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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 23, MAIO 2006 14 A Química apresenta uma gran- de dificuldade, que é a de li- dar com conceitos muito abs- tratos e exigir dos estudantes, muito precocemente, o domínio de uma nova linguagem, normalmente difícil para um novato na área (Ben-Zvi et al., 1987). Muitos termos empregados na Ciência apresentam significados bas- tante distintos do senso comum. Co- mo exemplo corriqueiro em Química, podemos citar a palavra “equilíbrio”. No senso comum, equilíbrio remete à imagem de igualdade, como os pra- tos de uma balança quando carregam pesos equivalentes. Em Química, porém, essa igualdade de pesos do senso comum é freqüentemente con- fundida com igualdade de quantidades de reagentes e produtos na reação em equilíbrio. De particular importância é o conceito de transformação química, sendo este associado a inúmeras concepções alternativas por parte dos estudantes. Suas explicações científi- cas são, muitas vezes, baseadas em intuições, em vez de se valerem de no- vos conceitos científicos aprendidos em sala de aula (Ahtee e Varjola, 1998). Muito embora alguns usem o ter- mo “transformação” em suas explica- ções de fenômenos naturais, eles nem sempre entendem que reações quí- Recebido em 29/9/04; aceito em 14/3/06 micas envolvem a formação de novas substâncias (produtos) a partir do consumo de substâncias presentes no sistema inicial (reagentes). A dificul- dade aumenta para a compreensão do modelo atômico molecular, que consi- dera a ocorrência de um rearranjo dos átomos presentes nos reagentes para formar novos agregados atômicos que compõem os produtos. Quando se trata de reações em solução aquosa, a situação se complica ainda mais, pois envolve o domínio de uma série de conceitos, como íons, moléculas, átomos, elementos etc. Além do entendimento prático, observável, do que vem a ser uma trans- formação química, existe um problema adicional, que é o de lidar com a represen- tação da mesma. Apesar de parecer muito óbvia para quem domina a área, para muitos estudan- tes a representação de uma reação quími- ca pode se apresentar como um obstáculo difícil de transpor. Aqueles que conseguem, não o fazem sem es- forço e sem problemas. Pior ainda para os que ficam pelo meio do caminho, memorizando regras e aprendendo algoritmos sem significado útil. Muitas vezes, cria-se a impressão de que há dois mundos separados: o da obser- vação da transformação e o da repre- sentação da mesma, sendo que, para o aluno, não há interligação entre eles. Nos livros didáticos convencionais observa-se, relativamente, muito pou- co espaço dedicado a explicar o que são as reações químicas e como elas são representadas por equações (Hes- se e Anderson, 1992). Normalmente, tais livros fornecem uma versão con- densada de conceitos complexos usando definições que se resumem a uma ou duas frases (Ahtee e Varjola, 1998). Sendo assim, a concepção que os alunos desenvolvem desses conceitos é muito fragmentada e se resume a, no máxi- mo, essas duas fra- ses. Isto, quando o aluno compreende o que significam. Em teoria, parece haver pouco para explicar. A idéia de que reações quí- micas envolvem o rompimento de Reações envolvendo íons em solução aquosa Ana Luiza Petillo Nery, Rodrigo Marchiori Liegel e Carmen Fernandez A maior parte dos livros didáticos classifica as reações inorgânicas de precipitação, neutralização e formação de produtos instáveis ou voláteis como “dupla troca”, deixando a falsa impressão de que qualquer mistura pode dar origem a uma reação química. Muitas vezes, o aluno acaba entendendo o fenômeno como o simples rearranjo de fórmulas, sem compreender o real significado do que ocorre. Neste artigo, descrevemos uma atividade para o desenvolvimento do tema “reações químicas em soluções aquosas” por meio da resolução de um desafio apresentado aos alunos. dupla troca, transformações, reações inorgânicas Alguns alunos usam o termo “transformação” em suas explicações de fenômenos naturais, mas nem sempre entendem que reações químicas envolvem a formação de novas substâncias (produtos) a partir do consumo de substâncias presentes no sistema inicial (reagentes)

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 23, MAIO 2006

14 AQuímica apresenta uma gran-de dificuldade, que é a de li-dar com conceitos muito abs-

tratos e exigir dos estudantes, muitoprecocemente, o domínio de uma novalinguagem, normalmente difícil para umnovato na área (Ben-Zvi et al., 1987).

