ana-clara-oliveira (a poética de audiodescrição em espetáculos de dança)[1]

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ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo– Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 1 POR UMA POÉTICA DE AUDIODESCRIÇÃO: (RE)CRIAR, MEDIAR E COMUNICAR IMAGENS DE DANÇA PARA ESPECTADORES CEGOS Ana Clara Santos Oliveira (UFBA) Ana Clara Santos Oliveira, Possui Graduação em Licenciatura em Educação Física pela Universidade Estadual de Santa Cruz UESC (2009), especialização em Saúde Mental pela UESC (2011) e é mestranda em Dança no Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA (2011) e Bolsista CAPES. Integrante do Grupo de Extensão Acessibilidade em Trânsito Poético e Grupo de Pesquisa Poética da Diferença, coordenado pela Profa. Dra. Fátima Campos Daltro de Castro na Escola de Dança UFBA. Membro do Grupo de Pesquisa TRAMAD (Tradução, Mídia e Audiodescrição) coordenado pela Profa. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco. Bailarina. Professora e coreógrafa de danças árabes. E-mail: [email protected] e [email protected] Resumo Este artigo pretende propor uma Poética de Audiodescrição, comoum modo de tradução no sentido de poder (re)criar, mediar e comunicar imagens de espetáculos de dança alicerçado nos processos tradutórios de Haroldo de Campos, Christine Greiner & Helena Katz, Lakoff & Johnson e, nos pensamentos sobre imagem do neurocientista Antônio Damásio, ressaltando desse modo a perspectiva de percepção do filósofo Alva Nöe para compreender finalmente, a ideia de que essa Poética possibilita percepções dos espectadores cegos a partir do que se seleciona para a construção do roteiro descritivo. Para tanto, a Poética de Audiodescrição entendida aqui, se faz experienciada no fazer artístico metaforizando o que se passa nas cenas a fim de que as informações-chave transmitidas visualmente não passem despercebidas e possam ser acessadas, o que resulta e instaura em novas possibilidades de pensar em dança. Palavras-chave: Poética de Audiodescrição, Tradução, Imagem de Dança, Percepção. FORANAUDIO DESCRIPTIONOF THEPOETIC: (RE)CREATE, MEDIATE AND COMMUNICATEIMAGES OFDANCE FORBLINDVIEWERS Abstract This article intends to propose a Poetics of audio description as a translation mode in the sense of (re)creating, mediating and communicating images of dance spectacles based on the translation processes proposed by Haroldo de Campos, Christine Greiner &Katz, Lakoff & Johnson, and the image concept by neuroscientist Antônio Damásio, thus emphasizing the perception perspective of the philosopher Alva Nöet o finally understand he idea that such Poetics enables the blind audience to build its perception through what is selected in order to make the script for the description. In this regard, the Poetics of audio description here understood is experienced within the artistic practice, metaphorising the action of each scene to ensure that the key visual information can be accessed, which results in a new way of understanding dance. Keywords: Poetics of Audiodescription, Translation, Dance Image, Perception.

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Texto relacionado à audiodescrição e uma escrita poética

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http://portalanda.org.br/index.php/anais 1

POR UMA POÉTICA DE AUDIODESCRIÇÃO: (RE)CRIAR, MEDIAR E COMUNICAR IMAGENS DE DANÇA PARA ESPECTADORES CEGOS

Ana Clara Santos Oliveira (UFBA)

Ana Clara Santos Oliveira, Possui Graduação em Licenciatura em Educação Física pela Universidade Estadual de Santa Cruz UESC (2009), especialização em Saúde Mental pela UESC (2011) e é mestranda em Dança no Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA (2011) e Bolsista CAPES. Integrante do Grupo de Extensão Acessibilidade em Trânsito Poético e Grupo de Pesquisa Poética da Diferença, coordenado pela Profa. Dra. Fátima Campos Daltro de Castro na Escola de Dança UFBA. Membro do Grupo de Pesquisa TRAMAD (Tradução, Mídia e Audiodescrição) coordenado pela Profa. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco. Bailarina. Professora e coreógrafa de danças árabes. E-mail: [email protected] e [email protected]

