uma formação do ator através da ação verbal e dialética
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UNIVERSIDADE DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS – PPGAC
TESE DE DOUTORADO
A PEDAGOGIA METAFÍSICA DE ANATÓLI VASSÍLIEV:
uma formação do ator através da ação verbal e dialética – Platão e Homero
Doutorando: Marcus Vinicius Fritsch de Almeida
Orientação: Profa. Dra. Nara Keiserman
Coorientação: Profa. Dra. Maria Thaís
Rio de Janeiro
2015.
2
Almeida, Marcus Vinicius Fritsch de.
A447 A pedagogia metafísica de Anatóli Vassíliev: uma formação do ator
através da ação verbal e dialética – Platão e Homero / Marcus Vinicius
Fritsch de Almeida, 2015.
vii, 171 f. ; 30 cm
Orientadora: Nara Keiserman.
Coorientadora: Maria Thaís.
Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
1. Vassíliev, Anatóly, 1942-. 2. Representação teatral.
3. Comunicação oral. 4. Linguagem corporal. 5. Pedagogia metafísica.
I. Keiserman, Nara. II. Thaís, Maria. III. Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro. Centro de Letras e Artes. Curso de Doutorado em
Artes Cênicas. IV. Título.
CDD – 792.028
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
3
Dedico a tese aos meus mestres do teatro Vladimir do Carmo, in memoriam
Maria Lúcia Raimundo, in memoriam e a
Anatóli Vassíliev.
4
AGRADECIMENTO
Agradeço à minha orientadora, profa. Dra. Nara Keiserman pela sugestão do
nome Anatóli Vassíliev como tema para minha pesquisa no doutorado e
também pela agradável forma de condução de todo o processo.
A profa. Dra. Maria Thaís, pelas fundamentais sugestões e considerações.
A profa. Dra. Polina Bogdanova, por suas reflexões sobre o trabalho de
Anatóli Vassíliv, à quem me apresentou pessoalmente.
Aos professores da banca de qualificação, prof. Dr. Luiz Arthur Nunes e
prof. Dr. Ricardo Kosovski, pelo olhar atento e interessado e pelas sugestões
precisas e fundamentais.
Ao senhor Arkady Raskin, diretor da Fundação Anatóli Vassíliev em
Moscou, pelo interesse e disponibilidade na ajuda com o material de
pesquisa.
A Igor Iatsko e Maria Zaikova por terem me recebido no Teatro-Escola de
Arte Dramática.
A Alla Voronova e Maria Ermakova pelas traduções do russo e pela amizade.
As professoras do Instituto Púchkin de Moscou.
Aos meus colegas do Curso de Licenciatura em teatro da Universidade
Estácio de Sá, em especial a coordenadora Elza de Andrade.
A Diego Moscovich e Marina Tenório pelas conversas e laboratórios de
pesquisa sobre o étude.
À Michele Zaltron pelos encontros em Moscou.
Aos meus colegas do Stúdio Stanislavski e especialmente a Celina Sodré.
Ao Programa de Doutorado Sanduíche (PDSE), por ter possibilitado o aporte
financeiro para minha estadia em Moscou.
À Luiz Vanitelli, pela amizade e amor pela cultura russa.
À Denise Cristina Kluge pelo apoio e força.
À Marcelo Caram, pela entrega da documentação e do cartão da Capes em
Moscou, além da amizade e companheirismo.
5
A minha família e em especial a minha mãe, Vera Fritsch, pelo carinho e
amor e ao meu pai Adão Lopes, pelos calorosos incentivos e a todos, que de
alguma forma contribuíram para a realização desse trabalho.
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RESUMO
Esta tese, sobre a pedagogia de Anatóli Vassíliev procura evidenciar nela o
aspecto de formação do ator, enquanto Paideía. Herdeiro da tradição teatral
russa, para a qual o diretor é também pedagogo, Anatóli Vassíliev
desenvolveu uma pesquisa no âmbito laboratorial do Teatro-Escola de Arte
Dramática, indo além das questões propriamente técnicas da arte atoral,
rumo a um processo de transformação da consciência ética do ator. Anatóli
Vassíliev opta por desenvolver a sua pedagogia fundamentada na ação
verbal, calcada no texto literário de estrutura lúdica e poética: Platão e
Homero. O contato do ator, com esta consciência ético-estética, descrita nos
textos da tradição literária, constitui o inicio de um processo de formação do
ator, que, visa, enfim, potencializar, ao máximo, o seu desenvolvimento
artístico.
Palavras-chave: Anatóli Vassíliev, ação verbal, estrutura lúdica, formação e
Paideia do ator, pedagogia metafisica.
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ABSTRACT
This thesis, on the pedagogy of Anatoly Vasilyev it seeks to highlight the
aspect of training the actor, while Paideia. Heir to the Russian theatrical
tradition, to which the director is also pedagogue, Anatoly Vasilyev
developed a research laboratory in the framework of the Drama Theatre-
School, going beyond the strictly technical issues of atoral art, towards a
transformation of ethical awareness the actor. Anatoly Vasilyev choose to
develop their pedagogy based on the verbal action, based on the literary text
playful and poetic structure: Plato and Homer. The contact of the actor with
this ethical and aesthetic awareness, described in the texts of literary
tradition, is the beginning of an actor of the training process, which aims,
ultimately, enhance the maximum of his artistic development.
Keywords: Anatoly Vasilyev, verbal action, playful structure, training and
Paideia actor, metaphysics pedagogy.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Desenho de Anatóli Vassíliev
Figura 2 – Desenho de Anatóli Vassíliev
Figura 3 – Quadrado de quatro pés de área
Figura 4 – Quadrado de oito pés de área
Figura 5 – O Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci
Figura 6 – Desenho de Anatóli Vassíliev: justaposição do Homem
Vitruviano e a diagonal do quadrado de oito pés
Figura 7 – a perspectiva direta
Figura 8 – a perspectiva invertida
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1. PRINCÍPIOS DA PEDAGOGIA DE ANATÓLI VASSÍLIEV
1.1. L’Analyse-action: o diálogo de AV com os tradutores
1.1.1. O Método do Étude: a perspectiva do ator e a perspectiva do papel
1.1.2. Princípios gerais da análise pela ação por Maria Knebel
1.2. Metamorfoses teóricas e práticas do Étude, na perspectiva de Anatóli Vassiliev
1.2.1. As variantes de Anatóli Vassíliev à prática do Étude
1.2.2. Definição de estrutura psicológica e lúdica
1.3. Os primeiros espetáculos de Anatóli Vassíliev, de 1973 a 1987
1.3.1. Máximo Gorki, Vassa Zheleznova - primeira versão
1.3.2. Victor Slavkin, A filha adulta de um jovem e Cerceau
1.3.3. Pirandello, Seis personagens a procura de um autor
1.4. Considerações
CAPÍTULO 2. PEDAGOGIA E REMINISCÊNCIA
2.1. Análise de AV dos diálogos platônicos
2.1.1. Mênon
2.1.2. Íon
2.2. Pedagogia e Dialética Platônica
2.2.1. O pensamento compositivo e a formação do ator
2.2.2. A dialética como instrumento de educação
2.3. Pedagogia como maiêutica
2.3.1. A cognição do conflito na pedagogia de AV
2.3.2. As quatro virtudes do ator
2.4. Considerações
CAPÍTULO 3. PEDAGOGIA E MÍSTICA ORTODOXA
3.1. Ação verbal na pedagogia de Stanislávski-Knebel
3.1.1. A palavra é ação
3.1.2. A problemática da dramaturgia versificada
3.2. O verbo no trabalho do ator
3.2.1. A Cantilena Ortodoxa - José e seus irmãos de Thomas Mann
3.2.2. O Hexâmetro - A Ilíada de Homero
3.2.3. Wushu e o trabalho sobre a energia
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3.2.4. A entonação afirmativa e a formação musical e gímnica
3.3. Paideia e metamorphosis do ator
3.3.1. Ícone e perspectiva inversa
3.3.2. A estrutura tricotômica da palavra
3.3.3. Beleza e luz tabórica
3.4. Considerações
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
ANEXO – CRONOLOGIA DE ANATÓLI VASSÍLIEV
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INTRODUÇÃO
Começo definindo os recortes para o meu objeto de estudo e depois
passo à definição do quadro teórico e hipótese.
Duas indicações diretas que ouvi de Anatóli Vassiliev1, com quem tive
contato durante o doutorado sanduiche (PSDE) que realizei em Moscou de setembro de
2013 a junho de 2014, ajudaram-me a fazer o recorte para essa pesquisa. Primeiro, que
para entender o fundamento espiritual do seu teatro é preciso iniciar pelo estudo do
processo pedagógico que ele desenvolveu com os diálogos platônicos, a partir de 1988.
Segundo, a importância dos laboratórios sobre a poesia e peças teatrais de Púchkin, do
qual a encenação de Don Juan ou o convidado de pedra e outros poemas de Púchkin, em
1998, se configura como uma das primeiras realizações estéticas da concepção
pedagógica que coloca em primeiro plano o treinamento verbal. Essas indicações,
somadas à pesquisa bibliográfica e à análise dos espetáculos, estabeleceram para mim o
ponto de partida para o estudo da pedagogia metafísica de Anatóli Vassíliev.
Para análise do processo pedagógico de AV com os diálogos platônicos,
selecionei como fonte primária duas publicações que são o registro descritivo de dois
diferentes laboratórios, sobre Menon e Íon, desenvolvidos pelo diretor na Itália. O
primeiro, École des Maîtres, em Udine, de 19 a 30 de junho de 1995 e o segundo, La
Fabrica dei Registri, em Castigliocello, de 19 de novembro a 08 de dezembro de 1997. A
análise de ambos os textos permitiu-me perceber que ali se colocam questões centrais
sobre a pedagogia metafísica de AV, como, por exemplo, o importante conceito de
aprendizado como reminiscência, do qual se deduz que existe um “mecanismo oculto e
misterioso” (PESSOTCHÍNSKI, 2011, p. 372) que determina a ação pedagógica e a
artística. Essa dedução parece ser confirmada pela leitura que AV fez do texto de Púchkin
para a sua encenação de Don Juan ou o convidado de pedra e outros poemas, em que o
define como uma peça do gênero mistério (BOGDANOVA, 2006). O processo
pedagógico proposto por AV possibilita que o ator entre em contato com esse “plano
1 Diretor e professor de teatro, Anatóli Aleksandrovich Vassiliev (russo: Анатолий Александрович Васильев), nasceu em 04 de maio de 1942, na cidade de Penza Oblast, Rússia. Fundador do "Teatro-Escola de Arte Dramática", em Moscou, onde ensinou de 1987 até 2007. Foi professor no GITIS (Academia Russa das Artes do Teatro), no Instituto de Cinema VGIK em Moscou e na l'École Nationale Supérieure des Arts et Techniques du Théâtre (l'ENSATT) de Lyon, em 2004, onde propôs o primeiro ano voltado para o estudo dos diálogos platônicos. A partir daqui, passo a referi-lo como AV. Para maiores informações sobre a biografia de AV ver página 6 e a sessão de anexos, item Cronologia.
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semântico abstrato” (PESSOTCHÍNSKI, 2011, p. 373), mas o diretor percebe que isto é
uma das grandes dificuldades dos atores, sejam eles russos ou europeus, e atribui essa
dificuldade à educação humanista que permeia toda nossa concepção e visão de mundo
(VASSÍLIEV, 1999).
A pedagogia metafísica de AV não se limitaria, portanto, ao objetivo de
desenvolver habilidades técnicas do ator, mas pretenderia também atuar na transformação
da sua concepção e visão de mundo, visando a sua formação ética e espiritual. A partir
dessa hipótese inicial, desenvolve-se nesta tese a tentativa de perceber até que ponto a
pedagogia metafísica de AV se configura como uma Paideia do ator, nos moldes
propostos pelo filólogo e classicista Werner Jaeger, em seus livros sobre o assunto:
Paideia, a formação do homem grego, e Cristianismo primitivo e Paideia. A
fundamentação teórica dessa pesquisa nas ideias de Jaeger se justifica, primeiramente,
porque, como AV, o autor destaca Platão como o principal pensador dessa questão e
segundo, porque também reflete sobre a influência da religião na formação humana.
Uma segunda linha de pesquisa a ser desenvolvida nesta tese é a da
relação entre a proposta pedagógica metafísica de AV e a formação do ator na tradicional
escola russa de teatro, que remonta, mais sistematizadamente, às pesquisas de
Stanislávski, Meierhold, Vakthangov, Mikhail Tchekhov, entre outros, no início do
século XX. No entanto, seria impossível abarcar no espaço de uma única tese toda essa
grande e historicamente muito rica tradição teatral russa. Em segundo lugar, essa grande
tradição foi sendo, na prática teatral russa a partir da década de 30, paulatinamente
restringida aos princípios estéticos do Realismo Socialista2 e à aplicação burocrática do
sistema Stanislávski. Embora muitos críticos e estudiosos do teatro, como Bogdanova
(2012), Pessotchínski (2011) e Lupo (2006) apontem que as propostas estéticas do diretor
têm relação com essa grande tradição, opto por abordar essa questão através da
transmissão direta de uma prática pedagógica à AV, através dos seus mestres, Maria
2 O Realismo Socialista foi o estilo artístico oficial da União Soviética, adotado a partir de meados da década de 1930 até o fim do regime, em 1991. Foi, na prática, uma política de Estado para a estética em todos os campos de aplicação da forma, desde a Literatura até o Design de produto, incluindo todas as manifestações artísticas e culturais soviéticas (pintura, arquitetura, design, escultura, música, cinema, teatro, etc.). O estilo do realismo socialista é tomado como sinônimo de jdanovismo, a estética oficial assim batizada em referência a Andrei Jdanov, comissário de Stalin responsável pela produção cultural e propaganda.
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Knebel3 e Andrei Popov4. Primeiro, para enfatizar o aspecto pedagógico, tema central
desta tese e segundo, porque o próprio AV constantemente ressalta que o seu trabalho
pedagógico é uma continuidade da tradição iniciada por Stanislávski. Esses dois mestres
foram professores de AV durante o seu período de estudante no GITS, além de terem
influenciado o inicio da sua carreira profissional. Como por exemplo, Andrei Popov, que
chegou a ser o ator principal na produção, não concluída, de Rei Lear, dirigido por AV
na década de 70.
O teatro russo é fortemente marcado pela prática do diretor-pedagogo,
sendo, portanto, esses dois aspectos, direção e pedagogia, estreitamente ligados, não
sendo possível, muitas vezes, demarcar uma linha de fronteira entre ambos. Esse fato faz
com que, nesta tese, sejam abordados ensaios, encenações, laboratórios e cursos de
formação realizados por AV, como aspectos de um único processo integrado. Saliento
aqui, a necessidade futura de uma pesquisa que se aprofunde no entendimento deste
binômio diretor-pedagogo e que se possam esclarecer as implicações dessa prática na
elaboração de espetáculos e na pedagogia do ator. Nesta tese, debruço-me sobre o aspecto
pedagógico e como ele aponta para a formação do ator como uma Paideia.
A necessidade de aprofundar a questão pedagógica, portanto, levou a
focalizar minha análise, inicialmente, no método do étude, principal ferramenta
pedagógica e de direção transmitida à AV por Maria Knebel. No seu trabalho profissional,
AV começa a realizar uma série de operações no método do étude que marcam o percurso
de elaboração de uma pedagogia própria, que se desdobra em paralelo a questões estéticas
3 Maria Osipova Knebel ( 1898 - 1985), em russo : Мария Осиповна Кнебель, atriz, diretora e um das pedagogas mais influentes do teatro no período soviético. Estudou no estúdio de Mikhail Tchékhov, antes de ingressar em 1921 no segundo estúdio do Teatro de Arte de Moscou, sob a direção de Konstantin Stanislávski, a partir de 1924. Após a morte de Stanislávski, em 1938, começou a sofrer retaliações, foi excluída do Teatro de Arte de Moscou, passou a trabalhar em casa e em teatros da periferia. Começou a dirigir em 1935, no Teatro Armolova. Após o final da segunda guerra mundial, com o abrandamento do regime soviético, retornou como atriz ao Teatro de Arte de Moscou. Em 1950, parou de atuar e entre 1955 e 1960 tornou-se Diretora Artística do Teatro de Arte de Moscou, ajudando a promover a carreira de jovens diretores que mais tarde se tornaram muito reconhecidos na Rússia, incluindo Anatóli Efros e Oleg Efremov. Foi professora na Universidade Russa de Artes Cênicas (GITIS) até sua morte em 1985. É autora de livros sobre o sistema Stanislávski, dando continuidade as suas pesquisas, denominou esse trabalho de “Análise através da Ação” ou como ficou conhecido em tradução de Eugenio Kusnet no Brasil, Análise Ativa. 4 Andrei Popov Alekseyevich (1918 a 1983), ator e diretor de teatro e cinema. Foi o primeiro professor de Anatóli Vassíliev no GITIS, e também seu incentivador no início da carreira na União Soviética (VASSILIEV, 1993). Em 1974, Popov foi convidado a integrar o Teatro de Arte de Moscou. Lá, ele participou de várias produções teatrais junto com Smoktunovsky, Efremov, Tabakov e outros. De 1960 a 1982, ensinou atuação cênica na Universidade Estatal de Artes Cênicas de Moscou (GITS). Como diretor do Teatro Stanislávski, abriu as portas para as primeiras produções de Anatóli Vassíliev, além de ser o ator protagonista da montagem inconclusa de Anatóli Vassiliev, de Rei Lear, de William Shakespeare.
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nas suas primeiras encenações e no âmbito do Teatro-Escola de Arte Dramática. Neste
caso, estou correndo os riscos consequentes de uma escrita que se pretende uma reflexão
(Arrisco-me a escrever e pensar teorias) sobre uma prática de que não participei sequer
como observador, o que acredito não me impede de fazê-lo, visto que tive acesso aos
livros de Maria Knebel sobre a pedagogia do ator, adaptados num único volume por AV,
com o título de L’Analyse-Action (2006), e às reflexões de AV sobre esse procedimento,
como elaboradas por ele na referida edição francesa do livro e durante os cursos na École
des Maîtres e na Fabrica dei Registri.
Outro aspecto importante a ser salientado, refere-se ao uso de uma
terminologia que foi sendo gestada em processo de trabalho. Alguns conceitos são
tratados em russo, italiano e/ou em francês, passando pelo esforço de diferentes
tradutores. As opções que fiz nas traduções para o português, utilizadas nesta tese, são
indicativas do trabalho efetivamente realizado por AV, aguardando que no futuro, as
questões terminológicas geradas pela tradução de termos russos, encontrem um consenso
entre os pesquisadores.
Quero destacar também que a pedagogia metafísica de AV não está
concluída e segue evoluindo nos cursos e laboratórios que o encenador pedagogo
desenvolve na Europa e na Rússia ainda hoje e, portanto, trata-se de um estudo parcial,
que pode vir a ser completado por futuras pesquisas. AV afirma que o “teatro é uma arte
viva e móvel” (1993) e, como o seu caráter efêmero o difere das outras, como a pintura
ou a música, muda constantemente, nunca se fixando numa forma única. Para AV, na
base desse processo existe a lei que rege o universo, a da “conservação e transformação
da energia” (1993) e tanto a sua pedagogia, quanto a sua produção artística estão pautadas
nela. Escrever sobre uma obra em construção, com as dimensões estéticas e pedagógicas
e o modo operante de AV oferece algumas possibilidades de pontos de vista, de recortes
a serem adotados, os quais, de alguma forma, serão fatalmente parciais e trazendo falhas
omissões em alguns aspectos.
O envolvimento com o trabalho de AV foi ganhando o contorno atual
nesta pesquisa depois de um percurso acadêmico, que se desdobrou de diferentes
abordagens. Em março de 2010, com a aprovação para o Doutorado em Artes Cênicas na
Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO), iniciei formalmente o meu processo de
pesquisa. O primeiro título da minha tese era “As Ações físicas em Stanislávski e
Grotowski, aproximações e divergências: um estudo prático-teórico sobre o trabalho do
ator com ações físicas no processo pedagógico e artístico”. Durante o primeiro ano do
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curso, ainda na fase de levantamento bibliográfico, encontrei a tese da professora Marta
Isaacsson, defendida em 1991 na Université de Paris III, com o título "Le Processus
Créateaur de l'Acteur: Stanislávski et Grotowski, étude d'une filiation”. A partir da
constatação de que as duas teses tinham o mesmo objetivo, estabelecer a filiação entre
um diretor e outro, fiquei frente a duas opções: propor-me a releitura da tese da Dra.
Isaacsson, buscando um olhar sob um prisma mais contemporâneo, ou então, escolher
outro objeto de estudo. A primeira opção pareceu encaminhar a pesquisa para a área da
crítica, mas como o interesse inicial eram os procedimentos de criação atorial, descartei
essa opção. A escolha de um novo objeto de estudo também parecia estar fora de questão,
pois, como afirmado, o meu interesse era estudar a relação entre ator e ação. Nesse
momento de impasse, a orientação da professora Nara Keiserman ajudou-me a perceber
que se eu não desejava mudar o objeto de estudo, poderia, no entanto, mudar os atores
através dos quais eu estudava esse assunto e sugeriu o nome de Anatóli Vassíliev, em
substituição ao de Grotowski. Até aquele momento, o meu conhecimento sobre AV era
praticamente nenhum, mas depois de uma pesquisa inicial, aceitei a sugestão, mudei o
título e, portanto, o tema da pesquisa para: As ações físicas de Stanislávski a Vassiliev.
Depois de iniciar um novo levantamento bibliográfico e perceber que o
material teórico sobre AV no Brasil era bastante escasso, decidimos convidar a Profa.
Maria Thaís Lima, da USP como coorientadora, por ela ser, no país, a principal estudiosa
do teatro de AV, além de ter colaborado artisticamente com o diretor russo em diversas
ocasiões. Nos primeiros encontros, a Profa. Maria Thaís questionou a minha proposição
de que ação física fosse a melhor linha de pesquisa para entender o percurso que vai de
Stanislávski até Vassiliev. Esse percurso através da ação física é bem claro na conexão
entre Stanislávski e Grotowski, por exemplo, mas não o é em relação à Vassíliev, porque
o diretor atravessa esse conceito de uma maneira diferente para construir o seu próprio
processo artístico-pedagógico. A minha ideia de pesquisar uma linha evolutiva entre o
trabalho dos dois encenadores e pedagogos russos ficou insustentável naquele momento,
porque eu ainda não tinha pleno domínio das características especificas do teatro de AV.
Após esse primeiro encontro, somado com a leitura da bibliografia disponível sobre AV
em francês, italiano e russo e na eminência da Qualificação da minha Tese, que se deu
em junho de 2013, tornou-se evidente que uma das características fundamentais do
trabalho de AV, que o destacava de outros encenadores e pedagogos russos, era o que
denominei de espiritualidade.
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Na qualificação, os professores Ricardo Kosovski e Luis Artur Nunes
analisaram o material que apresentei, com o título de “A espiritualidade como
fundamentação do processo artístico-pedagógico de Anatóli Vassiliev” e confirmaram
que eu começava a traçar um caminho de pesquisa mais sólido e consistente e que as
lacunas visíveis, naquela altura, no meu trabalho seriam preenchidas no doutorado
sanduíche. Finalizada essa etapa preparatória, segui para Moscou, onde permaneci de
setembro de 2013 a junho de 2014, e tive contato direto com minha orientadora russa, a
Professora Dra. Polina Bogdanova5, no Departamento de Teatro e Cinema do Instituto de
História e Filologia (RGGU). Durante a orientação, a Profa. Bogdanova argumentou que
“espiritualidade’ e “diretor-pedagogo” não eram conceitos que pudessem marcar a
diferença entre o trabalho de AV e o de outros encenadores e pedagogos teatrais russos.
Para ela, o termo diretor-pedagogo indica uma característica compartilhada por todos os
diretores teatrais formados na tradição da escola russa de teatro fundada por Stanislávski,
e que o processo artístico de encenação na Rússia começa sempre por um processo
pedagógico, portanto, essa é uma categoria comum à maioria dos profissionais de artes
cênicas naquele país. Da mesma forma, argumentou que na Rússia, o termo
“espiritualidade” (духовность) pode ser aplicado à muitos outros artistas, desde
escritores até diferentes diretores, sendo o estudo da alma do ser humano um tema comum
aos russos. A Profa. Bogdanova, entretanto, acredita que o que destaca AV de outros
encenadores russos é a sua preocupação em dar continuidade à pesquisa sobre os
processos criativos e pedagógicos do ator iniciada por Stanislávski. Esses argumentos me
levaram a redimensionar a pesquisa e colocar no primeiro plano, como foco central, os
procedimentos pedagógicos do ator no teatro de AV, como processo para que o ator entre
em contato com o referido “plano semântico abstrato”.
A elaboração de toda essa pesquisa na sua forma final se deu após meu
retorno ao Brasil, período durante o qual pude estruturar toda essa experiência na Rússia
e discuti-la com as professoras Nara Keiserman e Maria Thaís Lima. Nestas minhas
reflexões, quero destacar os encontros com Anatóli Vassíliev, as conversas com o sr.
Arkady Raskin, ex colaborador de AV e atual diretor Fundação Anatóli Vassiliev6, as
5 Crítica e professora de história do teatro russo na Universidade Russa Estatal de Humanidades (RGGU). Autora de diversos livros, entre eles, A Lógica da Mudança, sobre Anatóli Vassíliev. 6 Arkady Raskin foi estudante-diretor no laboratório Os Possessos de Dostoiévski em 1988 e depois se tornou colaborador de Anatóli Vassíliev.
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visitas ao Teatro-Escola de Arte Dramática7 na Rua Povarkaia, e meu encontro com Igor
Iatsko, principal discípulo russo de AV e atual diretor da Escola, e com sua esposa Maria
Zaikova8; as remontagens dos espetáculos dirigidos por AV que tive oportunidade de
assistir repetidas vezes na Escola de Arte Dramática: Matinê Pushkin, Eugenie Onieguin
e Don Juan ou Convidado de Pedra. Também quero destacar as aulas abertas realizadas
por Anatóli Vassiliev que assisti sobre os processos de criação de Cerceau, O Convidado
de Pedra, Seis personagens em Busca de um autor, Ilíada e Medéia, no Teatro Strasnon
e no Centro Cultural Gogol. Finalmente, a comparação que pude fazer, ao assistir
diferentes espetáculos teatrais em Moscou, entre o trabalho dos atores do Teatro-Escola
de Arte Dramática que foram alunos de AV e de atores de espetáculos de outras escolas
e teatros, sob orientação de diferentes diretores, me possibilitou sentir e perceber os
resultados artísticos de diferentes escolas de formação do ator. Acredito que todo o meu
percurso esteja refletido no título dessa pesquisa: “A Pedagogia Metafisica de Anatóli
Vassíliev”.
ANATÓLI VASSÍLIEV – SEU TEMPO E SEU TEATRO-ESCOLA
O diretor Anatóli Vassíliev começou sua carreira profissional em 1973,
na União Soviética durante a Era da Estagnação (1964 a 1987), período este marcado pelo
retorno da burocratização, do centralismo político-administrativo e da repressão às
dissidências, conforme o velho modelo stalinista. O líder político Leonid Brejnev
permitiu que a estética oficial do estado continuasse por décadas aquela mesma do
Realismo Socialista, que enfatizava a imponência do Poder Soviético9. A eleição de
Mikhail Gorbachev como secretário geral do Partido Comunista, a 11 de Março de 1985,
marcou o começo de profundas mudanças políticas, sociais, econômicas e culturais que
levariam ao fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A era
Gorbachev, como ficou conhecida, promoveu as políticas da glasnost (transparência) e
perestroika (reestruturação), que possibilitaram o início da abertura da Rússia para o
7 Segundo endereço do Teatro-Escola de Arte Dramática. Era um antigo prédio que foi totalmente remodelado conforme projeto arquitetônico de Igor Popov, arquiteto e cenógrafo que acompanhou Anatóli Vassíliev desde as suas primeiras montagens profissionais. 8 Atriz e professora de voz no Teatro-Escola de Arte Dramática. 9 Um exemplo da vigência dessa estética pode ser visto nas cerimônias dos Jogos Olímpicos de 1980 em Moscou, no design gráfico aplicado ao evento. A começar pelo símbolo e pelo pôster oficiais, na qual uma enorme torre conceitual em barras (uma figura muito usada pelos soviéticos) ergue, nas alturas, os Aros Olímpicos.
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mundo. A diminuição da censura nos meios de comunicação e um consequente aumento
da circulação de informação foi um dos efeitos da glasnost, o que significou uma
modificação radical, visto que o controle e supressão de qualquer tipo de crítica ao
governo era uma ação comum nos governos anteriores10.
Nesse clima de abertura política, o trabalho de AV começou a se tornar
conhecido fora da cortina de ferro. Sua primeira turnê europeia aconteceu em 1987, com
apresentações de Cerceau, criação de 1985, em Londres, Sttutgart, Rotterdam e Belgrado.
Em 1988, Seis personagens em busca de um autor, de 1987, é apresentada em diversos
festivais europeus, entre eles o de Avignon, enquanto que Cerceau segue com sua agenda
pelas cidades de Helsinki, Munich, Bruxellas e Budapeste. Durante o ano de 1989, Seis
personagens em busca de um autor continua sendo apresentada fora da União Soviética,
em Barcelona, Palermo, Montreal, Londres, Nova York e México, ganhando inúmeros
prêmios. Paralelamente a essas atividades, AV funda em Moscou, em 1987, o Teatro-
Escola de Arte Dramática, dando início a um projeto pedagógico e laboratorial que vai se
expandir e aprofundar nos anos seguintes, além de realizar intercâmbios com outros
centros de estudo na Europa. O governo soviético tinha um grande interesse em promover,
através das peças do diretor, a nova face do país para o mundo. Na imprensa internacional,
as suas peças eram saudadas como exemplares do novo teatro russo da perestroika11 e da
liberdade de expressão.
O mundo russo se abria para a pluralidade das opções, para a liberdade
de escolher entre a tradição, seja ela soviética ou pré-revolucionária e a modernidade
10 Gorbatchev autorizou a Igreja Ortodoxa Russa a celebrar seu milésimo aniversário, em todo o país. A medida contribuiu para criar um clima inédito de festa e de liberdade espiritual. 11 O jornal El País de 28 de julho de 1988 tem o seguinte título: El teatro de la 'perestroika' llega a Francia. O crítico Joan de Sagarra escreve o seguinte: Los soviéticos están de moda en Aviñón y en los demás escenarios de Francia. "L'engouement [entusiasmo, capricho, admiración] pour les soviétiques est en passe de remplacer la fólie espagnole". escribe Colette Godard (Le Monde, 21 de julio) a raíz de la llegada a Aviñón, para el festival de teatro, de Anatoli Vasiliev. Vamos, que la perestroika se está zampando la movida. Pues, la verdad, de movida, en Aviñón, rien de rien: ningún autor español, ninguna compañía española en la programación del festival. Que los rusos están de moda en Aviñón y en los demás escenarios de Francia, de eso no cabe ninguna duda. A la presencia de Vasiliev y Oleg Tabakov en el festival, hay que sumar la programación de puestas en escena de Oleg Efremov (Teatro de Arte de Moscú), Lev Dodin (Teatro Maly de Leningrado), luri Eriomin y Anatoli Vasiliev en el Festival de Otoño de París, que se inicia el próximo 27 de septiembre, puestas en escena de las obras de autores rusos, de Chéjov a Victor Slavkin, en lengua rusa. Además de éstos y de otros espectáculos, las publicaciones teatrales y las culturales en general van repletas de Información sobre el actual teatro soviético. En el mismo Aviñón se han celebrado nada menos que media docena de debates sobre dicho tema, sobre el teatro de la perestroika. Cuando el periodista (JeanLouis Enzine, en Le Nouvel Observateur) le pregunta a Anatoli Vasillev si se considera el astro ascendente del teatro soviético, éste, burlón, le responde. "No soy más que un pequeño astro arcaico y extenuado, brillando con pálida luz sobre la perestroika. (http://elpais.com/diario/1988/07/28/cultura/586044001_850215.html)
19
ocidental (MEZHUEV, 1999 e LEWIN, 1997). Dentro desse contexto, AV abandona o teatro
de vanguarda russa, que vinha encenando, com as peças de Viktor Slavkin, para
aprofundar suas pesquisas em laboratórios estético-pedagógicos dentro do Teatro-Escola
de Arte Dramática, misto de centro educacional e companhia de teatro. Ao dar esse passo,
AV está retomando a herança da vanguarda russa do início do século XX, a dos estúdios
e laboratórios de pesquisa desenvolvidos por inúmeros diretores e pedagogos da época.
Para ele, o que importa é manter vivo o espírito russo, marcado pela experimentação. AV
retoma o pensamento de Stanislávski de que o ator deve “assemelhar-se a vida, ser
autêntico” (VASSÍLIEV, 1999, p. 147) e desenvolve-o no sentido de encontro com as
raízes do pensamento ortodoxo religioso:
Assemelhar-se à vida, ser autêntico, é continuar a ideia
básica do teatro russo. Eu acho que é mesmo uma ideia religiosa; e ela está
nas raízes da ortodoxia. A consciência russa não vê Deus como uma abstração,
mas como um homem12. (VASSILIEV, 1999, p. 147, tradução própria).
Essas fontes metafísicas e religiosas ortodoxas já estavam presentes nos
trabalhos anteriores à fundação do Teatro-Escola de Arte Dramática, durante o período
vanguardista de AV, como nos espetáculos A filha adulta de um jovem e Cerceau, mas
naquele tempo ainda aguardavam para serem elaboradas dentro de uma estrutura
pedagógica mais consistente (ZOLOTÚKHIN, 2003). Agora, a espiritualidade metafísica
vai assumir um papel preponderante, influenciando desde as concepções arquitetônicas
do prédio da Escola, passando pelos processos pedagógicos até chegar à escolha dos
textos e suas respectivas concepções de encenação. Nesse sentido, pode-se falar de uma
retomada do teatro proposto pelo simbolismo russo no período pré-revolucionário
(LUPO, 2006 e PESSOTCHÍNSKI, 2011). No entanto, esse retorno não significa resgatar
a estética desenvolvida nas encenações do período simbolista russo, mas, sobretudo,
centralizar essa discussão no plano da fundamentação de uma pedagogia do ator. Neste
sentido, pode-se falar de uma segunda formação do ator.
Durante o período do teatro simbolista na Rússia, a busca pelo espiritual
visava, sobretudo, uma estética dos espetáculos, e não necessariamente estava ligada a
questões pedagógicas do trabalho do ator, no sentido de construção de uma Paideia13. O
12 Ressembler à la vie, être authentique, c’est continuer l’idée fondamentale du théâtre russe. Je pense que c’est même une idée religieuse; et ele est dans les racines de l’orthodoxie. La conscience russe ne conçoit pas le Seigneur comme une abstraction, mais comme um homme 13 Com isto não quero afirmar que não existiam, à época, questões pedagógicas referentes a relação ator e cena, vide para isso os processos de encenação de Meierhold e Andrei Biéli, entre outros, sobre a
20
fim do período da vanguarda russa, após a década de 30, marcou também a formação do
ator, que passou a ser regida cada vez mais por uma ideologia materialista, que tinha como
esteio um sistema Stanislávski depurado de seus elementos metafísicos, não materialistas
(SHAPIRO, 2006). A geração do pós-segunda guerra vai operar uma renovação do teatro
russo, através de uma série de novos dramaturgos e diretores, que embora estivessem
ideologicamente amarrados aos preceitos do realismo socialista, buscavam uma maior
verdade cênica na expressão das relações humanas no palco (BOGDANOVA, 2012).
Vassíliev (1999), herdeiro dessa tradição soviética, vai se manter fiel à noção de que o
teatro está centrado no ator e que é através do trabalho com os seus processos criativos
que o diretor deve chegar à cena, mas vai questionar o fundamento ideológico dessa
formação pedagógica. Os laboratórios no Teatro-Escola de Arte Dramática se tornam o
ambiente propício para o desenvolvimento dessa pesquisa do metafísico no teatro, através
da relação pedagógica entre diretor e ator (BOGDANOVA, 2012).
O Teatro-Escola de Arte Dramática foi dirigido por AV desde a sua
inauguração, em fevereiro de 1987 até julho de 2007, quando se demitiu da direção, por
divergências com o Comitê de Cultura de Moscou. Até o ano de 2001, a Escola funcionou
no porão de um edifício na Rua Povarskaia14, antes do atual endereço na Rua Sretenka15,
num projeto arquitetônico desenvolvido por Igor Popov a partir de concepções artísticas
de AV.
Escola de Arte Dramática é um nome muito apropriado
para esse novo teatro. “Escola”, aqui, é um conceito, um princípio, uma
propriedade, uma qualidade do ato de dirigir. (...) ‘“Escola”, porque para criar
um mundo novo e particular para cada novo espetáculo, o diretor sempre se
detém na educação e no desenvolvimento da personalidade espiritual do ator,
que deve existir neste mundo, viver nele, torná-lo seu e preenche-lo com sua
própria existência16 (BUROV, 1987, p 155-156, tradução própria)
estética do simbolismo. Quero apenas salientar, em função de um desenvolvimento argumentativo, que a pedagogia do ator à época simbolista era subordinada à encenação, e que os temas do mistério eram tratados como temas nos espetáculos, restando, portanto em aberto um aprofundamento pedagógico sobre a forma de tratamento desses temas, através do trabalho do ator, lugar para o qual aponta o desenvolvimento da pedagogia metafisica de AV. No entanto, persiste a necessidade de mais estudos sobre as relações entre a pedagogia e a estética simbolista na cena teatral russa, que não são possíveis aqui. 14 Na época da fundação a rua se chamava Vorovskiy. 15 O novo prédio do Teatro-Escola de Arte Dramática, na Rua Sretenka foi aberto ao público em 04 de maio 2001. 16 Scuola d'arte drammatica è un nome molto adatto per il nuovo teatro. 'Scuola', qui, è un concetto di principio, una proprietà qualitativa della regia. (...) Scuola perché nel creare un nuovo e particolare mondo per ogni nuovo spettacolo, il regista è ogni volta teso all'educazione e allo sviluppo della personalità spirituale dell'esecutore, che dovrà esistere in questo mondo, abitarlo, farlo suo e riempirlo della propria esistenza". (BUROV, 1987).
21
Esse termo “escola” liga-se, para além da sua própria função de
formação técnica e artística do ator, à ideia de educação do espirito do artista. A tradição
da escola russa de teatro não está circunscrita a uma ou outra instituição, companhia,
grupo teatral ou diretor específico, mas se refere a um ideal cultural e estético próprios.
Quando AV se refere a essa tradição pedagógica teatral russa, ele sempre salienta que
para o ator “nessa escola não se fala somente de ensaiar o papel, e sim em educá-lo”.
(VASSÍLIEV, 2007).
Minha escrita procura evidenciar em que sentido AV desenvolve a
tradição pedagógica russa via Maria Knebel, através de uma pedagogia metafísica, e
aponta outros caminhos para o seu desenvolvimento.
HIPÓTESE
A hipótese desse trabalho é que o processo artístico-pedagógico de AV
com os diálogos platônicos, efetivado nas experiências realizadas na École des Maïtres e
na Fabrica dei Registri, em conjunto com o treinamento verbal, desenvolvidos nos
laboratórios sobre o hexâmetro homérico, a cantilena ortodoxa e o Wushu, no Teatro-
escola de Arte Dramática, configura-se como uma formação do artista no sentido de uma
Paideia, pois pretende uma transformação ética do ator, através de uma pedagogia
metafisica, cuja prática está fundamentada nas ações dialética, verbal e ortodoxa.
