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T T E E M M P P O O S S F F E E L L I I Z Z E E S S Histórias para você nunca mais esquecer!! Ana Maria Schmidt

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Ana Maria Schmidt ouviu muitas histórias dos lábios de sua mãe, em passeios pela Natureza. E no decorrer dos anos, contou essas histórias, de fazer rir e chorar, primeiramente aos próprios filhos, e depois aos seus alunos, que vibravam de emoção e entusiasmo ao ouvi-las,

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Page 1: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

TTEEMMPPOOSS FFEELLIIZZEESS

Histórias para você nunca mais esquecer!!

Ana Maria Schmidt

Page 2: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 2

ÍNDICE

Prefácio.................................................................................... 2 Autobiografia........................................................................... 3 A Bíblia Emparedada............................................................... 8 O Homem mais Rico da Cidade............................................. 11 Por Ti...................................................................................... 17 A Primeira Viagem de Yan.................................................... 21 José do Chorão....................................................................... 34 A Corrente de Ouro................................................................ 68 Paulo e o Canário................................................................... 75 As Duas Pequenas Irmãzinhas............................................... 79 Guilherme Winter................................................................... 83 O Colar de Pérolas................................................................. 87 O Menino Cigano................................................................... 99 A Oração de Susi.................................................................. 106 Uma Princesa....................................................................... 109 Como Francisquinho Aprendeu a Trabalhar.........................112 A Voz de Minha Mãe........................................................... 115 A Vingança do Índio............................................................ 118 Uma História de um Internato de Meninas.......................... 128 Como na Infância Aprendi o 8º e o 9º Mandamento .............. 135 Uma Rosa Entre Espinhos.................................................... 138 Aceitar um Emprego............................................................ 144 O Jovem Organista,.............................................................. 150 O Homem de Casa............................................................... 156

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Tempos Felizes 3

PREFÁCIO "Por que um novo livro de histórias? Já não temos tantos? É só ir a uma livraria e comprá-los!" Talvez alguns estejam pensando assim, mas nós como professora e como orientadora por quase trinta

anos senti mos a necessidade de sempre termos novas histórias. É triste quando preparamos o material e a mente e gastamos tempo estudando uma história e quando começamos a contá-la alguém do auditório já sabe e às vezes até comenta com outros o fim da mesma e nós ficamos desiludidos.

Com esta coleção, da qual apresentamos este volume, temos certeza que isto não acontecerá pois são inéditas, traduzidas diretamente do alemão por esta professora tão dócil, meiga e esforçada como é a Ana Maria Schimdt (para mim sempre Anita como a chamávamos carinhosamente em nosso tempo de colégio). Vocês irão conhecê-la melhor através de sua autobiografia que fizemos questão de escrevê-la porque encerra também a história de uma menina pobre mas que pelos esforços conjuntos de seus pais e seu próprio conseguiu vencer na vida e hoje é junto ao seu esposo uma pessoa sorridente, alegre e muito feliz.

Parabéns Anita! Tempos Felizes marcará com certeza a mente e o coração desta multidão de crianças que passa pelas nossas escolas e igrejas.

Caros professores, diretores dos departamentos infantis e juvenis aproveitem esta áurea oportunidade para implantar nessas almas nascentes, nessas mentes em formação as grandes e imorredouras verdades do Reino de Deus e a cristalização dos princípios que forjam uma personalidade de pureza, fidelidade, verdade e fé.

As histórias são as formas mais encantadoras e penetrantes de transmitir um ensinamento e uma verdade pois o próprio Cristo as usava como uma das Suas formas prediletas de ensino.

Aproveitem estas que aqui estão pois são valiosas, ricas, saudáveis e inspiradoras.

Iracema Xavier dos Santos Orientadora Educacional da

Associação Rio de Janeiro

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Tempos Felizes 4

AUTOBIOGRAFIA Filha de imigrantes alemães, nasci no tempo da colonização da Alta Sorocabana, no

Estado de São Paulo. De tamanquinho no pé e chapéu de palha sobre as trancinhas loiras percorria nosso sitio com cavalinho de pau ou "boneca" de sabugo.

Aos 5 anos por insistência minha, quis ir ã escola como minhas irmãs. A escola era na casa do tio, em língua alemã com uma dúzia de primos de 1º e 2º grau ao redor de uma longa mesa, sentando em bancos duros sem encosto. O tio, recém chegado da Alemanha, formado em teologia, que por respeito chamávamos de professor, com seu bem aparado cavanhaque e o bigode por vezes torcido um lado para cima e outro para baixo, dava-lhe um ar cômico, mas transformava nossos risos disfarçados em angustiantes caretas de dor, quando sua cinta zumbia sobre a mesa ao menor cochicho, e pegasse em quem pegasse, não ia nenhuma queixa para casa.

Daquele tempo, o que de mais grato me recordo são os serões. Enquanto a mãe arrumava a cozinha, nós 3 meninas sentávamos ao lado do pai e ouvíamos as histórias da Bíblia, contada com simplicidade para que pudéssemos entendê-las. Estas histórias fizeram nascer em mim amor à palavra de Deus, e o desejo de ser semelhante a Ele.

A mãe atarefada demais durante a semana, mas aos sábados a tarde, em passeios à beira da mata ou assentados debaixo dos pés de fruta, perto de casa, contava-nos histórias com muita vivacidade, de um mundo diferente do nosso, que nos faziam rir e chorar. Creio que foi aí que nasceu em mim o amor pelas histórias, pois através delas eu podia dar asas à minha fértil imaginação infantil. Histórias inesquecíveis muitas das quais transcrevo aqui neste volume, pois são histórias realmente inesquecíveis.

Aos 7 anos por desistência de meu tio em continuar com a escola, meu pai o substituiu, para mim com vantagem. Meu pai era a paciência personificada, culto e religioso; o aprendizado foi mais suave e interessante.

Estes 5 anos de escola alemã não foram um simples curso primário, mas muito além disso. Meu pai me ensinou a amar os livros, a natureza e a Deus, foi meu amigo e professor, inseparáveis nas aulas e no labor do dia a dia, foi a inspiração de tudo que até hoje realizei. Desde esse tempo não sei o que é ficar sem um livro à cabeceira da cama para ler, aprendi a levar tudo a Jesus em oração, e encontrar Deus na natureza. Aos 10 anos surgiu a primeira escola Rural, com amplo prédio de madeira, onde comecei tudo de novo, desta vez em língua portuguesa da qual eu tinha parcos conhecimentos; mas a aumentaram rapidamente.

Em 1938 mudamos para São Paulo, vindo a terminar o primário na Escola Adventista Central Paulistana, de onde me deixaram saudosas recordações a professora Diná Apolinário e Ester Maluf. Tendo de trabalhar muito cedo, e não havendo cursos regulares noturnos, meu pai me instruía com livros escolhidos e alguns exercícios. Na primeira oportunidade que surgiu fiz um curso de português a noite. Morávamos então na rua do Paraíso, mas era só a rua pois a vida nesta época não tinha nada de paradisíaco para mim. O pai vivia acabrunhado e triste não se habituava com a vida na cidade, a mãe ao contrário estava feliz por retornar a sua profissão; era enfermeira diplomada pela Cruz Vermelha de Berlim. Para ganhar mais trabalhava a noite, e nós ficávamos praticamente sem mãe.

Aos poucos a vida foi melhorando. Mudamos para uma casa boa, no bairro de Moema. E aqui quero deixar minha gratidão ao Dr. Renato Emir Oberg, que então moço solteiro, veio

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Tempos Felizes 5 morar na nossa casa, e conhecendo meu desejo de estudar, persuadiu minha mãe a enviar-me ao Colégio interno. E assim fui estudar no I.A.E. então C.A.B., cheia de esperança e bons propósitos. Foram estes os melhores anos de minha mocidade. Novos horizontes e amizades.

Entre as muitas e gratas recordações, está a minha colega de quarto Jeni Holland, que muito saudosa de casa me pedia para contar histórias após apagarem a luz. Quantas histórias e estórias contei como novelinhas pois ela logo pegava no sono, de fadas e príncipes encantados, e as histórias de minha infância que nunca esqueci. Para ajudar no estipêndio colportei duas férias. A primeira vez em Santos e a segunda em São Paulo. Neste tempo perdi um pouco de minha timidez, e tornei-me mais eloqüente.

Dispondo de mais tempo fiz alguns cursos noturnos, como corte e costura. E com as freiras do colégio Monte Sião estudei puericultura, pintura e francês. Esta última matéria não terminei, pois fiquei noiva e comecei fazer meu enxoval. Com quase 25 anos me casei, deixando todas estas atividades. Me dediquei à minha casa. Com as constantes viagens de meu marido me senti muito só, até que a vinda de minha primeira filhinha e depois de 1 ano e 4 meses um filho vieram a preencher meu tempo. Dediquei-me a sua educação de corpo e alma.

Tempos felizes estes quando os temos pela mão, ao nosso redor com suas tagarelices e carinhos, e os serões com joguinhos e histórias. Minha filha amava especialmente estas histórias, e repetidas vezes pedia: "Mãe conta uma história mas, bem triste pra gente chorar". Meu maior prazer era contar agora para meus próprios filhos as histórias que ouvia minha mãe contar, e já havia contado para tantas outras crianças.

Neste tempo as atividades na igreja exigiam de mim o máximo. Por falta de espaço no recinto da igreja, reuni amos todas as crianças numa sala grande, onde além dos serviços de culto eu conseguia prender a atenção de 70-80 crianças de todas as idades contando as minhas histórias.

Muitas vezes me pediam-nas, mas eu não as tinha em português, só em alemão, assim eram um tesouro particular meu, do qual até me orgulhava um pouco, pois eram inéditas e diferentes.

Me lembro de um pai, que com o pretexto de buscar a filha ficava em pé na escada ouvindo-me. Maio tarde me confessou que na realidade não vinha buscar a filha, mas ouvir minhas histórias. Por vezes me perguntavam, onde aprendera a arte de contar histórias. Creio que nasceu em mim ouvindo minha mãe contá-las.

Quando meus filhos devido os estudos ficavam muito ausentes de casa, eu me sentia só e inútil. Creio que até comecei a ficar ranzinza, quando recebi um chamado muito oportuno de lecionar Educação Religiosa. Sou grata a professora Amélia C. Torres por ter-me dado essa oportunidade na hora que mais necessidade tinha de empregar minha experiência de longos anos a outras crianças pois os meus já estavam fora dos cuidados maternos.

Naturalmente precisei me atualizar e estudar. Consegui em dois anos fazer a licenciatura em Teologia no IAE em cursos de verão, e assim lecionei 7 anos. Se me perguntarem quais foram os anos mais felizes de minha vida diria: "Os anos de internato, quando meus filhos eram pequenos e os 7 anos que lecionei Educação Religiosa.

Nunca tive tantas oportunidades de contar as "minhas histórias", a tantas crianças, do que nas aulas de sextas-feiras, que eram livres. Os alunos de 1ª a 8ª séries, vibravam de curiosidade e entusiasmo com os personagens das mesmas.

Depois começaram os anos mais maduros, e por motivos de saúde tive que deixar de lecionar, e aos poucos sinto que vou deixando minhas atividades para outros. As forças e o

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Tempos Felizes 6 entusiasmo vão arrefecendo, e muitas vezes fico imaginando, quando eu não puder mais, quem vai contar as "minhas histórias", que encerram um verdadeiro tesouro de lições de moral e emoção?

Estava assim conversando com a professora Iracema Xavier dos Santos, minha ex-colega do I.A.E., minha grande amiga e orientadora da Associação Paulista (atualmente fazendo o mesmo trabalho na Associação Rio de Janeiro) e ela me fez a seguinte pergunta: "'Por que, Anita, deixar que suas histórias fiquem restritas somente em seu círculo de influências, sua igreja, seus alunos e seus netinhos quando um verdadeiro exército de professores estão em busca de boas e lindas histórias?

Isto me fez pensar e eu deixei de ser egoísta e animada pelo entusiasmo desta minha amiga eis-me aqui publicando este pequeno livro que desejo de coração seja útil e agradável a todos os leitores.

Continuarei contando-as ainda por algum tempo, para minha netinha e outros netos que por certo ainda virão alegrar a minha vida.

Ana Maria Schmidt

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Tempos Felizes 7

A BÍBLIA EMPAREDADA Faz aproximadamente cem anos ainda não existia o túnel São Gotthard que liga a Itália à

Suíça. Todos os viajantes que iam de um país a outro tinham que viajar a pé pela estrada de São Gotthard, e isto requeria muito tempo.

Viajava-se então muitas vezes em grupos. Assim também um grupo de pedreiros saiu da região de Lugano para o interior da Suíça. Lá os salários eram melhores.

Entre eles havia um jovem por nome Antônio que durante a caminhada entrou em conversação com uma idosa senhora. Esta lhe falou do Senhor Jesus e Seu amor. Mas Antônio não quis ouvir.

A senhora o presenteou com uma Bíblia lindamente encadernada em couro, ele a aceitou, mas nunca a leu nem a abriu.

Chegado à Glarus, trabalhou na construção de uma grande casa, e durante as horas de serviço ele caçoava e blasfemava da palavra de Deus juntamente com seus companheiros. Ao rebocar uma parede descobriu um buraco que ainda precisava ser fechado. De repente lembrou-se de sua Bíblia, que guardara na sacola e irônico disse a seus colegas. "Meninos, agora vou fazer uma boa piada. Estão vendo aqui tenho uma Bíblia, vou enfiá-la aqui neste buraco".

A Bíblia mal cabia e sua capa foi parcialmente danificada. "Muito bem, agora um pouco de reboque e", assim disse Antônio, "agora quero ver se Deus é capaz de tirar esta Bíblia daqui".

Passadas algumas semanas, Antônio voltou através das montanhas para sua terra natal. No ano de 1861, no dia l0 de maio, um terrível terremoto alastrou-se em Glarus. 490 casas

ruíram totalmente. A cidade inteira tornou-se uma grande ruína. Mas ela deveria ser reconstruída.

Um pedreiro polidor (de fino acabamento) do norte da Itália, por nome João, recebeu como tarefa respaldar uma casa recém construída que ruíra parcialmente. Com seu martelo ele batia aqui e ali numa parede ainda em pé, e de repente caiu um pedaço de reboque. Para sua surpresa ele achou um livro ali imprensado, ele o puxou para fora, era uma Bíblia! ... Como ela chegou aqui? Era admirável. Ele já possuíra uma Bíblia, mas lhe haviam tirado. "Isto não vai acontecer desta vez", pensou ele.

João começou nas horas vagas a ler aplicadamente sua Bíblia; embora não compreendesse tudo, só os Evangelhos em parte e os Salmos, deles ele aprendeu a orar.

Mas quando alguém é sincero, Deus vem em seu auxílio. Assim não demorou muito a descobrir que ele era um pecador, mas também descobriu que Deus o amava, e que pela fé em Cristo Jesus receberia perdão de seus pecados. Quando no outono ele voltou à sua pátria e família, contou para esta e em toda parte por onde ia, as boas novas da salvação.

Nas suas horas de folga, ia com uma mala cheia de Bíblias nas aldeias circunvizinhas, para divulgar as boas novas.

Assim também chegou à aldeia onde morava Antônio. E lá, numa feira anual, ele ergueu um quiosque com suas Bíblias para vender. Quando Antônio, vadiando passou por lá, vendo as Bíblias parou e disse: "Oh! Bíblias, destas eu não tenho necessidade. Eu só precisaria ir à Glarus, porque lá eu tenho uma emparedada. Eu só estou curioso para ver se Deus foi capaz de tirá-la de lá".

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Tempos Felizes 8 Muito sério João olhou o jovem, num relance tudo se lhe tornou claro, e ele disse: "Seja

prudente jovem escarnecer é fácil, mas o que o senhor diria, se eu lhe mostrasse essa Bíblia?" "Você não me engana", disse Antônio "eu a reconheceria de imediato, pois a marquei. E eu fico nessa: Deus não é capaz de tirá-la da parede!"

João tirou a Bíblia e perguntou: "Conhece o sinal meu amigo?" Antônio a princípio ficou surpreso ao ver a Bíblia danificada. "É esta? mas isto fez Deus para o senhor ver que Ele vive, e também quer salvar o senhor".

Dentro do Antônio subiu o velho ódio que tinha contra Deus. Sua consciência falava, mas ele gritou aos seus amigos: "Venham cá rapazes, o que este camarada, beato faz aqui com suas Bíblias?" Em poucos segundos o quiosque de João estava totalmente destruído e as Bíblias espalhadas pelo chão. Ele mesmo levou umas surras, e os malfeitores depressa desapareceram entre os expectantes que se ajuntavam.

Depois disso Antônio se tornava mais e mais hostil contra Deus. Um dia, em que de novo ele chegou alcoolizado no serviço, caiu de um andaime de 17

metros de altura, ficou mui to ferido e foi levado a um hospital. João teve conhecimento deste fato. Mandou-lhe um lindo ramalhete de flores, e até foi

visitá-lo no hospital. Mas o coração de Antônio continuou como pedra, embora o amor que João lhe demonstrava, o impressionava bastante. João o visitava cada semana, e numa destas visitas levou-lhe sua Bíblia, pedindo que a lesse para encontrar conforto.

A princípio com relutância só por passatempo, mas aos poucos lhe veio o gosto da leitura da Palavra de Deus.

Uma vez ele leu em Heb. 12:5 "Filho meu não desprezes a correção do Senhor, e não desanimes quando por Ele fores repreendido".

Isto serviu para o seu caso. Antônio continuou lendo, e a Palavra de Deus que é capaz de destroçar rochas, começou a atuar no coração de Antônio. Ele aprendeu a reconhecer sua culpa e a confessar perante Deus. Mas também aprendeu a confiar inteiramente no completo sacrifício de Jesus na cruz e crer nEle. Sua alma estava agora sã, mas o seu quadril ficou aleijado. Seu antigo ofício agora não podia exercer mais. Mas ele encontrou serviço mais leve. Mancando para o resto da vida levou as marcas de seu pecado, mas feliz na sua fé, exerceu sua nova profissão. Casou-se com a filha de João, e teve um matrimônio muito feliz. Seu sogro agora era também seu amigo.

Antônio já há muito morreu, mas sua Bíblia é sua herança muito valiosa que ele deixou para seus filhos e netos.

O HOMEM MAIS RICO DA CIDADE O homem mais rico do lugar, era o juiz de direito. Orgulhosamente sua casa sobressaía das

demais, construída na penha, como se altivamente dissesse: meu trono é sobre todos vós! Os aldeões contavam aos estranhos cheios de tímido respeito, dos fabulosos tesouros, finos móveis e clássicas obras de arte que seus muros guardavam. Até se orgulhavam disso, que um homem tão rico morasse em sua aldeia, e mostravam com predileção, como coisa peculiar e notável, sua cadeira na igreja, forrada de púrpura, e circundada de custosas cortinas. Assim como o

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Tempos Felizes 9 mausoléu no cemitério, que continha uma lista dos ancestrais do senhor juiz de direito. E ele tinha conhecimento da estima que lhe atribuíam, e isto lhe agradava.

Ele se orgulhava, não de seus leais vizinhos, mas de si mesmo e de suas riquezas. Quando saía à rua, todos que o encontravam o cumprimentavam com reverência. Se vinha à pé pelo caminho, velhos e crianças lhe abriam passagem. Em toda parte ele era honrado e estimado. Ele granjeava a simpatia de seus vassalos, dando cada ano um lauto banquete a eles, e em dias de festa enviava presentes a todos os pobres. Eles eram pobres e ele era rico, e com esta diferença ele se sentia satisfeito.

Numa manhã de verão, ele saiu para um passeio a cavalo pela mata, de sua propriedade. Ao abrigo da sombra agradável, ele soltou as rédeas do animal. Trotava pelos caminhos conhecidos. Logo a linda paisagem com majestosos carvalhos e faias, não atraía mais a sua atenção. Os raios solares que aqui e acolá tremulavam entre os galhos movidos pela brisa, ou indiferentemente brincavam como prismas pelo caminho, lembravam-no das preciosidades em fulgurante prata e ouro em seu lar.

Então lembrou-se da tarde do dia anterior. Era a festa natalícia de seu filho mais velho, um grande número de amigos havia se reunido. Foi uma festa tão suntuosa como só um homem muito rico e abastado poderia realizar. Os mais escolhidos petiscos, e os mais nobres e velhos vinhos foram servidos, das porcelanas mais raras com enfeites e alcinhas de prata e ouro, e talheres de prata antiga, foram comidos os mais deliciosos quitutes, e de finíssimos copos transparentes foram tomados os velhos vinhos. Ele se recordava agora da boa disposição dos convivas e dos discursos feitos; dos elogios tão espontaneamente ditos e tão prazerosamente aceitos.

Com orgulho rememorava os fatos. Que foi dito – de quanto se tenha memória, nunca em toda redondeza, alguém tinha oferecido uma semelhante festividade com tanto brilho como neste dia.

O cavalo continuava o seu trote. No gramado macio como musgo quase não se ouvia o seu andar. Súbito um som quase imperceptível chegou aos ouvidos do juiz de direito. Admirou-se como outra pessoa além dele podia estar na mata. Puxando as rédeas de seu cavalo, parou por um instante. Alguém orava singelamente... – Quem estaria orando aqui? Indagou a si mesmo. Então afastou a ramagem na sua frente e espiou. Não muito longe do caminho, viu numa gruta pequena e ensombreada o forasteiro da mata, era um pobre velhinho da aldeia, que já muitas vezes na rua lhe havia estendido a mão suplicando uma esmola.

Mas, o que o ancião fazia agora? Ele orava, com os olhos fechados e semblante erguido, chapéu surrado entre as mãos calejadas, diante de si uma parca refeição, um naco de pão seco e uma caneca de água limpa, assim agradecia o velho a seu Pai Celestial com todo contentamento por esta dádiva. E ele parecia estar muito satisfeito. Uma expressão de santa alegria pairava no semblante erguido aos céus. Uma expressão de tamanho contentamento, sim de gratidão e de êxtase, o juiz de direito nunca vira em seus convivas, mesmo nos mais ricos banquetes. E este ancião era grato pelo pão e pela água! Isto era incompreensível ao homem abastado; seriam mais apetitosos, pão e água com coração agradecido, do que as finas 1guarias em sua mesa elegante? Ele nunca em toda sua grandeza e riqueza viu um motivo para ser grato a Deus por tudo isso.

Ele soltou a ramagem, e logo mais voltou em seu rosto a mesma expressão de presunção de sempre. Mas durante o seu passeio matinal, repetidamente a mesma cena voltava a sua mente, a qual ele havia visto na gruta da mata. Um ancião que agradecia por pão e água a Deus.

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Tempos Felizes 10 Será que suas muitas riquezas lhe haviam dado tanta felicidade como a simples refeição para o velho? Ele teve que admitir que não.

Seu orgulho estava sensivelmente abalado, e seu coração palpitava agitado. Quanto mais longe ele cavalgava tanto mais aumentava seu desassossego.

Repentinamente toldou-se o sol ainda há pouco brilhante. Nuvens escuras se amontoavam, e a mata tornou-se escura e sinistra. Sentimentos aflitivos oprimiam o juiz de direito, os quais ele não sabia explicar. Era como um pressentimento de vindoura desgraça. Então ele acreditou ouvir uma voz, não deste mundo, mas assim como às vezes Deus manda para o nosso bem.

As palavras eram claras, perceptíveis e determinadas: "Nesta noite morrerá o homem mais rico da aldeia." Sérias e solenes soaram estas palavras. O juiz de direito não olhou em torno. Ele sabia que uma voz estranha tinha falado e ele creu nela. Com pavor relembrou a parábola do rico insensato do Evangelho, ao qual foi da Bíblia que havia aprendido superficialmente nas aulas de religião no tempo de escola, e logo esquecidos, voltaram-se à mente intensificando a sua angústia. "Que aproveitaria o homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?" Ou "Que pode o homem dar para salvar a sua alma?"

Estas palavras demandavam contra ele, ele sentia calafrios. Ele sentia que tinha vendido sua alma aos prazeres transitórios de Mamon. Incapacitado de suportar por mais tempo a inquietação, galopou para casa.

Chegou muito atribulado em casa. E imediatamente deu ordens para chamar o médico. À sua esposa e filhos isto causou grande preocupação. À todas as suas perguntas ele dava a mesma réplica. – Que seu desenlace seria logo, e era necessário preparar-se para a morte. Debalde eles procuravam convencê-lo, que sua saúde era excelente, e que sua angústia era fruto de sua excitação nervosa. O médico veio, mas riu-se de seu infundado temor. Mas o juiz de direito não considerava nem o escárnio nem as amáveis palavras. Ele opinava, que a morte não pode ser afugentada com bem intencionada retenção ou um sorriso afetuoso. Sentia estar determinado a morrer. Assim ponderava ele. Que importava o que os outros diziam!

Seu administrador foi chamado, para que seu senhor lhe desse as últimas instruções necessárias, para a administração de seus bens após seu passamento. O testamento estava escrito. Sua esposa e seus filhos estavam aprovisionados. Casas e terras distribuídas entre seus queridos. Agora ele não tinha nada mais que fazer, a não ser preparar-se para o último instante. Em grande inquietação esperava a morte. Com o cair da noite, sua angústia aumentou mais ainda. Toda vez que o relógio do Campanário batia as horas, seu temor aumentava. O médico e o administrador, a seu pedido, não se afastaram do seu leito, não obstante não conseguiam acalmá-lo. Só ouviam as palavras desconexas que proferia, as quais se assemelhavam aos desvarios de um louco.

Hora após hora se ecoava, cada uma mais longa e tormentosa. O homem rico na sua magnífica cama, a cada instante esperando a morte, sofria terrivelmente com o pensamento, quão pobre e desamparado ele era, e quão inútil lhe era toda a riqueza agora. A meia noite passou e a madrugada chegou, já a aurora tingia os morros. Quando os primeiros raios penetraram no quarto, também o rubor voltou às faces do homem mortalmente turbado. A morte não viera, ele ainda estava vivo. A profecia da voz misteriosa não se cumprira.

Ergueu-se de seu leito, a família reuniu-se ao seu redor. Felicitavam-no sorrindo, e aconselhavam-no a repousar uma vez que o trauma passara. Mas como ele poderia repousar após uma tal noite? Após a torturante revelação da futilidade de suas riquezas! Ele preferiu fazer um passeio, e muito pensativo ganhou vagarosamente a rua. Na aldeia ele ouviu que de

Page 11: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 11 fato esta noite a morte levou alguém. Mas em vez de no seu rico palacete, foi na cabana mais pobrezinha da aldeia. Aquele pobre vetusto que ele vira no dia anterior na gruta da mata, morrera.

Ainda mais pensativo o juiz de direito retornara. Seu coração o acusava. Ele rememorava muito bem, como avistou ontem o velhinho na mata. Mentalmente viu o ancião orando, pela simples refeição, no rosto erguido ostentava um estranho brilho, enquanto agradecia a Deus. Ainda se lembrava de cada palavra que ele proferira, e também de seu próprio riso de desdém. Estas recordações faziam-no sentir-se profundamente envergonhado.

Quão insensível e cruel ele se mostrara para tal pobreza! E quão ingrato ele fora para Deus por toda sua felicidade e riqueza. Tão depressa poderia também para ele bater a última horinha! E então de nada serviriam os seus tesouros.

Ou talvez no grande dia de prestar contas de sua vida, aquele ancião o faria sentir-se envergonhado. Tais pensamentos atormentavam-no, e finalmente fizeram-no tomar novos propósitos. Quando chegou em casa, sua esposa o recebeu sorrindo. Ela se deu por feliz, em revê-lo ao seu lado de juízo perfeito. Acompanhou-o para dentro de casa, e quando se assentou ao seu lado, repreendeu-o amavelmente pelo seu infundado medo da morte na última noite, que a seu ver era uma supersticiosa imaginação.

– Espero, disse ela, que você se convenceu, que aquela voz misteriosa não passou de uma ilusão, e que ela foi inverídica já se provou, a noite passou, você está vivo e com saúde.

– Certamente, respondeu ele, a noite passou e eu estou bem, mas aquela voz tinha razão. "Esta noite morreu o homem mais rico da cidade". Se você for lá embaixo indagar nas ruas, receberá a confirmação disto.

– Quem seria? perguntou ela sorrindo com sarcasmo? Quem aqui é mais rico do que nós? Ele disse:

– O homem que pode dizer a Deus – ''Quando tenho somente a Ti não procuro por mais nada neste mundo!'' – Este é mais rico do que eu. Eu não posso dizer isto porque procurei por muitas coisas e muita gente, mais do que a Deus. Mas este homem, pobre e velho, o mais humilde da aldeia, possuía em Deus tudo. Ainda ontem estava satisfeito da vida. Eu o designei como pobre, mas ele foi verdadeiramente o homem mais rico da aldeia. Pois ele é um herdeiro do reino celestial. Na última noite eu me certifiquei disto, da minha riqueza e minha pobreza. Na aldeia lhe contarão que ele morreu esta noite. Ele por certo não legou tanto que dê para fazer os seus funerais, no entanto ele foi o homem mais rico da aldeia.

OBS.: Quando eu contei esta história, acrescentei, que o velho chamava-se Jeremias e que o juiz de direito lhe levou uma linda coroa e que pagou o seu enterro.

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Tempos Felizes 12

POR TI I S. João 3:16. – "Conhecemos o amor nisto: que Ele deu a Sua vida por nós, e nós

devemos dar a vida pelos irmãos". Dr. Henrique, grande médico, em seu consultório, num dia chuvoso pensava: Eu era

naquele tempo, quando esta história aconteceu, um pequeno menino de talvez sete ou oito anos. Meus pais moravam numa ampla casa no fim da aldeia onde nos fundos da casa passava um rio. Justo no fim do nosso quintal onde havia um lindo jardim, o rio fazia uma curva, formando uma pequena lagoa, porque há muitos anos numa enchente a força da água arrancara um pedaço de terra, formando uma graciosa enseada.

Esta lagoa era muito querida por mim; no verão dava para banhar-me e no inverno para patinar sobre a água congelada, e este era meu maior divertimento. Depois de caírem os primeiros flocos de neve, eu ficava quase incontrolável, até que o pai dava a permissão de pisar na superfície congelada.

Assim aconteceu nos dias de minha infância. No almoço eu havia perguntado a meu pai, se eu poderia ir brincar no gelo, ao que ele respondeu: "Hoje ainda não, o gelo ainda não está firme; mas depois de amanhã, se não degelar nós vamos...

Depois do almoço ele foi ao consultório, pois era médico, e clinicava com os sitiantes de várias comarcas. Minha mãe foi à casa pastoral, à uma reunião beneficente, e eu fiquei entregue aos meus próprios cuidados. Fiz minhas tarefas escolares, e quando terminei, fui à janela. Aquela vista do lago congelado, todo branco, e o velho salgueiro com seus ramos caídos sobre o gelo, me fascinaram. Será que era realmente tão perigoso como o pai dissera? Me agasalhei e saí de casa. Eu só queria ver de perto. E então me veio a tentação de tatear só com a ponta do pé, com todo cuidado, só na beirada. Estava firme! Então resolvi arriscar um pouco mais. Cuidadosamente eu ia passo a passo por cima do gelo, segurando-me num ramo do chorão que pendia sobre o lago. Eu já ia gritar a vitória: "Está firme!", quando ouvi um "crac" terrível de baixo dos meus pés, e ao mesmo instante afundei pela fria superfície de gelo. No último instante me agarrei com força ao ramo do chorão. Quase perdi os sentidos de susto e frio, quando a água gelada penetrou nas minhas roupas chegando no meu corpo quente. Meu coração ameaçou parar, e quase perdi a respiração.

Quando tomei consciência da minha perigosa situação, comecei a gritar alto e insistentemente. Mas nada se mexeu. Ninguém me ouviu. A rua que eu via de lá permaneceu vazia. E na minha casa, eu sabia, nesta hora não havia uma única alma.

Exausto puxei fôlego, e o perigo de minha incômoda situação me voltou a mente. Quanto tempo eu teria que agüentar nesta água gelada? Quanto tempo eu agüentaria? Eu sentia meus dedos da mão enregelados mas ainda conseguiam continuar agarrados ao ramo. Minhas roupas

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Tempos Felizes 13 encharcadas pela água gelada, pendiam pesadamente no meu corpo duro, ameaçando me sugar para o fundo da lagoa gelada.

Novamente gritei com todas as forças: "Socorro! me ajudem; eu estou afogando!" até se acabar a força do meu pulmão.

Tudo ao meu redor permaneceu num silêncio total. Um corvo pousou sobre o gelo, saltitou na minha frente me olhando curioso e com desdém grasnou: "Rab, rab!" e então voou embora. Não se via ser humano. Não sei dizer quanto tempo fiquei pendurado na vara; podem ser minutos. Para mim pareciam horas intermináveis ...Comecei a chorar: "Papai, ó pai!" e sentia como minhas forças estavam me deixando. Era uma questão de instantes para mim.

Até que enfim, vi pela rua vindo gente. Na frente vinha nosso carteiro Henning, meu bom amigo. Quando avistei sua figura tão conhecida para mim, reuni minhas últimas forças e gritei; acho que foi mais um urro: "Henning! Henning! estou afogando, me ajude!" Ainda vi como ele, ouvindo meus gritos se desviou vindo em minha direção; então perdi os sentidos.

O que aconteceu então não vivi conscientemente. Mas, meu pai me contou tantas vezes, que é como se eu estivesse consciente.

O bom Henning se assustou muito quando diante de seus olhos eu afundei dentro da massa congelada no último instante. Ele jogou sua sacola de cartas ao lado, e sem medir as conseqüências pulou dentro do lago, no exato lugar onde eu havia afundado. Ele conseguiu agarrar meu corpo inerte e o ergueu nos braços até que um moço que viera atrás dele e deslizara pelo tronco do chorão meio caído, até me alcançar.

A este, meu salvador deu meu corpo para segurar; então, neste instante, quando ele estendeu as mãos querendo se agarrar ao tronco, tornou-se pálido como a neve e inconscientemente caiu para trás desaparecendo debaixo do gelo, na correnteza. Ele não afogara. Mas o pulo dentro da água gelada, com seu corpo quente, lhe fez mal. Um colapso deu fim a sua vida. Seu corpo só foi encontrado quinze dias depois quando houve degelo.

Eu mesmo fui carregado para dentro de casa. O forte resfriado que eu contraí se degenerou em febre alta e infecção pulmonar. E naquela noite quando, não suspeitando nada, meu pai chegou em casa, encontrou um filho muito doente. Tive que ficar muitos dias de cama, e mais ainda dentro de casa sem sair.

Nem surra nem repreensão recebi de meu pai por causa de minha desobediência.Mas, inesquecível é para mim, a hora em que meu pai sentou-se na beira de minha cama e com profunda seriedade me contou que sacrifício custou a minha vida. Fiquei profundamente comovido com o acontecido; foi a primeira experiência na minha vida que me impressionou e deixou marcas inapagáveis. Continuamente via a imagem do homem diante de mim, que tão desprendidamente veio em meu auxílio, e que agora jazia morto e enregelado nas profundezas das águas.

Havia algo de insuportável e ameaçador neste desaparecimento. Eu suspirei aliviado quando ouvi: "Agora o encontraram!" Meu primeiro passeio foi à casa do carteiro onde ele jazia na sala dentro do caixão. Meu pai não me poupou em nada; ele me tomou pela mão e me levou até o ataúde; lá jazia o homem com rosto desfigurado e corpo inchado, que com tanta coragem dera sua vida para salvar a minha.

Vacilantes flamejavam as velas à cabeceira lançando luz inquietante sobre o defunto. O silêncio era total na sala. Só os soluços baixinhos da jovem esposa do morto, parada junto à janela, ainda hoje penetram nos meus ouvidos; e no bercinho ao lado dormia um bebê.

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Tempos Felizes 14 Meu pai apertou furtivamente minha mão infantil e disse baixinho só duas palavras: "POR

TI". Mais nada. E então saímos silenciosos e voltamos para casa. Nesse tempo eu compreendi que coisa grandiosa é quando um ser humano dá a sua vida por outro. É como se o segundo tivesse que viver com força dobrada e fidelidade, para que o sacrifício da primeira vida valesse a pena.

Muitas vezes, mais tarde, quando moço, eu me tornava negligente no meu serviço ou enveredava por atalhos, eu me esforçava ao extremo e dizia para mim mesmo: "Assim não pode continuar! Você tem que se tornar um homem de bem e trabalhador honesto! Pense, um outro homem de valor deu a vida em seu lugar!"

E quando fui convidado por meu amigo a freqüentar as reuniões na igreja, e eu ouvi e aprendi a História do Senhor Jesus, de sua vida, sofrimento e morte. Só então me tornou claro: "Assim, só muito maior e maravilhoso é o sacrifício de Jesus por nós."

A PRIMEIRA VIAGEM DE YAN "Maria Cordes" era uma bonita e grande embarcação à vela, não obstante a isso tinha má

fama. Do velho capitão Klingert se dizia que era um valente marujo, mas se aproveitava ao máximo de seus subordinados. Não era pois de admirar que dificilmente arranjava marinheiros decentes que faziam com ele mais de uma viagem.

Só o primeiro timoneiro Jen Lorms já estava há três anos com ele no navio. Mas muitas vezes se aborrecia com o capitão e a tripulação mal escolhida.

Agora o timoneiro estava em pé no alto do convés observando os marinheiros subir a bordo; dentro de poucas horas o navio ia zarpar. Dentre os marinheiros vinha o novo grumete, rapazinho pequeno e franzino, de olhos vivos castanhos, ninguém lhe dava os 16 anos que tinha. "Coitado" murmurou Jen Lorms, "as coisas não serão fáceis para ele."

E realmente Yan, assim era seu nome, muitas vezes tinha que morder seus lábios. Logo depois que a embarcação ganhou mar aberto, ele foi atacado de maresia e levou vários dias para se recuperar. Mas muito pior que isso, eram os maus tratos dos marinheiros. Lorms logo descobriu que todos faziam pouco de Yan. Mas o rapazinho estava sempre de bom humor. Ignorava as raspanças e chingos, não se magoava nem guardava rancor. Realmente o podiam deixar em paz. Ivo, o finlandês e 0'Neil, o ruivo irlandês tinham-lhe um ódio ilimitado. Só o velho Peer O1sen, da Noruega, na sua maneira calma lhe dava apoio, e o cozinheiro chefe lhe aliviava as tarefas e empurrava sempre uns bons bocados para ele.

