção médica após alguma agressão?

b) Foi necessária atenção médica após alguma agressão e as lesões

comprometeram as atividades normais diárias da vítima?

c) As lesões comprometeram as atividades normais diárias da vítima?

d) As lesões comprometeram as atividades normais diárias de outros

familiares?

e) Foi necessária atenção médica após alguma agressão ou as lesões

comprometeram as atividades normais diárias da vítima?

f) Foi necessária atenção médica após alguma agressão ou as lesões

comprometeram as atividades normais diárias de outros familiares?

Observando os exemplos acima, podemos constatar que as possibilidades de

pergunta são diversas, e, como se pode verificar, todas as perguntas são diferentes, pelo

que exigem respostas diferentes. No entanto, a vítima pode apenas dar uma resposta, o

que, inevitavelmente, conduzirá à falta de exatidão – isto porque nem o avaliador saberá,

com toda a certeza, a qual corresponde a resposta da vítima.

A construção sintática das perguntas de modo semelhante ao da pergunta 5 pode

afetar a comunicação entre o/a agente policial entrevistador e a vítima, uma vez que, de

tão complexa a estrutura sintática, a pergunta torna-se ininteligível, não permitindo a

existência de diálogo entre os intervenientes, pois, “para haver verdadeiro diálogo, a

primeira condição a satisfazer é a de que os dois interlocutores compreendam o discurso

um do outro.” (Carapinha, 2012, p. 61)

Deste modo, as orações simples e as frases interrogativas na forma afirmativa

constituem o ponto-chave para se conseguir obter as melhores informações das vítimas.

No entanto, as perguntas revelam-se exatamente o oposto, o que vai contra aquelas que

são as exigências da Procuradoria-Geral da República, que defende a existência de

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respostas minuciosas, de forma a que as provas não sejam “incipiente[s]” (EARHVD,

2018a). A clareza do tópico e o desdobramento das perguntas contribuirão para respostas

menos incipientes e mais específicas, fazendo corresponder uma pergunta a uma resposta,

e não uma resposta a cinco perguntas.

A questão da complexidade sintática está, de certa forma, presente em todas as

perguntas da “Ficha de Avaliação de Risco”, uma vez que, à exceção das duas primeiras

perguntas, todas as outras manifestam aspetos que dificultam a sua compreensão. Quer

seja pelo uso de verbos auxiliares (por vezes mais do que um na mesma pergunta) – como

é o caso da pergunta 6, na qual os dois verbos auxiliares “ter” e “vir” (em “tem vindo a

aumentar”) reforçam a ideia de continuidade de algo que aconteceu no passado e se

prolongou até ao presente –, quer seja pelo uso de orações gerundivas encaixadas, como

na pergunta 10 (“O/A ofensor/a persegue a vítima, intimidando-a intencionalmente,

demonstra ciúmes excessivos e tenta controlar tudo o que a vítima faz?”), quer seja pelo

recurso a interrogativas formuladas na negativa (como é o caso da pergunta 11), quer seja

até pelas próprias orações coordenadas e subordinadas que ocorrem na mesma frase

(como nas perguntas 5, 7 e 19, por exemplo) afetam a estrutura da frase, que deveria ser

simples, dada a natureza das perguntas e respostas que são exigidas.

3.2. – Semântica

3.2.1. – Tempo e Aspeto

Enquanto categoria semântica responsável pela localização temporal das situações

descritas nas frases, o tempo pode ser marcado através da morfologia dos tempos verbais,

bem como pelo uso de expressões adverbiais de tempo e também de verbos auxiliares.

Como será possível constatar, as questões evidenciam tempos verbais complexos e pouco

adequados ao contexto. Vejamos, por exemplo, a pergunta 9:

9. O/A ofensor/a já tentou ou ameaçou matar a vítima ou outro familiar?

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Nesta pergunta, a marcação de tempo é feita, não só pela flexão do pretérito

perfeito dos verbos auxiliares “tentar” (“tentou”) e ameaçar (“ameaçou”), indicando que

a tentativa de homicídio ou as ameaças tiveram lugar no passado, mas também é feita

pelo recurso ao advérbio de tempo “já”, reforçando a informação temporal de

anterioridade da ação, face ao ponto de fala.

Na maioria das perguntas, o tempo verbal predominante é o pretérito perfeito do

indicativo, embora nem sempre o tempo morfológico do verbo corresponda ao tempo

semântico. Vejamos as seguintes perguntas:

1. O/A ofensor/a alguma vez usou violência física contra a vítima?

2. O/A ofensor/a alguma vez usou violência física contra outros do agregado familiar?

4. O/A ofensor/a já exerceu violência sexual sobre a vítima?

5. Foi necessária atenção médica após alguma agressão e/ou as lesões comprometeram

as atividades normais diárias da vítima ou as de outros familiares?

12. O/A ofensor/a já tentou ou ameaçou suicidar-se?

No caso destas perguntas, o tempo morfológico pretérito perfeito (sublinhado

anteriormente) corresponde semanticamente a ações que aconteceram no Passado e, em

muitas delas, esta informação de passado é reforçada por outros mecanismos, como

expressões adverbiais com informação de tempo, tais como “alguma vez” (perguntas 1 e

2) e “já” (perguntas 4 e 12). Em particular, na pergunta 5, a situação “Foi necessária

atenção médica” é anterior, não só ao momento de enunciação, como também à situação

de comprometimento das atividades diárias tendo em conta as lesões.

Por outro lado, na pergunta 6:

6. O número de episódios violentos e/ou a sua gravidade tem vindo a aumentar

no último mês?

o uso de dois verbos auxiliares no complexo verbal “tem vindo a aumentar” reforçam a

ideia de progressão de uma situação que teve início algures no passado e que se prolonga

pelo menos até ao ponto de fala. Contudo, esta ideia de progressão parece ser cortada pelo

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recurso à expressão adverbial “no último mês”, que, tendencialmente, impõe um fim à

situação. Sendo assim, o uso do pretérito perfeito do indicativo (“aumentou”), em lugar

do pretérito perfeito composto do indicativo e infinitivo (“tem vindo a aumentar”),

adequar-se-ia melhor à situação, porque não exige a escalada diária de violência que “tem

vindo a aumentar” requere, mas antes que a violência tenha aumentado uma vez “no

último mês”, e, assim, a telicidade imposta pelo adjunto adverbial não “corta” a

componente durativa introduzida por “tem vindo a aumentar”.

Um relatório da EARHVD (Dossiê nº1/2017-AC) mostra que uma vítima

respondeu afirmativamente a esta pergunta na Ficha RVD-1L, mas não na Ficha RVD-

2L, levando, assim, a uma diminuição no nível de risco (EARHVD, 2017). Todavia, a

vítima, na segunda ficha, continuava a afirmar a sua convicção de que poderia ser morta

pelo companheiro. É evidente que, se a violência já atingiu o máximo (como é o caso de

tentativa de homicídio), não há espaço para que continue a escalar. Em consequência

desta resposta negativa, o nível de risco diminuiu, como acontece na maior parte dos

casos, pondo em causa as medidas de proteção à vítima.

O presente do indicativo é um tempo que está, igualmente, presente em algumas

perguntas sem que, no entanto, corresponda semanticamente a uma informação temporal

de Presente. Ou seja, no caso das perguntas da “Ficha de Avaliação de Risco”, o tempo

presente não descreve uma situação que se sobrepõe ao momento de enunciação, mas tem

uma leitura preferencial de habitualidade, “em que se descreve uma repetição regular e

habitual de situações simples” (Oliveira, 2013, p. 514), como acontece na pergunta 10:

10. O/A ofensor/a persegue a vítima, intimidando-a intencionalmente, demonstra

ciúmes excessivos e tenta controlar tudo o que a vítima faz?

Nesta questão, o presente em “persegue”, “demonstra” e “faz” não descrevem

situações que estão a ocorrer concomitantemente com o tempo de enunciação, mas sim

situações habituais.

A mesma leitura de habitualidade do presente encontra-se nas perguntas que se

seguem:

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11. O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/psicológica e não está a ser

acompanhado/a por profissional de saúde ou não toma a medicação que lhe tenha sido

receitada?

13. O/A ofensor/a tem problemas relacionados com o consumo de álcool, ou outras

drogas (…)?

16. O/A ofensor/a tem problemas financeiros significativos ou dificuldade em manter

um emprego (no último ano)?

17. Existe algum conflito relacionado com a guarda/contato dos filhos?

19. A vítima ou alguém do agregado familiar tem necessidades especiais (…) e/ou não

tem apoio de terceiros?

20. A vítima está grávida ou teve um bebé nos últimos 18 meses?

A leitura de sobreposição do evento ao ponto de fala acontece, especificamente,

na pergunta 11 com o uso do presente progressivo (“não está a ser acompanhado”). Neste

caso, é pressuposta uma duração do evento pelo menos até ao momento da fala. Na mesma

questão, existe também uma leitura de Presente Real devido à tipologia aspetual de

“instabilidade emocional/ psicológica”, que se trata de um estado – situação não dinâmica

que confere uma informação temporal de presente.

O presente do conjuntivo é, também, usado. Veja-se, por exemplo, a pergunta 8:

8. Acredita que o/a ofensor/a seja capaz de a/o matar ou mandar matar?

O verbo da oração subordinada (“seja”) está no modo conjuntivo, localizando,

assim, a ação num momento posterior ao da oração principal e ao momento de

enunciação. O facto de este modo estar, tipicamente, relacionado com a incerteza, dúvida,

possibilidade e desejo (Marques, 2016; Marques & Oliveira, 2016) faz com que não seja

o modo mais adequado para se usar nesta questão. Isto porque, neste contexto específico,

revela, de algum modo, a incerteza de que o ofensor é capaz de matar a vítima, podendo

mesmo suplantar dúvidas nela sobre a sua convicção.

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O pretérito perfeito composto do conjuntivo é um tempo “aspetualmente

perfetivo, pois perspetiva a situação como estando concluída” (Oliveira, 2013, p. 538).

Na pergunta 11, a conjugação verbal “tenha sido” ocorre numa frase em que o verbo

principal está no pressente do indicativo (“toma”), logo a situação temporal expressa na

frase principal sobrepõe-se ao momento da enunciação, enquanto a situação que ocorre

na oração subordinada ocorre num momento anterior à da frase principal e ao momento

de enunciação. Por outro lado, o uso deste tempo verbal (“tenha sido”) sugere que a

pergunta não está a ser feita diretamente à vítima, mas sim ao agente avaliador que, por

sua vez, a fará à vítima.