ESTRUTURA DA TESE
No capítulo 1, apresento o método da análise ativa, como ele é descrito
por Maria Knebel no seu livro L’Analyse-action (2006) e também as variantes que AV
opera no método, conforme ele próprio descreve no livro A un unico lettore (1993). Num
segundo momento, passo a uma tentativa de definição dos conceitos de estrutura
psicológica, lúdica e mista e finalizo com a apresentação de alguns espetáculos que
marcam importantes fases desse processo, como Vassa Zheleznova – primeira versão de
Máximo Gorki, A filha adulta de um jovem e Cerceau, de Victor Slavkin, Rei Lear de
William Shakespeare e Seis Personagens em Busca de um Autor de Luigi Pirandello. A
escolha desses espetáculos não contempla o total da produção de AV, já que não se
pretende uma abordagem historiográfica de sua obra.
No capítulo 2, me detenho na análise dos cursos École des Maïtres e
Fabrica dei Registri a fim de determinar como a pedagogia metafisica do ator se
desenvolve no âmbito do trabalho sobre os diálogos platônicos, focando principalmente
22
Mênon e Íon. São apresentados alguns conceitos como o de aprendizado como
reminiscência e a arte do ator como dialética.
No capítulo 3, partindo da problemática identificada por Stanislávski
no trabalho sobre a dramaturgia em verso, identifico nos laboratórios sobre a cantilena
ortodoxa, o hexâmetro homérico e o Wushu os fundamentos da formação musical e
gímnica do ator, como um dos elementos constitutivos da pedagogia metafísica. Num
segundo momento, analiso as relações da pedagogia de AV com a mística ortodoxa,
procurando evidenciar o processo de formação do ator como metamorphosis.
Na conclusão, retomo os principais conceitos levantados nos capítulos
anteriores para indicar os aspectos formativos da pedagogia metafísica de AV.
Na Bibliografia apresento as principais referências utilizadas para a
elaboração da tese, não pretendendo abarcar a totalidade do material teórico sobre Anatóli
Vassíliev. Indico na sessão Bibliografia em russo, os dois catálogos contendo as fontes
pesquisadas em russo.
No anexo I apresento uma cronologia do trabalho de AV.
23
CAPÍTULO 1. PRINCÍPIOS DA PEDAGOGIA DE ANATÓLI VASSÍLIEV
A estrada do diretor e a estrada do ator são uma única estrada de sacrifício.
Anatóli Vassíliev
A compreensão da prática pedagógica e artística de AV passa pelo
entendimento do “método de análise através da ação”, como transmitido à AV através de
sua mestra Maria Knebel. O método é denominado por AV de étude17, pois se refere a
uma prática especifica de ensaio, que mais adiante procuro especificar. Maria Knebel
assume, como afirmado na introdução, em 1948 as classes de direção no GITIS, sendo
responsável pela transmissão do método do étude nesta universidade18, onde AV vai
entrar em contato com essa escola de atuação, no final da década de 60.
Faz muito tempo - tanto tempo! – era nosso 1968
Soviético, tudo estava se transformando (...), o degelo terminou, veio a
estagnação (mais tarde isso tudo foi lembrado com muita nostalgia durante a
perestroïka). Mas em 1968, eu passei nas audições para entrar no GITIS, para
a classe de Andrei Popov19, um ator engraçado, doce, inesquecível – assim ele
também era na vida, como pessoa. Maria Knebel20, responsável pela cadeira
de encenação, me fez perguntas. "Por que você quer fazer teatro? - Esta é a
minha vida", disse eu, com um pouco de coqueteria. (...) Eu comecei a
aprender encenação com Andrei Popov, mas o grupo era muito grande,
bastante livre, difícil de controlar: o nosso grupo foi dividido. (...) Eu pensei
em deixar o GITIS, eu ainda me lembro do meu caminho descendo as escadas,
passando pelo busto de Lênin, o meu desejo de abandonar tudo. (...) Eu estava
sempre atrasado, me vestia provocativamente, com uma corda como um cinto
e uma jaqueta de couro desgastada, me indignava naquele momento contra as
improvisações absurdas, você é um pássaro migratório, você é uma ave
doméstica... Eu não sentia desejo de ser um ganso. Ou um crocodilo ou um
cavalo feliz na grama. (...) Tirei as piores notas. Mas Maria Knebel me
protegeu contra a ira hipócrita dos comunistas. Passei para o terceiro ano. (...)
Os études21 com Knebel exigiam muita concentração artística, e uma
17 Palavra de origem francesa que significa “estudo”. Eugênio Kusnet afirma que a palavra étude “é utilizada na análise ativa no sentido de “esboço de um estudo”. No começo do trabalho de Stanislávski, étude era usado no sentido de improvisar cenas “em redor da peça”, da ação central da trama. Portanto, referia-se ao passado do personagem ou aos episódios capazes de esclarecer a biografia do personagem. Posteriormente, os alunos faziam études sobre os acontecimentos da própria peça”. (KUSNET, 1975, p.102) 18 Na década de 60, Eugênio Kusnet viaja a URSS e frequenta o curso de formação de atores na Escola Estúdio do Teatro de Arte e na Escola Teatral de Stuchkin, anexa ao Teatro Vakhtangov, onde entra em contato com os principais fomentadores do Método de Análise por Ação. 19 Ver nota quatro na Introdução. 20Ver nota três na Introdução. 21 O método do étude ou Análise Ativa foi desenvolvido pelos principais discípulos de Stanislávski, entre eles, Maria Knebel e Gueórgui Tovstonógov, a partir das últimas pesquisas de Constantin Stanislávski. No Brasil esse método foi desenvolvido pelo ator e professor Eugênio Kusnet (1898-1975). Atualmente a professora Nair Dagostini trabalha e desenvolve esse método na Universidade Federal de Santa Maria e
24
abordagem quase científica, eu acreditava que retornava para a minha
formação como químico, na universidade; a imagem que emergia era precisa,
metódica, quase gramatical – mas simultaneamente aberta à improvisação.
(...) Levei um ano inteiro para chegar à organicidade22. (...) Eu estava tentando
descobrir os segredos da encenação através da arte do ator. 23 (VASSÍLIEV,
2006, p. 6. Tradução própria).
Arrisco-me a traçar algumas considerações teóricas sobre o processo de
“análise através da ação”, sem ter experimentado essa prática, nem mesmo como
observador, por considerá-lo de extrema importância na formação de AV e, portanto,
parte fundamental para minha argumentação sobre a pedagogia metafisica do diretor. Para
tentar chegar a uma compreensão do método, apoio-me no livro L’Analyse-action de
Maria Knebel (2006), e um problema que enfrento, nessa minha tentativa de sintetizar
alguns dos seus princípios é a tradução dos termos russos, sem consenso ainda entre os
estudiosos e tradutores. Por esse motivo, apresento o tópico abaixo, com alguns aspectos
do diálogo entre AV e os tradutores franceses do livro de Maria Knebel.
1.1. L’Analyse-action: o diálogo de AV com os tradutores
Os livros de Maria Knebel, Análise pela ação da peça e do papel (О
действенном анализе Пьесы и роли), publicado pela primeira vez em 1959 e A Palavra
na arte do ator de 1954, (Слово в творчестве актера), na edição francesa de 2006,
na USP onde, em 2007, defendeu a tese: “O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator.” 22 Na Rússia, a palavra organicidade é constantemente usada para se referir ao método de Stanislávski. 23 Il y a longtemps – si longtemps! -, notre année 1968 soviétique, c’était um tournant – comme pour toi -, le dégel fini, ce fut la stagnation (et tout cela fut rappelé avec beaucoup de nostalgie pendant la perestroïka). Mais en 1968, je passais des auditions pour entrer au GITS, chez Andreï Popov, un acteur drôle, doux, remarquable – il était pareil dans la vie. Marie Knebel, titulaire de la chaire de mise en scène, m’a posé des questions. “Pourquoi voulez-vous faire du théâtre? – C’est toute ma vie”, ai-je dit, avec um peu de coquetterie. (...) Je commençai à apprendre la mise en scène auprès d”andreï Popov, mais la promotion était trop nombreuse, assez libre, difficile à contrôler: on a divise notre groupe. (...) Je songeai à quitter le GITIS, je me souviens encore de ma façon de descendre les marches , en passant devant le buste de Lénine, de mon envie d'adandonner tout. (...) J'étais toujours en retard, je m'habillais de façon provocante, avec une chaîne en guise de ceinture et une veste de cuir usée, je m'indignais contre les improvisations absurdes: maintenat vous êtes un oiseau de passage, vous êtes un oiseau domestiqué... Je n'éprouvais aucune envie d'être une oie. Ni un crocodile, ni un cheval heureux dans l'herbe.On m'a donné les pires notes qui soient. Mais Maria Knebel m'a protégé contre la colère hypocrite des communistes. Je suis passé en troisème année. (...) Les études selon Knebel demandaient beaucoup de concentration artistique, ainsi qu'une approche quasi scientifique, je croyais revenir à ma formation de chimiste à l'université; l'image qui émergeait étai précise, méthodique, quasi grammaticale - mas, simultanément, ouverte à l'improvisation. (...) Il me fallut une année entière pour parvenir à l'organicité. (...) J'étais en train de découvrir les secrets de la mise en scéne à travers l'art de l'acteur.
25
foram compactadas num único volume, intitulado L’Analyse-Action24. No anexo desse
livro encontra-se o Dialogue avec les traducteurs, onde AV discute alguns significados
das palavras russas que não possuem correlação exata com as francesas. Esse é o ponto
de partida para uma reflexão semelhante, que parte da necessidade de encontrar os
correlatos entre as expressões e palavras da língua russa e as da língua portuguesa. Essa
abordagem se torna particularmente fecunda, pois a própria pedagogia de AV coloca para
o ator a necessidade de entender o pensamento por trás das palavras.
Ao discutir sobre essa tradução, AV salienta que a linguagem do livro
de Knebel é marcada pela repetição de ideias com palavras diferentes, possuindo,
portanto, um caráter reiterativo próprio da expressão pedagógica. A partir dessa
colocação, faz uma reflexão sobre o refinamento da linguagem teórica e a crueza da
prática teatral, citando o exemplo histórico de Jerzy Grotowski e Georges Banu sobre a
tradução do texto “O Performer” para o francês.
Grotowski literalmente arrancou o texto da mão do
tradutor e o forçou a remover todo o refinamento. Porque a teoria teatral não
se expressa, sobretudo, em uma linguagem refinada! Digamos que alguém
traduz entrevistas no rádio, etc., conferências, ou palestras. Tudo está bem.
Mas quando vamos para um curso intensivo prático para atores, para diretores,
exijo que a tradução seja grosseira, no idioma desajeitado do mestre artesão.
Caso contrário, a teoria não funciona25 (VASSÍLIEV, 2006, p. 302, tradução
própria).
AV salienta que a teoria tem uma função dentro da prática teatral e,
portanto, possui suas próprias formas de expressão. No caso da tradução do livro de
Knebel, essa linguagem pedagógica, ao se confrontar com o refinamento da língua
francesa, não deve ocultar ao longo dos sucessivos parágrafos a rudeza e o poético de
ambas26. A vida da prática pedagógica pode, desse modo, habitar na estrutura poética da
24 Primeira tradução para o francês desses dois livros de Maria Knebel realizada por Nicolas Struve, Sergueï Vladimirov e Stéphane Poliakov a partir de uma adaptação dos originais em russo feita por AV. A tradução brasileira, feita por Diego Moscovich e Marina Tenório, a partir dessa mesma versão francesa, ainda está no prelo. Como material de trabalho utilizo os originais em russo, além da tradução francesa (2006) e a espanhola (2003) como suporte nesse percurso de tentar, na medida do possível, trazer esses conceitos do trabalho prático pedagógico para o português. 25 Grotowski a littéralement extirpé le texte au traducteur et l'a forcé à enlever tout le raffinement. Pour que la théorie théâtrale ne s'exprime surtout par dans une langue raffinée! Disons que quelqu'un traduit pour la radio, etc., pour des conférences, des discours. Tout va bien. Mais dès que l'on passe à un cursus intensif de pratique pour les acteurs, pour les metteurs en scêne, j'exige que la traduction soit grossière, dans la langue maladroite du maître-artisan. Faute de quoi la théorie ne marche pas... 26 É importante salientar aqui, que Maria Knebel escreveu um livro intitulado A Poesia da Pedagogia (Поэзия педагогики) onde descreve a sua experiência como professora no GITS.
26
linguagem escrita. Com isso, AV (2006) aponta para a verdadeira substância teórica do
livro de Knebel: “a prática da teoria”. Para AV, não se trata de uma “teoria da prática”, o
que afasta o livro da qualidade de um manual sobre um método de trabalho, maneira como
ele é geralmente lido, para aproximá-lo de um exercício de reflexão viva e poética sobre
o conhecimento pedagógico em si. Esse conhecimento, que envolve a “prática teatral” e
a “prática da teoria” delineia “um processo de construção consciente” (JAEGER, 1995),
visando não apenas o desenvolvimento de capacidades técnicas, mas a formação do
artista, do espírito do ator e do diretor.
A primeira questão de tradução é a do próprio título da obra, L’Analyse-
Action, que também é usado para nomear o método de trabalho prático. No epílogo da
tradução francesa dos livros de Maria Knebel, AV afirma que não existem palavras
difíceis de serem traduzidas, mas a dificuldade se encontra em explicar as terminologias
russas carregadas de significados. Para o diretor, o sentido do termo “análise pela ação”
(действенный анализ) não é de fácil entendimento para os estudantes de teatro que têm
contato pela primeira vez com esse método.
O que é uma análise pela ação? Na época, quando eu era
um estudante, em 1968, durante o curso de direção, essa era a mesma questão:
Como fazer tudo isso? Mas durante a experiência do étude, você descobre que
a análise para a ação e análise pela ação é a mesma coisa, tudo se torna mais
claro e alegre. É como se fosse um tipo de jogo! Tortsov27 e seus alunos. Toda
a nossa terminologia, é de Tortsov. É engraçado e terrivelmente preciso! Você
entende? (...) Análise pela ação ou a ação que analisa, é o que isso significa!28
(VASSÍLIEV, 2006, p. 311, tradução própria).
A própria ação começa a analisar o texto, o personagem e os
acontecimentos da peça e do papel. AV (2006) salienta que a mentalidade cartesiana se
estrutura de maneira estática e trabalha a partir de constantes imóveis, ao contrário do
pensamento pedagógico e artístico apresentado nos livros por Stanislávski sobre o
27 Tortsov é a persona ficcional de Constantin Stanislavski em seus livros sobre o trabalho do ator. AV salienta aqui que a terminologia empregada na prática pedagógica e artística russa é oriunda dos livros que Stanislavski escreveu, onde ele ficcionalizou o processo pedagógico de alunos dentro de uma escola de teatro. Portanto, não são termos científicos, que recortem precisamente um objeto de estudo, mas palavras que servem a um propósito de criação artística, tanto no plano da criação dos romances, quanto na forma como se pode falar com os atores estudantes sobre seus processos de aprendizado. 28 Qu'est-ce qu'une analyse par action? A l'époque où j'étais étudiant en 1968, au cours de mise en scène, c'était la même question, Comment saisir tout ça? Mais lorsque dans l'expérience de étude, tu découvres que l'analyse pour l'action et l'analyse par l'action, c'est la même chose, tout devient plus clair et plus joyeux. C'est comme une sort de jeu! Tortsov et ses éléves. Toute notre terminologie, c'est du Tortsov. C'est comique et terriblement juste! Tu comprends? (...) L'analyse par l'action ou l'action qui analyse, voilà ce que ça signifie!
27
trabalho do ator. São duas diferentes formas de entender o que é análise, uma que tende
para o estático e a outra, do movimento. Na vida, diz AV (2006) não há nada estático,
tudo está em constante movimento e o teatro também está no fluxo da vida, com suas
transformações e mutações constantes. A análise no teatro não pode ser estática, deve ser
dinâmica e tentar captar esse fluxo, essa vida do “corpo humano” no palco. A análise
pela ação não é uma abordagem intelectual, mas um caminho para o ator entender
psicofisicamente o papel e a peça.
Quando o ator analisa, por exemplo, uma determinada cena de uma
peça, sua ação tem que ser exatamente igual àquela do trecho estudado, caso contrário
não será possível constatar a justeza da própria análise. Se o ator estuda um trecho no
papel onde existe uma declaração de amor de um dos personagens ao outro, sua ação não
pode ser, por exemplo, uma tentativa de assassinato; se num trecho do papel existe
reconciliação, a ação do ator será de reconciliação e assim por diante. Durante o étude, a
ação do ator precisa necessariamente ser orgânica e a mais autenticamente verdadeira
possível, para que se possa, assim, justapô-la a do papel e identificar nele a existência ou
não daquela ação. Cabe ao ator encontrar em si a consistência dessa ação e através dela
recriar o papel no palco. Sendo a imitação uma ação, ela pode servir para a análise quando
o papel também esteja numa situação de imitação, mas fora desse contexto o ator utiliza
no seu trabalho a ação autêntica. Sobre essa questão, AV também salienta a diferença
existente entre corpo artificial e natural no teatro russo, ao propor aos tradutores franceses
dos livros de Maria Knebel colocar o adjetivo humano junto à palavra corpo.
O homem no palco pode ser humano e desumano, você
entende? É isso, o teatro francês não sabe. Sempre que um ser humano entra
em cena, o teatro francês acha que já é um homem. Mas isto não é o caso. Ou
seja, entre o artificial e o natural, há no teatro russo uma grande diferença. No
teatro francês, não há diferença entre o artificial e o natural. No teatro russo,
o que nós apreciamos acima de tudo, é a verdade realista, artística, provável.
Este é um limite e toda a diferença!29 (VASSÍLIEV, 2006, p. 296, tradução
minha).
29 L'homme sur scène peut être humain et inhumain, tu comprends? Et ça, le théâtre français ne le sait pas. A chaque fois qu'un être humain entre sur scène, le théâtre français s'imagine que c'est déjà un homme. Mais ce n'est pas le cas. C'est-à-dire qu'entre l'artificiel et le naturel, il y a dans le théâtre russe une très grande différence. Dans le théâtre français, il n'y a aucune différence entre l'articiel et le naturel. Dans le théâtre russe, ce que l'on apprécie par-dessus tout, c'est la vérité réaliste, artistique, vraisemblable. C'est là une limite et tout la différence!
28
Ao explicar esses dois conceitos, artificial e natural, AV afirma que
não se trata de realizar movimentos naturais em cena, mas do artificial encontrar, através
do corpo humano, a sua vida no palco.
O ator no palco pode assumir qualquer forma, digamos
inumana, qualquer que seja... Mas deve preencher esta forma inumana de uma
natureza humana. Humanizar a artificialidade. Todos os exercícios e todos os
études são desenvolvidos com base nisso e é certo. Este é um processo
especifico. Como conseguir isso. Esta é a maneira. Se a questão da vida do
espírito, a vida do corpo é deixada sem uma resposta "humana", ela estará
perdida para sempre. Esse é o problema! É o de ser humano no palco30
(VASSÍLIEV, 2006, p. 297, tradução minha).
Esse problema da natureza humana está ligado, para AV, à questão do
nascimento do movimento, ou seja, de como o corpo constrói seu movimento, como ele
permite que a vibração o transpasse, como transmite a energia. A medida dessa natureza
humana é dada pelo próprio homem: “o homem é que possui a medida, a medida de tudo
o que é cênico” (VASSÍLIEV, 2006, p. 305). E se o artista tiver os olhos da alma
treinados, tudo isso é visível (VASSÍLIEV, 2006). AV define três canais ou vetores
(POLIAKOV, 2006) para a atuação: o físico, o psíquico e o verbal.
Estas são três palavras essenciais. Isso porque, ao nosso
redor, tudo é ou psíquico ou físico ou verbal. Neste caso, os dois pequenos
livros de Knebel são dedicados ao teatro realista, ou melhor, a ultrapassagem
do conservadorismo do teatro realista. Isso é evidente. Nestes livros se
estudam o princípio físico. E o princípio verbal, como um princípio metafísico
de onde provêm todos os outros princípios31 (VASSÍLIEV, 2006, p.299,
tradução própria).
Existe uma importante diferenciação a ser apontada, ligada à questão
dos vetores, entre ‘sentimento’ (чувство) e ‘sentir a si mesmo’ (самочувствие32). O
‘sentimento’ é estático e o ‘sentir a si mesmo’ é dinâmico. É comum usarmos, no dia-a-
30 L'acteur sur scêne peut prendre n'importe quelle forme, disons inhumaine, n'importe laquelle... Mas il doit remplir cette forme inhumaine d'un naturel humain. humaniser l'artificialité. Tous les exercices et toutes les études sont mis au point en fonction de cela et c'est juste. C'est un processus sécifique. Comment atteindre cela. C'est le chemin. Si la question de la vie de l'esprit, de la vie du corps est laissée sans réponse "humaine", elle est perdue sans retour. Voilà le problème! Il s'agit de l'être humain sur scène. 31 Ce sont trois noms essentiels. Voilà pourquoi, autour de nous, tout est soit psychique, soit physique, soit verbal. En l'occurrence, les deux petits livres de Knebel sont consacrés au théâtre réaliste ou au dépassement du conservatisme du théâtre réaliste. Ça, c'est clair. Ils étudient le principe physique. Et le principe verbal, comme principe métaphysique dont provient tout autre principe. 32 Conforme Marina Tenório e Diego Moschkovich, a palavra foi traduzida por “sentir-a-si-mesmo” para a primeira tradução do livro L’Analyse-action de Knebel para o português, pela Editora 34, sem data prevista de lançamento.
29
dia, a expressão “eu sinto”, mas AV (2006) salienta que quando eu a uso estou na verdade
contando, narrando uma sensação que eu já tive de mim mesmo. A operação é de fixar o
sentimento, o que é impossível de fazer com ‘sensação de si mesmo’, por que ela é um
tipo de processo, de sentimento em movimento, de nascimento. AV afirma que esse é um
dos fundamentos da tradição teatral russa iniciada por Stanislávski e que o Teatro de Arte
de Moscou33 (MXAT) tinha como lema a luta contra o “teatro dos sentimentos”,
sentimental e melodramático. Por isso, a palavra ‘sensação de si mesmo’ “designa um
processo contrário ao sentimento” (VASSÍLIEV, 2006, p. 305), mas, por outro lado, o
‘sentimento’ só é um resultado da ‘sensação de si mesmo’, quando este é um processo.
Quando há movimento: é como se fosse um oceano
dinâmico de vivências em movimento [переживание], com ondas de sentires-
a-si-mesmo em constante movimento34. (VASSÍLIEV, 2006, p. 306, tradução
Marina Tenório e Diego Moschkovich).
E por fim, o termo pieriegivaniie, traduzido em inglês como
Experiencing35, em espanhol, vivencia e em português, vivência, ou como afirma Jean
Benedetti (2007), como identificação emocional, o que, conforme AV é um grande erro
teórico, porque o termo não se refere aos sentimentos.
Pieriegivaniie, este é um tipo de substância na qual a
‘sensação de si mesmo’ e a ação são fundidas uma na outra (VASSÍLIEV,
2006, p. 312, tradução própria).
O conceito de Pieriegivaniie abarca a ‘sensação de si’ (самочувствие)
com a ação (действие). A Pieriegivaniie pode surgir a partir da ‘sensação de si mesmo’
acompanhada pela ação, ou ao contrário. AV propõe traduzir o termo por ‘vie éprouvée’
(experiência do vivo36) para dar a ele uma imagem viva, dinâmica, não estática, mas de
processo.
1.1.1. O Método do Étude: a perspectiva do ator e a perspectiva do papel
33 À tradução de Московский Художественный, numa tradução literal, Teatro Artístico Moscovita (MXAT), opto por utilizar a tradução consagrada em língua portuguesa. 34 Quand il y a du mouvement: on dirait un océan mouvant de sensations éprouvées (Pieriegivaniie) avec une vague de sensation de si en perpétuel mouvement. 35 “To compound the confusion, the term perezhivanie (experiencing) was commonly translated as ‘emotional identification’. (BENEDETTI,2007, p. xxi) 36 Conforme tradução de Diego Moscovich e Marina Tenório, em tradução do livro L’Analyse-action a ser lançado no Brasil, pela Editora 34, em junho de 2015.
30
As teorias de Stanislávski, afirma Maria Knebel (2006), “são
fundamentais no processo de transformação37 cênica do ator no personagem dramático38”
(p. 136).
Stanislávski afirma que o processo de criação através do
qual o ator se transforma em personagem é fundamentalmente dialético. Ele
desenvolve esta tese através da teoria das duas perspectivas: a perspectiva do
ator e a perspectiva do papel39. (KNEBEL, 2006, p. 136, tradução própria)
E acrescenta,
Eu, como ator, sei tudo o que vai acontecer com meu
personagem ao longo da obra, mais o personagem não conhece o seu futuro40.
(KNEBEL, 2006, p. 136, tradução própria)
A síntese dialética dessa relação não ocorre se o ator impõe a sua
personalidade ao personagem dramático ou, ao contrário, se pretende recriar no palco
uma cópia fiel do personagem produzido pela imaginação do dramaturgo. Sobre essa
questão, temos um pequeno bilhete escrito por Stanislávski para Nemiróvich-
Dántchenko, pouco antes de ser retirado do papel de Rostánev na encenação de A Aldeia
de Stiepantchikov41:
De mim e Rostánev de Dostoievski não pode nascer o
próprio Rostánev, mas o nosso filho comum que em muitos aspectos lembrará
tanto a mãe quanto o pai. Mas Nemiróvich exige, bem como todos os
escritores, que o pai e a mãe deem à luz o segundo pai ou a segunda mãe,
idênticos. Mas para que gerá-los, se eles já existem? Eu só posso criar
Rostánev-Stanislávski ou, na pior das hipóteses, Stanislávski-Rostánev. Mas
um Rostánev sozinho vamos deixar para ser criado por críticos literários. Ele
será tão morto, como seus artigos. Talvez não seja exatamente aquilo, mas
será vivo e isso é melhor do que exatamente aquilo, mas morto. (Stanislávski
apud ZINGUERMAN, 2011, p. 16)
As duas perspectivas, do ator e do papel, são divergentes, o que não
permite que haja similaridade e contiguidade absoluta entre eles, mas é justamente aí,
nessa diferença e nessa distância que se instala o processo criativo de transformação do
37 Перевоплощения (perevoploscenie): literalmente encarnação. Na tradução francesa, transformation e na espanhola, transformación. 38 является основополагающим в процессе перевоплощения актера в драматический образ. 39 Stanislavski afirme que le processos de création par lequel l’acteur se transforme dans le personnage est fondamentalment dialectique. Il développe cette thèse à travers la théorie des deux perspectives: la perspective de l’acteur et la perspective du rôle. 40 Em tant qu’acteur, je sai tout ce qui va se passer avec mon personnage dans la pièce, mais le personnage ne connaïte pas son prope avenir. 41 Adaptação teatral do romance homônimo de Fiódor Dostoiévski, realizada pelo Teatro de Arte de Moscou em 1919, com direção de Nemiróvich-Dántchenko.
31
ator no personagem. Sem essa distância, o próprio processo criativo do ator fica
comprometido, sendo isto o que exemplifica o bilhete de Stanislávski a Nemiróvich-
Dántchenko, acima citado. Esse entendimento, de que o processo criativo do ator passa
por uma relação dialética com o papel será importante no desenvolvimento da pedagogia
metafisica de AV e na escolha dos diálogos platônicos e hexâmetros homéricos como seu
fundamento.
A encenação de A Aldeia de Stiepantchikov em 1919, foi a última
participação de Stanislávski como ator no Teatro de Arte de Moscou, depois disso ele
passou a se dedicar mais fortemente ao desenvolvimento de suas pesquisas sobre a
pedagogia do ator, que culminam com a criação, em 1935, do Estúdio de Ópera e Drama.
1.1.2. Princípios gerais da análise pela ação por Maria Knebel
No capítulo “Princípios gerais da análise pela ação”, do livro
L’Analyse-Action, Maria Knebel (2006, p. 41 a p. 53) aponta três premissas principais
que levaram Stanislávski a criar um novo método de trabalho e pedagogia para o ator.
1 - a passividade do ator no seu processo criativo durante os ensaios;
2 – a separação entre o aspecto físico e psíquico do ator;
3 – a importância da fala no trabalho do ator.
Stanislávski percebeu que durante “os ensaios de mesa”42, o ator
geralmente se colocava numa posição de passividade frente ao dramaturgo e ao diretor da
peça. Knebel (2006) salienta que Stanislávski declarou uma guerra contra a passividade
do ator, onde quer que ela se manifestasse, seja no trabalho sobre o papel, nos ensaios, na
elaboração do espetáculo ou durante as apresentações. O objetivo de Stanislávski era
possibilitar que o trabalho criativo do ator alcançasse o mesmo patamar do escritor e do
diretor. Assim, no método de análise pela ação, o ator não deve iniciar a criação do papel
decorando o texto, mas sim por recriar a ação da peça através de suas próprias ações
físicas e palavras43.
42 Ensaio de mesa é, no Teatro de Arte de Moscou, a primeira etapa para a montagem de uma peça. Trata-se de leituras do texto dramático pelos atores, onde são exploradas as concepções de personagem, ação e da encenação. 43 O ator não decora o texto e durante os ensaios improvisa o sentido geral do texto com suas próprias palavras.
32
A passividade do ator é a falta de autonomia, a rotina de
dependência frente ao pedagogo e dependência completa, de escravo, frente
ao diretor e, geralmente, frente a qualquer um que proponha. Ou seja, uma
submissão de executante, de acordo com as regras, como um soldado da parte
de um ator-funcionário e uma passividade artística crescente. Não é nem
mesmo uma neutralidade, mas simplesmente uma preguiça artística, uma
indiferença vital, você entende?... Quando Knebel fala de atividade, ela quer
falar sobre a atividade que é própria da criação. E, finalmente, trata-se de uma
atividade artística. Neste caso, a capacidade criativa, você sabe... A atividade
criativa do ator44 (VASSÍLIEV, 2006, p. 300, tradução própria).
AV salienta, também, que Stanislávski, como relatado no livro por
Knebel, não somente equipara a posição do ator com a do diretor, mas vai além, ao propor
cambiar as funções de ambos durante a primeira fase dos ensaios. Nesse primeiro
momento, o papel do ator aumenta de importância, assumindo uma função ativa,
enquanto o diretor passa a uma posição passiva. Na prática, durante essa primeira etapa
dos ensaios, reduz-se a importância e o trabalho do diretor na condução do processo
artístico, tornando-se necessário que o ator seja proativo desde o início. No entanto, AV
lembra que apesar da proposta pedagógica de Stanislávski, esse problema da passividade
ainda persiste, porque o ator precisa investir uma quantidade grande de energia para se
manter “ativo” (активно)45 durante a maior parte do processo de ensaio. Esse estado exige
do ator um ritmo e uma tensão constantes, que o tornam psiquicamente desconfortável e,
finalmente, essa atitude ativa contradiz a imagem habitual que os intérpretes têm deles
mesmos no teatro, como livres artistas criadores (VASSÍLIEV, 2006).
Tudo começa por um trabalho aplicado, pelos trainings.
Os estudantes, atores ou diretores, começam a faltar aos trainings, a chegarem
atrasados, a não irem mais. Eles encontram pretextos engenhosos. E, no final,
uma pessoa que tinha uma capacidade mediana, de repente se torna alguém
que tem uma capacidade importante e quem, à primeira vista, parecia ter
recursos muito significativos, estes, rapidamente se tornam inexistentes46
(VASSÍLIEV, 2006, p. 302, tradução própria).
44 La passivité de l'acteur, c'est l'absence d'autonomie, une dépendance routinière vis-à-vis du pedagogue et une dépendance complète, d'esclave, vis-à-vis du metteur en scène et en général vis-à-vis de celui qui propose. C'est-à-dire une soumission d'exécutant, selon le règlement, comme un soldat de la part d'un acteur-fonctionnaire et une passivité artistique croissante. Même pas une neutralité, mais simplement une paresse artistique, une indifférence vitale, tu comprends? Quand Knebel parle d'activité, elle veut parler de l'activité qui est propre de la création. Et en définitive, il s'agite d'une activité artistique. Dans ce cas, d'une capacité créative, comment dire... D'une activité créatrice de l'acteur. 45 AV faz diferença entre активно (actif em francês, ativo) e действйтельно (agissant em francês, atuante) 46 Tout commence par un travail appliqué, par les trainings. Les élèves, comédiens ou metteurs en scène, commencent à manquer les trainings, à être en retard, à ne pas y aller. Ils trouvent des prétextes ingénieux. Et en fin de compte, une personne qui a des capacités très moyennes devient tout à coup quelqu'un qui a des capacités très importantes et une autre qui, au premier regard, semblant avoir des capacités trés importantes devient rapidement inexistante.
33
A segunda premissa de Stanislávski era de que o método, além de exigir
do ator uma participação ativa no processo de encenação, também se propunha a resolver
um segundo problema gerado pelo ensaio de mesa: a dissociação dos aspectos físicos e
psíquicos do ator, no sentido de que se ficava muito tempo sentado discutindo
teoricamente as características do personagem sem pô-las em prática. Antes mesmo de
decorar o texto o ator já pode ir para cena e trabalhar a linha de ações físicas do
personagem ou da situação dramática da peça.
A terceira, “e talvez mais importante” premissa que impulsionou
Stanislávski na criação da análise pela ação foi a importância primordial que ele dava à
fala em cena (KNEBEL, 2006). O hábito, por parte do ator, de decorar mecanicamente
as suas falas produzia a fixação de intenções e inflexões difíceis de serem modificadas
posteriormente. Para Stanislávski, o trabalho com o texto do autor em cena era de
primordial importância, não podendo ser reduzido a uma função meramente mecânica:
Stanislávski pensava que a ação verbal é a ação principal
do espetáculo, via nela o veículo fundamental para a encarnação das ideias do
autor. Cuidava para que em cena, do mesmo modo que na vida, a palavra
estivesse indissoluvelmente unida às ideias, objetivos e ações do
personagem.47 (KNEBEL, 1959, p. 7, tradução própria).
Para Stanislávski, é importante que o ator use as suas próprias palavras
no processo de criação do personagem. Esse processo é semelhante ao que acontece na
vida cotidiana, onde uma mesma ideia pode ser expressa de diferentes maneiras. O ator,
no processo inicial da análise ativa, também pode utilizar as suas próprias palavras para
expressar as ideias do autor, sem ter que memorizá-las (KNEBEL, 2006).
Stanislávski concluiu que o ator pode chegar à palavra viva
somente como resultado de um intenso trabalho preparatório, que o leve a
necessitar das palavras do autor como algo imprescindível para expressar as
suas ideias. Qualquer memorização mecânica do texto leva ao fato de que o
ator, nas palavras de Stanislávski, ‘senta-se sobre os músculos da língua’, ou
seja, converte seu trabalho em clichês, em algo morto. No início do trabalho,
segundo a ideia de Stanislávski, os atores precisam das palavras escritas pelo
47 Он считал словесное действие главным действием в спектакле, видел в нем основной способ воплощения авторской идеи. Он стремился к тому, чтобы на сцене, как в жизни, слово было неразрывно связано с мыслями, задачами и действиями образа.
34
autor não para serem decoradas, mas para descobrir nelas as ideias depositadas
pelo autor.48 (KNEBEL, 1959, p. 8, tradução própria).
Após a morte de Stanislávski, Maria Knebel continuou desenvolvendo
o método de análise através da ação que passou então a ser entendido como o estudo da
ação, tanto no âmbito do texto dramático, como no do trabalho do ator (RASKINA, 2000,
p. 17). Com o étude, o ator forma em sua mente um mapa muito preciso da ação, que o
possibilita agir, sem necessariamente estar com o texto decorado. Nesse sentido, o étude
difere da livre improvisação, pois enquanto naquela a improvisação é dentro de uma
estrutura, esta última se desenvolve criando uma estrutura.
O resultado superou as expectativas. Os atores se
apaixonaram pelos études. Eles aprendem com entusiasmo as sutilezas dessa
nova abordagem. O essencial torna-se claro: o novo método é vivificante para
o teatro. O método não só libera a improvisação natural dos atores, mas revela
a sua personalidade, removendo a poeira que cobre as peças de teatro que se
tornaram antológicas, mas o método transforma a vida do coletivo de forma
incomparável49. (SHAPIRO, 2006, p. 29)
A crítica Polina Bogdanova (2012) também concorda que o Método de
Análise por Ação renovou o panorama teatral soviético na década de sessenta. Entre os
encenadores que se destacam nesse período estão: Anatoli Efros50, Oleg Efremov51, G.
Tovstonogov52, entre outros. No método do étude, Maria Knebel vai sintetizar as
48 Станиславский пришел к убеждению, что актер может прийти к живому слову только в результате большой подготовительной работы, которая и подведет его к тому, что авторские слова сделаются ему необходимыми для выражения мыслей действующего лица. Всякое же механическое запоминание текста приводит к тому, что он, по выражению Константина Сергеевича, «садится на мускул языка», то есть штампуется, становится мертвым. В начале работы, по мысли Станиславского, авторские слова нужны актеру не для заучивания, а для познания заложенных в авторском тексте мыслей. 49 Le résultat dépasse ses attentes. Les acteurs se passionnent pour les etjudi. Ils apprennent avec enthousiasme les finesses de cette nouvelle approche. L’essencial devient clair: la nouvelle méthode est vivificante pour le théâtre. Non seulement ele libère l’improvisation naturelle des acteurs, découvre leur personnalité, enlevant la poussière qui recouvre des pièces de théâtre devenues des morceaux d'anthologie, mais la méthode transforme la vie du collectif de façon incomparable. 50 Anatoli Efros (1925-1987), encenador e pedagogo, sem sombra de dúvida um dos maiores encenadores russo do pós-guerra, está entre os mais inovadores. 51 Oleg Efremov (1927-2000), ator, encenador, fundador do Teatro Sovremennik, tornou-se em 1970 diretor artístico do Teatro de Arte de Moscou. Ele e seu grupo encarnaram as renovações teatrais dos anos 1950-1960. 52 Gueórgui Tovstonógov (1915-1989), encenador russo de renome internacional, discípulo da tradição stanislavskiana, é considerado um dos maiores nomes do teatro do século XX. Foi diretor artístico do Teatro Bolchói Dramatítcheski (BDT), em São Petersburgo.
35
principais influências artísticas que sofreu de Constantin Stanislávski53, Vladimir
Némirovitch-Dántchenko54 e Mikhail Tchékhov55.
1.2. Metamorfoses teóricas e práticas do Étude, na perspectiva de Anatóli Vassíliev
A partir do capítulo “Texto literário e Improvisação”, do livro A un
unico lettore, de 1993, aponto as principais transformações operadas por AV na teoria da
prática do étude, como processo de configuração teórica de sua pedagogia metafísica.
Num segundo momento, procuro trazer a conceituação teórica de AV sobre as estruturas,
lúdica e psicológica, do texto literário, a partir dos quais opera o processo de pedagogia
do ator como uma Paideia.
1.2.1. As variantes de Anatóli Vassíliev à prática do Étude
Para AV, o étude possui quatro variantes básicas que marcam a
progressiva valorização da utilização da livre criação do ator durante no seu processo
pedagógico. Dessas quatro, a primeira se refere ao étude como ensinado por Maria Knebel
e as outras três são variantes experimentadas pelo próprio AV ao longo de seu percurso
artístico-pedagógico.
A variante clássica, uma primeira mudança, uma
modificação ulterior, e depois a forma adotada por mim, tendo-o
transformado em improvisação. E então, eu começo com o étude e
termino com a cognição da improvisação56. (VASSÍLIEV, 1993, p. 346,
tradução própria).