Muitos termos empregados naCiência apresentam significados bas-tante distintos do senso comum. Co-mo exemplo corriqueiro em Química,podemos citar a palavra “equilíbrio”. Nosenso comum, equilíbrio remete àimagem de igualdade, como os pra-tos de uma balança quando carregampesos equivalentes. Em Química,porém, essa igualdade de pesos dosenso comum é freqüentemente con-fundida com igualdade de quantidadesde reagentes e produtos na reação emequilíbrio. De particular importância éo conceito de transformação química,sendo este associado a inúmerasconcepções alternativas por parte dosestudantes. Suas explicações científi-cas são, muitas vezes, baseadas emintuições, em vez de se valerem de no-vos conceitos científicos aprendidosem sala de aula (Ahtee e Varjola, 1998).

Muito embora alguns usem o ter-mo “transformação” em suas explica-ções de fenômenos naturais, eles nemsempre entendem que reações quí-

Recebido em 29/9/04; aceito em 14/3/06

micas envolvem a formação de novassubstâncias (produtos) a partir doconsumo de substâncias presentes nosistema inicial (reagentes). A dificul-dade aumenta para a compreensão domodelo atômico molecular, que consi-dera a ocorrência de um rearranjo dosátomos presentes nos reagentes paraformar novos agregados atômicos quecompõem os produtos. Quando setrata de reações em solução aquosa,a situação se complica ainda mais,pois envolve o domínio de uma sériede conceitos, como íons, moléculas,átomos, elementos etc.

Além do entendimento prático,observável, do quevem a ser uma trans-formação química,existe um problemaadicional, que é o delidar com a represen-tação da mesma.Apesar de parecermuito óbvia paraquem domina a área,para muitos estudan-tes a representaçãode uma reação quími-ca pode se apresentar como umobstáculo difícil de transpor. Aquelesque conseguem, não o fazem sem es-forço e sem problemas. Pior ainda para

os que ficam pelo meio do caminho,memorizando regras e aprendendoalgoritmos sem significado útil. Muitasvezes, cria-se a impressão de que hádois mundos separados: o da obser-vação da transformação e o da repre-sentação da mesma, sendo que, parao aluno, não há interligação entre eles.

Nos livros didáticos convencionaisobserva-se, relativamente, muito pou-co espaço dedicado a explicar o quesão as reações químicas e como elassão representadas por equações (Hes-se e Anderson, 1992). Normalmente,tais livros fornecem uma versão con-densada de conceitos complexos

usando definiçõesque se resumem auma ou duas frases(Ahtee e Varjola,1998). Sendo assim, aconcepção que osalunos desenvolvemdesses conceitos émuito fragmentada ese resume a, no máxi-mo, essas duas fra-ses. Isto, quando oaluno compreende o

que significam.Em teoria, parece haver pouco para

explicar. A idéia de que reações quí-micas envolvem o rompimento de

Reações envolvendo íons em solução aquosa

Ana Luiza Petillo Nery, Rodrigo Marchiori Liegel e Carmen Fernandez

A maior parte dos livros didáticos classifica as reações inorgânicas de precipitação, neutralização e formação deprodutos instáveis ou voláteis como “dupla troca”, deixando a falsa impressão de que qualquer mistura pode dar origema uma reação química. Muitas vezes, o aluno acaba entendendo o fenômeno como o simples rearranjo de fórmulas, semcompreender o real significado do que ocorre. Neste artigo, descrevemos uma atividade para o desenvolvimento do tema“reações químicas em soluções aquosas” por meio da resolução de um desafio apresentado aos alunos.