Com este velho norueguês, Lorms teve certa noite uma conversação, na hora do revezamento da vigia. "Coitado do menino", disse ele quando Yan morto de cansaço se

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Tempos Felizes 15 esgueirou perto deles descendo para o porão. "O que os outros têm contra ele? Ele é mal educado?" O velho meneou a cabeça: "Não, mas ele parece ser do século passado," ele sorriu disfarçado; "quando ele sentou a primeira vez à mesa na refeição, ele fez oração em voz alta." O timoneiro o olhou de frente e perguntou, "sim e dai?" "Os outros não aceitam isso, eles combinaram que vão fazê-lo desistir deste costume; esta é a causa por ele ser tão maltratado". O velho encolheu os ombros e acrescentou: "Eles não estão acostumados, por isso os aborrece". De repente um sorriso lampejou em seu rosto enrugado e acrescentou: "Eu creio timoneiro que é porque a consciência os acusa". Jens Lorms anuiu pensativo.

Depois de ele ser revezado com outra sentinela, permaneceu muito tempo acordado em sua cabine, pensando no pequeno valente, ao qual queriam desacostumar o melhor costume: Orar.

Com o capitão as coisas também não eram fáceis. Era admirável o caso. No íntimo este esperto rapazinho agradava ao capitão, e bastante. Certa vez, disse a Jens Lorms: "Este aí, vai ser algo na vida! não é dos tais melindrosos". Mas em cada oportunidade, caçoava do menino, dizendo-lhe que era muito pequeno para ser marujo, até que Yan ruborizado sumia entre as velas com os outros marinheiros.

Jens Lorms mordia os lábios contrafeito, "Ele realmente é muito novo e inexperiente, e também muito fraco para prestar serviços à marinha. Isto é irresponsabilidade!" disse ele. O capitão sorria contrariado: "Quanto me consta, eu sou responsável pelo navio e tripulação".

Quando Yan desceu do velame com as pernas bambas, o capitão lhe berrou um gracejo, e assim aconteceu ainda muitas vezes. O capitão nunca mandou Yan às velas, mas pelas caçoadas o impelia a todos os serviços; e os tripulantes apreciavam essa atitude do capitão. Nas semanas de ventania que seguiram, ninguém se importou com Yan, pois cada um tinha que dar de si o quanto agüentava.

O vento os impelia cada vez mais para sudeste. Estavam na altura da Islândia. Certo dia o timoneiro observou que Yan tinha um olho roxo e inchado, e durante suas

horas de vigília noturna falou a Peer O1sen sobre Yan. Este só encolheu os ombros: "Ele não afrouxa! continua fazendo sua oração à mesa, apesar de todas as ofensas; nunca vi tamanha teimosia! Agora os outros descobriram que às vezes ele escreve cartas, e caçoam dele dizendo que tem namorada. Ele sempre trancava a carta no seu baú, e Ivo tentou tirar-lhe a chave, mas ele se defendeu com unhas e dentes. No fim intercedemos. É, as coisas não estão bem para ele".

A testa do timoneiro se enrugou. "No baú de Yan o Ivo mexeu? mas isso implica em direitos pessoais. Eu vou..." O velho norueguês parecia adivinhar seus pensamentos. "Não é bom que os outros percebam que você lhe tem simpatia, mas tente lhe falar com jeito, para ele deixar de orar à mesa; isto seria bom. Eu já tentei...!" Ele meneou a cabeça: "Em toda minha vida não vi alguém tão cabeçudo. Os outros estão mais ou menos conformados, mas Ivo e O'Neil estão como loucos, cada vez piores".

O timoneiro sentiu nascer um ódio negro dentro de si. Ivo e O'Neil, estes dois estavam na sua marcação. O irlandês era um ótimo marujo, não havia nele o que emendar; mas o finlandês! Se ele o pudesse surpreender quando espezinhava Yan! Durante a vigília matinal o timoneiro levou o rapazinho consigo. Espantado olhou o rosto macilento do menino.

"Me diga Yan, você reza sua oração à mesa sempre em voz alta?" O menino anuiu calado. O timoneiro não se sentiu muito à vontade, mas prosseguiu. "E se você orasse em voz baixa, só para você, você acha que Deus não o ouviria?" Yan ergueu a cabeça, e o timoneiro lhe notou um estranho olhar quando disse: "Sim, mas eu prometi à minha mãe". O timoneiro sentiu vergonha. "E se sua mãe soubesse o quanto você está sofrendo por causa disso?" Yan meneou a

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Tempos Felizes 16 cabeça e olhou Jen Lorms bem na retina, com o mesmo olhar estranho. "Se eu fizesse agora o que eles querem eu estaria negando o meu Senhor Jesus – por causa das surras de O'Neil e Ivo e das caçoadas dos outros. Isto eu não faço nem que eles me espanquem até eu ficar torto ou aleijado! E ainda que me despejem outra vez óleo de fígado na comida – Não!" O timoneiro sentiu pena e pôs a mão no ombro de Yan.

De repente a rigidez de Yan amoleceu; lágrimas deslizaram pelas faces magras, e ele soluçava alto. "Tudo isso não é o pior; mas o que eles dizem e tão sujo! tão sujo!" Ele passou a manga da camisa nos olhos, recostou a cabeça no peito de Jen Lorms, e ficou assim calado por uns momentos. Depois se endireitou e disse: "Mas isto agora é indiferente, eu tenho que vencer isso, assim como venci o medo quando tive que subir a primeira vez no mastro, isto eu já venci, e as outras coisas também irei vencer!" O timoneiro pôs a mão no seu ombro de novo e disse: "Yan eu gostaria de lhe ajudar mas não sei como!" Yan já sorria novamente, mas era um sorriso triste. "O senhor é muito bom, mas pode deixar", e acrescentou com voz firme: "Eu receberei ajuda".

Na noite de 27 de novembro, novamente no revezamento dos vigias, no convés do "Maria Cordes", tudo era negra escuridão, só se via o reflexo da espuma branca das ondas; fazia muito frio. Um pouco antes da meia noite a lanterna na torre de vigia, se espatifou. Capitão e timoneiro espiaram pelo vidro protetor o estrago lá em cima. A torre de vigia estava vazia. O capitão e o timoneiro vez e outra, lançavam olhares pessimistas às velas, ambos nutriam os mesmos pensamentos: Eisberg! 0 velho capitão mandou Yan para a torre de vigia. "Faça olhos de bezerro", grunhiu ele, "e segure-se bem!"

O menino havia alcançado seu posto. Aí aconteceu! A lua abriu uma brecha nas densas nuvens. Os homens notaram que Yan estendeu o braço e gritou algo. Mas o furacão lhe apagou as palavras da boca. E no mesmo instante surgiu diante deles possante uma massa negra. A luz vermelha surgiu na vigia em meio à escuridão. Um navio enorme vinha em direção ao "Maria Cordes".

No mesmo instante timoneiro e capitão se precipitaram ao timão, e este girou na mão de ambos como um moinho. Empregando todas as suas forças conseguiram desviar a embarcação. E o que sucedeu então, o timoneiro só conseguiu lembrar quando tudo se acalmou. De raspão passou o outro navio no "Maria Cordes". Um estrondo como tiro de canhão. Uma massa branca disparando pelo ar. E então tudo ficou em profundo silêncio.

Por um fio escaparam de passar para a eternidade, e um segundo depois o outro navio foi envolvido novamente pela escuridão da noite. A lua saiu outra vez das nuvens. E o timoneiro olhou a torre de vigia, ali onde há poucos segundos Yan estava de pé, ali o navio em rota contrária arrancou uma vela do "Maria Cordes". Jen Lorms largou o timão aos içadores e precipitou-se para frente – A torre de vigia estava vazia. ...

Os marinheiros guardaram as sobras do pano da vela. O timoneiro examinou tudo, agora ele compreendia, O pano havia arrancado o menino do seu lugar e lançado ao mar. A primeira viagem de Yan também foi sua última. O timoneiro voltou e prestou contas ao capitão.

Lentamente amanhecia. No convés reinava um silêncio dramático. "Sim", pensou o timoneiro, "agora estão calados e Yan também. Ele não sabe que seu tempo de vigia terminou há muito".

Só foi na hora do desjejum que todos perceberam a falta do capitão. O cozinheiro desceu até a cabine do capitão, para logo voltar chamando apavorado pelo timoneiro. Ali estava o capitão sentado como petrificado diante de sua escrivaninha, tendo diante de si o livro de

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Tempos Felizes 17 anotações de bordo. Atrás do nome de Yan Pret o capitão havia assinalado uma cruz preta. Ao fazer isso, teve um colapso. O capitão estava morto.

Lá pelo meio dia, a bandeira foi içada a meio pau. A tripulação em peso se apresentou. O timoneiro rezou as preces e então o corpo do velho capitão foi descido ao mar ao qual ele sempre havia pertencido.

Logo depois o timoneiro que agora assumira a capitania do navio, mandou buscar o baú e a esteira de Yan, amarrou tudo junto e mandou guardar no seu camarote. Quando os marinheiros ergueram o baú, saiu debaixo um envelope com algumas páginas escritas; não tinha assinatura nem estava fechado – assim Peer Olsen o entregou ao novo capitão. Ele o guardou para enviá-lo à mãe, logo que aportassem na Austrália. Era bom que o novo capitão tinha muito que fazer; assim era mais fácil afastar os tristes pensamentos que o assaltavam quando se lembrava de Yan.

Enfim chegou o dia em que o céu cor de chumbo se clareou e o sol, que por semanas não se mostrava apareceu. O navio que por semanas lutou com a tempestade estava incrustado de grossa camada de sal.

Os marinheiros sentaram-se ao redor da mesa, e as gamelas foram cheias. O sol com todo seu resplendor penetrou através da janela caindo exatamente no lugar em que Yan costumava ocupar. De alguma maneira aquele lugar vazio chamou a atenção de todos. A conversação parou e algo diferente aconteceu. O'Neil se ergueu vagarosamente, seu rosto magro estava transpassado, ele mordeu os lábios, e seus olhos marejaram. Todos os olhos estavam voltados para ele. De repente endireitou seu corpo, e abaixou a cabeça até o peito, juntou as mãos e fez uma oração. Tal qual Yan fazia. Peer Olsen foi o primeiro a largar a colher e ajuntar as mãos.

Muitos outros pares de mãos se uniram e muitas cabeças se baixaram. O silêncio era constrangedor. Todos estavam unidos no mesmo pensamento. Menos Ivo, o finlandês. Ergueu-se de um pulo e seu banco caiu, suas imprecações quebraram o silêncio; com as faces rubras fez um gesto de desdém. O mais rápido foi O'Neil. Endireitou seu pesado corpo e arremessou a gamela de barro na cabeça de Ivo, entornando todo caldo quente de ervilhas sobre seu rosto, e cacos voaram para todos os lados. No mesmo instante, todos os homens se levantaram, e num silêncio ameaçador dirigiram-se a Ivo, agarraram-no e o lançaram fora no convés.

A mesa foi limpa e todos marinheiros tomaram em silêncio sua refeição. Daí por diante a tripulação era unida como pixe e pedra. Quando se assentavam ao redor

da mesa, Peer Olsen colocava a colher de lado, olhava para O'Neil; então este se colocava de pé e proferia a oração. Isto era como uma homenagem ao menino Yan, embora seu nome nunca mais foi mencionado.

Só uma única vez o novo capitão ouviu que se falava de Yan. Muitos dias depois, era uma estrelada noite tropical. As sentinelas foram trocadas. Jen Lorms recostou-se na sombra, quando dois passaram conversando: O'Neil e Peer Olsen. O irlandês olhou bem distante, e pensativo disse: "Eu tenho remorsos por tê-lo maltratado tanto Peer; mas agora não adianta remoer, pois ele está morto". O velho norueguês fez um gesto largo ao responder: "Sim, isto todos pensavam, mas será que é mesmo assim?" "Peer, que quer dizer isso?" "Sim eu muitas vezes pensei nisso. Quando a vela foi arrancada, os dois navios estavam rentes um ao outro. Você ainda pode ver o risco preto que o outro navio deixou com o raspão. É possível que o impacto jogou o menino no convés do outro navio. O irlandês meneou a cabeça e disse algo, que Jen Lorms não pôde entender, mas teve a impressão que era um texto bíblico em sua língua materna.

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Tempos Felizes 18 Quando O'Neil se tinha ido, Lorms se aproximou do velho Olsen: "Você falava agora com

O'Neil sobre Yan; você acredita mesmo que uma coisa destas é possível?" O norueguês olhou a Lorms pensativo, depois contou vagarosamente: "Há oito anos sofri

um naufrágio; era muito semelhante ao nosso caso. Nos batemos bem na quina do navio. A força do vento nos separou, e pouco tempo antes de chegar à Halifax, nosso navio foi a pique, e nós nos metemos nos barcos salva-vidas. Todos chegamos à terra, com exceção de três pessoas que foram arremessadas para o outro navio com o impacto". Ele se calou. Lorms sentia como seu coração batia mais forte. "Sim, acontecem coisas assim. Mas eu suponho que o outro navio raspou rápido que nem deu tempo de Yan cair nele ..."

Capítulo 2 Muitas semanas se passaram. O "Maria Cordes" agora velejava sobre o Equador. Muitos

dias nem se mexia nas velas. A embarcação foi repintada. Odores de tinta e verniz eram a única novidade. Havia tempo de sobra para se espreguiçar. Também Jen Lorms dispunha de tempo para descansar.

Sentado em sua cabine folheava alguns papéis e fazia uma lista de objetos a serem adquiridos em Sidnei. Mas muitas vezes nos momentos de lazer seus pensamentos se voltavam para Yan. Um dia ele tirou a carta que caíra do baú de Yan. Era uma carta que o menino escrevera à sua irmã Angeli. No primeiro dia ele começou a escrever e cada dia acrescentava mais um pouco. Será que o capitão devia lê-la? Ele pensou um pouco. A carta não estava fechada. De mais, Lorms teria por obrigação de redigir uma carta à mãe de Yan, logo que o "Maria Cordes aportasse na Austrália.

Finalmente, um pouco emocionado, tomou a carta e leu, e leu, e não parou mais de ler. Pois Yan contava tanta coisa. Desde o começo, da sua maresia, do trabalho dos marinheiros, depois dizia assim: "Querida Angeli, diga à mãe que eu cumpri minha promessa. Mas, não é fácil Angeli. Você não imagina como é duro! Sabe por quê Angeli? é que em nosso lar tudo é limpo e ordeiro. Mas aqui é tão nojento, e quantas blasfêmias e palavrões, e quando eu ruborizo de vergonha é pior; aí eles zombam e riem de mim. Mas Peer Olsen é bom. Ele é dos tempos que se fazia navegações cristãs. Isto agora não existe mais".

"Querida Angeli, eu sei que você e mamãe oram por mim todas as noites, e eu gosto de pensar nisso. Estou em desespero. Não é fácil Angeli estar sempre de bom ânimo. Mas muitas vezes me lembro do que a mãe contava do pai, do seu tempo de mar; agora eu também já sei o que é velejar em alto mar. Mas não diga nada à mãe; é tudo questão de costume. Sabe Angeli, tive muito medo no começo. Mas agora já superei tudo isso. Se só não fosse a outra coisa, blasfêmias e o praguejar! Peer Olsen me defende sempre que pode, e Lorms é para mim como um pai. Eu sempre penso que isso irá mudar. Mas O'Neil os atiça, e Ivo é o pior. Ele é como o próprio Satanás!"

"Querida Angeli, Peer Olsen e Lorms o timoneiro, são de opinião que eu devia deixar de fazer oração à mesa, que então as coisas melhorariam para mim. Mas eu disse que não o faria, ainda que me espanquem até eu ficar torto ou aleijado ou me despejem óleo de fígado na comida. Isto os outros fazem, mas Lorms é muito bom para mim, mas também não soube me aconselhar. Fácil não é,"...

Aqui terminava o escrito. O capitão recostou-se na cadeira. "Me valha Deus!" pensou ele. "Como posso mandar essa carta para a mãe?" Seu sorriso foi amargo. "Como um pai, eu!"

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Tempos Felizes 19 "Medo ele teve, medo das caçoadas do velho capitão e dos brutos marinheiros. Mas agora é tarde demais, só me resta pedir perdão a Deus, e ser mais forte no futuro."

Quando depois de muitos dias o "Maria Cordes" aportou na Austrália, o capitão Jen Lorms deitou-se para tirar um cochilo durante o calor do meio dia. Mas foi despertado por um grande alvoroço no convés. Mistura de vozes, risadas, e depois uma voz clara, de menino que se distinguia, e que ele reconheceria entre mil vozes. Dum pulo ele deslizou da cabine, e já estava no convés. E ali estava, rodeado por todos os marujos, um menino em uniforme de linho branco, queimado pelo sol, risonho, havia crescido um bom pedaço e engordado: Yan.

"Timoneiro disse Yan", e corou, "Isto é, eu queria dizer..." Jen Lorms juntou as mãos juvenis entre suas fortes mãos: "Nosso Yan!" disse ele com voz embargada. "Deus seja louvado e engrandecido, pois nós te encontramos!"

Na tarde seguinte Jen Lorms foi ao "Meta Folkers". Houve uma demorada discussão com seu capitão Folquartsen.

"Sim", dizia este, "oito dias antes eu havia perdido meu próprio filho. Antes de chegarmos à Islândia, caiu no mar. O senhor não pode imaginar como me senti quando naquela fatídica noite a vela do seu navio me arremessou este menino justamente aos meus pés. Nós gostaríamos muito mesmo de ficar com ele, mas posso compreender que o senhor não quer se desfazer dele. Por certo o senhor o tratou muito bem, pois ele fala do senhor como um pai". Lorms corou fortemente. Ainda no mesmo dia Yan voltou ao "Maria Cordes".

Enquanto isso em casa, sua irmã Angeli, depois de meses de ausência do irmão recebia a primeira carta. Ela lia: "Querida Angeli! Quando receberes esta carta irás ter uma enorme surpresa, tive uma grande aventura: sofri um verdadeiro naufrágio. Mas não te preocupes, ele me fez muito bem".

"Dia 27 de novembro, plantei sentinela na vigia lá pela meia noite. Fazia um frio de arrepiar. Todos falavam de icebergs. Quando olho para frente vejo uma luz vermelha e uma enorme embarcação. Meu susto foi quase mortal. Gritei e fiz gestos, nisto já o velho capitão e o timoneiro se lançaram ao timão. Um enorme estrondo, e então não me lembro de mais nada. Quando acordei estava deitado numa cabine e um homem me deu chá quente para beber. Eu estava atordoado e não sabia onde estava. Me contaram que eu me encontrava no "Meta Folkers", e que o próprio capitão me carregara até sua cabine. Durante dois dias ainda me sentia fraco e minhas pernas bambas; dormi quase o tempo todo. Me disseram que era porque fui arremessado com muita força sobre o convés deste navio. Até estar completamente refeito e me ajuntar aos outros marinheiros eu dormi na cabine do capitão. Ele teve um filho que morreu no mar faz poucas semanas."

"Na primeira refeição em conjunto eu fiquei um pouco desconcertado, pois pensei: Agora toda miséria vai recomeçar. Mas eu me lembrei do que prometi à mãe e a você. Fiquei muito surpreso, a gentileza foi geral. Quando me pus de pé para fazer a primeira oração, todos puseram a colher de lado e me acompanharam na oração."

"Aqui é tudo tão diferente. São quase todos parentes, e formam uma grande família. O capitão é muito bom para mim, você nem pode imaginar. Me presenteou com roupas que pertenceram a seu próprio filho. Subir nos mastros eles não me permitem, dizem que sou pequeno demais e que isto não é uso aqui. Querida Angeli, aqui é tudo limpo e bem ordenado. Já velejamos muitas semanas em esplendoroso sol. Isto aqui parece um pedacinho do céu".

A embarcação içou velas em direção à pátria. A tripulação estava completa. O rumo era norte. E novamente os marinheiros sentaram-se ao redor da mesa, e o cozinheiro colocou o

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Tempos Felizes 20 caldeirão na mesa. Yan no seu lugar costumeiro. Peer Olsen se pôs de pé e disse: "Faça a oração menino" e ele uniu as mãos. Yan fez o que lhe foi ordenado. Quando terminou, passou a manga da camisa nos olhos úmidos.

A viagem de volta correu sem acidentes, e todos estavam alegres, pois Yan estava novamente entre eles. Quando no porto de Hamburgo, a tripulação se separou, até que o navio recebesse nova carga. Jen Lorms prometeu visitar Yan em sua casa. E muito antes do que ele imaginou, pode cumprir sua promessa.

Foi recebido pela mãe que estava sozinha. E ele relatou a ela, a primeira viagem de Yan. A mulher quase não tirou os olhos do tricô, às vezes anuía, ou sorria. O capitão sentiu-se

aliviado. Ele sempre pensou que devia desculpar-se com a mãe. E então, nem ele soube como aconteceu, mas de alguma maneira transcendeu em sua conversa a acusação: – A promessa que ela havia pedido do filho, que isto o prejudicou sobremodo junto aos marinheiros, (isto achava ele), a mãe não devia ter pedido ao filho, não era justo. Ele não o disse declaradamente, mas parece que a mulher entendeu sua intenção.

Ela descansou o tricô, encarou o capitão com olhar firme e inteligente, e então começou a falar: "O capitão acha que eu amargurei a vida do meu filho, não é? e que eu sou culpada que os marinheiros o judiaram e maltrataram, o capitão pessoalmente foi muito gentil para com o menino". Lorms sentiu-se atrapalhado sob o olhar da mulher e corou: "Não, eu não quis dizer isto, mas.." Sim" replicou a mãe mansamente. "Eu sei isto muito bem. Só gostaria de dizer ao capitão, que eu havia previsto tudo isso. Mas o fiz de propósito."

Jen Lorms, calou-se. "Sim agora o capitão pensa que eu sou uma mãe madrasta, que propositalmente dificulta a vida do filho, simplesmente por um capricho de mulher. E que eu não sei como a vida lá fora é dura". - O capitão ficou surpreso ao ouvir a mãe dizer exatamente o que ele havia pensado. "Eu só queria dizer ao capitão, que eu sei muito bem como é a vida no mar. Eu sei que todo grumete é zombado e judiado, que muitas vezes recebem mais surras do que pão... mas a questão é: o porquê de alguém ser caçoado."

"Meu irmão, por uma mesquinharia, lhe quebraram o braço, por uma agulha de costura! Se a questão é por esta coisa que vocês chamam de honra, então se comportam como valentes rapazes, mas quando a questão é o Senhor nosso Deus, então se tornam trapos melindrosos."

Então lhe disse: "Se Yan tiver atrito com a tripulação, que o seja por uma causa justa. Por isso eu lhe pedi esta única coisa, somente esta. Crê o senhor capitão que eu não amo meu filho? Oh, sim, e é justamente por isso que ele deve reter o melhor que um marujo necessita. Onde eu teria findado com meus seis filhos, quando meu marido ia longe pelos mares, se eu não tivesse o meu Deus? e mantido comunhão com Ele todos os dias?"

O capitão já não se sentia bem. Um tal sermão nunca tinha ouvido, embora já singrasse os mares há quinze anos. Ele sentia vexame, mas um sermão como este fazia bem. Ele lhe estendeu a mão. "A senhora tem razão" disse ele baixinho.

Nisto lá fora ouviram-se vozes alegres, e passos no jardim. "Mamãe, gritou Yan". Só então se apercebeu da presença de Jen Lorms. "Oh, o capitão" disse ele, corou e seus olhos brilharam. "Angeli" disse ele, "faz um chá; o capitão está aqui'." Angeli entrou. Quando a moça alta e esbelta, se pôs diante dele e sorrindo lhe estendeu a mão, um calor estranho envolveu o coração do capitão.

Esta tarde foi muito agradável e Jen Lorms, depois desta ainda fez muitas visitas a casa de Yan. Não só por causa de Yan, mas lá estava alguém que em breve ele muito amou...

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Tempos Felizes 21 Quando em outubro o "Maria Cordes" levantou âncora, o capitão queria muito levar sua

jovem esposa Angeli, mas isto a sogra não permitiu. Pois seria outra longa viagem. Teve que consolar-se com seu pequeno cunhado Yan a bordo. Com ele o capitão poderia ao menos falar de Angeli.

JOSÉ DO CHORÃO José do Chorão é um conto que fala ao coração de crianças e adultos. Seu berço é a Suíça

montanhosa coberta de neve no inverno e de campos verdes e floridos no verão. Ao contar esta história tenha em mente que o povo suíço é muito religioso, que existem muitas pequenas aldeias nos vales, onde se avistam muitas cúpulas de igrejas, grandes e pequenas em geral velhas, sempre abertas para a adoração.

Os nomes suíços para crianças geralmente terminam em "i" ou "li", equivale ao nosso "inho". Assim os nomes originais foram conservados. Ex. Stanislav = Stanli José = Gundo = Gundi.

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Tempos Felizes 22 Me propus a traduzi-la pela sua moral e fundo religioso. Espero que muitas crianças

tenham horas de entretenimento com este conto, que até aqui fez parte de meu "tesouro" particular.

Ao contar a história, faça-a com muita vivacidade, não deixando de explicar com detalhes o lugar onde os personagens viveram. Mostre figuras sobre as belezas da Suíça, na introdução.

No 19 capítulo enfatize bem a moral de todo enredo: "Todas as vezes que oramos, Deus nos dá alguma coisa, embora não o possamos ver na hora, mas depois aparece".

No último capítulo explique antes, que o natal europeu é a maior festa do ano. Que as crianças se preparam para ela com antecedência e esperam não o nosso Papai Noel, mas o anjinho de Cristo é que traz os presentes e enche os corações de alegria e paz. É a festa mais solene e esperada do ano todo.

Ana Maria Schmidt

Capítulo l Em casa do vovô. Em meio a verdes montes e vales cobertos de luzentes flores vermelhas

e azuis no tempo de verão, encontra-se a aldeia "Igreja Velha". A velha igreja pintada de branco e torre vermelha, é que lhe dá o nome. As casas que

ficam ao redor são de madeira e protegidas do vento por elevadas montanhas dos dois lados e no fundo. Só a frente é livre e aberta, dá vista para o outro lado, onde se situa uma outra aldeia, no meio de um grande arvoredo, e no topo da elevação se acha "Monte Pio", aldeia com casas ricas de tijolos e pintadas de branco.

No meio destas duas aldeias, bem no fundo corre o rio Ziller barulhento, espumoso, por trazer do seu longo percurso entre as montanhas, muita madeira, pedras e folhas.

De Igreja Velha ã Monte Pio há uma estrada carroçável, mas que dá uma longa volta entre as montanhas, descendo em zigue-zague até o Ziller, passa por uma velha ponte de madeira, e depois subindo por muitas curvas, chega à Monte Pio. Ao todo dá umas duas horas de caminho.

Mas muito mais fácil e agradável é o caminho para pedestres que desce entre as montanhas até o rio Ziller e até a ponte, debaixo da qual a forte e espumante correnteza causa medo. A passagem é tão estreita que dá só para uma pessoa de cada vez. É bom que tenha corrimão dos dois lados, porque a cada passo balança e treme de tal maneira que causa pavor e medo. Longe e perto não se avistam outras habitações, só uma igreja muito velha e solitária, bem pequena que o tempo quis destruir, mas foi preservada, ela fica bem ao lado do caminho, na descida, dando de frente para o rio.

Em Igreja Velha há muita gente pobre, porque o ganho é pequeno. A maioria dos homens trabalha como diarista para os grandes proprietários de terras ali por perto. Alguns possuem um pequeno pedaço de terra, suficientemente grande para criar uma vaca ou uma cabra.

Uma das famílias mais pobres, é a do José do chorão. Afastada das demais, no caminho da igreja, é pequena e descuidada, coberta por um velho salgueiro (ou chorão), que plantado há muito tempo tomou conta da casa até cobri-la totalmente com seus ramos. Por causa desta árvore seu dono recebeu seu nome: "José do Chorão".

Esta casa sempre lhe pertenceu; aliás já pertenceu a seu pai que nesta casa morou até à sua velhice. Agora o José do Chorão também já era velho e ainda morava ali com sua mulher, também velhinha e há muito doente, de cama, e seus dois netinhos. O José do Chorão, teve um único filho, o José, homem de boa índole mas um pouco leviano e instável. Onde ele estava

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Tempos Felizes 23 agora, nem os velhos pais sabiam. Há seis anos saiu de casa, e desde então raras eram as notícias que recebiam dele.

O José casara-se muito cedo, com uma moça que era do agrado dos pais, pois a Constança era moça trabalhadeira, todos gostavam dela, cumpria silenciosamente seus deveres de mãe e dona de casa, e os dois velhinhos tiveram bons dias enquanto ela morava com eles. Neste tempo o José trabalhava numa fazenda e no fim de semana ele trazia um bom dinheiro para casa. A vida era agradável para toda família e o José desejava que assim continuasse para sempre.

Três anos se passaram em que nada perturbava a paz. O pastor Clementino que morava numa casa velha e comprida atrás da aldeia, e muitas vezes entrava na casa do José do Chorão e dizia: "José na tua casa é bom estar. Aqui não se ouve uma palavra má". E seus olhos brilhavam de satisfação quando via a Constança tão limpinha e ordeira chegar à porta e lhe dar as boas vindas, com o pequeno Stanli nos braços. Então ele repetia: "Sim José, na tua casa é bom estar".

Quando o Stanli estava com quase dois anos, chegou ao mundo seu irmãozinho Sepli. Foi uma grande alegria para todos. Mas logo depois aconteceu o que de mais triste poderia acontecer na casa do José do Chorão. A Constança morreu deixando um vazio na família que nunca mais pode ser preenchido. O José andava de uma parte para outra como alguém que perdeu o rumo. O desassossego tomou conta dele e ele não pôde mais ficar em casa. Algo o impelia para longe, sempre mais longe, e ele presumia, que se fosse embora de vez seria melhor para ele.

Prometeu enviar uma vez e outra um bom dinheiro para o sustento das crianças; e assim ele foi embora. Por algum tempo cumpriu sua promessa e mandou o sustento, mas depois parou, e há seis anos ninguém sabia do seu paradeiro, se estava vivo ou morto.

Enquanto isso os dois velhos, envelheciam cada vez mais. O único meio de vida que lhes restou, eram os cestos que o vovô tecia das varinhas do chorão, e às sextas-feiras as entregava ao queijeiro, que as levava ao mercado com seus queijos e os vendia e dava o lucro ao avô. Muito o avô não recebia pelo seu trabalho, e a avó precisava repartir cada pedacinho de pão para passar de um dia para outro.

E agora o Stanli já estava com nove anos e o Sepli com quase sete. O Stanli já dava uma boa mão de ajuda ao avô em todos os negócios, porque já mais de quatro meses a avó estava doente, de cama e não podia ajudar em nada. Assim diariamente o avô e o Stanli preparavam as refeições, que não eram muito variadas, e não requeriam muita arte. Eles cozinhavam diariamente polenta e batata, e umas raras vezes cevada.

Assim mesmo o preparo requeria os dois na cozinha, pois o Stanli era muito pequeno para pegar numa panela, e o avô nunca sabia o que ia em seguida. Mas o Stanli o sabia bem.

Assim os dois trabalhavam juntos na pequena cozinha, e por hábito o pequeno Sepli também ficava de pé no canto do já pequeno espaço que nem quase os dois cabiam, e atrapalhava ora um ora outro, arregalando os olhos na expectativa das gostosuras que iam sendo preparadas. Nem o avô nem Stanli tentavam afugentar o pequeno Sepli, porque sabiam "que depois de dois minutos ele estava de volta no mesmo lugar, pois o Sepli tinha uma incrível perseverança para certas coisas."

Um sol agradável banhava a paisagem de Igreja Velha, e alguns raios caíram sobre a cama da avó, pela janela embaçada. E a avó suspirava: "Ó, Deus ainda nos manda um pouco de sol, quem me dera poder sair um pouco. Ainda não lamentaria tanto se a cama não fosse tão dura e o travesseiro sem recheio. Só penso no frio inverno que vem aí, e ficar deitada sobre estes sacos e com esta coberta ralinha e o travesseiro duro; eu vou morrer de frio, já agora sinto frio!"

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Tempos Felizes 24 "Não se preocupe antecipadamente pelo inverno", disse o avô consolando, "o nosso

Senhor ainda está vivo e cuidará de nós. Ele já nos ajudou outras vezes quando as coisas iam mal; isto você não pode esquecer. Que tal se fizermos uma cevada quentinha para você se esquentar um pouco?" Sim a avó gostaria de tomar uma xícara de cevada, e o avô abriu a porta que dava para a cozinha, esta saía do quarto onde estava a cama da avó, e atrás do fogão subiam uns degraus onde dormia o avô com as crianças.

O avô fez sinal para o Stanli e o Sepli logo se atirou atrás, pois ele veio ver o que de bom ia sair para comer. O avô tirou a chaleira da prateleira, pôs água, e aí perguntou: "Stanli, o que vem agora?" "Agora eu vou moer os grãos de cevada" disse Stanli. Pegou a velha moenda (máquina de moer) colocou uns grãos, sentou na banqueta e virou a manivela com toda força. Mas algo não o agradava, examinava de um e outro lado a moenda e finalmente puxou a gavetinha com todo cuidado.

Ali estava! Em vez do fino pó, os grãos quase inteiros. Instintivamente o Stanli ergueu a gavetinha aos olhos do avô e mostrou o desastre. O avô olhou, e disse baixinho: "É só não fazer alarme, para a avó não ouvir, senão ela lamenta e pensa que vai ficar para sempre sem cevada. Mas espere um pouco". Dizendo isto saiu da cozinha e logo voltou com uma pedra na mão, pôs os grãos de cevada num pedaço de papel e os malhou até ficarem partidos, então os jogou na chaleira.

Mas quando logo depois a avó recebeu a xícara na mão exclamou lamentando: "Ai, ai! os grãos estão nadando aos pedaços dentro da cevada, a moendinha está quebrada! Oh, se ela só tivesse durado ainda a minha vida, nós não podemos comprar uma nova!" Mas o avô a acalmou com voz branda: "Não te aflijas tanto avó, com paciência se conserta muita coisa". "Sim, mas não uma moenda", completou a avó atrás.

O Stanli e o Sepli também ganharam cada um uma caneca de cevada e uns pedaços de batata cosida. Pão eles só ganharam no domingo, cada um, um pedaço. Depois disto o avô buscou os cestos que ele havia trançado, amarrou dois punhados com cordinha entregando um na mão de cada criança, e mandou entregá-los, recomendando que não voltassem muito tarde. Os meninos já sabiam aonde ir, pois cada semana eles levavam uma remessa ao queijeiro. Este morava bem distante da aldeia, subindo as montanhas, passando perto da capelinha; bem no alto perto do mato ficava sua cabana.

Assim as crianças partiram, o Stanli sempre na frente seguindo o caminho sem desvios e o Sepli atrás querendo parar de vez em quando, para olhar isto ou aquilo. Só quando chegaram na capela o Stanli disse: "Põe aqui teus cestos no chão, agora vamos entrar na capela e orar um "Pai Nosso", os cestos podem ficar aqui fora".

Mas o Sepli era cabeçudo. "Eu não quero entrar, estou com muito calor". "Não Sepli, isto a gente tem por obrigação!" exortou o Stanli. Você não lembra que o pastor Clementino disse que todas as vezes que você passa numa igreja precisa entrar e orar um pouco? Levanta e vamos entrar". Mas o Sepli obstinadamente ficou sentado no chão. Mas o Stanli não deu sossego. Todo amedrontado tomou-o pela mão e ergueu. "Você precisa vir Sepli, assim as coisas não vão bem; você devia gostar de orar".

Neste instante alguém vinha subindo em direção da capela. De repente, o pastor Clementino estava diante das crianças. O Sepli num instante está de pé. "Sepli, Sepli", perguntou o pastor, gentilmente, ao passar a mão sobre sua cabeça, "o que eu ouvi? Você não quer obedecer ao Stanli quando ele lhe convida a entrar na capela? Vou lhe dizer uma coisa:

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Tempos Felizes 25 Veja, não é uma obrigação entrar na igreja e orar ao Senhor, mas um privilégio que Ele nos dá. E todas as vezes em que oramos, Ele nos dá alguma coisa, embora não possamos ver logo".

O bom pastor seguiu seu caminho e o Sepli sem protestos entrou na capela com seu irmão Stanli e orou reverentemente. Quando as crianças saíram depois de algum tempo ouviram vozes alegres no meio do silêncio subindo o morro, e logo viram surgindo três cabeças: a primeira é uma menina e os outros dois, meninos, e com grande admiração olham uns para os outros.

Capítulo 2

Novas Amizades A menina que surgiu primeiro era a maior e tinha uns onze anos, e o irmão

aproximadamente um ano mais novo, enquanto o outro era bem menor e gorduchinho. A menina foi logo em direção aos meninos dizendo: "Como vocês se chamam?'" Os meninos mencionaram seus nomes. "De onde vocês são?" continuou a perguntar. "De Igreja Velha, dá para ver a torre daqui" e com o dedo Stanli apontou lá para a torre da 1greja, que por ser vermelha se via à distância entre as montanhas. "Então vocês têm uma igreja, uma igual a esta? Nós também temos. Mas capela igual a esta nós não temos", disse a menina. "E lá tem outra! veja Gundi, lá perto da mata". A menina apontou com o dedo lá para cima, e o irmão fez sinal com a cabeça, como quem viu.

"Eu só queria saber por que vocês têm tantas igrejas – em cada cume uma", comentou a menina. E Stanli respondeu apressado: "Para a gente entrar e orar quando passa em frente!"

"Isso a gente pode fazer mesmo sem igreja", objetou a menina, e acrescentou, "a gente pode orar em qualquer lugar onde se está, e eu sei que Deus ouve isto". "Sim, mas a gente não lembra, até que vê a igreja, então a gente entra e ora", disse Stanli muito sério.