53 Stanislávski, em março de 1936, convida Maria Knebel para ser professora de “Fala Cênica” no seu último Estúdio. 54 Vladimir Nemirovitch-Dantchenko (1858-1943) foi escritor, encenador, fundador e codiretor do Teatro de Arte de Moscou, com Stanislávski. Toda a história do TAM é marcada pelas relações difíceis entre esses dois diretores. Menos conhecido do que Stanislávski fora da Rússia, Dantchenko deixou uma herança teórica e uma obra muito importantes. Maria Knebel foi sua assistente e atriz em muitas produções no TAM. Em 1966, ela escreveu um livro A Escola da Encenação de Nemirovitch-Dantchenko, considerado por Adolf Shapiro (2006) o melhor livro sobre esse importante artista. 55 Maria Knebel estudou no Estúdio de Mikhail Tchékhov, onde desenvolveu o interesse pela improvisação, técnica que interessava Stanislávski porque permitia ao ator entrar no estado criativo (самочувствия). Grande parte das aulas de M. Tchékhov eram dedicadas aos études-improvisações (KNEBEL, 2006). 56 “la variante classica, un primo cambiamento, un ulteriore mutamento, e poi la maniera in cui lo adotto io, avendolo trasformato in improvvisazione. E quindi comincio con l'etjud e finisco con la cognizione di improvvisazione”.
36
Na variante clássica ou analítica, os atores, juntamente com o diretor-
pedagogo57, analisam a cena a ser estudada a partir de três pontos: o começo, o ápice e o
final. Esses três pontos dizem respeito tanto ao texto literário quanto à improvisação do
ator. Após uma leitura e uma breve discussão que dura em torno de quinze a trinta
minutos, os atores irão para o palco improvisar58 o que foi previamente combinado. Ao
final desse processo, o diretor-pedagogo aponta os desvios dos acordos pré-estabelecidos
e o étude pode ser feito mais uma ou duas vezes mais e depois se passa para outra cena,
e assim sucessivamente até o final da peça.
O verdadeiro objetivo do étude, aquilo que efetivamente
desenvolve, mesmo que imperceptivelmente, é fornecer ao ator um processo
de jogo que permite tornar seu jogo cênico natural, consequente, gradativo,
que se manifesta hic et nunc; transportando seu jogo cênico do tempo passado
(que é um tempo do tipo narrativo) para o tempo presente (VASSÍLIEV, 1993,
p. 348, tradução própria).
O que AV denomina de segunda variante do método do étude é que,
durante a discussão, os acordos se estabeleçam unicamente sobre os dois primeiros
pontos, o começo e o ápice, e que o final seja deixado em aberto para que os atores
improvisem livremente. Nessa variante do étude, somente o final, não é previamente
determinado entre o diretor-pedagogo e os atores, que ficam livres na proposição de ações
em cena nesse trecho determinado da peça, podendo mesmo sugerir um final alternativo
ao proposto pelo texto dramatúrgico. Entre o ápice e o fim da peça “o ator tem plena
liberdade de invenção, pois nos outros pontos regidos pelo intelecto, essa liberdade é
restringida”. (VASSÍLIEV, 1993, p. 350)
Na terceira variante, que é uma extensão da segunda, AV amplia o
alcance da liberdade de criação dos atores, abolindo os acordos prévios sobre o ápice e o
final. Agora, o diretor não mais indica “o que é que o ator deve fazer”. É o próprio ator
quem deve encontrar a motivação para desenvolver a ação a partir do começo da cena.
Assim, o fundamental nessa versão é que o começo seja bem elaborado pelo ator e pelo
diretor-pedagogo e contenha o impulso exato e concreto, que motive a sua ação. Esse
57 Opto por não diferenciar a prática do étude enquanto recurso pedagógico e processo de encenação, mesmo que o próprio AV saliente a diferença entre ambos, pois busco, neste momento, apreender teoricamente o processo de transformação operado por AV nessa ferramenta pedagógica e de encenação que é o étude. 58 O étude, diferentemente de uma livre citação, demarca os limites para o ator e a sua ação é organizada. O étude não é uma improvisação de uma estrutura, mas é a improvisação de uma estrutura dramática analisada (RASKINA, 2000, p. 17).
37
impulso para a ação não é procurado somente nas “circunstâncias propostas” no começo,
mas o ator é incentivado a fantasiar, a buscar na sua imaginação, os “movimentos capazes
de fazer nascer a ação da cena” (VASSÍLIEV, 1993).
Finalmente, na quarta e última variante, AV não fala sobre ação, mas
sobre composição.
Os atores comigo não interpretam mais papeis; percorrem
uma composição. Eles concebem o papel do personagem apenas como parte
do desenho compositivo geral. São obrigados a sentir todas as partes da
composição, mesmo que ela não seja composta apenas de duas ou três partes,
mas sim de oito, dez, doze; eles têm que sentir todas, independentemente de
quantas sejam. São indicados o momento de partida e o escopo; isso é
indispensável. Depois disso, o ator é convidado a agir. Ou seja, a encontrar
uma saída sozinho. Encontrada a saída do acontecimento de partida, o ator é
completamente livre para se comportar como quiser. Nada o deve constranger:
nem as exigências do encenador do espetáculo, nem a obrigação de respeitar
o autor; deve compor sozinho o texto da ação: inventar as palavras e inventar
as ações. (VASSÍLIEV, 1993, p. 355, tradução Papoula Bicalho e Matilde
Biadi)
No capítulo intitulado “Composição do desempenho” do seu livro Para
o ator (2010), Mikhail Tchékhov aponta que existem três leis compositivas importantes
para o diretor, mas que o ator deve dominar para que se aproximem as suas diferentes
“psicologias” artísticas. São elas, a lei da triplicidade, da polaridade e da transformação.
A lei da triplicidade indica que todo o enredo de uma peça de teatro passa por três
diferentes momentos, ele nasce, desenvolve-se e termina. A lei da polaridade afirma que
em qualquer peça o começo e o fim devem ser polares em princípio, ou seja, que “todas
as principais qualidades da primeira seção devem transformar-se em seus opostos na
última seção” (TCHÉKHOV, 2010, p. 120). A terceira e última, a da transformação
ensina que “o processo que transforma o começo em sua polaridade no final tem lugar na
sessão intermédia” (TCHÉKHOV, 2010, p. 121). M. Tchékhov afirma que a observação
dessas três leis inter-relacionadas proporciona beleza e harmonia estéticas ao
desempenho.
Na proposta pedagógica de AV, “os atores não agem em termos
tradicionais, mas criam uma composição”, o que significa que eles não se voltam para a
construção do personagem, mas para o estudo da composição do texto. Essa mudança de
ênfase, se relaciona com aquela premissa de Stanislávski, à época da criação do método
do étude, “de liberar a iniciativa do ator” e de buscar o caminho para fazer com que o
trabalho do ator deixe de ser uma arte de executante, para se tornar uma arte de autor.
Para isso será necessário que o ator se torne capaz de gerir e compreender todas as leis da
38
arte de composição de um drama, distinguir os limites, volumes, marcos e territórios desse
tipo de criação. AV é adepto de um teatro que possui uma gramática e leis de organização
artística, na base das quais o teatro vive e segue se desenvolvendo.
O conceito de composição na pedagogia de AV tem como modelo o de
Mikhail Tchékhov, para quem “cada arte esforça-se constantemente para assemelhar-se à
música” (2010).
Os mesmos princípios fundamentais que regem o universo
e a vida na terra e do homem, e os princípios que conferem harmonia e ritmo
à música, à poesia e à arquitetura, englobam também as Leis de Composição,
as quais, em maior ou menor grau, podem ser aplicadas a todo e qualquer
desemprenho dramático. (CHEKHOV, 2010, p. 119)
A organização narrativa da dramaturgia clássica se dá através de alguns
elementos como, por exemplo, exposição, nó, desenlace, obstáculo. Os fenômenos de
enquadramento da fábula também estão entre os elementos compositivos, como o de
fechamento ou abertura, mudança de perspectiva e de foco (PAVIS, 2001). A composição
dramatúrgica é, portanto uma determinada organização de seu conteúdo e de sua forma.
O desenvolvimento, mais aprofundado do tema da composição
associado a formação do ator será feito no capítulo 2. No momento quero destacar, que
está variante de AV se configura como importante passo na pedagogia metafisica de AV,
porque propõe que o ator inicie seu processo criativo, não pelo papel, que determina um
único ponto de vista dentro da trama, mas pela composição, que estrutura os diversos
pontos de vista. Aqui a perspectiva do ator começa a ganhar uma dimensão artística maior
e isso abre caminho para que surge a questão da sua formação, entendida não apenas
como uma coleção de técnicas, mas como formação humana.
1.2.2. Definição de estrutura psicológica e lúdica no texto literário
A partir dos elementos desenvolvidos durante a elaboração do seu
processo pedagógico, AV classificou aos textos dramáticos em três diferentes estruturas:
psicológica, lúdica e mista. Defende a ideia, como acima afirmado, de que existem dois
tipos de textos literários que correspondem a dois estilos de atuação e um terceiro que
mistura as duas anteriores, que denomina de “estruturas mistas”. Nos textos com estrutura
psicológica, que em geral correspondem ao drama realista do século XIX, “o homem
estuda a si mesmo através de seus sentimentos” (Lupo, 2006):
39
Estrutura psicológica
Eu vou desenhar um homem. (Figura 1) Ele está só (a)
numa situação (b). [...] Quando atuamos, nós nos percebemos em alguma coisa
- uma situação, por exemplo. Eu desenharei agora outro homem (c), que
também se percebe dentro da mesma situação (d). E ambos se encontram no
interior da mesma situação (e), a qual eles têm em comum, mas cada
participante percebe, sente, como um antagonismo. É o psiquismo dos atores
e personagens que o faz agir e realizar suas ações. Neste caso, estamos nos
sistemas psicológicos. [...] Porque os personagens estão cercados pela
situação, estão dentro dela. Seus sentimentos, percebem o seu psiquismo e é
através dele que se comunicam, reagem, interagem. Tudo é totalmente
localizado na esfera psíquica. Eles pronunciam palavras? Sim. Mas não é nas
palavras que estão as ações. Este momento é muito importante (VASSÍLIEV,
1997, p. 43-44. Tradução própria)59.
(Figura 1 – Desenho de Anatóli Vassíliev)
A técnica da arte psicológica se alimenta principalmente
do sentimento do ator, da sua psique: essa é a matéria de seu papel. E ação,
ação cênica, vive no interior da sua psique e do seu sentimento. Esta é a
característica estrutural do teatro psicológico. Quando se fala o texto do autor,
isso não significa que a ação seja motivada por ele: as palavras do autor,
mesmo as mais importantes, como um instrumento musical, não fazem mais
do que acompanhar o sentimento do ator. A textura teatral se constitui no
desenvolvimento dos comportamentos psíquicos. E mesmo as palavras de
gênio do autor vêm reforçar ou preceder as experiências emocionais dos
59 Je vais dessiner um homme. (voir figure 1) Il est seul (a) dans une situation (b). [...] Quando n joue, on se perçoit dans quelque chose – une situation par exemple. Je dessine maintenant um autre homme (c); qui lui aussi se perçoità l’intérieur d’une même situation (d). Et tous les deux, ils se trouvent à l’intérieur de une même situation (e), dont ils est commune, mais chacun des participants la perçoit, l’éprouve, dans um antagonisme. C’est le psychisme des acteurs et des personnages qui les fait agir, accomplir leurs actions. Nous sommes ici dans les systèmes psychologiques. [...] Parce que les personnages sont entoures par la situation, ils sont à intérieur. Leurs sentiments, leur psychisme la perçoivent, c’est par lui qu’ils communiquent, réagissent, échangent. Tout est entièrement situe dans la sphère psuchique. Prononcent-ils des paroles? Oui. Mais ce n’est pas dans les mots que se situent les actions. Ce moment est très importante. (VASSÍLIEV, 1997, p. 43-44)
40
atores. Pode-se trabalhar muito no texto, mas o objetivo é sempre esculpir os
sentimentos (VASSÍLIEV, 1999, p. 186)60
A relação do ator com esse tipo de texto é, portanto, de estudo do
psiquismo humano, e sua técnica se constitui no uso da memória, da imaginação, das suas
reações psicofísicas para a construção do personagem. Stanislávski denominou esse
conjunto de procedimentos de psicotécnica do ator. O mesmo processo investigativo do
dramaturgo na construção de um personagem com caraterísticas mais realistas é, também,
realizado pelo ator na criação do seu papel, como se sabe.
Estrutura Lúdica
Eu desenho outro homem. Eu o coloco em outra relação
com a situação. Veja você, o homem que estava dentro do ovo, da casca, agora
está fora: o ovo - a situação - é projetado para fora dele. [...] Olhe! (Figura 2)
(Figura 2 – Desenho de Anatóli Vassíliev)
Neste caso, o espaço entre o eu do personagem e o eu do
ator (chamado: persona) é mais sensível. [...] Aqui está o ator, e o que está
diante dele, não chamo de "personagem", mas sim de "núcleo", de emoções
concentradas para onde o ator é atraído, que o influencia. O centro do jogo é
movido, projetado, e isso é para ele um sentimento muito real: ele e o que ele
60 La technique de l’art psychologique se nourrit avant tout du sentimento de l’acteur, de son psychisme: c’est le matéria du rôle. Et l’action, l’action théâtrale, vit à l’intérieur de ce psychisme et de ce sentimento. Voilà la particularité structurelle du théâtre psychologique. Quando on parle du texte d’um auteur, cela ne signifie pas que nous agissons par lui: les paroles de l’auteur, même le plus grand, comme um instrument de musique, ne fond qu’accompagner nos sentiments. Le texture théâtrale est constituée du déroulement des comportements psychiques. Et même les paroles de génie de l’auteur viennent conforter ou preceder notre vécu émotionnel. On peut beaucoup travailler un texte, le but est toujours de ciseler nos sentiments. (VASSÍLIEV, 1999, P. 186)
41
joga estão distanciados, afastados61 (VASSÍLIEV, 1999, p 53. Tradução
própria).
O estudioso Stéphane Poliakov relaciona as estruturas com as
perspectivas do ator:
As estruturas psicológica e lúdica estão presentes no modo
como é escrita a dramaturgia e no modo como é interpretado pelo ator, elas
referem-se à composição da obra em si e ao jogo do ator, segundo as duas
perspectivas: simples ou invertida. Na estrutura psicológica, o ator é parte da
situação onde atua. Na estrutura lúdica, o objeto do jogo está localizado fora
dele, no acontecimento principal62. Ele próprio não é apanhado na situação.
Vassíliev distingue igualmente uma estrutura mista que mescla, sem
confundir, os dois tipos de estruturas63 (POLIAKOV, 2006, p.151. Tradução
própria).
1.3. Os primeiros espetáculos de Anatóli Vassíliev, de 1973 a 1987
A crítica Polina Bogdanova (2012), costuma dividir a carreira de AV
em duas fases, uma psicológica e outra lúdica. Na fase psicológica estão incluídos os seus
primeiros espetáculos de 1973 até 1986, e a segunda é marcada pela criação do Teatro-
Escola de Arte Dramática em 1987. Da fase psicológica são analisados aqui os
espetáculos Vassa Zheleznova - primeira versão de Máximo Gorki, A filha adulta de um
jovem e Cerceau de Victor Slavkin e finalmente do início da fase lúdica Seis personagens
a procura de um autor de Pirandello.
1.3.1. Máximo Gorki, Vassa Zheleznova - primeira versão
61 Je dessine um autre homme. Je le place dans un autre rapport à la situation. Vous voyez, l’homme qui était à l’intérieur de l’oeuf, de la coquille, est à présent à l’extérieur: l’oeuf – la situation – est projete hors de lui. [...] Regardez! Dans ce cas, l’ecart entre le moi du personnage et moi de l’acteur (disons: la personne) est plus sensible. [...] Voici le comédien, et ce qui est devant lui. Ne disons pas “le personnage”, mais plutôt “le noyau”, um concentre d’émotions dont l’acteur ressente l’attraction, l’influence devant lui. Le centre du jeu est déplacé, projete, et c’est pour lui um sentimento bien réel: lui et ce qu’il joue sont distancies, écartés” (VASSÍLIEV, 1999, p. 53). 62 Acontecimento principal é um ponto no texto literário, que pode ser identificado como o ápice, clímax. 63 Présentes dans le mode d’écriture dramaturgique et le mode de jeu de l’acteur, elles renvoient à la composition de l’oeuvre en ele-même et pour le jeu, selon les deux perspectives simple ou inversée. Dans la struture psychologique, l’acteur est partie prenant de la situation à intérieur de laquelle il évolue. Dans la structure de jeu, l’objet de jeu est situe hors de lui ou devant lui, dans l’évenement principal. Il n’est pas lui-même pris dans la situation. Vassiliev distingue également une structure mixte qui mêle, sans les confondre, les deux types de structures.
42
Para AV, os textos com estrutura psicológica mimetizam o tempo real,
motivo pelo qual produzem identificação com os espectadores. AV escolhe encenar a
peça Vassa Zheleznova - primeira versão, de Máximo Gorki porque acreditava que o
autor ali começava a trabalhar com uma construção artística do tempo, diferente do real.
O espetáculo Vassa Zheleznova – primeira versão de Máximo Gorki,
direção de AV, foi apresentado em 1977 no Teatro Stanislávski64. O texto Vassa
Zheleznova foi originalmente escrito em 1910, mas, em 1935, Gorki escreveu essa versão,
segundo os princípios ideológicos do realismo socialista russo65. Para isso, incluiu a
personagem da revolucionária Raquel e o tema da luta de classes na relação conflituosa
entre Vassa, a proprietária da fábrica de tijolos e seus operários. Durante o período
soviético, a primeira versão foi completamente esquecida, em detrimento da segunda.
Quando AV opta por montar a versão de 191066, está marcando uma posição política e
artisticamente independente, o que nos dois casos significava assumir uma “atitude de
indiferença aos problemas sociais da época”. (BOGDONOVA, 2007, p.18)
A história da primeira versão se passa na casa dos Zheleznov. Zachar,
o chefe da família, está morrendo. Ele é marido de Vassa e irmão de Prochor. Vassa tem
três filhos, Anna, a única que vive fora de casa com dois filhos, fruto de um adultério que
seu marido não suspeita. Semion, casado com Natália, uma “velha crente”, beata e um
pouco estúpida, conforme rubrica da peça. (GORKY, p 01) Paulo, corcunda e manco, é
casado com a bela e jovem Ludmila. Na casa ainda vive Lipa, uma serva que obedece
fielmente a Vassa por quem está sendo chantageada. Lipa teve um filho de Paulo, que foi
assassinado ao nascer, por ordem de Vassa. A casa é ainda frequentada por Mikhail,
intendente da fábrica de tijolos, devotado a patroa Vassa e pai de Ludmila. O primeiro
ato começa com Paulo irritado porque sua mulher não voltou para casa a noite. Quando
Ludmila chega, confessa que passou a noite com o tio Prochor, um conhecido
mulherengo. Trata-se de um casal impossível: Paulo ama desesperadamente Ludmila,
mas é histérico e ácido e a ofende continuamente. Ludmila é jovem, bela e é muito querida
por Vassa, mas sua união com Paulo é fonte de contínuos escândalos e brigas. Vassa
64 Teatro Stanislávski é desde 1946 o nome do antigo Teatro Estúdio de Ópera criado em 1935. Entre os anos 1976 a 1979 foi coordenado por Andrei Popov, que chamou seus ex-alunos Anatóli Vassíliev, José Raihelgauz e Boris Morozov para dirigirem espetáculos na casa. 65 Conforme exigido pela direção do Teatro de Arte de Moscou II (nome do teatro e da companhia que se formou do primeiro Estúdio dirigido por Stanislávski), que pretendia montar o texto em comemoração aos 30 anos da revolução de 1905. 66 Todas as citações são da publicação online da obra completa de Máximo Gorki. http://maximgorkiy.narod.ru/PESY/zheleznova01.htm
43
pretende se libertar do filho mandando-o para um monastério e anulando seu casamento.
Entre Paulo e Prochor existe uma profunda inimizade, Paulo tenta irritar Prochor de todas
as maneiras possíveis. Vassa se preocupa em como conseguir toda a herança do marido,
porque teme que Prochor exija sua parte em dinheiro, o que significa liquidar a fábrica de
tijolos, para poder viver despreocupado na cidade. Todos secretamente desejam a mesma
coisa: pegar sua parte na herança e fugir, ir para a cidade, conquistar a própria liberdade,
longe da casa dos Zheleznov, longe da patroa e despótica mãe a quem todos se submetem.
Enquanto o patrão está morrendo, todos brigam pela herança, se espiando mutuamente.
Vassa, por exemplo, descobre, através de Mikhail, que Prochor corre rico de morte porque
se trata com dois remédios com efeitos opostos: um para tratar o coração, já que é cardíaco
e o outro para aumentar a potência sexual. Mikhail salienta que uma alteração na dose
dos remédios poderia ser fatal para Prochor. Vassa sorri e faz piadas sobre a ideia, mas
quando Mikhail insiste, ela se opõe indignada. Existe um clima de hostilidade e
desconfiança, constantes explosões de ira e rivalidade na família. Anna chega da cidade.
A mãe descreve para ela tudo o que aconteceu na casa e a questão da herança, tornando-
a sua cúmplice. Os outros a acolhem como uma onda de ar fresco, como uma alma
estranha que entra na casa, a quem todos acabam confessando os seus projetos, segredos
e desejos. No segundo ato, os confrontos e hostilidades aumentam. No final de outro briga
com Paulo, Prochor se sente mal e vai para o quarto. Mikhail fica sozinho com Lipa e a
convence a envenenar Prochor com os remédios, insinuando que somente assim ela
alcançará a liberdade e o seu crime será perdoado. Lipa envenena Prochor que, no entanto,
não morre. Vassa repreende duramente Mikhail por ter levado adiante o seu projeto, mas
não fica claro se está agitada porque a tentativa dele falhou, ou se está simplesmente feliz
por ele ter realizado a sua intenção. Mikhail acusa Lipa e a ameaça dizendo que uma serva
paga caro pelos erros na dosagem dos remédios. Vassa confirma que a culpa é
exclusivamente de Lipa. O terceiro ato acontece 40 dias depois. Nesse tempo, Zachar
Zheleznov morre, Lipa se enforca e Prochor volta a caminhar, embora com dificuldade.
Pavel chega bêbado em casa e começa uma série de acusações, que geram discussões, as
quais Anna tenta dissolver, argumentando que Prochor não pode sofrer alterações
nervosas, devido ao risco de um novo infarto. Vassa ordena que voltem para seus quartos,
Paulo e Prochor continuam discutindo, até que o tio sofre outro infarto e morre na sala.
Vassa retorna, percebe o que aconteceu e diz ao filho que aquela é uma situação grave,
que a família vai defendê-lo, mas que em troca ele terá que ir para um monastério. Paulo
a princípio aceita, mas depois se revolta, exigindo sua parte na herança para que possa
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viver na cidade. Semion e Natalia também reivindicam sua parte na herança. Vassa, então,
mostra a carta-testamento de Zachar Zheleznov, que é obviamente falsificada, deixando
toda a sua herança para ela. Doravante, Semion e Natalia vão viver sob a sola de Vassa,
Paulo vai para um monastério, Ludmila vai ter um novo marido que vai lhe dar filhos que
vão correr pelo jardim da casa dos Zheleznov junto com os filhos de Anna. Ao final da
peça, Vassa sente um mal súbito e sussurra: “Não conhecerei nunca a paz, nunca!”
Para AV, romper com os princípios estéticos do realismo socialista
vigentes na época, significava, além de optar por uma versão menos alinhada com as
regras ditadas pelo partido comunista, mas principalmente romper com a prática de
encenação que buscava reproduzir no palco o tempo real vivido pela plateia no teatro.
Isto significa quebrar a continuidade do tempo entre a plateia e o palco, prática que não
era comum na geração anterior a de AV, o que torna esse espetáculo, acima de tudo, uma
declaração de princípios.
Em relação ao teatro, existem duas categorias de tempo. O
tempo dos espectadores e a realidade do tempo teatral ou apenas o tempo
cênico. Se o tempo do espectador é idêntico ao tempo cênico, vale dizer que
essa coincidência se dá porque se mantém os mesmos períodos e ritmos, esse
é um teatro que poderia ser chamado de teatro "direto". (...) Durante os anos
setenta, as relações entre o palco e auditório mudaram. Agora, o teatro está
cada vez mais tentando trabalhar sobre a não correspondência dos tempos. Eu
estou tentando organizar o tempo cênico de um modo que não seja idêntico ao
tempo da plateia. (VASSÍLIEV, 1993, p. 42)
A condição para a existência do tempo metafórico é que o
desenvolvimento da ação dramática aconteça para além da relação palco-plateia, de
acordo com suas leis próprias. O rompimento da quarta parede enfatiza a simultaneidade
do que está acontecendo entre palco e plateia e dissolve a autonomia do tempo cênico
(BOGDANOVA, 2005, p. 58). Para AV, esse “tempo direto” enfatiza os aspectos
psicológicos e sociais do teatro no sentido do palco como espelho da realidade, ao
contrário do “metafórico”, mais ligado ao imaginário e poético. “O que mais atraiu
atenção na encenação de Vassa Zheleznova foi a constatação de que nenhum personagem
estava falando no mesmo tempo da plateia”. (BOGDANOVA, 2005, p. 58)
AV acredita que o diretor de teatro deve trabalhar a montagem do tempo
metafórico em cena, de maneira semelhante como é feito no cinema. No espetáculo Vassa
Zheleznova, o diretor dividiu cada um dos três atos em duas partes, cada uma delas
correspondendo a uma montagem diferente do tempo cênico. No primeiro ato, por
exemplo, a ação cênica desenvolve-se num ritmo tranquilo, cotidiano, até a chegada de
45
Anna, quando o ritmo se acelera. Em ritmo acelerado, Vassa começa a explicar para a
filha toda a intriga presente na casa. Essa aceleração não corresponde “a fatia de vida” da
estética naturalista. Vassa precisaria de muito mais tempo para receber sua filha e contar
para ela tudo o que aconteceu, para então torná-la sua aliada. AV faz uma montagem,
cortando ações, ou sequências delas, para que todo o percurso possa ser visualizado em
menos tempo. Neste caso, uma parte do tempo cronológico foi eliminado e o resultado é
a ficcionalização da ação cênica que perde, dessa, forma seu caráter naturalista. Com esse
procedimento, AV revela que por trás do suposto realismo da peça de Gorki existe, na
verdade, um processo de reelaboração artística da realidade.
AV (1993) explica que consegue essa manipulação do tempo “através
de um adensamento da análise”. A densidade se dá quando se analisa, por exemplo, um
pequeno diálogo de seis falas como se fossem seis mudanças de situações. Em linguagem
técnica isso significa que existe “um grande número de vectores num pequeno período de
tempo” (VASSÍLIEV, 1993). Na vida cotidiana, as seis mudanças de comportamento
ocorrem em um mês, mas na cena ela acontece em três minutos.
Um exemplo é o da cena de Vassa e Paul, que eu já
mencionei. Temos um diálogo de seis falas. Você pode construí-lo como uma
conversa. Eu construí de forma diferente. Eu o fiz como uma situação longa e
difícil, subdividida em pequenas situações, cada qual tem seu próprio peso e
os personagens têm um comportamento interno muito particular para cada
situação. É difícil encenar um tempo com essa qualidade. Então, eu coloquei
pausas para mudar as reações. Mas o espectador tem a percepção de um longo
período de tempo. (VASSÍLIEV, 1981, p.14)
O tempo, no espetáculo Vassa Zheleznova, começa em ritmo
naturalista, como se fosse cronometrado, o que em termos de análise ativa significa dizer
que o tempo no plano da vivência do ator e o do texto do personagem são idênticos entre
si. Desse modo, o tempo cênico se assemelha ao tempo da plateia, como se estivesse
acontecendo naquele momento, para logo em seguida se distanciar deste tempo. Isso se
dá quando o ator vivencia o tempo de maneira diferente do personagem. O tempo direto
torna-se um tempo metafórico.
Outro exemplo de montagem do tempo acontece entre o fim do segundo
ato e o início do terceiro. No texto de Gorki, passam-se quarenta dias entre a morte de
Prochor e a abertura do seu testamento. AV transforma essa espera em quarenta anos,
através do recuo do acontecimento inicial, o que implica, no processo de análise, em
46
preencher com études esse longo tempo67. Em cena, essa longa espera é concentrada em
alguns minutos, na passagem entre os atos. É nesse sentido que AV afirma que o tempo
cênico foi condensado, embora em termos de enredo ele tenha se alargado. Na encenação,
o personagem-ator vivencia a situação de uma espera que se prolongou por uma vida
inteira, enquanto que na rubrica do texto dramático o autor descreve, que os personagens
esperaram apenas um mês e alguns dias.
O tempo flui continuamente, mas tem um espaço diferente,
mais largo, mais denso. O alargamento está ligado com o tempo denso. Há
uma montagem de tempo (Возникает монтаж времени ). Este é um ponto
muito importante. A montagem atribui para o espetáculo o espaço do romance.
É grande, enorme. Três horas do espetáculo não corresponde à realidade da
vida cênica de três horas68. (VASSÍLIEV, 1981, p.13. Tradução própria)
A sensação que a plateia tinha era de que o tempo tanto se expandia,
quanto se concentrava (BOGDANOVA, 2007). Essas alternâncias de tempo acontecem
repetidas vezes ao longo da peça para finalmente, no terceiro ato, distanciar-se
definitivamente do tempo real da plateia. A crítica Polina Bogdanova também observa
que:
(...) parecia que se estava frente a um momento estagnado,
como se fosse um tempo morto, de onde surge a imagem da casa morta e do
mundo morto. Aqui, ao tempo real cotidiano é atribuída a função de
bumerangue: ele volta restaurado, o que provoca um efeito inesperado69”
(BOGDANOVA, 2007, p. 78, tradução própria).
Com essas manipulações do tempo cênico, o espaço, por sua vez, ganha
uma dimensão mais aberta, mesmo que metaforicamente, como na percepção de
Bogdanova no exemplo da casa morta. Os études realizados por AV, levando os atores a
vivenciarem uma situação de quarenta anos de espera, retira do texto toda a sua vitalidade
e urgência que poderiam surgir da situação de espera pela herança. A situação, as falas e
réplicas dos personagens assumem um aspecto fantasmático, porque estão destituídos da
energia ativa de uma ação, onde os tempos do ator e do personagem poderiam coincidir.
67 Os atores devem fazer études sobre o que aconteceu nesses quarentas anos para trazerem esse tempo de maneira subjetiva para a cena. 68 Время течет непрерывно, но имеет разное пространство, то более широкое, то более плотное. Широкое соединяется с плотным. Возникает монтаж времени. Это очень важный момент. Монтаж придает спектаклю романное пространство. Оно большое, огромное. Три часа спектакля не соответствуют трехчасовой реальности сценической жизни. 69 Воспринимается как остановка, как мертвое время. И возникает образ мертвого дома и мертвого мира. Тут реальное бытовое время сработало как бумеранг, возвратившись, оно принесло неожиданный эффект.
47
O aprofundamento da análise-ação através do étude leva, por um lado,
a um adensamento dos significados da peça e por outro, a uma verticalização dos
conflitos. Através de sucessivos études vão se alcançando camadas cada vez mais
profundas que, ao serem apresentadas em cena, interrompem o fluxo natural do
movimento no espaço e, consequentemente, deixam emergir uma imagem que se
desenvolve apenas no tempo, porque seu movimento foi verticalizado, ao invés de
horizontalizado70.
1.3.2. Victor Slavkin, A filha adulta de um jovem e Cerceau
A filha adulta de um homem jovem, de Victor Slavkin71 foi o último
espetáculo dirigido por AV no Teatro Stanislávski, em 1979. Em 1985, o diretor vai
trabalhar na montagem de Cerceau, do mesmo autor, no Teatro Taganka72.
A filha adulta de um homem jovem conta a história de ex-colegas de
faculdade que se reencontram depois de muitos anos. Esse encontro acontece no
apartamento de Bems. Prokop é um rico industrial de uma siderúrgica em Chelyabinsk,
que traz seu filho para estudar no Instituto de Engenharia. Lá também estudaram Prokop,
Bems e Ivchenko, que atualmente é professor. Bems convida Ivchenko ao seu
apartamento para conversar com Prokop sobre a admissão de seu filho no Instituto, num
ambiente informal. Durante a época da faculdade, Bems e Ivchenko estavam em lados
opostos. Ivchenko era líder da juventude comunista (Komsomol) e não gostava de Bems,
que era famoso na instituição por ser uma espécie de jovem rebelde que gostava de ouvir
e tocar jazz. Além disso, há a história da traição de Lucy, mulher de Bems com Ivchenko
que, com o tempo, foi apagada da memória e cada um deles e só vai ficar totalmente
esclarecida no final da trama. Bems se tornou um modesto engenheiro, enquanto que
Ivchenko fez uma carreira invejável, tornando-se reitor do Instituto de Educação.
Anos atrás trabalhei numa peça de Viktor Slavkin A filha
adulta de um jovem. (...) A história contada é simples, mas, apesar disso, cheia
70 Algo semelhante às definições de Deleuze sobre imagem-ação e imagem-tempo. A imagem-ação corresponde a uma sequência de movimentos que se desdobram no espaço, enquanto que na imagem-tempo a única coisa que se movimenta é o próprio tempo que flui. Ver DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005. 71 Victor I. Slavkin nasceu em 01 de agosto 1935, em Moscou. Começou sua carreira como dramaturgo nos anos 60. Tornou-se mais conhecido com as encenações de Vassíliev para seus textos no final dos anos 70: A filha adulta de um homem jovem, em 1978 e Serso, em 1979. 72 Teatro Taganka esta localizado numa construção art nouveau na Praça Taganka, em Moscou. Foi fundado em 1964 por Yuri Lyubimov para ser um centro de pesquisa das ideais teatrais de Vakhtángov e também explorar as possibilidades do teatro épico de Bertolt Brecht.
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de significado para nós. Um grupo de jovens, ou melhor, uma geração inteira
de jovens, durante a época de Josef Stalin, nos anos cinquenta, foi perseguida
porque amava e escutava jazz. Para um ocidental é inacreditável, mas é assim:
aqueles jovens foram excluídos da sociedade pelo fato de escutarem jazz.
Depois, os tempos mudaram, mas muitos não superaram essa crise. O herói
da peça, na juventude, nos anos cinquenta, era um desses apaixonados pelo
jazz e tocava numa banda amadora. Mas na época em que se passa a peça, ele
tem quarenta anos e se chama Bems. O nome, “Bems”, se parece muito com
“jazz”! É um sobrenome: Bems! Não espera mais nada da vida. Mas ainda
sobrevive nele o entusiasmo, a energia de um tempo; enfim, é um homem
agressivo, mas que de fato não tem mais nenhum desejo (VASSÍLIEV, 1993,
p. 357. Tradução Papoula Bicalho e Matilde Biadi).
AV (1993) descreve a análise que fez na peça de Slavkin para
determinar o acontecimento principal. Para um étude de estrutura lúdica, o acontecimento
principal ganha um significado muito importante, porque ele não é apenas um ponto para
onde converge a ação do drama, mas uma metáfora do conteúdo da peça em si, do seu
significado último. AV procura no acontecimento principal os seus significados mais
profundos, indo além do leitmotiv do autor, para alcançar o plano metafísico e espiritual
e é assim que analisa a peça A filha adulta de um jovem, de Victor Slavkin, procurando
esse conteúdo espiritual. Na cena do reencontro dos velhos conhecidos, aquela história
de tanto tempo atrás, do caso que a atual esposa de Bems, Luci, teve com Ivchenko
quando já era sua namorada, volta à tona e provoca uma briga. Após a briga, a esposa de
Bems sai com Ivchenko e volta apenas na manhã seguinte, assim como tinha feito muitos
anos antes. Para AV, esse é o ponto onde se inicia o acontecimento principal.
Lendo a peça, parei nesse episódio. O que havia de
particular? Havia algo; mas não no momento em que ela volta, mas sim logo
após, no momento em que os dois homens e a mulher estão na cozinha e falam
entre si. Imaginei esse Bems, que não reage absolutamente a mais nada,
porque já está subjugado pelos fatos e deve reconhecer essa realidade, essa
vida. E concordar com o fato que agora, diante de seus olhos, na cozinha, está
se desenrolando justamente essa conversa. Lembro claramente como
imaginava seus olhos, seu silêncio. E isso para mim significava que Bems
estava iniciando uma nova vida. Uma vida de silenciosa e tranquila aceitação.
Concretamente, é aqui o acontecimento principal da peça. Expressado em uma
pausa, apenas uma pausa, e nada mais. O momento vivido por Bems era da
maior importância! Porque toda pessoa de quarenta anos na URSS tinha que
responder à pergunta sobre o que devia fazer; continuar protestando, ser
dissidente, ficar na cadeia, ou reconhecer o fato da existência de uma ordem
daquele tipo como fato objetivo da vida. Eu o reconheci como um fato
histórico e isso me fortaleceu imensamente, do ponto de vista humano. Do
meu espetáculo desapareceu a agressividade – e consegui desenvolver uma
determinada concepção da arte, em vez de uma determinada concepção da
vida social. Conto tudo isso porque quero sublinhar que no território do
“acontecimento principal” está contido todo o sentido da vida do drama, do
49
herói e do artista. (VASSÍLIEV, 1993, p. 357 a 358. Tradução Papoula
Bicalho e Matilde Biadi)
Como o que aconteceu entre Luci e Ivchenko não fica evidente desde o
começo, é impossível reproduzir imediatamente um conflito. O conflito entre Bems e
Ivchenko, salienta AV, "tinha que vir do presente". (BOGDANOVA, 2007, 34). Os atores
não encontrariam a motivação para a ação no passado, anterior à peça, mas no presente.
Por isso, durante os quarenta minutos iniciais, a peça transcorria sem conflito,
assemelhando-se a uma fatia da vida transporta para a cena. O tempo estava mais perto
do real, isto é, tudo se passava como se fosse um pedaço da vida real, que flui em frente
aos espectadores. No primeiro ato, os atores estão sentados à mesa de jantar, conversando
e comendo de maneira extremamente natural, o que, conforme a critica Bogdanova
(2007), causou “uma reação de choque na plateia”, porque o teatro da época soviética não
tinha o costume de apresentar esse tipo de naturalidade, com a transposição para o palco
de situação cotidiana, de uma conversa informal. Mas esse realismo não era tanto por
amor à credibilidade, ao contrário, era fruto de uma análise minuciosa e detalhada da
estrutura dramática e do conflito. Aqui, o encenador está aplicando a análise para uma
estrutura lúdica.
A característica principal de A filha adulta73 era a ausência de um
acontecimento inicial forte que motivasse a atuação dos atores. AV (1993) relata que os
atores não conseguiam jogar com os personagens porque não possuíam uma motivação
que os fizesse agir dento de uma situação coletiva. Então, sugeriu a cada um deles que
criasse uma situação individual em relação a seu personagem. Ao invés de possuírem uma
situação única que envolvesse a todos como um grande círculo, os personagens teriam
situações individuais, como círculos em torno de cada um, semelhante a uma aura em
torno do corpo que, somadas definem uma atmosfera coletiva. Todos estão juntos, mas
cada um no seu mundo particular. Essa abordagem que retoma o trabalho sobre
atmosferas de Mikhail Tchékhov, já aplicado anteriormente em Vassa Gezlenovna, serve
aqui como uma forma alternativa de relacionamento entre ator e personagem.
73 Victor Slavkin é um autor considerado pela crítica como pertencente ao movimento artístico denominado nouvelle vague russa, movimento que trouxe para a dramaturgia russa da época as influências artistas europeias do período pós Segunda Guerra, entre eles, o neorrealismo italiano e a nouvelle vague francesa. Tanto um movimento quanto o outro fragmentavam a narrativa, produzindo uma descontinuidade dos acontecimentos que não podem mais ser explicados por motivações sociais ou psicológicas.