Por último, como já foi referido anteriormente, nem sempre o tempo semântico

corresponde ao tempo morfológico e, sendo assim, o uso do presente não tem uma leitura

de simultaneidade com o momento da enunciação, mas sim de habitualidade (como já foi

mostrado) e de Futuro. Isto acontece, por exemplo, em caso de ameaças, como é o caso

de Eu mato-te! Apesar de o tempo morfológico do verbo “matar” ser o presente do

indicativo, o tempo semântico coloca a situação num momento posterior ao ponto de fala.

A leitura de Futuro da frase, e de outras com o mesmo cariz ameaçador, nem sempre é

aceite como correspondendo a “ameaças” (termo técnico) devido ao uso do tempo verbal

presente. Sendo a ameaça recorrente em casos de violência doméstica, pode tornar-se um

problema se os operadores da Justiça não encararem frases como Eu mato-te!, ou Eu vou

matar-te! como ameaças, só porque o tempo verbal usado é o presente e não o futuro9.

3.2.2. – Léxico e Terminologia

A interação verbal é um processo complexo que “envolve a produção de sentido

por parte de quem fala e a compreensão por parte de quem ouve” (Faria, 2003, p. 57); no

entanto há vocábulos que adquirem um sentido muito próprio, dentro de uma profissão

ou ciência, por exemplo, e podem diferir do uso comum; portanto, o sinal não é

9 http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/15911adc3eb4945e802579d000371aa8?OpenDocument

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reconhecido por todos de igual modo. Falamos em linguagens especializadas por

oposição à linguagem geral. As linguagens especializadas são pragmaticamente

caracterizadas por três variáveis: uma área, o tipo de utilizador e o tipo de situação em

que a comunicação tem lugar (Cabré, 1999). Assim, as regras e unidades de linguagem

dessas áreas temáticas especializadas não fazem parte do conhecimento geral dos

falantes; são, antes, objeto de um processo específico de aprendizagem. Há, por vezes,

situações em que os falantes especializados contactam com falantes não especializados,

como é o caso dos interrogatórios policiais, e os últimos desempenham um papel de

recetores passivos da mensagem (Cabré, 1999), uma vez que há particularidades

intrínsecas às linguagens especializadas que não são partilhadas pelos falantes leigos da

área específica.

Na “Ficha de Avaliação de Risco” estão presentes alguns termos que, na área do

Direito, adquirem um significado diferente daquele que é usado pelos falantes não

especializados. É o caso de “armas” e “ameaças”. Relativamente ao primeiro termo

(“armas”), mencionado na pergunta 7, a “Ficha de Avaliação de Risco” alerta, em nota

de rodapé, que a pergunta se refere apenas às armas previstas “no regime jurídico das

armas e suas munições”. A presença desta nota indica, desde logo, o desfasamento entre

o termo técnico a que a pergunta alude e o termo coletivo. Se, por um lado, leigos em

matéria de Direito entenderiam o termo “arma” como dizendo respeito a qualquer objeto

que pudesse colocar em perigo a sua vida, o Código Penal refere, também, que “arma não

é apenas, in casu, aquilo a que se chama arma por natureza, certo como também os

objectos utilizáveis para violentamente atingir alguém, no corpo ou na vida” (Pereira &

Lafayette, 2008, p. 545). Contudo, a lei nº5/2006, de 23 de fevereiro a que a nota faz

referência diz o seguinte:

1 - A presente lei estabelece o regime jurídico relativo ao fabrico, montagem,

reparação, importação, exportação, transferência, armazenamento, circulação,

comércio, aquisição, cedência, detenção, manifesto, guarda, segurança, uso e porte de

armas, seus componentes e munições, bem como o enquadramento legal das operações

especiais de prevenção criminal.

2 - Ficam excluídas do âmbito de aplicação da presente lei as actividades relativas a

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armas e munições destinadas às Forças Armadas, às forças e serviços de segurança,

bem como a outros serviços públicos cuja lei expressamente as exclua, bem como

aquelas que se destinem exclusivamente a fins militares.10 (sublinhados nossos)

Por outro lado, na mesma pergunta 7 questiona-se se o agressor tem “acesso

fácil a arma de fogo”. Isto restringe o tipo de armas a que o sujeito pode ter acesso,

esquecendo-se a facilidade em arranjar outro tipo de armas, o que nos leva a questionar

o que se considera “armas” e se apenas armas de fogo podem constituir uma ameaça

às vítimas de violência doméstica. Como mostra o processo 76/17.1GDCBR.C1 do

Tribunal da Relação de Coimbra, uma lâmina11 pode constituir uma arma, embora os

inquéritos não a contemplem como tal. O homicídio ocorrido em Braga, a 18 de

setembro de 2019, é um exemplo claro de como os agressores podem ter acesso fácil

a “armas” que não de fogo. Neste caso, a vítima “foi degolada pelo homem com quem

se casara e de quem já se tinha separado” (Pereira, 2019a), método que não encaixa

em nenhuma pergunta das “Fichas de Reavaliação de Risco”, pois só as armas de fogo

estão consideradas.

O conceito de “ameaça” é outro conceito complexo que adquire significados

distintos na linguagem geral e enquanto termo técnico do Direito. Podemos questionar-

nos sobre o que é uma ameaça e se o que entendermos por isso se assemelha ao que o

regime jurídico considera. De acordo com o artigo 153º do Código Penal:

1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a

integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual

ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe

medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido

10 http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=692&tabela=leis 11 http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/dd4e834484478df380258400004cba8c?OpenDocument&Highlight=0,viol%C3%AAncia,dom%C3%A9stica

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com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - O procedimento criminal depende de queixa.12

Um Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra esclarece este artigo:

Após a revisão do C. Penal de 1995, passou a ser claro que no crime de ameaça não

se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que

tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a

ameaça seja susceptível de a afectar.

O crime de ameaça deixou, pois, de ser um crime de resultado e de dano.

A ameaça «adequada» é aquela que, de acordo com a experiência comum, é

susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, independentemente do seu

destinatário ficar, ou não, intimidado.13

Apesar de o artigo e de o acórdão esclarecerem que o crime de ameaça não exige

a realização de algum ato que provoque medo ou inquietação, deixa uma margem que

leva a várias interpretações relativamente aos tempos verbais em que as ameaças são

proferidas. A ameaça proferida no tempo presente do indicativo não é sempre entendida

como uma ameaça, por se considerar que não constitui um perigo futuro para a vítima.

Num Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra14, o ofensor pronunciou, entre outras,

as seguintes palavras contra a vítima:

“se não és minha não vais ser de mais ninguém”

12 http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=109A0153&nid=109&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao= 13 http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/15911adc3eb4945e802579d000371aa8?OpenDocument 14 http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/dd4e834484478df380258400004cba8c?OpenDocument&Highlight=0,viol%C3%AAncia,dom%C3%A9stica

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No entanto, não ficou demonstrado que o arguido tivesse ameaçado de morte a

vítima. Noutro Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (Processo

nº20/17.6GCMLG.C1) pode ler-se ainda que frases como:

“eu mato-te”

“eu dou-lhe na cara, ponho-o lá fora à bofetada”

“anda cá para baixo, que te quero matar”

“vou atirá-los ao rio”

“não constituem crime de ameaça pelo facto de não constituírem uma ameaça de mal

futuro”15. Podemos concluir, então, que, na área do Direito, para serem considerados

ameaças, os enunciados não podem ser proferidos no presente do indicativo, porque “[a]

ameaça é (…) ameaça dum mal.”, e esse “mal tem de ser futuro e não imediato ou

iminente”. Pelo contrário, os falantes não especializados em Direito não especificarão tão

minuciosamente o que é uma ameaça. Para eles, expressões como “vou-te matar” e “‘hei-

de-te matar’” (Pereira & Lafayette2008, p. 411) qualificam uma promessa de cometer um

crime, uma vez que o uso do presente do indicativo na primeira expressão adquire uma

leitura de futuro.

O termo “lesões” é outro que veicula mais do que uma interpretação. Na pergunta

5, é perguntado se as “lesões” comprometeram a vida diária da vítima ou de outro

familiar. A partir do enunciado da pergunta, não nos é permitido saber se ela se refere

somente às lesões físicas, ou se também estão contempladas as lesões psicológicas,

provocadas pelas agressões ou tentativas de homicídio, como traumas e medo de sair à

rua. Não são só os danos físicos que comprometem atividades como o trabalho, a escola

ou as lides domésticas. O medo pode, igualmente, ser um impedimento para tais práticas.

Resta saber se essas lesões mencionadas contemplam os dois tipos (físicas e psicológicas)

e se a vítima assim entende, ou se só referem os danos físicos e a vítima não interpreta

dessa forma. O facto de ser usado apenas o nome dá liberdade a várias interpretações,

15 http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/1794b0536c67b342802583f9003733ec?OpenDocument&Highlight=0,20%2F17.6GCMLG.C1

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comprometendo a objetividade do inquérito, uma vez que, como a pergunta não é

específica quanto ao tipo de lesões, cada vítima interpretará de forma diferente e o que é

suposto ser uma pergunta de resposta fechada e objetiva deixa de o ser, considerando os

diferentes sentidos atribuídos ao vocábulo “lesões”.

Na pergunta 11, podemos questionar-nos sobre se o avaliador conhecerá a

verdadeira intenção do sinal gráfico no contexto daquela pergunta específica.

11. O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/psicológica e não está a ser

acompanhado por profissional de saúde ou não toma a medicação que lhe tenha sido

receitada?

A vítima, como qualquer outra pessoa que seja leiga em matéria de psicologia,

não saberá se há diferenças técnicas entre os dois tipos de instabilidade (“emocional” e

“psicológica”). Se os dois termos são sinónimos, não se compreende o uso dos dois, pois

apenas dificultam o processamento por parte da vítima, levando-a a questionar se são a

mesma coisa ou se, por outro lado, têm significados distintos.

Existem, ainda, outros pormenores de vocabulário que levantam problemas de

subjetividade neste inquérito. São eles o recurso a advérbios de modo e a adjetivos. Estas

classes de palavras modificam, de certo modo, o substantivo a que se referem e,

especialmente no caso dos adjetivos, emitem um juízo pessoal, na medida em que apelam

à subjetividade, dado o seu teor qualificativo.

Os adjetivos presentes em perguntas da “Ficha de Avaliação de Risco” não têm

um sentido denotativo, uma vez que não exprimem propriedades constitutivas do

sintagma nominal, convidando, ao invés, a uma avaliação por parte do alocutário. Por

exemplo, na pergunta 16, “problemas financeiros significativos” certamente não significa

a mesma coisa para todos.

16. O/A ofensor/a tem problemas financeiros significativos ou dificuldade em

manter um emprego (no último ano)?

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A gravidade dos problemas financeiros variará consoante a classe social a que a

vítima pertence, pois alguém que seja de uma classe social baixa, com um património

financeiro reduzido, não considerará por “problemas financeiros significativos” o mesmo

que alguém que pertença a uma classe social alta, com um património financeiro elevado.