dupla troca, transformações, reações inorgânicas

Alguns alunos usam otermo “transformação” em

suas explicações defenômenos naturais, mas

nem sempre entendem quereações químicas envolvem

a formação de novassubstâncias (produtos) a

partir do consumo desubstâncias presentes nosistema inicial (reagentes)

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ligações entre os átomos das molé-culas dos reagentes e sua posteriorrecombinação formando novas molé-culas pode ser apresentada numa úni-ca sentença, e as regras para escre-ver e balancear equações químicassão relativamente simples e diretas(Hesse e Anderson, 1992). Entretanto,é fato que as definições diretas nãobastam, dadas as dificuldades apre-sentadas pelos estudantes. A repre-sentação da reação eleva o problemaa um segundo nível de dificuldade.Sendo assim, as equações químicastêm muito menor significado para osestudantes de Química do que para osquímicos, mas é importante considerarque, para entender o conceito de rea-ção química, os alunos precisam dife-renciar conceitos, tais como os deelemento, substância, mistura, átomoe molécula. Eles precisam entenderuma reação química como um proces-so em que novas substâncias sãoformadas, concomitantemente ao con-sumo das substâncias iniciais. Bus-cam-se processos de significaçãoconceitual que contemplem a explora-ção de fenômenos pela análise deevidências sobre as propriedades dossistemas inicial e final e a constataçãodas diferenças. O modelo explicativopara a transformação química sugereum rearranjo dos átomos presentesnas substâncias reagentes, decorrenteda ruptura de ligações químicas nasmoléculas dos reagentes e formaçãode novas ligações nos produtos (Ahteee Varjola, 1998).

Outro problema com esse conceitoé a dificuldade de compreender anatureza dinâmica das reações, o quenão se consegue por meio do uso delivros didáticos, nem por métodos maistradicionais de ensino. Sem essa idéiade dinamicidade das reações, o alunorealmente não compreende o conceitoe, muito provavelmente, transmitiráessa dificuldade para outros tópicosdentro da disciplina.

A idéia de transformação químicaaparece, em geral, nos primeiros ca-pítulos dos livros didáticos tradicionais.Normalmente, usa-se alguma fotomostrando a queima de papel, a cha-ma de uma vela, um prego enferrujado,um comprimido efervescente em águaetc. Essas transformações são, então,

usadas para diferenciá-las de fenô-menos físicos. As reações químicassão retomadas muitas páginas depois(não raro 100 páginas após), quandosão classificadas. Isso ocorre depoisde um percurso que envolve toda aestrutura atômica e as definições eclassificações de funções químicas.Nesse ponto, as reações são classifi-cadas em reações de síntese, decom-posição, simples troca ou dupla troca(Peruzzo e Canto, 2002; Usberco e Sal-vador, 2002; Lembo, 2000; Novais,1999; Feltre, 1996).

Neste trabalho vamos nos deter aotratamento dado pelos livros didáticosàs reações químicas, mais especifica-mente à sua classificação como duplatroca, presente na maior parte dos li-vros disponíveis no mercado (Peruzzoe Canto, 2002; Usberco e Salvador,2002; Lembo, 2000; Novais, 1999;Feltre, 1996). Tal classificação baseia-se no dualismo eletroquímico de Berze-lius (1812), que propunha que as subs-tâncias resultavam da combinaçãoentre pares, com uma das partes posi-tivamente carregada e a outra apresen-tando carga negativa (Lopes, 1995).Segundo Berzelius, tanto as reaçõesde dupla troca como as de desloca-mento ocorreriam porque um radicalmais eletropositivo deslocaria o radi-cal menos eletropositivo. Todavia,quando utilizamostais classificações,estamos simples-mente ignorando ateoria de dissociaçãoeletrolítica de Arrhe-nius (1883), que im-põe restrições a essetipo de classificação por considerarque as espécies em solução estãodissociadas, não havendo trocas oudeslocamentos, mas combinaçõesentre íons para formar, por exemplo,substâncias voláteis ou sais poucosolúveis (Mortimer et. al., 2000; Lopes,1995). Lopes (1995) adverte que, comisso não só mantemos nossos alunoscom conhecimentos obsoletos, comotambém contribuímos para as dificul-dades de compreensão das espéciesiônicas e dos processos de equilíbrio.Não se dá ênfase à formação de no-vas substâncias como conseqüênciado consumo de reagentes e à energia