50
No primeiro ato de A filha adulta, AV trabalhou uma atmosfera que era
em tudo contrária ao clima sombrio e sufocante de Vassa Gezlenovna. A atmosfera de A
filha adulta era alegre e descontraída, retratando simultaneamente “adoráveis
personagens líricos no crepúsculo da vida soviética contemporânea, e elegantes e ardentes
heróis do cinema americano”. (BOGDONOVA, 2012, p. 34) A peça retratava a geração
dos anos 50 que viveu o degelo soviético, com esperança e fé no futuro. Nesse primeiro
ato da peça, temos a exposição lúdica da vida da sociedade russa desse período. Os
personagens estão sentados em volta da mesa conversando amigavelmente, relembrando
coisas boas do passado, cantando canções francesas, russas e americanas. Uma música
em especial cantada por Bems, Chattanooga Choo Choo de Glenn Miller, cria um clima
de alegria e prazer em todos. AV não dirigiu o primeiro ato como um conflito entre Bems
e Ivchenko, mas como uma comunicação agradável, uma conversa descontraída de dois
ex-colegas brincalhões, que vai dando lugar, pouco a pouco, ao descontentamento até
chegar ao conflito aberto, que é detonado pela lembrança da traição de Lucy. A partir
desse ponto, a peça segue uma estrutura de drama psicológico tradicional. “A filha mais
velha ficou a meio caminho, entre a existência do homem na luta e no jogo.”
(BOGDONOVA, 2006, 56). Após a encenação de A filha mais velha, AV dirigiu alguns
espetáculos que não entraram em cartaz. São eles: As alegres comadres de Windsor, de
Shakespeare, no Teatro Komsomol Lenin, Rei Lear do mesmo autor no Teatro de Arte de
Moscou, Dias felizes de Samuel Beckett e Caça ao Pato de Alexander Vampilov e A
desgraça de ter espírito de Aleksander Griboyedov, no GITS.
Em 1983, AV começa a ensaiar Rei Lear, de William Shakespeare,
tendo no papel principal o seu professor da época do GITIS, Andrei Popov. No entanto,
a morte de Popov pôs fim ao projeto74. AV relata o processo, em trechos de seu diário de
trabalho, que são considerados pela crítica Polina Bogdanova de fundamental importância
para o desenvolvimento da pedagogia do étude lúdico.
Essas reflexões sobre Rei Lear de Shakespeare são de um
especial interesse teórico e artístico, na minha opinião, porque afirmam um
novo conceito de "jogar para a frente", "Jogo do Futuro", que será incluído
mais tarde na teoria do teatro lúdico de Vassíliev. Apontando uma solução
para a tragédia sem acontecimento inicial, tentando responder a pergunta
sobre o que motivou Lear a desejar compartilhar seu reino. Em outras
74 Antes de trabalhar com o texto de Rei Lear de Shakespeare, Vassíliev fez uma adaptação de Rei Lear da Estepe, de Ivan S. Turgueniev para a televisão estatal soviética em 1976. O papel principal, do proprietário Martin Kharlova, cujo destino é tão parecido com o destino de Lear, de Shakespeare, foi interpretado por Andrei Popov.
51
palavras, como não fazer uma leitura psicológica do personagem de
Shakespeare75. (BOGDONOVA, 2006, p.88. Tradução Própria)
Durante o processo de análise e de ensaio de Rei Lear, AV aplicou a
sua teoria do jogo como uma alternativa aos princípios do teatro psicológico. Dividiu a
peça em duas partes, a primeira correspondendo à primeira cena do primeiro ato e a
segunda, da segunda cena em diante. (VASSÍLIEV, 1993) Para o diretor, o clima trágico
se inicia depois da primeira cena. Na sua análise (1993), o clima inicial da peça é o de um
homem que “está jogando com a vida, apostando”, numa atitude típica do homem
renascentista que ele é. Nessa concepção, Lear não está triste devido a sua velhice, ao
contrário, possui uma chama que alimenta seu lado aventureiro, de jogador, realizando
um experimento, ao dividir seu reino entre suas filhas. Durante os ensaios, AV indicava
ao ator que vivia o personagem Lear que não buscasse a motivação para agir na pergunta,
“por que Lear dividiu a coroa?”, mas partir dessa situação de experimento, de um sujeito
vivo que está mergulhado na sua própria ideia, numa ideia de aventura. Ou seja, a
motivação está no futuro, não vem do passado. Outro personagem importante para a
análise de A.V é o de Kent, porque é ele quem percebe as desgraças que poderão surgir
com o ato de Lear e, ao longo da peça se torna o agente que procura manter a integridade
da coroa. O acontecimento principal ilumina o percurso de Lear e de Kent ao longo da
peça, não do passado para o presente, como no drama tradicional, mas do futuro para o
presente, caracterizando a noção de perspectiva inversa própria da estrutura lúdica.
Ao analisar a tragédia de Shakespeare na perspectiva da estrutura
lúdica, AV inaugura não apenas uma interpretação nova e original em relação à de
Stanislávski, mas um entendimento novo e mais profundo da própria poética
renascentista, revelada em toda a sua originalidade, em termos de método de análise e
também de amplas associações culturais. (BOGDONOVA, 2006) AV percebeu que o
teatro renascentista estava retratando um novo homem, o homem que está voltado para o
futuro, que busca a utopia, e vai tornar essa busca um ideal estético, o que vai aproximar
sua proposta das concepções do romantismo e do simbolismo russo, movimentos que
também colocam a busca da beleza no centro de suas pesquisas. Do romantismo, o diretor
75 Особый теоретический и художественный интерес, на мой взгляд, и представляют эти размышления о шекспировском "Лире", разбор трагедии, где заявлены новые понятия об "игре вперед", "игре от будущего", которые позднее войдут в теорию игрового театра Васильева. Где предлагается решение трагедии без исходного события (рассуждений о том, что произошло до желания Лира разделить королевство). Где преодолен психологический подход к шекспировским образам.
52
resgata a “ideia da arte como verdade absoluta e como grau superior da beleza” (LUPO,
2006, p. 53) e o conceito de filósofo-artista. Do simbolismo, AV resgata “a revolta contra
o realismo, e os aspectos ligados ao esteticismo e misticismo” (LUPO, 2006, p.54) e uma
concepção de arte como linha de fronteira entre o visível e o invisível.
Em 1982, AV começa um processo de ensaio de Cerceau, de Victor
Slavkin, que se estendeu até 1985, quando a peça entrou em cartaz. Este trabalho marcou
uma profunda transformação no percurso teatral e estético do encenador76, que passou a
falar da importância da teoria da práxis no processo de construção do espetáculo:
Quando eu reuni a companhia, expliquei que, para mim,
os princípios da teoria no teatro são mais importantes que o espetáculo. O
espetáculo só poderá ser montado depois de se ter assimilado a teoria77.
(VASSÍLIEV, 1999, p.178. Tradução própria).
Além desse aspecto, AV começou a desenvolver sua concepção estética
em direção da superação do que ele denomina de teatro de luta.
Quando eu comecei, eu construía os papeis a partir do
objetivo, do final... pois eu construía o conflito: dois personagens que lutam
um contra o outro para chegar a esse objetivo. Meu teatro era um teatro de
luta. Eu compreendia o conflito como uma luta. E o objetivo era a
transformação de um personagem pelo outro. (...) Isso era a ideologia de um
país socialista, quando alguém deve mudar o outro, reeducá-lo, puni-lo, educá-
lo, fazê-lo amar, tudo isso pode ser entendido como um objetivo. Qual é o
objetivo? Punir. Educar. Fazer amar. Transformar, transformar o mau em
bom78. (VASSÍLIEV, 1999, p. 106. Tradução própria).
Para alterar essa condição seria preciso antes modificar o pressuposto
ideológico da própria formação do ator e não apenas treina-lo dentro de um novo estilo
de atuação. Nesse momento, o interesse de AV começa a se deslocar, de uma pedagogia
centrada exclusivamente na elaboração de estilo de atuação, para outra centrada no
aspecto formativo do éthos do ator. Um dos primeiros objetivos a alcançar com esta
76 Sobre a importância de Cerceau no percursos estético de Anatóli Vassíliev ver LUPO, 2006, BOGDANOVA, 2012. 77 Quand j’ai choisi la compagnie, j’ai explique que pour moi, les príncipes de la théorie au théâtre sont plus importants que le spectacle. Le spetacle pourra être montré, seulement après le processos d’aasimilation de la théorie. 78 Quand j’ai commencé, je construisais les rôles à partir du but, du final. (...). Puis je construisais le conflit: deux personnages qui luttaient l’um contre l’autre pour arriver à ce but. Mon théâtre était um théâtre de la lutte. Je comprenais le conflit comme une lutte. Et le but, c’était la transformation d’um personnage par um autre. (...) C’était l’idéologie d’um pays socialiste, quando quelqu’um doit changer quelqu’un autre, le rééduquer, le punir, l’éduquer, l’amener à l’amour, tout ce qu’on peut appeler um objectif. Quel est l’objectif: Punir. Éduquer. Faire aimer. Changer, changer le mauvais em bon
53
pedagogia é possibilitar que o olhar do ator, na construção do personagem, se desloque
de uma visão psicológica e social, para uma abordagem mais conceitual, voltada para o
plano das ideias. A proposta de AV de começar o processo criativo do ator pela
assimilação da teoria do jogo de atuação visa transformar a forma de relação do ator com
o seu fazer artístico. Aqui começa a se desenhar a proposta pedagógica de AV rumo a
uma metafísica, revelando ao mesmo tempo o sentido da tradição teatral russa e da mística
ortodoxa. Na pedagogia de contorno metafísica de AV, a utilização da teoria remete ao
seu sentido na teologia ortodoxa e será analisada mais profundamente no capítulo três
desta tese.
A nova teoria do jogo teatral possui dois aspectos
fundamentais: de um lado a imagem de um ator capaz de se “suspender”
(surélever), de transcender pela energia de sua vontade e de outro lado a ideia
de que isso dê a ver um novo homem, atestando assim a existência do mundo
da arte79 (LUPO, 2006, p. 55. Tradução própria).
1.3.3. Pirandello, Seis personagens a procura de um autor
As aulas para a montagem de Seis Personagens em busca de um autor
ocorreram em 1986, no curso de direção do GITIS, mas a estreia do espetáculo se deu na
Escola de Arte Dramática, em 1987. Esse trabalho foi fundamental para AV, porque, além
de circular pela Europa em diversos festivais, projetando o seu nome no panorama do
teatro internacional, foi quando ele começou a estruturar sua pedagogia, a partir do
método, que chamou de “étude para o jogo lúdico80”.
O grupo de atores que trabalhou na encenação de Seis personagens a
procura de um autor havia trabalhado anteriormente com o professor M. Butkevich, que
treinou os atores em improvisação conforme o método Mikhail Tchékhov, desenvolvendo
uma teoria do ator baseado no jogo. (BOGDANOVA, p. 186). Fundamentalmente, o
trabalho pedagógico de AV com os atores que trabalharam na peça de Pirandello foi a
utilização da improvisação como forma de apresentar variações sobre um mesmo
personagem e suas ações cênicas. Alguns recursos de jogo cênico são utilizados na
encenação, como a repetição de cenas, frases, palavras, de maneiras completamente
diferentes a cada vez, força o espectador a fazer uma leitura do que está acontecendo em
79 La nouvelle théorie du jeu convoque alors deux aspects fondamentaux: d’um côté l’image de l’acteur capable de se “surélever”, de se transcender par l’énergie de sa volonté, le autre l’idée que cette transcendance donne à voir um novel homme et ateste ainsi de l’existence d’um mond de l’art. 80 Em francês: L’étude pour le jeu ludique (LUPO, 2006, p. 147)
54
cena como um jogo, uma ficção e não uma realidade. Essa ideia da repetição é tratada
ludicamente já logo no inicio da peça, quando o Assistente solicita ao Maquinista que ele
termine o seu trabalho porque o diretor está chegando para o ensaio. Em russo a palavra
ensaio se pronuncia repetichiya (Репетиция). O Assistente repete a palavra Ре-пе-ти-
ци-я-я-я como se fosse um mantra encantatório. Fica falando a palavra enquanto vai
acariciando o peito do outro trabalhador, que pergunta “mas quando é mesmo que nós
vamos trabalhar?” AV brinca com o fato de que a palavra repetichiya tem um duplo
significado, de ensaio e de repetição, mas essa repetição tem um lado encantatório que
possibilita vislumbrar outros mundos, que não o trivial cotidiano e nunca é a afirmação
do mesmo.
Na sequência, entra outro trabalhador carregando uma escada e conta
uma história pessoal, de como foi abandonado pelo pai e veio a reencontrá-lo quando
adulto. Durante esse monólogo, atores entram e começam a ensaiar e repassar as
marcações de cena. No fim da narrativa, o homem anuncia que vai começar o ensaio de
Seis Personagens a procura de um autor81 de Pirandello, assumindo o papel do Assistente
do diretor. Dois atores que dançavam muito próximos se separam, um começa a ler um
jornal e o outro pergunta se chegou alguma carta. A resposta é “não, não chegou
nenhuma” (Vídeo gravação da encenação, 1987). Essa pergunta e resposta são repetidas
três vezes, enquanto um ator procura no bolso do outro e encontra uma carta e bate com
ela no rosto deste e pergunta “chegou alguma carta?” Ao final dessa ceninha, se anuncia
que vai começar o ensaio da peça O Jogo dos papéis de Pirandello, como está no texto de
Pirandello. É obvio que AV quer confundir o espectador em relação à certeza do que está
sendo feito em cena. Trata-se do ensaio de Seis personagens? O espetáculo que está sendo
mostrado para o público, ou de uma peça dentro da outra?
Outra forma de repetição é a de pequenas cenas, como esse fragmento:
O DIRETOR – Atenção, senhores. Quem está em cena?
(A atriz que, sem dar atenção à pergunta do Diretor, irá
sentar-se diante de uma das mesinhas.)
O DIRETOR (para a Primeira Atriz) – Então a senhora
está em cena?
A PRIMEIRA ATRIZ – Eu? Não, senhor.
O DIRETOR – Então saia daí, santo Deus!
81 No texto de Pirandello não há menção a montagem de Seis personagens em busca de um autor.
55
Essas quatro falas, que compõem uma pequena situação são repetidas
quatro vezes na encenação de AV (Vídeo gravação da encenação, 1987). Da primeira
vez em que essa cena é vista, dá a impressão de ser um mal entendido, mas na repetição,
ela muda de aspecto e parece ser teimosia da atriz. Na terceira repetição, o diretor coloca
um chapéu na cadeira, mas a atriz repete a cena e ao sentar coloca o chapéu na cabeça.
Na quarta vez, o diretor senta na cadeira, mas a atriz senta no colo dele e começam a se
beijar. Frente a essa situação os outros atores do ensaio se levantam e vão embora. Fica
claro que se trata de um ensaio porque o ponto corrigiu a fala do diretor, de “meu Deus”
para “inferno”. A situação se torna absurda e não fica claro o que está acontecendo e quem
são esses personagens.
A interpretação de um mesmo personagem por atores diferentes é um
recurso utilizado por AV no processo pedagógico e artístico. No primeiro ato de Seis
Personagens em busca de um autor, por exemplo, o papel da Enteada foi interpretado por
três atrizes diferentes e o do Pai era revezado entre dois atores. Esse recurso tende a anular
a noção de imagem justa. O espectador apreende um mundo que já não é mais o universal
e o particular, mas a representação de uma essência.
Para o crítico Sábato Magaldi, Seis personagens em busca de um autor
“demonstra para o público o processo de criação e é talvez a obra mais fascinante do
dramaturgo e um dos documentos fundamentais sobre a experiência criadora na história
do teatro” (MAGALDI, 2009, p. 15). Na trilogia do “teatro dentro do teatro”, Pirandello
transforma radicalmente sua concepção dramatúrgica sobre a relação entre personagem e
ator. No inicio de sua carreira, o dramaturgo condenava o ator como um dos elementos
entre outros da encenação que são “totalmente inadequados para preservar a vida da
poesia dramática, e causar a sua degradante e artificial materialidade” (DE MARINIS,
2005, p. 29).
Porque, se pensarmos nele com cuidado, o ator, por força,
acaba fazendo o contrário do que faz o poeta. Torna mais real e, entretanto,
menos autêntico, o personagem criado pelo poeta, falta-lhe essa verdade ideal,
superior, quanto mais ganha em realidade material comum; e o torna menos
autêntico porque o traduz na materialidade fictícia e convencional do palco82.
(Pirandello, 1918, apud DE MARINIS, 2005, p. 29)
82 Porque, si pensarmos em ello com detenimiento, el acot, a la fuerza, debe hacer lo contrario de lo que ha hecho el poeta. Hace más real y, sin embargo, menos auténtico, el personaje creado por el poeta, le resta más de esa verdade ideal, superior, cuanto más le otorga de esa outra realidade material común; y lo hace menos auténtico porque lo traduce em la materialidade fictícia y convencional de um escenario.
56
No entanto, a experiência de Pirandello como diretor na Companhia do
Teatro de Arte, entre 1925 a 1928, modificou suas ideias. Durante esses anos, Pirandello
percebeu que o palco e a interpretação poderiam ser algo muito diferente dos
“instrumentos rudimentares de uma reprodução-tradução-ilustração inevitavelmente
degradada e falsificadora” (DE MARINIS, 2005, p. 38), para se converter num
laboratório de experimentação dramatúrgica. Emerge dessa experiência uma nova teoria
sobre o ator como um “homólogo materializado de suas ideias” (MELDOSI, 1987, p.
107), que não será exposta em artigos, mas nas próprias peças da trilogia metateatral. O
estudioso Claudio Vicentini, no seu ensaio Pirandello: a incomunicabilidade do teatro,
sugere que o autor italiano realizou “uma reconstrução radical da teoria do ator”, desde
meados dos anos vinte em diante:
O ator (...) não pode ‘desaparecer’ detrás do personagem,
como quer o enfoque naturalista (...) mas deve ‘esvaziar-se’, libertar-se de sua
própria personalidade e renunciar a tudo que seja seu. A interpretação se
converte então em uma espécie de evocação, de rito perigoso e secreto com
que o ator, desnudando-se de sua própria realidade individual, procura
reivindicar para si, em frente ao público, um ser estranho que provém de um
mundo superior83. (Claudio Vicentini apud DE MARINIS, 2005, p. 32.
Tradução Própria.).
Pode-se comparar essa afirmação de Vicentini com a de AV:
Quando o personagem é separado do ator, é o próprio
homem enquanto tal que desaparece, o seu ‘eu’ fenece para que surja o
personagem. O seu corpo fica como que ‘transparente’ e vejo unicamente o
personagem, essa é uma perspectiva metafísica da vida. Ao contrário, quanto
o ator trilha o caminho da aproximação do personagem, o seu ‘eu’ cresce, se
evidencia e o personagem tende a ficar invisível, essa é uma perspectiva física
da vida84. (VASSÍLIEV, 1993, p. 390)
Embora não se possa precisar quando AV começou a utilizar o termo
Persona no seu processo pedagógico (BOGDANOVA, 2012), o tema pode ser associado
às questões estéticas discutidas por Pirandello na peça Seis personagens em busca de um
autor. O enredo conta a história, seis personagens que invadem o ensaio num teatro em
busca de atores que os representem em cena, esse objetivo vai ficando cada vez mais
83 El intérprete [...] no puede “desaparecer” detrás del personaje, como quiere el planteamiento naturalista. [...] Más bien debe “vaciarse”, liberarse de su própria personalidade renunciar a todo lo que es suyo. La interpretación se convierte entonce em uma espécie de evocación, de rito peligroso y secreto com el que el actor, desnudandose de su própria realidade individual, intenta reclamar hacia sí mismo, frente al público, a um ser extraño que proviene de um mundo superior. 84 Quando il personaggio è separato dall’uomo, è próprio l’uomo in quanto tale che finisce come per non esserci più, il mio “io” è come finisca per diventare servo del personaggio.
57
distante à medida que, atores e personagens, vão percebendo quanto distantes estão uns
dos outros, em termos de concepção artística e de mundo. Esta posição de contrários cria
uma relação dialética, da qual surge a noção de persona como uma síntese. Persona é
uma ideia procurando uma encarnação, um conteúdo em busca de uma forma (LUPO,
2006). Assim, enquanto que o ator-personagem orienta seu potencial emocional, seus
sentimentos sobre a base das relações entre os personagens, o ator-persona “orientará seu
potencial emocional e seus sentimentos, segundo sua apreensão dos conceitos e do senso
filosófico da obra” (LUPO, 2006, p. 70).
Apesar da repercussão internacional de Seis Personagens em Busca de
um autor, AV identificava no espetáculo pontos que não estavam efetivamente
resolvidos. No texto de Pirandello, existem vários momentos em que a ação dramática
parece desacelerar, justamente quando os personagens discutem aspectos filosóficos da
criação artística, o mesmo se verificava no espetáculo. AV observou que o método da
escola teatral russa era incapaz de ajudar os atores a trabalhar em cena esses fragmentos
de diálogos conceituais. Por essa razão, deu início a uma série experiências com os
diálogos platônicos, assunto sobre o qual me deterei no capítulo 2.
1.4. Considerações
A conceituação de Stanislávski de que a transformação do ator em
personagem é um processo dialético, determina um ponto de partida para a
fundamentação da pedagogia metafisica de AV, no sentido de que identifica nela a
potencialização da atividade criativa. A pedagogia de AV começa a se aproximar da
função de formação do ator, primeiramente, desvinculando a criação do ator da criação
do personagem, ao mesmo tempo em que indica a composição, como seu principal alvo
artístico. AV acredita que é “necessário criar uma regra de atuação. Inventar um método
para deixar o texto literário independente enquanto permanece agindo sobre o ator”
(VASSÍLIEV, 1993, p. 366), e assim desenvolveu a teoria da estrutura psicológica e
lúdica. No se percurso profissional, desde Máximo Gorki até Pirandello, percebe-se o
paulatino aprofundamento do seu interesse pelas questões estéticas, tanto do espetáculo
quanto sobre a formação do ator. A encenação de Seis personagens em busca de um autor
foi um marco rumo ao desenvolvimento da pedagogia metafísica de AV, ao possibilitar
o surgimento, enquanto pensamento teórico, a noção de Persona.
58
CAPÍTULO 2. PEDAGOGIA E REMINISCÊNCIA
Sim, este é um sistema dialético.
Anatóli Vassíliev
A fundação do Teatro-Escola de Arte Dramática em 1987 permite a AV
aprofundar a sua pesquisa sobre pedagogia teatral, desenvolvendo-se através de diferentes
laboratórios de pesquisa. AV prefere o termo laboratório à estúdio, para indicar os
processos de ensaio e treinamento realizados no Teatro-Escola, que se caracterizam
basicamente como espaços de formação do ator. Laboratório tem o mesmo sentido que a
palavra estúdio tem, por exemplo, para Stanislávski, onde o foco de pesquisa recai sobre
os processos criativos dos atores e não sobre procedimentos de encenação, embora, os
resultados sejam frequentemente levados a público. O trabalho realizado em laboratório
no Teatro-Escola de Arte Dramática é muitas vezes levada a público como uma
experiência em processo, para um público restrito, possuindo um caráter distinto do que
ocorre num grande teatro estatal russo, por exemplo, que é direcionado para exibir
diferentes produções de espetáculos por semana. Os processos de investigação
desenvolvidos em laboratório no Teatro-Escola se dão tanto a partir de experiências com
hexâmetros, com a cantilena ortodoxa e o com Wushu, quanto com textos como, por
exemplo, os diálogos platônicos, ensaios sobre a estética de Oscar Wilde, colóquios de
Erasmo de Rotterdam, romances de Dostoiévski e Thomas Mann, entre outos. O ator e
colaborador de AV, Igor Iatskó reflete sobre a importância desses laboratórios a partir de
textos:
Para mim, para nós, atores, é frequente trabalhar em textos
que normalmente não são chamados de dramaturgia, não são considerados
como textos dramáticos, mas sim tratados filosóficos. Isso é para nós ao
mesmo tempo como um treinamento, o entendemos como um treinamento,
para depois obter a faculdade de também ver o texto dramático como um
tratado filosófico, estético. Somente então é possível escutar o sentido da
palavra em si mesma, no plano das idéias, liberada do personagem. (IATSKÓ,
2003, depoimento em vídeo. Tradução própria do original em áudio.)
Os diversos laboratórios sobre diferentes “tratados filosóficos”
aconteceram a partir de 1988 no Teatro Escola de Arte Dramática, desde o primeiro,
intitulado Os Diálogos de Platão, seguido por Colóquios de Erasmo de Rotterdan e
Intenções de Oscar Wilde em 1989; Platão-Magritte em 1990 e A República de Platão
em 1992. Dessa pesquisa sobre a pedagogia metafisica se desdobraram outros
59
laboratórios, em que AV pretende pesquisar os aspectos conceituais e filosóficos de textos
literários como: Eu sou uma Gaivota, adaptação de Anton Tchekhov, em 1991, O Idiota,
de Dostoiévski, Fiorenza, de Thomas Mann e Soirée Molière, em 1992. A partir de 1993,
pode-se observar nas produções do Teatro-Escola de Arte Dramática uma mudança no
objeto de pesquisa pedagógica, que passa cada vez mais a ser a forma poética e musical
da dramaturgia em versos. Os laboratórios são sobre o canto ordodoxo em José e seus
irmãos, de Thomas Mann e As lamentações de Jeremias, de Vladimir Martynov, ambos
em 1996. Além dos laboratórios sobre a Ilíada, de Homero e Conversas com o Poeta, de
Púchkin, em 1994 e Soirée Pouckine, em 1995. A partir de 1995, AV começa a ministrar
cursos na Europa tendo Platão como ponto de partida e fundamento pedagógico: École
des Maîtres e Fabrica dei Registi, em 1997, por exemplo. Na École Nationale Supérieure
des Arts et Techniques du Théâtre (ENSATT), entre 2004 a 2008, AV dirigiu o curso de
formação de atores e diretores. O primeiro semestre foi totalmente dedicado aos diálogos
platônicos, enquanto o segundo explorava a relação da metafísica platônica com a do
pintor René Magritte.
O resultado desses laboratórios sobre tratados filosóficos parece levar
o ator a “escutar o sentido da palavra em si mesma, no plano das ideias, liberado do
personagem”, o que, em termos de formação do ator, significa que a sua relação com o
seu fazer artístico foi redimensionada para o trabalho com o plano metafísico. Portanto,
a pedagogia de AV abandona, ao enfatizar a aquisição de uma escuta poética da palavra,
a preocupação técnica da criação do personagem. Trata-se evidentemente de uma
transformação da conciência estética e filosófica do artista operada por uma pedagogia
que tem no seu horizonte a Paideia do ator. Werner Jaeger (2013) afirma que é uma
herança grega, toda vez que na história da pedagogia, surge a ideia de abandono de um
adestramento em função de fins exteriores, a fim de se fixar na essência própria da
educação. Para esse autor, Platão é o principal filósofo grego que encarna em seus escritos
esse ideal de formação humana, como uma dialética entre uma imagem ideal, artística e
plástica, por um lado e por outro um “tipo” normativo que se descobre na intimidade do
próprio artista. Neste capítulo, procuro refletir sobre a relação da pedagogia de AV com
a proposta de formação platônica através da dialética e como esses vínculos estruturam
uma pedagogia metafísica, destacando ainda, a importância dos diálogos platônicos
enquanto texto “formativo para a consciência estética e filosófica do artista” e que este
projeto educacional configura uma Paideia.
60
2.1. Análise de AV dos diálogos platônicos
Para a pesquisa sobre a metafisica e a pedagogia teatral de AV,
selecionei como fonte primária para análise duas transcrições que registram as conversas
entre o diretor e os alunos, em dois diferentes laboratórios desenvolvidos na Itália, sobre
os diálogos platônicos Menon e Íon. O primeiro, École des Maîtres, foi realizado em
Udine, de 19 a 30 de junho de 1995, e publicado em 1997 como o volume 1, do Libri di
Regia. O segundo, La Fabrica dei Registri, que aconteceu em Castigliocello, de 19 de
novembro a 08 de dezembro de 1997, é a transcrição a que tive acesso, não apresenta
editora. O trabalho com os textos Menon e Íon permite analisar a importância da
metafisica na pedagogia de AV, porque nesses diálogos existem aspectos estruturais e de
conteúdo que são centrais nesse processo. Nesse sentido, a situação pedagógica entre o
diretor e os atores se assemelha a de Sócrates com seus companheiros, nos diálogos
platônicos.
2.1.1. Mênon
A análise dos diálogos platônicos feita por AV não tem por objetivo
desenvolver um corpo teórico sobre o pensamento filosófico do autor, mas controntar o
ator com uma consciência mental distinta da contemporânea. O momento de análise é
particularmente importante e se estende por um tempo muito mais longo.
A análise de Mênon na Fabrica dei Registi85 aconteceu em três dias,
tendo a duração média de quatro horas por dia. A primeira razão para isso é que o diálogo
é analisado inteiro, pois o objetivo é captar a sua estrutura composicional, que não pode,
como no caso da ação dramática, ser analisada fragmentadamente, o que mudaria o seu
sentido. Uma segunda motivação está relacionada com o processo pedagógico que
enfatiza, para o ator, o pensamento sintético em detrimento do analítico, próprio da
abordagem tradicional do étude. Trata-se da reconfiguração da estrutura cognitiva do ator
na abordagem do texto, sem passar pela construção do personagem. Constantemente,
durante as aulas, AV salienta que a análise não deve ficar no plano das relações
interpessoais dos personagens, mas buscar revelar a dinâmica da estrutura composicional.
Essa dinâmica será uma espécie de mapa para o desenvolvimento do jogo cênico do ator
em cena.
85 Não há registro da organização dos horários na Ecole dês Maîtres.
61
Na Fabrica dei Registi e na École dês Maîtres, o processo pedagógico
de AV passa por três momentos principais de análise: da composição, da persona e do
objeto de jogo. A composição se refere ao entendimento do acontecimento principal, a
partir do qual se demarcam os fragmentos compositivos. A persona é o lugar a partir do
qual o ator desenvolve seu jogo cênico, enquanto que o objeto de jogo é o assunto a ser
discutido na relação dialética entre os atores.
Em 1995, no processo da École des Maîtres, AV divide o texto em sete
fragmentos. O primeiro e o sétimo são comentários entre Sócrates e Mênon sobre a
imortalidade da alma, enquanto que o terceiro e o quinto são breves comentários de ambos
sobre a reminiscência. Nos fragmentos dois, quatro e seis encontra-se o diálogo entre
Sócrates e o Escravo. Já em 1997, na Fabrica dei Registri, o trecho é apresentado dividido
em três fragmentos, sendo o que era o primeiro na École des Maîtres, transformado em
exposição e o último foi descartado, enquanto que o terceiro e o quinto passaram a ser
denominados de interlúdios. Utilizo aqui a divisão proposta por AV em 1997, pois a
considero mais própria para o recorte de estudo proposto nesta tese, a determinação da
composição lúdica no diálogo platônico. Nesta divisão, as falas são numeradas em
sequência: o primeiro fragmento vai da fala 1 até a 22, o segundo da 29 até a 74 e o
terceira da 87 até a 122. (PLATÃO, 2012, pp. 55 a 56; 57 a 59; 61 a 63)
A análise da estrutura, por AV, parte de um diálogo com os atores para
a identificação dos acontecimentos do enredo. A essa fase inicial, denomino de exposição,
utilizando o termo usado por AV na análise do texto, como o momento onde se expõe o
assunto, o tema de Mênon. Esse é um primeiro momento de entendimento da obra e
também serve como uma sondagem para saber em que ponto de compreensão da estrutura
os atores estão.
Na análise, busca-se identificar a estrutura dramatúrgica do texto:
acontecimento principal, de partida, o objeto do jogo, exposição, os fragmentos
compositivos e seus nós. AV (1995) considera exposição como a sequência inicial de uma
composição, que tem a função de resumir a história e contém o acontecimento de partida.
Transcrevo abaixo as falas referentes à exposição proposta por AV como apresentadas na
Fabrica dei Registi.
Mênon: - Seja, Sócrates! Entretanto, o que é que te leva a dizer que nada
aprendemos e que o que chamamos de saber nada mais é do que
reminiscência? Poderias provar-me isso?
Sócrates: - Não faz muito, excelente Mênon, que te chamei de habilidoso!
Perguntas se te posso ensinar, quando agora mesmo afirmei
62
claramente que não há ensino, mas apenas reminiscência; estás
procurando precipitar-me em contradição comigo mesmo!
Mênon: - Não, por Zeus, caro Sócrates! Não foi com essa intenção que fiz a
pergunta, mas apenas levado pelo hábito. Todavia, se te é possível
mostrar-me de qualquer modo que as coisas de fato se passam assim
como o dizes, demonstra-me, pois esse é o meu desejo!
Sócrates: - Não é uma tarefa fácil o que pedes; fá-la-ei, entretanto, de boa
vontade, por se tratar de ti. Chama a qualquer um dos escravos que te
acompanham, qualquer um que queiras, a fim de que por meio dele eu
possa fazer a demonstração que pedes. (PLATÃO, 2012, p. 53)
Na exposição, Sócrates afirma que não é possível aprender, pois o que
comumente se entende por aprendizado se trata de reminiscência, e da qual fará uma
demonstração. Já na exposição, é importante que os atores busquem alguma relação com
o tema do diálogo: o mistério da reminiscência e o seu desdobramento, que é a
imortalidade da alma. Dois temas estão fortemente ligados a esse processo pedagógico
proposto por AV: primeiro, o aprendizado como reminiscência e o segundo, a reação
emocional aos temas abstratos, e não somente concretos.
Durante esse primeiro momento, acontece a exposição do processo
pedagógico de AV, que identifico na pergunta feita para os atores, a qual eles não
necessariamente precisavam responder, mas com a qual deveriam se confrontar: qual a
diferença entre reminiscência e recordação?
Então eu quero fazer uma pergunta simples: vocês
acreditam que a alma é imortal? (...) Estou falando de uma emoção muito
simples que pode até não existir, e, em todo caso, é uma questão que ainda
não exige uma resposta agora. Se você acredita que a alma é imortal ou não,
se percebe a emoção deste tema, você tem que começar por isso, porque no
final, se acontecer alguma coisa, acontecerá a propósito dessa noção. Então,
aqui está a palavra "reminiscência", sentem a diferença com a palavra
"recordar"? Qual é a diferença?86 (VASSÍLIEV, 1997, p. 30, tradução
própria.)
As respostas dos atores foram bem confusas, a maioria afirmou não ter
uma noção clara do que seria uma reminiscência, ou não ter tido nenhuma experiência
sobre isso. AV responde que será necessário que o ator encontre uma relação emocional
com o tema, buscando nas coisas “muito simples”, nas “impressões mais ingênuas,
86 Allora vi pongo una domanda semplice: voi credere che l'anima sia immortale? (...) Io vi sto parlando di un'emozione molto semplice che può anche non esistere, e comunque è una domanda che non esige neppure una risposta adesso. Se voi credere que l'anima sia immortale o no, se percepite l'emozione di questo tema, bisogna cominciare da questo, perché alle fine, se succederà qualche cosa, succederà à proposito di questa nozione. Poi, qui c'è la parola "reminiscenza", sentire la differenza con la parola "ricordo"? Qual la differenza?
63
infantis, emotivas” para sentir a diferença entre as noções de reminiscência e recordação.
Salienta que ainda não será uma noção correta, mas já suficiente para iniciar o trabalho e
que no próprio processo esse entendimento irá se aprofundando.
Depois dessa exposição inicial, AV passa para a análise da estrutura
composicional do texto de Platão, perguntando como começa e como termina o diálogo
entre Sócrates e o rapaz, para descobrir qual é o seu assunto, o seu tema principal. Para
isso, AV começa destacando três frases ditas pelo escravo: “Mas é evidente, Sócrates,
que será o dobro”; (PLATÃO, 2012, p. 55). “Mas, por Zeus, Sócrates, não sei!”;
(PLATÃO, 2012, p.59). “Perfeitamente, Sócrates!” (PLATÃO, 2012, p.63). No começo
do diálogo, o escravo acredita saber, mas seu conhecimento está errado; na segunda,
admite não saber; na terceira, conhece corretamente a verdade. Cada uma dessas três
frases está no final de cada um dos três fragmentos do texto e contém o reflexo do escopo,
segundo uma perspectiva orientada pelo acontecimento principal. A grande força
propulsora do jogo que está contida no acontecimento principal é o mistério da
imortalidade da alma e o mistério da reminiscência. O tema do diálogo é a natureza do
saber e seus mecanismos de construção.
Para que o ator visualize que tipo de mecanismo Sócrates utiliza para
levar o rapaz a dizer, no final do primeiro fragmento, “Mas é evidente, Sócrates, que será
o dobro” (PLATÃO, 2012, p. 55), será necessário que se analise a estrutura do texto. No
início, Sócrates pergunta ao rapaz: “Se, pois, este lado mede dois pés e este também dois
pés, quantos pés terá a superfície deste quadrado? Examina da seguinte maneira: se isto
for igual a dois pés e isso igual a um pé, a superfície não terá de ser o resultado de uma
vez dois pés?” (PLATÃO, 2012, p. 55). Nessa fala, Sócrates arma o mecanismo de uma
armadilha, pois as perguntas iniciais são matematicamente muito simples: 2 x 2 e 2 x 1.
Mas não é a simplicidade das respostas que leva o rapaz a cair em erro no final do
fragmento, mas o que AV denomina de “ideologia da segurança”. Quando o rapaz diz:
“Isso eu sei” (2 x 2), na realidade está dizendo: “Eu sei que sei” (PLATÃO, 2012, p. 55).
Nesse primeiro fragmento, o rapaz acredita saber a resposta do problema. Ele experimenta
a alegria do saber, que conforme AV (1997) é uma emoção muito irracional, pois ela nos
arma de uma espécie de segurança que nos coloca numa situação paralisante. O saber é
da ordem do que já conhecemos, a nós pertence, trata-se de um conhecimento
solidificado.
64
Sócrates propõe um quadrado, em seguida, divide em dois,
e, finalmente, propõe ao escravo duplicar continuamente. O escravo é
absolutamente certo que tudo que é dobrado se torna duas vezes mais, mas
isto não é aritmética, é ideologia: esta é a armadilha com que Sócrates constrói
a provocação87. (VASSÍLIEV, 1995, p. 135, tradução própria.)
Nessas falas do primeiro fragmento, Sócrates propõe ao rapaz um
problema matemático através do desenho de um quadrado. No entanto, trata-se de uma
armadilha para revelar o conhecimento errado do rapaz. “Experimenta agora responder
ao seguinte: que comprimento terá cada lado da nova figura? Repara: o lado deste mede
dois pés, quanto medirá, então, cada lado do quadrado de área dupla?” (PLATÃO, 2012,
p. 55). Esta é a fala de Sócrates que deixa clara a armadilha, na qual o escravo é apanhado
quando dá uma resposta errada. O mecanismo dessa armadilha é a ideologia do
conhecimento do rapaz, que é calcado na certeza de que 2 x 2 sempre são 4. Na nossa
consciência, existe o chamado mecanismo de duplicação, que associa o resultado de
operações concretas (2 + 2) com as abstratas (2 x 2), tendo como resultado quatro. Desse
mecanismo resulta um tipo de ideologia, que AV afirma ser a da nossa consciência, a da
segurança.
É importante que o ator esteja concentrado no mecanismo dessa
armadilha, em como Sócrates arma a armadilha e como afinal o rapaz é capturado nela.