A magnitude das dificuldades interliga-se com a proporção do dinheiro de cada um e, por

isso, o adjetivo “significativos” introduzirá uma avaliação de acordo com uma perspetiva

pessoal.

O adjetivo não é indispensável à frase e, por isso, a sua omissão não arruinaria a

pergunta e eliminaria a subjetividade que ele cria. No dossiê nº3/2018-AM da EARHVD

refere-se que, no caso em análise, a vítima respondeu afirmativamente a esta questão na

Ficha RVD-1L, mas não na Ficha RVD-2L. Se considerarmos que “problemas

financeiros significativos” são problemas financeiros graves como não ter dinheiro para

garantir os custos mínimos de sobrevivência, não se explica como é que o agressor, da

primeira ficha para a segunda, deixou de ter tais problemas. Mesmo que, de um momento

para o outro, a situação financeira do agressor tivesse melhorado significativamente, a

expressão adverbial “no último ano” continuaria a exigir uma resposta igual à da “Ficha

de Avaliação de Risco” anterior.

Na pergunta 10, utiliza-se um advérbio de modo (“intencionalmente”) e um

adjetivo (“excessivos”) que podem levar, também, a diferentes interpretações pela vítima

e, até, pelo avaliador.

10. O/A ofensor/a persegue a vítima, intimidando-a intencionalmente, demonstra

ciúmes excessivos e tenta controlar tudo o que a vítima faz?

Em primeiro lugar, o uso do advérbio “intencionalmente” não se adequa nem é

necessário tendo em conta o verbo usado: “intimidar”. Intimidar pressupõe, desde logo,

um ato voluntário com o objetivo de provocar medo. Em segundo lugar, a oração

gerundiva inserida na oração principal (“intimidando-a intencionalmente”) pode gerar um

mal-entendido. Tal como está, a pergunta leva-nos a inferir que, se o ofensor perseguir a

vítima, mas não a intimidar intencionalmente, então esta tem de responder negativamente

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à pergunta. Esta oração, “prosodicamente autónoma relativamente à oração principal”

(Oliveira, 2013, p. 549), é temporalmente posterior ao evento de alguém perseguir outra

pessoa, mas situa-se num momento anterior ao ponto de fala, significando isto que, para

haver intimidação, tem de acontecer primeiro a perseguição.

A subjetividade estende-se à expressão “ciúmes excessivos” na pergunta 8, uma

vez que o adjetivo “excessivos” cria, igualmente, alguma subjetividade baseada nas

opiniões de cada interveniente. Isto fará com que a objetividade das avaliações de risco

seja, na verdade, contornada por conceções pessoais geradas pelo uso de adjetivos e

advérbios.

O advérbio “mesmo”, na pergunta 8, poderá exercer alguma influência no impacto

que a pergunta terá na vítima, uma vez que, quando utilizado juntamente com o presente

do conjuntivo (“seja”), promove, de certa forma, a dúvida na vítima sobre se o agressor

será realmente capaz de a matar. Nesta pergunta, a informação parentética é supérflua,

pois funciona apenas como um reforço da pergunta principal. Pode, no entanto, levar a

vítima a questionar a sua convicção. Se assim for, o nível de risco calculado na “Ficha de

Avaliação de Risco” pode não ser compatível com o perigo real que a vítima incorre.

Um relatório da EARHVD (dossiê nº1/2018-AC) mostra, porém, que a vítima do

caso em análise respondeu afirmativamente à pergunta 3, mas não respondeu à pergunta

9, e nem mesmo à pergunta 8 (EARHVD, 2018a).

3. O/A ofensor/a já tentou estrangular (apertar o pescoço), sufocar, afogar a

vítima ou outro familiar?

8. Acredita que o/a ofensor/a seja capaz de a/o matar ou mandar matar (está

convicta de que ele/a seja mesmo capaz?

9. O/A ofensor/a já tentou ou ameaçou matar a vítima ou outro familiar?

Linguisticamente, as perguntas 3 e 9 são semelhantes, na medida em que os atos

descritos na pergunta 3 (“estrangular”, “sufocar” e “afogar”) são atos cujo valor

semântico corresponde ao da expressão “tentou matar”, na pergunta 9. Então, se o ofensor

praticou algum dos atos mencionados na pergunta 3, não há razão para a vítima não ter

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respondido afirmativamente à pergunta 9, relativamente à tentativa de homicídio. Apesar

de o agressor ter tentado estrangular, sufocar e afogar a vítima, esta não respondeu

afirmativamente à pergunta 8, revelando, portanto, a sua falta de convicção na coragem

do agressor para a matar, contrariamente ao que seria expectável.

A expressão “ser alvo de” é muito típica no português europeu; porém, no

contexto da pergunta em que ocorre, o seu significado pode levantar algumas questões,

nomeadamente discursivas. “Alvo” é um ponto de mira em que se pretende acertar algo,

representando, assim, um papel passivo.

14. O/A ofensor/a já foi alvo de queixas criminais anteriores?

Nesta pergunta, o vocábulo “alvo” leva-nos a presumir que o ofensor assume o

mesmo papel de passividade, geralmente associado à ideia de vitimização ou,

inclusivamente, de inocência. O significado desta expressão transmite, ainda que de

forma não intencional, uma espécie de solidariedade para com o agressor/ criminoso,

colocando-o numa posição de incriminado injustamente.

Também na mesma pergunta, são dados exemplos das possíveis queixas

apresentadas contra ele/a previamente; porém, nenhum dos exemplos mencionados diz

respeito a uma anterior denúncia por violência doméstica. Pode dizer-se que são apenas

exemplos e que não podem ser incluídas todas as possibilidades de denúncias. Contudo,

tratando-se de uma “Ficha de Avaliação de Risco de Violência Doméstica”, saber se há

antecedentes neste contexto constitui uma prioridade. Por outro lado, não sabemos se as

vítimas os entendem como meros exemplos, ou como as únicas hipóteses que lhes são

dadas. No relatório nº3/2018-AM da EARHVD, relativo a 2017, a vítima, na sequência

de uma tentativa de homicídio por parte do marido, e depois da tomada de conhecimento

por parte da polícia, respondeu à Ficha RVD-1L, não respondendo, no entanto, à pergunta

14 (EARHVD, 2019). É claro que o agressor poderia não ter antecedentes criminais, mas

não é o caso. O mesmo relatório mostra que, em anos anteriores, nomeadamente em 2007,

tinha já sido apresentada uma queixa de violência doméstica contra a vítima. Há duas

hipóteses para a vítima, em 2017, não ter respondido afirmativamente à pergunta 14.: a)

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de facto, os exemplos constituem as únicas queixas a que a vítima pode responder que

sim; b) o facto de a denúncia ter acontecido há 10 anos fez com que ficasse descartada a

possibilidade de mencionar as queixas anteriores. A hipótese de a vítima não ter querido

mencionar as denúncias anteriores não está em causa, uma vez que, em 2017, quando

respondeu à Ficha RVD-2L, já ficou registada resposta afirmativa à pergunta 14. Este

“SIM” refere-se, claramente, à tentativa de homicídio que levou à denúncia daquela

situação de violência e não às agressões de anos anteriores, caso contrário teria já ficado

marcado como “SIM” à pergunta 14 na Ficha RVD-1L.

Por último, a pergunta mostra atualidade da ideia de que a mulher é a vítima

nestas circunstâncias, uma vez que a questão da gravidez não se aplicaria a uma vítima

do sexo masculino.

20. A vítima está grávida ou teve um bebé nos últimos 18 meses?

3.2.3. – Colocações

No português, assim como nas restantes línguas, há combinações de palavras

livres – aquelas que permitem livre substituição dos elementos, por exemplo – e

combinações fixas, correspondentes a combinações de palavras próprias ou a expressões

idiomáticas, cujo sentido não pode ser entendido de forma literal.

Neste inquérito, observa-se a coocorrência de algumas expressões que não são

habituais no português, como, por exemplo, “usar violência física” (pergunta 1) e “exercer

violência sexual” (pergunta 4).

Na pergunta 1 coocorrem o verbo “usar” e o sintagma nominal “violência física”,

ocorrência esta que não é comum no português europeu contemporâneo, conforme revela

uma pesquisa no corpus do CETEMPúblico; num corpus de aproximadamente 180

milhões de palavras foram apenas encontradas 10 ocorrências com esta colocação.

Violência física é entendida pelos falantes do português como algo que se pratica e não

como algo que se usa. O sentido de “usar” aproxima-se mais do de “vestir”, “trajar” ou

“trazer a uso” (Machado, 1997, p. 511). O CRPC exibe, igualmente, um número muito

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reduzido de ocorrências desta colocação: são apresentadas apenas duas ocorrências num

corpus que ronda os 280 milhões de palavras.

O mesmo acontece na pergunta 4 com a colocação “exerce[r] violência sexual”:

uma pesquisa no CETEMPúblico revela que não são devolvidas quaisquer ocorrências

desta colocação. Verifica-se o mesmo resultado no CRPC.

O reduzido número de ocorrências destas duas colocações pode ser indicativo do

facto de que, de certa forma, esta formulação dificulta a compreensão da pergunta. O

recurso a expressões pouco comuns no português não se justifica quando há alternativas

mais claras, diretas e simples para perguntar o mesmo. Veja-se a diferença entre a

pergunta original e uma reformulação da mesma:

1. O/A ofensor/a alguma vez usou violência física contra a vítima?

a) O/A ofensor/a alguma vez agrediu fisicamente a vítima?

A alínea a) é uma opção corrente na língua portuguesa e mais direta, enquanto que

a pergunta 1, além de invulgar, suaviza a ideia da agressão física, pois o verbo “agredir”

tem, discursivamente, um maior impacto do que o verbo “usar”. Podemos questionar-nos

sobre se a intenção destas questões é conseguir uma suavização da situação, ou se, pelo

contrário, têm como objetivo ser o mais diretas possível.

Ambas as perguntas (1. e 4.) usam preposições diferentes: “contra” e “sobre”,

respetivamente. Aqui, podemos questionar-nos sobre qual a razão desta diferença. O uso

destas preposições parece estar em conformidade com o tipo de agressão a que cada

pergunta se refere. “Contra” significa “em oposição/ em luta com; em oposição hostil a,

tanto no sentido físico como moral” (Machado, 1996, p. 236) e, neste caso, introduz uma

entidade (a vítima) à qual se opõe outra já representada pelo constituinte (“o/a

agressor/a”). Por outro lado, “sobre” pode ser entendido como “em cima/ em cima de;

indica pessoa ou coisa que tem de sofrer certa ação ou em quem tem de se realizar um

certo efeito e equivale a “em prejuízo” ou em mal dessa pessoa” (Machado, 1997, p. 106).