"Agora nós precisamos ir", disse o irmão que achou aquela conversa muito demorada. Mas Lissa não estava com pressa, ela gostava de fazer novas amizades, e ela gostou do

Stanli pelas respostas precisas que ele dava. E agora ele tinha dito algo que a Lissa não soube contradizer. Era realmente assim, nunca passou na mente de Lissa agradecer ao bom Deus quando estava passeando assim alegre, mesmo que tinha dito ao Stanli que o podia fazer em qualquer lugar.

De repente Lissa teve uma impressão bem diferente do que seja uma igreja. Até aquele momento, Lissa olhava para a igreja como uma construção que há muito haviam colocado lá, mas nunca imaginou que cada igreja tinha uma mensagem para cada um que passa em frente. Era como se cada torre de igreja apontasse para Deus no céu, dizendo: "Ali ela está para você se lembrar de Mim!"

Enquanto Lissa seguia assim seus próprios pensamentos, Stanli continuou: "E isto não é como uma ordem, mas como um privilégio de entrar e orar. Porque todas as vezes que assim fizermos, o Senhor Deus nos dá alguma coisa, embora a gente não o possa ver na hora. O pastor Clementino é quem disse".

"Mas eu queria alguma coisa que eu pudesse ver na hora", disse agora o Sepli que fincado ao lado de Stanli escutava atentamente.

"Você também conhece o pastor Clementino?" perguntou Lissa toda alegre. Porque este também era bem conhecido do outro lado do rio, por todas as crianças, e era amigo de todos. E Stanli informou: "Ele mora em Igreja Velha no fim da aldeia na casa velha e comprida atrás da

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Tempos Felizes 26 igreja, e ele vai muitas vezes lá em casa". E o Sepli acrescentou: "e de vez em quando ele traz um pão inteiro para a vovó".

Pois este fato ele gostava muito de recordar. "Agora temos que ir, ainda é longe até o queijeiro" disse Stanli, pegando seus cestos, e entregando os de Sepli na sua mão.

"Vocês não gostariam de visitar a gente em Monte Pio?" perguntou Lissa que queria dar continuidade àquela amizade. "Eu nem sei o caminho, nunca estive do outro lado do rio", disse Stanli. "Ah! isto é fácil" disse Lissa, "vem um domingo à tarde para a gente brincar. Você só precisa atravessar a ponte, depois subir, subir até bem no alto. Lá é o Monte Pio, e a casa pintada de branco com jardim bem grande é a nossa. Vai lá um dia!"

As crianças se separaram, o Stanli subiu a montanha com o Sepli, e Lissa olhou para os irmãos que sumiram da vista. Gundi subiu numa árvore ao lado da capela e se balançava num galho podre, que rangia assustadoramente, e Lissa olhava se o galho junto com Gundi vinha logo para baixo. Não muito longe estava o pequeno e gorducho Carlinhos deitado na relva dormindo um sono profundo, e os chamados de Lissa, para que se levantasse para ir embora lhe passaram desapercebidos.

Mas agora algo vinha descendo a montanha que fez Gundi descer do galho e pôs o pequeno Carlos num pulo de pé. Era um grande rebanho de ovelhas. Grandes e pequenas, velhas e novinhas. Todas se moviam, pulavam corriam misturadas e baliam. Ladeando o cão pastor latia alto para não deixar nenhuma se extraviar do rebanho. O pastor passou pelas crianças tocando seu rebanho em direção à Igreja Velha.

Os três em muda contemplação observavam o rebanho, e seus olhos não conseguiam captar o suficiente dos pinotes dos graciosos cordeirinhos perto de suas mães, e como estas olhavam com cuidado pelos filhotes balindo carinhosamente para os manter perto de si.

Quando todo rebanho tinha passado e só as ovelhas velhas seguiam atrás, o gorducho Carlinhos suspirou profundamente saindo de seu êxtase e disse: "Se nós tivéssemos uma ovelhinha destas!" Era exatamente isto que Lissa e Gundi também estavam pensando no mesmo momento e os três concordaram, o que raramente acontecia. Lissa propôs voltarem para casa depressa, e pedir tanto ao pai e à mãe, até que lhes dessem um carneirinho assim.

E Lissa dando asas a sua imaginação foi falando como seria se tivessem um carneirinho para o levar passear e dar comidinha, e ver ele dar pinotes e correr alegre pelo campo, e eles dando folhinhas verdes para ele comer. Tão entusiasmados estavam com a nova idéia, que desceram o caminho até o rio e atravessaram a ponte numa carreira só, Lissa na frente, só pararam quando já estavam do outro lado.

O Gundi e Carlinhos vinham atrás, a ponte tremia e balançava e o pequeno Carlinhos quase perdeu o equilíbrio, só não caiu no caudaloso rio porque enroscou o pezinho numa tábua solta, estatelando-se de comprido na ponte. Gundi voltou e pegou o Carlinhos pela mão, levando-o a salvo até o outro lado.

A subida até Monte Pio era íngreme e longa. Levaram quase uma hora até chegar no topo onde avistaram sua casa, com as luzes na sala acesas, pois enquanto isso escurecera completamente.

Já há uma hora a senhora do juiz andava preocupada para cá e para lá, indo da sala para o quarto e dali para o jardim, olhando ao redor, voltava e depois fazia a mesma ronda. Desde a hora do almoço não havia visto mais as crianças, e na hora do lanche às quatro horas deviam estar em casa como de costume. A mãe havia dado permissão, para passearem à tarde no parque florestal, saíram logo depois do almoço. Mas agora já havia escurecido e nem som de vozes se

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Tempos Felizes 27 ouvia das crianças. Por que será que se haviam atrasado tanto? Ou teria acontecido algo ao Carlinhos o menorzinho?

Dentro da mãe se erguia uma inquietude que aumentava a cada minuto, e ela andava inquieta para dentro e para fora e da janela à porta. Agora sim – isto eram vozes conhecidas lá de baixo. A mãe correu para fora, lá vinham eles subindo o morro, e quando avistaram a mãe, um correu mais depressa que o outro para ver quem chegaria primeiro, para contar as novidades. O pequeno Carlinhos, é claro ficou para trás. Lissa e Gundi alcançaram a mãe ao mesmo tempo, e tagarelaram sem parar. Mas ao mesmo tempo lá de dentro soou uma outra voz: "Preparem-se para o jantar, a comida está na mesa."

Era a voz do juiz, que chegando em casa zelava pela estrita ordem do lar. Quando todos estavam ao redor da mesa, e proferida a oração pelo pai, continuaram as conversações. Mas agora eles tiveram que contar primeiro onde andaram, e por que na hora do lanche não apareceram como era seu dever.

Finalmente Lissa confessou que lá na mata ficaram entediados; aí subiram até o velho carvalho e de lá avistaram o rio, o caminho que sobe do outro lado e a capelinha, e sem pensar muito começaram a excursão para ver como seria ver de perto tudo aquilo.

Depois de terem relatado tudo e terem recebido a devida repreensão, a conversa tornou-se mais alegre. Contaram do encontro com os meninos, da capela, do rebanho de ovelhas e por fim a cômica corrida sobre a ponte e o tombo do Carlinhos, e como resultado o pai proibiu severamente outra expedição como esta. O pai já havia usado várias vezes seu poder em protesto a tal ponte, mas até agora sem resultado.

"Carlinhos o gorducho está descansando de seus labores e creio que o vosso labor também está terminado", disse o pai, sacudindo o Carlinhos que neste ínterim pegou no sono como resultado do seu esforço da tarde.

Não era tão fácil interromper este primeiro sono, então o pai pegou o Carlinhos com a cadeirinha, e o levou ao quarto de dormir, e os dois seguiram rindo às gargalhadas. Por fim chegou a mãe, que com muito custo acordou o pequeno e o fez ir para a caminha, e pôs os outros dois para dormir também.

Daquele dia em diante não passou um desjejum, almoço ou jantar em que as crianças não apresentassem um após outro nos mais variados tons de vozes, pedindo sempre e repetidamente. "Se nós tivéssemos um tal carneirinho!" até saturar o juiz.

Numa noite em que a mãe estava sentada com as crianças à mesa ajudando nas tarefas escolares e o Carlinhos repetiu já pela sexta vez: "Se nós tivéssemos um carneirinho", o pai abriu a porta e para dentro veio correndo um carneirinho vivinho, o bichinho era coberto de lã branquinha e limpa, era uma gracinha. Seguiu-se uma tal festa e barulheira que ninguém entendia a própria palavra, e o carneirinho corria ofegante de um canto para outro, porque não encontrava um refúgio, e os três atrás dele aos gritos de alegria. De repente soou a voz forte do pai: "Agora basta! por hora a ovelhinha vai para seu cercado na cocheira e vocês cheguem aqui e escutem o que tenho a dizer".

As crianças tiveram permissão de levar o carneirinho para seu lugar de repouso, pois estavam curiosos onde era o cercado e como parecia. Lá estava um cercadinho de ripas novas com palha bem fofinha, junto da cocheira dos cavalos. Ali deitaram o carneirinho. Também tinha um pequeno cocho, para pôr capim e aveia, e outras coisas que o animalzinho gostava.

Depois que o carneirinho estava bem calmo deitado no seu lugar, o pai disse que agora ele precisava dormir e descansar, fechou a portinha, e fez sinal para as crianças o seguirem.

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Tempos Felizes 28 Na sala, o pai colocou os três diante de si e erguendo o dedo falou muito sério: "Agora

ouçam e pensem nisto. Eu tirei este carneirinho da mãe dele para o dar de presente a vocês. E vocês têm que substituir a mãe, cuidar dele carinhosamente, para ele não sucumbir de saudades de sua mãe. Vocês têm permissão de, em cada hora livre tirá-lo do cercado, brincar ou passear com ele, podem levá-lo para pastar, para ele procurar o capim que ele gosta, podem levá-lo onde vocês quiserem, mas nunca o podem deixar sozinho, nenhum instante sequer. Ele é muito pequeno e se perderá facilmente; não encontrando seu cercado pode perecer miseravelmente. Quem o tirar do cercado fica responsável, até ele estar de volta no seu lugar. Entenderam bem o que eu disse ou vocês preferem que eu o devolva à sua mãe?"

As crianças em conjunto prometeram solenemente cumprir com todas as exigências impostas, mas que por nada devolvesse o carneirinho. O pai ainda recomendou novamente: "aquele que o tirar do cercado tem por obrigação o levar de volta". Cada um deu a mão para o pai em sinal de cumprimento da promessa. Estavam tão encantados com o carneirinho, que ainda muito tempo depois na cama falaram do acontecido sem poder conciliar o sono.

Até o gorducho Carlinhos sentado na caminha repetia vez após vez: "O pai vai ver como vou cuidar do carneirinho, ele não vai passar fome, eu vou tratar dele."

Cap . 3

O Que Acontece Quando se Guarda Segredo

A questão principal no dia seguinte era, dar um nome ao carneirinho. Lissa sugeriu

"Eulália", porque esse era o nome do gato de sua amiga, e lhe parecia muito lindo. Mas os irmãos não concordaram - o nome era muito comprido. Gundi sugeriu "Nero", o nome do enorme cão que guardava o moinho de trigo. Mas Lissa e Carlinhos não gostaram; um carneirinho tão gracioso não podia ter o mesmo nome do cão de cara achatada e feia.

Assim foram pedir conselho para a mãe; esta achava que o nome devia ser de acordo com as propriedades do animalzinho e sugeriu: "Que tal Crespinho?" Logo concordaram com este nome, e assim o chamaram doravante.

A alegria pelo pequenino carneirinho tão branquinho e crespinho era superior a todas as outras alegrias e brincadeiras. Em cada hora livre era tirado do cercado e levado daqui para lá.

Uma vez os três saíram juntos, e levaram o Crespinho a pastar. Enquanto ele deitava a cabecinha confiantemente no colo de Lissa os dois meninos saíram correndo buscar folhinhas verdes e macias que o animalzinho comia com gosto, da mão, e balia satisfeito.

Outras vezes uma das crianças o tirava do cercado para um passeio, quando iam ao mando da mãe, ao padeiro ou ao moleiro ou na lavanderia, e o carneirinho ia satisfeito ao lado de quem o guiava, e até parecia entender a conversa de Lissa e Gundi, mas era amigo principalmente de Carlinhos.

Respondia com pequenos balidos e olhava às crianças de uma maneira tão compreensiva que não restava dúvida para eles que Crespinho entendia tudo. Diariamente Crespinho se tornava mais confiante e carinhoso com as crianças, parecia ver nelas sua própria mãe. Também as crianças o amavam cada vez mais, o tratavam e cuidavam dele, e no fim de cada passeio o levavam de volta para seu cercado e o deitavam na palha limpinha e fofinha.

Com tal tratamento o Crespinho se desenvolvia esplendidamente, ficou gordinho e sua lã crespinha e bem tratada, parecia estar sempre em roupinha de festa.

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Tempos Felizes 29 Assim passou o ensolarado verão suíço e o mês de novembro veio tão rápido que as

crianças nem perceberam. Agora já se podia falar de Natal, pois já no mês seguinte seria a festa. Gundi e Carlinhos, reuniram as alegrias do presente com a expectativa do futuro e gozavam assim uma dupla alegria.

Eles faziam o Crespinho participar de sua alegria, e em cada passeio falavam das maravilhas que a festa de Natal traria. O Crespinho partilhava da conversa, e os meninos lhe diziam que ele também teria sua parte nos presentes natalinos.

Assim os três viviam suas esperanças e alegrias e se tornavam cada dia mais amigos. Lissa era diferente; quando havia uma grande alegria à vista, se tornava um pouco febril, e

seus pensamentos se ocupavam somente do presente, esquecendo velhas amizades. Acontece que Lissa tinha uma boa amiga, a simpática Mari, que morava não muito distante, descendo o morro, numa grande casa colonial. Mari sempre concordava alegremente com todas as idéias de Lissa. A esta amiga Lissa queria visitar. Trocar idéias sobre presentes, partilhar suas esperanças, pois com a amiga podia fazer isto melhor do que com seus irmãos.

A mãe lhe permitiu fazer a visita, e na primeira tarde de folga Lissa foi vê-la. Impaciente ela esperou a mãe lhe colocar um chalé sobre os ombros, pois o vento frio de novembro tornou isto necessário. Ela saiu correndo e a mãe a acompanhou com os olhos, até Lissa desaparecer morro abaixo; então ela fechou a porta.

Nesse instante veio à mente de Lissa que o caminho é longo, e que poderia levar o Crespinho para lhe fazer companhia, se é que os irmãos já não o haviam levado. Apressadamente deu meia volta, correu ao cercadinho e lá encontrou Crespinho deitado sobre a palha; tirou-o, colocou a coleira, e desceu o caminho. O vento espalhava as folhas de outono ao seu redor. Em pouco tempo, sempre correndo, chegaram ao destino.

Logo Lissa passeava com sua amiga conversando no jardim ensolarado enquanto Crespinho comia os tenros brotos da cerca do jardim.

As amigas se deliciaram comendo suculentas pêras e maçãs, pois a mãe de Mari havia trazido um cesto cheio, e o que sobrasse Lissa devia levar para casa; assim era o costume de há muito tempo, pois lá cresciam pereiras e macieiras em grande quantidade.

Quando chegou a hora de Lissa voltar, a amiga se dispôs a acompanhá-la um pedaço de caminho, pois ainda havia tanto a conversar, e quando chegaram no topo do morro de onde já se avistava a casa de Lissa, acharam que a tarde passou voando. Mari se despediu de Lissa e desceu o morro correndo, pois escurecia rapidamente.

Chegando ao portão de casa um pensamento como um raio lhe passou na mente: "Onde está o Crespinho?" Ela sabia, que o havia levado e o vira pela última vez comendo na cerca, depois o esqueceu e nem olhou mais para ele. Tremendo de susto lançou-se morro abaixo, chamando para todos os lados: "Crespinho! Crespinho! Onde você está? 0h! atende e vem!" mas tudo permaneceu em silêncio; o Crespinho não apareceu. Lissa correu até à casa colonial, já havia luz na sala; do piso de fora dava para olhar lá dentro. Estavam todos sentados à mesa jantando. Os pais, Mari, e seus irmãos, a cozinheira, o gato deitado sobre o fogão, mas em parte alguma se via o Crespinho.

Lissa correu ao redor da casa, pelo jardim, vasculhou toda a cerca e tornou a cruzar o jardim, revistou a cerca do lado de fora, sempre chamando, "Crespinho vem, oh! Crespinho responda!" Tudo em vão! Do cordeirinho não se via nem se ouvia nada, nenhum rastro. No coração de Lissa o medo aumentava, e escurecia sempre mais, e o vento soprava mais forte empurrando Lissa.

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Tempos Felizes 30 Ela voltou para casa, pois nada mais havia que fazer, e o pior: ela não poderia contar que

perdera o Crespinho, pois foi ela quem o esqueceu. Mas para a mãe ela iria contar. Ela correu morro acima o quanto agüentava. Em casa todos já estavam preparados para a janta e o pai já estava em casa. Lissa entrou na sala tão despenteada, suada e corada, que a mãe disse: "Deste jeito você não virá à mesa filha, vá se arrumar antes," e o pai acrescentou: "Tão tarde você nem devia chegar em casa; agora vá e volte transformada, pois assim como você está nem janta tem."

Lissa obedeceu; não se importava pela comida, preferia nem aparecer mais na sala; mas isto não era possível. Desalentada veio para seu lugar à mesa; o medo do que ainda viria, e as perguntas que ela ainda teria que responder a atormentavam. Mas antes de alguém lhe dirigir a palavra, a atenção de toda família foi ocupada por um outro fato.

João o cocheiro, enfiou a cabeça pela porta dizendo: "Com licença senhor juiz, as crianças estão todas em casa conforme diz a Maria na cozinha, mas o carneirinho não está no cercado." "O que?" O juiz gritou furioso. "Não está aí? Quem o tirou? Quem foi?" "Eu não!" "Eu não!" "Eu não fui, certeza!" "Nem eu!" Gundi e Carlos gritaram juntos tão ruidosamente que nem deu para perceber se Lissa gritara também ou ficara calada.

A mãe quis acalmar dizendo: "Não tão tempestuosos. A Lissa com certeza não foi, pois ela saiu depois do almoço sozinha para visitar sua amiga e só voltou agora há poucos minutos". "Então tem que ser um de vocês dois", entrou o pai na conversa, testando seus dois filhos com olhar severo. Mas uma gritaria infernal lhe soltou aos ouvidos: "Eu não - eu não!" "Certeza que não fui eu!" E os dois encararam o pai com olhos arregalados e honestos, que o pai logo exclamou. "Não, eles não foram. Então o João deixou o cercado aberto e ele escapou por descuido mas isto não me parece ser o certo, eu tenho que verificar por mim mesmo". O pai deixou a sala e foi até a cocheira.

Agora que protestos e defesas tinham passado o caso tomou um outro aspecto. De repente o Carlinhos pôs o braço sobre a mesa, deitou a cabeça e começou a soluçar alto dizendo: "Agora o Crespinho está perdido, agora não o temos mais! Ele vai morrer de fome e frio!" Gundi também o seguiu e chorando alto dizia: "Agora está esfriando mais e o Crespinho não tem nada que comer tem que morrer de frio no relento!" No fim Lissa também chorava, gemia mais do que os dois, ela não disse palavra, mas deu para notar quão mais sentido era seu choro do que o dos irmãos; ela devia saber por quê.

Ainda muito depois, quando Gundi e Carlos já haviam adormecido e sonhavam coisas alegres com o Crespinho, Lissa continuava deitada, agitada sem poder conciliar o sono. Não só de dó do Crespinho que agora com medo e abandonado lá fora na noite fria vagava perdido e angustiava, mas ela era a culpada, e ainda guardava silêncio, quando devia ter contado tudo.

Por certo Lissa não gritou: "Eu não! Eu não!" mas guardou silêncio quando a mãe disse: "Lissa não pode ter sido". A menina sabia bem, que com o seu silêncio cometeu a mesma injustiça como se tivesse dito uma mentira. Lissa se sentia desditosa e não encontrava paz, até que ela resolveu, logo cedo, contar tudo à mãe, pois ainda Crespinho podia ser encontrado.

A manhã seguinte foi ensolarada e todos resolveram, que depois da escola, sairiam à procura de Crespinho, pois ele tinha que estar em algum lugar. E todos estavam convencidos de que o carneirinho até à tarde seria achado.

A mãe para consolá-los disse que o pai tinha mandado João sair à procura do animalzinho, assim havia muita esperança de que ele seria encontrado. Lissa é quem mais se alegrou com essa possibilidade e pensou que não precisava contar nada, enfim tudo terminaria bem.

Page 31: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 31 Naquele dia em todo Monte Pio se procurava pelo carneirinho, se perguntava em todas as

casas, mas era como se o animalzinho tivesse sumido do mapa. Ninguém o tinha visto, nem rastro se achava dele. A busca ainda durou mais alguns dias, mas tudo em vão. Agora o juiz declarou, que não havia mais nada que fazer, ou ele já não estava mais vivo, ou estava perdido para sempre.

Alguns dias depois caiu a primeira neve e tão grandes e contínuos eram os flocos que em pouco tempo o jardim estava coberto de neve, até a metade da cerca. As crianças sempre se alegravam com a primeira neve e jubilavam mais com os floquinhos que rodopiavam lá fora.

Agora todos estavam calados e um depois do outro olhavam pela janela pensando no Crespinho: "Se ele estiver deitado debaixo da neve fria ou quiser atravessar a neve e não puder e com fraco balido estiver chamando por ajuda e ser humano nenhum ouvir e acudir!"

Quando naquela noite o pai chegou em casa dizendo: "Esta noite vai fazer um frio de amargar, agora a neve já está congelada, e se este animalzinho ainda estiver vivo esta noite ele vai morrer congelado. Se eu só não tivesse trazido este pobre bichinho aqui para casa!".

O Carlinhos caiu num choro tão lamentoso e Lissa e Gundi tomados pela mesma dor o acompanharam; era de doer o coração! O pai abandonou a sala e a mãe consolou como só as mães sabem consolar. Daquele dia em diante o juiz nem tocou mais no assunto. E a mãe falava às crianças da linda festa de Natal, quando eles recomeçavam os choramingas pelo Crespinho.

Ela dizia que Jesus veio para alegrar todos os corações, e que logo viria esta festa e traria paz e alegria para todos. E quando o sentimental Carlinhos nas noites geladas e escuras recomeçava suas lamúrias dizendo: "Se só o Crespinho não estivesse lá fora tremendo e morrendo de frio!", então a mãe consolava: "Em vez de pensar que o Crespinho está morrendo de fome e frio, vamos orar a Jesus, pois Ele também cuida dos animaizinhos. Pode ser que Jesus preparou para ele uma cama fofinha de palha e comida bastante e que ele esteja passando bem. E, se o Crespinho não está mais conosco, vamos pensar que alguém o achou e esteja tratando dele assim como nós fazíamos. Vamos deixar o Crespinho inteiramente entregue aos cuidados de Jesus".

Gundi também ouvia atento quando a mãe consolava assim o pequeno Carlinhos, e assim aconteceu, que aos poucos os irmãozinhos se tornaram alegres deixando o carneirinho aos cuidados de Jesus, e se alegraram com a festa de Natal que estava próxima.

Mas Lissa não recobrou a alegria; sobre ela pesava a culpa e a consciência não tinha paz. Ela imaginava que nunca mais na vida conseguiria ser alegre e feliz. À noite ela sonhava que via o Crespinho lá fora na neve morrendo de frio, arregalando os olhos para ela dizendo: "Você fez isso". Então Lissa acordava chorando, e de dia quando ela queria participar da alegria dos irmãos não conseguia, pois sempre pensava: "Se os dois soubessem o que ela fez a culpariam sempre!"

Ao pai e à mãe ela nunca mais podia olhar nos olhos, pois ela deixou de confessar o que lhes devia ter contado; agora ela não conseguia falar mais, pois por tanto tempo os deixou na crença de que ela nada sabia sobre o caso.

Assim Lissa não teve mais um momento alegre, e cada dia ela parecia mais triste e lamentosa. E quando Gundi e Carlos se acercavam dela dizendo:

"Alegre-se; o Natal está cada dia mais perto, pensa em tudo o que vai acontecer!" Então os olhos de Lissa se enchiam de lágrimas e ela dizia: "Não posso me alegrar mais nunca, nunca mais, e nem para o Natal". Isto era demais para o Carlinhos e todo condoído dizia: "Veja Lissa

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Tempos Felizes 32 quando a gente não pode fazer mais nada, a gente entrega tudo aos cuidados de Jesus e então a alegria volta, se a gente não fez nada de mal- a mãe que disse".

Aí que Lissa chorava mais ainda, e Carlinhos ficava apavorado e saia correndo, assim como o Gundi já fez também, pois este achava muito estranho o fato de Lissa ter mudado tanto. Também para a mãe esta mudança não passou despercebida. Muitas vezes ela observava Lissa por muito tempo mas não lhe dirigia pergunta alguma.

Capítulo 4

O Presente Que Deus Dá O mês de novembro estava findando, a neve já aumentava muito e o frio era cada vez mais

intenso. A vovó em Igreja Velha puxava pelas pontas de seu ralo cobertor pois não conseguia se esquentar mais debaixo do mesmo. O quarto também era frio pois só havia um pequeno resto de lenha para o fogo; nessa neve não se achava sequer um graveto.

Cevada se tomava raramente, e os grãos eram triturados com uma pedra. A moendinha estava para sempre inutilizada e dinheiro para comprar uma nova não havia, A pobre vovó tinha muito que reclamar e lamentar. O vovô geralmente sentado no banquinho perto do fogão consolava a queixosa, enquanto trançava os cestos das varinhas do chorão.

Enquanto nevava e a neve permanecia fofa, o vovô mesmo levava os cestos ao queijeiro, pois se mandasse as crianças elas ficariam presas na neve, não havia caminho visível lá para a montanha. Até o avô tinha dificuldades para caminhar na neve de tanto que afundava nela.

Mas agora o céu clareou e os grandes campos de neve, longe e perto estavam congelados e podia se caminhar sobre eles como em chão firme; e mesmo debaixo dos pés de homens pesados a neve não cedia.

Agora as crianças podiam ser mandadas para fazer as caminhadas. O Stanli amarrou um pano na cabeça e o Sepli pôs o gorro de lã, assim eles saíram cada um com uma porção de cestos no braço. Quando após meia hora de caminhada chegaram à capelinha, o Stanli pôs seus cestinhos no chão e pegou o Sepli na mão para entrar.

Mas o Sepli bancou o teimoso: "Eu não vou, eu não quero orar agora, eu estou com frio nos dedos", e fincou os pés no chão para o Stanli não o conseguir puxar. Mas o Stanli puxou, falou, relembrou aquilo que o pastor Clementino tinha dito, ficou tão aflito como se o Sepli o estivesse privando de uma grande bênção. O Stanli já ouviu e conheceu tanto a pobreza e miséria que lhe parecia uma grande felicidade e consolo entrar e orar assim ao Pai do Céu, que ajuda a todos os pobres.

Finalmente o Sepli cedeu, e eles entraram na silenciosa capela. O Stanli fez reverentemente sua oração. De repente um estranho lamento quebrou o grande silêncio. Um pouco assustado o Stanli se voltou para o Sepli e disse baixinho: "Não faz assim; na capela você tem que ficar em silêncio". E em igual voz abafada o Sepli respondeu: "Eu não fiz nada, foi você quem fez". No mesmo instante o lamentoso gemido soou de novo, só um pouco mais alto.

Page 33: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 33 De repente o Sepli pegou o Stanli pela mão e o puxou com força em direção ao altar. Meio

coberto pela toalha da mesa do altar, debaixo da qual havia se escondido, estava deitado um carneirinho branquinho, tremendo e gemendo de frio, esticando suas perninhas finas como se de cansaço não conseguia fazer mais um movimento sequer.

"Isto é uma ovelha, agora nós ganhamos um presente que a gente pode ver", disse o Sepli alegre. O Stanli olhava com grande admiração para o animalzinho, também ele imediatamente lembrou das palavras do pastor Clementino, e ele creu, que Jesus que atende cada oração lhes havia mandado a ovelhinha de presente. Ele começou a acariciar a ovelhinha, para mostrar que ela não precisava temer, mas ela quase não se mexia, só de vez em quando soltava um lamentoso balido.

"Vamos para casa e dar uma batata, ele está com fome", disse o Sepli, pois ele conhecia bem esse mal que o atormentava de vez em quando, fazendo o gemer idêntico. "O que você acha Sepli? Nós temos que ir ao queijeiro", lembrou o Stanli, sempre cumpridor dos deveres. "Mas não o podemos deixar aqui sozinho", e pensativo olhava para a ovelhinha que respirava ofegante. "Agora já sei", continuou Stanli pensativo, "assim a gente pode fazer, você fica aqui cuidando da ovelhinha, e eu corro o mais que posso, e levo os cestos na casa do queijeiro e volto; aí a gente leva o animalzinho para casa". O Sepli concordou satisfeito, e logo o Stanli saiu correndo morro acima.

O Sepli sentou no chão e com satisfação contemplou o seu presente. A ovelhinha tinha uma lã fofinha e branquinha e confiante ele enfiou sua mão fria na lã quentinha que logo esquentou; então esquentou também a outra mão, e agora ele chegou bem pertinho, a ovelhinha parecia um forninho para ele. Embora ela também tremesse de frio sua lã oferecia um calor gostoso para o Sepli.

Em menos de meia hora o Stanli voltou correndo, e agora as crianças queriam alegremente levar seu presente para casa e mostrar para o avô e a avó. Mas em vão fizeram a ovelhinha ficar de pé; ela estava tão fraquinha que logo caiu gemendo. "A gente tem que carregar", disse o Stanli, "mas é muito peso para mim, você tem que ajudar". E ele mostrou ao Sepli como ele teria que pegar na ovelha para não a machucar, e assim a carregaram para casa.

Iam andando vagarosamente, pois era bastante incômodo, a posição para carregar em dois a carga. Mas os meninos estavam tão felizes com seu presente que não desanimaram até chegar em casa e entrar na cozinha com a surpresa.

"Nós ganhamos uma ovelha, uma ovelha viva com lã bem quentinha", o Sepli já gritou na entrada, e dentro da cozinha, para surpresa do avô deitaram o animalzinho em cima do banquinho. Agora o Stanli também começou a falar, e narrar como tudo aconteceu, e como o pastor Clementino sempre dizia, que todas as vezes que a gente ora, Deus dá alguma coisa, só que nem sempre se vê na hora, mas depois isto aparece. "Mas hoje a gente pôde ver", interveio o pequeno Sepli todo alegre.

O avô olhou para a avó, se esta diria alguma coisa, mas ela só disse: "O que você acha disso avô? Diga uma palavra!" Depois de pensar um pouco o avô falou: "Agora será preciso ir à casa do pastor Clementino e perguntar como interpretar isso, não sei o que ele queria dizer com isso. Eu penso que vou eu mesmo". Dizendo isso se levantou; tomou seu velho gorro enfiou na cabeça e se foi.

O pastor Clementino voltou com o avô. Depois de cumprimentar a avó e lhe dizer umas palavras de conforto, ele se sentou perto do exausto carneirinho e o contemplou longamente. Então, pôs o Stanli e Sepli diante de si e disse:

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Tempos Felizes 34 "Vejam crianças, assim é quando se ora a Deus. Ele nos dá um coração alegre e confiante,

e isto é uma dádiva maravilhosa e disto dependem muitas outras coisas. Mas esta ovelhinha aqui, se perdeu, deve pertencer àquele grande rebanho que desceu das montanhas por último, já no outono, e o pastor deve estar à sua procura. Deve estar perdido há muito tempo, pois ele está quase morto de frio e fome. Pode ser que a gente nem consiga fazer ele reviver. Em primeiro lugar temos que dar para ele um pouco de leite morno, e depois ver o que se pode fazer".

O bom pastor, ao dizer estas últimas palavras ergueu um pouco a cabeça do carneirinho e pôs sua mão por baixo. Com ânimo forçado o avô disse: "Vamos fazer o que podemos. Stanli veja se há ainda um pouco de leite". Mas o pastor barrou a saída do Stanli dizendo: "Eu não quis dizer isso, se vocês concordam eu levo o carneirinho comigo, tenho lugar e posso cuidar dele".

Isto foi um grande alivio para os dois velhinhos, pois não queriam que o animalzinho morresse de fome, mas de onde tirar alguma comida para ele, é o que eles não sabiam. Assim o pastor tomou o frágil carneirinho nos braços e foi para sua casa. O Sepli olhou muito tempo atrás dele resmungando alguma coisa.

Depois de alguns dias, o avô viu o pastor vindo em direção de seu casebre e disse: "Por que você acha que o bom pastor vem outra vez aqui?" "O carneirinho deve ter morrido, e por certo quer nos dizer que não devemos esperar do pastor qualquer gratificação", disse a avó. O pastor entrou, via-se na sua expressão que não trazia boas notícias.

O Stanli e Sepli logo vieram cumprimentá-lo estendendo a mão; ele lhes fez um carinho e disse baixinho ao avô: "Seria bom mandar os meninos sair um pouco, tenho algo a vos dizer". O avô se sentiu um pouco desconcertado, e pensou consigo: "Se eu pudesse distrair um pouco a avó para ela não ouvir se algo de ruim for dito". Assim ele deu a jarra de zinco ao Stanli e disse: "Vai com o Sepli buscar o leite; se ainda for um pouco cedo vocês esperem dentro da cocheira do vaqueiro - ali é bem quentinho".

Depois que as crianças foram, o pastor puxou a cadeira perto da cama da avó e disse: "Chegue também mais perto avô, tenho algo para vos dizer, e o faço desgostoso: O José vosso filho, aprontou alguma coisa".

Mal estas palavras foram ditas a avó caiu num enorme pranto, e chorando repetiu: "Ah! meu Jesus por que eu ainda tinha que passar por isso!? Era minha última esperança que o José se regenerasse e um dia voltasse para casa, e cuidasse de nós na velhice, agora tudo está acabado. Talvez ainda temos que sofrer uma grande desgraça, no entanto nós trabalhamos e vivemos honestamente até a velhice. Ah, eu não queria me queixar de nada mais, e ficar deitada na minha cama dura e nunca mais tomar uma xícara de cevada. Se só não acontecesse isto agora com o Jos!"

Também o avô ficou ali sentado acabrunhado e abatido. "O que ele fez pastor?" perguntou ele tímido, "é muito mau?" O pastor disse, que nem sabia ao certo o que era, só sabia que o José fez alguma coisa lá do outro lado do rio e agora ele estava em questão com a justiça em Monte Pio e que provavelmente ele ia para a cadeia.

"Ah, meu senhor, lá do outro lado ele aprontou?" A avó começou novamente a lamuriar". Ai, como vão judiar do meu filho! O juiz é muito severo!" "Não, não, não é assim avó", explicou o pastor, "o juiz é severo sim, mas muito justo, é um homem muito ponderado. Eu o ouvi pessoalmente muitas vezes dizer que para ele fazer justiça tem que temer a Deus e ler a Bíblia para aprender a fazer justiça com o Juiz de toda terra. Eu já o conheço há muitos anos, disse o pastor, e já passei muita horinha agradável com ele e sua mulher em conversação, e se

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Tempos Felizes 35 passo muito tempo sem ir lá, me sinto atraído a ir de novo, até estou pensando em ir lá, e ver o que houve com o José e intervir com uma boa palavra em favor dele".

Com estas perspectivas os dois velhos se sentiram gratos e animados. Só mais uma vez a preocupação voltou à mente da avó, e ela tornou a lamentar: "Talvez todo esse mal nos sobreveio por minha culpa, porque eu lamentei e reclamei tanto por coisas mesquinhas. Mas por certo não o quero fazer mais, mas pacientemente suportar todos os revezes. Acha o senhor pastor que Deus aceita minha penitência e não me castigará muito pastor?" O pastor consolou a avó, e a animou a continuar com seu bom propósito.

O ministro se levantou e disse que voltaria tão logo fosse a Monte Pio e tivesse algo a relatar. O avô acompanhou o pastor até à porta; aí ele perguntou: "E como está o carneirinho? Ainda está vivo ou já morreu?" "Nada, nada de morrer", respondeu o ministro alegre, "está ficando gordinho e esperto; até já dá uns pinotes alegres, e está tão confiante e meigo que vou ficar com pena se tiver que devolvê-lo quando pastor das ovelhas passar por aí. Eu mandei avisar que o carneirinho está comigo, assim algum dia ele o virá buscar. Deus vos guarde avô!" O ministro apertou a mão do avô e saiu apressado, pois ainda tinha muitos doentes a visitar que o aguardavam ansiosos. Pois em toda redondeza o bom pastor Clementino era o consolo de todos os pobres e doentes.

Capítulo 5

A Noite de Natal

O tão almejado dia de Natal chegou. Desde as primeiras horas da manhã, Gundi e

Carlinhos estavam na expectativa, indo de um quarto a outro, ora subindo ora descendo a escada, não sossegando em lugar algum, o sentimento de felicidade os dominava e os impelia de novo a se movimentarem. Eles tinham a impressão que com a constante agitação a noite chegaria mais rápido.

Lissa recolhida a um canto não participava da euforia dos irmãos. Dia de Natal como esse Lissa nunca passou. Sempre vivia na fulgurante expectação do esplendor da noite, nunca conheceu horas mais felizes do que estas que antecediam à realização de todos os seus anseios. Agora sentada lá, queria partilhar da alegria dos irmãos, mas algo a oprimia como um pesadelo e sufocava cada manifestação de felicidade, e quando se esforçava para libertar-se de toda má lembrança e esquecer e ainda alegrar-se como em anos anteriores, ela tinha a impressão de estar ouvindo os passos de alguém se aproximando, trazendo o Crespinho morto nos braços, sabendo que foi ela quem o esqueceu e perdeu, e a pessoa contaria tudo ao pai. Então ela se recolheu mais no canto e escutava, e a alegria se foi e não conseguia encontrar a paz no coração.

À noitinha, o Carlinhos e Gundi finalmente tiveram uns momentos de sossego, ou melhor – o auge da expectação os reteve quietos na poltrona, e só aos cochichos trocavam algumas palavras. "O que você acha do jogo de boliche?" sussurrou Carlinhos. "Você acha que o anjinho de Cristo vai se lembrar?" "Talvez" sussurrava Gundi. "Mas sabe, eu acharia melhor se ele se lembrasse de um trenó novo, pois quando a Lissa voltar a ser alegre ela também vai querer brincar; aí vai ser divertido".