Resumo Este artigo pretende propor uma Poética de Audiodescrição, comoum modo de tradução no sentido de poder (re)criar, mediar e comunicar imagens de espetáculos de dança alicerçado nos processos tradutórios de Haroldo de Campos, Christine Greiner & Helena Katz, Lakoff & Johnson e, nos pensamentos sobre imagem do neurocientista Antônio Damásio, ressaltando desse modo a perspectiva de percepção do filósofo Alva Nöe para compreender finalmente, a ideia de que essa Poética possibilita percepções dos espectadores cegos a partir do que se seleciona para a construção do roteiro descritivo. Para tanto, a Poética de Audiodescrição entendida aqui, se faz experienciada no fazer artístico metaforizando o que se passa nas cenas a fim de que as informações-chave transmitidas visualmente não passem despercebidas e possam ser acessadas, o que resulta e instaura em novas possibilidades de pensar em dança. Palavras-chave: Poética de Audiodescrição, Tradução, Imagem de Dança, Percepção.

FORANAUDIO DESCRIPTIONOF THEPOETIC: (RE)CREATE, MEDIATE AND COMMUNICATEIMAGES OFDANCE FORBLINDVIEWERS

Abstract This article intends to propose a Poetics of audio description as a translation mode in the sense of (re)creating, mediating and communicating images of dance spectacles based on the translation processes proposed by Haroldo de Campos, Christine Greiner &Katz, Lakoff & Johnson, and the image concept by neuroscientist Antônio Damásio, thus emphasizing the perception perspective of the philosopher Alva Nöet o finally understand he idea that such Poetics enables the blind audience to build its perception through what is selected in order to make the script for the description. In this regard, the Poetics of audio description here understood is experienced within the artistic practice, metaphorising the action of each scene to ensure that the key visual information can be accessed, which results in a new way of understanding dance. Keywords: Poetics of Audiodescription, Translation, Dance Image, Perception.

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Introdução

Este lugar é uma maravilha. Mas como é que faz pra sair da ilha? Pela ponte, pela ponte. A ponte não é de concreto, não é de ferro. Não é de cimento. A ponte é até onde vai o meu pensamento. A ponte não é para ir nem pra voltar. A ponte é somente pra atravessar. Caminhar sobre as águas desse momento. A ponte nem tem que sair do lugar. Aponte pra onde quiser. (LENINE, 1997, A Ponte).

Ao propor uma Poética de Audiodescrição como um modo de tradução no

sentido de poder (re)criar, mediar e comunicar imagens de dança, deparei-me com a

canção “A Ponte” de Lenine, a qual me levou a pensar sobre a ideia da ponte, um lugar

do entre. Navegando ainda na canção, para sair da ilha, da zona de conforto, para não

cair no aprisionamento, é preciso compreender um local que não seja impermeável às

questões do mundo, faz-se necessário se mover e criar conexões, as pontes.

Adentrando mais, recordo de um vídeo da Christine Greiner1

Partindo desses pressupostos, nasce o artigo a partir dos estudos em

desenvolvimento da minha Pesquisa em Audiodescrição de Dança, onde percebi a

necessidade de abordar uma Poética de Audiodescrição com entendimentos que

provocam a noção de imparcialidade, da não interpretação embutida ainda nesse

campo. Para proferir sobre este aspecto, é interessante destacar que na

audiodescrição existem normas como americana, inglesa, espanhola e alemã que

surgiram na tentativa de estabelecer requisitos básicos para elaboração de roteiros,

sendo um ponto em comum a não interpretação, contudo quando percebemos algo já

estamos realizando o processo interpretativo, de tradução.

onde relata sobre a

mediação como possibilidade de criar pontes, deslocar abrindo o espaço comunicativo,

o “No Entre Lugar” que nos faz deslocar mesmo quando estamos parados. Permita-se

entender aqui a leitura da canção com este olhar, compreendendo a audiodescrição

como uma mediação, ocupando o entre lugar para que a comunicação aconteça.

Dentro da abordagem do poeta, tradutor, ensaísta e semioticista Haroldo de

Campos, cujo pensamento desenvolvido foi “traduzir” como sendo “transcriar”, fica

evidente que ao traduzir recriamos porque somos seres de linguagem.