O recurso à preposição “sobre” quererá, então, indicar a subjugação da vítima durante a

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agressão sexual, enquanto que na agressão física não há o mesmo tipo de submissão, mas

antes uma “luta com” a vítima.

A falta de objeto direto marca também as falhas nas coocorrências de expressões.

Na pergunta 2, seria expectável a presença de objeto direto do pronome indefinido

“outros”.

2. O/A ofensor/a alguma vez usou violência física contra outros do agregado

doméstico?

Podendo ser o agregado doméstico composto por pessoas e animais, não podemos

depreender que “outros” se refere apenas a “pessoas”. Para uma formulação mais

específica e adequada à expressão “agregado doméstico”, “outros” deveria estar na

função de determinante e ter um nome ao qual se referisse.

O emprego desta preposição põe em causa o significado da colocação na pergunta

17.

17. Existe algum conflito relacionado com a guarda/contato dos filhos?

Nesta questão, além de haver uma aplicação errada do acordo ortográfico com a

supressão da consoante “c” em “contato”, a colocação da preposição contraída “dos” não

é compatível com o nome “conta[c]to”, neste contexto. Em português europeu

contemporâneo, o mais correto seria “contacto com os filhos”. Com esta colocação, a

interpretação mais provável para o único problema que poderia haver com o “conta[c]to

dos filhos” seria o número de telefone (ou outra forma de contacto semelhante) destes

estar errado. A preposição parece, no entanto, estar em conformidade com a colocação

“guarda dos filhos”, não se apropriando, claramente, a “conta[c]to”. Assim sendo, então

“dos” deveria ser colocada junto ao nome a que diz respeito para não causar esta

ambiguidade. Verificar-se-á em muitas outras perguntas que a duplicação de assuntos na

estrutura interna das questões causa dificuldade na compreensão das perguntas e,

consequentemente, das respostas. Tratando-se de um documento oficial, cujo objetivo é

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determinar devidamente o risco que a vítima corre, então essas imprecisões poderão

exercer um impacto altamente negativo no apuramento dos factos e na determinação

rigorosa da ocorrência reportada policialmente.

3.3. – Nível Pragmático-Discursivo

Quando faz uso da linguagem, o locutor emprega-a de forma a poder exprimir as

suas intenções. Contudo, só serão compreendidas pelo interlocutor se ambos partilharem

o mesmo contexto social. A pragmática estuda a linguagem do ponto de vista dos falantes,

das escolhas linguísticas que fazem, e do efeito que essas escolhas têm nos outros.

Há perguntas na “Ficha de Avaliação de Risco” que podem exercer um efeito

benéfico sobre o agressor, na medida em que, consoante as respostas da vítima, poderão

contribuir para a falta de clareza na clarificação dos factos, ou mesmo constituir

atenuantes para as suas atitudes. É o caso das próximas perguntas:

11. O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/psicológica e não está a ser

acompanhado/a por profissional de saúde ou não toma a medicação que lhe tenha sido

receitada?

12.O/A ofensor/a já tentou ou ameaçou suicidar-se?

13. O/A ofensor/a tem problemas relacionados com o consumo de álcool, ou

outras drogas (…), dificultando uma vida diária normal (no último ano)?

16. O/A ofensor/a tem problemas financeiros significativos ou dificuldade em

manter um emprego (no último ano)?

Estas perguntas questionam a vítima sobre a possibilidade de o agressor padecer

de problemas psicológicos, financeiros ou problemas com o consumo de álcool ou outras

drogas, pressupondo-se que, enquanto fatores de risco, podem ser os causadores de

violência doméstica. Encarando estes problemas como causas deste crime, reduz-se, de

certa forma, a responsabilidade do agressor, pois este só age erradamente com a vítima

porque se encontra sob o efeito de álcool, drogas, porque se encontra emocionalmente

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instável, ou até porque tem problemas financeiros. De facto, o ofensor pode padecer de

alguns destes problemas, mas seria desejável que a formulação das perguntas não deixasse

margem de interpretação das mesmas de modo a servirem de sustentação dos casos de

violência doméstica.

De forma não intencional, as respostas afirmativas das vítimas a estas perguntas

podem ser usadas em defesa do acusado, como atenuantes e, assim, suavizar a sua

responsabilidade. Os problemas com o álcool, as instabilidades financeiras e emocionais,

enquanto fatores de risco, devem ser idealmente geridos como tal, não podendo ser

apontados como causas por si só da violência doméstica, pois não é justo para a vítima e

compactua com o comportamento errado do agressor, na medida em que este será julgado

pelas consequências que os problemas mencionados acima exercem em si, e não pelas

atitudes que tem. Além do mais, estas perguntas são feitas nas duas fichas de avaliação

como se fossem problemas que pudessem aparecer ou desaparecer no curto espaço de

tempo em que são realizadas, mas, visto que, entre a aplicação da primeira ficha e da

segunda decorre um período muito curto de tempo, não há margem para o

desenvolvimento de problemas tão sérios e que evoluem a longo prazo.

Por fim, as “Fichas de Avaliação de Risco” indicam que, em cada pergunta, o

substantivo “vítima” deve ser substituído pelo nome da própria, de forma a criar uma

ligação de maior proximidade entre os dois intervenientes. Porém, se for feita uma

substituição exata pelo nome da pessoa, tal como é sugerido, a proximidade que se

pretende estabelecer não é bem sucedida, uma vez que, ao colocar o nome da vítima, a

segunda pessoa do singular (TU) (que se pretende obter com a substituição) passa a

terceira pessoa do singular (ELE/A), tornando-se, então, uma relação mais distante.

Se, por outro lado, fosse sugerido substituir “vítima” por um pronome pessoal

tónico, nomeadamente “si”, essa aproximação seria alcançada. Note-se o sucedido com a

pergunta 1 (“O/A ofensor/a alguma vez usou violência física contra a vítima?”). A “Ficha

de Avaliação de Risco” sugere que “vítima” seja substituído pelo nome da própria. Assim

sendo, a pergunta a colocar seria:

a) O/A ofensor/a alguma vez usou violência física contra a Maria?

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O sintagma nominal “a Maria” parece emitir um maior distanciamento face à

vítima, ao passo que, se se usasse a forma pronominal do pronome de 3ª pessoa (“si”), a

aproximação entre avaliador e vítima seria estabelecida:

b) O/A ofensor/a alguma vez usou violência física contra si?

3.4. – Coerência e Coesão

A coerência e a coesão são duas propriedades fundamentais e indispensáveis na

atribuição de “sentido e de unidade” (Duarte, 2003, p. 87) aos textos. Um texto é coeso

internamente quando estão assegurados os “processos de sequencialização (…) entre os

elementos que ocorrem na superfície textual” (Duarte, 2003, p. 89), como os conetores,

as relações temporais ordenadas e até as cadeias de referência. Por outro lado, um texto é

coerente “com o mundo relativamente ao qual [deve] ser interpretado” (Duarte, 2003, p.

87). A coerência textual é o resultado dos mecanismos de coesão textual, assim como de

fatores extralinguísticos, como o conhecimento do mundo, e elementos pragmáticos.

Embora este inquérito pareça possuir a propriedade da aceitabilidade (uma das

cinco que constituem a textualidade), caso contrário a tolerância sobre algumas

imprecisões seria nula e o texto não seria aceite, este inquérito evidencia algumas

características que violam, quer o nível da coesão, quer o nível da coerência textual.

Uma das imprecisões a que nos referimos relaciona-se com o uso da conjunção

disjuntiva “ou” e do sinal gráfico “/” para introduzirem, quer sinónimos, quer uma

alternativa. Porém, não é esclarecido, em momento algum do inquérito, qual o contexto

específico em que aparece a conjunção disjuntiva ou o sinal gráfico. Deste modo, não

conseguimos compreender se os dois têm a mesma função, se a alternância entre ambos

é consistente e coerente ou se as vítimas e os avaliadores conseguem desvendar o

significado de um e de outro nos contextos em que são apresentados.

Além disso, como já foi dito anteriormente, estes inquéritos são feitos com o

objetivo de serem lidos à vítima, o que nos leva a questionar a forma como será o sinal

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gráfico reproduzido pelo avaliador. Se este o substituir pela conjunção disjuntiva “ou”, o

sentido da frase pode alterar-se, uma vez que, como veremos, a barra nem sempre introduz

sinónimos.

Mais concretamente na pergunta 11, por exemplo, não é explícito se os autores

consideram “instabilidade emocional” e “instabilidade psicológica” termos sinónimos, ou

se, por outro lado, a “/” indica dois tipos diferentes de fragilidade.

11. O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/psicológica e não está a ser

acompanhado por profissional de saúde ou não toma a medicação que lhe tenha sido

receitada?

Por sua vez, na pergunta 17 a “/” não representa, seguramente, dois sinónimos,

pois “guarda” e “conta[c]to” são palavras cujos significados são diferentes. Apresenta,

pelo contrário, uma alternativa.

17. Existe algum conflito relacionado com a guarda/ contato dos filhos?

Esta inconsistência entre o uso da “/” e o uso da conjunção pode, de alguma forma,

provocar desentendimento entre a resposta da vítima e aquilo que o avaliador entenderá

que foi a resposta. Assim, podem ficar registadas respostas diferentes daquilo que a vítima

queria, realmente, dizer.

Por outro lado, na pergunta 18, os três verbos principais separam-se entre si de

formas diferentes.

18. A vítima separou-se do/a ofensor/a, tentou/ manifestou intenção de o fazer

(nos últimos/ próximos 6 meses)?

Enquanto o primeiro e o segundo verbos são separados por uma vírgula, o segundo

e o terceiro verbos separam-se por uma “/”, sendo que “tentou” e “manifestou” não são

sinónimos e, por isso, aquele sinal gráfico não se justifica. O uso deste sinal gráfico corta

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a enumeração que se iniciou sobre atitudes que a vítima poderá ter tido. Não se pode

perguntar à vítima se ela “tentou intenção de o fazer”. Existe claramente uma falta de

uniformização que põe em causa a coerência do texto. Confirma-se, também, a falta de

sensibilidade da Ficha para o registo oral – aquele para o qual foi elaborado.

Na pergunta 19, a segunda conjunção “ou” não faz sentido no contexto em que

está inserida.

19. A vítima ou alguém do agregado familiar tem necessidades especiais e/ou

não tem apoio de terceiros?

O “apoio de terceiros” relaciona-se com o facto de poder haver alguém no

agregado familiar com necessidades especiais. Não havendo, não faz sentido o uso da

conjunção disjuntiva “ou”, pois, nesse caso, a vítima não precisará de apoio de terceiros.