"É mas e o 'forte'? você lembra quantas mil vezes a gente já queria ganhar um 'forte'?" "Mas eu ainda prefiro o trenó, reafirmou Gundi. É sim", continuou Carlinhos, sem prestar muita

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Tempos Felizes 36 atenção pois já um novo pensamento lhe veio à mente. "Ou se o anjinho de Cristo trouxesse uma caixa com guache e uns cadernos para pintar? "0h, 0h" sussurrou Carlinhos deslumbrado.

Agora a mãe entrou no quarto. "'Crianças" disse ela e fez sinal com o dedo. "Lá na outra sala as luzes estão acesas junto ao piano. Agora vamos cantar um hino de Natal. Onde está Lissa?" Na penumbra a mãe não percebeu que Lissa estava sentada no canto, nem os irmãos o sabiam, pois ela não deu sinal de sua presença. Agora ela apareceu e juntos foram ao piano.

A mãe começou a tocar e cantar, "Jesus alegria dos homens", e quando cantaram as palavras "Jesus é maior; Jesus é amor" "Jesus alegra o coração triste de dor", o Carlinhos cantou de todo coração, e deu para perceber que ele não tinha nenhuma tristeza no coração. Mas a Lissa sabia por experiência o que é ter um coração triste; ela fungava e engasgava e não conseguia cantar.

Quando o hino terminou, a mãe se levantou e disse: "Agora vocês ficam aqui bem quietos e juntos até eu voltar". Mas Lissa correu atrás dela chorando convulsivamente. "Mamãe, mamãe, eu posso fazer uma pergunta?" A mãe levou Lissa para seu quarto e perguntou o que ela queria. "Mãe, Jesus pode alegrar todos os corações, todos?" perguntou com voz sufocada. "Sim filha todos" respondeu a mãe. "Menos um coração que Ele não pode alegrar, aquele que tem um pecado guardado e não quer confessar". Lissa chorou mais alto ainda. "Eu não quero mais guardar o pecado" soluçava ela, eu quero confessar; eu levei o Crespinho naquela tarde, e então o esqueci e o perdi, e aí eu guardei segredo, eu sou a culpada que ele teve de morrer de frio e fome por isso não consigo me alegrar com nada!"

A mãe abraçou Lissa ternamente", agora você sentiu, querida filha, como um pecado guardado no coração nos torna tão infelizes. Disto você vai se lembrar sempre e nunca mais vai deixar acontecer, mas agora você confessou arrependida. Jesus pode e quer voltar ao seu coração e o tornar alegre, principalmente hoje. Agora enxugue as lágrimas e volte para junto de seus irmãos, e eu vou logo".

Um enorme peso tinha saído do coração de Lissa, e tão leve e feliz se sentiu que tinha vontade de dar pulos de alegria. Só agora ela viveu a realidade de: "Hoje é Natal!" Seu coração jubilava. Só uma única sombra permaneceu: O Crespinho! Onde estaria o Crespinho agora?

Quando Lissa aos pulos voltou perto dos irmãos, eles se admiraram muito. O Carlinhos logo disse: "É bom que você esteja outra vez assim; eu já tinha pensado que para o Natal você ficaria alegre outra vez".

Agora Lissa quis expandir sua recente alegria e esperança junto dos irmãos, mas quando ela estava em meio à animada conversa, soou alto, bem alto a campainha da casa. E Carlinhos gritou todo pálido: "O Anjinho de Cristo!" Neste instante a mãe abriu a porta da sala e uma torrente de luz invadiu a entrada e as crianças se precipitaram para a sala. A árvore de Natal reluzia em majestosa luz e fulgor com tantos enfeites, velinhas, que no primeiro momento nem deu para ver tudo o que tinha na sala.

Mas o pinheiro era o centro de toda festa, de seus ramos pendiam, velas coloridas, estrelinhas reluzentes, anjinhos dourados, doces, pão de mel, maçãs e brilhantes fitas de cetim. As crianças a rodeavam com exclamações e efusiva admiração.

Mas de repente algo veio correndo para dentro e quase derribou a Lissa. Ela soltou um grito de alegria: O Crespinho redondinho e limpinho roçava as pernas de Lissa, balindo carinhosamente. Gundi e Carlos se precipitaram para lá, quase não podiam crer no que seus olhos viam. Não morto de fome, não morto de frio, vivinho e alegre, aí estava o Crespinho! Quase o sufocaram de tanto carinho e felicidade.

Page 37: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 37 Agora Carlinhos espiou algo novo, deu um pulo: "Gundi, Gundi", gritou fora de si. "O

'forte'! O 'forte'!" "Mas Gundi já estava do outro lado e gritou de lá: "Vem para cá! Vem para cá! Aqui está o trenó novinho. Oh! que maravilha de trenó." E quando Carlinhos correu para lá, ele gritou:"Oh, Oh, a caixa com guache! E quantos pincéis e cores!" Lissa agachada, ainda acariciava o Crespinho, pois sua aparição foi para ela o presente mais querido. Como ela podia ser alegre outra vez! Tudo, tudo que a oprimia acabou, agora tudo estava bem. Como podia ser isso?

De repente Lissa descobriu dois pares de olhos arregalados, voltados para a árvore. "Isto deve ser o Stanli". Lissa se ergueu do chão, sim lá também estava o Sepli, que com olhos arregalados contemplava estático aquele mundo de luz e fulgor.

Lissa se dirigiu às crianças: "Hoje você me veio visitar Stanli?" perguntou ela. "A árvore está linda não é? Você sabia que hoje viria o Anjinho de Cristo?" "Oh, não, não", disse ele tímido, "mas tua mãe nos trouxe aqui para dentro. Só hoje o pastor Clementino nos disse que o carneirinho é vosso, e que nós o devíamos trazer aqui". "Vocês que trouxeram o Crespinho? Mas de onde Stanli? Onde ele estava? Como pode estar tão bem?"

Agora a mãe se aproximou dizendo que depois ela contaria tudo, como foi, e que Lissa devia levar os meninos para a mesa em frente da janela, pois o Anjinho de Cristo também trouxe algo para eles.

A princípio nada demovia o Sepli de seu lugar, uma árvore tão luminosa com tantas luzes e enfeites reluzentes e coloridos, ele nunca vira em sua vida. Ele não tirava os olhos da árvore, não dava um passo, por mais que o chamassem. Até que Lissa disse: "Vem Sepli, de lá da janela você pode ver a árvore tão bem quanto daqui e ainda olhar os presentes que o Anjinho de Cristo deixou para você".

Só agora o Sepli se moveu, mas continuou fixando a árvore. Mas a mesa lhe ofereceu uma outra surpresa pela qual ele não esperava. Num prato havia um pão de mel tão grande e enfeitado de confeitos coloridos como ele nunca antes viu, e havia, maçãs, nozes, chocolates, uma porção. Ao lado, uma pasta nova com tudo que era preciso para o primeiro ano de escola, lápis, borracha, caderno, cartilha, etc, e mais um casaco de lã bem grosso e quentinho como o Sepli nunca teve na sua vida.

Desde que Lissa disse:"Isto é seu Sepli", ele ficou como petrificado, só movendo os olhos ora para o Stanli, ora para seus presentes que lhe pareciam tesouros. O Stanli também admirava seus presentes: um casaco grosso, um gorro, e um prato com guloseimas. Mas agora ele ficou muito assustado, pois viu o juiz vir em sua direção com um homem, que o tempo todo estava encostado na porta da cozinha, só observando tudo. O juiz disse: "Veja, você por certo nem os conhece mais." O juiz se retirou.

O homem estendeu sua mão: "Me dá sua mão Stanli" disse ele. O menino obedeceu, mas olhou interrogativamente no rosto do homem. "Stanli, Stanli" disse ele comovido "não seja tão arredio, você tem o mesmo olhar que sua mãe. Vem diga uma palavra, Stanli, eu sou seu pai!" E repetidamente ele limpava os olhos com a mão. "Nós só temos um avô e uma avó" disse o Sepli, que a tudo assistiu. "Não, não Sepli, por certo vocês também tem um pai, e este sou eu!" disse o pai e tomou cada menino em uma de suas mãos. "Eu vou provar isto para vocês de agora em diante, mas creiam, em mim que eu sou o pai. Você será gentil para seu pai Stanli? Você é todinho como sua mãe!" O homem continuava a limpar os olhos. "Eu quero" disse o Stanli, "mas eu não o conheço!" O juiz que até agora observava o pequeno grupo ao lado da mesa, agora se aproxima. "José", disse ele sério, "eu sei de mais um pai e uma mãe, que sentem

Page 38: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 38 dor no coração porque o filho não os conhece mais, e não tem uma palavra de amor e gratidão para eles, por terem conservado teus filhos tão bem cuidados. Mas hoje é Natal, hoje todos podem estar alegres. Vai, pega o Marron, ponha-os nos arreios com o trenó, e leve seus filhos para a casa, o resto deixo por sua conta." "Deus lhe pague, sr. Juiz, mil vezes tudo o que o senhor fez por mim", disse o José, tão emocionado estava que as palavras mal lhe saíam dos lábios.

"O senhor juiz por certo ficará satisfeito com meu serviço, tão certo como desejo que nosso Senhor me perdoe e tenha compaixão de mim." "Está bem, está bem" disse o juiz. "Agora vá, e isto aqui vai junto." Dizendo isso, ele apontou para um enorme volume que estava ao lado da mesa. O José o pôs no ombro e saiu.

Agora todas as preciosidades pertencentes ao Stanli e Sepli foram arrumadas dentro do trenó. Então, as crianças se despediram, e ficou combinado que no início da primavera os meninos voltariam para outra visita, e depois Lissa e seus irmãos iriam à Igreja Velha. As crianças queriam visitar o pastor Clementino e lhe agradecer por ter cuidado tão bem do Crespinho. Quando já estavam no trenó, a senhora do juiz recomendou: "Põe um cobertor bem grosso nas costas dos meninos para não sentirem tanto frio!"

Lá debaixo da grande árvore de Natal, o riso e a festa continuaram por muito, muito tempo pelos ricos presentes ali expostos, e repetidamente a satisfação de terem novamente o Crespinho, que balindo contente participava também da festa.

Ao mesmo tempo em que o trenó puxado pelo Marrom saía da casa do juiz, vinha pelo caminho enluarado descendo da velha igreja o pastor Clementino. Sorria ao relembrar a visita que fizera há dez dias em Monte Pio; ficou esclarecido que o caso do José não estava tão mal; assim se ouviu dizer. O José fugira de um patrão que o maltratou, e como era um rico proprietário não queria admitir tal atitude. Fez um enorme escândalo e deu queixa do José, e foi assim que o caso foi parar no juiz. Mas este disse que um empregado não pode ser maltratado, não importa quem seja o patrão, e o José ficou livre de culpa.

Isto o próprio juiz contou ao pastor e este por sua vez relatou o que sabia a respeito da vida anterior do José, dos seus pais agora velhinhos e que estes criavam seus dois filhos, e disse que o José não é mau mas leviano; que desde que perdera a esposa ficou desnorteado, e recomendou ao juiz aconselhar o José a ser um bom homem, pensar na sua família. O juiz prometeu fazer isso.

A esposa do juiz queria saber mais sobre o José do Chorão, perguntou sobre as crianças e assim o pastor contou tudo o que sabia. E finalmente ainda contou do carneirinho que as crianças acharam na capela e que este estava aos seus cuidados. E assim ele descobriu a quem pertencia o carneirinho. O juiz e sua esposa se mostraram muito satisfeitos, e pediram que o pastor mandasse os meninos para devolver o Crespinho, e que deviam vir na noite de Natal, para participarem da festa, verem a árvore e também receberem presentes.

Isto foi uma satisfação enorme para o bom pastor. Mas da festa de Natal ele não contou nada aos meninos nem aos avós. Só pediu que levassem o Crespinho na hora e dia combinados.

Assim ele sorria agora de satisfação ao pensar na surpresa das crianças. E como ele queria ver o rostinho alegre dos meninos, e ver os velhos participarem também da alegria deles; ele ia na fria noite de Natal ao casebre do João do Chorão.

Assim que ele entrou a avó o saudou com estas palavras: "Deus seja louvado que o senhor veio, pastor; só assim recebo uma palavra de consolo. Já há tempo que escureceu e os meninos

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Tempos Felizes 39 ainda estão no caminho e precisam atravessar a ponte. Deus os guarde, que não lhes suceda nenhum mal."

"Não, não avó", disse o padre em tom alegre, "hoje não queremos lamentos, hoje tudo é alegria, o anjinho de Cristo vigia sobre todas as crianças e não permite que nenhum mal lhes aconteça. Agora vamos palestrar sobre coisas agradáveis, assim o tempo passa logo, e o avô também nos faz companhia".

Enquanto isso o José fez o Marron trotar, ao luar era como se o trenó voasse sobre a estrada de gelo, e o José foi tomado de um intenso desejo de rever o lar e os pais, há seis anos não os via mais, e se durante este tempo sentiu saudades de casa só via uma grande tristeza e vazio diante de si, assim como ele sentiu aquela vez quando a Constança faleceu. E para fugir deste pensamento o José se afastou sempre mais longe. Mas hoje, depois que viu seus filhos, tudo lhe parecia diferente, o Stanli parecia lhe fez recordar vivamente sua Constança e dos dias felizes que passou com ela na casa de seus pais, debaixo do chorão, ele se sentia ansioso para rever a casinha e os pais.

Agora o trenó parou diante do chorão. O José ajudou as crianças descerem, e jogou o grosso cobertor sobre o Marron. Então, tomou o Sepli numa mão e o Stanli na outra e assim entrou em casa. O José ficou tão emocionado que caiu de joelhos diante da cama da mãe e exclamou: "Mãe, pai, vocês não estão mais zangados comigo e me perdoam; eu prometo fazer o melhor para vocês ainda terem dias melhores. Eu sei que passaram por um mau pedaço, mas se Deus me ajudar, de hoje em diante será melhor."

Pai e mãe choraram, desta vez de alegria; e a mãe repetia: "Ó José, é possível isso! Eu sempre acreditei que o Senhor pudesse mudar o seu coração. De agora em diante eu só quero agradecer e louvar enquanto houver fôlego em mim." O pai apertou a mão do filho, dizendo: "Assim se faz José! O demais está tudo esquecido e perdoado. Seja bem-vindo de volta ao lar!"

O José ainda estendeu a mão ao pastor que a tudo assistiu sorrindo. Depois os pais ficaram sabendo que o juiz empregou o José e já lhe confiou o cavalo e o trenó para trazer os meninos, e que o salário do José seria muito bom.

O José já havia combinado como juiz, não lhe dar vale nenhum, para receber todo ordenado no fim do mês e trazer tudo para os pais. "Hoje não trago nada, só boa vontade" e o pastor acrescentou: "Isto já é uma boa coisa, que o Senhor dê a sua bênção para isto".

O Sepli num vai e vem ia carregando os pacotes para dentro sem alguém lhe dar atenção, só agora conseguiu se aproximar da cama da avó, e cobriu a metade da cama com os presentes, quando Stanli viu isto correu e encheu a outra metade com seus presentes, assim parecia só a cabeça da avó, como se estivesse sentada no meio de uma barraca de mercado. E a avó juntava as mãos dizendo: "Será possível!" Mas quando no fim o José trouxe o embrulho grande, saindo dele quatro grandes cobertores grossos e macios a avó de surpresa e gratidão perdeu a fala, mas ela uniu as mãos solenemente, por certo agradecia e louvava a Deus em silêncio. O avô ergueu do chão um objeto duro, parecia uma caixa, que caiu do meio dos cobertores, os olhos do velho brilharam de alegria pois seu único desejo se cumpriu: Ele ergueu nas mãos uma moenda de cevada (café) novinha!

Agora ele podia moer os grãos e obter um pó como de via ser, e preparar uma boa bebida para a avó.

Uma tal noite de natal, com tantos presentes e felicidade nunca se festejou na casa do Chorão. O José ainda teve a satisfação de ver seus filhos confiantemente se sentarem no seu

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Tempos Felizes 40 colo, quando eles viram como o pai amava o avô e a avó e era bom para eles, eles sentiram que ele fazia parte da família.

Agora o José teve que voltar ao Monte Pio, mas ele sabia que cada fim de semana ele poderia estar de novo com sua família.

Quando ele já estava sentado no trenó para partir, o Sepli correu para o pai e disse: "Pai espere, eu preciso lhe dizer uma coisa!" E quando o pai se inclinou para fora do trenó e Sepli disse bem ao seu ouvido: "Pai quando você passar na capelinha, não se esqueça de entrar e orar, sabe Jesus sempre dá alguma coisa, no começo a gente não vê, mas depois aparece".

O Sepli percebeu que todas estas ricas dádivas de hoje tinham alguma relação com o carneirinho que Jesus guiou até lá, e como ele se recusou a entrar na capelinha, mas isto ele nunca mais faria.

Entre Igreja Velha e Monte Pio permaneceu a boa amizade. O José trabalhou dedicadamente para o juiz, e cada fim de semana quando ele ia para casa levava um grande pão e o avô preparava a cevada moída na moenda nova, e a avó de pé com novas forças arrumava a mesa alegre porque agora ela podia lidar outra vez na casa e no jardim. Quando no fim de cada semana toda família sentava junto ao redor da mesa o José dizia: "Em casa é o melhor lugar, vamos agradecer a Deus por esta bênção".

A CORRENTE DE OURO (Se quiser substitua por outro objeto)

No jardim do grande castelo havia muita animação. Foram tombadas algumas velhas

árvores, em cuja sombra várias gerações dos senhorios brincaram, se divertiram e descansaram. Os filhos do atual casteleiro observavam atentos os trabalhadores. Mesmo a bisavó, isto é, a avó do atual senhor foi trazida na sua cadeira de rodas, para ver os velhos gigantes tombarem.

Ela era estimada e honrada por toda família, e tida como anjo da guarda por todos os pobres da redondeza; por toda parte ela suavizava a dor, enxugava lágrimas alheias, mas para si mesma ela exigia pouco, muito pouco. Desde há muitos anos que as pessoas a viam com vestido preto de viuvez com uma pequena gola branca.

As preciosas jóias guardadas em graciosos cofres ela nunca as usava, só às vezes as mostrava às crianças e contava alguns episódios relacionados da sua vida agitada.

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Tempos Felizes 41 Mas por que será que ela suspirava e lhe vinham lágrimas nos olhos todas as vezes que ela

fechava o cofre? As crianças não o sabiam; e nem ousavam interrogar. Mas agora elas vieram correndo

excitadas e gritando: "Bisavó, veja só, veja o que nós achamos encravado na raiz daquele velho carvalho que foi tombado!" Henrique já estava querendo depositar um objeto muito sujo que tinha nas mãos, no colo da idosa senhora, quando Mariazinha se lhe adiantou e estendeu um lencinho por baixo. Era em todo caso uma corrente com uma cruzinha originalmente talhada; mas havia tanta terra depositada que não dava para reconhecer de que era feita. Séria e longamente, a velha senhora a contemplou, depois sem dizer palavra deixou-se levar de volta à casa.

"O que será?" se indagavam as crianças. "Talvez seja ouro", disse Otto. "Nos meus livros de contos eu li sobre anões que vivem entre as raízes de velhas árvores e para pessoas muito boazinhas eles jogam ouro para fora."

"É, mas o Fredi que achou o objeto não é bonzinho" (comportado) comentou Aninha. "Ele hoje fez seis borrões no caderno de caligrafia!" "Um borrão não é coisa má," disse o estouvado Fredi "O que tem que ser limpo é o coração, quem disse é minha Lore." Lore a velha ama, sempre protegia seu Fredinho. Agora ela vinha trazendo um farto lanche, e com isso esqueceram o objeto achado, e logo voltaram à alegre brincadeira.

A bisavó que se deixou conduzir de volta à casa, as crianças não a viram mais até a hora de dar o boa noite. Ela estava sentada no seu confortável quartinho. Papai e mamãe também estavam com ela olhando uma maravilhosa corrente de ouro da qual pendia uma cruzinha cravejada de pedras preciosas. "Veja," disse a velha senhora, "este é o objeto disforme que vocês acharam no meio das raízes do velho carvalho. Sentem-se quietos aqui ao meu redor, e eu vou contar como ela foi parar ali."

Como era linda a corrente! Lore a limpou com muito cuidado, se bem que ela tivesse alguns arranhões e estivesse pouco danificada, faltavam mesmo duas pedras preciosas na cruzinha, mas mesmo assim se via que fora uma jóia de muito valor.

"Vocês sabem", começou a bisavó, "que eu passei minha infância neste castelo. Mais tarde viajei pelo mundo, mas agora logo me levarão para o último descanso aqui onde foi meu berço." "Ah! vai levar ainda muito tempo bisavó", as crianças exclamaram, "você ainda tem que ficar conosco muitos anos!" "Como Deus quiser! Às vezes me sinto muito cansada, e tenho saudades da paz do Céu."

Mas há muitos anos atrás eu era, para o desgosto de meu pai, e a severa governanta, uma menina muito viva, e quando não era vigiada era igual aos irmãos pulando e correndo. Por isso era para nós uma verdadeira festa, quando no verão a severa francesa ia de férias, e o pai na mesma época viajava. Então gozávamos debaixo do suave regime da mãe dias felizes de férias.

Quando o tempo era bom nós nos divertíamos alegremente no jardim; nos dias de chuva ouvíamos atentos a mãe contar histórias, ou nos mostrava quadros de valor ou ainda tirava de um armário antiquado com muitas gavetas, preciosidades pertencentes à família.

Infelizmente uma velha e tola criada havia me dito muitas e muitas vezes, que eu era uma menina bonita, e o espelho confirmava, minhas faces rosadas e longos cabelos loiros. Por isso eu gostava muito de colocar algumas das jóias que a mãe nos mostrava no pescoço e nos braços e só contra minha vontade as tirava. Mas o que eu mais apreciava era a corrente de ouro com o crucifixo que vocês hoje acharam entre as raízes da velha árvore.

Page 42: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 42 Enfim, um dia perguntei à mãe: "Posso usar esta jóia num dia de festa, ou quando a gente

fizer uma visita no castelo vizinho?" "O que você pensa?" respondeu ela, "esta jóia não é para meninas pequenas como você; ademais, a cruz é um símbolo sagrado; torne-se primeiro uma moça de muitas boas maneiras, e então talvez, em dias de festa importante você possa se enfeitar com ela". Quando a mãe falava assim, era assunto encerrado, isto eu sabia. Mas a ânsia de possuir aquela linda jóia permaneceu em meu coração.

Um dia a mãe foi à uma festa de casamento, e nós crianças recebemos visita inesperada à tarde, de três meninas da vizinhança, cuja educação era menos esmerada que a nossa. Vestidos luxuosos usando jóias, como pequenas damas, se comportavam no entanto, durante as brincadeiras como moleques mal criados.

Também neste dia Julia me mostrou seu novo colar do qual pendia um coração vermelho de pedra preciosa. "Oh, eu tenho muito mais destas coisas", exibiu ela. "Você não tem nada, além desta corrente de coral!" "Tenho sim" respondi. "Eu tenho uma corrente de continhas azul celeste; eu a mostro já". Rápido eu subi a escada para alcançar o quarto das crianças, mas eis pendurado no armário da mãe o molho de chaves! No meu amor pelo capricho, eu nunca havia visto isso. Ao mesmo tempo me lembrei que minha corrente era só de continhas de vidro. Júlia ia perceber logo e caçoar de mim.

Então como um raio um pensamento mau passou pela minha cabeça, e em poucos minutos foi executado. Eu abri a gaveta para mim bem conhecida, onde a rara jóia ficava guardada, e a pus no meu pescoço. Claro que não combinava com meu singelo vestido de algodão. Como batia meu coração, quando desci a escada! Mas o inimigo dizia dentro de mim: "É só por algumas horas! Muito antes de a sua mãe voltar esta jóia rara estará no seu devido lugar." Preparada para ouvir elogios e admirações corri no meio da brincadeira, mas fiquei decepcionada, pois as crianças não entendiam do valor da rara jóia.

Depois do lanche, os meninos sugeriram: "Vamos brincar de uma coisa bem divertida". "Lenço atrás", eu sugeri: "Não, isto é chato", discordaram os meninos. "Bandido e princesa - isto é legal! Júlia é a princesa, nós os meninos a levamos para a caverna, e vocês as meninas tem que comprá-la de volta ou achar um jeito de a soltar".

Felizes pela nossa liberdade, pois a vigilância da pajem, nada significava para nós. A brincadeira tornou-se violenta, mas finalmente com astúcia conseguimos libertar a princesa enquanto os meninos sacudiam uma ameixeira, achando que tinham que se alimentar antes de recomeçar a luta. Algumas vezes ainda tateei no meu pescoço a jóia e depois a esqueci completamente no meio da inocente brincadeira infantil.

À tardinha veio o criado buscar as nossas visitas, e só então me lembrei e pus a mão no lugar da jóia proibida, no meu pescoço. Ela tinha desaparecido! Se a mãe estivesse em casa, talvez eu tivesse confessado meu erro. Mas depois da janta, fomos mandados para a cama, antes de minha mãe voltar.

Então a voz do mal cochichou no meu coração: "Não diga nada! Você perdeu a corrente no jardim e amanhã você por certo a achará". Que noite inquieta eu passei à primeira vez na minha vida! Como eu procurei, dia após dia no jardim, que naquele tempo não era como hoje, mas havia mais árvores e arbustos.

Como batia meu coração quando a mãe abria o velho armário! "Só mais amanhã vou procurar, eu pensava todo dia, e então eu confesso". Mas de dia para dia a confissão se tornava mais difícil! E então me aconteceu assim como está escrito na Bíblia: "Enquanto eu guardei

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Tempos Felizes 43 silêncio meus ossos secaram". Sim eu fiquei pálida e fraca, e a boa mãe se preocupava comigo. Me deram fortificantes, mas como isto faria efeito?

Uma manhã quando entramos no quarto da mãe, a encontramos procurando angustiada em todas as gavetas. "Pensem só crianças, a linda corrente de ouro com o crucifixo desapareceu. A caixinha estava no lugar costumeiro mas vazia. Em todo caso a jóia foi roubada quando outro dia, por pouco tempo esqueci a chave na fechadura. Como isto me entristece! e como é triste pensar que tem alguém desonesto em casa!"

Ah, se eu tivesse dado ouvidos à voz de Deus e contado tudo! Quanto desgosto eu teria poupado! Mas eu pensava que a corrente seria achada, e então eu contaria. Mas ela nunca foi encontrada embora eu gastasse todas horas livres na procura.

O coração da mãe era tão pouco inclinado a jóias e luxo que facilmente ela teria se conformado, se esta corrente não fosse uma herança de família.

Um dia encontrei Dora, a camareira de minha mãe, debulhada em lágrimas, embora sempre era radiante de alegria. "O que aconteceu Dorinha?" eu perguntei penalizada. "Não é nada! Só que eu não gosto mais daqui, porque até agora sua mãe tinha confiança em mim, o que ela realmente pode ter, só que agora ela passa chave em todas as gavetas e armários e isto me desgosta. É uma pessoa maldosa, esta que roubou a jóia e trouxe desconfiança para dentro desta casa".

Ah, eu era essa pessoa maldosa! Uma simples confissão teria endireitado tudo, mas assim mesmo não me decidi. Cada hora de folga eu procurava no jardim, e pensava todo dia, hoje vou achar a jóia! Mas já devia estar fundo na terra. O jardineiro, por causa da seca, havia feito valetas em volta das árvores, as quais ele enchia de água todos os dias. Em uma destas valetas a jóia havia caído, e se afundado cada vez mais. A árvore que era pequena naquele tempo cresceu, e a jóia ficou debaixo da raiz, e hoje a jóia veio à luz do dia porque a árvore foi tombada.

Enquanto isso o pai que parte do ano passava no palácio real, voltou, e então a confissão me parecia impossível. Ele, por causa de sua severidade era mais temido do que amado por nós crianças. Enfim meu frágil corpo não suportou mais a inquietude do coração, eu fiquei doente e fraca, e o médico temia uma infecção nervosa. Quando tomei conhecimento disto, meu temor chegou no auge. E se tivesse que morrer com este peso no coração?

Uma noite eu me achava muito enfraquecida e a mãe me falou amorosamente: "Minha querida, se fosse a vontade de Deus em te chamar para descansar, você estaria preparada?" Esta simples pergunta, quebrou o orgulho do meu coração. Entre lágrimas abundantes, recostando minha cabeça no seio de minha mãe, eu confessei tudo. "E se eu tiver que morrer'', eu concluí torcendo as mãos, "Jesus me fechará a porta do reino do Céu no dia da ressurreição!"

Oh! com quanto amor e conforto a mãe me falou do amor de Jesus, que foi Ele que levou a culpa do meu pecado, e pelo seu sangue me pode lavar e purificar o coração, se eu somente confessar tudo a Ele e pedir perdão. Tudo isso eu já ouvira, aprendera, recitara e cantara muitas vezes, mas agora estas palavras como bálsamo penetraram em meu coração, e me curou o corpo e a alma. Ao som das doces palavras de minha mãe, cai num suave sono, e quando acordei o perigo da doença estava vencido.

Da jóia nunca mais se falou. Mas eu criei uma profunda repulsa por todo tipo de jóias e luxo, por toda a minha vida. Muitas vezes eu tive que me enfeitar e usar roupas luxuosas, por causa da minha posição, mas sempre me sentia feliz em tornar a vestir meu simples vestido de casa.

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Tempos Felizes 44 E mais uma coisa aprendi: Cada erro cometido, cada estrago que eu fazia, confessava de

imediato, pois eu tinha aprendido que culpa não confessada é o pior castigo". "Mas agora você vai usar a linda corrente de ouro, não bisavó?" perguntaram as crianças.

"Oh, não; para isto estou muito velha. Lá no céu sim, todos nós vamos usar jóias mais lindas e raras do que esta. Vocês sabem a que jóia me refiro?" Joãozinho deu um passo para frente e disse - "eu sei" e com voz infantil bem audível recitou:

"O Sangue de Cristo e Sua justiça, São minhas jóias e meu enfeite, Com elas quero estar perante o trono de Deus Quando entrar nos portais do Céu." (Esta história foi traduzida do livro, "Eine Kleine Königin" de Margarida Lenk).

PAULO E O CANÁRIO "Não sei porque sou assim. Sempre fui uma criança doente, e todos pensavam que eu ia

morrer. Antes eu tivesse...!" Paulo freou seus pensamentos, pois se lembrou de sua mãezinha que toda tarde retornava tão cansada para casa, e como ele se alegrava com a sua chegada!

Ajoelhou-se numa cadeira perto da janela e contemplou os telhados molhados dos prédios vizinhos. Paulo era tudo, menos forte; suas pernas atrofiadas não o deixavam andar. "Eu não sirvo para nada" choramingava desanimado – "sou um peso para minha mãe; no mundo inteiro não existe criança tão inútil como eu."

Enquanto ele falava assim, o vento pressionava contra a janela, e a chuva batia furiosa na vidraça. Na casa da frente, a dona fechou as venezianas, pois o vento ameaçava quebrar os vidros. De repente, Paulo até prendeu é respiração: viu algo que o vento jogou no parapeito de sua janela. Era um passarinho amarelinho, com peninhas cinzas bem clarinhas no dorso, que indefeso no vento batia suas asas e se agarrava nas pedras do parapeito.

"Oh, pobrezinho, eu te recolho!" exclamou Paulo. Ele ergueu o vidro, estendeu gentilmente a mão na chuva. Mas na hora da pressa ele esqueceu de prender a vidraça, e ela

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Tempos Felizes 45 pressionava sobre suas costas, mas que importava isto? Agora todo seu pensamento se centralizava em salvar o passarinho indefeso. Temeu que o vento o arrancasse antes que sua mão o pudesse alcançar.

Finalmente conseguiu abrigar em sua mão a encharcada bolinha de plumas e a recolheu em seu quarto. Antes de trocar as suas roupas alisava carinhosamente as peninhas molhadas, tentando reascender o fiozinho de vida que queria se extinguir. O passarinho a princípio ficou inerte na mão de Paulo, mas aos poucos se reanimou, e começou, a repor a sua plumagem em ordem com o biquinho.

Só aí Paulo pensou na sua própria roupa molhada. Como não possuía outra para trocar, envolveu-se num lençol, e aconchegou seu novo amiguinho junto de si. O calor e o escuro fizeram o canarinho dormir, e Paulo o olhava feliz, até que também adormeceu.

Quando a mãe chegou em casa pensou que Paulo estivesse doente, mas quando ela afastou o lençol, foi saudada por um alegre chilreio de passarinho. O canarinho estava enxuto e alegre, uma asinha estava um pouco machucada e faltava um pedacinho da garra de um pezinho, de resto ele estava bem, piava e parecia bem esfomeado.

"Mas Paulo, de onde vem isso?" A mãe quis saber. Paulo contou tudo, terminando com esta pergunta: "Ele não é uma gracinha mãe?" "Sim, mas ele precisa de alpiste; vou ver se os vizinhos do andar de baixo me dão um pouco". Logo a mãe retornou com a comida, e para alegria de ambos o passarinho bicou os grãozinhos, bebeu um pouco de água, e empoleirou-se satisfeito no galhozinho que Paulo havia colocado entre duas cadeiras e adormeceu.

Nos dias que se seguiram, Paulo nunca mais se queixou de solidão, enquanto a mãe ia para o serviço. Tedy, era este o nome que Paulo deu ao passarinho, tornou-se um bom companheirinho. Paulo ensinou Tedy a bicar os grãos de seus lábios, a ficar imóvel a uma ordem sua, e Tedy criou o hábito de bicar nas sobrancelhas ou nos cabelos de Paulo quando ele queria sua atenção.

O alpiste que o vizinho do andar debaixo havia dado, acabou depressa e Paulo ficou preocupado. Como poderia arranjar mais comida? Ele achou que não era justo pedir dinheiro à mãe para esse fim. Não seria possível ele ganhar um pouco? Ele pensou muito sobre isso.

De sua janela Paulo via muitas vezes, na janela da frente, Mary a menina da vizinha, sentada trabalhando em algo. Mary sentia pena de Paulo, e muitas vezes conversava com ele. Paulo pensou: será que ela não poderia me ajudar? Assim no dia seguinte, quando ele a viu ativamente trabalhando a linha com mãos ágeis, ele chamou.

-"Por favor Mary, como é que se chama esse trabalho manual que você faz? Isto dá umas rendas maravilhosas!"

Mary ergueu os olhos, sorriu, e disse: - "Bilro". - "Isto é difícil?" - "Não, isto é fácil; você também poderia aprender!" - "Eu poderia ganhar com isto o suficiente para comprar comida para o Tedy?" - "Naturalmente que sim; quer que eu te ensine?" - "Oh, sim, por favor!" disse Paulo entusiasmado. - "Hoje à noite eu vou." E a Mary veio. Os dedos de Paulo eram fortes e bem talhados, e

ele queria aprender. Tedy também queria aprender e puxava nos fios, mas Paulo o impedia delicadamente. Ele treinou tanto até que sabia colocar as agulhas certinhas, assim como Mary.

- "Vou vender os teus trabalhos no mesmo lugar onde vendo os meus", declarou Mary.

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Tempos Felizes 46 - "Se você for bem aplicado poderá ganhar mais do que só a comida de Tedy. Talvez uma

gaiola!" - "Ah, ele não precisa de gaiola!" defendeu Paulo seu amiguinho. Desde esse dia Paulo, a maior parte do dia ficava sentado diante da janela trabalhando

ativamente. Ele tinha prazer no seu trabalho. E, quando no fim da venda, e já ter comprado o alpiste, ainda sobravam algum dinheiro, pedia para alguém comprar frutas para mamãe. Paulo era muito feliz, mais do que muitas crianças! E a mãe achava que se ele progredisse assim, um dia, ainda poderia assumir o seu sustento quando ela faltasse e com isto ficou menos preocupada.

Numa noite, meses após o salvamento de Tedy, Paulo foi acordado com uma estranha sensação no rosto. Ele abriu os olhos, e sentiu que Tedy o puxava tão fortemente nos cabelos que lhe doía. A penumbra e um frio úmido deixaram em Paulo um sentimento estranho de desassossego.

Outra vez Tedy puxava os cabelos de Paulo. - "Ainda não amanheceu", acalmou Paulo a Tedy e procurou afugentá-lo. Mas a avezinha não se afastou. Então Paulo se levantou na cama e pôs o canarinho em cima de seu poleiro. Nisto sua mão tocou a parede; ela estava quente! Tedy recusou-se a ficar no poleiro, e pendurou-se no ombro de Paulo.

- "Mãe", gritou Paulo, "mãe acorda!". Mas a mãe dormia profundamente e não respondeu. De repente, Paulo teve a impressão de ouvir crepitação de fogo, e ao mesmo tempo sentiu o cheiro de fumaça em suas narinas. Ele se arrastou até à cama de sua mãe, e agitado falou do perigo do incêndio. A mãe saiu correndo pelas escadas do prédio, alertando a todos moradores, do perigo do fogo. E em pouco tempo uma enorme confusão reinou entre os moradores do prédio.

O incêndio começara na casa ao lado, porque algumas peças de vestiário foram penduradas perto do fogão de lenha e tinham sido atingidas pelas faíscas. Se Tedy não tivesse dado o alarme, as coisas teriam terminado mal. Os bombeiros em pouco tempo apagaram o incêndio. O quarto de Paulo também foi danificado. Assim no dia seguinte, ele trabalhou na casa de Mary.

Todos os moradores vieram ver o menino aleijado e seu canarinho. Pois a eles todos deviam o salvamento. Paulo recebeu muitos agradecimentos. E todos queriam ver e admirar o amiguinho de Paulo. Ele até já estava apreensivo pensando que alguém o fosse levar. Também o dono do prédio foi visitar Paulo, e dizer-lhe o quanto estava grato, pois isto lhe poupou muitos danos.

Como recompensa Paulo pode fazer um pedido, o que mais ele desejava ganhar, o rosto do menino iluminou-se, e ele disse: - "Se eu tivesse muletas então eu poderia sair e estar com outras crianças!". - "Você terá as muletas", disse o dono. A mãe de Paulo recebeu uma máquina de costura para trabalhar em casa, e não deixar mais o filho sozinho durante o dia.