1 Vídeo Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=6GpYNNDm3_o>. Acesso em 22 jan. 2012.

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Campos2

Corroborando mais com o artigo, as formas pelas quais realizo uma

audiodescrição (o que medio, seleciono, escolho está intimamente relacionado com

minha percepção, experiência, ou seja, está carregado de mim), dependem das

maneiras de como percebo as movimentações ao redor, do lugar onde estou e do meu

exercício de deslocamentos para criar roteiros e comunicar.

(1970 apud VIEIRA, 2006), “admitida a tese da impossibilidade em princípio

da tradução de textos criativos […] para nós, tradução de textos criativos será sempre

recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca”.

A noção de imparcialidade e da não interpretação fica inviável, não cabe nesse

sentido, pois quando audiodescrevo estou ao mesmo passo sendo a bailarina, a

intérprete e a tradutora, apesar da função de tradução estar mais em evidência neste

papel, assim, é de grande relevância alguns esclarecimentos quanto a isso: não se

deve interpretar as cenas, no sentido de analisar para a pessoa cega, cabe a ela a

análise dos fatos, o audiodescritor deve realizar o processo de tradução sem explicar

e/ou atribuir comentários impondo suas reflexões. Interpretações de expressões óbvias

e explícitas, como por exemplo, “o dançarino chora” diferentemente de falar “o

dançarino chora porque...”, este é o nível de interpretação os quais as normas

estabelecem como um erro.

Este artigo tem como objetivo através de um entendimento e reflexão, propor

essa Poética de Audiodescrição, comoum modo de tradução no sentido de poder

(re)criar, mediar e comunicar imagens de espetáculos de dança alicerçado sob os

processos tradutórios de Haroldo de Campos, Christine Greiner &Helena Katz, Lakoff &

Johnson e, dos pensamentos de imagem do neurocientista Antônio Damásio,

ressaltando dessa maneira, a perspectiva de percepção do filósofo Alva Nöe para

compreender finalmente, a ideia de que essa Poética possibilita percepções dos

espectadores cegos a partir do que se seleciona para a construção do roteiro

descritivo.

Ainda, a Poética de Audiodescrição entendida aqui, se faz experienciada no

fazer artístico metaforizando o que se passa nas cenas a fim de que as informações-

2 CAMPOS, H.de. Da tradução como criação e como crítica. Metalinguagem. Petrópolis: Vozes, 1970. p. 21-38.

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chave transmitidas visualmente não passem despercebidas e possam ser acessadas.

É sábido que Lakoff & Johnson, com o livro Metáforas da Vida Cotidiana, relatam que

as metáforas fazem parte da linguagem cotidiana, são processos tradutórios mediados

pelo aparelho sensório-motor, possuem valor cognitivo e estão relacionadas ao nosso

processo de conceptualização do mundo, não sendo apenas um recurso poético ou

linguístico, mas também uma estratégia cognitiva de relacionarmos com o ambiente.

Segundo os autores “a metáfora é, pois, uma operação cognitiva fundamental que

consiste em compreender e experienciar uma coisa em termos de outra”.(LAKOFF;

JOHNSON, 2002, p. 48).

Além disso, o artigo propõe refletir sobre uma poética que se vale das Ciências

Cognitivas e Semiótica compartilhando informações que contribuam na área da dança

e ampliando a questão da audiodescrição como nova possibilidade de pensar em

dança.

Falando do “Entre Lugar”: Audiodescrição: contexto e possibilidades

Audiodescrever é uma atividade linguística, modalidade de tradução

intersemiótica onde a linguagem visual (imagem) é transformada em linguagem verbal

(texto), ampliando as possibilidades de acesso da pessoa cega à cultura e a outros

produtos. Sob essa perspectiva,

No meio da audiovisual, a audiodescrição (AD) objetiva, através da descrição acústica de imagens, o acesso de pessoas cegas a produtos educativos e culturais que se valem em grande parte da narrativa visual [...]. Ela pode ser pré-gravada, realizada ao vivo (peças de teatro, performance, espetáculo de dança) ou simultaneamente (notícias de uma hora, programas ao vivo, etc.) (FRANCO, 2010, p. 1).