envolvida no processo. Os processosde dissociação iônica e ionização nãosão correlacionados. Mesmo o uso detabelas de solubilidade é pouco enfa-tizado. Além disso, praticamente nãohá sugestões de atividades experimen-tais.

Um problema ainda mais grave é ofato de muitos alunos acreditarem quequaisquer misturas de reagentes de-vem levar à ocorrência de reações quí-micas. Muitos sequer refletem sobre osconceitos envolvidos em uma transfor-mação química e representam auto-maticamente a dupla troca. Afinal decontas, a mecanização induz o alunoa prever, por exemplo, a reaçãoimpossível entre nitrato de potássio ecloreto de sódio:

KNO3 + NaCl → KCl + NaNO3

Um dos maiores desafios enfren-tados pelos professores ao trabalharesse tema refere-se ao desenvolvi-mento de estratégias didáticas que evi-tem mecanização do processo, redu-zindo o estudo das transformaçõesquímicas a um simples processo me-cânico de reorganização de fórmulas,que em nada contribuem para odesenvolvimento cognitivo do aluno.

Neste artigo descrevemos umaatividade utilizada com alunos da 2a

série do Ensino Médio de escolas darede privada de en-sino, com intuito deeliminar, ou pelo me-nos minimizar asidéias de reações deprecipitação, neutra-lização e formação deácidos ou bases fra-

cos como um mero deslocamento deíons, idéia esta fruto de um ensino tra-dicional impregnado de termos obso-letos, entre eles a dupla troca.

MetodologiaA atividade priorizou o trabalho

dos alunos em grupo, em busca dasolução para um problema.

Parte 1: Introdução do tema

a) Dissociação iônica e ionizaçãoPara a compreensão das reações

químicas em solução aquosa é neces-sário o conhecimento dos fenômenosde dissociação iônica e ionização. Um

Reações envolvendo íons em solução aquosa

Para entender o conceitode reação química, os

alunos precisam diferenciarconceitos, tais como os de

elemento, substância,mistura, átomo e molécula

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experimento clássico e ilustrativoconsiste em testar a condutância dediversas soluções aquosas e algumassubstâncias puras com auxílio de umalâmpada. Vários livros didáticos apre-sentam sugestões de experimentos ede aparelhos para verificar a condutân-cia de materiais. (Peruzzo e Canto,2002; Usberco e Salvador, 2002;Novais, 1999). Além disso, a discussãosobre as propriedades da água –polaridade, capacidade de estabelecerligações de hidrogênio e o processode solvatação de íons em soluçãoaquosa –, descrita de forma bastantedidática por Silva et al. (2001), seapresenta como um recurso eficientepara a introdução do tema.

b) Reações de neutralizaçãoSoluções ácidas, neutras e alcali-

nas foram identificadas por meio deindicadores ácido-base. As proprieda-des dos ácidos e das bases foramatribuídas à presença dos íons H+ eOH– em solução aquosa, respectiva-mente, conforme o modelo de Arrhe-nius. Com auxílio da avaliação dacondutância foi possível caracterizarácidos e bases fracos. Soluções aquo-sas contendo cátionsde bases fracas(NH4

+) foram identifi-cadas como ácidascom o uso de indica-dores, assim comosoluções aquosascontendo ânions deácidos fracos (CO3

2–)foram identificadascomo alcalinas. Adiscussão da força deácidos e bases auxiliaa compreensão doporquê de tais substâncias nãoapresentarem pH neutro, mesmo an-tes da abordagem do conceito de equi-líbrio químico. Discute-se com os alu-nos, de forma qualitativa, a tendênciaà hidrólise desses cátions e ânions(Kotz, 2002).