Tedy tornou-se dono de uma linda e espaçosa gaiola, e tanto alpiste o quanto ele quisesse comer.

A vida de Paulo tornou-se alegre, útil e cheia de sol. (Nesta história deve ser aplicado o verso de Rom. 8:28)

AS DUAS PEQUENAS IRMÃZINHAS

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Tempos Felizes 47 "Você ontem não esteve presente", disse a gentil professora recém chegada à uma pequena

escola paroquial, pondo suavemente a mão sobre o cabelo encaracolado de uma de suas alunas. Era hora de recreio mas a pequena não deixava a sala de aula, nem sequer deixou o seu assento para brincar lá fora ao ar livre, mas continuou sentada profundamente concentrada sobre um intrincado problema de matemática, cuja solução lhe parecia impossível.

O rostinho corou-se com as palavras da professora, mas quando a menina ergueu os olhos certificou-se da bondade da professora, e respondeu: "Não, professora, eu não estive, mas minha irmã Neli ..." "Eu me lembro, havia uma pequena menina, ela se chamava Neli Korden, mas eu não sabia que era sua irmã. Mas, por que você não veio? parece que você gosta de estudar!"

"Eu gostaria de ter vindo", foi a resposta séria, e corando de novo; continuou após um penoso momento de silêncio. "A mamãe dificilmente pode dispensar nós duas por isso vamos revezando. Hoje à noite eu ensino a Neli o que eu aprendi, e quando ela vier amanhã ela me ensina o que aprendeu. Desta maneira nós duas aprendemos. Eu tenho tanta vontade de aprender, para um dia eu mesma lecionar e ajudar a mamãe. Ela agora trabalha duramente para nós duas."

Com genuína compaixão a senhorita Marta se deteve a fazer mais perguntas, mas sentou-se a seu lado, e explicou-lhe rapidamente a regra sobre a qual a menina parecia quebrar a cabeça, e assim o difícil problema foi facilmente solucionado.

"Você faria melhor se fosse lá fora aproveitar um pouco o ar fresco por uns minutos; você hoje estudou bastante", disse a professora quando a menina pôs o seu caderno de lado. "Eu prefiro não fazer isso, eu poderia rasgar o meu vestido - eu vou ficar na janela e olhar os outros brincar."

Havia um tom singular na voz da menina quando disse: "Eu poderia rasgar o meu vestido", que a professora involuntariamente se viu reparando nele. Era um vestido simples de algodão estampado, mas de bonito feitio e ainda não tinha sido lavado. Quando ela olhou bem o vestido notou que nos últimos dias Maria Korden diariamente veio à escola com o mesmo vestido. "Ela é uma menina muito cuidadosa", pensou ela, "e por certo não quer dar trabalho para a mamãe, eu gostaria de ter mais alunas iguais a essa".

Na manhã seguinte faltou Maria, mas sua irmã ocupou o seu lugar. Havia algo de muito atraente nestas duas irmãzinhas, uma com 11 anos de idade e a outra um ano e meio mais nova, as quais haviam combinado, freqüentar a escola se revezando, e a professora não podia deixar de observá-las atentamente.

As meninas tinham rostinho bonito e corpinho delicado, a mais velha de olhos escuros e cachos castanhos; a outra, de olhos tão azuis como o céu e uma abundância de cachos loiros caíam sobre seus ombros. Ela observava em ambas a mesma tendência para o estudo, e assim como Maria permanecia na classe durante o recreio, assim também Neli. E quando a convidava a sair um pouco para o folguedo ela recebia a mesma resposta da irmã. "Eu poderia rasgar o meu vestido!".

Esta resposta levou a professora a reparar mais no traje da menina. Ela viu logo que era do mesmo tecido, e quando observou mais de perto, percebeu que era o mesmo vestido. Não servia tão bem em Neli como em Maria, era muito comprido para ela, e Neli se sentia embaraçada visivelmente quando percebeu que a professora olhava as flores vermelhas espalhadas abundantemente sobre o tecido branco. Uma tal descoberta naturalmente tem que comover o coração de uma professora tão amorosa.

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Tempos Felizes 48 Ela se informou onde morava a mãe das crianças, e embora ela também não tinha muitos

meios, naquela mesma tarde ela comprou na única loja de tecidos da pequena cidade um corte do mesmo pano estampado de algodão, e combinou com o dono da loja mandar o mesmo, sem que a doadora fosse descoberta nem conhecida.

Maria Korden parecia alegre e feliz quando naquela sexta-feira cedo veio à escola. Ela mal colocou seus livros sobre a carteira, quando se acercou da professora e com voz, que apesar de todo o esforço para parecer baixinha e respeitosa, soava alegre: "Na semana que vem Neli também virá à escola todos os dias; eu estou tão feliz!".

"Esta é uma novidade muito boa", disse a professora bondosamente. "Neli ama seus livros, como eu vejo, e eu fico muito feliz em saber que ela tenha uma oportunidade de aprender deles diariamente". Depois continuou enquanto um sorriso de satisfação aflorava em seus lábios. "Mas a mãe pode dispensar ambas ao mesmo tempo?" "Oh, sim professora, certamente; ela agora pode; sucedeu algo que ela não esperava, e ela está igualmente contente, como nós duas, que agora podemos vir juntas."

Ela hesitou um momento, mas seu coração estava tão cheio de alegria; e quando uma criança está feliz, é a coisa mais natural do mundo que ela partilhe essa alegria e a causa dela, da mesma maneira como o passarinho trina sua canção quando faz sol. E de coração inocente contou a seguinte pequenina história para sua professora.

Ela e sua irmã eram as únicas filhas de uma pobre viúva, cuja saúde estava muito abalada que lhe era quase impossível sustentar a si e as duas meninas. Ela se sentiu obrigada a reter as meninas em casa durante todo o inverno porque não possuíam vestidos de lã mas ela lhes prometeu, que se elas, com pequenos serviços ajudassem na vizinhança a ganhar um pouco, ela compraria para cada uma um vestido novo, e assim poderiam freqüentar à escola quando chegasse a primavera.

As meninas aproveitaram cada oportunidade que se lhes oferecia, e guardaram cuidadosamente cada dinheiro que se lhes oferecia para cada pequeno serviço. Ajuntaram quase o suficiente para comprar um vestido quando Neli ficou doente, e como a mãe não tinha nenhum dinheiro no cofre tiveram que lançar mão do próprio dinheiro.

"Eu senti tanta pena, quando as aulas começaram e Neli não podia ir porque não tinha vestido", disse Maria. "Eu disse à mãe que então eu também não iria, mas ela achou que eu devia ir porque poderia ensinar minha irmã quando voltasse para casa, e isto seria melhor que ensino nenhum. Eu agüentei isso uns quinze dias, mas o rostinho de Neli sempre parecia tão triste quando eu ia à escola, que eu não podia me sentir feliz, e enfim descobri um meio, como nós duas poderíamos ir. Eu disse à mãe, que um dia viria eu, e no seguinte eu emprestaria meu vestido a Neli, assim ela poderia ir, e esta semana nós fizemos assim."

"Mas ontem à noite, imagine só, ontem a noite alguém nos mandou um vestido para minha irmã, igualzinho ao meu, e agora ela poderá vir também. Oh, se eu só soubesse quem foi, eu agradeceria de joelhos e Neli também. Mas infelizmente nós não sabemos, e assim fizemos tudo o que podemos - nós oramos por essa pessoa - e agora professora nós todos estamos tão felizes. A senhora também está feliz?" "Certamente estou", foi a expressiva resposta.

E quando na segunda-feira seguinte a Neli foi à escola com seu vestidinho novo, seu rostinho tão radiante como uma rosa ao sol, e veio em direção à escrivaninha da professora exclamando: "De hoje em diante eu virei todos os dias à escola, e estou tão feliz por isso!"

Aí a professora sentiu como nunca a profundeza da verdade, contida nas palavras do Senhor - "Dar é melhor do que receber". Nenhum milionário que visse seu nome publicado e

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Tempos Felizes 49 elogiado nas primeiras manchetes dos jornais, porque deu para obras de caridade milhões em dinheiro, poderia ser tão feliz como essa singela professora o era. Em razão disso usou suas luvas surradas por mais um inverno, mas sentiu-se recompensada em ver as duas irmãzinhas felizes.

Traduzido do "Lebensbelder" 1918.

GUILHERME WINTER

Guilherme Winter era o maior maroto de toda a cidadezinha; a indecisão de seu pai havia estragado o menino. "Não refreie tanto este menino", costumava ele dizer à mãe, "você vai sufocar toda a masculinidade nele". E assim ele cresceu, o terror da vizinhança. Os velhos, os fracos, e mutilados, eram alvo especial de seus gracejos.

Uma velhinha, enfraquecida e curvada pela idade, ele atacava com seus deboches, quando ela diariamente vinha andando com sua muleta, para tirar água do poço, que ficava perto do seu casebre, bem na divisa do pátio da Escola.

"Olhem só para ela! não é ela exatamente igual a letra "S" com um gancho?" costumava ele dizer. Mas as gargalhadas ordinárias, que ele soltava quando a seguia, caçoando e a imitando, não arrancavam dela uma única réplica. Mas um dia ela virou-se e com olhar de repreensão disse: "Vai para casa meu filho e lê a história de Elias quando os dois ursos saíram da mata".

"Cria vergonha Guilherme", disse Carlos Mansfeld, "Rir de sua desgraça! Ouvi minha avó dizer que ela ficou assim por ter criado um filho paraplégico e de tanto carregá-lo e tratar dele dia e noite ela mesma ficou defeituosa."

"Para mim é indiferente por que ela ficou assim" disse Guilherme, mas eu não deixaria ninguém me ver, se eu tivesse tal figura. Olhem só!"

"Que vergonha! Pare!" exclamou Carlos. "Cria vergonha!" vinha o som de voz de todos os meninos que estavam presentes. Para mostrar sua simpatia muitos vieram junto à pobre mulher para ajudá-la; mas Carlos o mais velho, sempre um modelo de generosidade e fidalguia, era o primeiro. "'Deixa-me tirar a água para a senhora, vózinha, e cortesmente tirou o balde de sua mão. Sua voz tremeu, e entre lágrimas ela disse: "Eu te agradeço meu bom rapaz, Deus te ajude que nunca venhas a passar por tais sofrimentos."

"E mesmo que acontecesse", respondeu bondosamente Carlos, "seria obrigação e devia ser um prazer dos mais moços me dar apoio. Um de nós vai levar diariamente a água à sua casa, para a senhora não ter o trabalho de vir buscá-la." "Sim, é isto mesmo que vamos fazer." "O Senhor vos abençoe, o Senhor vos abençoe a todos!" Ela limpou as lágrimas e entrou no seu pobre casebre.

Guilherme Winter foi acusado diante do professor da classe, e como castigo, por uma semana inteira, todo os dias, enquanto os outros estavam em recreio, ele tinha que ficar na sala de aula e estudar. O castigo para ele era duro, por que ele gostava das brincadeiras, mais do que os estudos. Mas muito diminuta era esta disciplina em comparação com a represália que ainda o aguardava.

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Tempos Felizes 50 Era o segundo dia de seu castigo. Ele estava sentado diante da janela aberta, olhando o

entusiasmo de seus colegas que brincavam no pátio. De repente quando o professor estava distraído no seu trabalho, com um grito de júbilo ele pulou para o meio deles, orgulhoso de sua façanha.

"Agora deixe que ele me castigue de novo, se ele puder", gritou arrogante, com os braços para cima, andando de costas, quando - de repente sua voz emudeceu. Ao mesmo tempo se ouviu um baque surdo, e terríveis gemidos que chegavam aos ouvidos de seus estupefatos colegas.

Aconteceu que o poço já mencionado, aquele no qual a velhinha tirava água, fora concertado e limpo e os operários justo nesse instante haviam se retirado, para ajuntar seu material e ferramentas. Por esquecimento o poço não tinha sido tampado, e justo no momento de seu triunfo, Guilherme caiu de costas nessa abertura. Um grito de terror se desprendeu do estupefato grupo, que acudiu ao local. Carlos Mansfeld o mais corajoso de todos, logo lançou mão de uma corda, amarrou-a em torno de si e desceu, para ajudá-lo. O poço era fundo, mas felizmente nesta ocasião quase seco.

Guilherme jazia no chão do poço paralisado. Cuidadosamente Carlos o ergueu, e com um braço em torno do corpo sangrento e inerte, e a outra mão segurando-se na corda, deu sinal, e vagarosamente foi puxado para cima. O rosto de uma palidez mortal do menino acidentado, encheu os restantes de horror. Num silêncio constrangedor, levaram-no à casa da velhinha, que estava bem próxima. Ela assistira a queda de sua janela, e apoiada na sua bengala acorreu o mais rápido que podia.

E lá estava Guilherme Winter na cozinha modesta e na cama daquela que ele com crueldade havia desdenhado, e fielmente ela obedecera às palavras d'Aquele que disse: "Fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maldizem e perseguem." Em silêncio subiam as orações dela a Deus pelo sofredor. Suas pequenas garrafinhas de cânfora e outros remédios vivificantes, que bondosos vizinhos haviam lhe trazido, usou para abrandar sua dor. De sua parca despensa ela tirou ataduras para sua cabeça, que estava bastante machucada e coberta de sangue, e esquecendo tudo, menos os sofrimentos dele, sentou-se a seu lado, banhando suas mãos e testa, enquanto alguns meninos correram em busca do médico e outros foram chamar o professor.

Parecia que os ferimentos na cabeça eram os únicos que sofreu, e depois de o médico o examinar foi levado ainda inconsciente, rodeado pelos colegas que em muda participação o carregaram numa maca, à casa de seus pais. Aquele dia deixou na mente dos alunos e do professor e de todos que ouviram do acidente, uma profunda impressão.

Algumas horas mais tarde, um grupo de meninos se reuniu no pátio. Sua conversação era em tom de cochicho.Pavor se estampava em cada rosto. Todos estavam pálidos e tomados de terror. Carlos Mansfeld se aproximou, "Como está o pobre Guilherme? alguém de vocês ouviu alguma coisa mais?"

"Ó Carlos", exclamaram alguns, ao mesmo tempo, juntando-se em torno dele. "Ele abriu os olhos e murmurou algo, quase não podia falar, mas acredita-se que ele quebrou a espinha". Carlos, gesticulava com as mãos, erguendo-as em silêncio, caindo num convulsivo choro. Alguns minutos ele acedeu aos seus sentimentos e depois ainda pálido e profundamente comovido e penalizado mas com voz firme disse aos seus colegas: "Amigos será que compreendemos bem a lição do dia de hoje?"

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Tempos Felizes 51 E o pobre Guilherme? Palavras são insuficientes para descrever sua angústia, sofrimentos

em corpo e alma que ele teve que suportar, durante meses no leito de dor. Mas quando com o corpo enfraquecido e desfigurado e uma cicatriz na testa ele se levantou, também seu coração estava mudado; seu espírito rebelde tomado de humildade e arrependimento estava em sujeição, a contrição tinha completado a sua obra, e quando se restabelecia e seus amigos o vinham ver, desejar-lhe um presto restabelecimento, ele colocava seus braços em torno do pescoço de cada um, e caía em pranto, mas não ousava falar alto, e só cochichava: "Perdão, perdão!" A seu pedido a velhinha pobre tornou-se moradora de uma linda casinha, que pertencia a seu pai, a qual ele lhe mobiliou e livre de aluguel lhe cedeu para o resto de sua vida. E sua mãe cuidava da velhinha com tudo que ela necessitava. Quando lhe foi possível, escreveu-lhe uma cartinha pedindo perdão, e ela em resposta lhe deu sua bênção.

Deste dia em diante a quarta parte de sua mesada dava para a velhinha. Ele muitas vezes a visitava na sua solidão, e finalmente ele fez as pazes com Deus e reconheceu seu castigo, mas infelizmente passou a ser um aleijado e corcunda.

Lebunsbelder, 1918

O COLAR DE PÉROLAS (Pode trocar por broche) Irma e Betti, as amigas inseparáveis, rumavam juntas à escola. Irma tinha passado na casa

de Betti bem cedo e elas não precisavam se apressar, mas com toda animação perambulavam para a escola. Elas se viam todos os dias, mas diariamente acontecia algo de novo que era importante para ambas.

Hoje Betti começou a falar de seu aniversário que seria amanhã. "Que bom que cai justamente na quarta-feira que é feriado e não haverá aula! Aí você vem

em minha casa!" disse ela. Mas Irma se assustou. Já amanhã seria o aniversário? Ó, ela já havia insinuado misteriosamente à Betti, que lhe daria um fino presente, e por certo Betti contava com isso. O que ela poderia fazer? Ela nem conseguiu mais prestar atenção ao que Betti estava contando do bolo que sua mãe iria fazer, e do livro que o pai lhe prometera. Com as faces coradas ela pensou o que poderia fazer agora.

Desde algum tempo Irma recebe uma mesada de seu pai, da qual ela mesma deveria comprar as miudezas que precisava para a escola. Mas Irma era uma comadre doceira, e apesar de todos os bons propósitos que ela tomava, cada vez que recebia o dinheiro, já no fim da primeira semana não sobrava dinheiro nenhum.

A mãe que percebera que a maior parte do dinheiro rumava para a confeitaria, por várias vezes falara com sua filhinha. Mas a melhora prometida nunca durava muito. Já quantas vezes Irma tomou o propósito de agora em diante ser bem econômica, pois ela queria dar para sua

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Tempos Felizes 52 amiga do coração um colar de pérolas para o aniversário. Um igualzinho ao que a Amálie Baumann usava ultimamente e Betti sempre admirava.

Ele custava exatamente a mesada, mas Irma também sabia que só lhe restavam na bolsinha alguns centavos porque havia gasto tudo em lambisqueiras.

Mas o presente ela queria dar à amiga de qualquer maneira - Devia haver uma possibilidade para isso.

"Ó Irma, agora já lhe perguntei pela segunda vez se você vem com o vestido cor de rosa ou o estampado quando você vier amanhã na minha casa!" exclamou Betti aborrecida. "Estou curiosa para saber sobre o que você está pensando!" "Ah, eu penso que vou com o vestido cor de rosa", respondeu Irma distraída. "Sabe Betti, eu imagino a sua cara, quando eu levar meu presente!" "Estou curiosa mesmo, o que será?" confessou Betti.

Agora não posso mesmo mais dar para trás, pensou Irma, mas ela não se sentia bem com esta situação. Se ela só não tivesse comprado aqueles doces com creme chantili semana passada e essa semana o chocolate! De todas estas lambisqueiras ela já não tinha mais nada. E agora ela estava nesta situação embaraçosa. Que situação mais boba!

E Irma que não era uma má aluna, nestas circunstâncias não podia prestar atenção na aula. Na aula de matemática, a amável Amálie Baumann cochichou atrás dela temerosa: "lrma por favor preste atenção eu não estou entendendo nada outra vez das contas, e a quem eu vou pedir explicação depois?"

lrma virou-se um pouco para trás. Amálie estava usando o colar de pérolas que Betti tanto admirava. Um pensamento atravessou a cabeça de Irma. Uma possibilidade, de levar ainda o presente para sua amiga. Ela anuiu significativamente para a temerosa Amálie, e de fato agora conseguiu prestar atenção, apesar de certos pensamentos sempre passarem de novo na sua cabecinha. Ela teria que saber as contas se ela quisesse alcançar o seu objetivo.

Na hora do recreio ela tomou Amálie pelo braço, esta se mostrou toda alegre com isso. "Como é, você conseguiu acompanhar as contas?" ela perguntou com gentileza intencional.

"Não, nada, é terrível; eu não consigo enfiá-las na cabeça"' "Sabe Amalinha, você as poderia copiar de mim, se você me fizesse um favor!" "Ó sim, com prazer! Você é tão boa para mim! O que você quer que eu faça?" "Será que você me poderia emprestar seu colar até segunda-feira que vem? Então eu devolvo para você sem falta. Eu vou cuidar bastante, você não precisa ficar preocupada!" Amálie olhou um pouco apreensiva. "Até segunda-feira, e hoje ainda é terça!".

"Bem se você não quiser, deixe!" exclamou Irma indiferente. "Depois você pode se arranjar sozinha com suas contas!" Isto causou efeito! Amálie soltou o colar de seu pescoço e cuidadosamente depositou na mão espalmada de Irma, pedindo: "Mas só até segunda-feira; aí você me devolve!"

"Sim com certeza! palavra de honra!" disse Irma sem pensar e guardou o seu tesouro no bolso de seu uniforme, para ninguém perceber nada do negócio. "O caderno de matemática você pode buscar à tarde na minha casa e me devolver depois" disse Irma então.

"Mas vem, ainda queremos brincar um pouco". Amálie saiu dando pulos de alívio, porque a matemática era seu pavor diário. Mas Irma apesar de sua vitória não se sentia bem. A mamãe não concordaria com o que ela fez, ela bem sabia disso. Mas enfim ela havia prometido à Betti um presente, e promessas a gente tem que cumprir, isso a mãe também afirmava. "E a promessa de devolver o colar na segunda-feira à Betti? dá para cumprir essa promessa? Perguntava a voz da consciência. Ah, sim! Segunda-feira eu recebo minha mesada; aí eu compro um colar bem

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Tempos Felizes 53 igual e trago para Amálie. Isto vai dar muito certo, e ninguém vai perceber nada!" Assim ela procurava se convencer a si mesma.

Na quarta-feira à tarde, de fato a mãe permitiu que ela fosse ao aniversário de Betti, com seu vestido cor de rosa, de festa, e um lindo buquê de flores que a mãe colhera no jardim, para dar os parabéns.

Embrulhado numa graciosa caixinha que ela uma vez recebera de sua avó, ela colocara o colar e agora pôs o presente em cima da mesinha junto com os outros presentes. Betti ficou muito feliz com o presente, e não podia suspeitar que o colar que estava colocando no pescoço, pertencia à Amálie Baumann.

"Fica muito bonito em você!" elogiou Irma. "Mas por enquanto você só vai usar nas festas, não é? Com este vestido ele combina muito melhor do que com o avental de uniforme". "Ó sim, naturalmente, e eu agradeço, muito, muito mesmo. Você é uma boa amiga!" elogiou Betti.

Irma involuntariamente teve que se lembrar da mãe, que tantas vezes quando orava com sua filhinha, pedia ao Salvador Jesus para fazer sua filha verdadeira, sábia e honesta. Ela sabia que agora tinha agido desonestamente outra vez. Ela só temia que Betti pudesse levar o colar na escola e mostrar para as colegas, e Amálie reconhecer o colar como seu, e isso seria muito desagradável. Mas durante a festa, quando foi servido o bolo, os doces e as bebidas ela estava bem alegre, esquecendo seus maus pensamentos.

Betti por sua vez admirava repetidamente o colar de pérolas e reafirmava que não poderiam ter dado a ela maior alegria, do que este presente.

Satisfeita Irma voltou à tardinha para casa e contou à mãe que a festa estava muito linda, e que Betti ficou muito feliz com o buquê de flores. Do colar ela não contou nada, mas perguntou com uma prestatividade fora de comum: "Posso lhe ajudar em alguma coisa, mãe?" e então foi rapidamente executar a tarefa indicada para fugir do olhar da mãe que descobria tantas coisas ...

"Segunda-feira estará tudo normalizado", ela mesma se consolava, quando lhe veio o pensamento, de que antes de ela ter imaginado o negócio do colar, ela era muito mais feliz. Mas antes de segunda-feira ainda veio a sexta-feira na qual Irma perdeu sua borracha e não conseguia achar em parte alguma. Mas para a aula de desenho ela precisava ter uma, senão seria repreendida pelo professor. O último dinheiro que ainda possuía trocara ontem por um chocolatinho. "Pai, você pode me dar 10 reais? eu preciso muito mesmo de uma borracha", pediu ela ao pai quando este chegou em casa. "Mas Irma, você está outra vez sem dinheiro?" perguntou o pai com a testa enrugada. "Vai chegar ao ponto em que vou cortar sua mesada, você esbanja tudo em guloseimas!Você decididamente ainda é muito criança para ganhar mesada, é melhor cortarmos isso."

Irma suplicou assustada: "Por favor, eu vou aprender agora a não esbanjar, mas a borracha eu realmente preciso para meus desenhos". O pai puxou a carteira, e Irma se regozijou, mas antecipadamente. "Toma R$ 10,00 para a borracha. Mas não pensa que amanhã vai ganhar outra vez dinheiro. Estes R$ 10,00 nós vamos descontar da mesada, e vê se controla melhor senão vai acabar a mesada", disse o pai.

"E agora vai correndo buscar a borracha antes que o seu Miguel feche o bazar, e depois me mostre a borracha!" Consternada e silenciosa Irma se retirou. A borracha ela teria que comprar, ela percebeu que o pai não estava para brincadeira. Senão ela poderia ter emprestado a borracha de sua colega, para este dinheiro não fazer falta para o colar. Assim já estavam faltando R$ 10,00 para a compra do colar.

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Tempos Felizes 54 Por um momento ela pensou em falar com a mãe e contar-lhe tudo; talvez ela a ajudasse.

Mas logo rejeitou esse pensamento, a mamãe ficaria brava, isto era de esperar. "Irma você trouxe meu colar?" perguntou Amálie, assim que as crianças se encontraram

segunda-feira. Mas Irma já tinha imaginado uma mentira, que logo ela aplicou. "Ah, sabe Amalinha eu queria mostrar seu colar à minha tia, quando ela vier em casa, para ela comprar um igual para mim de presente. Mas ela, só pode vir no sábado que vem. Mas você espera até lá, se eu deixar você copiar as tarefas de matemática a semana toda? Mas você não pode falar para ninguém! promete?" Amálie queria dizer que ela não achava necessário, que o colar ficasse a semana inteira com a Irma, que ela o poderia emprestar rapidamente de novo quando a tia viesse.

Mas ela era tímida demais para isso, e a perspectiva de poder copiar a semana inteira as contas era muito tentadora. Assim ela prometeu tudo o que Irma queria. Esta suspirou aliviada; no entanto, seu coração estava tão pesado! Outra vez ela mentiu e entristeceu seu Salvador. Na hora do recreio veio Betti toda alegre, pois era de outra classe.

"Menina, o padeiro ai da frente tem umas tortinhas tão apetitosas expostas no balcão! Você vai comprar para cada uma de nós, você recebeu mesada ontem não é?" "Não, eu preciso economizar!" Irma quis evitar a tentação. "Ah! depois você ainda tem muito tempo para economizar! compra só um pelo menos. Quando eu tiver dinheiro também compro alguma coisa para nós duas. Sabe, você não seria uma amiga gentil, se você não viesse comigo!" disse Betti amuada, e Irma estava exposta à tentação de gastar outra vez dinheiro em lambisqueiras. A tortinha tinha um gosto horrível quando ela lembrou que o pai não lhe daria mais dinheiro se ela não aprendesse a ser econômica.

No decorrer das semanas seguintes, Amálie veio à casa de Irma buscar o caderno de matemática, muitas vezes. E uma vez disse angustiada: "Você precisa me devolver meu colar, porque a mãe já perguntou porque não o uso mais".

"Espero que você não tenha contado nada", desesperou-se Irma corando como um tomate maduro.

"Não, não! nem pense tal coisa". Amálie a aquietou, "eu só disse que eu iria usar outra vez!"

"Espere só mais um pouco; eu agora não posso entrar no quarto porque tem visita lá em cima", mentiu Irma, "mas eu o levo para você, logo".

Depois ela sentiu-se mal a ponto de chorar. Ela se emaranhava cada vez mais em mentiras por causa desse presente bobo, e por certo Jesus não a amava mais. Já há muitas noites que ela já não podia mais orar como antes, assim de coração. À tentação de comprar guloseimas ela já havia cedido outras tantas vezes, e quando o pai perguntava como gastava o dinheiro da mesada, ou ela tinha que mentir ou ela não recebia mais dinheiro, se ela contasse a verdade. Como ficaria a triste e desastrada história do colar ?

Irma estava muito infeliz, assim como a gente se sente quando anda nas veredas do pecado, e ela não encontrava mais solução. A mãe por certo percebeu que algo de errado estava acontecendo com sua filhinha. Ela disse isso a Jesus em oração, e pediu que livrasse Irma de andar por maus caminhos.

Na quinta-feira Irma foi fazer compras para a mãe. Enquanto isso chegou Amálie para conversar com ela. A senhora Martins, mãe de Irma, percebeu a aflição da menina, que ficou tão preocupada por não encontrar a amiga em casa, e assim ela perguntou gentilmente: "Era alguma coisa importante que você queria conversar com Irma?"

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Tempos Felizes 55 "Sim", disse a tímida menina. "Eu queria ter de volta o meu colar, porque a mãe ficou

muito brava e pensa que eu o perdi." "O seu colar? mas ele está aqui em nossa casa?" perguntou a sra. Martins admirada. "Sim

já faz muito tempo. Irma quer mostrá-lo amanhã à sua tia quando ela vier de visita." "A tia que vem amanhã?" A sra. Martins estava cada vez mais estupefata; o que ela diria

agora?" "Vai, e diga à sua mãe, que Irma não estava em casa, mas que o colar ela vai lhe devolver amanhã mesmo, em sua casa. Eu vou cuidar disso."

"Mas isso eu não posso contar para minha mãe", disse Amálie, e caiu em prantos. Irma me proibiu de falar a qualquer pessoa que o colar está com ela, e agora eu acabei contando para a senhora, e Irma não vai me deixar mais copiar as contas!" A sra. Martins abraçou a chorosa criança. "Veja, vocês duas não estão em bom caminho agindo dessa maneira".

Ela disse bondosamente, mas determinada. "A mãe sempre pode saber tudo o que suas filhas fazem, e você também devia dizer à sua mãe a verdade. E quanto à matemática, o professor por certo não ficaria satisfeito se soubesse que vocês estão copiando uma da outra. Isto é desonesto".

Amálie soluçava cada vez mais. "O que é que eu vou fazer?" perguntou ela aflita, mas confiante. "Eu não consigo entender as contas!" "Pergunte à sua mãe se você pode vir aqui em casa, então nós vamos resolver isso. E agora vai e conta tudo para ela como tudo aconteceu, e que eu prometo a você que amanhã você terá seu colar de volta". Aliviada a menina correu para casa.

Mas a sra. Martins esperou com coração dorido por sua filha. E ela orou: "Senhor, ajude à minha filha a encontrar o caminho de volta para a verdade e o dever".

A Sra. Martins não contou nada à Irma da visita de Amálie, mas esperou até a hora de Irma deitar, quando ela fazia com sua filha a última oração, antes de dormir. Ela já havia percebido que já muito tempo esta não orava mais de coração, e agora encontrou a explicação para isso. Ela tinha a esperança que hoje à noite sua filha se libertasse dos espinhos do pecado e da inquietude.

"Eu estou com sono", bocejou Irma quando sua mãe se sentou a seu lado na cama. Antes sempre era um prazer quando a mãe tinha uma horinha para ela, mas agora isso se tornou desagradável. Ela teria ficado contente se a mãe tivesse se retirado logo. Mas ela tomou a cabecinha de sua filha nas mãos, ergueu seu rosto e olhou com bondade e misericórdia bem nos olhos dela: "Filha onde está o colar de Amálie Baumann?"

Profundamente decepcionada, Irma fixou sua mãe. O inimigo de sua alma teria gostado de colocar mais uma mentira em sua boca. Mas a voz amorosa da mãe continuou: "Eu pedi a Jesus que não deixasse você mentir a mim, mas me dissesse a verdade completa!" Então a criança se jogou no seu travesseiro e começou a chorar amargamente. Ela estremecia de tantos soluços. Mas no fundo ela se sentia aliviada, que em fim tudo seria esclarecido. Ela se sentia tão deprimida e estava cada vez mais infeliz. Sim ela queria contar tudo, tudo. A mãe esperou até que a menina se acalmou; ela orava em seu coração.

Enfim Irma conseguiu falar, e ela confessou tudo à sua mãe, de sua gulodice e como ela queria dar um presente para sua amiga Betti, e como mentia para Amálie. Aos poucos, e interrompida por muitos soluços, mas sinceramente toda a triste história veio à luz. A mãe estava profundamente entristecida.

"Você vê como um pecado sempre puxa outro pecado? Se você tivesse pedido a Jesus para livrá-la da tentação da gulodice, você teria dinheiro suficiente para comprar um presente para

Page 56: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 56 Betti. E se você já não tivesse o feio hábito de petiscar, também não teria que ocultar nada de sua mãe. Se você tivesse vindo a mim poderíamos conversar sobre o assunto, e por certo teríamos encontrado algo muito melhor e mais útil que um colar de pérolas ilegítimas. Este por sua vez, fez Amálie mentir, esta história desonesta de copiar contas, você a tentou a fazer isso. À Betti você também mentiu, se não com palavras, mas você a fez acreditar que você comprou o colar para ela. Com suas mentiras você trouxe embaraço para outros. Amálie sofreu muito com isso, que sua mãe por causa do colar ficou tão brava com ela, e por sua causa quase apanhou. Você devia ter dado na escola um bom exemplo, pois você tem pais que cedo a ensinaram a amar a Jesus e andar nos seus caminhos!"

Irma estava sinceramente arrependida. Só agora ela compreendeu a enormidade de seu pecado, e também ela agora perguntou angustiada: "O que devo fazer?" A ela parecia que nunca mais as coisas ficariam bem.

"Em primeiro lugar nós temos que ir Àquele que você mais entristeceu, para pedir-Lhe perdão; você sabe quem é?" "Sim, é o Senhor Jesus", veio a triste resposta dos lábios de Irma. Mas já há muito tempo não posso mais orar a Ele de coração aberto".

"Isto eu sei, porque o seu pecado estava entre Ele e você. Mas se você estiver arrependida de coração, e confessar o pecado a Ele, então Ele quer lavar seu coração com Seu sangue e lhe perdoar todos os pecados. Vamos contar tudo a Ele." Como Irma se sentiu aliviada quando a mãe orou com ela ao Senhor Jesus e pediu perdão, e depois ela mesma orou e sentiu que agora ela amava a Jesus muito mais do que antes, porque Ele era tão bom e lhe perdoou todo mal, e queria ajudá-la para que daqui por diante tudo fosse diferente.

"O que você ainda tem por fazer, o Senhor Jesus mesmo dirá", disse a mãe muito séria. "Eu espero, que minha filha o compreenda e obedeça a Ele. E agora boa noite, minha filha!" "Boa noite, mamãe!" À Irma também parecia que nunca a mãe a amou tanto como hoje à noite, embora ela reconhecesse quão feio sua filha tinha agido! Apesar da muita canseira ela demorou muito para pegar no sono. Ela estava receosa de enfrentar a manhã seguinte, embora um grande peso lhe tenha sido tirado, porque agora ela podia orar outra vez e agora dizer a Jesus: "Ajuda-me Senhor, para que tudo fique bem outra vez, também com Betti e Amálie".

No desjejum na manhã seguinte ela se assustou deveras quando o pai antes do culto disse: "Como você vai resolver o emaranhado caso do colar de pérolas?" Irma corou até à raiz dos cabelos, mas ela sabia que diante do pai ela não podia chorar, senão ele a mandaria sair da sala. Então corajosamente ela disse: "Eu tenho que ir à casa da Betti, contar-lhe tudo e pedir que me devolva o colar para o entregar depois a Amálie". "Sim, eu penso que esse é o caminho mais certo, e espero que lhe sirva de lição". disse o pai, e a mãe lhe sorriu com aprovação.

Então o pai fez a leitura bíblica como todas as manhãs e depois orou especialmente por sua filhinha. Depois que o pai tinha saído e ela arrumou sua pasta ela disse receosa à sua mãe: "Mas o que Betti vai pensar e falar? eu estou com tanta vergonha de lhe dizer que o colar nem lhe pertence!".

"Da sua mentira você deve se envergonhar, mas você não teve medo para aparentar uma coisa que não era real. Então agora tenha também coragem bastante para desfazer o mal que você fez. Vai agora minha filha, e eu vou orar por você para Jesus dar ânimo para você proceder corretamente. A Amálie você pode dizer mais uma vez, que nós a aguardamos para a semana que vem, e que traga seu caderno de matemática." "Ó mãe, também aí você vai ajudar!" disse Irma e, feliz seguiu seu caminho.

Page 57: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 57 Betti naturalmente fez cara de surpresa quando a amiga lhe disse: "Você me devolveria o

colar? Ele pertence a Amálie". A amiga levou algum tempo para compreender o relato gaguejado de Irma. Mas depois, ela não reagiu como Irma esperava, mas só disse meio embaraçada: "É uma história muito boba, mas eu devolvo a você. Agora já não gosto mais dele".

Betti imaginou que essa confissão devia ter sido muito difícil para Irma; e ela não queria causar-lhe mais dificuldades ainda. Em silêncio ambas fizeram o resto do percurso até à escola, e lá se separaram com uma ligeira mas cordial saudação.

Bem isto estava resolvido! Agora falta só Amálie que vinha vindo outra vez com cara lamentosa, porque temia que Irma estava de mal com ela porque ela falou à sua mãe, do colar. Não, Irma não estava zangada mas grata por não ficarem de mal com ela. Ela pôs rapidamente a caixinha com o colar na mão de Amálie e disse apressada. "Eu sinto muito, eu menti a você sobre o colar, toma-o de volta, a caixinha pode ficar para você. A semana que vem, segunda-feira é para você vir em casa e trazer seu caderno de matemática, a mãe é que mandou dizer". Então ela foi apressadamente à sua sala de aula ocupar o seu lugar. Ela disse baixinho, mas de coração: "Obrigada, Jesus!" porque um peso após outro lhe ia sendo tirado.

Na segunda-feira, a sra. Martins falou com as duas meninas sobre como é desonesto o copiar uma da outra, e fez a proposta, que nas tardes de folga, se a mãe de Amálie o permitisse, ela viria em casa para juntas estudarem; assim com o tempo, Amálie poderia melhorar na matemática.

"Irma vai fazer isso com muito prazer, pelo mal que ela lhe causou; é uma maneira de compensar com o bem. Não é, Irma?" A menina consentiu com feliz sorriso. Assim era bem melhor, do que todos os segredos mentirosos, dos quais ela agora sentia verdadeira repulsa. E Amálie estava radiante. Ela gostaria de vir aqui mais vezes; ela se sentia tão bem perto desta senhora que amava ao Senhor Jesus. Amálie também queria amá-Lo e obedecer-Lhe.