Isso permitirá ao ator agir durante a cena usando a perspectiva invertida. Na fala “examina
da seguinte maneira” (PLATÃO, 2012, p. 55), Sócrates começa a armar o mecanismo e
na fala 22: “Mas é evidente, Sócrates, que será o dobro!” (PLATÃO, 2012, p. 55), o rapaz
cai. AV salienta que quando o ator começar a pronunciar a fala 9, ele já deve experimentar
a energia emocional da fala 22, pois nela se encontra a mola propulsora do seu jogo
cênico, de modo que ao montar a armadilha ele já viva a sua conclusão - a isto AV chama
de agir em perspectiva, quando se atua a partir do final.
Agora, o menino sabe que sabe e seu saber fundamental
consiste no 2x2 = 4, é um saber muito banal e difundido entre as pessoas de
todo o mundo, todos nós sabemos que sabemos, e que o menino está orgulhoso
deste seu saber, porque se o rapaz não cometeu nenhum erro, ele sabe.
Sócrates diz: "Veja que o menino está convencido de que ele sabe, está feliz
Agora vamos tentar fazê-lo entender que ele na verdade, não sabe". Este é uma
87 Socrate propone un quadrato, poi lo divide in due e infine propone allo schiavo di raddoppiare continuamente. Lo schiavo è assolutamente sicuro che tutto ciò che si raddoppia diventa due volte tanto, ma questa non è aritmetica, è ideologia: questa è la trappola su cui socrate costruisce la provocazione
65
operação muito séria e complexa, a partir daqui começa outro fragmento88.
(VASSÍLIEV, 1997, p.161)
AV (1995) afirma que “o segundo fragmento é um percurso
labiríntico”. Usando essa imagem do labirinto, AV faz os atores visualizarem o trajeto do
escravo, percorrendo caminhos que dão sempre num beco sem saída, de modo que
independente das decisões tomadas a situação acaba sempre em erro. Esse é jogo do
segundo fragmento. As respostas são sempre erradas, porque Sócrates pergunta ao rapaz
qual é a medida lateral de um quadrado com área de oito pés e não existe uma resposta
precisa para essa questão.
Sócrates - Tu, pois, dize-me. Afirmas que uma linha dupla
dá origem a uma superfície duas vezes maior? Compreende-me bem: não falo
de uma superfície longa de um lado e curta de outro. O que procuro é uma
superfície como esta, igual em todos os sentidos, mas que possua uma
extensão dupla, ou mais exatamente, de oito pés. Repara agora se ela resultará
do desdobramento da linha. (PLATÃO, 2012, p. 57)
Nesta fala, Sócrates retoma a afirmação do rapaz de que uma linha
duplicada de um quadrado gerará o dobro da sua superfície e que, portanto, no exemplo
do quadrado citado a área com certeza será de oito pés. Através do desenho, Sócrates vai
demonstrar que essa afirmação do rapaz está incorreta e perguntar, então, qual é a medida
da linha de um quadrado de superfície de oito pés. Depois que o rapaz percebe seu erro,
ele sugere que a medida da linha do quadrado de superfície oito é três. Sócrates demonstra
que a área desse quadrado de linha três é nove e não oito. Então, finalmente, Sócrates
pergunta qual é o número dessa linha, mas o rapaz não sabe a resposta: “mas, por Zeus,
Sócrates, não sei!” (PLATÃO, 2012, p.59). O rapaz tentou várias respostas e todas
estavam erradas, levando-o a um beco sem saída.
O menino poderia até chorar, é emotivo, faria o que lhe é
pedido, mas ele não pode, se desesperará, mas será forçado a admitir que ele
não sabe o que fazer e dizer, eu não sei. Neste ponto, o menino provará uma
emoção muito importante para ele, se acalmará, provará uma serenidade
estranha e atenção, e agora o mundo para ele não vai fazer mais 2 x 2 = 4,
duvidará e vai chegar a uma espécie de calma interior que vai permitir que
88 Adesso il ragazzo sa di sapere e il suo sapere fondamentale consiste nel 2x4=4, è un sapere molto banale e diffuso fra la gente di tutto il mondo, tutti noi sappiamo di saperlo, e il ragazzo è fiero di questo su sapere, perciò il ragazzo non sbaglia, lui sa. Socrate dice: " Vedi che il ragazzo è convinto di sapere, è, felice. Adesso cerchiamo di fargli capire che lui in effetti non sa". Questa è un'operazione molto seria e complessa, da qui inizia un altro frammento.
66
ele sinta, perceba o que Sócrates lhe está propondo e talvez viver uma nova
experiência.89 (VASSILIEV, 1996, p. 37, tradução própria)
No segundo fragmento, o escravo admite que não sabe a reposta correta.
AV (1997) salienta que o rapaz, nesse trecho, não apenas descobre intelectualmente que
ele não conhece a resolução, mas revive a emoção do não-saber, que, diferente da
anterior, é curiosa, ativa, buscadora, ávida e vibrante.
AV denomina o terceiro fragmento de “diagonal”. Neste, Sócrates leva
o rapaz a visualizar a resposta para o problema que ele não tinha conseguido resolver no
segundo fragmento. A resposta ao problema matemático que Sócrates colocou para o
escravo é um número infinito (2,8284271247461903...). Qual é o número que
multiplicado por ele mesmo resulta oito, ou em termos matemáticos, qual é a raiz
quadrada de oito. Para que o escravo rememore a resposta, Sócrates se utiliza da
geometria, como forma de visualizar o número infinito. Desenha um quadrado de 16 pés
de área e o divide em quatro quadrados de 4 pés de área.
(Figura 3 – Quadrado de quatro pés de área)
Depois, traça a linha diagonal de cada um dos quatro quadrados de área
de 4 pés, desenhando um quadro com área de 8 pés.
89 Il ragazzo potrebbe anche piangere, é emotivo, vorrebbe fare ciò che gli se chiede, ma non se riesce, si dispererá, ma sará costretto ad ammettere che non lo sa fare e dirà: Non lo so. A questo punto il ragazzo proverá un emozione molto importante per lui, si calmerà, provera una strana serenitá e attenzione, ora el mondo per lui non farà più 2 x 2 = 4, dubiterá e raggiungera una sorta de calma interiore que gli permetterá si sentire, percepire che cosa Socrates gli sta proponendo e potrà forse vivere una nuova esperienza.
67
(Figura 4 – Quadrado de oito pés de área)
Finalmente, o Escravo visualiza a diagonal como a representação
gráfica do número infinito que é a raiz quadrada de oito. A diagonal é o símbolo do
infinito e representa a imortalidade da alma, o que possibilita que o escravo sinta a
emoção da reminiscência. No terceiro fragmento, o rapaz tem a reminiscência da resposta
correta. O escravo revive a emoção da percepção do infinito, da sua própria imortalidade,
através desse ato da reminiscência. Ele chega intuitivamente à resposta da medida do lado
do quadrado com área de oito pés, que é um número infinito.
Aquilo que se recorda é uma experiência maior da
geometria dentro da qual existe também uma resposta geométrica. Recorda-
se de uma linha infinita, uma linha que é um número imortal, e dentro deste
mistério do infinito diz: "É assim". Sócrates diz: "Para este infinito se precisa
dar um nome. Como você é o escravo do Menon, assim esta linha é chamada
a diagonal”. Ele deveria ter dito que o nome da linha é ‘Deus’ ou ‘O Infinito’
ou ainda ‘O Imortal’. O nome de Deus está escondido no nome "diagonal". O
termo refere-se à geometria da divindade90. (VASSÍLIEV, 1995, p. 137,
tradução própria.)
A palavra ‘diagonal’ deve ser preenchida de significado pelo ator, seja
através da imaginação, seja através dos sentimentos despertados na exposição. Todo o
jogo composicional é estruturado para que os dois atores cheguem até esse momento,
onde se conhece, nas palavras de AV, “o mistério da imortalidade da alma”. Após essa
análise os atores devem se dedicar ao trabalho prático.
Um dos alunos da École des Maîtres pergunta para AV se esse método
está muito distante da concepção psicológica do sistema Stanislavski:
90 Quello che si ricorda è un'esperienza più grande della geometria all'interno della quale c'è anche una risposta geometrica. Si ricorda una linea infinita, una linea che è un numero immortale, e all'interno di questo mistero dell'infinito dice:"È cosí". Socrate ribatte:"A questo infinito bisogna dare un nome. Come tu sei lo schiavo di Menone, così questa linea si chiama diagonale". Avrebbe dovuto dire che il nome dell linea è "Dio" o "L'infinito", oppure 'l'immortale'. Il nome di Dio è nascosto nel nome "diagonale". Il termine geometrico rimanda alla divinità.
68
Sim, estamos muito longe, embora não tenhamos utilizado
todos os elementos, nós conseguimos manter o seu principal efeito: a
revivescência, o fato de que a atuação não é uma forma fixa, mas um processo
que ocorre no palco. Simplesmente se tende para a revivescência de corpos
abstratos e não de corpos concretos. Quando ele estava trabalhando em seu
estúdio, Stanislávski se ocupava de vida dos corpos concretos, mas isso é
compreensível porque seu teatro nasceu há cem anos. Eu acho que o sistema
lúdico é uma reconstrução do método Stanislávski, não é algo que se opõe.
(...) O método Stanislávski foi criado para que o ator sempre consiga sentir o
processo de atuação e também no sistema de lúdico se orienta a obter o mesmo
resultado91. (VASSÍLIEV, 1995, p. 140 e 141, tradução própria.)
O diálogo Mênon é utilizado como um exercício para o ator na
pedagogia de AV com dois objetivos principais, primeiro, perceber o processo artístico-
pedagógico como uma reminiscência e, segundo, vivenciar experiências emocionais a
partir de temas abstratos, como o da imortalidade da alma.
AV afirma que o excesso de detalhes na análise dos fragmentos poderia
bloquear o processo criativo do ator, por isso indica apenas alguns poucos elementos.
Procura-se trabalhar gradualmente, partindo dos princípios indicados no exame dos
fragmentos, considerando-se que se trata de um movimento de aproximação que não
pretende exaurir todos os significados do texto. A continuação da análise, portanto, deve
ser direcionada para outro tópico do sistema lúdico, que AV sugere que seja “como se
relacionam as personas dentro do jogo”. (VASSÍLIEV, 1995)
O diálogo platônico fornece indicações muito precisas sobre a relação
das personas, através das quais AV desenha o seu percurso de análise. Primeiramente,
deve-se determinar a posição de Sócrates e a do Escravo em relação ao escopo do diálogo,
porque sem isso não será possível entender como eles agem. Os atores, então, “devem
recriar o escopo com a imaginação”, encontrando um caminho pessoal, não intelectual,
mas carregado de energia emocional, para chegar à descoberta do mistério da
imortalidade da alma.
Obviamente, o texto é complexo no plano conceitual e,
provavelmente, nenhum de vocês foram alguma vez confrontados com essas
questões na vida. No entanto, você tem que tentar ter uma ideia, usando a
imaginação, do que seja a imortalidade da alma. Este trabalho está relacionado
91 Sì, siamo molto lontani, anche se ne abbiamo utilizzato tutti gli elementi e siamo riusciti a mantenerne l'effetto principale: la reviviscenza, il fatto che la recitazione non sia una forma fissata ma un processo che si svolge sulla scena. Semplicemente si tende alla reviviscenza di corpi astratti e non di corpi concreti. Quando lavorava nel suo atelier, Stanislavskij si occupava della vita dei corpi concreti, ma questo è comprensibile perché suo teatro è nato cento anni fa. Credo che il sistema ludico sia una riconstruzione del metodo Stanislavskij, non qualcosa che gli si contrappone. (...) Il metodo Stanislavskij è creato in modo che l'attore riesca sempre a sentire il processo della recitazione e anche nel sistema ludico si punta a ottenere lo stesso risultato.
69
com uma mudança na personalidade do ator, conhecido por estar interessado
em problemas diferentes, aqueles relativos às relações sociais e psicológicas.
É um processo importante na vida do ator, um processo que abre uma diferente
esfera emocional92. (VASSÍLIEV, 1995, p. 141, tradução própria.)
Depois que o ator encontrou essa emoção, está em condições de se
posicionar em relação ao início do texto e, só então, criar uma negação desse sentimento
e, o que o coloca na posição inicial do diálogo, onde existe essa negação. O percurso do
diálogo vai da negação inicial à afimação final, mas para que aconteça o final previsto, o
ator deve ter esse contato emocional com o tema, no fim do diálogo. AV denomina de
perspectiva a essa distância gerada pela negação da emoção produzida pelo escopo e é ela
que vai permitir o jogo do ator. A perspectiva está ligada ao fato de que o ator em cena
sempre saberá aquilo que fará em seguida: “o ator não deve recitar lá onde se encontra,
(...) precisa atuar sempre um pouco longe de onde se encontra”. (VASSILIEV, 1995, p.
78).
O processo do jogo que se desenvolve ao longo dos fragmentos
compositivos, que no sistema psicológico é resultado do ‘conflito’, no sistema lúdico é
denominado dialeticamente, por AV, de ‘acordo e alternativa’. Além do escopo, que é um
ponto de acordo, existem outros pontos semelhantes, em geral localizados no final de
cada fragmento, os “nós”. Cada um dos nós é um acordo que reflete o do escopo. No final
do primeiro fragmento de Mênon, o acordo se manifesta nas três falas em sequência do
Escravo, Sócrates e Mênon: “É claro, Sócrates, que é o dobro!”, “Vê, Mêmon?”, “Sim”.
(PLATÃO, 2012, p.55). Depois deste nó, as personas voltam para o conflito lúdico, para
a divergência ou alternativa.
O jogo da persona pode ser descrito como o do acordo conduzido
através do desacordo. Ou seja, nega-se estar de acordo para, através do desacordo, chegar
ao acordo. Este tipo de jogo é semelhante ao mesmo do blefe, do flerte, da finta e da
ironia. Nos diálogos platônicos, a ironia é um dos elementos chave da estrutura dramática,
e está um grau acima da socrática93. A negação do acordo estabelece uma distância,
necessária para que se desenvolva o jogo de retorno ao acordo. Nesse sentido, numa
92 Ovviamente il testo è complesso sul piano concettuale e probabilmente nessuno di voi è stato messo a confronto con questioni del genere nella vita; ciononostante dovete cercare di farvi un'idea, ricorrendo all'immaginazione, di cosa sia l'immortalità dell'anima. questo lavoro è legato al mutamento della personalità dell'attore, chiamato a interessarsi a problemi diversi da quelli relativi ai rapporti psicologici e sociali.si tratta di un processo importante nella vita dell'attore, un processo che ci apre una diversa sfera emozionale. 93 Para uma conceituação da diferenciação entre ironia socrática e a platônica ver o livro de Giovanni Reale, Per una nuova interpretazione di Platone. Editora Vita e Pensiero, Milano, 2003.
70
estrutura lúdica, o acontecimento de partida é o ponto máximo da negação
(distanciamento) do acontecimento principal, que é a zona de maior acordo. Esse percurso
do desacordo para o acordo pode ser feito de diferentes maneiras, constituindo fragmentos
que compõe uma estrutura maior. Por exemplo, um tipo de jogo acordo/desacordo como
o flerte, pode se estabelecer numa primeira variante, como um homem que flerta com
uma mulher que não corresponde a sua ação, mas quando a mulher finalmente cede,
chega-se ao acordo, a partir daí, cria-se um novo desacordo, surgindo assim, a segunda
variante, a mulher flerta com o homem, que por sua vez não corresponde, até o momento
em que retornam ambos ao acordo. Essa é a estrutura lúdica do jogo.
A ironia é o jogo que cria um campo onde atua uma força de atração
que possibilita a ação. O jogo irônico que o ator deve captar é o que acontece quando se
parte do conhecimento do acontecimento fundamental rumo ao inicial, onde se nega esse
conhecimento. Esse procedimento não se refere à utilização da ironia como característica
psicológica.
Imagine ser orientado pelo final e ser colocado à distância
para começar a agir. Neste ponto, o jogo é ironia. Com esta ironia se atravessa
um fragmento e, quando tiver terminado, você vai encontrar-se de volta em
acordo; então você vai ter que encontrar outra divergência para abordar o
fragmento seguinte e assim por diante até ao fim. Segue-se que você vai ter
articulado uma composição: neste caso, o que é chamado de 'agir' muda a sua
essência e se torna 'compor', 'criar uma composição'94 (VASSILIEV, 1995, p.
126. Os grifos do autor. Tradução própria).
O conflito transformado em jogo é conduzido através de uma
diferenciação, uma divergência que permite agir. No entanto, como não se trata de uma
ação de conflito, esse agir é denominado de ‘compor’ (VASSILIEV, 1995). A disposição
das diversas divergências determina a composição. Os atores devem encontrar uma
contraposição ativa entre eles. No caso do diálogo Mênon, o conflito entre os personagens
principais é de concepção, para Mênon é o convencimento e para Sócrates, a
reminiscência. Essa contraposição não pode ser abstrata, mas concreta.
Para que isso seja possível, é necessário que a proposta de
Mênon seja irônica e que a de Sócrates tenha uma imagem oposta, ou seja, a
incapacidade de convencer. Se vocês se limitarem a discutir com as palavras,
então sua ação será ‘eu discuto', mas isso não é suficiente: devem contrapor
94 Immaginate di essere orientati rispetto al finale e di essere messi a distanzia per cominciare ad agire. A questo punto il gioco è ironia. Con questa ironia attraverserete un fragmento e, quando lo avrete chiuso, vi troverete di nuovo in accordo; poi dovrete trovare un'altra divergenza per affrontare il fragmento successivo e così via fino al finale. Ne consegue che avrete articolato una composizione: in questo caso, ciò che viene chiamato 'agire' cambia la sua essenza e diventa 'comporre', 'creare una composizione'.
71
os conceitos de 'convencer' e 'relembrar'. Se você puder dar às palavras um
sentido mais profundo, o diálogo acontecerá melhor. A ação aparece somente
quando você age com o conhecimento, ou melhor, com as imagens que estão
por trás desses conhecimentos. Em suma, é necessário criar um conflito entre
as essências. Também é necessário que a sua imagem seja oposta à de seu
parceiro. Se quando você diz: "Convencer" você vai pensar que você não pode
convencer ninguém, isso já será suficiente para criar humor95. (VASSILIEV,
1995, p. 192. Grifos do autor. Tradução própria)
A ação lúdica nasce da fricção entre duas visões diferentes do objeto de
diálogo. O embate não é uma luta, mas um jogo e, portanto cada um deve defender
posições contrárias para que ambos descubram o mistério do objeto de diálogo (LUPO,
2006). O ponto de partida para o diálogo é, portanto, um acordo prévio entre os jogadores,
mas para que o diálogo avance é necessário um desacordo, que é realizado pelas
personagens. A relação entre a persona e o personagem é dialética.
Não devemos sentir o que o personagem sente. (...) Você
deve sempre pensar tendo presente dois significados: quando atuam partindo
do conflito procedem segundo um significado único, quando ao invés, a partir
do jogo, procedem segundo simultaneamente dois sentidos, você está ao
mesmo tempo em concordância e discordância, então os processos de criação
serão os mesmos, só que ao invés, estão estruturados de forma diferente
(VASSILIEV, 1995, p. 127. Tradução Própria).
AV salienta que o ator deve buscar a natureza do jogo em si mesmo e
não tentar acessar esse estado através da racionalidade.
O jogo deve ser divertimento: você não deve tentar
compreendê-lo com a racionalidade, mas acessá-lo graças a sua natureza
infantil, a seu espírito lúdico96 (VASSILIEV, 1995, p. 121.Tradução própria).
2.1.2. Íon
A análise de AV começa pela última fala do texto Íon: “O que você
acredita ser o mais belo nós te concedemos, Íon. Sim, ser elogiador de Homero, mas como
95 Perché questo sia possibile bisogna che la proposta di Menone sia ironica e che Socrate abbia un'immagine contrapposta, cioè l'impossibilità di convincere. Se vi limitate a discutere con le parole, allora la vostra azione sarà 'io discuto', ma questo non è sufficiente: dovete contrappore i concetti di 'convincere' e 'ricordare'. Se riuscite a dare alle parole un senso più profondo il dialogo riuscirà meglio. L'azione compare solo quando agite con delle cognizioni, o meglio con delle immagini che stanno dietro a queste cognizioni. Insomma, deve crearsi un conflitto tra le essenze. Inoltre è necessario che alla vostra immagine si contrapponga quella del partner. Se quando dite: "convincimi" penserete che non è possibile convincere nessuno, questo sarà già sufficiente per creare lo humour. 96 Il gioco deve essere un divertimento: non dovete cercare di capirlo con la razionalità, ma entrarvi grazie alla vostra natura infantile, al vostro spirito ludico.
72
homem divino e não como aquele que tem a arte97” (PLATÃO, 2011, p. 59). A partir dela,
AV pergunta em que se contrapõem essas duas cognições: o ‘homem que tem arte’ e o
‘homem divino’. Para AV, trata-se de duas cognições contrapostas, na primeira, depende-
se de uma habilidade que nasce da condição humana, enquanto que na segunda, de algo
que advém do exterior, como uma inspiração. para se encontrar a resposta é necessário
perceber como Sócrates trata o tema do divino neste texto.
Um homem de arte pode ser um homem divino, mas Sócrates despoja
o Rapsodo Íon de sua arte, afirmando que ele não a possui, porque para o filósofo toda
arte deve possuir um conhecimento, como, por exemplo, a arte de pescar é o
conhecimento de capturar peixes, ou a arte da escultura é a de produzir esculturas. Íon
afirma que a sua é a arte da palavra, ao que Sócrates pergunta, se isso for correto, qual é
o objeto da arte de Homero? AV chama atenção para que os atores se peguntem, como
Sócrates no texto, qual é o objeto da arte do ator? Que conhecimento ela possui?
O termo arte é entendido aqui na sua acepção grega, como técnica,
habilidade de fazer algo, mas fundamentalmente arte é o termo que determina algum tipo
de conhecimento. Nesse sentido, AV explica que a atividade de Sócrates é um tipo de
arte, como no exemplo de Mênon, onde as sucessivas perguntas conduziram o Escravo
até a reminiscência e portando ao conhecimento da imortalidade da alma. A arte de
Sócrates é a de perguntar e, portanto ele é uma espécie de “artesão de Deus”
(VASSILIEV, 1995).
No Mênon está escrito de forma muito clara que o que
leva à reminiscência é a capacidade de interrogar. Nesse texto, a capacidade
(a arte) é realmente ligada ao divino, porque ele consegue colocar o homem
em contato com a divindade. Sem a arte de fazer perguntas o escravo não
conseguiria encontrar nada. E dado que só quem conhece a resposta pode fazer
uma boa pergunta, obviamente Sócrates conhece o mistério da alma: assim a
capacidade humana e a revelação divina, se encontram reunidos. No Íon, ao
invés, as duas concepções permanecem separadas. Mas essas concepções são
divisíveis? O texto deixa a questão em aberto, mas para além das fronteiras
deste texto existe uma resposta98. (VASSÍLIEV, 1995, p. 156, tradução
própria).
97 Ciò che tu ritieni essere più bello noi te lo accordiamo, Ione. Sì, lodatore di Omero, come uomo divino e non uno che ha l'arte". 98 Nel Menone è scritto a chiare lettere che ciò che porta alla reminiscenza è la capacità di interrogare. In questo [Íone] testo la capacità (l'arte) è effettivamente collegata al divino, perché riesce a mettere in contato l'uomo con la divinità. Senza l'arte di porre le domande lo schiavo potrebbe non scoprire mai niente. E dato che solo chi ne conosce la risposta può porre una buona domanda, evidentemente Socrate conosce il mistero dell'immortalità dell'anima: così la capacità umana e la rivelazione divina si trovano riunite. Nello Ione invece le due concezioni rimangono separate. Ma si tratta di concezioni divisibili? Il testo lascia la questione aperta, ma oltre le frontiere di questo testo c'è uma risposta.
73
AV salienta que o acontecimento principal está fora do limite do texto
e reúne dois sentimentos: “a emoção do divino” e “a emoção do gerir da arte”. Portanto,
para que o ator consiga atuar a partir desse texto é necessário que o próprio tome uma
distância irônica sobre si mesmo, enquanto artista. “A ironia é absolumente necessária
par analisar o texto” (VASSILIEV, 1995, p.87). No texto Mênon, a capacidade (arte) de
Sócrates existe, e com ela consegue levar o Escravo a experimentar a divindade. Em Íon,
a inexistência da capacidade (arte) torna irônica a afirmação inicial de Sócrates, de que o
Rapsodo é um ser divino. Então, a ironia se refere tanto à capacidade artística de Íon,
quanto a sua ligação com a divindade. O texto está cheio desse humor irônico, pois
quando Íon afirma uma coisa Sócrate nega e vice-versa, mas essa qualidade só pode ser
alcançada se existir o acordo entre as duas personas, caso contrário, o texto se torna
pesado e o conflito se manifesta como luta.
Assim, o texto platônico, afirma AV, sempre começa negando aquilo
que quer afirmar, por isso eles são plenos de humor e “ligeireza”. Se um diz “sim”, o
outro diz “não”. Enquanto Íon afirma que é um homem de arte, Sócrates, através das
perguntas vai tecendo uma espécie de rede de pesca, com a palavra e a ironia para capturar
o rapsodo. Durante toda a primeira parte existem três armadilhas nas quais Íon cai, mas
das quais sempre consegue escapulir. Na exposição, Íon afirma ser “aquele que fala as
mais belas coisas acerca de Homero” (PLATÃO, 2011, p.27). Sócrates pergunta a Íon se
ele é bom, também, em falar sobre outros poetas, ao que o rapsodo responde ser excelente
somente em Homero. Então Sócrates pergunta se Íon não saberia falar sobre coisas que
são temas comuns entre os poetas.
SÓCRATES: - Mas existe algo acerca de que Homero e Hesíodo dizem ambos
as mesmas coisas?
ÍON: - Certamente, muitas coisas.
SÓCRATES: - Pois bem, acerca destas, falarias melhor daquelas de que fala
Homero ou daquelas de que fala Hesíodo?
ÍON: - Faria do mesmo modo, Sócrates, mas apenas acerca daquelas, sobre as
quais eles dizem as mesmas coisas.
SÓCRATES: - Mas acerca das quais eles não dizem as mesmas coisas? Por
exemplo, acerca da adivinhação falam algo tanto Homero quanto Hesíodo?
ÍON: - Certamente.
SÓCRATES: - E então? Tanto das coisas das quais falam de modo semelhante
quanto das que falam de modo diferente, acerca da adivinhação, esses dois
poetas, tu falarias melhor ou um bom adivinho?
ÍON: - Um advinho. (PLATÃO, 2011, p. 29.)
74
AV diz que nesse ponto, quando Sócrates introduz o tema do advinho,
é que começa a ser criada a armadilha. Pois o rapsodo afirma que só sabe falar bem das
coisas que são temas comuns, mas não o sabe naquilo em que os poetas diferem. Através
da imagem do advinho, Sócrates coloca a seguinte questão: se um advinho ouvisse o que
Homero fala sobre a adivinhação e o que ele fala divergisse do que fala Hesíodo, por
exemplo, ele estaria em condições de saber quem fala bem e quem não fala, pois conhece
a arte da adivinhação. Seria, portanto, ilógico o advinho saber dizer só sobre quem fala
conforme as regras da adivinhação, mas não saber opinar nada sobre aquele que fala sobre
essa prática de maneira totalmente errada. Nesse momento, Sócrates pergunta a Íon como
ele pode ser um especialista em Homero e não saber falar nada sobre outros poetas. Pois
se toda arte, como afirma Sócrates, leva em consideração o todo, uma especialização
como a do rapsodo não é de modo algum uma arte, ou seja, a capacidade de julgar o que
é semelhante e igual, inferior e superior, bom ou pior, no conhecimento de determinada
atividade.
“Em que tu és especialista?” “Sou especialista apenas em
Homero”, responde Íon. Mas como isso é possível? Você pode ser um
especialista na Sexta sinfonia de Tchaikovski e não na Quarta sinfonia de
Beethoven? Como isso é possível? O fato de ser especializado em Molière não
quer dizer que eu não entendo nada sobre Chekhov. Por isso, se Íon afirma ser
um especialista em Homero e não entende nada de Hesíodo, isso significa que
ele não entende nada de Homero. A arte é um método para gerir algo, não o
conhecimento de um dado. Se eu só posso ler Homero, enquanto Hesíodo já
não consigo ler, isso significa simplesmente que eu não sou capaz de ler99.
(VASSÍLIEV, 1995, p. 159, tradução própria.)
O monólogo de Sócrates no final do segundo fragmento é uma resposta
a pergunta de Íon de por que ele afinal é bom em recitar Homero e não outros autores.
Sócrates – Pois não é em virtude de técnica nem de ciência
que tu dizes as coisas que dizes acerca de Homero, mas por concessão e
possessão divinas, como os coribantes percebem com acuidade apenas aquela
canção que for daquele deus pelo qual eles são possuídos, e para essa canção
eles são desembaraçados e abundantes de fomras e palavras, mas das outras
não cuidam, assim também tu, Íon, acerca de Homero, sempre que alguém o
menciona, és desembaraçado, mas acerca dos outros não é, é que não é em
virtude de técnica, mas de concessão divina, que és excelente em louvar
Homero. (PLATÃO, 2011, p.45)
Esse é o jogo do primeiro fragmento. Sócrates deve privar Íon de sua
especialidade, de sua técnica, afirmando que ele recita Homero por possessão divina, a
99 "Tu in cosa sei specialista?". "sono specialista solo in Omero", risponde Ione. Ma come è possibile? Si può essere specialista nella Sexta sinfonia di Cajkovskij e non nella quarta di Beethoven? Qui da voi è possibile? Il fatto che uno sia specializzato in Molière non vuol dire che non capisca niente di Chechov. quindi, se Ione afferma di essere uno specialista di Omero e di non capire niente di esiodo, vuol dire che non capisce niente di Omero. L'arte è un metodo per gestire qualcosa, non la conoscenza di un dato. Se posso leggere solo Omero, mentre Esiodo già non riesco a leggerlo, significa semplicemente che no so leggere.
75
fim de que se abra o caminho ao acontecimento principal, que é: aquele que é capaz (o
que tem técnica) e aquele que é divino (inspiração artística) são a mesma persona.
Sócrates e Íon são idênticos enquanto personas e o jogo irônico é estabelecido aqui, como
uma forma lúdica de fazer a ação se desenvolver. Mas, como Platão, ao final do diálogo,
deixa em aberto a resolução dessa questão, a resposta se encontra no futuro, para além do
fim do texto, como síntese dialética.
O aprendizado de atuação proposto por AV é o da capacidade do ator
em gerir um papel, o que, em termos práticos, significa o estudo da relação entre o homem
e o papel e não a criação ou construção do personagem. Na profissão de diretor teatral,
exemplifica AV, para que ele possa trabalhar é necessário que o ator atue: “se o ator não
atua, eu não posso trabalhar” (VASSILIEV, 1995, p. 164. Tradução própria). Essa é a
mesma relação entre o musicista e seu instrumento, por isso AV salienta que o diretor
deve primeiro ser professor do ator para depois poder ocupar-se da direção. Para os atores
vale a mesma regra, devem primeiro encontrar um método de trabalho que reflita o seu
talento, a sua inteligência e a sua filosofia. A concepção artística de AV é a de que “a arte
do Diretor não interessa a ninguém se o Ator atua mal” (VASSÍLIEV, 1995, p. 165.
Tradução própria) e por essa razão, afirma que se dedica ao trabalho pedagógico de
ensinar a “arte de gerir, de gerir o papel” (VASSILIEV, 1995, p. 165 Tradução própria).
A segunda parte do diálogo começa na fala 80, quando Íon diz: “Mas
creio que nem a ti pareceria tal coisa, se me ouvisses falando acerca de Homero” a qual
Sócrates respode: “E, com efeito, desejo te ouvir, mas não antes que me respondas”
(PLATÃO, 2011, p. 45). Tanto a primeira parte como a segunda começa com Íon tentando
recitar os versos de Homero e Sócrates não permitindo isso. Essa segunda parte é dedicada
ao objeto de arte do rapsodo e pode ser dividida em três fragmentos.
Sócrates constrói uma armadilha para Íon a partir da seguinte fala:
“Mas, então, não será também assim no que concerne a todas as artes: as coisas que
conhecemos por uma arte, não conheceremos por outra? Mas, antes disso, me responde o
seguinte: não chamas tu uma dada arte de um modo e uma outra de um outro modo?”
(PLATÃO, 2011, p. 33). E segue argumentando com Íon que toda arte tem um nome e
uma especificidade, como por exemplo, para contar o dedos da mão, usa-se a aritmética.
Do mesmo modo, se conhecemos a arte da música, saberemos de que tipo de música se
trata, ou se é bela ou não. Neste ponto, Sócrates prepara a armadilha que funciona desse
modo:
76
SÓCRATES – Peguemos um trecho de Homero, tu me lês o texto. Nesse
trecho se fala da arte do auriga. Quem a conhece melhor? Tu que és um
rapsodo ou um auriga?
ÍON – Obviamente um auriga.
SÓCRATES – Peguemos outro trecho da Ilíada, relativo à arte da medicina:
quem a conhece melhor? Tu que és um rapsodo ou um médico?
ÍON – Um médico.
SÓCRATES – Eu sei que vós rapsodos muitas vezes têm a aspiração de se
tornar advinhos. Na Íliada e na Odisséia existem muitos trechos relativos à
arte da adivinhação. Quem a conhecerá melhor? Tu que és um rapsodo ou um
advinho?
ÍON – Um advinho.
SÓCRATES – Mas e o rapsodo, tem uma arte própria? Qual será a coisa que
ele sabe melhor?
ÍON – Falar. Dizer da melhor maneira aquilo que convém dizer: isto é relativo
a arte do rapsodo.
SÓCRATES – Se for preciso dirigir um navio, quem falará de maneira
melhor? Um rapsodo ou um capitão?
ÍON – Um capitão.
SÓCRATES – Se for preciso curar um doente, quem falará de maneira
melhor? Um rapsodo ou um médico?
ÍON – Um médico.
SÓCRATES – Se for preciso mandar um exercíto atacar, quem falará de
maneira melhor? Um rapsodo ou um general?
ÍON – Um rapsodo. (PLATÃO, 2011, p. 33)
Com esta afirmação final de Íon se inicia a parte conclusiva do diálogo.
Íon sustenta que como sabe de cor todos os trechos de Homero em que ele narra as ações
dos generais na guerra de Tróia, está capacitado para falar como um general e portanto,
ele pode é o mais capacitado a exercer essa profissão. Evidentemente, o rapsodo Íon, à
medida que o diálogo avança sem que ele consiga responder qual é o objeto da arte do
rapsodo, acabou fazendo essa afirmação, para tentar encontrar uma resposta. Sócrates
pergunta por que sendo Íon o melhor general não está conduzindo os exércitos de Atenas,
ao invés de somente ficar recitando versos pelos festivais. Ao que Íon responde afirmando
que a cidade não precisa de generais, no momento. Ao final, Sócrates diz que o rapsodo
é como Proteu, que exibe diversas formas, transfomando-se constantemente, até chegar a
ser um general, mas que afinal não é capaz de dizer qual é o objeto de sua própria arte.
AV afirma que, do mesmo modo que Íon, os atores acabam sempre sendo alguma outra
coisa, como por exemplo, adivinho, profeta, general ou presidente, como Ronald Reagan.
Sócrates argumenta que Íon havia dito que era excelente em Homero e que iria provar
isso, mas, no entanto não soube dizer qual é a arte do rapsodo que o torna excelente,
portanto não pode considerá-lo um homem justo, ou melhor, deve considerá-lo um tirano,
aquele que viola as regras pré-estipuladas. A última fala de Sócrates coloca para Íon a
77
única opção possível: “Escolhe então se preferes ser considerado um tirano ou um
divino?” Íon responde: “Uma coisa difere muito da outra, Sócrates. Pois é muito mais
belo o ser considerado divino.” E Sócrates faz outra inversão lúdica: “Agora terminamos
assim: tu és divino e não tem nenhuma arte, nem mesmo aquela do general”. (PLATÃO,
2011, p. 59).
Se os atores agirem corretamente com um bom
conhecimento de sua profissão, ao invés de negarem o seu próprio ofício, isso
em si já não é a melhor prova de sua arte? Como isso pode acontecer no final
[de Íon], a mente vai fazer certa conclusão e o sentimento, ao contrário, uma
conclusão oposta. A qualidade artística resultará ser oposta à intelectual100.
(VASSÍLIEV, 1997, p. 91. Tradução própria)
2.2. Pedagogia e Dialética Platônica
AV relata como, em 1988, começou um processo pedagógico diferente
do que costuma desenvolver até então.
Em 1988, eu selecionei para um novo curso os alunos com
os quais eu comecei a trabalhar sobre os diálogos de Platão. Este grupo
experimentou uma escola de educação muito diferente daquela que eu tinha
conduzido até aquele momento. A diferença fundamental está no fato que a
atuação do ator vem concebida como um jogo: os atores não agem em termos
tradicionais, criam uma composição101. (VASSILIEV, 1997, p. 207. Tradução
própria)
Ao redirecionar o olhar do ator da ação para a composição, AV está
reforçando o aspecto metafísico da ação cênica. “A educação do ator no pensamento
compositivo é provavelmente a coisa mais importante em relação à natureza da arte do
ator102”. (VASSÍLIEV, 1993, p. 341. Tradução própria).
2.2.1. O pensamento compositivo e a formação do ator
100 Se gli attori hanno agito correttamente con una buona conoscenza della propria professione e giungono invece alla negazione dell loro stesso mestiere, non è forse questa la migliore prova della propria arte? Questo potrebbe accadere nel finale, la mente farà una determinata conclusione e il sentimento farà invece la conclusione contrária. La qualità artistiche risulteranno essere opposte a quelle intellettuale. 101 Nel 1988 ho selezionato un nuovo corso di studenti com cui ho cominciato a lavorare sui dialoghi di Platone. Questo grupo ha sperimentato uma scuola di educazione teatrale molto diversa da quella che avevo condotto fino a quel momento. La differenza fondamentale sta nel fato che la recitazione dell’attore viene concepita come gioco: gli attori non agiscono in termini tradizionali, creano una composizione. 102 L1educazione dell’attore al pinsiero compositivo probabilmente è la cosa più importante relativamente alla natura dell’arte dell’attore.
78
O pensamento compositivo abrange todos os aspectos do processo
pedagógico e artístico do trabalho de AV, desde o trabalho de formação do ator até os
aspectos ligados à direção e mise-en-scène. No entanto, o estudo da composição em todos
os âmbitos do trabalho de AV excede os limites dessa tese, que se detem na pedagogia103,
notadamente do ator.
Héctor Benoit (2004), no seu estudo Tetralogia Dramática do Pensar,
afirma que os diálogos platônicos são, sobretudo, obras dramáticas, no sentido de
possuírem uma estrutura dialógica.
Platão, no entanto, paradoxalmente, nos deixou os
Diálogos. Ora, na verdade, que são eles, senão obras dramáticas? Que são eles,
senão trama sensível de palavras opostas? Senão um tecido de múltiplos
discursos, além da expressão linear de qualquer autor? Estudando-os
cuidadosamente, quanto à sua forma, pode-se verificar que não existem
diálogos de Platão que possamos considerar, nem sequer, como propriamente
narrativos. Todos os Diálogos são, em sentido profundo, dramáticos104.