Na verdade, a prática de descrever o mundo visual para pessoas cegas sempre

ocorreu através de familiares e outros, é imemorial. Contudo, enquanto atividade, a AD

assim chamada nasceu3

3 Dados retirados da apostila do curso Formação em Audiodescrição: Roteiro e Produção em 2011, da Fundação Dorina Nowill para Cegos, curso este o qual participei coordenado por Viviane Sarraf.

em meados da década de 70 nos Estados Unidos, a partir das

ideias desenvolvidas por Gregory Frazier em sua tese “Master of Arts” da Universidade

de São Francisco – EUA, onde pela primeira vez o termo “audiodescrição” foi utilizado.

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Margaret Rockwell e Cody Pfanstiehl foram responsáveis pela AD de Major Barbara,

peça exibida no Arena Stage Theater em Washington DC em 1981, a qual a AD

obteve seu maior reconhecimento. A partir desse grande trabalho, cinema, teatro,

emissoras de TV, exposições em museus, desfiles de moda, entre outros produtos,

foram sendo audiodescritos.

Neste contexto, leis de acessibilidade a produtos artístico-culturais foram

criadas, inclusive com a organização de movimento de pessoas com deficiência visual

com o intuito de promover toda uma ação política enredada no processo. No Brasil,

isso ainda não se configurou tanto, estamos do mesmo modo que outros países

caminhando para o maior reconhecimento e fortalecimento da AD como tradução e

como possibilidades de linguagens.

Desde a promulgação da lei 10.098 (BRASIL, 2000), regulamentada pelo Decreto 5.296 (BRASIL, 2004), alterado pelo Decreto 5.645 (BRASIL, 2005) e pelo Decreto 5.762 (BRASIL, 2006b), o recurso da audiodescrição tornou-se um direito garantido pela legislação brasileira. Após consulta e audiência públicas e a oficialização da Norma Complementar nº1 (BRASIL, 2006a), as emissoras de TV foram obrigadas a oferecer, num prazo máximo de dois anos, duas horas diárias de sua programação com audiodescrição. A quantidade de horas diárias deveria aumentar gradativamente para que, num prazo máximo de dez anos, ou seja, 2016, toda a programação estivesse acessível (SILVA, 2009, p. 23).

No caso da dança, apesar da lei, poucos espetáculos no Brasil já passaram por

tal modalidade de tradução até o momento, sendo com iniciativa pioneira o espetáculo

do Grupo X de Improvisação em Dança “Os Três Audíveis” realizado em 2008 pelo

Grupo de pesquisa TRAMAD4

Concomitantemente a outras importantíssimas ações no país, em 2011,

aconteceu o “2º Encontro O Que é Isto? de Dança promovido pelo Grupo X, onde

ocorreram quatro possibilidades de trabalhos audiodescritos por mim em cabine de

tradução simultânea, foram eles: "Pequetitas Coisas entre Nós Mesmos" do Grupo X

(Tradução, Mídia e Audiodescrição) com o

projetoTRAMADAN (Tradução, Mídia, Audiodescrição e Dança), projeto este executado

também no mesmo ano.

4 O TRAMAD é um grupo de pesquisa da Universidade Federal da Bahia sob coordenação da Profa. Dra. Eliana Franco, o qual sou membro desde 2011. O TRAMADAN foi um projeto que se estendeu em 2008 desenvolvido pelas Profas. Dras. Eliana Franco e Fátima Daltro.

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de Improvisação em Dança; “Intento” 3257,5 da performer Estela Lapponi; “As

Borboletas do Núcleo Vagapara” e, “Judite quer chorar, mas não consegue”, do

coreógrafo/dançarino Edu O.

É interessante mencionar que diversos aspectos ainda necessitam ser focados

para a continuidade da AD, sobretudo, na dança. A formação de platéia e sua

visibilidade, modos de audiodescrever com o sentido poético, o cumprimento da lei e a

acessibilidade continuada nos teatros e, em outros espaços culturais. Acredito que o

momento é propício para pensar neste coletivo, em uma autonomia co-(labor)ativas

gerada pelas trocas com o ambiente como focaliza Nogueira (2008) em sua tese.