Agora na casa dos Martins há muitas vezes uma reunião feliz, na sala ou no jardim; a mãe de Irma, Betti e a pequena Amálie. E todas elas aprendem cada vez melhor a andar nos caminhos do Senhor e ser-Lhe obedientes e caminhar na Sua mão.

Aqueles que querem fazer assim serão bem-aventurados. Marta Wild.

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Tempos Felizes 58

O MENINO CIGANO A Bulgária é o berço dos ciganos. Há aldeias inteiras de ciganos, e de lá eles saem a viajar

a maior parte do ano pelo país todo. Algumas vezes trabalhando, muitas vezes só esmolando ou roubando. Já as crianças pequenas aprendem a roubar, e ninguém lhes diz que isso não é direito. Só é ruim para um cigano quando ele é pego em flagrante.

Belor, um esbelto cigano de pele amorenada, cabelos pretos e reluzentes olhos escuros, que muitas vezes com estranho e saudoso olhar, observava as crianças brancas, como elas ao anoitecer entravam em suas casas e junto com os pais alegremente se assentavam ao redor da mesa para a ceia. Também era deveras bonito, perambular assim pelo mundo, e a noite deitar-se dentro do carroção ou debaixo dele para dormir; esta vida livre e selvagem era rica em alternativas. Mas muitas vezes Belor desejava passar algum tempo numa confortável casa de camponeses na domesticidade de um confortável lar. E assim ele surpreendeu um dia seus pais, com o desejo de estar a serviço de um camponês por algum tempo.

"Ó Belor você vai se aborrecer muito cedo!" disse-lhe o pai. "Isso você não pode!" E a mãe caçoou: "Para esses homens, cabelos cor de trigo você quer trabalhar? Você muito cedo vai achar esses gordos camponeses terrivelmente maçantes, e você vai se sentir feliz em poder voltar para nós!" Mas essa desconfiança da sua capacidade em não saber trabalhar, é que reforçava Belor na sua decisão.

Quando o carroção passou por uma bonita aldeia, o menino, depois de uma curta despedida pulou do camboio e vadeou pelas ruas à procura de serviço. Ali estava uma casa que ele gostou. Oferecia um enorme contraste entre o sujo e pequeno carroção no qual Belor nasceu e foi criado. A casa parecia uma jóia, como era tudo limpo, diante da porta e os degraus de tijolos! O cão que saiu latindo ao seu encontro Belor apaziguou com palavras lisonjeiras. Para surpresa do camponês, que agora apareceu na moldura da porta, Nero estava ao lado do menino abanando o rabo amigavelmente, e este desembaraçadamente perguntou por trabalho.

"Sabe fazer alguma coisa?" perguntou o Camponês, olhando desconfiado para o menino. "Ó sim, sei muita coisa, e o que o senhor sabe fazer eu logo aprendo!" foi a resposta de Belor, que sorrindo mostrou seus alvos dentes.

"Então venha para almoçar, depois nós vamos ver", disse o bondoso camponês, e mandou Belor entrar na limpa cozinha. A mãe da casa, filhos crescidos, criados e criadas, lá estavam sentados para a refeição, e rápido foi colocado um prato para Belor. Achou maravilhosa a

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Tempos Felizes 59 comida que lhe puseram no prato, e seus espertos olhos logo observaram como se maneja garfo e colher. Até agora comia, comia quase sempre com os dedos. Quando no fim da refeição o pai da casa tirou o gorro e com voz reverente proferiu uma oração, Belor ficou muito admirado. A ele nunca ensinaram a orar.

O camponês lhe deu algumas tarefas e Belor se mostrou muito jeitoso e competente. Não lhe agradou muito, o ficar de contínuo num só serviço; mas ele agüentou até à noite. Que à noite depois da janta, se fizesse oração de novo e se lia de um pequeno livro, Belor aceitou como coisa sem nexo nem expressão. Mas o pessoal era gentil e a comida boa; e ele resolveu ficar.

Assim passaram alguns dias. Era tempo de colheita, e havia muito que fazer para esse esperto e forte menino. Para conversar com ele, ninguém dispunha de muito tempo. Mas aos poucos Belor começou a prestar atenção quando cedo e à tarde era lido o pedaço do livro. Coisas estranhas continha esse livro! Um dia no fim do trabalho, o menino estava parado na porta olhando à distância. Onde estaria sua estirpe? Um pequeno menino passou soprando sua gaitinha.

Esses sons despertaram um dilúvio de recordações em Belor. Ele recordou as noites ao redor da fogueira, e como ele tocava sua gaita que esmolara de um menino da cidade. E o pai exclamou: "Bravo isto já vai muito bem!" E agora o pai também tocava no seu velho violino, e a música ecoava no coração do menino que meditava, tentadora e apaixonante. Então despertou a saudade da vida nômade forte e dominante. "Embora daqui, embora!" era a única coisa que Belor ainda podia pensar. Já ele queria sair correndo, mas sentiu que deveria dizer adeus ao gentil camponês.

Ele foi à sala onde presumia encontrar o dono. Mas não havia ninguém, e Belor achou bom, porque de repente ele sentiu vergonha diante do olhar indagador do camponês, que por certo perguntaria se ele estava fugindo do trabalho. Embaraçado olhou em torno, sobre a mesa estava o conhecido livro. Está no sangue cigano, que ele não pode ver nada às soltas, sem se apropriar. Belor era nisso um legítimo cigano. Depressa agarrou o livro, enfiou na roupa e fazendo patinhas de gato, deixou a sala para desaparecer no escurecer da tarde.

O menino cigano depois de sucessivas buscas reencontrou sua tribo, que o recebeu com efusivas manifestações de alegria, risos e gracejos. Eles esperavam que ele não ficaria longe por muito tempo. Mas Belor levantava orgulhosamente a cabeça e gabava-se de quanto ele trabalhou e como foi bem tratado. Talvez só fosse uma visita; depois ele tencionava voltar ao trabalho. Mas então ele se deliciou perto da fogueira onde assavam um ouriço, e depois ajudou a devorar como esfomeado.

E assim mesmo teve que comparar: Aqui o bando selvagem e barulhento que ávidos com mãos sem lavar avançavam, e lá pessoas educadas e amorosas. "Eu trouxe algo para vocês!" exclamou Belor enfim! "Espero que sim, filhinho! mostre depressa o que é!"

Belor puxou o livro de seu bolso. "Ah, um livro, um livro! Alô, Grigor! você que saber ler! deixe-nos ouvir o que Belor trouxe!" O pequeno Grigor, o único do bando que sabia ler fluentemente, tomou orgulhosamente o livro em suas mãos. Limpou as mãos na sua calça, abriu na primeira página e disse: "Atenção, este é um livro sagrado! Aqui diz: 'O Novo Testamento de nosso Senhor Jesus Cristo' ". De Jesus alguns ciganos já tinham ouvido alguma coisa. A vovó sabia que Ele é o Filho de Deus; ela anuiu e disse: "Esta é uma coisa boa; deixe ouvir, Grigor!"

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Tempos Felizes 60 Grigor olhou a primeira página, eram só nomes; estes ele passou. Mas então ele começou a

ler em voz alta, de José e Maria, e do menino que deveria chamar-se Jesus, e salvar o Seu povo dos seus pecados. Ele leu dos magos do Oriente, da fuga para o Egito. Silenciosamente ouviram velhos e jovens. E quando Grigor fechou o livro exclamaram satisfeitos:"Isto é uma coisa boa Belor! Amanhã Grigor terá que ler mais para nós!" Todas as noites os ciganos se reuniram em torno de Grigor, e sempre com crescente atenção ouviam as histórias de Jesus.

Era tudo novidade para eles. Alguns deles durante a leitura se sentiam incomodados: Este Jesus falava e vivia de uma maneira tão diferente que eles; e agora compreenderam tão bem porque Deus exclamou do Céu: "Este é meu Filho amado em quem Me comprazo". Neles Deus não podia ter nenhum prazer, isto eles sentiam claramente. Mas sempre queriam ouvir mais. Tão silenciosos os ciganos nunca tinham passado seus serões como agora, desde que o livro sagrado tinha encontrado um lugar entre eles. Belor ainda olhava o livro como propriedade sua, e depois de cada leitura ele o guardava novamente.

Numa noite Grigor leu a linda história de como Jesus deixou vir a Si as criancinhas. Eles gostaram tanto, e imaginaram que Ele por certo também teria tomado no colo as criancinhas ciganas e as acariciado. Em seguida, veio a história de alguém que perguntava como podia obter a vida eterna. Atentos os ciganos ouviam. Vida eterna? Todos eles no íntimo sentiam medo da morte. O que se devia fazer para obter vida eterna? Guardar os mandamentos de Deus, eles ouviam, e em seguida mencionava alguns: "Não matarás; não adulterarás; não furtarás!"

Estupefato Grigor parou de ler, e atemorizados os outros ciganos olharam para ele. "Não furtarás!" repetiu Grigor baixinho, como para se convencer que era isto que estava escrito. Não havia um entre eles que já não tivesse roubado muitas vezes. Deliberadamente se entreolharam. E Belor tinha furtado até o livro sagrado!

"Talvez isto não tenha sido escrito para os ciganos", acudiu o pai de Belor vagarosamente em meio ao silêncio. Mas nem ele acreditava neste consolo, e não retorquiu quando Grigor respondeu: "Nós nos alegramos antes, que todas as palavras boas servissem para nós os ciganos, e um pouco atrás Jesus disse uma vez: 'Vinde a mim TODOS, os que estais cansados e sobrecarregados'. Por certo Ele também quer dizer aqui, que todos não devem furtar. Isto também serve para nós".

Disse isto e silenciosamente fechou o livro e o devolveu a Belor. Singularmente silenciosos os ciganos se separaram naquela noite e se deitaram para dormir. Mas não foi tão fácil pegar no sono como nas outras noites.

Belor se remexia desassossegadamente e olhava para as estrelas que piscavam lá no alto. Nunca elas o incomodaram para dormir. Mas esta noite a mente sempre lhe repetia as amargas palavras: "Não furtarás". E pesou em seu coração, o ter roubado as pessoas que foram tão gentis para ele. Enfim levantou silencioso, cochichou algo no ouvido de seu cachorro que logo atento o queria acompanhar em sua andança noturna, e deixou apressadamente o acampamento.

Belor viajou muitas horas naquela noite, e finalmente deitou-se debaixo de um madeiramento e logo adormeceu profundamente e sem sonhos. Revigorado levantou-se quando os primeiros raios solares se infiltraram pela folhagem, e de pronto seguiu seu caminho. Quase ao meio dia chegou na aldeia onde havia trabalhado durante a colheita, por muitos dias. Não tinha comido nada além de uma mão cheia de amoras silvestres. Embora tivesse várias oportunidades de se apoderar de alguma coisa, ecoavam nos seus ouvidos repetidamente as palavras: "Não furtarás."

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Tempos Felizes 61 Não tão atrevido como da primeira vez, mas quase acanhado Belor entrou na imponente

casa de campo, onde ele foi saudado gentilmente pela camponesa. "Ah! mas isso é bonito que você aparecesse de novo!" disse ela. "Nós ficamos muito sentidos pelo fato de você ter fugido assim aquela vez, nós bem que precisávamos de sua ajuda!"

"Eu trouxe aqui o livro de volta!" gaguejou Belor e tirou o Novo Testamento. "Hei, pai!" chamou a mulher, e o camponês logo apareceu. Logo reconheceu Belor, e não ficou pouco admirado quando este colocou o objeto roubado em suas mãos.

"Então foi você que aquela vez levou o Novo Testamento!" disse o homem sério. "Nós nem sabíamos que fim tinha levado! Você sabe ler?" "Eu não, mas um dos nossos lê muito bem, e ele lia para nós todas as noites." "Muito bem! e como você resolveu devolver o livro?" indagou o camponês. "Porque Jesus diz nele: Não furtarás!" disse Belor e seu rosto corou fortemente.

"Isso me alegra, que você queira dar ouvidos a isso que Jesus diz." "E veja, agora Jesus me diz, que devo devolver o livro a você." "Vocês querem honrar devidamente este livro, e continuar lendo nele?"

"Ó sim, isso nós queremos!" disse Belor solene e alegremente. Aquela gente amorosa ainda o convidaram para almoçar com eles, depois Belor voltou outra vez para os seus. No dia seguinte ele chegou ao acampamento, sendo recebido jubilosamente pelos seus compatriotas. E a alegria foi maior ainda, quando ele lhes contou, que agora o livro sagrado lhes pertencerá por direito e para sempre.

Os ciganos continuaram a examinar o livro de Deus; nele aprenderam a conhecer Jesus sempre melhor, e perceberam, que Ele pode dar tudo aquilo, pelo que inconscientemente anseia também um coração cigano: A paz de alma, a vida eterna; e eles aprenderam, que o Senhor Jesus, este precioso bem, morreu também por eles lá na cruz no Calvário.

Este foi o começo da missão cigana na Bulgária. Numa aldeia cigana, há uma pequena igreja, que pertence a eles e à qual eles freqüentam assiduamente. Eles também têm um missionário cigano próprio, que lhes explica a Palavra de Deus e lhes mostra o caminho para Jesus.

Já muitos ciganos aceitaram Jesus como Salvador em seus corações e tornaram-se pessoas felizes. Quem sabe Belor um dia também se tornará um missionário, e então de uma maneira bem diversa do que a primeira, levará a boa nova do Senhor Jesus aos seus compatriotas!

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A ORAÇÃO DE SUSI Era num feriado. As crianças se reuniram num campo de esportes e tiveram algumas horas

de brincadeiras bem agradáveis. "Venham, meninos e meninas", chamou Frederico Wendel, "vamos brincar de caçar

esquilos". Todos concordaram entusiasmados, e um grande círculo foi formado, e Frederico como dirigente, pois ele era o maior.

"Vem cá, Susi" disse um dos meninos a uma pequena menina parada ao lado, parecendo temerosa para se juntar a eles. "Ah, deixe essa de lado", disse Frederico, com um gesto desprezível jogando a cabeça. "Essa não é estimada por ninguém; o pai dela é um bêbado".

O rosto pálido da menina corou ligeiramente quando essas ferinas palavras chegaram ao seu ouvido. Ela era muito sensível e a seta aguda acertara seu coração no lugar mais ferido. Seu pai era um beberrão ela bem o sabia, mas diante de todos ter lançado isso em rosto era mais do que ela podia suportar, e com choro sufocado e lágrimas quentes rolando no seu rosto, saiu correndo.

Sua mãe sentada diante da janela costurando, viu o rostinho banhado em lágrimas que denunciava claramente que algo havia acontecido que a magoou.

"O que aconteceu Susi?" perguntou ela mostrando simpatia. "Ó mamãe!", respondeu a pobre menina, enquanto as lágrimas deslizavam pelas suas faces

e ela escondeu seu rosto no colo da mãe, "Frederico Wendel disse palavras tão ferinas a mim", os soluços lhe sufocavam a voz, e ela quase não conseguia falar. "Ele disse que ninguém me considera e que meu pai bebe".

"Minha pobre criança!" disse a sra. Ellet muito triste, e também seus olhos se marejaram de lágrimas. Tais conversas ofensivas não lhe eram novidade.

"Ó mãe", disse Susi quando levantou seu rosto coberto de lágrimas do colo da mãe, "eu não suporto eles falarem, e se comportarem como se eu tivesse cometido uma blasfêmia. Ah, se o pai não bebesse. Você acredita que um dia ele vai deixar de beber?" "Eu espero sim", respondeu a sra. Ellet, enquanto beijava o rosto de Susi, onde as lágrimas pendiam como

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Tempos Felizes 63 orvalho numa rosa. "Eu oro para ele deixar esse mal; eu não posso fazer outra coisa senão orar, e deixar o restante nas mãos de Deus".

Naquela noite o Sr. Ellet como de costume veio para o jantar para casa. Ele era um homem trabalhador e bom vizinho. Assim diziam todos. Mas ele deixou a intemperança enraizar-se tão profundamente, que todos quantos o conheciam, achavam que mais cedo ou mais tarde seu fim seria a sepultura de um ébrio. Susi o beijou como de costume no portão, mas havia algo na expressão de seu rosto, que lhe moveu o coração. Esse olhar tão cheio de tristeza e comovente preocupação, eram incomuns a uma criança.

"O que está acontecendo com minha menininha?", perguntou o pai alisando seus lindos cachos.

"Eu não posso dizer pai", disse ela vagarosamente. "Por que não?", perguntou ele. "Porque lhe magoaria muito", foi a resposta de Susi. "Isto não pode ser", disse ele enquanto juntos caminhavam para a porta. "O que é, Susi?" "Ó pai", e Susi começou a chorar novamente, quando se lembrou das palavras ferinas de

Frederico Wendel, "eu gostaria tanto que você não bebesse mais, porque os meninos e meninas não gostam de brincar comigo porque você bebe". O Sr. Ellet não deu resposta. Mas algo comoveu o seu coração, e ele sentiu vergonha de si mesmo. Ele se envergonhou de ser a causa de tanta miséria e dor.

Depois da janta ele pegou o chapéu, e a Sra. Ellet sabia muito bem para onde ele iria. A princípio ele havia decidido essa noite ficar em casa, mas a força do hábito era tão forte que não conseguiu resistir, mas com a firme intenção de não beber mais do que um ou dois copos.

Susi deixou a mesa antes do pai terminar o jantar, e quando ele passou perto do chorão junto ao portão, ele ouviu uma voz e parou, para ouvir e prestou atenção.

"Ó querido e bom Jesus, por favor não deixe o pai beber mais. Faze-o assim como ele era antes, assim os meninos e meninas não me podem xingar mais de filha de um ébrio, nem coisas semelhantes de mim. Eu te peço querido Jesus por amor a minha mãe e a mim." O pai de Susi ficou atento à sua simples oração, enquanto um grosso nó se formava na garganta. Quando ela terminou, o pai se ajoelhou a seu lado e a abraçou ternamente.

"Deus do Céu", disse ele solenemente, "eu prometo hoje à noite, enquanto eu viver, nunca mais tomar um gole de bebida alcoólica. Me dá forças para cumprir meu voto, e me ajude a ser um homem melhor."

"Ó papai", exclamou Susi enquanto punha os braços em torno do pai e repousou sua cabecinha em seu peito, "eu estou tão contente. Eu não vou ligar para mais nada que me disserem porque agora você não é mais um ébrio."

"Com a ajuda de Deus eu serei um homem!" respondeu ele. Depois tomou Susi pela mão e voltou com ela para dentro de casa onde sua esposa estava sentada com a costumeira expressão de preocupação no seu rosto.

A alegria e gratidão naquele lar foram tão grandes nessa noite que é difícil descrevê-la. A oração de Susi foi ouvida de uma maneira maravilhosa.

Traduzido do "Lebensbilder", 1918

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UMA PRINCESA "Eu queria ser uma princesa!" Ema de espanador na mão, parou na escada que dava para

seu quartinho, o qual ela tinha por obrigação de pôr em ordem todos os dias. "Por quê, minha filha?" perguntou a mãe. "Ó, então eu não precisaria varrer nem espanar

ou arrumar as camas, mas teria bastante criadagem para fazerem semelhantes coisas para mim." "Este é um desejo muito insensato", replicou a mãe, "e mesmo que você fosse uma princesa, penso eu, seria de bom senso você aprender tais serviços, para que os pudesse efetuar quando necessário." "Mas princesas nunca precisam trabalhar!" "Aí minha filha, você se engana. Se você quiser, venha depois que tiver feito seu serviço, que vou lhe mostrar um quadro."

O pequeno dormitório de Ema enfim estava em ordem, e ela foi ter com a mãe lembrando-a da promessa de lhe mostrar um quadro. "O que você vê?", perguntou a mãe colocando o quadro diante dela.

"Vejo uma moça com um simples vestido de manga arregaçada, de avental e vassoura na mão."

"Pode me dizer em que lugar ela está?" "Eu não sei, aqui tem uma muralha, abóbada de pedra e o chão é igualmente de pedra. Eu creio que não é um lugar agradável."

"Aí você tem razão, não é mesmo. É uma prisão, e a moça é filha de uma rainha." "Uma princesa?" "Sim, e sua história é bastante triste". "Por favor mamãe, conte-a para mim!"

Há mais de cem anos, Luiz XVI era rei da França, e Maria Antonieta sua esposa. O rei e a rainha, não eram exatamente ateus, mas viviam despreocupadamente os dias, e amavam os divertimentos. Esqueceram-se de sua obrigação, olhar pelo bem estar do povo, e assim esbanjavam grandes somas para seu próprio divertimento enquanto a nação inteira passava necessidade. O povo como conseqüência ficou insatisfeito, e quando enfim Luiz e Antonieta reconheceram o erro que cometeram, e procuraram modificar seu modo de vida, era tarde demais. O povo instigado por seus líderes, aprendeu a odiar o rei e a rainha. Eles foram presos juntamente com seus dois filhos, e trancados numa prisão chamada Templo.

Naquela época reinava o terror na França. Todos os que eram suspeitos de simpatizar com a família real, eram lançados na prisão, ou levados à guilhotina.

Os prisioneiros do Templo, passavam os dias da melhor maneira que podiam. O rei diariamente dava aulas a seu filho e filha, ou lia para todos alguma coisa, enquanto Maria Antonieta, Madame Elisabeth e a jovem Tereza costuravam.

Depois de algum tempo o povo irado levou o rei, e o decapitaram. Depois de pouco tempo separaram o pequeno filho da mãe, tia e irmã e o encarceraram a sós debaixo dos cuidados de um guarda cruel. Em seguida chegou a vez de Maria Antonieta subir ao cadafalso; isto aconteceu a 16 de Outubro de 1793.

Sua filha, Maria Tereza foi deixada a sós com sua tia Madame Elisabeth. Mas também esta companhia não lhe deixaram por muito tempo. Madame Elisabeth foi levada embora e decapitada. E assim a pobre moça aos 16 anos ficou a sós numa miserável prisão, onde era servida e cuidada por soldados cruéis. Um ano e meio ela viveu desta maneira, levando uma vida de miséria. Ela nem sequer sabia se sua mãe e tia ainda viviam ou estavam mortas.

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Tempos Felizes 65 Muitos anos depois quando já estava em liberdade, ela escreveu um livro sobre sua vida de

prisioneira. Lermos no mesmo: "Eu só implorava pelos alimentos mais necessários, mas mesmo estes às vezes eram-me negados da maneira mais rude. Mas eu tinha condições de me manter limpa, eu tinha água e sabão e uma vassoura para varrer minha cela".

Assim você vê aqui neste quadro uma princesa, é a neta da rainha Maria Tereza, da Áustria, uma das mais proeminentes mulheres da História, que depois de ter feito sua toalete, varria o chão de sua cela.

"O que você acha que lhe causava maior satisfação naqueles dias? A lembrança de que ela era filha de reis, ou a satisfação do cumprimento de seus deveres domésticos os quais ela adquiriu quando ainda era uma princesa feliz invejada por todos, morando num palácio e rodeada por números criados?" "Esta história é verdadeira?" "Certamente Ema, cada palavra é verdadeira, e muito, muito mais que não posso lhe contar agora."

Ela enfim foi posta em liberdade, e mandada para sua tia na Áustria, mas passou-se um ano após sua chegada quando sorriu pela primeira vez. Embora ela alcançasse a avançada idade de 70 anos, nunca esqueceu dos terríveis sofrimentos de seus anos de prisão.

"Mas o que eu queria lhe ensinar minha filha é isto: Embora seja uma posição muito agradável ser uma princesa, não existe ocupação na vida quer seja elevada ou não, na qual para uma moça possa ser desnecessária a tarefa de saber os simples deveres domésticos e nos quais ela se sinta feliz e útil em saber realizá-los."

As crianças nem sempre entendem tudo na hora que lhes ensinamos, e assim não posso afirmar que Ema encontrou no mesmo momento prazer em varrer e espanar. Mas vamos nos lembrar que a mulher mais sábia é aquela que emprega sua sabedoria e força ao bem daqueles que estão ao seu redor, que não recua ante os deveres domésticos, mas os cumpre com alegria e satisfação.

Traduzido do "Lebensbilder", 1918

COMO FRANCISQUINHO APRENDEU A TRABALHAR Francisquinho acabara de soletrar a poesia de seu livro de leitura, quando o pai entrou no

quarto e disse: "Francisquinho sua mãe está no jardim, semeando flores,vai ajudá-la". Francisquinho

torceu o nariz. "Eu não quero!" "Cria vergonha menino, você é um preguiçoso!", ralhou o pai. "Ligeiro você só é quando a mãe põe nhoque na mesa, ou alguma outra comida preferida sua".

Mas Francisquinho não tinha vergonha, embora ouvisse risos vindos da janela, pois ali estava seu amigo de folguedos, olhando para dentro, e ouvido tudo. Francisquinho nem lhe deu atenção, mas saiu pela porta pelo caminho que ia no sentido contrário, e foi perambulando até o bosque próximo.

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Tempos Felizes 66 Fredi, seu amigo correu atrás, mias no portão da casa deu com Marel e Mariele os gêmeos

do vizinho. Também eles iam ao bosque, lugar preferido para os folguedos das crianças. Quando alcançaram um lugarzinho ensombrado, onde floresciam as flores amarelinhas, e o gramado macio e verdinho convidavam ao descanso, ali ficaram e cometeram algumas traquinices. De repente viram lá no prado sentado o Francisquinho. O menino parecia estar dormindo.

"Este é um bem preguiçoso!", disse Mariele, e Fredi contou o que ouvira debaixo da janela. "Nós devíamos fazer uma boa brincadeira com ele", disse Marel. "Sabe de uma coisa? Nós vamos buscar areia lá do morro, e cobrimos ele bem quietinhos, de areia até o pescoço".

E eles ficaram imaginando, o Francisquinho sentado na areia até o pescoço, só com a cabeça de fora, parecendo uma uva passa sobre o bolo. Mariele queria carregar a areia no seu avental, e Marel tirou seu casaco, este daria um bom recipiente para carregar a areia. Assim os três saíram correndo.

Enquanto isso o Francisquinho continuou sentado na grama. Ele estava dormindo como seus amigos pensaram, e ele estava sonhando com uma pequenina formiga que rápido carregava uma larva amarelinha, a qual a gente erradamente chama de ovo de formiga. A formiguinha parou, porque uma abelhinha veio zumbindo.

"Alô" disse a formiga. "Por que tão aplicada?" "Eu preciso, respondeu a abelhinha". "Nós ainda precisamos fabricar uma boa parte de mel

e cera". "É, o trabalho nunca termina", disse a formiga. "Nós também temos trabalho a mãos cheias, porque um menino malvado destruiu nosso

castelo, todas as passagens estão obstruídas. Nós precisamos por em segurança nossa ninhada. Mas por castigo eu mordi bem forte a perna do menino".

A abelhinha voou e a formiguinha saiu apressada. "Estranho", pensou Francisquinho. "Elas falaram sobre trabalho!" Uma borboletinha veio voando. "Esta não sabe nada sobre trabalho" pensou

Francisquinho. "Hei, você azulzinho", chamou ele, "você sempre passeia voando não é?" O pequeno azul se sentiu ofendido. "Eu preciso ajudar ao vento, a carregar o néctar

dourado de uma flor à outra. Passear – para esse fim Deus não criou nenhum ser. Nós todos precisamos trabalhar".

Francisquinho naturalmente não acreditou nessa. Todos! Aí a borboleta mentiu. O passarinho que cantava, sentado aí no galho bem próximo, este por certo não sabia nada sobre trabalho. E ele perguntou.

"Não trabalha?" Respondeu o passarinho: "Você, que pensa! Eu trabalho de cedo até o anoitecer. Tenho um ninho cheio de filhotes famintos sempre gritando por comida".

O Francisquinho começou a ficar pensativo. Mas por certo aqui ou acolá teria um ser que não trabalhava, assim como ele não gostava. Como por exemplo, o pequeno riacho no bosque. Mas este se defendeu energicamente, dizendo: "Dá licença; eu preciso mover a roda do moinho para o moleiro, dou de beber a gente e animais, e dou de beber às flores na minha margem. Tenho trabalho de sobejo e não posso descansar. E se eu fosse você eu me envergonharia de ser um tal preguiçoso e ladrão do tempo!"

E lã se foi e riozinho. E o Francisquinho acordou e ficou aí sentado como um cãozinho molhado, se sentindo muito envergonhado mesmo, vergonha diante de todos esses seres

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Tempos Felizes 67 pequenininhos, do riachinho e de cada criaturinha da natureza, E ele correu para casa, ajudar a mãe no jardim. Ladrão do tempo e preguiçoso ele não queria ser mais.

Quando os outros chegaram com a areia, o lugar estava vazio. Mas não se deixaram parados aí, foram à procura do Francisquinho até encontra-lo, e quando o acharam ficaram muito surpresos com o que viram, tão surpresos que deixaram cair a areia. Pois o Francisquinho estava limpando os caminhos do jardim das ervas daninhas, e estava todo corado de tanto esforço.

"Francisquinho" disse o Fredi, "o que está acontecendo com você?" "Você está trabalhando!", comentou Mariele surpresa. "Sim", disse Francisquinho. "Estou trabalhando, assim como a formiguinha, a abelhinha, a borboleta e o riacho. Eu tenho que ser útil na vida."

E assim realmente foi que o Francisquinho aprendeu a trabalhar.

A VOZ DE MINHA MÃE Há algum tempo um amigo me contou uma linda história, de como palavras bondosas às

vezes operam. Uma nobre senhora passou ocasionalmente diante de uma taberna, exatamente quando o

dono da mesma com violência pôs um jovem no olho da rua. Este ainda era bem moço e parecia muito pálido, seus traços do rosto, os olhos fundos denunciavam que ele já havia ido muito longe no caminho do vício. De punho cerrado ele pronunciou uma maldição e jurou vingar-se no homem que o havia maltratado. Esse moço estava tão cegado pela cólera e raiva, que nem deu pela presença da senhora que estava bem junto dele, até que ela pôs a mão sobre seu ombro, e lhe falou com voz calma e suave perguntando se precisava de algo.

Na primeira palavra bondosa ele se ergueu como atingido por um raio, e se virou apressado, mais pálido que antes, tremendo dos pés à cabeça. Lançou um rápido olhar sobre a senhora, e então com um suspiro de alívio disse: "Eu pensei ouvir a voz de minha mãe, é estranhamente semelhante à voz dela, mas sua voz a morte silenciou já faz alguns anos".

"Então o senhor possuiu uma mãe que o amava?" perguntou a senhora. Com uma repentina mudança em seus sentimentos, e estes não lhe faltavam, pois era de um vivo tempera mento, o moço caiu em prantos e gemeu: Oh, sim; eu possui uma mãe, ela era como um anjo, e

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Tempos Felizes 68 ela me amava profundamente! Mas depois de sua morte o mundo todo se voltou contra mim, e eu perdi minha honra, minha posição, enfim tudo para sempre!"

"Oh! não, não perdido para sempre! Deus é misericordioso, e Seu amor e compaixão podem alcançar o maior pecador." Disse a senhora com sua voz meiga e suave, e essas palavras ditas a seu tempo despertaram acordes há muito adormecidos no coração do jovem, e que agora com poder fascinante o estremeceram, e uma torrente de afetuosidade despertaram nele, que jaziam profundamente adormecidos debaixo do pecado e degradação.

A senhora acrescentou mais algumas palavras bondosas, e quando seguiu seu caminho, o jovem a seguiu. Ele marcou bem a casa onde ela adentrou, e anotou o nome na plaqueta da casa. Retirando-se as furtadelas com expressão de profundos sentimentos no seu coração.

Anos se passaram, e a gentil senhora provavelmente esqueceu por completo o incidente ao qual nos referimos, quando um dia recebeu um cartão de visita de alguém que desejava falar-lhe. Admirada quem seria ela foi a sala de recepção, onde ela encontrou um senhor bem vestido e de boa aparência o qual se ergueu respeitosamente e foi ao seu encontro. Tomando a sua mão ele disse com voz trêmula: "Digníssima senhora, peço mil desculpas pela minha intromissão; mas eu venho de muitas milhas de distância para lhe agradecer a gentileza que a senhora me demonstrou há alguns anos"

A senhora estava confusa, e pediu explicação, pois não se lembrava de ter visto esse moço alguma vez.

"Eu modifiquei muito", disse o homem, "e a senhora deve ter-me esquecido por completo, embora eu a tenha visto só uma vez, eu estou convencido de tê-la reconhecido em qualquer lugar, e igualmente a sua voz, ela é igualzinha a voz de minha mãe."

Estas últimas palavras, trouxeram à memória o incidente como moço, que há alguns anos lhe falou palavras bondosas diante da taberna, e as lágrimas fluíram, ambos choravam. E então aquele senhor contou como aquelas poucas palavras foram o motivo, que o salvaram e fizeram dele o que era hoje.

A gravidade daquelas palavras: " 'Não, não perdido para sempre!' Me seguiram onde eu ia", disse ele, "e sempre, sempre me parecia que era voz de minha mãe a me falar da tumba. Eu me arrependi de todas as minhas transgressões, e resolvi seguir a Jesus, assim como minha mãe querida o desejou, e pela graça e misericórdia de nosso Deus fui capaz de resistir à tentação e cumprir meus bons propósitos."

"Eu nunca imaginei que em tão poucas palavras bondosas pudesse haver tamanho poder". exclamou a senhora. É com certeza no futuro não vou poupar-me a dizê-las a todos os tristes e sofredores que eu encontrar no meu caminho."

Traduzido do "Lebensbilder"

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A VINGANÇA DO ÍNDIO A bela regra de vida: "Portanto tudo o que vós quereis que os homens vos façam fazei-o

vós também!" (S. Mat. 7:12), foi tirada do sermão do monte de nosso Senhor, e devia ser observado por todos reconhecidos cristãos. Mas só se formos verdadeiramente filhos de Deus, senão nunca seremos capazes de cumprir este grande mandamento.

A história relata-nos que o imperador Severus foi tão impressionado com a beleza e dignidade moral de tal pensamento, que expediu ordem que esta "regra áurea" deveria ser fixada em todos os prédios públicos de sua jurisdição. Muitos fatos demonstraram, e provam, que muitos iletrados pagãos, e tribos selvagens poderiam envergonhar muitos dos que se dizem cristãos, mas só tem a aparência de piedade, negam-na porém, pelas suas palavras e feitos. Um tal fato vamos narrar aqui.

Há muitos anos, no tempo da colonização dos Estados Unidos da América do Norte, na orla de uma colônia fixou residência, numa pequena mas bem tratada propriedade, um jovem trabalhador camponês. Ele deixara a Inglaterra, quando ainda era quase um menino, e veio tentar sua sorte em uma nova pátria entre seus irmãos americanos. Era um lugar lindo e quieto. A casa foi erigida sobre uma colina que se inclinava para um ribeiro de águas mansas. Essas águas moviam uma grande serraria que ficava pouco abaixo. Os arredores da casa estavam providos de um rico pomar que descia a encosta da colina até o rio com pessegueiros e ameixeiras, carregados dos preciosos frutos nesta época do ano, e uma horta provida com bem adubadas verduras, entre as quais as abóboras amarelas cor de ouro se sobressaiam pela sua linda cor. Do lado oposto se estendiam as terras da fazenda com plantação de milho e trigo. A casa dos dois lados ao norte e oeste estava protegida por faias e abetos, atrás dos quais se estendiam grandes reservas de mata para a caça. Era aqui que grande número de colonos se encontravam no fim da colheita para laçar animais selvagens, a carne dos quais era salgada e secada para as necessidades nos meses de inverno.

Por este tempo as relações entre brancos e índios não eram as melhores, e estes últimos eram bem mais numerosos e mais temidos do que hoje. Mas raramente eles se aproximavam da

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Tempos Felizes 70 casa descrita aqui. Só por uma ou duas vezes alguns índios Minateris apareceram na orla da mata, mas sem causar danos, porque esta tribo está em paz com os brancos.

Era uma suave tarde de junho, o sol já se havia posto mas o céu ainda reluzia com os vermelhos clarões em profusão de luz do entardecer, que nos dão um vislumbre das belezas da nova terra, e a luz cheia seguia suavemente a morredoura luz do dia. A silhueta de cada cena descrita aqui se desenhava com perfeição a meia luz, bem como a forma de William Sullivan, que sentado na soleira de sua casa, amolava suas foices para a próxima colheita de feno. Ele era um belo homem, jovem, queimado do sol e fisionomia franca.

Embora fosse um homem considerado bom, era cheio de preconceitos trazidos da Inglaterra, contra os americanos em geral, mas principalmente contra os índios. Quando menino foi cuidadosamente educado por sua mãe, e recebera mais instrução do que a maioria de seu tempo, mas os conhecimentos práticos do Evangelho lhe eram totalmente desconhecidos, e neste ponto de vista ele era tão orgulhoso que ele olhava com desdém a todos quantos não fossem ingleses como ele. Os índios nomeadamente, ele os desprezava como pagãos, sem direito a nada. Sem saber que quem foi abençoado com certos privilégios como ele e não usa tais conhecimentos é tão culpado como os ignorantes filhos selvagens do mato.

Tão distraído estava em seu trabalho que não notou o aproximar-se de um índio alto com atavios de caça, até que ouviu as palavras: "Você quer dar a um caçador ferido um pedaço de pão e um lugar para dormir a noite?" soando aos seus ouvidos.

O jovem colono o olhou com desprezo e chispas de fogo reluziam em seus olhos, enquanto em tom descortês respondeu: "Retire-se daqui índio pagão, aqui você não vai receber nada."

O índio lhe virou as costas; mas tornou mais uma vez com dobrada súplica na voz: "Mas eu estou com muita fome, porque faz muito tempo que não como; me dá só uma casca de pão seco e um osso, para me fortalecer no resto de minha caminhada".

"Saia daqui, cachorro pagão, eu não tenho nada para você!" repetiu o colono. Uma luta parecia travar-se no peito do caçador, como se orgulho e necessidade brigassem

pela supremacia; mas a necessidade venceu finalmente, e com voz fraca suplicou: "Me dá só uma caneca de água fria, eu estou muito esgotado".