Se, por um lado, a coerência do texto é afetada pela falta de uniformização no uso

da conjunção disjuntiva “ou” e do sinal gráfico “/”, por outro lado existem, também,

manifestações de falhas relativamente à coesão temporal. Para ser coeso e coerente, um

texto exige que “a sequencialização dos enunciados [satisfaça] as condições conceptuais

sobre localização temporal e ordenação relativa” (Duarte, 2003, p. 109). Este tipo de

coesão é assegurado pela utilização de certos tempos verbais, bem como através da

utilização de expressões adverbiais ou preposicionais “de valor temporal e datas” (Duarte,

2003, p. 109).

Como se pode verificar, as perguntas 16 e 18 manifestam problemas ao nível da

coesão temporal. Na questão 18, os tempos verbais estão no pretérito perfeito do

indicativo, remetendo, por isso, para um tempo passado. Porém, é usada uma expressão

adverbial com valor de futuro: “próximos 6 meses”. Para além disto, a ordem pela qual

aparecem os verbos não é totalmente lógica nem coerente.

16. O/A ofensor/a tem problemas financeiros significativos ou dificuldade em

manter um emprego (no último ano)?

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18. A vítima separou-se do/a ofensor/a, tentou/ manifestou intenção de o fazer

(nos últimos/ próximos 6 meses)?

A falta de coesão temporal acontece também na pergunta 16, quando a

“dificuldade em manter um emprego” se associa à expressão adverbial “no último ano”.

Para além de irregularidades na coesão temporal, também podemos notar algumas

irregularidades ao nível da coesão frásica. Em todas as perguntas a marcação de género

dá-se pela “/”: “O/A ofensor/a”. Contudo, há dois casos em que isto não se verifica. O

primeiro é na pergunta 8., onde “convicta” se encontra apenas no género feminino,

levando-nos a crer na pressuposição de que a vítima é mulher continua a predominar sobre

a possibilidade de os homens também o serem. Esta incongruência de género acontece,

também, na pergunta 15., entre os artigos e o nome “ofensor”.

15. O/A ofensor violou ordem do tribunal destinada a proteger a vítima?

Mais uma vez, é esquecida a marca de género feminino junto ao nome, pois é mais

“natural” que o homem seja o perpetrador da violência e não a mulher.

Estes dois exemplos poderão tratar-se apenas de casos de esquecimento ou

distração no momento da elaboração, embora, em ambas as situações, as falhas possam

indiciar a predominância da desigualdade de género e os comportamentos expectáveis de

cada género, uma vez que as nossas formulações não intencionais também são delineadas

discursivamente pela sociedade na qual vivemos, ao mesmo tempo que as moldam. Da

mulher espera-se que seja a vítima e, por isso, passou despercebida a ausência do

morfema de género masculino. Por outro lado, é esperado que sejam os homens os

agressores e, desta forma, ficou descartado o morfema de marcação de género feminino

em “ofensor”.

É certo que, nas restantes perguntas, não há falhas a este nível, mas o facto de

acontecer nestas duas perguntas mostra que ainda não é natural pensar na mulher como

agressora (ainda que estatísticas recentes revelem que, desde o início do ano, houve 6

homens vítimas de homicídio (Pereira, 2019a)) e no homem como convicto de que possa

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ser morto pela companheira/ ex-companheira. Isto corrobora o que foi afirmado

anteriormente, nomeadamente no capítulo “Violência Doméstica em Portugal”, quando

mostramos que o género ainda estrutura o pensamento da sociedade e orienta as relações

sociais (Dias, 2008). Vivemos, ainda, numa sociedade onde impera a norma social

masculina e a sobrevivência da mulher na superfície continua a ser difícil. Mesmo quando

é vítima de crimes de género, como é o caso de violência doméstica, a mulher pode ser

atacada ou descredibilizada consoante o seu discurso. Para muitos, um discurso poderoso

não se identifica com o de uma vítima, revelando como ainda vivemos sob o véu do

patriarcado e da desigualdade de género que, como podemos ver pelas perguntas da

“Ficha de Avaliação de Risco”, se manifesta até ao nível da linguagem.

Permanecendo no campo da coesão, é possível verificar-se, nas perguntas, a

alternância entre “outros do agregado doméstico” (pergunta 2), “outro familiar” (pergunta

3) e “agregado familiar” (pergunta 19). Aparentemente, estas expressões são usadas como

sinónimas, com o objetivo de evitar a constante repetição de um dos termos, ativando,

então, a coesão lexical – processo que “opera por contiguidade semântica”, na medida em

que “as expressões linguísticas que entram numa relação de coesão lexical caracterizam-

se pela co-presença [sic] de traços semânticos (total ou parcialmente) idênticos ou

opostos.” (Duarte, 2003, p. 114).

Porém, as expressões mencionadas acima não são sinónimas, uma vez que são,

por definição, diferentes e abrangem diferentes tipos de membros. Por um lado, “agregado

doméstico” envolve familiares e não familiares que habitem na mesma casa; por outro,

um “familiar” tem de pertencer à mesma família. Visto que ambos os termos podem

envolver membros diferentes, é certo que a coesão lexical falha, tal como acontece com

a coesão referencial, pois as expressões “outros do agregado doméstico”, “outro familiar”

e “agregado familiar” estão a ser usados como correferentes, embora, na verdade, não

correspondam a substituições exatas umas das outras. Daqui pode originar-se uma

situação em que a vítima conheça a diferença de significados e, então, responder em

função do seu conhecimento e, como as expressões “agregado doméstico” e “familiar”

funcionam, aparentemente, como sinónimos nas perguntas (facto que a vítima ignora), a

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sua resposta não corresponderá, efetivamente, ao que se perguntou, levando

potencialmente a interpretações enviesadas das suas respostas.

Por último, podemos constatar uma diferença na organização geral das perguntas.

Atentando nas perguntas 1 e 2, podemos verificar que a primeira se encontra focada,

unicamente, na vítima, e a segunda centra-se, apenas, noutros membros do agregado

doméstico. As restantes perguntas, por sua vez, reúnem os dois (vítima e outros possíveis

lesados), apagando quase por completo a vítima principal e a situação a que foi sujeita.

Admitindo que esta duplicação nas perguntas possa ser uma forma de reduzir o

número de perguntas da “Ficha de Avaliação de Risco”, dado que uma só abarca a vítima

direta e vítimas secundárias, ao passo que, se houvesse um desdobramento, em vez de

uma seriam necessárias duas perguntas sobre o mesmo tópico, mudando apenas a vítima,

na verdade não só as questões ficam mais complexas e de difícil compreensão, como

também as respostas são menos exatas e ambíguas na hora da sua análise pelo avaliador.

Além de esta diferença acentuar a falta de unidade no texto, afeta a coerência da

“Ficha de Avaliação de Risco”, enquanto documento que tem por objetivo classificar o

nível de risco da situação vivida pela vítima.

Relativamente à ordem pela qual as perguntas estão dispostas, podemos constatar

que, tanto se focam na vítima, como no agressor, e novamente na vítima. Ou seja, a ordem

das perguntas no inquérito não segue um fio condutor lógico. Mesmo quando as perguntas

dizem respeito ao mesmo assunto, por exemplo no caso do agressor, não se sucedem umas

às outras. É o que acontece com as perguntas relativas às possíveis psicopatologias ou

problemas financeiros do agressor (perguntas 11, 13 e 16).

Para além disto, embora as perguntas da Ficha RVD-1L e RVD-2L sejam as

mesmas, há algumas que não fazem sentido serem repetidas na segunda ficha. As questões

11, 13 e 16, por exemplo, dizendo respeito a problemas que não se alteram em dias, ou

que não se manifestam no espaço de tempo entre a realização das duas fichas, poderiam

ser dispensadas da segunda. Assim, poder-se-ia incluir outras perguntas de maior

relevância naquele momento da investigação, como é o caso de questionar a vítima sobre

o comportamento do agressor para com ela nos dias decorridos entre a Ficha RVD-1L e

RVD-2L.

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Neste capítulo, analisou-se as perguntas das “Fichas de Avaliação de Risco” em

diferentes áreas linguísticas. Quer a nível sintático, quer nos níveis semântico,

pragmático-discursivo ou de coerência e coesão, foram apontados alguns problemas de

natureza linguística que, como veremos no próximo capítulo de discussão dos dados,

podem interferir com a eficácia destes inquéritos.

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Capítulo 4. – Discussão dos resultados

A análise das perguntas expôs alguns problemas inerentes à “Ficha de Avaliação

de Risco”, assim como corroborou alguns pontos abordados como sendo críticos, na

temática da violência doméstica, ao longo do capítulo 1, principalmente no tocante aos

interrogatórios e entrevistas policiais. Começamos esta secção pela discussão dos

problemas sintáticos levantados em 3.1.

Como se pôde constatar, num primeiro momento, as perguntas são de resposta

fechada, embora as perguntas abertas resultem em mais informação e, ao mesmo tempo

que dão liberdade à vítima de responder, mostram-lhe que, tanto ela, como a sua história

são importantes (Artinopoulou et al., 2018). No entanto, as respostas estão condicionadas,

como vimos, a “sim” e “não”, e, em nenhum momento, as histórias ficam registadas pelas

palavras da vítima, confirmando a existência de uma generalização das situações (Nunes-

Scardueli, 2015), conforme referido anteriormente.

Verificou-se, ainda, que a falta de exatidão é, também, proveniente da própria

construção sintática das perguntas, assente em estruturas de subordinação, coordenação

ou ambas numa só questão. Este aspeto confere alguma opacidade às questões, colocando

à vítima dificuldades no entendimento das mesmas e na respetiva resposta.

Podemos, certamente, questionar-nos se a repetição da aplicação da ficha está, de

algum modo, relacionada com o grau de dificuldade das perguntas. Os relatórios da

EARHVD mostram que o nível de risco emitido na Ficha RVD-1L diminui geralmente

na Ficha RVD-2L. Como foi referido em capítulos anteriores, a justificação apresentada

prende-se com a influência que as emoções exaltadas da vítima no momento podem

exercer sobre as suas respostas. Por sua vez, na segunda ficha considera-se que as

respostas da vítima se aproximam mais daquilo que realmente aconteceu. É possível, no

entanto, encontrar outra explicação para a diferença entre as respostas na Ficha RVD-1L

e RVD-2L: estando a vítima sobrecarregada cognitivamente, principalmente no momento

da Ficha RVD-1L, é natural que não compreenda completamente as perguntas que lhe

são colocadas, dada a sua natureza complexa. Além disso, o facto de quase cada pergunta

ter outras perguntas alternativas introduzidas faz com que a vítima possa entender as

perguntas de maneira diferente em cada uma das fichas, levando à alteração de alguma

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resposta, o que acaba por culminar numa diminuição do risco.