Para falar desse “Entre Lugar” venho utilizando uma Poética da Audiodescrição,

maneiras de produzir arte lembrando-me de quando estou em cena, trazendo esse

fazer artístico para construção de roteiros, o que resulta no entendimento de que o

audiodescritor não é alguém distante, não está fora do processo encenado. Uma

escrita falada experienciada no fazer artístico, pensando nas expressões dos

dançarinos, no figurino, na luz, nos sons e em tudo que interessa na cena. Um trabalho

em que as imagens de dança não sejam descritas de modo mecânico e, que se

valorize a partir da poiesis, metaforizando.

Esse “Entre Lugar” vai além da transformação de imagens visuais em palavras,

pois venho percebendo cada vez mais, que é preciso imaginar para perceber como

devo impostar a voz e onde dar inflexões na locução para que o texto esteja vivo e

represente as emoções do que ocorre no ato.

Entendimentos e Reflexões sobre: (Re)criar, mediar e comunicar imagens de dança

Tomando como base os processos tradutórios de Haroldo de Campos, Christine

Greiner & Helena Katz e, Lakoff & Johnson, e se questionado sobre o significado do

termo “tradução”, o público em sua grande maioria não terá as compreensões que tais

autores desenvolveram e, possivelmente responderiam que traduzir significa passar um

texto, escrito ou falado, de um idioma para outro, pensamento este, instaurado no

cotidiano. No entanto, traduzir significa muito além que apenas converter dessa

maneira.

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No artigo “O claro enigma da tradução”, a pesquisadora/autora Helena Katz

inicia ressaltando que o nome dado pelos romanos ao agente intermediário entre

partes em controvérsia judicial era interpres. Ao longo do tempo essa nomenclatura

passou a ser empregada para o tradutor como: “aquele que transporta o significado de

sua forma original para outra” (KATZ apud HOGHE; WEISS, 1989).

Para Campos (2001) tradução é transcriação, traduzir de modo criativo com a

função poética, é traduzir o percurso da própria função poética numa espécie de

transcodificação. O transcriador recodifica a informação, inventa paralelamente dentro

do impulso criador original. É neste âmbito que necessitamos fazer alusão a uma

Poética de Audiodescrição, tendo a compreensão de que audiodescrever é realizar

uma transcriação, (re)criar, mediar e comunicar. E, somente traduzimos porque é da

nossa natureza fazê-la, mesmo quando não usamos a oralidade, tal fato já está

acontecendo no corpo, não é uma ação possível apenas na verbalização.

Sobre tal aspecto, Lakoff & Johnson (2002) trata a metáfora como um modo de

pensar, conceituar e agir, referindo-se ao pensamento em grande parte como

estruturado metaforicamente, pois conceitualizamos o ambiente cotidianamente por

meio delas que são emergentes de nossa experiência. Greiner (2005) explica como a

comunicação se baseia sobre o mesmo sistema conceitual que utilizamos pensando e

agindo, e como a linguagem nos fornece importantes evidências. Ainda,

Os conceitos que governam nosso pensamento não são meras questões de intelecto. Eles governam também a nossa atividade cotidiana até nos detalhes mais triviais. Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas. Tal sistema conceptual desempenha, portanto, um papel central na definição de nossa realidade cotidiana. Se estivermos certos, ao sugerir que esse sistema conceptual é em grande parte metafórico, então o modo como pensamos o que experienciamos e o que fazemos todos os dias são uma questão de metáfora. (LAKOFF & JONHSON, 2002. apud SPANGHERO, 2003, p. 281)

Traduzimos por procedimentos metafóricos internalizados, que não estão

apartados do meio, contudo não damos conta de perceber que estamos processando

todas as informações de cognição. Por isso, o termo “cognição” ou “cognitivo” é

utilizado inclusive para as operações localizadas no inconsciente que é a dimensão

cognitiva a qual não temos acesso, porém atuante em nossas operações.