Esta súplica no entanto foi tão pouco atendida como as anteriores, como resposta William lhe disse, que bebesse a água do rio, que ficava a pouca distância. Isto foi tudo que o índio conseguiu com um reconhecido cristão, que por preconceito e teimosia endurecera o seu coração, mas que estaria aberta a qualquer de seus conterrâneos, mas em face das necessidades de um pele vermelha ficou insensível. Com orgulho mas também tristeza estampados na fisionomia, o índio retirou-se em direção ao riacho. Os passos vacilantes do nativo demonstravam sua extrema necessidade em pedir repetidamente o que também seguidamente lhe foi negado.

Felizmente estas súplicas foram ouvidas pela mulher do colono. Raramente acontece que o coração feminino fique indiferente às súplicas por ajuda.

Maria Sullivan, ouvia toda conversação, sentada debaixo da janela, enquanto embalava seu pequeno filhinho e ao seguir o índio com seu olhar viu-o não distante dali com trôpegos passos ir em direção ao rio, mas a pouca distância da casa cair pesadamente ao chão. Ela viu que seu esposo havia terminado seu trabalho e ia em direção ao estábulo, mas com ar deprimido, porque deveras ele não se sentiu muito a vontade.

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Tempos Felizes 71 Maria logo deixou a casa com uma jarra de leite na mão e num guardanapo uma rica

refeição em pão, carne assada e milho tostado, foi indo em direção ao índio e ajoelhou-se ao seu lado.

"Meu irmão vermelho, quer tomar um pouco de leite?" ela perguntou inclinando-se sobre o índio caído. E quando ele tentou erguer-se ela o ajudou, dando-lhe o leite na boca, e abrindo-lhe o guardanapo, estimulou-o a comer.

Quando o índio terminou, ajoelhou-se a seus pés, seus olhos luziam de gratidão, e então disse em tom suave: "Carcoochee protege a pomba branca das garras da águia. Par tua causa o filhinho estará seguro em seu ninho, o irmão vermelho não vai fazer vingança".

Enquanto puxava uma fieira de penas de seu peito, escolheu a maior, e dando-a à Maria, disse: "Quando o macho da pombinha branca vier caçar na reserva de caça dos índios, ponha esta pena na sua cabeça".

Com isto ele se foi e em pouco desapareceu em meio a mata. O verão passou, o outono chegou e passou, o milho e trigo estavam nos celeiros bem

guardados, e a mata apresentava as majestosas cores de fim de ano. Foram feitos preparativos para a caçada, e William Sullivan estava entre estes que, além de seu bosque de faias e abetos, na mata virgem, na reserva de caça, queria tentar a sua sorte. Ele era audaz, vigoroso e hábil no uso de sua arma e foice, e sempre, até aqui, esperava com ansiedade a temporada de caça, e nenhum temor, de ataques dos índios, que tão numerosas vezes os atacavam pela retaguarda, o importunava.

Mas agora que a caçada se aproximava, uma estanha preocupação se avizinhava pela sua segurança, e ocupava tanto seus pensamentos, que sua imaginação cada vez mais era torturada pelo vulto do índio, que ele tanto maltratara no verão passado.

Na noite anterior à caçada, participou à sua fiel esposa a sua preocupação, confessando que desde aquele tempo, sua consciência não deixou de acusá-lo, pelos maus tratos dados ao índio. E acrescentou, que desde esse incidente, tudo que ele aprendera de sua mãe na infância sobre deveres para com o próximo, repetidamente lhe vinham à mente, aumentando o peso em sua consciência, lembrando-o que Deus se agradou tão pouco de seu comportamento, quanto seu irmão de pele vermelha. Maria Sullivan ouvia atentamente. Quando ele terminou, ela colocou a sua mão na dele, o olhou com plácido sorriso, não de todo livre de preocupação, e então lhe contou o que fizera quando vira o índio cair de fraqueza, confessando que guardara só para si de medo em desagradar ao marido, depois de ter ouvido como tão rudemente havia negado qualquer ajuda ao índio. Indo em direção ao armário tirou de lá a linda pena de gavião e repetiu as palavras do índio, e apelando para as mesmas, assegurou ao marido que poderia ir sem temor.

"Ó não" disse Sullivan, "estes índios nunca perdoam uma ofensa." - "Tão pouco esquecem uma boa ação" acrescentou Maria confiantemente. "Eu vou pregar

esta pena em teu chapéu de caça, e então encomendar-te, meu amado esposo aos cuidados do Todo Poderoso, e embora certa que Ele pode proteger-te sem a pena, me lembro de ter ouvido meu querido pai dizer, que nunca devemos deixar de atender a todas as advertências ao nosso alcance porque são para nossa segurança. Seu lema era: "Confia como uma criança, mas faça-o como um homem". Pois temos que ajudar a nós mesmos se queremos ter êxito, e não devemos esperar que por nossa causa aconteçam milagres, enquanto cruzamos as mãos no regaço e não fazemos nada."

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Tempos Felizes 72 "Querido William" acrescentou ela depois de uma pausa, "agora que meu pai faleceu, eu

penso muito mais naquilo que ele dizia do que quando ainda estava conosco, e eu temo que estamos inteiramente em caminho errado, da maneira como nós vivemos. Eu sei se fôssemos tratados como merecíamos, Deus nos esqueceria e nos deixaria entregues a nós mesmos, porque O esquecemos vergonhosamente".

Ao dizer isso os alhos de Maria se marejaram de lágrimas; ela era filha única de um piedoso marinheiro inglês e no seu tempo de menina parecia crescer tão devota como só pais piedosos o poderiam desejar. Mas sua devoção aquele tempo estava mais na cabeça do que no coração, ela não resistiu a prova do amor por Sullivan, que também não era um caráter inteiramente cristão, e como a névoa da noite e neblina da manhã sua religião evaporava e perdera o gosto por aquilo que tão valioso lhe era.

Aparentemente ela era muito feliz, mas interiormente havia um espinho em todas as suas alegrias, e isto era o roer e a inquietação de uma consciência sem paz, que a convencia que havia pecado em afastar-se do Deus verdadeiro. Aos poucos se fortaleciam estas impressões, o Espírito da graça trabalhava em seu interior, e dia após dia a verdade era trazida à memória, a qual ela havia aprendido na infância, e assim ela foi reconduzida do caminho do erro. Uma longa conversação seguiu-se a estas considerações, e naquela noite viu-se o jovem casal a primeira vez de joelhos em oração a Deus.

O amanhecer do dia seguinte foi de um esplendor fora do comum. E nenhuma nuvenzinha anuviava a testa de William Sullivan. Os claros raios do sol vespertino, dissiparam todos os temores que até a noite anterior ainda o perseguiram, e só ao pedido carinhoso e insistente de sua esposa ele prometeu não tirar a pena de gavião do chapéu. Ela segurava suas mãos ao lhe cochichar ao ouvido, e só de leve estremeceram seus lábios quando ele disse: "Bem, Mariazinha, se você acha que esta pena pode proteger-me dos pele-vermelhas, então eu a deixarei no chapéu, mas só por você!" Então William pôs o chapéu, pendurou a espingarda ao ombro, e logo os caçadores estavam a caminho atrás da caça.

O dia passou do mesmo modo, como costumeiramente em cada caçada. Foi abatido muito animal selvagem, e ao anoitecer os caçadores se abrigaram numa caverna de ursos, cujo ocupante um caçador liquidou, quando ao pôr-do-sol ele veio em direção ao rio. Sua carne ofereceu-lhes um jantar apetitoso, e sua pele, estendida sobre a folhagem seca lhes serviu de lugar de repouso.

Com os primeiros clarões do alvorecer os caçadores abandonaram seu rude abrigo, e retomaram a caçada. William que seguira um veadinho até cansá-lo, foi logo separado de seus companheiros, e quando ele tentou juntar-se novamente a eles, se perdeu. Hora após hora procurou debalde, encontrar algum sinal que o conduzisse para fora do labirinto do mato, cujas árvores cresciam tão juntas que só raramente ele via o sol. Não muito habituado a vida silvestre, não conseguia reencontrar seu caminho, como seria capaz alguém em observar o lado das árvores mais cobertas com musgo ou cipós. Várias vezes estremeceu de susto, porque suspeitava haver visto os olhos cintilantes de um índio sobre ele, e muitas vezes entesou o gatilho, resolvido a vender sua vida ao maior preço possível.

Ao entardecer o mato se tornou mais ralo e logo ele encontrou-se numa grande planície coberta de capim alto, que aqui e ali era interrompida por capim rasteiro e madeiramento, um rio serpenteava no imenso vale em sua frente, pa ra lá Sullivan dirigiu os seus passos cansados. Ele estava fraco e cansado, porque desde cedo não havia se alimentado mais. Na margem do rio

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Tempos Felizes 73 havia capoeira cerrada, por esse motivo Sullivan avançava com cuidado, sua espingarda entesada, preparada para qualquer perigo que pudesse acontecer.

Ainda estava a alguns passos da margem do rio, quando percebeu um rumor no cerrado, que o fez parar involuntariamente; no instante seguinte um enorme búfalo atirou-se do cerrado. Esses animais agora quase extintos, seguiam em grandes manadas pelos campos, às vezes milhares deles. Oportunamente são encontrados isoladamente, se por um infortúnio foram separados da manada, ou separado por um índio, pois estes têm uma habilidade fora do comum para os caçar. O búfalo parou por um instante e então abaixou sua poderosa cabeça e atirou-se ao ataque contra o intruso. Sullivan pôs o dedo no gatilho, mas o animal estava muito próximo para dar-lhe tempo de fazer a pontaria com segurança e atirar com êxito. O búfalo ferido só levemente, se aproximou com fúria dobrada. Sullivan era um homem muito forte, e embora enfraquecido pelo longo jejum e caminhada cansativa, o desespero lhe deu ânimo e forças para com seu braço forte agarrar o chifre no momento em que o animal lhe chifrou o lado e com a mão esquerda pegou o facão de caça, na esperança de enterrá-lo na garganta de seu poderoso adversário.

Mas a luta era muito desigual para terminar com êxito para Sullivan. O búfalo o sacudiu jogando-o no chão, e se preparou para pisotear sua vítima até a morte, quando Sullivan ouviu um forte estampido atrás de si, num instante o animal deu um pulo para então cair pesadamente e mortalmente ferido ao lado e parcialmente sobre o caçador estendido ao chão.

Uma obscura figura de um índio aproximou-se rapidamente e enterrou profundamente sua faca na garganta do búfalo; embora o tiro fosse certo, não causou morte instantânea, porque penetrou no miolo, mas com o corte o animal fora levado a sangrar até morrer, e desta maneira tornar a carne aproveitável para uso futuro sem estragar.

Então o índio tornou-se para Sullivan que com esforço se desvencilhara de debaixo do búfalo, e agora com sentimentos mistos de esperança e medo, resultante da incerteza, se a tribo a quem o índio pertencia seriam amigáveis ou não, e se ele o levaria a colônia de brancos mais próxima.

"Se o cansado caçador quer descansar até amanhã então o Águia vai lhe mostrar o caminho para sua pomba branca". Disse o índio na linguagem tão familiar entre seu povo. E tomando-o pela mão conduziu-o rapidamente entre o cerrado e a crescente escuridão, até a uma pequena aldeia próxima ao rio abrigado debaixo de algumas árvores frondosas.

Aqui o índio serviu a Sullivan um abundante "hominy", uma papa de milho triturado e alguma carne de caça, e então estendendo algumas peles de animais selvagens numa tenda o convidou com gestos apropriados para ali repousar, retirando-se em seguida.

Ainda a luz do alvorecer não tingira o oeste, quando o índio despertou a Sullivan. Após uma frugal refeição ambos se puseram a caminho em direção à colônia dos brancos. O índio sempre ia diante de seu companheiro e abria caminho na mata ainda envolvida nas sombras noturnas com uma segurança e rapidez que demonstravam estar ele muito bem familiarizado com as picadas e os segredos da mata. Como escolhesse o caminho mais reto, sem o menor temor, de perder a direção, guiava com segurança, deixando sinais na mata, que só os mais velhos e experimentados caçadores conheciam. Cruzaram a mata mais rápido do que Sullivan o havia feito anteriormente, e bem antes que o sol dourado abaixasse atrás das longínquas montanhas, Sullivan viu ao longe seu querido lar. Ali estava sua casa em tranqüila paz, e à vista deste lugar tão querido não conseguiu sufocar uma exclamação de alegria, e dirigindo-se ao índio expressou-lhe o mais cordial agradecimento pelos serviços prestados.

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Tempos Felizes 74 O guerreiro que até aqui evitou mostrar seu rosto a Sullivan, colocou-se agora em frente

permitindo que o sol iluminasse a sua figura, e o branco reconheceu nele, com surpresa os traços daquele índio, que há cinco meses atrás ele havia tratado tão cruelmente. Com uma expressão de dignidade e censura ele encarou o envergonhado Sullivan, mas sua voz era suave, quando disse:

"Há cinco luas atrás, quando eu cansado, e esgotado de fome fui a sua tenda, você me chamou índio-cão e me tocou de sua porta. A noite passada eu poderia ter-me vingado, mas a sua pomba branca aquela vez me deu comida, e por sua causa eu hoje poupei sua vida. Carcoochee lhe pede, vai para sua casa, e quando no futuro um pele-vermelha estiver em necessidade e precisar de sua gentileza, faça a ele o que lhe foi feito hoje, adeus".

Com um gesto de mão, fez sua despedida e virou as costas para ir, mas Sullivan pôs-se em frente, e suplicou-lhe entrar em sua casa, como prova de que ele lhe perdoou completamente seu brutal tratamento, que finalmente o índio consentiu e o humilhado branco levou-o à sua casa.

A surpresa de sua esposa em revê-lo, expressou-se em gratidão ao índio por seu milagroso livramento do perigo mortal. Ao nobre selvagem ela estendeu a mão em reconhecimento por aceitar a compensação de sua gentileza que lhe foi negada pelo seu marido.

Carcoochee foi honrado não só como hóspede, mas como irmão, o que ele realmente se tornou de ambos.

As visitas à casa do rude e preconceituoso Sullivan, se repetiram ainda muitas vezes, que deixou estes sentimentos, para trocá-los pela prática da bondade a qual o descivilizado e selvagem lhe ensinou.

E tornou-se o meio ao auto-reconhecimento de seu próprio estado pecaminoso diante de Deus, assim como seus parcos sentimentos quanto ao cumprimento de seu dever quanto ao seu próximo. Ele foi convencido pelo Espírito Santo de sentir a necessidade do sangue perdoador de Cristo Jesus, e antes que passassem muitos meses, Maria e seu esposo deram testemunho que na realidade, se tornaram novas criaturas.

A bondade de Carcoochee foi-lhe recompensada de mil maneiras. Passou-se muito tempo antes de notar-se uma genuína transformação em sua vida, mas finalmente o Senhor se agradou em fazer frutificar os incansáveis ensinos de seu amigo branco, em bênçãos espirituais ouvindo suas orações. Este índio foi o primeiro nativo que um missionário pôde batizar, ao chegar neste lugar dois anos mais tarde.

Após um longo e acurado estudo este ex-guerrilheiro, que empunhava a foice para matar tanto a peles-vermelhas como aos brancos era visto com arma bem diversa, a saber, com a "espada do Espírito" a qual é a Palavra de Deus levando-a a seus patrícios pagãos as boas-novas de grande alegria, que "Jesus Cristo veio ao inundo para salvar". Ele disse a eles, que, se cressem teriam vida eterna, não importava se são índios, ou brancos, servos ou livres. Nós somos todos "um em Cristo Jesus". Assim ele trabalhou entre os de sua tribo até a velhice extenuante, voltando à colônia dos brancos onde após poucos meses dormiu em Cristo Jesus, deixando seus amigos na certeza de sua ressurreição.

Muitos anos se passaram desde então, não há mais vestígios da casa dos Sullivans, ambos jazem na sepultura ao lado de Carcoochee, mas os seus descendentes ainda vivem na mesma comarca, Muitas vezes o velho avô conta a seus corados netinhos esta pequena história, sentado debaixo das lindas magnólias, próximas às sepulturas. E os ensinamentos que ele transmite a seus ouvintes se impregna em suas vidas juvenis, a saber: "Aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-lhes vós também",

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UMA HISTÓRIA DE UM INTERNATO DE MENINAS "Meninas, eu podia morrer de rir", exclamou Beatriz, enquanto caía numa gargalhada

desenfreada, entrando no quarto de suas colegas. "O que é que há sua palhaça? Por que você não conta pra gente, para rirmos também?"

"Sim, pois vejam", ela começou enfim, "nós temos uma nova aluna – a menina mais singular que jamais vi. Eu estava por acaso no escritório da preceptora quando ela chegou. Ela chegou com o ônibus e trouxe uma minúscula mala, antiquada, com uma cesta ridícula na mão entrou no escritório da preceptora, e sentou-se como se ali fosse ficar eternamente. Ela disse: "Tenho a honra de falar com a Sra. Kommstok?" "Às suas ordens", foi a resposta, "este é o meu nome. "Bem eu vim para ficar um ano aqui na sua escola". Então ela tirou um lenço de seu ridículo cesto e o desdobrou, até que apareceu uma bolsinha de couro bem velha, retirou de lá um maço de dinheiro, o colocou na mão da preceptora e disse: "Esta, creio eu, é a importância. A senhora por gentileza poderá me dar um recibo?" Vocês nunca viram a velha tão surpresa. Ela na realidade, não sabia o que dizer no momento, mas preencheu um recibo, fez-lhe várias perguntas, e indicou-lhe o quarto nº 10, e lá ela está agora.

"E, o que havia nisso de irrisório?" É isto: Ela tem cabelo vermelho, o qual ela ajuntou dentro de uma redinha preta e se parece em todos os detalhes uma verdadeira espantalha. Ela traja um vestido de lã marrom, sem um babado ou enfeite, e um sórdido chale, como vocês nunca viram. Vocês também vão se quebrar de rir, se a avistarem."

Beatriz era filha única, e seu pai lhe realizava todos os desejos, ela não só andava vestida bem demais, mas seu pai a supria de ricas mesadas, e como ela era muito liberal, cheia de vida e bom humor, ela se contava entre todas as alunas como a líder.

Quando o sino chamou para o jantar, a recém chegada foi conduzida ao refeitório, e apresentada às suas futuras colegas como, senhorita Fani Schneider. Seu vestido marrom, ela havia trocado por um de algodão muito simples com um pequeno enfeite de franzido branco em torno do decote. Ela parecia um tanto esquisita com seu rosto miúdo semeado de sardas, seu cabelo ruivo, penteado para trás e preso por uma redinha preta, e se a professora não estivesse presente, sua recepção seria muito desagradável.

Ela era tímida e desajeitada e entre tantas estranhas, se sentiu visivelmente embaraçada. E logo que foi possível ela procurou novamente a quieta solidão de seu quarto. No dia seguinte ela teve que submeter-se a um exame para determinar a que classe ela pertenceria. E para surpresa de muitos ela era bem mais adiantada do que a maioria das de sua idade. Mas isto não causou a admiração de suas colegas, como aliás deveria acontecer, ao contrário Beatriz e sua trinca estavam por demais indignadas, e logo começaram a praticar uma porção de vilanias contra ela, pelo que a pobre Fani ficou muito triste, embora aparentemente, ela as ignorava. Algumas semanas assim se passaram. Suas lições sempre as preparava muito bem. Ela não levantou uma queixa contra as infâmias e escárnios de suas colegas, mas as evitava na medida do possível. Mas seu delicado rosto foi se afinando e empalidecendo, e em torno dos olhos formaram-se escuras olheiras. Se ela fosse observada por um olhar amigo, logo se reconheceria que todas estas coisas influíam prejudicialmente em sua vida jovem.

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Tempos Felizes 76 Um belo dia, o espírito maligno parecia mesmo estar às soltas entre as meninas. A

preceptora estava ausente e as outras professoras estavam ocupadas nas diversas salas de aula, Fani tinha saído para tomar um pouco do ar fresco, e tendo voltado, estava de pé próximo à porta de seu quarto, quando uma dúzia de meninas ou mais a cercaram e de mãos dadas formaram um círculo fazendo-a sua prisioneira.

Por um instante ela pediu suplicando que a deixassem livre, mas elas riram mais alto e dançaram em volta dela, e ao mesmo tempo cantaram algo que Beatriz tinha composto – palavras descorteses e ofensivas. Fani por um instante ficou parada quieta, então tomada de pânico quebrou o círculo com um grito penetrante, correu para seu quarto trancando a porta. Durante as selvagens gargalhadas das meninas, ouviu-se um gemido e uma queda pesada no quarto.

"Eu acho que ela desmaiou" disse Beatriz. "O que vamos fazer? disse uma outra. Por um momento se tornaram sérias, e então uma

delas correu à sala da preceptora, para lhe dizer que Fani Schneider havia desmaiado em seu quarto e que a porta estava trancada. Esta mandou um dos atendentes trazer uma grande escada colocá-la na janela e ver como as coisas estavam. Felizmente a janela estava aberta e em poucos segundos ele abriu a porta por dentro. As meninas timidamente se aglomeraram, enquanto a preceptora erguia a pobre Fani do chão, deitando-a sobre sua cama. Ela teve fortes convulsões.

O médico imediatamente foi chamado, e quando as convulsões acalmaram, constataram-se preocupantes sintomas, e o médico expressou seu diagnóstico por uma grave infecção cerebral. É impossível, descrever a vergonha, o arrependimento e o peso de consciência das atormentadas meninas. Elas não tiveram ânimo para de pronto confessar sua culpa, só ficaram próximas ao quarto da doente, oferecendo seus préstimos, desejando debalde desfazer aquilo do que eram culpadas. Mas sua presença só aumentava a aflição da sofredora, e assim todas foram mandadas embora. Dia após dia passava e ela continuava em violenta febre. Sua minúscula mala e seu cesto foram rebuscados para encontrar-se um possível endereço de algum parente, mas tudo o que tinha eram as mais simples e necessárias peças de roupa.

Dia após dia vinha o médico e a olhava pensativo; enfim chegou o momento crítico. Muitas horas ela estava deitada como morta, e nem o mínimo ruído podia perturbar o solene silêncio, enquanto aguardavam se ela viveria ou morreria. Enfim abriu os olhos, e a incerteza foi debelada por uma palavra de confiança do médico, que com um cuidadoso tratamento ela em breve se restabeleceria. Mas sua recuperação só se deu vagarosa e lentamente com muita dificuldade.

Suas atormentadoras de outrora não podiam falar do que elas haviam feito, mas elas podiam enviar diariamente pequenos buquês de flores, e alimentos para estimular o apetite que estava retornando. Seus olhos se iluminavam de alegria e surpresa por estas pequenas dádivas. Em todo seu estado de alucinação febril, não lhe havia escapado uma única palavra sobre o cruel tratamento de suas colegas.

Um dia a preceptora estava sentada a seu lado, e como Fani parecia estar bem mais fortalecida, ousou perguntar por seus parentes.

"Eu não tenho parentes, senhora, além de meu primo João, que tem sua própria família grande e nunca se preocupa comigo. Minha mãe morreu quando eu nasci. Eu tive uma madrasta, mas meu pai morreu cinco anos mais tarde, e desde então eu mesma cuido de mim."

"E você só tem quinze anos?" "Sim senhora."

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Tempos Felizes 77 "Como você conseguiu ajuntar dinheiro suficiente para pensão e estudo por um ano inteiro

e pagar adiantado?" "Eu mesma ganhei tudo, cada centavo, senhora. Quando eu era suficientemente grande fui

a uma fábrica, a princípio ganhava muito pouco, mas ultimamente bem mais, e para minha pensão e alojamento eu trabalhava à noite."

"Pobre criança!" "Oh, não senhora, eu me sentia muito feliz por poder fazer isso." "Mas como você pôde adiantar-se tanto em seus estudos?" "Eu fixava meu livro na minha cadeira de trabalho na fiação, de modo que dava para

apanhar as frases no vai-e-vem da máquina, e meu chefe não fazia objeção, porque eu fazia meu trabalho sempre bem feito. Eu mais cedo ou tarde queria tornar-me professora, e pensei que em nenhum outro lugar eu me poderia preparar tão bem como aqui no seu internato, por isso vim para cá."

"O que você tenciona fazer durante as férias grandes?" "Eu tenho que voltar ã fábrica e ganhar o suficiente para adquirir roupas de lã para o

inverno. A senhora vê agora porque não posso trajar-me melhor." O coração da preceptora estava comovido. Ela inclinou-se sobre o magro e pálido rostinho

e beijou a doente respeitosamente. Naquela noite quando as meninas se reuniram para o culto, a preceptora contou a história

de Fani. Nenhum olho ficou enxuto. E em seguida Beatriz se levantou e disse, enquanto as lágrimas deslizavam pelas suas faces: "Sra. Kommstok, nós fomos contra esta pobre menina, terrivelmente cruéis, nós desde o princípio a fizemos de tola e ela não teria ficado doente assim, se nós não a tivéssemos martirizado quase até a morte. Eu levo a maior culpa nisso, porque eu induzi as demais, nós durante todas estas semanas passamos por terrível angústia, temendo que ela pudesse morrer. A senhora pode me expulsar ou castigar-me de outro modo, como a senhora achar melhor, porque eu mereço; e eu vou ajoelhar-me diante dela e pedir perdão, assim que a senhora me permitir ir vê-la".

"Minha filha, estou surpresa em ouvir isso. Eu nem ouso acreditar, que uma de minhas alunas pudesse maltratar uma colega, porque ela é pobre ou se veste de modo simples. Mas você fez uma nobre confissão, e eu estou igualmente pronta a lhe perdoar; assim como estou convicta que Fani fará, quando ela souber quão sinceramente você está arrependida por tê-la tratado tão sem coração."

Aos poucos, assim como Fani o podia suportar, uma após a outra foram ter com Fani para pedir perdão, o qual foi concedido a todas de todo coração. Ela disse: "Nem me admiro, que vocês me fizessem de boba. Eu sei que me vestia muito pobremente, e nem era bonita. Eu há muito me teria arrancado os cabelos fio por fio, mas eu estava convencida de que ele nasceria outra vez ruivo como antes. Se eu só tivesse uma única amiga entre vocês, eu seria capaz de suportar, mas me quebrou o coração em saber que todas vocês eram contra mim".

Depois desse incidente Fani se recuperou rapidamente, e um belo dia o médico disse que ela poderia ajuntar-se às demais por uma hora antes do jantar na sala de recepção. Foi um vai e vem fora do comum e cochichos para cá e lá entre as meninas. Fani não percebeu nada porque constantemente se retirava ao silêncio de seu quarto.

Na hora marcada a própria preceptora veio para ajudá-la enquanto Fani se apoiava em seu braço forte para percorrer o longo corredor e descer as escadarias.

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Tempos Felizes 78 Ela abriu a porta e indicou a Fani uma poltrona. Então entraram as meninas e lhe cantaram

um cântico de saudação. Terminada a canção, entrou Beatriz e colocou uma grinalda de lindas flores sobre sua cabeça, enquanto disse:

"Cara Fani hoje nós a coroamos como nossa rainha, por compreendermos quão acima você está de todas nós, nos olhos d'Aquele que olha o coração e não o exterior. Você nos ensinou uma lição, que jamais esqueceremos, assim lhe pedimos que aquilo que você encontrar no seu quarto, aceite como um sinal de nosso leal amor por você, e nosso arrependimento pelo nosso mau comportamento".

Os olhos de Fani nadavam em lágrimas e ela procurou responder algumas palavras, mas a preceptora tomou a palavra em seu lugar. Depois de mais uma canção todas seguiram sua nova rainha ao refeitório, onde um lauto e convidativo banquete tinha sido preparado para ela. Fani durante todo o tempo se manteve quieta e lágrimas de alegria deslizavam de seus olhos. Como ela estivesse muito cansada como conseqüência da incomum agitação, a preceptora disse que naquela noite ela não poderia ver o "sacrifício da paz" das meninas.

A primeira coisa que ela contemplou na manhã seguinte foi uma grande e bonita mala de viagem, sobre o qual havia um cartão com os dizeres: "Para a Srta. Fani Schneider, de suas professoras e suas colegas". Quando abriu achou-a cheia de lindos vestidos bem dobrados. Ela só conseguiu ver todo o conteúdo da mala após o desjejum, quando a deixaram à sós com seus lindos presentes. Ali ela encontrou lindos vestidos e maravilhosos casacos e langeri e artigos de toucador. Enfim tudo o que uma moça possivelmente necessite. Cada uma das duzentas e dez meninas do internato deram a sua melhor e amorosa contribuição para dar um enxoval completo a sua colega menos favorecida pela sorte. Bem no fundo da mala achava-se uma pasta recheada com o retrato de cada uma delas, uma carteira com uma boa quantia de dinheiro, além de um bilhete da Diretora:

"Minha querida filha! Esse é um recibo para todas as despesas, que você tiver durante sua permanência nesta instituição, a qual você poderá prolongar o quanto você gostar. Este recibo é um presente meu como prova de minha estima e consideração. Joana Gathin".

Na hora do almoço encontraram-na sentada em meio de todos seus tesouros chorando como uma criança, mas isto lhe fez bem. Logo ela estava em condições de retomar os seus estudos, e desde então ela sempre foi tratada com amor e consideração, mesmo quando todos os seus cabelos caíram da cabeça em conseqüência de sua doença, deixando-a tão lisa como seu rosto, o que a obrigou a usar por muitas semanas uma espécie de capuz como uma peruca.

Quando chegaram as férias grandes Beatriz a levou para seu belo lar, onde ela pela primeira vez na sua vida estava envolta de luxo e elegância e tratada como uma hóspede querida e honrada.

Não demorou mais muito, e Fani podia deixar sua peruca e sua cabeça cobriu-se de viçosa cabeleira marrom, que deu uma aparência bela a sua delicada fisionomia.

Suave e bondosa, gentil e querida por todos, ela permaneceu na instituição até que com honra terminou seu último exame. Depois disso a diretora lhe ofereceu um lugar como uma das primeiras professoras com um bom salário, o qual ela aceitou com coração grato!

COMO NA INFÂNCIA APRENDI

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Tempos Felizes 79 O 8º E 9º MANDAMENTO

Quando se anda duas horas a pé da minha cidade natal, conta um senhor idoso, chega-se

ao lago Oriental. Na praia há aqui e acolá uma aldeia de pescadores. Quando chegava o verão, os pescadores caiavam as paredes de suas casas com cal limpo, alugavam as acomodações vazias, e deixavam os veranistas acomodar-se confortavelmente. Eles mesmos mudavam-se para o curral, e deixavam suas vacas dia e noite no pasto.

Numa destas aldeias, também nossa mãe um dia alugou um quartinho. Ela estava com a saúde debilitada, e queria se fortalecer com um tratamento.

Foi então uma grande alegria, quando uma noite nós dois irmãos mais velhos – eu tinha 12 anos nessa ocasião – fomos mandados bem cedo para a cama, porque na manhã seguinte, para visitar a mamãe, teríamos que levantar bem cedo e irmos com papai até a cidade e de lá de canoa remarmos até a próxima aldeia.

Chegamos realmente muito cedo. Quando entramos na propriedade onde minha mãe morava, e passamos por um canteiro de cenouras no quintal, meu pai disse: "Estas cenouras não nos pertencem". Nós ouvimos bem estas palavras, enquanto nos lançamos impetuosamente ao quarto da mãe para cumprimentá-la.

Mas ainda teríamos uma hora de tempo antes de irmos juntos à igreja. Durante tanto tempo era impossível ficarmos no quarto. Depois de enfeitarmos a canoa com ramas verdes, ainda havia tempo de sobra para olharmos a horta. O que me atraía ao canteiro de cenouras que nem nos pertenciam? Sim o quê? Sim o que atraia Eva à árvore proibida? "A cobra me enganou, e eu comi." Não, eu não comi só puxei uma cenoura para fora, quando estava sozinho. No mesmo instante ouvi como a porta se abriu. Passos se aproximaram, depressa enfiei a cenoura debaixo de meu casaco (jaqueta) e o abotoei. Exatamente, era o pai. - Diante de meu Pai celeste eu não teria medo, que tudo vê e sabe. - Eu me aproximei dele com uma cara, como se nada tivesse acontecido. Mas, que azar! A verde rama da cenoura aparecia debaixo de meu casaco.

"Menino de onde você tirou esta cenoura?" perguntou ele. "Hugo me deu". Hugo era um colega de escola que igualmente veio visitar sua mãe. Meu pai nem precisou primeiro perguntar a meu amigo, porque ele me havia observado da janela, e sabia que eu só era o malfeitor.

"Vá imediatamente à dona da casa levar a cenoura roubada, e depois vá ao quarto. Nós vamos conversar lã."

Calado eu obedeci. E da mesma janela da qual meu pai me observou eu vi o que ele fazia na horta.

Ele perguntou à hospedeira se lhe permitia cortar uma vara de salgueiro (Chorão). Com muita calma ela foi podada para uma boa vara de disciplina. Depois ele entrou. Sem dizer palavra pegou-me pelo colarinho, deitou-me sobre o joelho e bateu pra valer. Em cada varada ele dizia: "Não furtarás." Quantas vezes? Não sei mais, mas pelo menos umas dez vezes. Depois me soltou, e perguntou. "Como diz o oitavo mandamento?" Eu pensei que estava terminado o penoso castigo. Mas eu estava enganado. Meu pai que havia posto a vara sobre a mesa e se sentado, levantou-se vagarosamente, e buscou de novo e disse: "Agora vem o nono mandamento". Eu não só havia roubado mas também mentido, e o nono mandamento me foi inculcado do mesmo modo, só que as varadas eram mais abundantes e mais fortes. E meu pai repetia: "O que se roubou pode-se devolver; mas o que se mentiu fica mentido eternamente".

Também com isto o castigo não estava terminado. Quando havíamos voltado da igreja na hora do almoço, e sentamos para comer, num canto havia uma pequena mesa só para mim,

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Tempos Felizes 80 sobre o qual havia só um prato de cenouras, as quais eu tive que comer. Este era o dia pelo qual me alegrara tanto.

Depois da refeição íamos fazer um passeio pela praia, mas eu não pude ir, mas tive que decorar a história como Jesus aos doze anos foi ao templo. Quando todos voltaram, segui à lei ao Evangelho. Meu pai falou-me impressivamente sobre Jesus. Alguma coisa disso ficou especialmente gravado em minha mente: Pois ele me perguntou entre outras coisas:

"Quando Maria e José naquela páscoa sentiram falta de seu filho de 12 anos, eles o acharam junto a Seu Pai celestial. Quando eu procurei meu filho de 12 anos, eu o achei junto a Satanás, o qual é um ladrão e mentiroso desde o princípio. Meu filho porque você nos fez isto?"

Hoje sou grato a meu pai de todo coração pelo amor e bondade demonstrados a mim naquele dia e que me ensinou cabalmente a guardar o oitavo e nono mandamentos e no mesmo dia ainda me levou a Jesus. Esta "experiência dolorosa", no verdadeiro sentido da palavra, me mostraram nitidamente, a estreita relação entre lei e Evangelho. O conhecimento do pecado, alcançado através da lei, me mostraram a estreita ligação entre lei e Evangelho. O conhecimento do pecado que nos vem através da lei, nos mostra a separação de Deus e desperta em nós o desejo de libertação e salvação, preparando assim o terreno do coração para o Evangelho.

UMA ROSA ENTRE ESPINHOS O pai de Susi já mais de um ano que havia falecido. Ela agora estava com 15 anos, a mais

velha da família e a mão direita da mãe. Mesmo que Susi até agora não pudesse ter ajudado na despesa de casa, sua mãe reafirmava: "Susi me é insubstituível, ela sempre está pronta para me ajudar, e para os irmãozinhos menores ela é uma verdadeira mãezinha".

Hoje no dia de seu 15º aniversário ela recebeu uma carta de sua tia, que é dona de uma grande loja de modas numa cidade distante, e oferecendo um bom emprego em seu estabelecimento. A tia escreveu, que Susi logo estaria bem prática no serviço da loja e seria uma grande ajuda para a tia. Ela conhecia o prazer que Susi tinha na costura e sua habilidade nisso; uma moça de melhor boa vontade ela não encontraria nem perto nem longe.

Page 81: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 81 Mas contra esta oferta tão favorável ainda havia uma consideração: A tia não era cristã. E

a mãe temia uma influência desfavorável em sua filha tão jovem. Porque só agora Susi fez sua decisão ao lado de Jesus, embora ela não tivesse consciência de tê-Lo amado menos antes.

Depois de terem orado seriamente e pedirem a guia divina neste caso, finalmente tomaram a decisão, que Susi deveria aceitar o emprego.

Logo chegou o dia da despedida. Um pequeno rosto tristonho olhava da janela do trem para fora, e uma mão tremula acenou o último adeus para sua mãezinha, que seguiu-o com olhar triste para ver se ainda captava um último olhar de sua querida filha. Quando ela perdeu a mãe de vista, com coração pesado caiu em seu assento. Ela não podia imaginar como seria a vida numa casa, onde nunca se ouviria a voz da oração, e de seu coração subiu um sincero pedido por ajuda. As palavras de despedida de sua mãe ainda ecoavam em seus ouvidos:

"Até à vista minha filha, nunca esqueça o que Cristo disse por intermédio de Salomão: Como uma rosa entre espinhos, assim é minha amiga entre as filhas." "Você vai encontrar espinhos de sobejo, entre suas colegas de trabalho haverá tais, que não reconhecem a Jesus como seu Salvador. Mas nunca esqueça que Ele olha para você como uma rosa em Seu jardim, e espera que você permaneça pura e branca. Não O entristeça. Por certo virão provações, mas não esqueça de orar a sós no seu quartinho".

Nos dias que se seguiram Susi repetiu muitas vezes estas palavras, e elas foram como um fogo que ilumina contra o perigo do pecado. Ela achou sua tia amável e bondosa, não obstante sentiu dolorosamente a falta das revigorantes horas de oração em conjunto em que a pequena família em casa, como ela bem sabia, oravam por ela. Susi estava aproximadamente um mês em seu novo lar, quando a primeira grande tentação se acercou dela. Para o sábado seguinte estava planejado um passeio em conjunto no qual elas levariam lanche e passariam o dia no ar livre, para o qual todas as moças da loja estavam convidadas. Quando Susi ouviu isso logo tomou o propósito de não participar.

Mas agora Ellen se aproximou dela, uma das moças mais bonitas e atraentes, com a qual Susi desejava muito travar amizade, e disse gentilmente: "Naturalmente nós também contamos com você nesse passeio. Susi, você gostaria de levar frutas ou bolo?"