CO32–(aq) + H2O(l)

HCO3–(aq) + OH–(aq)

NH4+(aq) + H2O(l)

NH4OH(aq) + H3O+(aq)

As reações de neutralização foramestudadas misturando-se os ácidos

e bases disponíveis, verificando-se oconsumo dos íons H+ e OH– atravésda mudança de cor de diferentes indi-cadores ácido-base: fenolftaleína,papel de tornassol, azul de bromoti-mol, ou ainda extratos de repolho roxoou beterraba.

c) Reações de precipitaçãoA estratégia adotada para introdu-

zir as reações de precipitação evitan-do-se a mecanização foi a de forneceraos alunos quatro soluções aquosasde, por exemplo, NaNO3, BaCl2, CuSO4e Na2SO4 (note-se que o experimentotambém pode ser realizado de formademonstrativa). A combinação duas aduas dessas soluções só resulta emformação de precipitado se houver apresença de íons Ba2+ e SO4

2–. Apósessa verificação experimental, apre-senta-se uma tabela de solubilidade,sendo observado que a única com-binação de íons, dentre as possíveis,que resulta em composto insolúvel é aque leva à formação de BaSO4.

Enfatiza-se assim a importância databela de solubilidade na previsão deocorrência das reações de precipi-tação. Além disso, esse procedimento

facilita a introduçãoda equação iônicapara representar osprocessos.

Uma prática alter-nativa é o teste deuma série de solu-ções, enquanto osalunos prevêem aocorrência ou não deprecipitação. Os alu-nos são informadossobre a identidadedos reagentes (so-

luções) “misturados” e solicitados aprever e equacionar as reações deformação de produtos insolúveis, co-mo, por exemplo, formação de cloretode prata, sulfato de bário e carbonatode cálcio.

Durante as discussões é aconse-lhável evitar a utilização da expressãodupla troca, dando ênfase aos pro-cessos de dissociação iônica dossais envolvidos.

Solicitar que os alunos utilizemrepresentações para explicar os fenô-menos observados pode auxiliar oprofessor a detectar dificuldades e

tentar ajudá-los a superá-las.

d) Reação de formação de produtoinstável ou volátil

Neste caso, pode ser demonstra-da a reação entre ácido clorídrico e car-bonato de sódio, chamando-se a aten-ção para a efervescência observada nosistema. A reação entre solução aquo-sa de hidróxido de sódio e soluçãoaquosa contendo cátions amônio tam-bém pode ser demonstrada verifican-do-se a eliminação da amônia (NH3)com papel de tornassol vermelho ume-decido, na boca do tubo de ensaio.

Os três tipos de reação podem sergeneralizados como tendo ocorridodevido à associação de íons que sãoretirados da solução em conseqüên-cia da formação de substâncias poucodissociadas (insolúveis) ou ionizadas(ácidos e bases fracos ou instáveis eágua). Essa seria a “força” dirigentedas reações.

Para a realização adequada da ati-vidade, ou seja, para que o aluno sin-ta-se capaz de resolver o problemaproposto, é fundamental que os con-ceitos das reações de neutralização,de precipitação e de formação de pro-duto volátil tenham sido desenvolvidosde maneira a não enfatizar a mecani-zação das equações. Além disso, osalunos devem saber utilizar os indica-dores ácido-base para identificarsoluções alcalinas, ácidas e neutras.

Parte 2: Situação problemaAs turmas foram divididas em gru-

pos de dois ou três alunos, para osquais foi apresentado o problema apre-sentado no Quadro 1.

Os alunos devem ser orientadospara propor um procedimento em quese utilize o menor número de testespossíveis para se identificar todas asamostras. Simplesmente testar todasas reações a cada par de soluções nãoé adequado por uma questão de tem-po, custo e praticidade.