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Finalmente, é por meio da compreensão e das reflexões acima que a ideia da

Poética da Audiodescrição de Dança é esboçada aqui, um modo de tradução que abre

o espaço comunicativo e amplia a acessibilidade da pessoa cega aos espetáculos.

As Imagens de Dança que nos levam a sentir e perceber

Iniciar um processo de construção de roteiro para a audiodescrição é acima de

tudo “sentir e perceber”, ambos conhecimentos construídos no corpo. Existe uma

enorme confusão no que tange esses dois termos distintos, mas que estão articulados

no corpo. Partindo dos estudos em Cinesiologia, o sentir é ativar o receptor sensorial,

sendo o perceber o processamento, a interpretação da sensação no córtex, mas o

processo deve ser encarado como um sistema complexo.

É nesse sistema tão complexo que a atividade de audiodescrever em dança é

permeada, pois o audiodescritor deve ter a sensibilidade, acompanhar a criação do

espetáculo e/ou registros do mesmo com a finalidade fazer conexões respeitando

também a própria obra. Um misto de doçuras, prazeres, aproximações,

distanciamentos, crises, emoções, sentimentos e percepções estarão acompanhando o

processo de tradução das imagens de dança.

Na proposta da Poética de Audiodescrição abordada neste artigo, o

entendimento de imagens é oriundo dos pensamentos do neurocientista Antônio

Damásio. A noção de que tais imagens me conduzem enquanto audiodescritora a

“sentir e perceber” faz parte da compreensão de que as percepções dos espectadores

cegos acontecem a partir dessa minha ação de mediação que envolve inclusive, o meu

sentir e o meu perceber. É claro que se outra pessoa executar um roteiro de um

mesmo espetáculo, as informações-chave serão transmitidas, pois traduzir aqui é

também uma técnica, mas os modos de fazê-lo serão outros, pois somos pessoas

diferentes e com vivências que podem não coincidir.

Para entender melhor as imagens que nos levam a sentir e perceber, temos que

inferir o pensamento de que criamos imagens que se auto-organizam na ação de

percepção, em acordos constantes. Exprimimos como imagens as que Damásio (2000)

denomina de imagens sonora, tátil, visceral, visual que podem ser produzidas na troca

com o ambiente. Ouso elucidar que na dança, tanto o dançarino, o audiodescritor e

como o espectador, constroem imagens a todo o momento que são provenientes das

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emoções e dos sentimentos das cenas. Em relação a isso, para o autor as emoções

são conjunto de imagens que sinalizam os estados corporais, papel da orientação

cognitiva e, sentimentos são as representações mentais da experiência das alterações

do corpo, ligados às regiões somatosensoriais (percepção, pensamentos e outros).

Como produzimos imagens a todo instante, o corpo está modificando

incessantemente com as conexões e trocas com meio, um processo adaptativo do

corpo para sobreviver. Segundo Machado (2007, p. 16) “as imagens do corpo residem

em atualizações constantes pelo acesso imediato de trocas on-line, são ações de

percepção do corpo a cada momento”. Na audiodescrição de dança, a relação tradutor-

espectador e vice-versa, assim como as imagens que cada um deles constrói sempre,

entram em negociações com as que já estão atualizando, por conseguinte faz-se

necessário realizar estratégias adaptativas para que a comunicação tenha fluxo e a

atividade permaneça fortificando o campo.

O “sentir e perceber” também mostra a apreensão do espectador cego não por

sua deficiência, mas como corpo que enxerga com outros sentidos, o que relaciona

com a concepção do indivíduo co-criador das informações que recebe, ao mesmo

passo que transforma e dissemina, e não alguém receptor que apenas é sujeito que

recebe algo produzido fora dele. De acordo com Katz (2003, p. 39), “o espectador,

portanto, é esse sujeito construtor daquilo que percebe uma espécie de coautor em

tempo integral da realidade”. Faz-se necessário relatar que a autora não especifica

sobre qual espectador está discorrendo, todavia é preciso saber que a pessoa cega se

relaciona por imagens com o ambiente sendo capaz por meio de outros viéis a ter sua

percepção diante do espetáculo de dança, um caminho possível, se nos permitirmos a

essa via acessível.