Acresce ainda o facto de existirem perguntas formuladas na negativa. Sabendo que

se está a lidar com pessoas fragilizadas, as perguntas não facilitam a sua compreensão por

parte das vítimas. Neste caso, as respostas das vítimas levantam sérios problemas de

interpretação. Se a pergunta estiver na forma negativa, então se a vítima quiser confirmá-

la, terá de dar uma resposta na negativa. Porém, impõe-se aqui a questão sobre se a vítima

terá capacidade para fazer tal raciocínio no momento em que lhe é colocada a questão e

se o avaliador entende a resposta da vítima, de forma a fixá-la corretamente. Este é um

ponto no qual a mensagem que a vítima queria passar pode divergir da mensagem que o

avaliador entendeu, dada a complexidade que as perguntas apresentam por estarem

construídas na negativa, mas não só. Também as próprias estruturas de coordenação e

subordinação contribuem para uma situação crescente de ambiguidade nestas perguntas.

Outra particularidade discutida no capítulo teórico e corroborada na parte empírica

relaciona-se com o desafio que constitui todo o momento de interação entre a polícia e a

vítima. Na primeira parte deste trabalho (particularmente em 1.2.) discutiu-se o facto de

as perguntas serem um desafio, não só para quem responde, mas também para quem as

coloca. Neste sentido, vimos que as perguntas das “Fichas de Avaliação de Risco”

representam precisamente isso: um obstáculo à vítima e até mesmo ao/à agente policial

encarregado/a de as colocar. Particularmente na secção 3.1, demonstramos como a

estrutura sintática das perguntas complica a sua compreensão e como, em especial, a

existência de perguntas alternativas encaixadas admite respostas vagas. Se as respostas

da vítima não são exatas, então a análise feita por parte da instituição também não o será,

pois a única resposta da vítima tem mais do que um pergunta correspondente. Neste

sentido, pode acontecer que nem o próprio avaliador terá a certeza de a qual pergunta

corresponde a resposta dada pela vítima.

Na secção da Semântica dedicada ao tempo e ao aspeto (capítulo 3.2.1.) discutiu-se

a forma de marcação de tempo nas perguntas. Tal como se observou na análise, a

marcação de tempo dá-se pela morfologia dos tempos verbais, pelo uso de verbos

auxiliares, assim como pelo uso de expressões adverbiais com valor temporal, levando-

nos a concluir que nem sempre o modo verbal escolhido é o mais pertinente – como

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acontece com o emprego do Conjuntivo nas perguntas 8 e 11.

Ainda no contexto dos tempos verbais, foi referido que a utilização do complexo

verbal “tenha sido”, na pergunta 11, sugere o uso do discurso indireto. Isto é, a pergunta

não está feita para a vítima, mas sim para o avaliador que, por sua vez, a colocaria, de

forma adequada, à vítima. Sendo os tempos do indicativo característicos do discurso

direto, o uso do pretérito perfeito composto do conjuntivo não é tão natural neste contexto,

transmitindo a ideia de que o primeiro enunciador da pergunta não é o/a agente policial

que está a interrogar a vítima, mas sim o elaborador da ficha, passando a existir, então,

um maior distanciamento entre o enunciador e o alocutário.

No que toca ao léxico e terminologia específica, ficou claro que a linguagem utilizada

nas “Fichas de Avaliação de Risco” é caracterizada por particularidades linguísticas

atribuidoras de opacidade às perguntas. Veja-se o caso do recurso a termos técnicos que

impõem uma barreira invisível entre o significado específico de um termo e o significado

geral do mesmo, como acontece com “armas” e “ameaça”. Num contexto de interação

entre membros especializados numa área específica (como é o caso da Polícia) e falantes

não especializados, o significado dos termos em questão não será entendido da mesma

forma ou, pelo menos, de forma tão específica pelos leigos como pelos falantes

especializados. O uso de termos específicos neste contexto de entrevista acentua, ainda

mais, a desigualdade entre os membros da instituição, conhecedores de uma linguagem

especializada, e os entrevistados, neste caso as vítimas, falantes da linguagem geral.

Sendo os cidadãos comuns os principais destinatários destas perguntas, a linguagem

deveria assegurar a sua compreensibilidade por pessoas que não têm qualquer

conhecimento da linguagem especializada, caso contrário deixará de fazer sentido

(Carapinha, 2012). Não esquecendo, claro, que, muito possivelmente, o significado

técnico de “armas” e “ameaças” não é explicado às vítimas, pelo que as respostas

registadas poderão não corresponder às respostas dadas.

Na secção 3.3 analisaram-se algumas questões pragmático-discursivas,

nomeadamente a forma de tratamento da vítima e o seu impacto. O manual de

competências de interrogatórios da Polícia explica a relação que deve ser estabelecida

entre o/a agente policial e a pessoa interrogada, neste caso a vítima. A empatia é uma

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competência que o/a agente policial deve adotar, na medida em que encorajará a vítima a

falar, e também cria um ambiente de maior confidencialidade. Neste sentido, a “Ficha de

Avaliação de Risco” propõe que os elementos policiais tratem a vítima pelo nome próprio,

obtendo, assim, a familiaridade pretendida. Contudo, como foi argumentado na secção

3.3, a troca por um pronome pessoal serviria melhor tal propósito, uma vez que, no

contexto das perguntas, o uso do nome próprio sugere o relato para uma terceira pessoa e

não para a segunda pessoa do singular.

Para além desses, outros conteúdos abordados na primeira parte deste trabalho

encontraram sustento na análise realizada às perguntas. É o que acontece com a questão

da marca da desigualdade de género presente em certas perguntas do inquérito. Na secção

da coerência e coesão (capítulo 3.4.), constatou-se que, em algumas perguntas, não é feita

a marcação de género, sublinhando a crença que ainda persiste sobre os papeis sociais

típicos da mulher e do homem na sociedade. A falta de traço masculino em “convicta”

(pergunta 8), por exemplo, frisa claramente o princípio de que a mulher é inevitavelmente

a vítima, enquanto que, por exemplo, na pergunta 15 o nome “agressor” não possui o

traço de género feminino, dada a relação de naturalidade que há em ser o homem o

perpetrador de violência e não vice-versa.

Tendo em conta todos os pontos analisados, é possível concluir que as respostas das

vítimas não são inteiramente salvaguardadas no inquérito – a começar pelo facto de não

ser a vítima a preencher a “Ficha de Avaliação de Risco”; não está aqui em questão a

integridade do/a agente policial (a quem, aliás, a formulação das perguntas pode ser

prejudicial), mas antes a compreensão da pergunta, primeiro por parte da vítima, e depois

por parte do/a agente. Como vimos, as perguntas são complexas a muitos níveis e não são

adequadas ao registo oral, dificultando o seu processamento e entendimento pela vítima,

e consequentemente comprometendo a sua resposta. Também o entendimento (ou falta

dele) das respostas por parte do avaliador põe em causa a salvaguarda da integridade da

resposta. A complexidade das perguntas resulta em imprecisão no tratamento dos tópicos

que, por sua vez, obterá falta de exatidão nas respostas da vítima, deixando, depois, aos

avaliadores, a responsabilidade de interpretação. Corre-se, assim, o risco de não

corresponder à intenção da vítima.

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Face a toda esta problemática, apresenta-se, na secção seguinte, uma proposta de

reformulação da “Ficha de Avaliação de Risco”. Naturalmente, qualquer implementação

da reformulação proposta requer uma discussão aprofundada com os operadores da

Justiça, no sentido de assegurar que os pressupostos essenciais da Ficha não são

inadvertidamente desvirtuados. Acredita-se, contudo, que a implementação de uma

proposta neste sentido melhoraria a abordagem linguística e, consequentemente, o

processo, quer para os entrevistadores, quer – sobretudo – para as vítimas.

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4.1 – Proposta

Sim Não NA/D²

1. O/A ofensor/a já agrediu fisicamente a vítima?

2. O/A ofensor/a já agrediu fisicamente outro membro do agregado familiar?

3. O/A ofensor/a já abusou sexualmente da vítima?

a. Se “não”, já tentou?

4. O/A ofensor/a já abusou sexualmente outro membro do agregado familiar?

a. Se “não”, já tentou?

5. Foi necessária atenção médica após alguma agressão?

a. As lesões já comprometeram as atividades normais diárias da vítima?

6. O número de episódios violentos aumentou no último mês?

7. O/A ofensor/a já tentou matar a vítima?

8. O/A ofensor/a já ameaçou matar a vítima?

a. O/A ofensor/a já ameaçou matar outro membro do agregado doméstico?

9. O/A ofensor/a evidencia comportamentos obsessivos, como perseguir a vítima?

10. O/A ofensor/a já ameaçou a vítima com alguma arma?

11. O/A ofensor já ameaçou usar alguma arma contra a vítima?

a. O/A ofensor tem acesso fácil a arma de fogo?

12. Acredita que o/a ofensor/a é capaz de o/a matar?

13. O/a ofensor revela instabilidade psicológica?

a. Se sim:

1. Está a ser acompanhado por algum profissional de saúde?

2. No caso de lhe ter sido prescrita medicação, o/a ofensor/a toma-a?

14. O/A ofensor tem problemas com álcool ou drogas?

15. O/A ofensor/a está empregado?

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a. Se “não”, tem problemas financeiros?

16. O/A ofensor já ameaçou suicidar-se?

a. Se “sim”, já o tentou fazer?

17. Existem outras queixas criminais anteriores contra o/a ofensor/a?

18. O/A ofensor/a violou ordem do tribunal destinada a proteger a vítima?

19. Existe algum conflito relacionado com a guarda dos filhos?

a. Existe algum conflito relacionado com o contacto com os filhos?

20. A vítima tentou separar-se do/a ofensor/a?

a. Se não, manifestou intenção de se separar do/a ofensor/a?

21. A vítima tem necessidades especiais?

a. Se “sim”, tem apoio de terceiros?

22. Alguém do agregado familiar tem necessidades especiais?

a. Se “sim”, tem apoio de terceiros?

23. A vítima está grávida?

24. A vítima teve um bebé nos últimos 18 meses?

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As perguntas desta ficha dizem respeito, unicamente, ao espaço de tempo decorrido desde

a Ficha RVD-1L até ao momento presente:

Sim Não NA/D²

1. O/A ofensor/a agrediu fisicamente a vítima?

2. O/A ofensor/a agrediu fisicamente outro membro do agregado doméstico?

3. O/A ofensor/a abusou sexualmente da vítima?

a. Tentou fazê-lo?

4. O/A ofensor/a abusou sexualmente outro membro do agregado doméstico?

a. Tentou fazê-lo?

5. Foi necessária atenção médica após alguma agressão?

a. As lesões já comprometeram as atividades normais diárias da vítima?