Geralmente, a solução encontradapelos alunos é preparar procedimentosem forma de fluxogramas em que cadateste permite a eliminação de algumaspossibilidades ou a identificação dasolução.

Por exemplo, testam-se todas assoluções problema com papel de tor-nassol azul e vermelho, separando-se

Reações envolvendo íons em solução aquosa

Para que o aluno sinta-secapaz de resolver o

problema proposto, éfundamental que os

conceitos das reações deneutralização, deprecipitação e de

formação de produtovolátil tenham sido

desenvolvidos de maneira anão enfatizar a

mecanização das equações

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as soluções em alcalinas, neutras eácidas. As soluções ácidas podem sertestadas com o nitrato de chumbo(II)aquoso, sendo que a não ocorrênciade precipitação identifica a solução deácido nítrico (HNO3). O teste das solu-ções neutras com o nitrato de chum-bo(II) aquoso pode identificar o iodetode potássio (se for verificada a forma-ção do precipitado amarelo caracterís-tico) e auxiliar na separação dos saisem dois grupos: aqueles que não pre-cipitam – nitrato de sódio e de bário –e aqueles que formam precipitado fren-te à adição desse reagente. As solu-ções ácidas e neutras que formaremprecipitado branco com o nitrato dechumbo(II) deverão passar por outrostestes, já se descartando a possibili-dade de serem HNO3 e KI. Há um bomgrau de sofisticação se o grupo per-ceber que não há necessidade de tes-tar as soluções alcalinas com a soluçãoaquosa de nitrato de chumbo(II), poisresultarão sempre em precipitado bran-co. A grande maioria percebe que“misturados” ácidos e bases, dois adois, apenas a reação entre H2SO4 eBa(OH)2 dará origem a um precipitado,dado este que lhes permite a identifi-cação das soluções ácidas e alcalinas.

A atividade experimental apresen-ta uma dificuldade extra: o procedi-mento é elaborado para 12 substân-cias, sendo que algumas delas, apósidentificação, são utilizadas nas etapasposteriores; todavia os alunos recebemapenas oito amostras. Existe umacombinação em que não é possívelidentificar todas as soluções e os gru-pos que chegam a essa conclusãomostram excelente domínio da ativida-de, mas isso não ocorre com a maioria.De qualquer forma, para evitar tal situa-

ção, é necessário garantir a presençade íons Ba2+ e ou SO4

2– nas soluçõesproblema.

Existem dois encaminhamentospossíveis para essa atividade, sendoadequados conforme a autonomia dosalunos na elaboração e execução deprocedimentos de laboratório.

O primeiro encaminhamento divideo processo em duas etapas. Na pri-meira etapa os alunos elaboram umprocedimento de identificação dassoluções, justificando-o através doequacionamento de todas as reaçõesquímicas possíveis envolvidas. O pro-cedimento é então entregue ao profes-sor ao final da aula e uma cópia émantida com o grupo.

A atividade experimental é execu-tada na aula subseqüente, uma se-mana após o planejamento. Duranteesse intervalo de tempo, o professoranalisa os procedimentos propostos,fazendo alguns comentários e, em al-guns casos, pedindo para que os alu-nos re-elaborem algumas etapas,chamando atenção para as falhas deraciocínio que podem conduzir a con-clusões falsas. Em momento algum aresposta para as questões deve serfornecida, mesmo porque o problemanão apresenta uma única solução, massim, deve-se efetuar comentários comrelação ao procedimento, procurandodiscutir as falhas apresentadas.

No outro encaminhamento, quepressupõe maior autonomia, é apre-sentado um exemplo de fluxogramacomo procedimento para resolver umproblema mais simples, como identifi-car três soluções desconhecidas dife-rentes das disponíveis no problema ori-ginal. Em seguida, os alunos têm umasemana para preparar o procedimento

e executar o experimento, anexando-oàs identificações das amostras.