(BENOIT, 2004, v.1, p. 5)
A análise da composição ou estrutura105 do diálogo platônico feita por
AV enfatiza a relação da ação dialética entre os personagens. A ação dialética evolui com
cada personagem defendendo um ponto de vista sobre determinado aspecto de um
assunto. Ao final da resolução de um aspecto, lança-se uma nova discussão e assim
sucessivamente até o final do diálogo, que pode alcançar uma resolução ou deixá-la em
103 Para maiores informações sobre a composição no trabalho de direção e encenação de AV indico o livro de Stéphane Poliakov: “Anatoli Vassiliev: l’art de la composition”. Referências completas na Bibliografia. 104 “Nos tempos modernos o precursor da linha de interpretação que confere à forma dos diálogos um papel de relevância para a interpretação da filosofia do autor, isto é, que a estruturação dramática e o conteúdo dos diálogos se encontram intrinsecamente unidos e concordes uma metodologia intencionada por Platão, foi Schleiermacher – nascido no século XVIII. Todavia, a hipótese que sustenta a separação entre a filosofia e a forma dramática no corpus platonicum prevaleceu na tradição, em detrimento da posição contrária, até o século XX, quando a hipótese de Schleiermacher tomou novamente assento em obras de relevância para os estudos platônicos tais como são as de Jaeger, Stenzel e Friedländer – entre outros” (GUTHRIE, 1990, v. 4, p. 14). “Entrementes, a maior parte das análises dos diálogos ainda privilegiam o aspecto lógico do texto independentemente de sua contextualização dramática. Na atualidade, contrariamente a essa linha de pensamento, um estudo que considera fundamental a apresentação dramática dos diálogos para sua compreensão e ordenação é apresentado por Benoit” (2004). (REZENDE, 2001, in: http://www.catolicaonline.com.br/portal/wp-content/uploads/2011/05/pj-dramatizacao-dialogos-platao-apologetica-socratica-divindade.pdf) 105 Patrice Pavis (2001) afirma que composição dramática é sinônimo de estrutura e se refere ao “modo pelo qual a obra dramática – e particularmente o texto – é arranjada”. Ao analisar os princípios estruturais da ação, o teórico afirma que “destacar a composição do texto dramático implica a possibilidade de descrever o ponto de vista (ou perspectiva) em que o dramaturgo se colocou para organizar os acontecimentos e distribuir o texto dos personagens”. (PAVIS, 2001, p. 63, grifos do autor).
79
aberto. Esta relação dialética passa por diversos momentos, sendo a exposição do tema o
inicial, e os subsequentes são delimitados pelos chamados nós, espécie de ponto nodal na
linha da ação dialética. O ator deve estudar a estrutura dramática do diálogo platônico
para observar o desenvolvimento da ação dialética.
No início é necessário ver através do texto. Ou seja, ver a
estrutura que está atrás do texto. Ver como se organiza no texto o movimento
das intenções dos personagens, como mudam, como aparecem os momentos
energeticamente mais encorpados, como se move a negação e assim por
diante. Para fazer isso, é indispensável “furar” o texto, ver através dele. Com
uma condição, é claro. Que tudo aquilo que é dividido e subdividido seja
determinado de maneira exata. Não é importante que o ator saiba ou não o
texto de cor, não é também importante lembrar o texto todo ou apenas uma
parte. O importante é que tenha a memória de toda a composição do texto, do
início ao fim. (VASSILIEV, 1993, p. 345. Tradução própria).
Durante a análise conceitual, o ator divide o todo da estrutura textual
em fragmentos que marcam os grandes momentos de transformação do jogo cênico. Essa
divisão serve como uma espécie de mapa mental que o orienta, durante a improvisação,
através dos marcos principais da situação dialética. Essa é uma proposta muito diferente
da que está acostumado o ator formado na tradição do étude, onde ele trabalha a ação
dentro de pequenas partes da peça (cenas), uma a uma, para depois montar a peça
completa. Para AV, essa mudança na forma de abordagem do texto implica uma mudança
na postura do artista frente ao seu fazer artístico. No étude tradicional, o ator inicia o
estudo através da decomposição e análise de pequenas partes do texto para chegar assim
ao entendimento da peça como um todo. Esse método é o mesmo da pesquisa cientifica
que tem sua origem em Descartes, que propôs chegar à verdade através da dúvida
sistemática e da decomposição do problema em pequenas partes (DESCARTES, 1970).
No método da composição artística proposto por AV, ao contrário, o ator aborda o seu
objeto artístico a partir da sua estrutura, que não é a simples soma de suas partes. Essa
proposição de AV aproxima sua pedagogia da teoria da Gestalt, onde o enfoque
prioritário é qualitativo e não quantitativo.
Um dos princípios básicos [da teoria da Gestalt] encontra-
se formulado na seguinte definição (pelo teórico Max Wertheimer): “O todo
é mais que a soma de suas partes”. (...) O que se afirma é que a totalidade
nunca é apenas a adição de suas partes. Em vez de adição, o todo resulta da
integração de suas partes. O Todo constituí sempre uma síntese.
(OSTROWER, 1998, p. 70. Os itálicos e aspas são do original.)
80
Esse é um importante conceito para caracterizar a pedagogia metafísica
de AV em sua diferenciação do método de análise através da ação clássico. Ao propor
que o ator improvise a ação, não numa “breve unidade de tempo” do étude clássico, com
sua ênfase na cena, mas no “arco de um vasto período de tempo” da composição
dramatúrgica como um todo, AV transfere a ênfase do pensamento analítico para o
sintético. Como as partes só são compreensíveis a partir do todo, o ator percebe que a
justificação da ação acontece pela estrutura, pelo todo da composição, o que o coloca na
exata perspectiva do autor da obra. Outra caraterística importante do processo pedagógico
de AV é que o ator não trabalha a partir da perspectiva do personagem, como no étude
clássico, mas na do autor, mesmo que durante o jogo cênico ele assuma um ponto de vista,
ele não perde o foco do todo da composição.
Numa peça de teatro temos as perspectivas dos personagens, que são os
seus pontos de vista em relação ao mundo e aos outros, o conjunto de opiniões,
conhecimentos, sistema de valores, etc. Para Pavis (2001), a perspectiva do personagem
só pode ser determinada em relação a uma mesma questão, referente a um conflito de
interesses e valores, ou mesmo um juízo sobre a realidade, porque não se podem comparar
diferentes delas senão a partir de um mesmo objeto fixo. Os diferentes pontos de vista
são organizados num todo pelo dramaturgo, que distribui o discurso entre os personagens.
Patrice Pavis (2001) também afirma que quando se fala “em perspectiva do personagem,
corre-se o perigo de psicologizar essa noção”, porque ela se baseia no pressuposto de que
cada personagem é uma consciência autônoma, dotada, pelo dramaturgo, da faculdade de
julgar e expor suas diferenças em relação aos outros, fazendo dela o “apanágio de uma
consciência que, na verdade, não existe, e de não associá-la a uma forma ou instância
discursiva”.
Não é possível uma comparação objetiva de todos os
pontos de vista, simplesmente porque os discursos das personagens não são
calcados naqueles das pessoas reais e porque a escritura dramática não é uma
imitação de diálogos extraídos da vida cotidiana. O trabalho dramatúrgico e
escritural do autor é que fabrica as perspectivas. Só ele constitui uma
perspectiva central (ainda que imprecisa, contraditória e desconhecida para o
próprio autor). A perspectiva de cada personagem é, portanto
sobredeterminada pela perspectiva “autoral”. (PAVIS, 2001, p. 290. Grifo
nosso)
O processo pedagógico de AV propõe que o ator trabalhe a partir da
perspectiva autoral para que ele apreenda a composição da peça como um todo. Diferente
da perspectiva do personagem, para quem os acontecimentos vão se revelando passo a
81
passo durante o seu percurso no enredo, a do autor propicia uma consciência prévia sobre
o rumo da ação em todos os momentos da peça, até o seu final. A perspectiva autoral é a
que organiza a composição e, através da análise dessa composição, o ator chega ao
leitmotiv do texto, aquilo que orientou o autor na composição do mesmo. AV retoma aqui
um pressuposto do sistema Stanislávski sem, entretanto, mediar o tema principal através
do personagem:
O tema principal deve estar firmemente plantado no
cérebro do ator durante toda a representação. Foi ele quem fez com que a peça
fosse escrita; deve, também, ser ele o manancial da criação artística do ator.
(STANISLÁVSKI, 1994, P. 325)
O tema principal é chamado, na metodologia de AV, de objeto de jogo
ou objeto do diálogo (LUPO, 2006). O objeto do diálogo é um tema, tratado
dialeticamente, podendo ser exemplos de temas: o que é arte? A virtude pode ser
ensinada? O que é o amor? O objeto do diálogo, tema de discussão, somente se define no
final da obra, no território do acontecimento principal e cada personagem porta um olhar
diferente sobre a questão. Na pedagogia de AV, compor é, portanto, criar em cena a
estrutura dialógica do texto de acordo com a perspectiva da ideia do autor (LUPO, 2006).
Em termos práticos, a primeira coisa que o ator faz é nomear o objeto do diálogo. No seu
processo pedagógico, AV parece querer desenvolver no ator essa capacidade de visão em
perspectiva necessária para propiciar o jogo de improvisação, por isso essa ênfase na
composição dialógica.
Em oposição à análise de pequenas partes do texto no método do étude,
na composição o ator mantém na memória, durante a improvisação, a totalidade da
estrutura textual, desenhando um mapa das etapas. A principal implicação dessa nova
abordagem é na relação entre o ator e o papel. No método de analise através da ação, o
papel (personagem) dirige o ator, no sentido de que indica a ele quais as ações psicofísicas
que deve buscar para sua transformação106 no personagem, enquanto que no sistema
lúdico, o ator é que dirige o papel. A composição é a cognição do ator a respeito da
estrutura presente no corpo do texto. O diálogo é analisado como uma estrutura de jogo
que o ator apreende e que serve de modelo para o estudo de outros textos lúdicos. Essa
estrutura lúdica difere da psicológica porque nela o embate entre os caracteres deixa de
ser um conflito e passa a ser um jogo, de comum acordo entre as personas. Na estrutura
106 Ver nota 16 do capítulo 1.
82
lúdica não são os personagens que estão agindo, é a persona. O diretor e colaborador de
AV, Stéphane Poliakov afirma que persona é o “ser humano, não propriamente o ator.
Este termo se distingue, portanto de ator e de personagem. Vassiliev o nomeia, às vezes,
de o poeta”. (2006, P. 147)
Os fragmentos compositivos são estabelecidos em função do
acontecimento principal da peça e de seu reflexo nas cenas. A partir dessa identificação,
AV marca as divisões, que muitas vezes não coincidem com as divisões dramatúrgicas
de cenas e atos ou capítulos, no caso dos romances. Esses fragmentos são delimitados por
um acontecimento inicial e um principal. O ator trabalha entre esses dois pontos. Do ponto
de partida ele busca qual é o caminho até o principal. Essa trajetória é o que AV chama
de espaço compositivo. Nele, o ator é literalmente livre para fazer suas escolhas e opções.
O diretor, por princípio, não determina a movimentação do ator. Mas quando chega ao
limite do fragmento, o ator precisa se direcionar para um ponto muito preciso que o
conecta com o próximo fragmento compositivo. AV denomina de “nós” esses pontos que
conectam os diversos fragmentos. Os diferentes nós são os ganchos para a estrutura
dialógica e são estabelecidos com precisão pelo diretor em acordo com os atores. Dentro
do fragmento compositivo o ator é livre para improvisar, mas quando vai passar de uma
parte da composição para outra precisa atravessar o nó, que o preencherá de novos
sentimentos, com qualidades diferentes do anterior. Este preenchimento é particurlamente
intenso na estrutura lúdica, porque os atores atravessam a estrutura lúdica, tanto dos
diálogos platônico, quanto de todos os textos que possuam essa mesma estrutura, do seu
começo até o seu final, sem interrupção, como um todo, que não pode ser dividido em
cenas, ou pedaços menores, como no étude.
A respeito da composição, AV conclui:
A composição é particularmente importante no nosso
trabalho. Até agora, temos falado do acontecimento principal e do
acontecimento inicial. Nós também dissemos que vocês têm que se orientar
em relação ao acontecimento principal, que está localizado no futuro,
enquanto que o acontecimento de partida se encontra no passado e você se
encontra no presente. Enquanto persona atuando você está sempre no presente,
mas sua orientação é para o futuro, onde existe o acontecimento principal. Esta
orientação é chamada de perspectiva. Sem perspectiva não é possível atuar.
Partindo do presente você se orienta em direção ao ponto em que se encontra
o escopo; daquele ponto chega a luz que ilumina a sua estrada107.
(VASSÍLIEV, 1995, p. 130, tradução própria.)
107 La composizione ha un'importanza particolare nel nostro lavoro. Finora abbiamo parlato dell'avvenimento principale e dell'avvenimento di partenza. Abbiamo anche detto che dovete orientarvi
83
O trabalho sobre a composição é realizado à parte do trabalho com o
texto literário. Essa etapa não tem relação com a estrutura compositiva, porque muitas
vezes o texto é exatamente o contrário da estrutura da ação.
A maioria dos nossos erros consiste no fato de que muitas
vezes nós confundimos as energias com as palavras. Acontece que as palavras
perturbam as energias e as energias perturbam as palavras. Umas bloqueiam
as outras. Acontece-me até com atores experientes dizer: “senhores, agora
estamos falando de palavras. Não é a estrutura. A estrutura da ação permanece
aquela que já delineamos” (VASSÍLIEV, 1993, p. 359. Tradução própria).
O texto é analisado dentro do mesmo fragmento compositivo
estabelecido para a primeira etapa. O diretor indica os assuntos e temas sobre os quais os
atores devem improvisar. Para cada fragmento é determinada uma palavra ou grupo de
palavras em torno das quais deve se desenvolver a improvisação. No caso do texto
literário os “nós” são frases exatas do autor decoradas pelos atores. Então, os atores
começam a improvisar o texto em torno dos núcleos temáticos indicados e em
conformidade com a estrutura desenhada durante a análise.
2.2.2. A dialética como instrumento de educação
A dialética, entendida como a arte da palavra é, antes de tudo, a arte do
diálogo contraditório, mas para entender o uso que Platão propõe dela como ferramenta
da educação é preciso se utilizar a conhecida alegoria da caverna. Seres que vivem
aprisionados numa caverna têm os olhos voltados para o fundo dela, onde vêm as suas
próprias sombras projetadas. Um deles se liberta e se volta para a entrada da caverna e
fica momentaneamente cego pela luz ofuscante do sol, mas vai aos poucos recuperando
a visão até poder comtemplar a própria fonte de luz. Para Platão, essa é a metáfora da
alma que passa pelo processo educacional dialético, alcançando progressivamente o
conhecimento último, o Bem supremo. Também é possível relacionar esta alegoria com
o processo pedagógico de AV, ao indicar que o ator é aquele que faz a passagem do reino
do visível para o do invisível, das trevas para a luz. Na alegoria da caverna de Platão, a
rispetto all'avvenimento principale, che si trova nel futuro, mentre l'avvenimento di partenza si trova nel passato e voi vi trovate nel presente. In quanto persone recitanti vi trovate sempre nel presente, ma il vostro orientamento è rivolto al futuro, dove c'è l'avvenimento principale. Questo orientamento si chama prospettiva. Senza prospettiva non è possibile recitare. Partendo dal presente vi orientate verso il punto in cui si trova lo scopo; da quel punto arriva la luce che illumina la vostra strada.
84
ascensão e a contemplação do mundo superior é o símbolo do caminho da alma em
direção ao mundo inteligível, do reino do visível ao reino do invisível. O conhecimento
do ser verdadeiro representa ainda a passagem do temporal ao eterno. Nesse sentido, o
ator é um theoros, aquele que vai ao encontro da divindade, ou do bem supremo e de lá
retorna. Na prática pedagógica, isso se refere ao objetivo de converter a alma do ator da
ideia de que o homem é a medida de todas as coisas para a ideia de que o bem é a medida
de todas as coisas. A pedagogia tem a missão de libertar esse conhecimento.
A paideia do ator passa por uma conversão, no sentido simbólico de
volver e fazer girar “toda a alma” para a luz da ideia do Bem, que é a origem de tudo.
O mundo do visível, dos sentidos corresponde à caverna, nesse sentido
a arte técnica do ator se relaciona com as opiniões e os anseios dos homens e serve para
produzir algum objeto ou cuidar do que provém da natureza ou é criado pelo artifício do
homem. No seu aspecto do mundo invisível, ela é a comunicação com o divino, aqui o
ator não é apenas um técnico, mas o fogo desse conhecimento só pega na alma, à força
de longos anos de fadiga, quando se tiver tornado o mais semelhante possível ao seu
objeto, quer dizer ao próprio bem.
A verdadeira educação do ator consiste em despertar nele os dotes que
dormitam na sua alma.
2.3. Pedagogia como maiêutica
A estrutura de uma aula de AV, como observado na École des Maïtres
e na Fabrica dei Registi se divide em quatro partes: análise do texto, pokaz, comentários
aos pokazi e diálogos. Embora o recurso do diálogo esteja presente em quase todo o
processo, com exceção do pokaz, ele assume na quarta parte uma função pedagógica
específica, não mais simplesmente de indicação e de correção, como nas fases anteriores,
mas de ação pedagógica em si mesma. Nesta unidade, passo à análise destes diálogos de
AV com os alunos durante os dois cursos sobre os diálogos platônicos. Ao estabelecer
diferenças entre as análises da primeira metade dos encontros, dos diálogos da segunda,
pretendo destacar os últimos como a única estrutura pedagógica possível no seu objetivo
de propiciar ao ator a liberdade de atuação. Na busca desse objetivo primordial, a
liberdade de criação do ator, AV chega ao que ele denominou de Teatro Natural. Inicio
85
meu estudo a partir do diálogo que ocorreu no final da última análise de Íon, quando os
alunos foram convidados a começar o trabalho prático.
O tema desse diálogo gira em torno da perplexidade dos alunos sobre a
percepção de que a arte do ator não possui um objeto.
UM ESTUDANTE: Se para cada ato específico existe um nome, e para cada
nome um ato específico, Sócrates privando Íon de sua especificidade, ele
também retira o seu nome. Então Íon não é mais um rapsodo?
ANATÓLI VASSÍLIEV: Sim, na verdade, não é um rapsodo.
UM ESTUDANTE: É um homem?
ANATÓLI VASSÍLIEV: Um homem divino que sabe de cor Homero. (Os
estudantes riem)
UM ESTUDANTE: Se pode dizer que o objeto específico do rapsodo é o
rapsodo mesmo?
ANATÓLI VASSÍLIEV: Sim, você pode dizer: o objeto específico da arte do
ator é o próprio ator. (Os estudantes riem)
UM ESTUDANTE: E não se pode dizer que o objeto da arte do rapsodo ou
do ator é recontar histórias?
ANATÓLI VASSÍLIEV: Não, quem faz isso melhor é o escritor. (Os
estudantes riem) É um problema definir a nossa arte.
UM ESTUDANTE: Pode-se dizer que o rapsodo entretém as pessoas, é
divertido?
ANATÓLI VASSÍLIEV: Não. Íon diz: "Quando falo, estou sempre atento ao
público, se ele chora eu vou ganhar muito dinheiro, mas não, se rirem."
UM ESTUDANTE: Mas então ele também é um falso incorporado, porque
fica de olho no público que está assistindo.
ANATÓLI VASSÍLIEV: Não, ele faz isso só por um momento. (Os
estudantes riem)108 (VASSILIEV, 1997, p. 174. Tradução Própria)
A descoberta do objeto da arte do ator só pode acontecer no exercício
da própria atividade, como resultado do jogo dialético entre os atores, trata-se de um
conhecimento que se dá a posteriore, após o fim da representação. Por um lado, a análise
da composição feita antes dos études, como fundamento pedagógico e preparação para o
espetáculo limita-se a indicar o caminho que poderá ou não resultar nesse conhecimento.
Em Íon, Platão deixa em aberto o acesso a esse conhecimento, pois termina o diálogo sem
concluir, ou com uma resposta parcial sobre essa questão, indicando que a atividade do
108 UN ALLIEVO: Se per ogni atto specifico c'è un nome e per ogni nome c'é un atto specifico, socrate togliendo a Ione la specificità, gli toglie anche il nome. quindi Ione non è più un rapsodo?/ANATTOLIJ VASIL'EV: Sì, in effetti non è un rapsodo./UN ALLIEVO: È un uomo?/ANATTOLIJ VASIL'EV: Un uomo divino che sa a memoria Omero. (Gli allievi ridono)/UN ALLIEVO: Si può dire che l'oggeto del rapsodo è il rapsodo stesso?/ANATTOLIJ VASIL'EV: Sì, si può dire: l'oggeto dell'arte dell'attore è l'attore stesso. (Gli allievi ridono)/UN ALLIEVO: E non si può dire che l'ogeeto dell'arte del rapsodo o dell'attore è raccontare delle storie?/ANATTOLIJ VASIL'EV: No, tutto sommato questo lo fa meglio lo scrittore. (Gli allievi ridono) È un problema definire la nostra arte./UN ALLIEVO: Si può dire che il rapsodo intrattiene le persone, le fa divertire?/ANATTOLIJ VASIL'EV: No. Ione dice: "Quando parlo io sto sempre attento al pubblico, se piange prendo molti soldi, se ride no"./UN ALLIEVO: Ma allora è anche un finto invasato, dato che tiene d'occhio il pubblico./ANATTOLIJ VASIL'EV: No, fa solo in tempo. (Gli allievi ridono)
86
ator tem sua origem no plano divino. Os atores devem descobrir esse objeto no ato teatral
em si e, portanto, todas as perguntas com a tentativa de obter de AV uma definição teórica
são respondidas com subterfúgios e procedimentos irônicos, aos quais os estudantes
respondem com risadas, revelando o aspecto humorístico do diálogo. Sob o ponto de vista
da teoria da reminiscência, esta conversa dos estudantes com AV, perguntando sobre o
objeto da arte do ator, torna-se, de certa forma, anacrônica, porque pelos pressupostos
dela, os alunos já sabem que objeto é esse, mas perguntam como se não soubessem, ao
que AV só pode responder ironicamente, como se também não soubesse, por isso essa
atmosfera lúdica e de humor que perpassa toda essa conversa. Nesse sentido, AV replica
no ambiente pedagógico o papel que Sócrates possui nos diálogos, preenchendo a
situação educional com a arte da maiêutica.
Maiêutica é arte da parteira; em Teeteto de Platão,
Sócrates compara seus ensinamentos a essa arte, porquanto consistem em dar
à luz conhecimentos que se formam na mente de seus discípulos: "Tenho isso
em comum com as parteiras: sou estéril de sabedoria; e aquilo que há anos
muitos censuram em mim, que interrogo os outros, mas nunca respondo por
mim porque não tenho pensamentos sábios a expor, é censura justa".
(ABBAGNANO, 1982, p. 637)
A estudiosa, Marie-Christine Autant-Mathieu também compara o
processo pedagógico de AV com essa arte no seu artigo “Anatoli Vassiliev: o teatro como
maiêutica”:
Vassilev surge como um novo Sócrates, que ajusta
continuamente sua maiêutica. Se “todo o conhecimento nada mais é do que a
reativação de uma aprendizagem anterior” (Vassiliev cita em sua
comunicação em Wroclaw este excerto do Mênon), então o teatro não pode
ser feito sem um mestre, um mestre que não é mais aquele que instrui, aquele
que transmite o conhecimento, mas aquele que questiona interrogando109.
(AUTANT-MATHIEU, 1993, p. 28)
O objetivo último da maiêutica é que ambos, mestre e aluno alcancem
a Alethéia. O processo pedagógico maiêutico se estrutura em três partes: ironia, maiêutica
e alethéia. Na ironia socrática, o assunto é debatido através de perguntas, com o objetivo
de ir delimitando um conceito para contradizê-lo e por fim refutá-lo. O objetivo não é
constranger o seu interlocutor, mas antes purificar seu pensamento, desfazendo ilusões.
A ironia não tinha o intuito de ridicularizar, mas de fazer irromper da aporia, o
109 Vassilev apparaît comme un nouveau Socrate qui ajuste sans cesse sa maïeutique. Si "tout connaissance n'est que la réactivation d'un apprentissage antérieur" (Vassiliev cite dans sa communication à Wroclaw cet extrait du Ménon), alors le théâtre ne peut se faire sans maître, un maître qui n'est plus celui qui instruit, celui qui transmet un savoir, mais celui qui interroge en se interrogeant.
87
entendimento. A maiêutica é o momento do diálogo onde é possível sair do estado
aporético, mas para isso é necessário que o interlocutor abandone os seus pré-conceitos e
a relatividade das opiniões alheias que coordenavam um modo de ver e agir e passe a
pensar, a refletir por si mesmo. E, finalmente, na alethéia o estudante adquire um novo
ponto de vista e se torna dono de uma verdade recém-descoberta (PLATÃO, 2001).
Na sessão de trabalho sobre a obra de Platão, Bergamo relata que AV
propôs aos seus alunos que preparassem e mostrassem um diálogo, sem dar qualquer
explicação sobre como fazer. Depois de assistir as diferentes cenas preparadas, pediu-lhes
para retrabalhar e apresentar de novo, mais uma vez, e outra e assim por diante. Os alunos,
por vinte dias continuaram a trabalhar no mesmo diálogo, recebendo poucas indicações.
No final, o contato e a relação com o texto era tal, que os resultados começaram a
aparecer. A partir desse ponto, AV começou a dar uma orientação mais detalhada,
conceitual, prática e complexa. Um dos postulados da pedagogia russa é “ter paciência e
nunca forçar o processo”. (BERGAMO, 1997)
Os estudantes devem estar em posição de poder entender
o seu próprio processo, refletir sobre a sua experiência e os ensinamentos que
são dados a eles. Ou ainda: devem se sentir “encalhados” por causa dos seus
erros, devem ser postos em crise para poderem “criar’ a partir da solução
sugerida para seus problemas. Mas que tipo de sugestões são dadas aos alunos
de AV? Eles recebem ferramentas para analisar a ação e a estrutura do diálogo,
para orientar-se internamente e descobrir por si mesmo quando é necessário
agir e quando não, quando pode improvisar e quando não110. (BERGAMO,
1997, p.12. Grifos do autor.)
Outro postulado da prática pedagógica adotada por Vassíliev é que
nunca se deve dar ao aluno sugestões práticas, mas limitar-se a chamar a atenção para a
estrutura do texto. O estudante nunca deve sentir a presença de um diretor que diz faça
isso, faça aquilo. Neste caso, ele começa a se inclinar para suas instruções, abrindo mão
da sua própria liberdade, deixando a investigação independente e minando todo o
processo pedagógico (BERGAMO, 1997).
Essta forma pedagógica acaba levando o ator a uma aporia, que
possibilita o nascimento de uma renovada relação com o fazer artístico. Antes de dialogar
110 Gli allievi devono essere in condizioni di poter arrivare a capire da soli, riflettendo sulla loro esperienza, gli insegnamenti che vengono dati loro. O anche: devono essersi arenati a causa del loro sbaglio, devono essere messi in crisi per poter recepire con qualche frutto la soluzione che viene suggerita ai loro problemi. Ma che tipo di suggerimenti vengono dati agli allievi di Vasil'ev? Vengono dati loro degli strumenti per analizzare l'azione e strutturare il dialogo, per orientarsi da soli al suo interno e capire da soli quali azioni è obbligatorio fare e quali no, dove si può improvvisare e dove no. (BERGAMO, 1997)
88
com os atores, num dos encontros da Fabrica dei Registi, AV conversou com os diretores
em separado, sobre a necessidade de existir ação na atuação cênica. Afirmou que a análise
não deve ser entendida como se fosse uma concepção de direção para a criação de um
espetáculo, porque na análise se estuda a estrutura dramatúrgica dos diálogos platônicos,
a partir do qual pode se desenvolver o jogo dos atores. O objetivo do pedagogo é colocar
a natureza do ator em contato com essa estrutura dramatúrgica, portanto não é ainda uma
concepção de direção, não se trata de uma criação fantasiosa, mas um dado objetivo sobre
as regras da composição dramatúrgica. A arte da direção possui três momentos, que não
devem ser confundidos. O primeiro é o da análise do texto, onde o diretor não deve
colocar a sua concepção artística, mas se limitar a entender a estrutura dramatúrgica do
texto. O segundo é o de ser professor do ator, ou seja, ajuda-lo a expressar a sua natureza
na estrutura dramatúrgica. Terceiro, organizar a mise-en-scène. De todo esse processo, o
diretor-pedagogo deve ter a consciência de que a natureza do ator precisa de tempo para
se manifestar, porque “o segredo, o mistério da profissão se aprende com o tempo, não
imediatamente” (VASSÍLIEV, 1997, p.100).
Pela minha experiência e pela dos outros, estou
convencido de que fazer esta arte significa possuir uma lei objetiva, que será
percebida de uma maneira pessoal. Este é, em última análise, um segredo,
alguns através do seu próprio mistério conhecem a ação da lei objetiva, através
de si mesmos, por meio do processo no qual de repente se encontram, porque
basta encontrá-lo [o mistério] uma vez para se tornar um escravo dessa arte111.
(VASSÍLIEV, 1997, p. 100, tradução própria, grifo nosso.)
No diálogo com os atores, na sequência do com os diretores, AV
começa uma longa fala, citando o romance O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, para
exemplificar a dificuldade que é fazer alguém cair numa armadilha. AV se pergunta por
que os atores não vêem, de maneira semelhante, a arte de Sócrates como a de criar
armadilhas e a de Íon, a de escapar delas. Ao que ele mesmo responde, dizendo que com
certeza é porque os atores não têm a sensação que existe nos dois essa possibilidade. Os
atores devem buscar este estado de criação de armadilhas, como uma constante dentro de
si, como uma forma de expressão do próprio jogo entre Íon e Sócrates. Ao final, AV
pergunta: “Vocês querem perguntar alguma coisa sobre isso? Talvez estejam de acordo,
111 Dalla mia esperienza e da quella degli altri, mi convinco che fare quest'arte significa possedere una legge oggettiva, che vai poi percepita in modo personale. Questo in definitiva è un segreto, ognuno attraverso il proprio mistero conosce l'azione della legge oggettiva, attraverso se stesso, attraverso il processo in cui improvvisamente si trova, perché basta trovarvi si una volta per diventare schiavo di quest'arte.
89
mas não sabem como fazer? Ou não estão de acordo?” (VASSÍLIEV, 1997, p. 101.
Tradução própria)
De acordo com a resposta, o diálogo pode se encaminhar para uma
questão mais técnica ou então para uma mais conceitual, o primeiro expõe as limitações
da formação dos atores e o segundo entra para o âmbito da concepção estética. Ao falar
da análise como um dado objetivo, não estético, AV aponta para os atores que o
fundamento artístico dessa arte não se encontra na invenção de novas estruturas que se
sobreponham ao texto, mas ao contrário, na percepção do mecanismo de funcionamento
inerente a ela. No contexto da prática pedagógica, extamente como no próprio diálogo
Íon, o ator deve abrir mão de ser o intérprete da obra, aquele que procura dar um sentido
cultural ao texto, porque a interpretação, ao contrário do que se pensa, afasta o artista da
obra.
A interpretação não é (como supõem muitos) um valor
absoluto, um ato do espírito situado em algum reino intemporal das
capacidades. A interpretação também precisa ser avaliada no âmbito de uma
visão histórica da consciência humana. Em alguns contextos culturais, a
interpretação é um ato que libera. E uma forma de rever, de transpor valores,
defugir do passado morto. Em outros contextos culturais, é reacionária,
impertinente, covarde, asfixiante. O nosso é um tempo em que o projeto da
interpretação é em grande parte reacionário, asfixiante. Como os gases
expelidos pelo automóvel e pela indústria pesada que empestam a atmosfera
das cidades, a efusão das interpretações da arte hoje envenena nossa
sensibilidade. Numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto
em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a
vingança do intelecto sobre a arte. Mais do que isso. É a vingança do intelecto
sobre o mundo. Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo — para erguer,
edificar um mundo fantasmagórico de "significados". (...) Chega de imitações,
até que voltemos a experimentar de maneira mais imediata aquele que temos
(SONTAG, 1987, p. 8. Grifo do autor)
Dentro desse mesmo espírito de agir contra a interpretação, para que se
manifestem no ator a capacidade energética e sensorial é necessário que os atores
abandonem também a identificação da arte da atuação como uma forma de interpretação.
A interpretação é um recurso tão presente no trabalho dos atores que acaba sempre se
sobrepondo à leitura do texto, nos seus aspectos estruturais e formais. Em Íon de Platão
é evidente que Sócrates e o Rapsodo se conhecem, sendo esse o ponto de partida para que
o diálogo se desenvolva. Na Fabrica dei Registi, AV questiona os atores sobre por que na
maioria das cenas realizadas por eles os personagens Sócrates e Íon não se conheciam.
90
VASSÍLIEV: Minha pergunta então é: vocês não querem que os dois se
conheçam? É um processo do qual vocês não se dão conta, ou o fazem de
forma consciente? É preciso esclarecer esse ponto.
ATOR 1: Posso dizer uma coisa? Na minha versão de Íon, eu o vi como uma
história de sedução, que Sócrates seduz Íon como um homem seduz uma
mulher que finge fugir, mas na realidade não quer escapar.
ATOR 2: Aquela com José?
ATOR 1: Não, aquela com Emiliano. Então, nesse caso funciona o fato de que
eles não se conhecem, porque se trata de cortejar.
VASSÍLIEV: O que você fez com o que eu havia proposto? Você
provavelmente acha que eu não sou capaz de fazer tal proposta?
ATOR 1: Eu não entendi.
VASSÍLIEV: Por que você fez isso? Responda essa simples pergunta. Talvez
se você responder a essa simples pergunta, eu por minha vez responderei a sua
e talvez você vá parar de fazer teatro e o teatro será salvo. (Risos) Por que
você inventou essa coisa? Onde você viu isso? Antes pode encontrar em Fedra
esse motivo, entende? E você quer encontrar no texto de Íon, você quer
encontrar algo que não existe, e esta é a primeira coisa. Em segundo lugar,
proponho outra questão, proponho estudar o que eu proponho não o que você
propõe, você não entende? Eu digo a todos, peço-lhes para seguir o caminho
proposto por mim, nós estamos aqui por um propósito. Obviamente, você pode
propor, eu já disse isso aos diretores, mas não é possível; uma bela proposta,
mas é demais, uma coisa adicionada para algo diferente, muito diferente. Por
favor, entendam que este é um assunto sério, dou um exemplo real: para se
colocar um chapéu deve se ter uma cabeça!112 (VASSILIEV, 1997, p. 104,
tradução própria.)
Nesse diálogo, fica evidente que os atores não estão propondo suas
cenas a partir da análise feita por AV, e ao invés disso estão sobrepondo ao texto uma
estrutura diferente da original, certa concepção artística, o que vai levar
consequentemente à necessidade de adaptação do mesmo. A dificuldade aqui é, como AV
vai afirmar mais adiante, a necessidade de modificar o centro de atenção do ator da
superfície para a profundidade. Ao tentar dar uma imagem para esse processo, AV fala
112 VASIL’EV: La mia domanda allora è: voi non volete che i due si conoscono? È un processo di cui non vi rendete conto, oppure lo fate consapevolmente? Bisogna capire questo punto./ATTORE 1: Posso dire una cosa? Nella mia versione di Ione, io lo vedevo come una storia di seduzione, cioè Socrate seduce Ione come un uomo seduce una donna, che finge di scappare, ma il realtá non vuole scappare./ATTORE 2: Quella con Giuseppe?/ATTORE 1: Non, quella com Emiliano. Quindi qui funzionava il fato che non si conoscessero, perché se c'è un corteggiamento./VASSIL’EV: Cosa c'entra con quello che ho proposto io? Tu forse pensi che non sono capace di fare una proposta del genere?/ATTORE 1: Non ho capito./VASSIL’EV: Perché tu fai questo? Rispondimi a questa semplice domanda. Forse se mi rispondera questa semplice domanda, io a mia volta risponderò alla tua e forse tu smetterai di fare teatro e il teatro sará salvato. (Risate) Perché l'hai inventata questa cosa? Dove l'hai vista? Addirittura neppure nella Fedra esiste questo motivo, capisci? E tu lo vuoi trovare nel testo di Ione, vuoi trovare una cosa che non esiste, e questa è la prima cosa. In secondo luogo vi propongo tutt'altra cosa, vi propongo di studere quello che propongo io, non quello che proponi tu, non lo capisci? Lo dico a tutti, vi chiedo di seguire la strada proposta da me, ci siamo riuniti apposta. Ovviamente tu puoi proporre, l'ho già detto ai registi, peró è senza speranza; una bellissima proposta, ma è un di più, una cosa aggiuntiva ad un qualcosa di diverso, di molto diverso. Per favore capitelo è una cosa seria, facendovi un esempio reale: per mettersi in testa un cappello bisogna avere una testa!
91
da estrutura do texto em comparação aos ossos do corpo humano, embora os corpos sejam
diferentes uns dos outros eles têm uma mesma estrutura óssea, e o que a análise propõe é
estudar essa base comum, não visível, mas que dá forma à carne. A mudança do centro
de atenção do ator é uma reeducação da sua percepção, naturalmente ligada a
múltiplicidade das coisas, para a sua estrutura, ou unidade constitutiva. O diálogo
platônico possui uma lei muito precisa que o organiza a partir do seu interior e é a essa
lei que os atores devem se reportar. Para AV, a estrutura do diálogo platônico é modelar
e se o ator a dominar poderá usá-la em outros textos.
O que AV propõe aos atores é o que ele mesmo denomina de uma
diferente filosofia do ator, baseada nesses diálogos platônicos. Diferente de outros
sistemas, o ator deve conduzir a si mesmo ao longo do seu percurso cênico, porque ele
sabe a mesma coisa que o outro sabe, isso porque ambos estão de acordo quanto ao escopo
da peça, e se movem para esse escopo através do desacordo. O desacordo é uma forma
de conflito estruturado de dentro para fora. AV usa uma das propostas feita pelos atores
como exemplo na falha do uso do acordo/desacordo: o suicida e o bombeiro. Neste caso,
diz AV, entre os personagens existe somente o desacordo, um quer se matar e o outro
deseja impedir. Nesta situação, o bombeiro tentará conduzir o suicida para demovê-lo de
sua intenção, o que o levará a agir racionalmente, pensando nas opções possíveis, como
se deve agir nesse caso, o que se deve falar. Se existisse um acordo, propõe AV, o
bombeiro também seria um suicida, sem deixar de ser bombeiro, então existiria um
acordo, os dois terão o mesmo objetivo. Assim, aquilo que os atores falam não é a mesma
coisa que eles vivem.
Se o bombeiro é ele mesmo um suicida, então será um
encontro inesperado e estarão pareados, porque ambos são suicidas e os dois
irão acabar com sua vida com um suicídio, e ambos não querem fazê-lo e por
aí vai. Você deu um passo para poder entrar na estrutura, ou, talvez, a melhor
coisa a fazer é não tentar representar o tema, porque é um assunto tão forte
que pode substituir a estrutura mesma. Neste caso, a arte do ator é interpretar
o assunto que está escrito, este é o modo correto e a arte do diretor é dizer para
o ator: este é o assunto, mas não pode absolutamente ser interpretado. Para
obter como resultado o assunto do texto, devemos começar a agir uma história
diferente, este é o primeiro segredo da nossa profissão113. (VASSÍLIEV, 1997,
p. 106).