O que ele irá precisar para ser cocriador serão os meios de tornar as

informações acessíveis, isto o torna um espectador não mais afastado, e sim implicado

em tudo que percebe. Almejo exprimir que esse corpo constrói imagens que levam-o a

sentir e perceber como um corpo “visão” o qual observa, transforma e é transformado a

partir da audiodescrição. Recorda-se da “Teoria do Corpomídia” abordagem tributária

da Semiótica de Piercecriada, das Teorias Evolucionistas Neodarwinista e, da

abordagem filosófica e tradutória de Lakoff & Johnson, criada e intitulada por Katz e

Greiner (2005) propondo o corpo como mídia de si mesmo.

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O próprio corpo resulta de contínuas negociações de informações com o ambiente e carrega esse seu modo de existir para outras instâncias de seu funcionamento. Ou seja, a ação criativa de um corpo no mundo reproduz os procedimentos que o engendraram como uma porta de vaivém, responsável por promover e romper contatos. [...] Os processos de troca de informação entre corpo e ambiente atuam, por exemplo, na aquisição de vocabulário e no estabelecimento de redes de conexão. (KATZ & GREINER, 2001 p. 72-73)

Igualmente, pode-se afirmar que a ação de sentir e perceber é intrinsicamente

ativa, não está fora de nós, é o que fazemos, e não está dissociado do meio.

O processo de conhecimento se inicia pela percepção sensório-motora do corpo nas direções espaço-temporais que se estabelecem: seus proprioceptores localizados nas juntas reconhecem onde você está no espaço e o que você está fazendo lá; a ação de busca, caracterizada pelos movimentos das mãos e do olhar ao experimentar as torneiras, a checagem com o olhar, geram a estrutura inferencial com conexões metafóricas; ao detectar a temperatura, busca ajustá-la a seu gosto – uma experiência subjetiva conquistada por seu corpo por meio dos marcadores somáticos... O ambiente e o corpo tramam juntos as experiências do mundo no corpo com base em seu órgão especializado, o cérebro. Enfim, alguma decisão diante do que está ocorrendo será tomada em tempo real. O processo de tomada de decisão é um procedimento fundamental em todos os processos cognitivos. (QUEIROZ, 2009, p. 51).

Em trabalhos de Alva Noë (2005), diz que percepção não é algo que acontece

para nós ou em nós. É algo que fazemos. Continua a escrever “penso numa pessoa

cega tateando seu caminho ao longo de um espaço desorganizado, percebendo pelo

toque, não de uma vez, através de um tempo, pela habilidade de tatear e mover”. Tal

perspectiva de percepção desse filósofo da mente nos arrebata e nos faz entender

também a situação da formação de público para a audiodescrição de espetáculos de

dança. A questão da falta de familiaridade com a atividade de mediação e com

trabalhos de dança contemporânea, por exemplo, são fatos marcantes que dizem

respeito a percepção que precisa ser exposta repetidas vezes para ganhar

familiaridade, daí voltamos ao assunto de sair da ilha, criar pontes e ocupar o “entre

lugar”, pontos que ao final saliento serem não somente de audiodescritores.

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Considerações Finais

Propor uma Poética de Audiodescrição, comoum modo de tradução no sentido

de poder (re)criar, mediar e comunicar imagens de espetáculos de dança levando em

consideração os pensamentos sobre imagem e, ressaltando a perspectiva de

percepção é compartilhar informações que contribuam na área da dança as quais

ampliam a modalidade de tradução – audiodescrição como nova possibilidade de

pensar em dança.

Entender que essa Poética possibilita percepções dos espectadores cegos a

partir do que se seleciona para a construção do roteiro descritivo é compreender que o

audiodescritor não é sujeito imparcial e que tem a possibilidade de transcriação. E

nesse trânsito de oportunidades, o espectador cego é entendido como cocriador das

informações que recebe e transforma na vida. Em suma, acredito também que todas

essas ideias necessitam ser mais exploradas e disseminadas nos âmbitos mais

diversificados possíveis tanto para provocar os espaços em que a obrigatoriedade

ainda não ocorre quanto para colaborar com as pesquisas em dança, instaurando

novos pensamentos na contemporaneidade.

Referências

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