Considerações finaisAmbos os encaminhamentos se

mostraram muito adequados para odesenvolvimento do tema. Os alunosaprendem a equacionar e balancearreações, utilizar tabelas de solubili-dade e indicadores ácido-base comoum recurso para a resolução de umproblema, e não um simples proces-so mecânico e sem sentido. Não sãonecessários equipamentos sofistica-dos para laboratório, somente tubosde ensaio e papel de tornassol.Geralmente, a disponibilidade de rea-gentes não é problema – utilizando-se soluções diluídas (0,1 mol/L e0,5 mol/L) – e o gasto com reagentesé pequeno. Alguns podem ser adqui-ridos em farmácias, supermercadose lojas de material para construção.É por isso que, apesar de desenvol-vido e utilizado na rede privada deensino, o experimento pode tambémser adaptado para escolas públicas.Na ausência das 12 soluções, pode-se partir para a elaboração de proce-dimentos com um número menor dereagentes.

Ao propor esta atividade, partimosdo pressuposto que ensinar o alunoa resolver problemas consiste nãoapenas em mostrar um conjunto deprocedimentos eficazes para se che-gar a uma solução imediata, mas emcriar o hábito e a atitude de encarar aaprendizagem como um problema,para o qual deve-se encontrar alter-nativas plausíveis e adequadas. Oproblema aqui descrito apresentacaracterísticas mais próximas àquelesenfrentados na vida real, pois, por nãoapresentar uma única solução possí-vel, requer do aluno a capacidade depensar criticamente, propor soluçõese avaliá-las. Todas essas habilidades,inseridas no contexto do estudo dastransformações químicas e equacio-namento de reações, facilitam a com-preensão da Química, despertando ointeresse dos alunos e fornecendo aoprofessor subsídios para o encami-nhamento do curso.

É notável o envolvimento e o inte-resse dos alunos durante todo o pro-cesso, principalmente durante a

Reações envolvendo íons em solução aquosa

Quadro 1: Enunciado do problema que os alunos tiveram de resolverExistem 12 amostras não identificadas formadas cada uma delas por soluçõesaquosas das seguintes substâncias: hidróxido de bário, hidróxido de sódio, ácidosulfúrico, ácido clorídrico, ácido nítrico, cloreto de bário, nitrato de bário, sulfato desódio, carbonato de sódio, cloreto de sódio, nitrato de sódio e iodeto de potássio.Cada grupo receberá oito frascos contendo soluções diferentes, identificadas porum código, sendo que receberá pelo menos dois ácidos e duas bases. Durante aaula deverá executar testes para identificar cada uma das amostras recebidas, tendoà disposição apenas uma pisseta com água destilada, tubos de ensaio, papel detornassol azul e vermelho, uma solução identificada de nitrato de chumbo(II), umatabela de solubilidade e um procedimento previamente elaborado pelo grupo.Cada identificação deve ser justificada por um procedimento inequívoco acompa-nhada das respectivas equações iônicas dos testes realizados.

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atividade experimental. Todos se sen-tem atuantes no laboratório, verifican-do se as suas previsões realmente seconfirmam. Alguns chegaram a pro-por soluções em forma de fluxogra-mas, os quais os auxiliam no desen-volvimento do trabalho experimental.Contudo, a maioria optou pela elabo-ração de guias experimentais. Embo-ra tenham sido apresentadas diversasestratégias de resolução, de uma for-ma geral, as soluções propostasenvolviam os seguintes passos:

1. Classificação das substânciasem ácidas, básicas e neutras, com ouso de papel tornassol.

2. Adição de ácido às soluçõesclassificadas como básicas.

A efervescência permite identifica-ção da solução de Na2CO3:

Na2CO3(aq) + 2H+(aq) →2Na+(aq) + CO2(g) + H2O(l)

A mistura que conduz à formaçãode precipitado permite a identificaçãodo H2SO4 e Ba(OH)2. Conseqüente-mente, o NaOH está identificado:

H2SO4(aq) + Ba(OH)2 →BaSO4(s) + 2H2O(l)