113 Se il pompiere è un suicida lui stesso, allora sarà un incontro inatteso e saranno pari, perché tutti e due sono suicida tutti e due vogliano finire la vita con un suicido, e tutti e due non vogliamo farlo e cose via. Voi avete fatto un passo per poter entrare nella struttura, o forse la cosa più facile è non fare per niente questo soggetto perché é un soggetto talmente forte da sostituire la struttura stessa. In questo caso l'arte dell'attore consiste nel recitare quel soggetto che è scritto, soltanto cosi può essere corretto e l'arte dei registi consiste nel dire all'attore: questo é il soggetto, peró non si può assolutamente recitare. Per
92
Retomando o conceito de centro de atenção, AV afirma que o objetivo
de estar dialogando com os atores naquele momento é mudar o centro de atenção deles
que, em geral, encontra-se no conflito, no desacordo e o direcionar para o acordo, onde
se encontra o objeto de jogo do ator. Esse acordo é fundamental para colocar ambos os
jogadores/atores em posição de igualdade, sem essa paridade não é possível que se
desenvolva o jogo.
Agora retornando ao exemplo do bombeiro que também
deve ser suicida, por este meio interior eu faço com que o centro da atenção
de ambos esteja no mesmo ponto, o próprio suicídio e isso eu faço ajudado
pelo assunto. Na realidade, não é exatamente isso, o centro da atenção não
deve ser colocado sobre o suicídio, mas no objeto do diálogo. Agora, a pessoa
que cai, se lança para absolvição ou para o suicídio? Não está claro? Por que
ele cai? Ele se joga e cai para ressuscitar, ou cai para se matar? Sua queda é
para viver ou morrer? Não é a mesma coisa, porque a diagonal não é pela
morte, mas pela a vida. Em seguida nasce o conflito entre a noção de vida e
aquela de morte. Não está claro?114 (VASSÍLIEV, 1997, p. 108, tradução
própria.)
O centro da atenção é o suicídio, ambos são suicidas, mas o objeto do
diálogo, ou do jogo não é propriamente esse, mas aquilo que se pretende alcançar
cometendo esse ato. AV exemplifica com o conto de Dostoiévski, A dócil, onde um
homem, que está velando sua esposa suicida, repassa todo o seu passado com ela até o
momento do suicídio. Durante esse relato, o homem vai desvelando a fé dentro de si, e
quando chega ao momento do suicídio, ele se agarra ao fato de que somente escorreu uma
gota de sangue do nariz da esposa para acreditar que, na verdade, ela não está morta. O
suicídio é o meio para que se descortine o plano metafisico da vida, tanto na história de
Dostoiésvisk, quanto na cena do Suicida e o Bombeiro. No ator, deve nascer o mesmo
sentimento, como uma revelação, como uma luz no fim do túnel.
ottenere come risultato questo soggetto dobbiamo cominciare a recitare una storia differente, questo é il primo segreto della nostra professione. 114 Adesso ritornando a questo esempio del pompiere che dovrebbe essere anche suicida, con questo mezzo interiore io faccio si che il centro dell'attenzione per tutti e due sia nello stesso punto, il suicidio stesso e questo lo faccio aiutandomi con il soggetto. In realtá questo non deve esserci proprio, il centro dell'attenzione non deve essere posto sul suicidio, ma sull'oggeto del dialogo. Allora la persona che cade, si butta per l'assoluzione oppure per suicidio? Non è chiaro? Perché lui cade? Si butta e cade per resuscitare, oppure cade per uccidersi? Cade quindi per vivere o per morire? Non è la stessa cosa, perché la diagonale non é per la morte, ma per la vita. Allora nasce un conflito tra la nozione di vita e quella di morte. Non è chiaro?
93
AV (1997) afirma que existe no teatro um termo chamado atmosfera,
mas que ele costumava usar a palavra ambiente ou ambiente de jogo sem saber muito o
porquê. Depois de certo tempo, ele percebeu que embora Atmosfera e Ambiente sejam
noções similares, possuem significados diferentes. Atmosfera é qualquer coisa que nos
impregna e condiciona, por exemplo, a estação do outono cria nas pessoas um humor
outonal, ou a atmosfera da manhã, da noite, de uma vela acessa e muitas outras que a
partir de fora nos penetram e nos contagiam. O ambiente é diferente, é qualquer coisa que
irradia, que emana, que provém da pessoa, alguma coisa, enfim, que ela faz. Em oposição,
a atmosfera é aquilo que nos circunda, enquanto que o ambiente é aquilo que propicia a
vida aos micróbios, por exemplo, assim também, a nossa ação necessita desse ambiente
para se desenvolver. AV salienta que a atmosfera não pode se limitar a ser somente um
sentimento, uma sensação e que este é um erro que se comete ao encenar os textos de
Anton Tchékhov, por exemplo. Fala-se muito do “inverno de Tchékhov” ou da
“atmosfera de Tchékhov”, que os personagens são imersos nela, respiram-na, vivem em
seu interior, mas é necessário encontrar um contraponto a ela. A atmosfera pode ser criada
por um meio exteriror, como a cenografia, a luz, a música a direção de cena, e influir e
provocar um sentimento interior no ator. Embora o ambiente de jogo possa ser aplicado
em qualquer texto ele é, sobretudo importante nos textos com estrutura lúdica. O ambiente
lúdico nasce da impressão do ator produzida pela situação mais importante da peça, nesse
caso a do acontecimento principal. Portanto, o ambiente é sempre a percepção do
acontecimento principal e inicial e quando, diz AV, ele propõe um texto lúdico, está
propondo uma sensação de ambiente lúdico.
Após essa exposição inicial, AV avalia o trabalho prático dos atores,
particularmente às cenas nas quais os atores criaram situações diferentes das existentes
no texto e que ajudaram a encontrar um sentimento para o jogo, nelas ele salienta como
eles perceberam bem o ambiente, mas que é muito diferente quando o ator percebe, em si
mesmo, a experiência do ambiente, sem o provocar através de algum recurso externo,
sendo, neste caso, o próprio sentimento interno que deve ser transformado no assunto
exterior. No desenvolviomento do diálogo, ele vai esclarecer que quando as “soluções”
ajudam a encontrar o sentimento interno, então elas são válidas.
O ambiente lúdico nasce de dois sentimentos: o sentimento do acordo e
a realização disso através do desacordo, diz AV. Nessa relação entre acordo e desacordo,
se começa a sentir a atmosfera da história, que é exterior, mas vai nutrindo o sentimento
interior que possibilita que se desenvolva o ambiente lúdico. É nesse momento, quando o
94
ambiente de jogo começa a agir sobre o ator, que ele sentirá a motivação para a ação e
assim começar o diálogo.
Repito que "o ambiente ludico", ou "o ambiente para o
jogo" é um conceito ideal para a prática; se começa por isso, por provocar em
você a matéria para os sentimentos, o tecido, digamos, em que, em seguida,
pode-se bordar o papel115. (VASSÍLIEV, 1997, p.116, tradução própria.)
A invenção do ator deve estar atrelada ao objetivo de provocar a
experiência do ambiente lúdico e nunca ser um fim em si mesmo. Essa é a primeira coisa
que AV observa no trabalho do ator, se ele possui a percepção do ambiente. Essa
experiência, que nasce da posição antitética do acordo e do desacordo possibilita o
surgimento de um ânimo alegre, ou melhor, de certa leveza na condução do jogo cênico.
Um aluno pergunta como é possível interpretar uma tragédia grega com esse ânimo
alegre, como é possível interpretar Édipo Rei, por exemplo. AV responde que a
abordagem da tragédia é diferente no sistema lúdico, não se trata mais do ator reviver o
sentimento psicológico do personagem Édipo, mas entender o mito como uma parábola,
algo que conta outra história para além do que está sendo interpretado pelos atores. Neste
caso, completa AV, ânimo alegre significa uma distância entre o ator e o personagem de
Édipo Rei. Um dos atores diz que entende, mas não sabe quando realmente está atuando
nesse estilo proposto por AV. O ator deve viver o acordo e o desacordo
contemporaneamente, sendo o primeiro ligado ao ator e o segundo ao personagem. No
ambiente psicológico, ao contrário do lúdico, o ator vive o desacordo dentro de si, não
existe esse espaço entre um e outro, o ânimo é denso. O problema é não apenas encontrar
o ambiente de jogo, mas saber usá-lo. Nesse momento, o ator deve dirigir o ambiente de
jogo na composição, através dos sucessivos fragmentos, e aqui surge a questão do conflito
como jogo e da perspectiva irônica.
O conflito não deve ser entendido como um conflito psicológico, mas
como um jogo, que possibilita que a ação se desenvolva. O acordo deve existir para que
o desacordo como jogo possa acontecer. AV salienta que o conflito como jogo na
situação lúdica é muito simples: um diz sim e o outro diz não. O ator sabe como termina
o texto, no final de cada um dos fragmentos se reflete esse conhecimento. Cada fragmento
da composição se conclui com um acordo, onde o “sim” e o “não” dos personagens,
115 Ripeto che "l'ambiente ludico", oppure "l'ambiente per il gioco" è una nozione ideale per la pratica; si comincia da questo, dal provocare in voi il materiale per i sentimenti, il tessuto, diciamo, sul quale poi ricamare il vostro ruolo.
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tingem-se de cores e de um esfumato que reflete as cores e tons do final. O final de um
fragmento é quando os personagens entram momentaneamente em acordo, aquele que
dizia não, diz sim, por exemplo, para logo em seguida recomeçar o sim e o não, mas agora
de maneira invertida, pois aquele que dizia sim passará a dizer não. Durante o desacordo,
o ator pode improvisar livremente, pois o conflito sendo simples, do tipo sim e não,
permite essa liberdade. A improvisação deve ser pessoal, e apresentar o modo particular
como cada ator nega ou afirma o fato que o liga ao final do texto.
AV afirma que o tipo de formação que o ator adquire com essa
pedagogia é, além de se tornar capaz de criar uma obra artística, habituar-se a: sentir o
papel do início ao fim, como um todo; sentir a oposição do papel, como ele termina e
como começa, que são duas coisas diferentes; sentir essa estrada que AV denomina de
perspectiva; dividir o papel em fragmentos e gerir o seu desenvolvimento; apreender o
sentido do conflito e principalmente do processo.
A partir da aquisição desse conhecimento de gerir o papel, o ator pode
começar a desenhar a linha polifônica do papel. Este conceito retoma a noção de que os
papéis são duplicados, possuem uma linha de ação verbal e outra ligada à energia, que
correspondem ao drama da arte, por exemplo, na peça A Gaivota, e a outra ligada ao
drama do relacionamento psicológico entre os personagens. Esse sentido polifônico se
estende a todos os aspectos da encenação.
AV reconta a história, contida na Ilíada, de como Nestor ensina a
Arquíloco a se portar para conduzir o carro de corrida. Através desse pequeno relato, Av
faz uma metáfora do trabalho do ator.
Nestor diz que quando você dirige uma carruagem não tem
que olhar para o freio, nem para os cavalos, mas olhar muito longe, sempre
observar a sua meta e direcionar os cavalos; você sabe que a corrida consiste
em levar os cavalos para esta meta, contorná-la e voltar. Toda a arte consiste
nesta inversão, no ato de contornar com os cavalos. Quando você vê
claramente a meta, você vai descobrir que ela é composta de dois objetos: um
bastão de madeira, posicionado lá há pouco tempo, e um outro, de pedra, que
ao contrário, está lá há muito tempo, tanto que já ninguém se lembra mais
desde quando. Você deve passar no meio, seguindo por um lado, você vai ter
que passar muito próximo à meta, pelo outro terá de ter muito cuidado para
não bater, não se enganchar nele e cair116. (VASÍLIEV, 1997, p. 80-81,
tradução própria.)
116 Nestore afferma che quando guidi il cocchio non devi guardare né briglie, né cavalli, ma guardare molto lontano, guardare sempre la tua meta e dirigere i cavalli; sai che la gara consiste nel far giungere i cavalli a questa meta, girarvi attorno e tornare indietro. Tutta l'arte consiste in questa inversione, nell atto di girare i cavalli. Quando vedrai chiaramente la meta, scoprirai che è fatta da due oggetti: un bastone di legno, posizionato li da poco, e un altro di pietra che invece è lì da moltissimo tempo, cosi tanto che
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Como em Íon, os textos sempre possuem dois temas, um concreto: “tu
és divino, mas não hábil”. E outro, muito mais sutil, localizado no futuro, que existe um
objeto para a arte, definido há muito tempo atrás (VASSILIEV, 1997). AV fala de um
sentido escatológico para a arte do ator e consequentemente para o teatro, de onde provém
a verdade e o objeto dessa atividade, que no contexto do diálogo não é encontrada na
investigação racional. O acontecimento principal do texto remete o ator para além da meta
concreta, o bastão de madeira, em direção ao absoluto da meta arcaica, o bastão de pedra.
AV afirma que no processo pedagógico o ator procura criar uma relação emocional com
essa meta do absoluto e depois então ele se preocupa com a meta concreta. AV mergulha
o ator nas origens rituais do teatro e no sentido do conhecimento de que essa arte revela
uma espécie de mistério ainda vigente no mundo moderno.
Os acontecimentos principais nos diálogos Mênon e Íon são o encontro
com a revelação da imortalidade da alma ou a predestinação da arte do rapsodo, a meta
arcaica. Se o ator não se reportar a esses acontecimentos principais, ele, juntamente com
o personagem, encontra seu limite no fim da peça e AV salienta que o ator deve sempre
se reportar ao que está para além do fim da peça. O objetivo é que o ator procure não
restringir o alcance artístico do texto, mas alargar o seu horizonte, fazendo a obra viver
para além de seu próprio fim. Para AV, não se trata de uma afirmação ideológica do texto,
porque essa meta antiga não é uma ideia e o ator a deve perceber “como a imagem da
ideia, como um sonho, como qualquer coisa que não me é claro” (VASSILIEV, 1997).
Isto porque, aquilo que está além da obra de arte é sempre menos claro do que aquilo que
está dentro dela, “algo para o qual se dirige o nosso sonho, a nossa fé, qualquer coisa que
não pode ser formulado com palavras” (VASSILIEV, 1997). Quando os atores de dirigem
para essa meta, acontece uma mudança visível na qualidade da atuação, mas isso é
extremamente difícil de ensinar.
Uma maneira de os atores começarem a conhecer esse direcionamento
é nunca concluir a cena no seu final, mas o fazer sempre na próxima cena. Deste modo,
o ator se habitua a direcionar a sua ação para uma meta que está sempre além do final,
seja ele da cena ou da própria peça. AV denomina este estilo de atuação de polifônico,
porque as duas metas são como duas vozes que estão unidas, mas se movem separadas.
nessuno oramai ricorda più da quando stia lì. Tu devi passarci in mezzo, quindi da un lato dovrai passare molto vicino alla meta, dall'altra dovrai fare molta attenzione a non urtarla, non agganciati ad essa e cadere.
97
A ideia é que o ator alcance o absoluto, mas para isso é preciso que ele ande pelo vazio,
sem portar nada de útil, abrindo mão de discutir o ser humano e sua ideologia, para estar
aberto a captar esse lugar.
Idéias profundas e sentimentos profundos não são mais
interpretados em cena, em geral as ideias não são mais encenadas, existem
para provocar algum tipo de ação. Ideias ou conteúdos profundos nós os
julgamos como se fossem nós mesmos, na realidade não são mais levadas à
cena, é um segredo, um mistério, aquilo que nem mesmo o ator poderia
explicar. "Transformação" é uma palavra muito importante, o que eu sinto, o
que está escondido em mim, deve ser transformado e tornado evidente. Nós
fazemos o esboço, o rascunho, identificamos o que está oculto e o
transcrevemos no conflito e o ator pensa em como transformá-lo em algo
visível, em ação117. (VASSÍLIEV, 1997, p. 89. Grifo do autor)
2.3.1. A cognição do conflito na pedagogia de AV
O sistema pedagógico de AV fundamenta-se em princípios éticos e
artísticos e pretende transformar tanto o ser humano, como o artista de teatro.
AV aponta que certos métodos artísticos do ator e do diretor estão
condicionados pela situação cultural em que vivemos. A sociedade e a família, primeiras
instâncias formativas do ser humano têm, conforme AV, deformado e desfigurado a
natureza e o instinto do homem. Por força da cultura acabamos não sendo nós mesmos,
mas nos moldamos a padrões e comportamentos ditados pelo social. Para AV, isso não
seria tão grave se não se tratasse do artista, do ator, que por se ocupar da arte, tem o papel
de desequilibrar a sociedade e não de se colocar a serviço dela. Essa oposição, para AV,
não se limita ao plano das ideias, mas principalmente ao modo como elas são transmitidas
pelos artistas, pois “uma ideia nova se torna velha se for expressa com um método velho”
(VASSILIEV, 1995).
No seu percurso artístico, AV teve oportunidade de ensaiar a peça Caça
ao Pato de Alexander Vampilov, último representante da geração de dramaturgos do pós-
guerra na URSS. No desenvolvimento artístico do drama soviético, essa geração de
escritores começou a tratar de um tipo de herói que possui um dilema interno e, portanto,
117 Le idee profonde i sentimenti profondi non se giocano mai, in generale le idee non vengono mai giocate, esistono per provocarci verso qualche azione. Le idee o le contenuti profondi li giudichiamo da come noi poi ci manifestiamo, in reàlta non se recita mai, è un segreto, un mistèro, quello che nemmeno lo attore potrebbe spiegare. "Transformazione" è la parola più importante, quello che io sento, quello che si trova nascosto in me, deve essere trasformato e diventare evidente. Noi facciamo l'abbozzo, lo schizzo, definiamo quello qui è nascosto e lo tratteggiamo nel conflito e l'attore ci pensa da solo a trasformalo in qualcosa di visible, nell'azione.
98
sua ação no mundo é retratada, não de maneira inequivoca, num único sentido, mas é feita
de dúvidas, avanços, recuos sem a garantia de alcançar seu objetivo final, ao contrário do
herói no drama socialista anterior, que era um ser positivo, disposto a enfrentar o mundo
para alcançar seu ideal social, de construção de um mundo socialista. Essa era uma
imagem de herói criada pelo partido comunista, propagada através de personagens
dramatúrgicos: o herói da revolução, da guerra, inovador e trabalhador. Mas a nova
dramaturgia trazia uma visão bem menos maniqueísta, ou partidária, na certeza de um
futuro utópico. Ao contrário, muitas peças na nova dramaturgia deixam uma impressão
final de derrota e aniquilação. Trata-se, evidentemente, de uma aproximação maior com
as características do viver humano, sempre envolto em contradições e dúvidas, ou seja, o
novo herói tem uma vida interior intensa o que leva, na economia da ação, a aplicar uma
parcela da energia antes despendida na pura ação concreta no mundo, na resolução de
problemas existenciais.
Para AV, esse novo herói representa o próprio homem moderno, um ser
humano divido, bifurcado, com um conflito interno que o escraviza e corrói sua ação no
mundo.
Vassíliev teve de lidar com um homem bifurcado, ou seja,
assim, um tipo real, que se formou ao longo do tempo. Um homem bifurcado,
você não vai interpretar como um esboço. Portanto Vassíliev teve que mudar
completamente a natureza do estar no mundo. Mudar a natureza do conflito.
Esse homem não estava interagindo com outras pessoas através da luta. O
homem, que Vassíliev dispõe, era um homem em conflito consigo mesmo. E
essa história, do conflito interno do homem bifurcado necessita de tipo
especial de drama, de um fluxo dramático. Vassíliev, buscando representar o
sentido destes novos textos, procura fazer o ator encontrar uma nova forma de
estar no mundo, uma nova compreensão do conflito. O conflito é interno e a
luta é contra si mesmo. O desenvolvimento da ação permite-lhe descobrir a
profundidade dos processos que ocorrem no homem moderno118.
(BOGDANOVA, ANO p.180. Tradução própria)
No plano cultural, o ator é também um homem moderno, mergulhado
no seu conflito interno, que AV identifica como sendo um niilismo social, que afeta sua
118 То Васильев имел дело с раздвоенным человеком, т.е. с тем самым реальным типом, который уже образовался во времени. А раздвоенного человека ты уже не сыграешь через рисунок. Поэтому у Васильева совершенно менялась природа существования. Менялась природа конфликта. Человек не находился во взаимодействии борьбы с другим человеком. Тот человек, которого предлагал Васильев, был человек атакующий самого себя. И вот этот рассказ об этом атакующем себя, раздвоенном человеке возникал в особого рода драматургии, драматургии потока. Васильев, отвечая на призыв этих новых текстов, находя новую природу существования актера, новое понимание конфликта. Конфликт переносился внутрь человека и человек атаковал самого себя. Конфликтовал с самими собой. Развитие действия позволяло обнаружить глубину тех процессов, которые происходили в современном человеке.
99
relação consigo próprio e com sua forma de manifestação artística no mundo. A
pedagogia teatral desenvolvida por Anatóli Vassíliev leva o ator, primeiramente, a
questionar o seu próprio conhecimento para, então, criar um espaço onde ele possa
desenvolver novas ideias no campo de seu próprio fazer artístico. Esse conhecimento
prévio é muito vezes um obstáculo para o ator no seu processo criativo, ou seja, este é
determinado por suas ideias e concepções artísticas. Entretanto, a leitura que AV faz desse
conhecimento prévio possui um escopo filosófico e tem um alcance maior, se estendendo
até a própria visão de mundo do ator que é, por sua vez, também determinada pela tradição
e pela sociedade. Portanto, para AV, a dificuldade do ator não é uma questão técnica, mas
sim de ponto de vista, de orientação de vida, de moral. Sobre essa questão fundamental,
AV se pronunciou na França, durante um seminário sobre os processos pedagógicos do
ator ocidental:
O ator francês apresenta outra dificuldade: ele é ateu. Isso
é uma porta fechada para o espírito, o espiritual. Não se pode ser ateu e falar
do espírito, é paradoxal. Você somente pode contar histórias psicológicas,
sentimentais, íntimas, cotidianas. A palavra ateísmo não está aqui num sentido
religioso, mas ético: eu falo de uma moral profunda, uma profunda
consciência ética, moral. De modo que nos ensaios, ele se bloqueia e passa a
se explicar longamente. O grande problema de atores franceses é o seu
humanismo. Este é um problema colossal119 (VASSÍLIEV, 1999, p. 129.
Tradução própria).
AV percebe que as dificuldades artísticas dos atores não são
exclusivamente de ordem técnica, mas, sobretudo de visão de mundo, de postura ética e
orientação filosófica. Essa postura, que é determinada por uma estrutura mental
característica, leva a ator a se limitar dentro das narrativas “psicológicas, sentimentais,
íntimas e cotidianas” e por essa razão, toda a pedagogia teatral de AV se desenvolve no
sentido de colocar em crise o ator e assim alcançar um novo ponto de vista que o ajude a
encontrar uma renovada liberdade criativa. Após essa crise, existe a possibilidade de
surgir um novo homem, com uma estrutura mental diferente, capaz de transitar entre
ambas. Sobre esse fundamento teatral, AV desenvolve toda uma argumentação durante o
processo pedagógico, que inclui fazer distinção entre conflito dinâmico e estático, por
119 L’acteur français présent une autre dificulte: il est athée. C’est ene porte fermée à l’esprit, au spirituel. On ne peut pas être athée e parler de l’esprit, c’est antinomique. On ne peut raconter que des histoires psychiques, sentimentales, intimes, três simples. Le mot athéisme n’a pas ici un sens religieux, mais étique: j’em parle par rapport a une morale profonde, une conception profonde des problèmes éthiques, moraux. Si bien qu’à un moment des répétitions, on se trouve bloqué et il faut três longuement expliquer. Le gros problème des acteurs français, c’est leur humanisme. C’est un problème colossal.
100
exemplo. AV analisa, a modo de exemplo, o texto através do conflito dinâmico no diálogo
platônico Mênon para assim demonstrar os limites desse conceito.
Vamos aplicar esse método a um diálogo de Platão, no
Mênon. Se seguirmos o desenvolvimento da ação vamos nos concentrar no
fato de que Sócrates instrui um escravo e acabaremos contando como Sócrates
se relaciona com este escravo, como o escravo se relaciona com Mênon e este
com Sócrates. Desta forma, no entanto, perdemos de vista o significado mais
profundo do texto – aquele que deveríamos transmitir - que diz respeito ao
mistério da imortalidade alma. Portanto, se queremos chegar a expressar todo
o significado do texto de Platão, temos que mudar a nossa cognição do
conflito120. (VASSILIEV, 1995, p. 118, tradução própria.)
Quando se faz uma análise do desenvolvimento da ação através do
entendimento do conflito como desacordo, o conteúdo desse processo será a própria
natureza da relação entre os personagens, sejam elas psicológicas ou sociais. Isso porque,
como afirmado anteriormente, a forma determina o conteúdo, então para modificar a
cognição do conflito é necessário entender como ele se estrutura. Sem esse processo
pedagógico de reelaboração estrutural do conflito, portanto, não é possível sua alteração
e consequentemente os diferentes conteúdos propostos, por Platão, por exemplo, serão
distorcidos pela forma do conflito.
A estrutura clássica do conflito como desacordo se divide em três
movimentos: começo, clímax e fim. O conflito tem sua origem no começo, onde existe a
exposição do problema, que se desenvolve até chegar a um ápice, que marca o ponto de
transformação das expectativas iniciais, para depois encontrar a sua resolução no final.
Para AV, esse sentido do conflito de se desenvolver do começo para o fim, indica que o
final é, necessariamente, consequência do inicio e caracteriza o que ele denomina de
sistema do realismo psicológico (VASSILIEV, 1995). A estrutura desse sistema revela
que a história está contida no início, que suas motivações ocultas se manifestam durante
o desenvolvimento do conflito e que ela se resolve no final. Todos os
acontecimentos/ações da história são encadeados numa sequência de causa e efeito, que
parte do passado em direção ao futuro. A lei da causa e efeito cria automaticamente uma
120 Proviamo ad applicare questo metodo a un dialogo di Platone, al Menone. Se seguiamo lo sviluppo dell'azione ci concentreremo sul fatto che Socrate istruisce uno schiavo e finiremo per raccontare come Socrate si rapporti a questo schiavo, come lo schiavo si rapporti a Menone e questi a Socrate. In questo modo, pero, perdiamo di vista il senso profondo del testo - quello che dovremmo raccontare -, che riguarda il mistero dell'immortalità dell'anima. Dunque, se vogliamo arrivare a esprimire il senso del testo di Platone, dobbiamo cambiare la nostra cognizione di conflitto.
101
dinâmica para a ação, que propulsiona a si mesma ao longo do seu percurso em direção
ao final.
Por motivações pedagógicas e metodológicas, AV denomina o início,
na estrutura do conflito, como acontecimento de partida ou inicial, e o clímax/fim como
território do acontecimento principal. Primeiramente, para deixar claro que a estrutura de
conflito se refere à ação e, segundo, para ampliar as noções de clímax e fim como pontos
específicos para zonas de localização. Esta última operação é fundamental no processo
de transformação da “cognição do conflito” proposto pela pedagogia de AV. O início e o
clímax/fim deixam de ser observados como fatos e passam a ser entendidos como lugares,
espaços geográficos, territórios com sua topografia própria, por onde os atores podem
transitar e do qual é possível se traçar um mapa, uma cartografia imaginária. AV descreve
a topografia do acontecimento inicial e como ela é responsável pela a dinâmica da ação
rumo ao acontecimento principal, ao mesmo tempo em que procura mapear novos
territórios.
(...) imaginemos que o acontecimento de partida está no
topo e o acontecimento principal está no fundo: o conflito começa no topo
(acontecimento de partida) e, em seguida, se desenvolve como se escorregasse
de uma montanha, rolando para o acontecimento principal. Segundo este
esquema, no início da peça os personagens estão no topo, enquanto que no
final encontram-se no fundo. Agora vamos inverter o esquema: colocamos no
topo o acontecimento principal e no fundo o acontecimento de partida. Como
fazer os personagens, partindo do fundo, para chegar ao topo?121
(VASSÍLIEV, 1995, p. 118, tradução própria).
AV traça dois diferentes ambientes para a ação: no primeiro, ela como
que se desenvolve automaticamente, ao rolar montanha abaixo; no segundo, no entanto,
a ação de solevar-se não é auto impulsionada e os personagens (agentes da ação) precisam
entrar em algum tipo de acordo, de colaboração para que a ação possa ser realizada. AV
afirma que a natureza do conflito deve ser alterada do desacordo para a do acordo, no
entanto, essa alteração afeta outro elemento importante da estrutura do conflito, o
personagem.
121 immaginiamo che l'avvenimento di partenza si trovi in alto e che l'avvenimento principale si trovi in basso:il conflitto inizia in alto (avvenimento di partenza) per poi svilupparsi come se scivolasse da una montagna, rotolando in basso fino all'avvenimento principale. Secondo questo schema, all'inizio della pièce i personaggi si trovano in alto, mentre alle fine si ritrovano in basso. Ora proviamo a capovolgere lo schema: mettiamo in alto l'avvenimento principale e in basso l'avvenimento di partenza. Come faranno i personaggi, partendo dal basso, ad arrivare in alto?
102
O conflito assume a forma de uma “rivalidade entre duas personagens
por razões econômicas, amorosas, morais, políticas etc”. (PAVIS, 2001) Na estrutura do
conflito, pode-se identificar o personagem como o agente da ação através do desacordo,
mas para que se processe uma ação através do acordo será necessário um outro tipo de
agente. AV observa a existência da ação através do acordo na própria práxis teatral,
quando os atores combinam entre si e com o diretor, durante os ensaios, como se dará a
representação do espetáculo durante a temporada. Durante a apresentação da peça para
o público os atores estão em acordo quanto ao que irão realizar em cena, embora os seus
personagens estejam em desacordo. A representação cênica é um sistema
acordo/desacordo, o que justifica que AV busque, na elaboração de sua pedagogia, marcar
essa instância do agente da ação através do acordo, utilizando para isso o termo “persona”.
Patrice Pavis traça a diferença entre personagem e persona:
No teatro grego, a persona é a máscara, o papel assumido
pelo ator, ela não se refere à personagem esboçada pelo autor dramático. O
ator está nitidamente separado de sua personagem, é apenas seu executante e
não sua encarnação a ponto de dissociar, em sua atuação, gesto e voz. (PAVIS,
2001, p. 285)
Em relação à criação do personagem, AV observa que o ator possui
duas possibilidades: na primeira, o ponto de partida é tão marcante, que o personagem e
o ator, que se coloca na mesma situação, parece ser empurrado por ele, quase que
obrigado a realizar suas premissas. Como exemplo, AV (1993) cita as peças de
Shakespeare. Na segunda tendência, o ponto de partida não é forte o suficiente, ou não é
determinante no desenvolvimento da ação rumo ao objetivo. Nesse caso, o personagem
usa seu intelecto para se por em direção ao acontecimento principal, o mesmo fará o ator,
e as peças de Molière são o exemplo utilizado por AV. Essas duas estruturas exigem do
ator diferentes abordagens. No caso da estrutura psicológica, o ator empresta suas reações
psicofísicas para o papel, como proposto por Stanislávski (TOPORKOV, 1961), já nas
estruturas lúdicas, quando o personagem se movimenta intelectualmente rumo ao
objetivo, não há necessidade do ator “emprestar suas reações psicofísicas” para o
personagem, cria-se um espaço entre eles, então o ator não precisa colocar sua energia no
vivenciar o personagem, que fica livre para ser aplicada de outras maneiras.
Com a mudança na topografia do acontecimento principal e acréscimo
da instância da persona, AV obtêm uma profunda modificação na estrutura do conflito o
que leva a uma transformação da sua natureza. O conflito, que era motivado pelo
103
acontecimento inicial, passa agora a ser motivado pelo principal, que se encontra no final
da peça, e o personagem que agia através do desacordo é executado pela persona que age
através do acordo.
O conflito torna-se jogo: as personas devem estar de
acordo entre si, caso contrário você não será capaz de solevar-se, e deve haver
um conflito do tipo lúdico Neste caso, existe também a ação: passamos de uma
estrutura psicológica para uma estrutura lúdica122. (VASSÍLIEV, 1995, p. 121,
tradução própria.)
O processo pedagógico de AV procede a uma transformação ética e
estética, como afirmado acima, porque pretende uma mutação da “cognição do conflito”
no ator, enquanto ser humano e enquanto artista do teatro. O entendimento intelectual das
diferenças entre a estrutura psicológica e a lúdica não operam, no entanto, a transformação
da “cognição do conflito” no ator, esse é um processo pedagógico de reestruturação do
conhecimento e se desenvolve ao longo do tempo, trata-se de um aprendizado de uma
nova forma de comportamento artístico.
O processo de absorção deste tipo de atuação dura cerca
de quatro anos. Normalmente, no primeiro ano você já tem alguns resultados,
mas a fim de compreender profundamente do que é que se trata é necessário
um longo período de tempo. Isso acontece porque em nossa natureza
coexistem duas essências: uma está relacionada ao conflito, a outra ao jogo.
A primeira se desenvolve mesmo se não fizermos nada, enquanto que a
segunda tem definitivamente necessidade de ser desenvolvida.123
(VASSÍLIEV, 1996, p. 121, tradução própria)
O mais importante resultado desse processo é a metamorfose do ator,
de transformação do ser humano, é a sua liberdade artística.
Quando eu estava trabalhando com os atores, eu vi neles
momentos de renascimento. Os atores renascem quando rompem com a escola
do conflito que existe nas pessoas. E o que significa romper com esta escola?
Eles entraram em combate consigo mesmos. Rompendo com essa escola, no
sentido pragmático, eles se transformam, tornam-se poetas, poetas de sua
própria vida. Deixam de serem escravos de seus próprios conflitos, livram-se
122 Il conflitto diventa gioco: le persone devono essere in acordo fra loro, altrimenti non riusciranno a sollevarsi, e devono avere un conflito di tipo ludico. In questo caso c'è anche l'azione: siamo passati de una struttura psicologica a una struttura ludica. 123 Il processo di assorbimento di questo tipo di recitazione dura all'incirca quatto anni. Di solito, al primo anno si hanno già dei risultati, ma per arrivare a capire profondamente di che si trata è necessario un tempo lungo. Questo succede perché nella nostra natura convivono due essenze: una è legata al conflitto, l'altra al gioco. La prima si sviluppa anche se non facciamo nulla, mentre la seconda ha decisamente bisogno di essere sviluppata.
104
deles. Eu posso lidar com isso, eu não sou um escravo dele. Eu ouço essa luta,
eu posso extingui-la ou aumenta-la, lança-la em uma ou outra direção. Eu sou
um artista. Eu estou em contato com uma mente superior. Dou um pequeno
passo na escola e um grande passo na minha vida. Eu me movo em outra
época, talvez - no Renascimento. Digo isto com toda a seriedade. Parece-me
que nós, como intelectuais ou simplesmente como pessoas educadas devemos
fazer um grande trabalho de transformar nossa própria escravidão no produto
da criatividade artística. Eu acho que, se isto não é quase possível na vida, no
palco isto é possível. No palco, assume a forma da beleza, as formas da beleza.
E é possível modificar nossa época.124 (BOGDANOVA, 2007, p.160, tradução
própria).
2.3.2. As quatro virtudes do ator
Abro espaço, aqui, para uma escrita talvez mais oportuna para a
introdução, por sua pessoalidade, mas importante para a discussão que segue.
Durante o meu doutorado sanduíche em Moscou, tive oportunidade de
assistir, no Teatro-Escola de Arte Dramática, a três remontagens de espetáculos de AV:
Matinê Puchkin (1995), Sobre Eugenio Onieguien (1996) e Don Juan (1998). Dentre os
inúmeros aspectos que me chamaram atenção nesses espetáculos, um deles foi um tipo
de qualidade presente nos atores. Num primeiro momento, pensei se tratar da diferença
da própria escola russa de atuação, mas quando assisti a outros espetáculos no próprio
Teatro-Escola, não dirigidos por AV, percebi que essa impressão estava equivocada.
Depois, tive oportunidade de assistir outros excelentes espetáculos em outros teatros,
como o de Guinkas e igualmente não encontrei nos atores esse espírito. Evidentemente
os atores são excelentes, não falo de qualidade no sentido de melhor ou pior, mas de um
tipo específico de característica presente em todos os atores. Essa qualidade dos atores
era uma das principais características que eu observava no elenco dessas encenações e se
124 Когда я работал с актерами, я видел в них моменты перерождения. Актеры, порывая со школой конфликта внутри одного человека, перерождались. А что значит, порывая с этой школой? Они становились над борьбой с самими собой. Порывая с этой школой в обычном практическом смысле, они менялись, они становились поэтами, поэтами собственном жизни. Переставали быть рабами собственных конфликтов, освобождались от них. Я могу управлять этим, я не раб этого. Я слышу эту борьбу, я могу гасить ее и разжигать, направлять в ту или иную сторону. Я художник. Я приобретаю высший разум. Совершаю и маленький шаг в школе и делаю огромный шаг в жизни. Я переселяюсь в другую эпоху, может быть, -- в эпоху Возрождения. Я говорю об это абсолютно серьезно. Мне кажется, что мы как интеллигенция или просто как образованные люди должны совершать огромную работу по превращению собственного рабства в продукт художественного творчества. Мне кажется, что если это почти не возможно в жизни, то на сцене это возможно. На сцене это обретает формы прекрасного, формы красота. И эпоху становится возможным подправлять.
105
tornou para mim uma marca registrada do trabalho de AV, a tal ponto que eu era capaz
de sentir essa diferença em relação a outros conjuntos de atores.
Durante a minha pesquisa na Fundação Anatóli Vassiliev pude assistir
a muitos vídeos de espetáculos dirigidos pelo diretor, tanto com o conjunto de atores que
trabalha com ele no Teatro-Escola, como em outros projetos realizados na França, Itália
e Alemanha. Essa comparação permitiu perceber que essa qualidade que menciono acima,
o ator a vai adquirindo ao longo de um processo de transformação da sua própria
personalidade artística e, portanto, o processo pedagógico de AV se configura como uma
espécie de Paideia ético-teatral, fundamentada em Platão.
O processo pedagógico como mutação envolve quatro diferentes ações.
A primeira mutação diz respeito à compreensão de que “o talento não vem direto de você,
mas da musa, dos deuses” (VASSÍLIEV, 1995). A segunda mutação é “reconhecer que a
arte do teatro não tem objeto” (VASSÍLIEV, 1995). A terceira, devemos mutar o centro
de nossa atenção do plano do concreto para o abstrato e a última, a mutação da própria
personalidade artística do ator através da sua libertação da função de criador de
personagem.
Eu não quero ficar para o almoço com o personagem;
conversar com as suas amigas e seus pais não me interessa. Eu prefiro cuidar
de tudo o que está fora do personagem, porque o que está fora de nós organiza
nossas vidas e nós somos apenas uma parte disso. Se parar de se colocar como
um objeto de pesquisa e se dirigir em direção a algo que está fora, você vai
adquirir liberdade, humor, ironia e leveza125. (VASSÍLIEV, 1995, p. 205,
tradução própria.)
Aqui, AV indica as quatro qualidades que definem o ator vassilieviano
formado pelo sistema lúdico de interpretação: liberdade, humor, ironia e leveza ou
ligeireza. Essas qualidades definem o que diferencia os atores de AV de outros de outras
escolas e métodos e são também utilizadas nesta Tese para identificar certos processos
pedagógicos que direcionam o ator para uma transformação ética, que pode ser idenficada
pela progressiva aquisição dessas características em comum.
O tema da liberdade do ator, embora esteja ligado ao personagem é na
verdade uma questão de metodologia e pode ser observado desde o inicio das pesquisas
125 Non voglio più stare a pranzo con il personaggio; parlare con le sue fidanzate e con suoi genitori non mi interessa. Preferisco occuparmi di tutto quello che è fuori dal personaggio, perchè ciò è fuori di noi organizza la nostra vita e noi siamo solo una parte di questo. Se smettete di porre voi stessi come oggetto di ricerca e vi indirizzate verso qualcosa che sta aldifuori, acquisirete libertà, umorismo, ironia e leggerezza.