O rosto de Susi ruborizou-se, quente o sangue subiu na cabeça, depois ela empalideceu. Os olhos de uma dúzia de meninas estavam sobre ela. Ela diante de todas poderia recusar?

Diga a elas, que aos sábados você não toma parte a tais divertimentos, advertia a consciência.

Não é preciso você confessar isso, para ser caçoada, cochichavam o orgulho e o pudor dentro dela, diga a elas que você tem cartas para escrever e não lhe sobrará tempo.

Naturalmente estas considerações ocuparam um espaço de tempo, e como Susi ainda hesitava com a resposta, Júlia se adiantou: "Eu suponho que Susi não poderá ir junto no sábado. Seria melhor nem termos convidado esta pequena santa".

Isto era demais para Susi. Ela respondeu apressada: "Eu não entendo porque me chama de santa: eu nunca pretendi ser tal".

Algumas meninas a olharam muito admiradas depois dessa afirmação, porque antes elas eram de opinião que Susi era uma cristã. Era novidade concluírem que haviam-se enganado nessa questão. Algumas delas riram, enquanto a pobre Susi se sentiu agora como Pedro, quando ele negou ao seu Senhor – ela fizera o mesmo. Tão logo ela pôde apressou-se em ir ao seu quarto, onde ela igualmente ao discípulo, chorou amargamente.

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Tempos Felizes 82 Como as palavras da querida mãe soaram em seus ouvidos a noite toda. Uma rosa entre

espinhos, ela entristeceu seu mestre e O decepcionou! Na manhã seguinte ela apareceu na loja pálida como um lírio, mas seu rosto tinha a expressão de uma vencedora. Como Jacó ela lutara com o anjo do Senhor e vencera. Antes de tirar seu chapéu, ela se pôs no meio da sala de trabalho. Algo de estranho no seu rosto e modo de se apresentar atraíram todos os olhares sobre ela.

"Meninas", ela começou, "eu tenho algo para dizer. Eu espero estar preparada esta manhã, para responder a pergunta de Ellen quanto à minha participação no passeio. Ontem pensei em recusar, sem dar o motivo porque eu não posso participar. Eu temi o escárnio de algumas e não tinha a certeza da compreensão de nenhuma, se eu tivesse dado a verdadeira razão. Hoje vocês o ouvirão franca e claramente. Eu observo o dia de descanso bíblico, o sábado, e não posso neste dia participar em tais diversões. Se eu fizesse isso, eu causaria vexame, a Esse que eu amo cuja filha pretendo ser. Eu confesso diante de todas, que fui muito covarde. Também peço desculpas a Julia pelas palavras de ontem, porque eu sei que também meu Salvador me perdoou."

Lágrimas marejaram os olhos de Susi quando ela acabou de falar, mas com coração aliviado recomeçou as suas obrigações.

"Susi não é a menina mais admirável que existe?", observou Marta sarcástica, baixinho para sua amiga Ellen. As outras ainda estavam de pé sem dizer palavra. Neste momento Susi foi chamada pela tia ao outro quarto. Isto deu oportunidade às meninas de externarem suas diversas opiniões.

"Sim ela é admirável, disse Ellen, mas eu creio que seria melhor que nós neste sentido também fôssemos um pouco admiráveis. Júlia devia lhe pedir desculpas por ter falado tão desdenhosamente."

"Pode estar certa que tal coisa nunca vou fazer", respondeu Júlia com sarcasmo e rindo enquanto seus dedos brincavam num vaso de rosas artificiais.

Ellen suspirou, ao pensar quão lamentável era sua própria condição religiosa. Ela ainda se lembrava tão bem das orações que sua mãe lhe ensinara na infância, mesmo que decorreram muitos anos de sua vida. Em muitas outras a firmeza da pequena Susi tinha causado profunda impressão, mas elas ocultaram seus sentimentos temendo as caçoadas das demais.

O sábado seguinte, para o qual o passeio estava marcado, surgiu claro e esplendoroso, mas quando as meninas da loja com suas redes e cestos de lanche iam partir, algumas não se sentiram bem a vontade. Não obstante ao maravilhoso tempo, muitas não estavam tão felizes como desejavam ser. Elas se reuniram no porto fluvial, onde todas tomaram o pequeno vapor afim de atravessarem até o outro lado do lago. Um prado maravilhoso, cercado de enormes olmeiros que ofereciam sombra, e juncado de muitas e lindas flores, estava após uma alegre caminhada diante delas. Neste lindo pedacinho não se podia passar indiferente, a proposta de aqui descansar e lanchar todas concordaram. Além disso tinha uma borbulhante fonte de água fresquinha ali perto. Agora na refeição em conjunto ao ar livre, uma disposição bem alegre tomou conta de todas.

Neste lugar, para a diversão dos excursionistas havia um balanço enorme. Este atraiu a turma logo após a refeição "Ellen e Júlia é sua vez", disse alguém entre as moças, quando o balanço vagou de novo.

Page 83: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 83 Elas entraram. Com os primeiros impulsos elas alcançaram até os ramos mais baixos dos

olmeiros, e então se impeliam cada vez para mais alto, até alcançarem a cova da árvore. Assim se balançaram um tempo para cá e para lá como o pêndulo de um enorme relógio.

"Ó Ellen, estou ficando tonta!" Júlia olhou para o rosto da sua colega que de repente tornou-se de uma polidez mortal. Os grandes olhos pretos se encheram de pavor.

"Julia, Julia! segure-se!" Era em vão, os braços perderam o controle. De repente veio do alto um terrível grito

estridente. Viu-se um vestido branco por entre as folhas verdes do olmeiro, e no instante seguinte um grupo tomado de pavor rodeava uma figura inerte deitada no chão ao pé do olmeiro. Um senhor se aproximou e disse: "Vamos levar esta moça o quanto antes possível ao médico.

"Sim, sim", afirmava uma senhora delicada, "ela parece ter quebrado o braço, e eu temo que ela ainda sofreu outros ferimentos graves."

"Se só tivéssemos aqui agora um médico" exclamou Ellen torcendo as mãos. Enfim os olhos escuros se abriram vagarosamente, e um gemido escapou dos lábios

pálidos. A situação era deprimente entre as moças, que no começo da tarde às furtadelas, foram

para casa para lá saberem do diagnóstico do médico sobre o estado de .Júlia. "Vai levar meses até que ela esteja novamente de pé" Susi sentiu dolorosamente o incidente, e desde então nunca se ajoelhava em seu quarto

sem lembrar da pobre sofredora. Alguns dias depois ela recebeu uma carta da Sra. Braun: "Júlia pede insistentemente por você. Poderá vir visitá-la esta noite?"

O dia inteiro Susi se indagou o que Julia quereria dela, e como terminaria essa visita, e ela pediu ao Senhor por graça, para lhe dar as palavras certas para que também lá ela pudesse ser uma rosa no jardim do Senhor.

"Ó Susi, você poderá alguma vez perdoar minhas palavras grosseiras de outro dia? Eu estive tão próximo da morte, e eu sou descrente, não sou cristã. Você gostaria de orar por mim?"

Naquela noite quando Susi desejou "boa noite" à sua nova amiga, lágrimas de alegria inundaram seus olhos, e Júlia disse: "Com a ajuda de Deus também eu quero tentar ser uma rosa no jardim do Senhor, e viver doravante fazendo bem a alguém".

Esta visível conversão de Júlia levou muitas das outras moças tomarem sérias decisões. Numa carta à sua mãe Susi escreveu: "Sabe, querida mãe, o que mais me ajudou do que

todas as outras coisas, a ser fiel à minha fé e confessá-la animadamente? Era aquele pequeno verso, que você ainda me falou ao embarcar no trem:

"Como uma rosa entre espinhos, assim é minha amiga entre suas filhas".

Page 84: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 84

ACEITAR UM EMPREGO "Venham para cá", disse o tio Bertoldo para nós, "revelem seus planos para mim, como

vocês pretendem ganhar o sustento?" Nós nos sentamos perto de nosso tio junto a lareira e olhamo-nos perplexos. Ele era

abastado e rico em experiência, nós em comparação éramos pobres e inexperientes. Tio Bertoldo também era bem sucedido em todos os seus empreendimentos, nós ao contrário geralmente levávamos a pior. Conseqüentemente nós o olhávamos com grande consideração e estima.

"Como nós pretendemos ganhar nosso sustento?" repetiu minha irmã Eleonora, vagarosamente.

"Sim é sobre isso que queremos falar", disse minha mãe notadamente irritada. "Bertoldo, você sabe que nós não sabemos administrar independentemente, e que para nós é difícil nas condições de vida atuais defender a nossa subsistência. Alguém de nós precisa ajudar a ganhar alguma coisa para não afundarmos."

Com estas palavras minha mãe recaiu fatigada em sua poltrona. "Sim", disse meu tio, "alguém precisa ajudar no sus tento, mas quem será". Outra vez se fez um penoso silêncio. "Eu penso", prosseguiu ele, vocês tiveram um bom nível de estudo. Quando olhei os

papéis de seu pai achei inúmeros recibos de escola." Minha mãe se refez. Naturalmente disse ela, "sua educação nos custou muito dinheiro.

Música, desenho, línguas..." "Sim, sim, naturalmente", interrompeu tio Bertoldo. "Mas essas meninas também

receberam lições práticas ou estagiaram? Talvez elas pudessem dar aulas particulares?" Eleonora o olhou atônica. E eu também tinha quase certeza que minha instrução não dava

pra tanto. Nossas professoras com suas múltiplas disciplinas deixaram o lado prático do aprendizado de lado. Nós só tínhamos ido à escola para recebermos a devida instrução, mas não para mais tarde ganharmos nosso sustento com isso.

Hum, Hum, resmungou o tio. "Essa é a educação moderna nas nossas escolas. Eleonora se você não sabe dar aulas, tem que começar outra coisa".

"Eu lhe aconselharia a aceitar um emprego em algum lugar." "Emprego?" "E eu me expressei tão incompreensivelmente?" Perguntou o tio Bertoldo, um tanto desconcertado. "Sim, eu acho que você devia procurar um emprego." "Que emprego o senhor acha?" "Bem isso depende. Empregada doméstica, ou dama de companhia para uma senhora idosa", explicou ele.

"Não, tio, isso eu não posso." "Você não pode? Por que você não pode?" "O que é demais, é demais", replicou Eleonora, ofendida em seu orgulho próprio, "até parece que a gente está se rebaixando".

Page 85: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 85 "Sim nada menos do que isso!" Tio Bertoldo meneou a cabeça. "Rebaixar-se. Todos nós nos rebaixamos neste mundo, se

você assim o entende, só cada um de uma maneira diferente." "É sim, eu sei", disse Eleonora com forçada tranqüilidade. Sua situação era difícil. Por um

lado, ela não queria magoar o tio, que veio para aconselhar, nem entristecê-lo, não obstante seu íntimo se revoltava contra o plano, que ele sugerira.

"Mas tio, eu – eu fui educada para uma coisa diferente do que uma empregada doméstica." "Então você não quer aceitar o emprego?" Nisso ele levantou os olhos, e seu olhar se

prendeu em uma pequena pintura, representando Cupido e Prícico, uma obra de exposição, pendurada sobre o sofá, pintado pela pobre Eleonora.

"Não eu realmente não posso." "Por mês tanto e tanto de salário", murmurava ele para si mesmo, como se fazendo uma

conta, "acompanhar diariamente a senhora nos seus passeios, cuidar do gato e do canarinho, casa nova com os mais modernos arranjos. No fim de semana você teria folga e no outono poderia ir de férias para casa."

"Não tio Bertoldo, não", exclamou minha irmã e se remexeu como se estivesse arrepiada. "Eu tenho o sangue dos Berklin e não consigo me rebaixar para fazer serviços tão humildes."

Tio Bertoldo pigarreou demorada e barulhentamente, como se estivesse fortemente resfriado.

"Eu sinto muito", disse ele, "você conhece o ditado: 'O céu ajuda a quem a si mesmo ajudar'. Você não pode esperar que eu seja mais liberal do que o próprio céu". Então se dirigiu à minha mãe. "Cunhada Ana, o que você diz disso?"

Minha mãe ainda uma senhora bem aparentada, se endireitou orgulhosamente, um pouco mais do que de costume. "Eu tenho que defender minha filha. Sim Eleonora tem razão, as Berklin sempre foram verdadeiras damas."

Até aqui ouvi calada a conversa dos outros. Agora me ergui silenciosamente e puxei minha cadeira para perto do tio.

"Como é minha pequenina Susinha", o senhor idoso pegou minha mão, "o que você deseja?"

"Eu queria lhe pedir uma coisa, tio. Deixe eu aceitar o emprego do qual você falou agora". Eu senti como meu coração batia mais forte. "Você é valente, filha", exclamou o tio Bertoldo.

Minha mãe deixou-se abater. "Minha filha como empregada?" "Susana!" Eleonora não usou o tom mais amável. "Sim", disse eu, "eu pensei durante vossa longa conversação. Eu até hoje não recuei diante

de nenhum trabalho, e uma parte do salário vai lhe ajudar, mamãe. E depois as férias no outono, como vai ser bom! Tio, você a pouco falou de uma senhora idosa, poderia ir lá? Onde ela está? Como ela se chama?"

"Eu ainda não disse para vocês o nome? Ela se chama Guilhermina, Sra. Guilhermina" disse tio Bertoldo.

"Sim você me apresenta lá, eu acho que não vou ter dificuldade, nem me arrepender", exclamei eu entusiasmada.

"Eu também acho", disse o tio Bertoldo, enquanto me anuía satisfeito, "eu sei que vocês vão se entender muito bem. Você pode se preparar para o primeiro trem de amanha cedo.

"Sim eu acho que dá", respondi. Para minha mãe e minha irmã, eu não ousei olhar. Tio Bertoldo, já estava outra vez contente. "Você é a mais ajuizada de todas".

Page 86: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 86 Mas depois de se haver recolhido ao quarto de hóspedes, para descansar, minha mãe e

irmã me assediaram com muitas repreensões; o seu senso de posição estava profundamente ferido.

Eu fiquei firme na minha posição. "Alguém de nós tem que começar, se não queremos morrer de fome. "Será que para você e Eleonora não há vantagem nisso?" eu recomecei. Você vai receber parte do meu salário, e vai ter uma comilona a menos, portanto, vai melhorar o orçamento da casa, mamãe".

"É, isto é verdade, suspirou minha mãe cansada. "Mas eu nunca imaginei que uma de minhas filhas tivesse que aceitar um emprego."

"Eu esperava uma coisa melhor de tio Bertoldo", exclamou Eleonora indignada. Esse velho sovina. Eu esperava que ele fosse levar uma de nós duas para sua casa e dar um maior apoio à mamãe. Ele é tão rico quanto Kresus e não tem nenhum filho."

"Isso ele pode fazer como ele bem entende. Eu prefiro, eu mesma ganhar meu dinheiro." Eu decididamente defendo o tio.

Na manhã seguinte, com minha mala pronta, eu iniciei a viagem com meu tio para a grande, e para mim desconhecida cidade.

"Tio Bertoldo, eu naturalmente não conheço a grande cidade, tudo para mim é estranho. Onde mora a Sra. Guilhermina? Você me acompanha até lá?" Eu perguntei quando chegamos ao término da viagem.

"Fique tranqüila eu vou com você até lá", respondeu ele. Eu estava curiosa: "Você a conhece mais de perto?" "Certamente, há muito tempo eu a conheço". Novamente ele sorriu tão sorrateiro como na

noite anterior. Na estação alugamos um táxi, mas nós passamos por tantas ruas, que afinal eu me reclinei

cansada ao canto. Aí o carro parou diante de uma bela mansão, que me parecia como um palácio. Tio Bertoldo me ajudou a descer. "Aqui mora a Sra. Guilhermina", disse ele reprimindo risada.

Uma gentil doméstica abriu a porta, e eu fui conduzida a uma sala lindamente decorada, custosos papéis de parede, tapetes estrangeiros, enfim uma decoração que denota grande riqueza.

Enquanto ainda me ambientava, entrou uma senhora de meia idade que veio radiante ao meu encontro.

"Como estou contente Bertoldo", disse ela, que você nos trouxe uma das amáveis meninas! Seja bem-vinda à nossa casa!"

"Sim, sim, Susinha, esta é a tia cumprimente-a", disse o tio tirando o chapéu e sobretudo, sentando-se confortavelmente no sofá.

"Minha tia?" me parecia tudo tão singular. Assim não se recebe uma empregada, pensei eu.

"Por que não seria eu? Por certo sou eu sua tia Guilhermina", disse a gentil senhora. "Mas eu pensei", exclamou confusa, que aqui eu teria que começar um emprego?, nós

ontem falamos sobre isso." "E é isso mesmo que você vai fazer", disse o tio divertido, porém o emprego de uma filha

de criação em nossa família. Como tal receberá cada mês dinheiro para suas despesas, do qual nós falamos ontem, você terá que cuidar do gatinho e do canarinho de sua tia Guilhermina, e mostrar-se útil dentro de casa."

Page 87: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 87 "Mas tio, por que você não nos disse isso ontem? Eleonora teria ficado tão feliz, se ela

soubesse ao certo do que se tratava." "Bla, bla, bla!" disse o tio no seu jeito de ser. "Eu não queria uma filha de criação, que

fosse grã-fina demais para trabalhar. Eu ofereci o emprego a Eleonora, mas ela recusou. Você decidiu vir, portanto está aqui."

Vejam, assim eu cheguei a meu novo e lindo lar! Minha irmã na sua simples casa de campo, me inveja bastante, ela apreciaria a opulência e riqueza da cidade grande. Mas o ponto de vista de meu tio ainda é o antigo. Ele não quer dar ouvidos, quando eu lhe peço, aceitar Eleonora em meu lugar em sua casa. A mais feliz sou eu, e mais ainda quando posso mandar alguma coisa para minha casa.

O JOVEM ORGANISTA Jonas era o filho mais moço do fabricante de órgãos, Jonas, cuja pátria era a Nova

Inglaterra. Ele era um menino pequeno e quieto, que em nada se sobressaía, com exceção de sua incontida paixão pela música. Seu amor à música era tão grande, que desde sua mais tenra idade, quando ouvia suas irmãs cantar, enquanto desempenhavam seus deveres domésticos ficava profundamente impressionado. E se alguma vez elas não acertavam o tom, ele saia correndo horrorizado. O coral que cantava no culto público na igreja, o como via às lágrimas, que deslizavam e caíam sobre seu hinário.

Mesmo que para Jonas as lágrimas vinham inconscientemente, isto não passava desapercebido a seu pai que guardava tudo isso em seu coração. Quando o menino havia

Page 88: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 88 alcançado seu décimo primeiro ano de vida, a família deixou sua morada de campo, e foram morar numa casa em Nova York. Aqui o pai tomou a decisão de deixar o filho aprender a tocar órgão.

"Pense, Jonas, que eu sou um homem pobre, e que só com dificuldade vou custear os seus estudos, portanto, executa em casa a sua tarefa varonil e pacientemente. Eu lhe deixo abraçar essa profissão (carreira) porque eu penso que também é este o seu desejo."

Jonas estava felicíssimo, e seus fracos dedos queimavam de ânsia, na feliz expectativa, de um dia poder, dominar essas teclas brancas e pretas tão misteriosas conforme a melodia e o compasso do "Tedeum" e dos corais.

Foi escolhido um professor, que ensinasse metódica e persistentemente. Já na primeira aula Jonas compreendeu que sem dúvida seria uma grande e séria tarefa, mormente depois de tocar três vezes do quanto era para tocar a batuta do mestre de repente desceu sobre suas mãos quando procurava a nota certa. Pobres dedinhos! Eles ficaram inativos por esse dia, porque ficaram duros e vermelhos. Jonas chorou tanto que foi mandado para casa. Além disso, o mestre lhe disse que deveria voltar somente após dois dias.

No caminho para casa ele suspirava e soprava suas mãos doloridas, sua aparência era lastimável. "Espere, seu velho bruto!", disse o aluno, banhado em lágrimas, para si mesmo, "meu pai vai lhe pagar".

Ele encontrou o pai na oficina ativo em seu trabalho. "Então", disse o fabricante de órgãos levantando os olhos. "Como foi a primeira aula?"

Logo ele viu que teve dificuldades. Jonas, com renovado choro mostrou seus dedos doloridos, e contou o que tinha acontecido. O pai ouviu com cara sisuda, depois de ouvir a triste história. Ele muito sério, levou seu filho, para um quartinho nos fundos; ao receber umas boas surras, foi advertido, a nunca mais se queixar do mestre. Com isso ele deixou o menino a sós com sua dor.

Por um momento Jonas pensou que tal tratamento era insuportável, e durante horas ficou deitado sobre um monte de serragem, imaginando alguma vingança contra estes que ele considerava seus piores inimigos, quando de repente o som maravilhoso de um órgão o fez estremecer. O som vinha da oficina do pai. Sem dúvida as mãos de um mestre tocavam nas teclas. Jonas ergueu a cabeça e escutou. Era uma abertura de Joham Sebastian Bach; e os maravilhosos acordes impressionaram a Jonas como de um ser sobrenatural.

Ele pulou do seu lugar e sua alma estremeceu com as palavras que ele imaginava a música lhe diziam.

Ele foi e silenciosamente abriu a porta. O lado posterior do órgão o ocultava dos olhos do organista. Ele não queria ser visto, portanto esgueirou-se na parede do depósito, até ver o rosto do organista. Seria possível ser o seu professor? Sim, Jonas reconheceu a longa barba crespa e até a batuta, que estava ao lado no banco. Debaixo dos sons dos comoventes acordes, foi possível ao menino esgueirar-se para fora sem ser visto. Ele lembrou que depois de dois dias devia apresentar-se de novo ao mestre. Seria possível ele tocar uma escala sem errar para este homem tão severo? Só o pensamento o fazia estremecer. Não obstante Jonas foi tomado de entusiasmo, em tornar-se um músico. Sua sede de vingança estava apagada – ele só pensava em Sebastian Bach.

Haviam colocado um pequeno órgão no sótão onde Jonas dormia. Para lá ele foi e começou seu trabalho, que desde então ele realiza com perseverança e dedicação. O mestre tão temido não tinha nenhuma censura na próxima lição, e como Jonas progredia e respeitava seu mestre, e para um menino da sua idade aprendia e progredia além da expectativa, o mestre

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Tempos Felizes 89 relaxou seu severo tratamento e com o tempo deixou seu aluno perceber todo o calor que tinha em seu coração, para animar esse aluno que ele aprendeu a amar muito.

Depois de cinco meses, Jonas passou por uma grande tristeza. Seu mestre morreu depois de curta enfermidade, e isso comoveu tanto o menino, que o fabricante de órgãos temeu que isso fosse afetar a saúde de seu filho. O menino não queria outro professor, e assegurou a seu pai que agora estava em condições de prosseguir sozinho nos seus estudos. Desde cedo até a noite achava-se o menino no seu quartinho no sótão estudando. Quem lê a sua biografia, dificilmente acreditará, que ele progrediu tão vantajosamente. Mas eu falo de realidades.

Quando Jonas estava com exatamente doze anos, quis a providência, que numa loja de música ele ouvisse a conversa de dois homens, eles falavam de um organista de sua igreja, que ficava na parte alta da cidade, e que ia despedir-se dentro de algumas semanas.

Jonas ouvia. "Ele toca muito com jeito de opereta, isto a congregação não gosta" disse um. "É", disse o

outro, "quanto mais singelo o jeito de tocar, tanto mais agrada." "Onde fica essa igreja?" perguntou Jonas discretamente." "É a igreja de . . . na rua . . . "

Jonas voltou ao seu órgão com novos e grandiosos pensamentos. Na sexta-feira seguinte bem cedo, ele foi a tal igreja. Além do organista, que estava na galeria colocando em ordem suas músicas, não havia ninguém na igreja. Jonas subiu a escada e chegou perto do órgão. O organista se virou repentinamente para o intruso.

"O que você quer aqui, meu menino?" perguntou ele. "Eu ouvi dizer que aqui há uma vaga para um emprego, meu senhor. "Você sabe de alguém que queira ocupar a vaga?" "Sim eu mesmo, e com muito gosto." "Você?" "Sim, eu toco órgão." Esta singela resposta só provocou um riso ao inquiridor. Ele apontou uma página de

música qualquer, e disse: "Toca isso aqui". E enquanto ele deixou Jonas ocupar o seu lugar, ele foi aos foles. Incerto

e vacilante Jonas começou; mas com cada acorde ele ganhava ânimo, e fez sua parte impecavelmente, enquanto o organista corria dos foles às notas e das notas de volta aos foles. No fim os dois suspiraram.

"Bem isto é mais do que satisfatório." disse o organista. "E você quer concorrer a esta vaga?" "Sim senhor!", disse Jonas estremecendo de alegria. "Então vem aqui para o próximo culto que será domingo, chegue um pouco mais cedo, eu quero lhe apresentar ao pregador, ele é que vai dar as regras."

O menino voltou em grande expectativa para sua casa. Ele não contou nada ao pai, do ocorrido. Ele ainda não ousava confiar em si mesmo. Nunca as horas lhe pareciam tão demoradas como estas entre a manha e o próximo culto. Mas o tempo determinado chegou, e Jonas estava lá conforme o combinado e o organista também, que o levou a um quarto contíguo e o apresentou como o candidato a vaga.

Venerável, com seu cabelo branco e rosto bondoso, estava o pregador diante dele, e Jonas fez a sua solicitação.

"Sim, meu filho o presente organista vai nos deixar dentro de três semanas; será este tempo suficiente para você se familiarizar com nossa ordem de culto?"

"Por certo, senhor."

Page 90: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 90 "Então eu só preciso ouvir você tocar, antes de tomar a decisão final. Você quer substituir

o organista hoje? Ele vai lhe mostrar tudo o que for preciso." A proposta veio repentina e inesperadamente, e fez o coração de Jonas bater forte, mas ele

sentiu que tudo dependia de seu ânimo, e assim ele aceitou. Sério e um pouco oprimido ele ocupou o lugar diante do órgão. O sino da igreja parou de

tocar; o pregador entrou e Jonas com seus dedos delicados apertou as teclas para seu primeiro acorde do prelúdio, o qual sendo uma fantasia podia ser considerado a base de seu grande sucesso para sua vida.

A música neste culto era simples e pura como o coração deste que a tocava. Depois do sermão Jonas se apresentou ao pregador, o qual o recebeu da maneira mais amável possível.

"Conserve seu estilo simples e nós com prazer lhe contrataremos. Quanto de ordenado você pensa em pedir?"

"Nisso eu ainda não pensei, era só meu veemente desejo, poder tocar numa igreja." O pregador sentou-se numa mesa, tomou o papel e escreveu um contrato, enquanto ele

dizia: "Você deve receber o que sempre pagamos. Aqui eu escrevi o contrato, chegue aqui perto e assine".

"A sua caligrafia não se compara ao seu modo de tocar", continuou o pregador sorrindo, quando ele viu a letra desigual e infantil da assinatura, Jonas Jonsons, "também não se pode esperar tudo de um rapaz tão jovem como você. Aqui está o contrato, guarde-o com cuidado."

Jonas se despediu de seu novo amigo e apressou-se para casa. Quando a família do fabricante de órgãos naquela noite sentou-se ao redor da mesa para a ceia, o caçula achegou-se ao pai, puxou o contrato e o mostrou ao pai.

"O que é isto meu filho?" perguntou o pai surpreso. Jonas não respondeu mas esperou até que os pais ajeitassem os óculos e lessem o contrato,

e seu pai disse alegremente: "Ele será um grande mestre, mulher, que Deus o abençoe!" Jonas não suportou mais. Correu para seu quartinho no sótão, jogou-se sobre a cama e

soluçou de alegria, esperança, vontade de ação. A profecia do fabricante de órgãos se cumpriu. O mundo deve a ele muitas das músicas

sacras. Como compositor e professor ele é "grande". Os homens e mulheres que realmente realizaram algo na vida, foram quase sem exceção

heróis na perseverança. Muitos jovens têm nobres ideais, mas não os desenvolvem até o máximo, porque não se

animam na perseverança e no esforço. Um ditado diz: "Começar é fácil, perseverar é uma arte."

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Tempos Felizes 91

O HOMEM DE CASA Stéfano era um menino bem crescido. Ele vivia com sua mãe, seu pai e uma irmãzinha no

Queen Charlotte Sound, na ponta oeste, da ilha do Sul Newseelands. Se você já esteve lá alguma vez, você sabe quão lindo é o estreito de Marlborough. Se

você não o conhece, imagine um porto longo, estreito, cercado de elevações e uma dúzia de pequenas baías.

Stéfano achava que sua baía era a mais linda, e no verão os veranistas eram da mesma opinião. Pois o pai de Stéfano dirigia uma colônia de férias. Ele construiu no cume do morro, atrás de sua casa, uma dúzia de bangalôs. E no verão vinham as pessoas da cidade para passar aqui as suas férias. Eles viviam dias maravilhosos, pescando, remando e em passeios pela mata, que avançava pelo barranco da praia.

Os meninos da cidade achavam que Stéfano era o mais sortudo deste mundo. "Imaginem só, que tal a gente morar aqui o ano inteiro, dia após dia só nadar, pescar e remar!"

Nada os convencia que também podia ser diferente, que nem sempre era verão e tempo de férias.

Stéfano conhecia melhor a vida daqui. Durante o tempo escolar ele estudava as lições por um telecurso. Ele também sabia de dias tempestuosos no inverno, quando, a "Estrada das canoas" desaparecia debaixo da espumante maré e umedecia as janelas da casa. Todas as canoas então tinham que ser fortemente amarradas e ninguém se aventurava na impetuosa água. Mesmo no verão podia subir de repente uma tempestade do sul.

O pai de Stéfano ficava então cheio de preocupação lá fora na estrada, até que cada canoa estivesse segura no hangar.

Depois que todos os veranistas tinham ido embora e os ventos gélidos muitas vezes castigavam a baía, disse o pai de Stéfano à mãe. "Eu preciso ir por uns dias à Wellington para resolver alguns negócios".

Quando então, um dia passou o barco-correio vindo de Picton, que além de correspondência também trazia pão e provisões, Stéfano levou a maleta do pai a bordo e a deixou embaixo no pequeno camarote.

"Até logo papai!", gritavam as crianças lá da terra firme. "Até logo", dizia o pai rindo. "Tome conta da mamãe, Stéfano. Você é agora o homem da

casa." Stéfano se aprumava o quanto lhe era possível, "por certo papai" prometeu ele. Eles olharam e acenaram até que o barco-correio desapareceu pela curva da terra. Durante

todo tempo Stéfano só ficou imaginando como seria bom se ele também pudesse ter ido junto; mas então ele se lembrou das palavras de despedida do pai. Stéfano agora era o homem da casa.

Page 92: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 92 No dia seguinte já estava de pé muito cedo, ele ordenhou as vacas e rachou a lenha para a

mamãe. "Você é um bom menino, Stéfano", disse a mãe, "eu não sei como me teria arranjado sem

você hoje cedo, eu passei quase a noite toda em claro com Penny. Eu só espero que ela não fique doente."

Stéfano entrou para ver sua irmãzinha. Ela não estava alegre e satisfeita como sempre. Com as faces quentes ela gemia baixinho e oprimida.

"Olha Penny, eu deixo você brincar com meu avião, se você quiser", disse Stéfano. Normalmente isto seria uma verdadeira festa, mas hoje Penny não estava interessada. Ela virou o rostinho e chorou mais ainda.

Lá fora o céu que de manhã fora tão claro se escurecia de maneira assustadora. O mar parecia que esperava tenso e sabia que algo aconteceria. Logo o vento começou soprar pela casa, sacudia os galhos das árvores, mexia na calha solta, e empurrava a água em ondas coroadas de espuma, diante de si. E sempre mais forte ficava a tormenta. A "Estrada das canoas" que beirava o mar já desaparecera de vista diante das ondas.

Penny finalmente dormiu, com o dedinho polegar na boca, e uma perninha teimava em ficar para fora do cobertor.

"O melhor é você ir dormir também Stéfano", disse a mãe. "Você já levantou tão cedo." Obediente Stéfano deu boa noite, e quando sua mãe o sacudiu acordando parecia que ele

tinha pegado no sono aquela hora. "Stéfano, Stéfano", suplicava ela, acorde depressa, Penny está muito mal, e o telefone está

interrompido. Por certo uma árvore caiu sobre os fios. Você precisa atravessar os recifes e ir à casa dos Treadwells, e pedir ao Sr. Treadwells para nos levar a Picton, eu preciso levar Penny a um médico. Pegue a lanterna de tempestade, e se apresse o quanto você puder."

Stéfano se vestiu rápido e enfiou a capa de chuva e as botas de borracha. Então tirou a lanterna do gancho detrás da porta. Quando o uivo da ventania parava por um pouco, ele podia ouvir o inquieto gemido da pequena Penny. A mãe o chamou junto de si, e disse: "Meu filho, vamos pedir ao Deus Todo-poderoso, que é Senhor acima da tempestade que lhe guarde no seu caminho."

A mãe orou com ternas palavras, depois abriu a porta para seu filho. Stéfano fechou a porta atrás de si e entrou na noite escura. Ele precisava apoiar todo peso de seu corpo contra a ventania, quando subia pelo caminho estreito o morro, até encontrar o caminho que atravessava os recifes e que ia à casa dos Treadwells.

O capim alto de ambos os lados raspava seu casaco enquanto ele avançava. Ali onde o caminho fazia repentinamente uma curva, ele parou apavorado. O caminho todo tinha simplesmente sumido. O quanto ele pôde constatar com a fraca luz de seu lampião, uma parte do recife havia desbarrancado. Muito abaixo de seus pés ele ouviu o ruído das ondas batendo contra as rochas.

Cada esperança de alcançar os Treadwells por terra estava perdida. E se ele abrisse caminho através da mata, levaria horas para chegar lá. A única solução era o caminho pela água. Depressa desceu morro abaixo. Só um minuto ele se deteve excitante diante da casa das canoas. Mas então decidido abriu a porta. Enfiou os remos nos ganchos, e com esforço extremo deixou o bote deslizar para a tormentosa água.

O vaivém das ondas era tão forte que mal ele conseguiu segurar o bote. Mas de qualquer maneira lhe foi possível pular para dentro do bote, mas com o pulo ele raspou a perna

Page 93: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 93 machucando-a bastante. Mas agora não havia tempo de se incomodar com a perna. Ele precisava pensar em tudo o que havia aprendido desde sua infância. Ele parece que ouvia o pai dizer: "Segure o bote sempre com a ponta dentro das ondas e os remos bem fundos."

Vagarosamente conseguiu afastar-se da margem, e com os braços doloridos remava em direção ao cabo que se estendia água adentro, atrás do qual moravam os Treadwells. Como ele se sentiu pequenino, como um ser perdido numa casca de noz. "Se eu só conseguisse fazer o contorno do cabo", pensava ele cheio de preocupação.

O vento surrava suas roupas e as ondas o cobriam com sua espuma mas ele valentemente continuou remando. Uma coisa muito familiar lhe veio à mente: Jesus na noite tempestuosa no mar da Galiléia. E através do ruído do vento tempestuoso e o bramido das ondas, nenhum ser humano ouviu a voz, que ficou perdida na noite tenebrosa, um cântico de fé:

"Mestre o mar se revolta, as ondas nos dão pavor, o Céu se reveste de trevas não temos um Salvador?..."

Sim Stéfano tinha um Salvador, que em casa a mãe angustiada neste momento evocava em oração pelos seus filhos, uma doente, o outro exposto aos perigos de uma noite tempestuosa.

"As ondas atendem ao Meu mandar, sossegai, sossegai convosco estou para vos salvar, sim sossegai."

O mar não sossegou mas Deus deu forças e enfim Stéfano se aproximava da ponta de terra. Durante um momento pavoroso, ele pensou que se despedaçaria no recife. Mas ele esforçou-se ao extremo, e com uma dúzia de remadas, conseguiu contornar o cabo. Agora o pior tinha passado; embora o remar ainda exigia muito esforço, ele já podia divisar a luz acesa além, da estrada na casa dos Treadwells. Ele remou com novo ânimo e quase esqueceu seu corpo dolorido.

Logo ele puxava o barco pela praia acima, não muito distante da estrada de terra, e quase sem fôlego subiu o barranco em direção à casa dos Treadwells.

"Sim, mas Stéfano", exclamou o Sr. Treadwells admirado, quando viu aquela figura suja e molhada na moldura da porta. "O que faz você fora com tal tempo e à meia-noite? Entre depressa!" "Mary, Mary, olhe quem está aqui!"

Logo Stéfano estava envolto em grossos cobertores diante da lareira, onde ele apresentou sua petição.

"E você com tal tempo remou até aqui? A Sra. Treadwells quase não podia crer no que ouvia. O Sr. Treadwells lhe deu umas palmadinhas no lombo. "Você é um menino segundo o meu gosto. Não se preocupe mais agora. Assim que a ventania amainar só um pouco eu pego meu barco a motor, e logo Penny estará no médico."

E assim aconteceu. Assim que acalmou um pouco, eles foram com o barco a motor. A Sra. Treadwells foi junto para ficar com Stéfano, enquanto a mãe estivesse a caminho do médico.

Quando chegaram em casa de Stéfano, o Sr. Treadwells carregou a pequena Penny com muito cuidado para seu barco, e a deitou na cama dentro do pequenino camarote.

"Até logo, Stéfano", disse a mãe, abraçando-o fortemente. Você é um menino corajoso. Estou orgulhosa de você." Alguns dias mais tarde o pai voltou para casa. Pensativo ele ouviu quando Stéfano lhe contou sua aventura. O pai sorriu feliz, e passou a mão pelo espesso cabelo do menino.

"Então Anne", ele disse à sua mulher. Agora não preciso me preocupar mais quando tiver que sair de casa. Enquanto Stéfano estiver aqui, você não ficará sem homem em casa."

Dirigindo-se a Stéfano disse com calor: "Eu lhe agradeço meu bom menino!"

Page 94: Ana Maria Schmidt - Tempos Felizes

Tempos Felizes 94 Para Stéfano foi agradecimento suficiente quando Penny voltou do hospital e todos

puderam estar novamente reunidos no lar, e agradecer a Deus pela providência.