3. Utilização de solução dePb(NO3)2 para identificação de HNO3e HCl:

Pb(NO3)2(aq) + 2HCl(aq) →PbCl2(s) + 2HNO3(aq)

4. Adição de Pb(NO3)2 ao grupodas soluções neutras.

a) Identificação da solução de KI:

Pb(NO3)2(aq) + 2KI(aq) →PbI2(s) + 2KNO3(aq)

b) Separação dos sais em doisgrupos:

i) grupo 1: aqueles que não rea-gem com Pb(NO3)2: Ba(NO3)2 eNaNO3;

ii) grupo 2: aqueles que precipitamcom Pb(NO3)2: Na2SO4, BaCl2 e NaCl.

5. Adição de H2SO4 ou Na2CO3 (sehouver) aos sais do grupo 1. ApenasBa(NO3)2 reage formando precipi-tado:

H2SO4(aq) + Ba(NO3)2(aq) →BaSO4(s) + 2HNO3(aq)

Na2CO3(aq) + Ba(NO3)2(aq) →BaCO3(s) + 2NaNO3(aq)

6) Adição de ácido sulfúrico ouNa2CO3 (se houver) aos sais do grupo2. Apenas BaCl2 reage:

H2SO4(aq) + BaCl2(aq) →BaSO4(s) + 2HCl(aq)

Na2CO3 (aq) + BaCl2(aq) →BaCO3 (s) + 2NaCl(aq)

Se, por acaso, não houver nem so-lução de carbonato de sódio nem deácido sulfúrico entre as amostras pro-blema, pode-se utilizar a solução iden-tificada de Ba(OH)2 para detectar a pre-sença de íons SO4

2–(aq) no grupo 2.É possível combinar as amostras

do grupo 2 entre si e as amostras dogrupo 1 com 2, buscando identificar apresença de íons Ba2+(aq) e SO4

2–(aq).Percebe-se o refinamento da pre-

paração realizada pelos alunos seeles conseguem propor a seqüênciade testes em função da detecção dealgumas amostras-chave, comoH2SO4, Na2CO3 ou Ba(OH)2. Um bomtrabalho vislumbra todas as combina-ções possíveis e sugere um procedi-mento para cada alternativa.

Muitos alunos apresentam sériasdificuldades na otimização do proce-dimento. Contudo, ao final do proces-so, a maioria demonstra bom domíniodos conceitos, sendo capaz de dis-cutir estratégias propostas, prever aocorrência de reações e equacioná-las com auxílio de tabelas de solubi-lidade e forças de ácidos e bases. Aatividade mostra-se bastante eficientena consolidação dos conceitos dedissociação iônica e ionização.

Ana Luiza Petillo Nery ([email protected]),licenciada/bacharel em Química e doutora emCiências (Química Orgânica) pela USP, é professorada Escola Vera Cruz, em São Paulo - SP. RodrigoMarchiori Liegel ([email protected]), licenciado/bacharel em Química, mestre em QuímicaInorgânica e doutor em Ciências (Química Inorgâ-nica) pela USP, é professor do Colégio Santa Cruz e

Reações envolvendo íons em solução aquosa

Abstract: Reactions Involving Ions in Aqueous Solution: A Problematizing Approach for the Prediction and Equating of Some Types of Inorganic Reactions – The majority of textbooks classifies theinorganic reactions of precipitation, neutralization and formation of unstable or volatile products as “double displacement” reactions, leaving the false impression that any mixture can lead to achemical reaction. Many times the student ends up understanding the phenomenon as a simple rearrangement of formulas, without understanding the real meaning of what goes on. In this article,an activity for the development of the theme “chemical reactions in aqueous solutions” through the resolution of a challenge presented to the students is described.Keywords: double displacement, transformations, inorganic reactions

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da Escola Móbile, em São Paulo - SP. CarmenFernandez ([email protected]), licenciada/bacharelem Química, mestre em Química Orgânica e doutoraem Ciências (Química Orgânica) pela USP, é docen-te do Instituto de Química da USP.