6. Continuam a ocorrer episódios violentos com frequência?

7. O/A ofensor/a tentou matar a vítima, desde o preenchimento da 1ª Ficha?

8. O/A ofensor/a ameaçou matar a vítima desde o preenchimento da 1ª Ficha?

a. O/A ofensor/a ameaçou matar outro membro do agregado doméstico desde o

preenchimento da 1ª Ficha?

9. O/A ofensor/a evidencia comportamentos obsessivos, como perseguir a vítima?

10. O/A ofensor/a ameaçou a vítima com alguma arma desde o preenchimento da 1ª

Ficha?

11. O/A ofensor ameaçou usar alguma arma contra a vítima?

a. O/A ofensor tem acesso fácil a arma de fogo?

12. Acredita que o/a ofensor/a é capaz de o/a matar?

13. Caso a vítima tenha respondido afirmativamente à pergunta 13 da ficha RVD-

1L: O/A ofensor/a já está a ser acompanhado por profissional de saúde?

14. O/A ofensor/a registou alterações nos seus hábitos de consumo de álcool e

drogas?

15. O/A ofensor ameaçou suicidar-se?

a. Se sim, já o tentou fazer?

16. O/A ofensor/a violou ordem do tribunal destinada a proteger a vítima?

17. Existe algum conflito relacionado com a guarda dos filhos?

a. Existe algum conflito relacionado com o contacto com os filhos?

18. A vítima tentou separar-se do/a ofensor/a?

a. Se não, manifestou intenção de se separar do/a ofensor/a?

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Considerações finais

Este estudo teve como proposta analisar linguisticamente as “Fichas de Avaliação

de Risco” em casos de violência doméstica, mais concretamente as perguntas que as

compõem, de forma a verificar se estas evidenciam características de complexidade

linguística, já reveladas por outros autores (Holt & Johnson, 2010), inerentes às perguntas

da polícia.

Num primeiro momento do trabalho, e tendo em consideração a bibliografia

consultada sobre o tema, desenvolvemos um enquadramento teórico sobre a violência

doméstica, não descurando a sua parte histórica e sociológica, mas procurando também

vinculá-la à vertente linguística.

Neste sentido, a Introdução centrou-se, em primeiro lugar, em aspetos históricos

como a questão do patriarcado e a sua ramificação até ao presente, definida

principalmente na assimetria de género, e consequente violação dos direitos da mulher –

a violência perpetrada contra ela, resultando, inúmeras vezes, na sua morte. Foram

referidos, também, os diferentes tipos de abordagem do tema ao longo dos anos, tais como

a teoria da “mulher masoquista” (anos 60), a teoria do “desânimo aprendido” (anos 70) e

a teoria da mulher enquanto “sobrevivente ativa” (anos 80). Mas foi com os movimentos

feministas que se rompeu com o tabu associado à violência doméstica, e, assim, iniciaram

uma luta pela igualdade de direitos e tratamento.

Em segundo lugar, introduziu-se a Linguística Forense como uma disciplina capaz

de auxiliar o tratamento de casos de violência doméstica, tendo em conta, especialmente,

o discurso policial e a sua interação linguística com as vítimas. Foi possível constatar,

recorrendo a vários estudos anteriores incidentes sobre o contexto interacional

institucional (como é o caso dos interrogatórios e das entrevistas policiais) (Marques &

Gago, 2016), sobre perguntas policiais e sobre a elaboração de depoimentos, que as

perguntas da polícia se envolvem em questões de complexidade sintática, semântica e

discursiva (Aldridge, 2010; Auburn et al., 1995; Heydon, 2012; Holt & Johnson, 2010;

Rock, 2010). Nesta primeira fase realçou-se, ainda, a dificuldade e exigência intrínsecas

à colocação de perguntas acessíveis e percetíveis pela vítima (Johnson, 2006),

sobrecarregada emocional e cognitivamente. O registo de depoimentos escritos nem

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sempre premeia a neutralidade e a objetividade requeridas deste tipo de documentos e

situações (Auburn et al., 1995; Freitas, 2016; Gibbons, 1996; Rock, 2001).

Ao longo de toda a parte teórica, ficou clara a dimensão linguística que o crime

da violência doméstica pode ter, devido ao papel de relevo e influência exercido pela

linguagem sobre as relações humanas. Os eventos de violência verbal constituem,

igualmente, um tópico de estudo relevante para a Linguística Forense, por encontrarmos

neles marcas de conservadorismo, intensificadoras da desigualdade entre géneros, não

esquecendo o efeito propagador dos princípios anacrónicos. Tendo em conta o objetivo

deste trabalho, concentramo-nos, no entanto, em verificar se os aspetos mencionados

acima se verificavam nas perguntas das “Fichas de Avaliação de Risco”.

Ainda na primeira parte do estudo, na secção 1.1, abordamos o desafio que a

mudança no papel da mulher na sociedade significou para o Sistema Judicial. Se,

inicialmente, o Direito não protegia as mulheres de situações abusivas às mãos de

companheiros, com as vitórias alcançadas pelos movimentos feministas o estatuto legal

das vítimas teve de emergir, mesmo indo contra os princípios tradicionalistas e até

religiosos (que defendiam a defesa do casamento e da família acima de tudo). Como se

pôde constatar neste capítulo, muitas são as mulheres que continuam a valorizar a lei da

Igreja, mas também membros que exercem a Justiça, nomeadamente juízes e polícias,

prosseguem essa via. O acesso aos relatórios da EARHVD foi muito útil para comprovar

que, na prática, existe uma materialização destes preconceitos que estão expressos na

teoria. É o que acontece no Dossiê nº3/2018-AM, onde a vítima afirma “‘ter muito medo

do agressor e que foi muito criticada quer pelas várias entidades [com que contactou] quer

pela comunidade [que conhecia a situação], por ser mulher e apresentar queixa do

marido’”. Por esta afirmação, podemos concluir que a valorização da intimidade e a

aceitação de situações de violência ainda estão presentes na sociedade, levando-nos a

questionar se isto se sobrepõe ao dever de cada um de denunciar uma situação de violência

doméstica, já que constitui um crime público. São, também, afirmações como estas que

revelam, subtilmente, o verdadeiro peso da tradição.

Comprovamos, além disto, que a formalidade da lei nem sempre é acompanhada

pela prática. Se, por um lado, a lei portuguesa está desenhada para proteger a vítima, por

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outro deixa margens para ser contornada e absolver os agressores e até mesmo para culpar

a vítima, recorrendo a argumentos bíblicos.

O enquadramento teórico terminou com uma abordagem aos interrogatórios e

entrevistas policiais. Fez-se uma breve distinção entre ambos os termos, ainda que

tenhamos adotado o termo “inquérito” para nos referirmos às “Fichas de Avaliação de

Risco”. Se, nos interrogatórios e entrevistas policiais, os inquiridos têm liberdade para

narrar os factos, que depois serão fixados num depoimento, as vítimas de violência

doméstica não têm essa oportunidade no momento de resposta às “Fichas de Avaliação

de Risco”. Como referimos e reforçamos ao longo de todo o trabalho, as respostas das

vítimas de violência doméstica estão condicionadas a “sim” e “não”, podendo isto

significar para a vítima desinteresse na sua história. Discutiu-se, igualmente, a natureza

intertextual dos depoimentos. Como fundamenta Rock (2001), o depoimento final é uma

combinação de todas as versões contadas pelo inquirido. Insistimos, também, no facto de

que, para uma transcrição fiel dos dados orais, é essencial o desenvolvimento de

competências de escrita, de forma a que não haja informação sumariada ambiguamente,

mas que corrobore fielmente a declaração obtida pela vítima, testemunha ou mesmo

agressor. Contudo, a limitação a respostas binárias por parte das vítimas nesta fase de

avaliação de risco faz com que as respostas da vítima sejam, muitas vezes, vistas como

sendo insuficientes, quando, na verdade, são as próprias perguntas que, por apresentarem

mais do que uma alternativa na mesma pergunta, admitem respostas vagas ou imprecisas.

Discutimos e defendemos, ainda, a acessibilidade na comunicação entre a

instituição e os cidadãos, de forma a haver total entendimento entre as entidades, e

abordamos a posição de neutralidade e empatia que o elemento policial deve adotar, tendo

em conta o tabu em que os crimes de violência doméstica estão envolvidos, encorajando,

assim, a vítima a denunciar os abusos ao invés de a criticar.

Num segundo momento deste trabalho procedemos à análise do corpus –

constituído, então, pelas “Fichas de Avaliação de Risco”, e, complementarmente, pelos

relatórios da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica

(EARHVD).

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A secção dedicada ao Estudo e à análise das perguntas evidenciou, claramente, a

existência de algumas assimetrias de género, mas expôs, principalmente, o tipo de

linguagem com que as vítimas contactam.

O primeiro passo do processo de análise consistiu em enquadrar cada problema

detetado nas áreas linguísticas previamente selecionadas: sintaxe, semântica, nível

pragmático-discursivo, coerência e coesão.

Em primeiro lugar, vimos que a estrutura sintática das questões é bastante

complexa a diferentes níveis. As estruturas de coordenação e subordinação que deram

origem à existência de perguntas múltiplas, o recurso a vários verbos auxiliares e a

construção de perguntas na negativa foram os aspetos principais apontados como causas

da complexidade inerente às questões. Todos estes pormenores são, de certo modo, um

obstáculo à compreensibilidade das “Fichas de Avaliação de Risco”, pois não

correspondem às características previstas do discurso da polícia: ser direto e ser simples

no que toca à sua acessibilidade por parte do inquirido.

Em segundo lugar, dedicamos o estudo ao nível semântico, começando por uma

análise da categoria de tempo e aspeto. Aqui estudaram-se os tempos verbais, o uso de

expressões adverbiais de tempo e de verbos auxiliares, enquanto marcadores de tempo.

Pôde concluir-se que é frequente o recurso a tempos verbais compostos e ao modo

conjuntivo, assim como o recurso a verbos auxiliares. O uso do pretérito perfeito simples

do indicativo nas perguntas analisadas descreve situações anteriores ao momento de

enunciação. A leitura de anterioridade é reforçada por expressões adverbiais de tempo em

alguns casos e por verbos auxiliares noutros. Porém, como foi possível constatar, o

mesmo não acontece com o presente do indicativo. Este tempo verbal não passa uma

mensagem de sobreposição temporal entre o momento em que a situação descrita

acontece e o momento de enunciação, mas tem, por outro lado, uma leitura de

habitualidade. Há casos, no entanto, em que o presente do indicativo num complexo

verbal, como “tem vindo a aumentar”, tem uma leitura de progressividade. Observamos,

contudo, que este complexo verbal não é o mais indicado para o contexto em que está

selecionado, pois a expressão adverbial “no último mês” anula a continuidade inerente ao

composto verbal.

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Por outro lado, verificamos que o uso do conjuntivo em expressões como “tenha

sido” passa uma ideia de discurso indireto. Leva-nos a pressupor que a pergunta 11, em

particular, não está a ser colocada diretamente à vítima, mas antes ao elemento policial,

que terá de alterar aquele tempo verbal (para um do modo indicativo) no momento de

colocar a questão à vítima.

Por último, neste capítulo, discutimos o facto de o uso do presente do indicativo

poder ter leitura de Futuro, mas os falantes da linguagem especializada da área do Direito

não o considerarem, o que não está em conformidade com o uso do presente nas

perguntas, pois em nenhum caso este tempo verbal tem leitura de presente real, mas antes

de habitualidade. Assim, se esta leitura é aceite, também deveria ser a de Futuro, já que

os falantes do português recorrem precisamente ao presente para se referirem a situações

posteriores ao momento de enunciação.

Ainda na secção dedicada à Semântica, estudamos, também, o Léxico e

Terminologia e Colocações. Relativamente ao Léxico e Terminologia, é possível verificar

que, nas perguntas, estão presentes alguns termos técnicos com os quais as vítimas de

violência doméstica não estão familiarizadas, pelo menos não no que diz respeito ao seu

significado específico. O uso de léxico especializado limita a comunicação entre as duas

entidades envolvidas na interação, uma vez que a vítima não entenderá o termo no sentido

em que foi perguntado e o/a agente policial não o entenderá no sentido pelo qual foi

respondido, provocando, certamente, um desfasamento na comunicação. Observamos,

ainda, a existência de termos que conduzem a variadas interpretações, quer entre as

vítimas, quer por parte dos agentes policiais, conduzindo a subjetividades não desejáveis

neste contexto. A subjetividade está, igualmente, presente ao longo de toda a “Ficha de

Avaliação de Risco” pelo uso do sinal gráfico “/”, pelo uso de adjetivos qualificativos e

advérbios de modo, levando-nos a concluir que a objetividade pressuposta neste tipo de

discurso é posta em causa por todos os aspetos mencionados.

Relativamente às Colocações, verificamos que há expressões combinadas que não

são habituais em português. Os corpora consultados comprovaram a falta de ocorrência

de algumas colocações, ao mostrar escassos resultados. Nesta secção questionou-se a

combinação de certos verbos com sintagmas nominais e ainda a escolha de preposições

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para acompanhar as colocações em causa. Mostramos, ainda, uma alternativa mais

simples e habitual no português para substituição das colocações analisadas.

Nesta investigação, analisamos, também, o nível pragmático-discursivo de

algumas perguntas. Observamos que algumas podem exercer um efeito positivo sobre a

situação do agressor ao funcionarem como atenuantes. Nesta secção abordamos, ainda, a

forma de tratamento da vítima que é sugerido, concluindo que não é a mais adequada,

tendo em conta o efeito de distanciamento que se obtém, ao invés de proximidade.

Por último, analisamos questões de coerência e coesão e pôde concluir-se que

aspetos como a inconsistência entre o uso do sinal gráfico “/” e as conjunções copulativa

e disjuntiva, o desfasamento temporal entre tempos verbais e expressões adverbiais

temporais, falhas na marcação de género, falha na substituição de expressões referenciais

e diferenças na formulação entre perguntas põem em causa a coesão a nível temporal,

lexical e referencial, mas também põem em causa a coerência da “Ficha de Avaliação de

Risco” enquanto unidade de texto.

Discutidos os dados, brevemente apresentados aqui, apresentou-se uma proposta

de reformulação das perguntas que podem integrar a “Ficha de Avaliação de Risco”, não

alterando muito a estrutura nem o tema das questões. Optou-se, antes, pela simplificação

da linguagem e pelo desdobramento das questões, de maneira a auxiliar a capacidade de

processamento por parte da vítima, assim como a capacidade de resposta.

Finda a análise, responderemos, agora, às perguntas de investigação formuladas

anteriormente.

A análise das perguntas constantes da “Ficha de Avaliação de Risco” permite-nos

afirmar que a linguagem dos inquéritos policiais em situações de violência doméstica é

bastante complexa, tendo em conta os vários níveis estudados, não só para a vítima, como

também para o próprio agente policial e para nós, meros leitores das “Fichas de Avaliação

de Risco”. As perguntas estão formuladas de uma forma pouco acessível e são propícias

a várias interpretações, podendo, dessa subjetividade, resultar um desfasamento entre o

que foi dito e o que foi entendido. Isto leva-nos à segunda questão. O desfasamento

mencionado é uma barreira à integridade da resposta da vítima, pois, como observamos,

a multiplicidade de questões não permite a exatidão de resposta por parte da vítima, além

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de que o uso de termos técnicos não é de todo justo na interação com falantes não

especializados, contribuindo, também, para a falta de integridade do relato da vítima.

Uma outra questão que põe a resposta da vítima em causa diz respeito ao facto de não ser

a própria a preencher a “Ficha de Avaliação de Risco”. Tendo em conta a dimensão das

perguntas, e a sua falta de preparação para o registo oral, a vítima pode entender de forma

errada ou até não entender a pergunta na íntegra e dar uma resposta que não seria a mesma

caso fosse ela a ler e a assinalar a resposta.

Para responder à última pergunta de investigação, centramo-nos, essencialmente,

no nível pragmático-discursivo. Nessa secção, concluímos que as questões relacionadas

com o consumo de álcool e drogas, com os problemas financeiros, com a tentativa ou

ameaça de suicídio e com os problemas psicológicos podem exercer, de algum modo,

uma posição de solidariedade para com o agressor. Sendo assim, é certo que a versão dos

factos pode influenciar a sentença do agressor, se os problemas mencionados forem tidos

em conta, principalmente, como atenuantes, para além de fatores de risco na relação.

Este trabalho leva-nos a concluir que, para um combate efetivo ao crime de

violência doméstica, e sobretudo para um tratamento justo das vítimas, a lei deve ser

adequada no que toca à proteção das mulheres e na definição de penas atribuídas. A

relação direta entre o silêncio das vítimas e a falta de interesse demonstrada pelas

instituições não deve ser tida como verdadeira e infalível. A primeira consideração não

deve ser contra a mulher, mas a favor dela, pois, afinal, ela é a vítima. É essencial e

imperativo que haja uma mudança no sistema judicial e policial, mas, acima de tudo e

antes de tudo, a mudança começa nas pessoas. As escolas devem exercer um papel ativo

no combate às relações de género desiguais e abusivas. A formação dos alunos deveria

ser feita por profissionais, orientando-os na distinção entre uma relação saudável e uma

relação tirana, bem como ajudá-los a estabelecer limites nas relações, pois, apesar de a

família ser a principal instituição de socialização, há muitas crianças que vivem em

realidades abusivas. Por isto mesmo, a educação deve começar num local neutro, de

forma a incentivar as crianças e jovens a questionarem a única realidade que conhecem e

têm como referência. Só com a educação e formação se desenvolve uma geração alerta

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para as desigualdades existentes e para a sua incoerência, bem como se cria uma geração

preparada para corresponder, na prática, aos objetivos teóricos da lei.

Paralelamente às mudanças socioculturais, deve haver um complemento

linguístico, pois a linguagem é a base da compreensão e da comunicação humana, e é

através dela que as assimetrias se manifestam e onde encontram apoio, nomeadamente

nos textos jurídicos. O combate no nível linguístico é essencial para que a mudança se

transponha para a sociedade. Principalmente nos inquéritos da polícia, a mudança

linguística é imperativa, pois, como foi exposto ao longo de toda a análise, as perguntas

são bastante problemáticas, constituindo um desafio para as vítimas que com elas

contactam.

Um dos desafios que enfrentamos na elaboração deste trabalho, além da escassa

bibliografia em português sobre o tema, prendeu-se com o facto de não nos ter sido

facultado o acesso a alguns processos de casos de violência doméstica, que nos permitiria

consultar não só as perguntas, mas também as respostas das vítimas, assim como a

descrição dos eventos realizada pelo/a agente policial. Este último ponto seria de grande

relevância para um trabalho desta dimensão, uma vez que teríamos uma perspetiva

concreta sobre como a versão dos factos da vítima são (d)escritos, dando-nos, assim, a

possibilidade de corroborar, ou não, estudos anteriormente realizados, nomeadamente na

tradição anglo-saxónica. Assim, a nossa análise restringiu-se aos documentos das “Fichas

de Avaliação de Risco”; todavia, os relatórios da EARHVD providenciaram alguns casos

onde pudemos consultar as perguntas e as respostas das vítimas, acabando por servir de

suporte à nossa análise.

Um dos maiores contributos deste estudo relaciona-se, precisamente, com o fator

inovação, mas também pelo fornecimento de pistas detalhadas sobre quais as lacunas

presentes nas “Fichas de Avaliação de Risco” e, ao mesmo tempo, fornece alternativas

que poderão, em muito, impulsionar um tratamento mais justo e mais cuidado dos casos

de violência doméstica. Acima de tudo, o que se pretendeu expor foi a falência da

linguagem policial em contexto interacional, nomeadamente com falantes de linguagem

não especializada. A normalidade das perguntas não passa de uma aparência débil e

ilusória, pois quando analisadas linguisticamente concluímos que a falta de rigor se

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acumula nas perguntas, impondo resistência à sua compreensibilidade, e, por conterem

tantos assuntos numa só pergunta, acabam por receber respostas de baixa fiabilidade. Por

outro lado, a escolha desta temática deveu-se à necessidade urgente de mostrar como a

Linguística pode exercer uma influência positiva no tratamento de casos de violência

doméstica, ambicionando, sobretudo, que, com este contributo – ainda que modesto –,

seja possível interromper o fluxo de casos de violência doméstica que têm surgido. Cada

vez mais discute-se o tema, nomeadamente as causas e as medidas capazes de inverter a

situação. Este trabalho aponta uma direção, entre muitas, a ser seguida: o tratamento

linguístico de dados como estes é, não só necessário, mas urgente.

Futuramente, é indispensável estudar a descrição dos eventos por parte da Polícia,

para que se possa, então, desvelar a imprescindibilidade da Linguística, ao verificar-se

possíveis ambiguidades inerentes ao discurso, incoerências com o relato da vítimas e

inclusão ou exclusão de informação, sem aparente critério. Será igualmente importante

apostar na formação de base da Polícia na área da Linguística, para que o seu contacto

com a vítima seja justo e eficaz.

(Alves et al., 2016; Artinopoulou et al., 2018; Balestro & Gomes, 2015; Gebrim &

Borges, 2014)

(R. Marques, 2016; R. Marques & Oliveira, 2016)

(Auburn et al., 1995; Lúcia Gonçalves de Freitas, 2016; Gibbons, 1996; Rock,

2001)

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Anexos

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Anexo 1

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Anexo 2

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