106
pedagógicas de AV. Destaco, primeiramente, uma afirmação de AV na École des Maîtres,
onde o diretor associa o assunto à natureza da ação:
Como eu disse, existem três movimentos: psicológico,
verbal e plástico; a psique, a palavra e movimento físico devem correr em
paralelo sem bloquear uns aos outros. Se você puder criar esta condição você
obterá a liberdade ideal para atuação126. (VASSÍLIEV, 1996, 140. Tradução
Própria).
Esses três movimentos são trabalhados separadamente à medida que o
processo pedagógico vai se desenrolando. A capacidade de gerir separadamente os três
movimentos possibilita ao ator atingir uma desenvoltura no tratamento com os elementos
do sistema lúdico de interpretação. A atenção do ator deve estar centrada no objeto de
jogo, aquele elemento que possibilita o desenvolvimento da atuação cênica, portanto, o
ator não pode estar preocupado com a criação de movimentos cênicos por si mesmo. Um
objeto de jogo metafísico, como os que são apresentados em Mênon e Íon, são invisíveis,
mas devem ser realizados através de uma disposição cênica visível, assim, caso o ator
fixe a sua atenção nos movimentos cênicos ele perderá de vista o outro, razão e motivo
de sua atuação.
Durante os diálogos com os atores, AV não cansa de salientar que os
textos platônicos são plenos de humor, porque são construídos sobre o princípio da
negação. “Você sabe o que é o humor? O humor sempre contém uma negação”.
(Vassíliev, 1996, p.153) AV fala sobre o estilo da obra platônica que ele denomina de
ironismo e, a partir da ironia, traça algumas relações com a arte do ator. A primeira delas
é que o ironismo faz com que o ator evite o erro comum de associar atuação com
ilustração. A ironia, por ser um jogo de negação, supera a ilustração que é uma simples
transposição do texto em forma visual. A ironia, através de negações constantes, vai
levando até à verdade, sendo, portanto uma forma que leva ao conhecimento. AV afirma
também que para que a ironia aconteça é necessário que o ator conheça muito
profundamente o que está negando, portanto o jogo tem dupla função, além de ser um
recurso que nega os clichês, também é um meio de aprofundamento do conhecimento.
Quando o ator não tem domínio do que ele deve negar em cena, o seu jogo se transforma
126 Come vi ho detto, ci sono tre movimenti: psichico, verbale e plastico; la psique, le parole e il movimento fisico devono scorrere parallelamente senza bloccarsi a vicenda. Se si riesce a creare questa condizione si ottiene la libertà ideale per recitare.
107
em paródia, que é uma espécie de ilustração ao contrário. Para se criar a ironia é preciso
estabelecer um ambiente de jogo.
A lleggerezza não é comicidade, ela depende do posicionamento do ator
dentro da obra. Na cena o ator pode, de acordo com a ênfase, transitar entre os dois polos,
de persona para personagem. AV não prega que o ator faça exclusivamente persona, mas
salienta que ela é a que permite que surja o jogo lúdico, caso contrário, o ator vivencia o
conflito de maneira direta.
Na aproximação da persona do acontecimento principal, o
conhecimento da imortalidade da alma, “o ator deve realizar um percurso de ação que
ocorre no nível do pensamento, tornando-se veículo ativo, transparente e ‘luminoso’ das
ideias contidas no texto” (BERGAMO, 1997, 10). Em um artigo seguido de uma
entrevista, intitulado O escravo de Mênon, AV descreve esse processo:
Como é que a energia cósmica pode ser transformada em
energia espiritual? O que é a transparência do ator?
AV: Deve ser assim: entre a personagem, que é conduzida,
realizada pelo ator, e a personalidade do próprio artista se forma como uma
fissura, uma distância, e através desta fenda passa a energia cósmica. O
resultado é uma espécie de vertical, através da qual a luz passa. É neste sentido
que eu falei sobre transparência. Mas o processo da existência contemporânea
de dois corpos, a fisicalidade do personagem e do corpo (que seja
transparência, isso é um paradoxo!) do intérprete, é extremamente
complexo127 (VASSILIEV, 1993, p. 389. Tradução própria).
Essa separação, abertura, espaçamento entre ator e personagem é, em
termos pedagógicos, o principal objetivo do trabalho com os textos de Platão. Para AV é
algo muito parecido com o que descreve Mikhail Tchékhov quando conta sobre como ele
imaginava o personagem que o acompanhava “não somente durante o silêncio da noite,
mas também de dia, quando brilha o sol, pela estrada ruidosa, no meio da multidão e entre
as tarefas cotidianas”. (VASSILIEV, 1993, p. 340. Tradução própria). Como uma
entidade fora do ator, com a qual ele se relaciona como outro, não como o mesmo. AV
afirma que quanto mais distância, mais intensa fica a relação entre ator e personagem. O
espaçamento é necessário para que o ator faça ver a personagem, nesse sentido a
127 Come fa l'energia cosmica a trasformarsi in energia spirituale? Cos'è la trasparenza dell'attore? Vassíliev: Dovrebbe essere così: tra il personaggio, che è condotto, portato avanti dall'artista, e la personalità dell'artista stesso si forma una fessura, una distanza, e attraverso questa fessura filtra l'energia cosmica. Ne viene fuori una sorta di verticale, attraverso la quale passa la luce. È in questo senso che ho parlato di trasparenza. Ma il processo stesso dell'esistenza contemporanea di due corporeità, la corporeità del personaggio e la corporeità (che è trasparenzaecco un paradosso!) dell'interprete, è veramente complesso.
108
transparência significa que quem observa o ator não o vê, como o objeto em questão da
representação artítica, mas para algo além dele próprio.
2.4. Considerações
No seu livro A República, Platão defende a ideia de que a formação do
ethos do homem deve passar por um treinamento duplo: dialético e gímnico-musical.
Neste capítulo, tentei abordar o primeiro aspecto da Paideia platônica, o dialético. Quando
aplicado ao trabalho do ator, ocorrem transformações importantes não só na sua própria
concepção artística. Primeiro, o processo dialético leva o ator a perceber que o significado
do fazer artísico está relacionado com a percepção do todo, que sempre se configura como
algo “mais” do que suas partes, conforme comprovado mesmo pela teoria da Gestalt. Este
tema está profundamente relacionado com o da liberdade de criação, de que a liberdade
absoluta não é uma prerrogativa à criação artística, mas essa se associa a um pensamento
sintético, ou compositivo, quer dizer, criar é compor. Os próprios diálogos platônicos são
formas compositivas dramáticas, através dos quais são expressos os seus conteúdos.
O diálogo Mênon é considerado por Werner Jaeger como o fundamento
da Paideia platônica, ao propor a teoria do conhecimento como reminiscência, e a
dialética como a forma de revelar esse conhecimento inerente à alma. A escolha de
começar o seu processo pedagógico com os atores com esse diálogo especificamente
também indica a importância desses conceitos para AV.
O processo pedagógico passa pela reminiscência, o que por si só é uma
metáfora do próprio fazer artístico do ator, relacionado ao seu processo de criação. Essa
capacidade inata e a aplicação desse conceito na formação artística são tratadas em Íon.
Retoma o príncipio pedagógico da pedagogia teatral russa, de que não é possível ensinar,
apenas indicar o caminho.
Finalmente, os procedimentos maiêuticos de AV levam o ator a um
progressivo desvelamento de um conhecimento que, como as figuras dos diálogos
platônicos, superam o sofrimento e alcançam a liberdade, não a absoluta, mas a do
criador.
109
CAPÍTULO 3. PEDAGOGIA E MÍSTICA ORTODOXA
A base do nosso teatro são dois autores antigos: Platão e Homero.
Anatóli Vassíliev
A partir do início da década de noventa, AV começa uma série de
laboratórios no Teatro-Escola de Arte Dramática que indicam novos campos de
investigação para o desenvolvimento de sua pedagogia teatral e metafísica. Esses novos
laboratórios, que seguiam paralelos aos sobre dramaturgia conceitual e filosófica,
pesquisam a pedagogia nos seus aspectos de ação verbal. Historicamente, dois fatos
marcam o direcionamento que esses laboratórios terão ao longo da década: o primeiro,
foi o encontro de AV com Jerzy Grotowski em 1990, em Wroclaw, na Polônia e o
segundo, o estágio com os atores franceses, que resultou na montagem, com estreia em
junho, de Mascarada, de Mikhail Lermontov128, na Comédie-Française, em 1992.
Em abril de 1990, AV apresenta Seis personagens em Busca de um
autor no Teatro Laboratório de Grotowski, em Wroclaw, Polônia. Após essa
apresentação, AV e seus atores assistiram o “treinamento experimental” desenvolvido por
Thomas Richards, Mario Biagini e outros do grupo no Workcenter Jerzy Grotowski, em
Pontedera. Esse encontro envolvia uma espécie de potlach, onde os convidados também
mostravam algum trabalho em troca. Até aquele momento, relata AV (1997), ele nunca
havia se envolvido diretamente com o treinamento do ator, sua formação na escola teatral
russa não impunha que essa função fosse incumbência do diretor, mas a partir dessas
trocas iniciais com o grupo de Grotowski, tornou-se evidente a necessidade de
desenvolver um trabalho semelhante. Naquele período, em Pontedera, as pesquisas de
Grotowski estavam fundamentadas nos cantos da tradição afro-caribenha, e durante as
sessões de troca, AV relata como ele decidiu que tinha que trabalhar também com esse
tipo de material:
No geral, eu estava preparado para começar um
treinamento, mas não sabia qual era o material. E quando eu assisti as
vocalizações e ressonâncias no espaço dos antigos armazéns de grãos, eu
pensei: eu tenho que fazer um treinamento, mas não com o material dos
cantos, porque este material ritual está muito longe da consciência russa, mas
eu tinha que encontrar algo arcaico, e eu decidi que eu iria trabalhar com textos
épicos antigos, o hexâmetro de Homero. Esse foi o meu resultado pessoal
128 Essa encenação que ocorreu em junho foi precedida por um estágio para atores e diretores, realizado por AV em Bruxelas, Bélgica, de 17 a 25 de fevereiro. Foi um curso centrado no estudo da peça.
110
desse encontro.129 (VASSILIEV, http://teatral.org.ua/vasiljev.html. Tradução
própria)
Esse primeiro encontro com Grotowski abriu caminho para o
aprofundamento do diálogo e de troca de experiências teatrais entre o Workcenter e a
Teatro-Escola de Arte Dramática130. A pesquisa com os cantos de tradição realizada por
Grotowski por essa época acabaram por influenciar AV na busca de um caminho
pedagógico e artístico centrado na musicalidade vocal do ator e na tradição religiosa
ortodoxa russa. Os espetáculos José e seus irmãos de Thomas Mann, em 1993, e As
lamentações de Jeremias, do compositor Vladimir Martinov, em 1996, são exemplos de
laboratórios onde AV propõe que os atores mergulhem na tradição musical da ortodoxia
russa. Também por essa época, os atores começaram um laboratório de treinamento físico
com o Wushu, uma antiga arte marcial chinesa. A convergência dessas investigações
permitiu que AV desenvolvesse um treinamento denominado por ele de entonação
afirmativa.
Por outro lado, a experiência de AV na encenação da peça Mascarada,
de Liermontov, marcou o início de um período de investigação voltado para os problemas
técnicos e conceituais da versificação na dramaturgia131. O texto dramático é muitas vezes
escrito em versos, o que obriga o ator a respeitar um esquema prosódico bastante estrito,
a seguir uma norma, uma poética que impõe sua própria lei formal. De certa forma, com
a criação de laboratórios de pesquisa132 sobre Molière (Anfitrião e Escola de Mulheres,
em 1992) e Púchkin (Conversando com o poeta, em 1993, Convidado de Pedra, em 1994
e Mozart e Salieri, em 1995 ), AV estava retomando a pesquisa sobre a versificação
129 В общем, я был готов к тому, чтобы начать тренинги, но не знал материал. И вот, когда я наблюдал звучание и резонанс в пространстве бывших зерновых складов, подумал: попробую я делать тренинги -- не на материале подобного пения, потому что этот ритуальный материал очень далек от русского сознания, но я должен был найти что-то древнее, -- и я решил, что буду заниматься античными эпическими текстами, гекзаметром и Гомером. Таков был мой личный результат этой встречи. 130 Desse primeiro encontro, Grotowski e Vassiliev decidiram criar um projeto em conjunto denominado “Os eslavos peregrinos”, que seria coordenado por Thomas Richards, do qual o ator e futuro colaborador de AV, Nicolau Tchindiankine será o único integrante do Teatro-Escola de Arte Dramática a participar. No verão de 1991, os atores selecionados para o projeto se reuniram em Pontendera, para iniciar o trabalho. 131 A versificação constituiu uma realidade incontornável na dramaturgia clássica, desde a tragédia grega até o drama romântico, e sua função é a de dar forma e sentido ao texto. A versificação é “o lugar onde o texto ‘vive’ musicalmente, antes de assumir um sentido e de ‘dissolver-se’ na situação e na caracterização dos personagens”. (PAVIS, 2001, p. 430). 132 O laboratório se constitui em um momento de pesquisa que resulta numa apresentação pública dos resultados.
111
deixada em aberto pelo próprio Stanislávski em 1938, quando da encenação de Tartufo,
de Molière133.
Neste capítulo, proponho-me analisar de que modo esses diversos
laboratórios confluem para configurar uma proposta pedagógica de formação espiritual
do ator inspirada pelo conceito grego de Paideia, tendo como fundamento a música e a
ginástica134. Num segundo momento, busco identificar como esses dois pilares somados
ao treinamento dialético platônico possibilitam uma progressiva metamorfose espiritual
do ator, tendo como fundamento a mística ortodoxa russa.
3.1. Ação verbal na pedagogia de Stanislávski-Knebel
Nesta unidade analiso a noção de ação verbal (Словесное действие),
como utilizada por AV, relacionando-a com a forma como ela surge no livro de Knebel
L’Analyse-action (2006) e no livro de Toporkov, Stanislavsky dirige (1961), procurando
destacar, no processo de tradução deste termo para outras línguas, o pensamento por trás
destas escolhas. O primeiro capítulo do livro de Maria Knebel A palavra no trabalho do
ator (tradução própria do título em russo: Слово в творчестве актера) é A palavra é
ação (livre tradução de: Слово – Это действие). Em espanhol, a tradução para o título
do livro é La Palavra em la Creación Actoral e do primeiro capítulo, La palavra es
acción. Na edição francesa, adaptada por AV, temos respectivamente Le verb dans l’art
de l’acteur e Le verbe, c’est l’action.
3.1.1. A palavra é ação (Слово – Это действие)
Durante muito tempo, AV trabalhou sobre as ações psíquicas,
principalmente na fase anterior à fundação do Teatro-Escola de Arte Dramática, mas a
partir dessa data começou a se interessar por basear a ação numa estrutura mais abstrata:
a palavra. Para AV, a expressão verbal pode ser ainda mais abstrata, ainda menos
133 Desenvolvo melhor esse assunto no tópico 3.1.2. deste capítulo. 134 O termo é usado por Platão, no sentido de atividade física ligada à formação do caráter e não apenas como uma função prática de saúde corporal.
112
imagética do que a atividade psíquica - o mundo da interatividade emocional - do que o
movimento físico. AV começa a pesquisar a palavra como um tecido verbal que se
constitui de duas tramas: a semântica e a musical. No teatro realista, tradição da qual parte
a pedagogia de AV, essas duas tramas são urdidas através da ação psíquica do ator. O
subtexto é o termo utilizado por Stanislávski para indicar que as palavras do texto
dramático estão preenchidas pela ação psíquica do ator. O aspecto musical da fala do ator
também é constantemente destacado por Stanislávski na sua psicotécnica, e os termos
mais voltados a esse tema, excluindo-se questões técnicas de articulação e emissão do
aparelho vocal do ator, são as pausas psicológicas, os acentos e as entonações. Maria
Knebel (2006) salienta que Stanislávski insistia que os atores deveriam dominar as leis
da palavra falada e que a musicalidade da fala deveria ser preenchida pela música dos
sentimentos do ator, ou seja, por sua ação psíquica.
Mas assim que alguém desprendia o trabalho com a
palavra do seu conteúdo interno, Stanislávski recordava autoritariamente o
que é principal na ação verbal: que as palavras escritas pelo autor estarão
mortas, se não forem aquecidas pela experiência interior do ator. Ele nunca se
cansou de repetir que cada ator deve ser lembrado que, o momento de criação
da palavra provém do poeta e o subtexto do ator, porque se não fosse assim, o
espectador não iria ao teatro para assistir os atores, e preferiria ficar sentado
em casa lendo a peça. Stanislávski escreveu: "O artista deve criar música de
seus sentimentos sobre o texto da peça e aprender a cantar essa música dos
sentimentos com as palavras do papel. Quando ouvimos a melodia de uma
alma viva, só então podemos apreciar plenamente a beleza do texto, que ele
esconde em si”135. (KNEBEL, 2004, p. 69, tradução própria)
A ação verbal é, na pedagogia Stanislávski-Knebel, impulsionada pela
ação psíquica do ator, que deve criar a música de seus sentimentos e expressá-la com as
palavras do texto do autor. AV, ao se interessar pela ação verbal, vai seguir outra linha de
desenvolvimento nas suas pesquisas, utilizando-se também da acentuação, entonação e
pausas, mas sem atrelar esses conceitos à ação psíquica do ator. Para obter essa separação,
AV promove uma desconstrução do tecido verbal, nas suas habituais relações narrativas,
135 Но как только кто-нибудь отрывал работу над словом от внутреннего его содержания, Константин Сергеевич властно напоминал о главном в словесном действии. О том, что слова, написанные автором, мертвы, если они не согреты внутренним переживанием исполнителя. Он не уставал повторять, что каждый актер должен помнить, что в момент творчества слова — от поэта, подтекст — от артиста, что если бы было иначе, зритель не стремился бы в театр, чтобы смотреть артистов, а предпочел бы, сидя дома, читать пьесу. Станиславский писал: «Артист должен создавать му¬зыку своего чувства на текст пьесы и научиться петь эту музыку чувства словами роли. Когда мы услышим мелодию живой души, только тогда мы в полной мере оценим по достоинству и красоту текста и то, что он в себе скрывает».
113
figurativas e lógicas entre o aspecto semântico e musical do texto teatral. Ao promover
essa separação, acaba revelando uma natureza irracional e metafórica da própria ação
verbal. A desconstrução dessas relações superficiais cria uma situação que possibilita o
surgimento, dentro do movimento verbal, de uma vida oculta, até então encoberta pela
capa das ações psíquicas. Nos laboratórios sobre ação verbal, essa linha de pesquisa
procura desvelar o texto oculto, sobretudo, na dramaturgia clássica, como por exemplo,
nas pequenas tragédias de Púchkin, nos diálogos platônicos e nos versos homéricos.
Artistas do Teatro-Escola rejeitam tanto o enredo quanto a
costumeira forma musical do verso e encontram outros mecanismos de ação,
desconhecidos pelo teatro atual e ocultos dentro da fala. Foi desconstruída a
entonação cotidiana que, na opinião de Vassíliev, carrega “um conteúdo
clichê” até mesmo na base melódica. (...) A energia do texto encontra-se não
nos estados psicológicos dos personagens, mas na própria vida plena de
conflitos da tessitura verbal. O embate entre sons e sílabas, as reações das
frases sem enredo (quase irracionais), a aritmética (ou alguma matemática
mais complexa) das ligações entre as palavras, tudo isso é rico de conteúdo,
como uma saída para a substância espiritual, oculta, não verbalizada e
inexprimível em categorias narrativas. (PESSOTCHÍNSKI, 2011, p. 374)
A desconstrução da musicalidade da fala cotidiana do ator e das formas
tradicionais de enunciar textos versificados é o principal objetivo pedagógico de AV para
o desenvolvimento da ação verbal. Os laboratórios sobre o hexâmetro homérico, a
cantilena ortodoxa e a dramaturgia em versos de diferentes autores são os três eixos de
elaboração desse aspecto da pedagogia metafisica de AV.
3.1.2. A problemática da dramaturgia versificada
O primeiro laboratório sobre dramaturgia em verso no Teatro-Escola de
Arte Dramática aconteceu com peças de Molière (Anfitrião e Escola de Mulheres), e data
do segundo semestre de 1992, mesmo ano da encenação de Mascarada com os atores
franceses na Comédie-Française. A primeira encenação de um fragmento136 do texto
Anfitrião foi realizada somente em 1994 e circulou em turnê pela Europa entre os anos de
1995 e 1997, quando teve sua última apresentação no Festival de Avignon. Lá, AV
136 A montagem integral do texto ocorreu dez anos depois, em 2002, na Comédie-Française, quando AV considerou o período de pesquisa sobre a peça finalmente concluído.
114
realizou a conferência Apologie d’Anphitryon137, onde reflete sobre o seu processo de
trabalho com a dramaturgia de Molière:
Para abordar Molière, tive que esperar 20 anos138. Eu
mudei a minha forma de fazer teatro. Minha concepção de teatro. Comecei no
interior do sistema de Stanislávski. Tive que transformar o sentimento - o
sentimento mesmo - do teatro. Estudante, eu já pensava em Molière. Mas a
primeira vez que senti que realmente poderia montar, foi dez anos atrás. (...) Isso foi uma etapa: a minha passagem de obras, digamos, menores (os dramas,
peças e cenas da vida) a um gênero nobre: as comédias e tragédias clássicas.
Elas exigem uma abordagem radicalmente diferente. O drama, como tal,
aparece no meio do século XIX. Os séculos XIX e XX marcaram seu apogeu
e toda a teoria do teatro lhe é submissa. Mas não podemos usar essa teoria para
encenar a tragédia clássica! Stanislávski foi confrontado com um problema
colossal, no momento de montar Tartufo. Ele foi forçado a ensaiar Molière
como se fosse uma obra dramática qualquer - drama ou comédia. Ele produziu
um espetáculo excelente, mas no estilo do Teatro de Arte. Enfim, o meu
primeiro problema foi este: aprender a fazer. O segundo é sobre ideologia.
[Um problema] que já tinha pressentido quando estudei a composição do
texto. De início, notei (isso se tornou mais tarde um conhecimento, mas
primeiro foi uma intuição) que Molière não explorava o concreto, mas o
abstrato139 (VASSÍLIEV, 1999, p. 197, tradução própria.)
AV observa que a sua vontade de encenar o texto Anfitrião colocou para
ele dois problemas fundamentais: o primeiro, da ordem da práxis teatral, relacionava-se
com o fato de que método de Stanislávski se fundamentava no drama realista da segunda
metade do século XIX e não era, portanto, compatível com textos de outra tradição,
notadamente as comédias e tragédias clássicas; o segundo, da ordem conceitual, porque
137 Essa conferência foi editada como a oitava lição do livro Sept ou huit leçons de théâtre, de AV, publicado em 1999, pela P.O.L. Éditeur. 138 A conferência é proferida por Anatóli Vassíliev em 1997. Vinte anos remetem ao inicio da carreira teatral de AV, com a montagem de Vassa Gezlenovna, primeira versão de Maxim Górki. Dez anos, por sua vez, remetem a fundação da Escola De Arte Dramática em 1987. 139 Pour aborder Molière, il m'avait fallu attendre vingt ans. Que je change ma manière de faire du théâtre. Ma conception même du théâtre. J'avais commencé à l'interieur du système de Stanislávski. Je devais transformer le sentiment - le sentiment même - du théâtre. Étudiant, déjà, je pensais à Molière. Mais la première fois que j'ai senti que je pouvais m'y mettre vraiment, , ce n'est qu'il y a dix ans. (...) C'était une étape: mon passage d'oeuvres, disons, mineures (le drame, les pièces, les scenes de la vie) à un genre noble: les comédies et tragédies classiques. Elles requièrent une approche radicalement différente. Le drame, comme genre, n'apparaît qu'au milieu du XIX siècle. Les XIX et XX siècles marquent son apogée et tout la théorie théâtrale lui est soumise. On ne peut pas reprendre cette théorie pour répéter la tragédie classique! Stanislávski a été confronté à un problème colossal, au moment de monter Tartufo. Il a été contraint de répéter Molière comme n'importe quelle oeuvre dramatique - drame ou comédie. Il a produit un spectacle superbe, mais dans le plus pur style du Théâtre d'Art. Bref, le premier problème a été celui-là: apprendre à faire. Le second avait trait à l'idéologie. Que j'ai pressenti en étudiant la composition du texte. D'abord, je me suis aperçu (c'était devenu une connaissance, après avoir été une intuition), que Molière n'explorait pas le concret, mais l'abstrait.
115
a peça de Molière, na concepção de AV, trata de questões abstratas, mais do que de
problemas concretos, trata-se do tema oculto.
Os laboratórios que AV vinha desenvolvendo sobre o hexâmetro
homérico o permitiram questionar o pressuposto de Stanislávski sobre o trabalho do ator
com a palavra versificada: partir da ação psíquica para chegar até a verbal. No sistema
Stanislávski, o ator estuda o texto através da sua própria ação psicofísica, o que significa
afirmar que o tema mesmo da dramaturgia é a expressão do ser humano individual. Essa
abordagem é característica básica, por exemplo, das encenações que o Teatro Artístico
Moscovita (MXAT) fez das peças de Tchékhov, onde a expressão em cena da ação
interior do ator determina o significado do que é dito textualmente. Esse ritmo interno
que o ator impõe ao texto permite-lhe
Forrar de significação os pensamentos não verbalizados e
introduzir, nos diálogos supostamente triviais e insignificantes, a semântica
do “algo que está por trás”, forçando (...) o ator a justificá-los de algum modo,
como uma dinâmica interior e psicológica que lhe compete descobrir e ajustar,
o que constitui um primeiro degrau na direção de um ponto básico (...), o da
justificação interna de todo ato de expressão cênica da interpretação.
(GUINSBURG, 2006, p. 99.)
O texto, portanto, somente alcança a sua plena expressão cênica através
da “justificação interna” do ator. Nesse caso, é a ação psicofísica do ator que comanda e
determina o significado do texto, alçando-se à condição de objeto estético do acontecer
teatral. Para AV (1993), esse é o objeto de estudo dos dramas e comédias burgueses do
século XIX. Já numa peça de Molière, por outro lado, AV observa que,
fundamentalmente, a ação não se remete a um subtexto psicológico, mas se desenvolve
como ação verbal, no jogo das palavras e da linguagem, enquanto que a ação física
propriamente dita dos atores em cena é mínima. Essa ação psíquica mínima não pode
comandar a ação verbal, ao contrário, deve ficar sujeita a ela. Nas pesquisas iniciais de
Stanislávski sobre a ação verbal, ele tendia a justificá-la pela ação psíquica. É o que
também afirma Toporkov, ao descrever o processo de ensaio de Stanislávski sobre a cena
três, do terceiro ato de Tartufo.
Assim, por exemplo, a extensa cena de declaração entre
Tartufo e Elmira, com seus longuíssimos monólogos, foi reduzida a uma ação
física simplíssima. Elmira aparentemente desejando Tartufo, consegue que ele
116
dê um passo em falso e caia numa armadilha140 (TOPORKOV, 1961, p. 175.
Tradução própria).
No método Stanislávski, a ação verbal dos personagens na peça de
Molière é justificada pela ação física, ficando sujeita a esta e dela retira o seu significado
último. A ação verbal propriamente dita fica, neste caso, em segundo plano, porque nesse
método de trabalhar a palavra através da ação psicofísica, da “justificação interior”, o
extenso e complexo jogo retórico das falas do texto não encontra no jogo cênico dos atores
a mesma extensão e complexidade. Para AV, quando a ação verbal se desenvolver num
longo arco de tempo, como é comum na estrutura lúdica, o ator não precisa trabalha
unicamente pela linha interior. Na sua busca por determinar a natureza da própria ação
verbal, AV descarta momentaneamente essa abordagem e se volta para outra linha
pedagógica de trabalho com a palavra, iniciada por Stanislávski, centrada na “lógica da
frase”:
Stanislávski tinha muitos métodos pedagógicos para dotar
as palavras com um sentido ativo e aguçar a ação verbal. Mas todos estes
métodos foram divididos, aparentemente, em duas categorias. Alguns seguiam
a linha do estudo da construção lógica da frase; outros iam pela linha interior,
que desenvolvia no ator a correspondente percepção das imagens, sobre as
quais estava apoiado o texto de seu papel141 (TOPORKOV, 1961, p. 100.
Tradução própria).
Para Stanislávski, o estudo da “lógica da fala” não tinha o objetivo
primeiro de impulsionar a ação física em cena, mas sim de produzir imagens: “o objetivo
da ação verbal do ator consiste em comunicar ao parceiro a percepção visual que ele tem
de uma dada imagem142” (TOPORKOV, 1961, p. 100. Tradução Própria). No entanto, a
produção de imagens mentais também pode ser veiculada a expressão da interioridade
psicológica do ator, porque a seleção desse material pelo ator se orienta pelo mesmo
principio do drama psicológico, a justificação interior. Mesmo as pesquisas que
140 Así, por ejemplo, la muy extensa escena de la declaración entre Tartufo y Elmira, com sus larguíssimos monólogos, fue reducida a uma acción física simplíssima. Elmira, alentando, em apariencia, a tartufo, logra que éste dé um passo em falso y caiga em la trampa. 141 Stanislavsky tenía muchos métodos pedagógicos para dotar as palavras de um sentido ativo y para aguzar la acción oral. Pero todos estos métodos se dividian, aparentemente, en dos categorias. Unos seguían la línea exterior, línea del estúdio de lá constructión lógica de la frase; otros íban por la línea interior, que desarrollaba em el actor la correspondiente percepción de las imágenes, sobre las cuales éste apoyaba el texto de su rol. 142 El objetivo de la acción verbal del actor consiste em comunicar al partenaire la percepción visual que él tiene de uma imagen dada (TOPORKOV, 1961, p. 100).
117
Stanislávski desenvolveu sobre “as leis da linguagem falada143” tinham por objetivo
último o estudo da psicologia do personagem. Assim, o estado interior do personagem
era detalhadamente estudado através das pausas lógicas gramaticais da frase, como
também das chamadas pausas psicológicas que preencheriam de vida o discurso do ator.
Tanto o trabalho proposto por Stanislávski com a “lógica da fala”, como
a sua cuidadosa preocupação com a enunciação da palavra são complementares ao estudo
da psicologia do personagem e sua consequente expressão em cena pelo ator. AV
desvinculou essas propostas de trabalho de Stanislávski sobre a fala da sua justificação
interior psicológica e as direcionou para o estudo da expressão da ação verbal em si,
primeiramente pelo estudo do seu conteúdo semântico, com os diálogos platônicos e
depois no seu âmbito fonético, com o hexâmetro homérico.
No capítulo anterior, investigou-se de que modo, na estrutura lúdica, o
papel da “vivência interna do ator” é deslocado de sua função de produzir conteúdo, para
o de fonte energética que conduz o significado. Ou seja, o ator não tem que viver
internamente a realidade do personagem, mas se relacionar com ele como um elemento
externo. Na estrutura lúdica, a “vivência interna” que o ator experimenta é a do estado de
jogo e não a da realidade psicológica do personagem. E também se concluiu que o
processo pedagógico de AV não pretendia eliminar a função psicológica do trabalho do
ator, mas possibilitar-lhe a capacidade dialética de transitar entre esses dois registros. AV
entende que o trabalho sobre a forma versificada é uma continuidade do trabalho com o
conteúdo nas estruturas lúdicas. Ao contrário da estrutura psicológica, que tende a entrar
em conflito com a forma dramatúrgica versificada144, a lúdica, ao se focar sobre a
condução de um objeto de jogo, permite que o ator tenha maior liberdade para trabalhar
o texto numa perspectiva poética, onde os aspectos sonoros da palavra encontram um
equilíbrio com o conteúdo dos versos, sem, no entanto, prescindir da ação psicofísica dos
personagens.
3.2. O verbo no trabalho do ator
143 Para maior informação sobre esse assunto ver o capítulo oito (Entonações e pausas), do livro de Stanislávski, A construção do personagem, (2010). 144 Isso pode ser exemplificado pelo próprio Stanislávski na sua autocrítica sobre o trabalho com as Pequenas Tragédias do poeta A.S. Púchkin. Ver o capítulo O Ator deve saber falar in: STANISLÁVSKI, Constantin. Minha vida na arte. Editora Civilização Brasileira, São Paulo: 1983.
118
O desenvolvimento da pedagogia metafísica de AV vai se dar a partir
de três importantes momentos, o primeiro no contato com a cantilena da liturgia ortodoxa,
o segundo pelo treinamento verbal com o hexâmetro homérico e, finalmente, a prática
marcial chinesa Wushu.
3.2.1. A Cantilena Ortodoxa - José e seus irmãos, de Thomas Mann
Na primeira metade da década de 90, a pesquisa pedagógica de AV
encaminha-se cada vez mais para as questões referentes ao âmbito da ação verbal. Como
abordado anteriormente, trata-se de uma retomada de uma linha de pesquisa iniciada por
Stanislávski, no que se refere à entonação e musicalidade da palavra. O laboratório sobre
o texto de José e seus Irmãos, de Thomas Mann, possibilitou a AV avançar em relação
às propostas iniciadas por Stanislávski nessa área.
No laboratório sobre o romance de Mann, AV propôs aos atores que
lessem a Bíblia antes de cada trabalho prático com os études. Os ensaios eram divididos
em duas partes, na primeira, os atores se revezavam na leitura em voz alta da Bíblia e a
segunda era dedicada à prática dos études propriamente ditos145. A associação das duas
práticas objetivava que os atores, na realização dos études, se remetessem a um sentido
para além do texto do romance de Mann, de modo a revelar neles a mesma fonte espiritual
que emana do texto bíblico recitado.
Durante o momento de leitura da Bíblia no ensaio, o sentido espiritual
da história de José e de seus irmãos não é somente o resultado final da ordem causal das
ações narradas, mas, também a vivência subjetiva do ator durante a audição da própria
enunciação do texto naquele momento, ou seja, sobretudo é uma experiência emocional.
O sentido espiritual é dado pela enunciação e musicalidade da palavra, delas depende a
natureza da vivência do ator. Para AV, uma leitura narrativa da Bíblia, por narrativa
entenda-se a leitura com entonação cotidiana, não revela o sentido espiritual específico
para que os atores experimentem a emoção necessária para realizar os études lúdicos
sobre o romance de Thomas Mann. As suas indicações sobre a forma como deviam ser
lidos esses textos bíblicos rementem às práticas religiosas de entoação da liturgia
145 Na apresentação pública do resultado desse laboratório, AV, como nos ensaios, entremeou as cenas com os cânticos litúrgicos ortodoxos, realizados pelos próprios atores. Os diálogos retirados do romance eram justapostos às leituras cantadas do texto bíblico, para que o espectador também pudesse perceber as fontes originárias do romance.
119
ortodoxa, as chamadas cantilenas. O musicólogo Maxime Kovalevsky descreve a
diferença entre uma enunciação falada e outra cantada:
A palavra em si mesma, simplesmente pronunciada, não
tem força suficiente. Desde o princípio, pelos padres e apóstolos, temos sobre
esse ponto testemunhos dos primeiros séculos: a palavra era pronunciada de
maneira musical para dar-lhe mais peso. Quando falo com vocês, falo a partir
de “mim”. Tomo todas as precauções para não ser professoral, todas as
precauções... E gaguejo quando não tenho que gaguejar... e no entanto sou
bastante persuasivo, e caso eu não seja suficientemente persuasivo fico
descontente. Ou seja, existe um pequeno elemento de violação. Quando
“falamos”, não podemos falar de maneira impessoal: “violamos” a pessoa que
escuta. Declamamos um poema e deformamos o pensamento do poeta... É por
isso que, desde o começo, a igreja obrigou o clero e os cantores a não ler
falando, somente cantando. No canto, esse aspecto violador é menos aparente.
Um homem que canta: “O Senhor sempre esteja com vós” segue sendo ele
mesmo, porém através do canto é muito mais o representante da tradição que
quer transmitir. Tomemos por exemplo a frase: “O Cristo ressuscitado de entre
os mortos já não morre, a morte já não tem domínio sobre Ele”. Pode
impressionar.... porém muito menos que seu eu a cantasse: “O Cristo...
ressuscitado de entre os mortos... já não morre...” Desse modo, a pessoa que
canta desaparece. Ela é então o representante, o instrumento da tradição da
Igreja, e, portanto, é ouvida de maneira diferente. É um exercício muito
interessante ler um texto sem cantá-lo. Cada um o lerá como queira e o lerá
mal. Pois se o ler bem, vai o violentar: vai impor ao outro o sentido que ele
quer que se compreenda, que ele quer privilegiar146. (KOVALEVSKY, 1981.
Tradução própria)
Através da cantilena ortodoxa, o ator entra em contato com a
enunciação vocal que não é expressão de sua individualidade física, mas que a remete
146La palabra en sí misma, simplemente pronunciada, no tiene suficiente fuerza. Desde el comienzo, por los Padres y los Apóstoles, tenemos sobre este punto testimonios de los primeros siglos: la palabra era pronunciada de manera musical para darle más peso. Cuando les hablo, hablo en tanto que "yo". Tomo todas las precauciones para no ser profesoral, todas las precauciones... Y tartamudeo cuando no hay que tartamudear... y sin embargo soy bastante persuasivo, y si no soy persuasivo no estoy contento. Es decir que hay un pequeño elemento de violación. Cuando se "habla", no podemos hablar de manera impersonal: "violamos" a la persona que escucha. Declamamos un poema y deformamos el pensamiento del poeta... Es por eso que, desde el comienzo, la Iglesia obligó al clero y a los cantores a no leer hablando, sino cantando. En el canto, ese aspecto violador es mucho menos sensible. Un hombre que canta: "El Señor siempre con vosotros" sigue siendo él mismo, pero por el canto es mucho más el representante de la tradición que transmite. Tomemos por ejemplo la frase: "El Cristo resucitado de entre los muertos ya no muere, la muerte ya no tiene dominio sobre El". Sí, impresiona... pero mucho menos que si lo canto: "El Cristo... resucitado de entre los muertos... ya no muere..." Así, la persona del que canta desaparece. Es entonces el representante, el instrumento de la tradición de la Iglesia, y se lo escucha de manera diferente. Es un ejercicio muy interesante leer un texto sin cantilarlo. Cada uno lo leerá como quiera y lo leerá mal. Pues si lo lee bien, va a violar: va a imponer al otro el sentido que él quiere que se comprenda, que él quiere privilegiar. Publicado en Anuario Fuentes, Buenos Aires, 1998. Canto Liturgico e Ícone, Maxime Kovalevsky (1903-1988), Conferencia pronunciada en 1981, en el marco de una Sesión de Estudios Litúrgicos. Se ha mantenido el tono coloquial del texto original. http://eglise-orthodoxe-de-france.fr/nouvellepage2.htm
120
para um plano metafísico. Essa dupla condição, de indivíduo e representante da tradição,
tem seu paralelo na relação entre persona e personagem desenvolvida no trabalho com as
estruturas lúdicas. O que o ator alcança com os diálogos platônicos em termos de
conteúdo também o consegue no plano da emissão verbal e, justamente, por possuir esse
caráter lúdico é que ele é importante como recurso pedagógico de aprendizado dos
ensinamentos religiosos, que são da ordem do metafisico.
Um importante resultado desse laboratório, para AV, foi a descoberta
de que a forma de leitura revelava o conteúdo, e não o conteúdo que estruturava uma
forma. A instância ritual da palavra entra em destaque na pedagogia de AV, onde o
significado se encontra no significante, ou seja, no próprio som da palavra. A ortodoxia
russa, com suas formas históricas de enunciação da palavra aponta um novo campo de
investigação para o ator poder se afastar da “justificação interior” e buscar na tradição
cultural novos significados para o seu trabalho.
Na verdade, é precisamente a palavra ritualizada que
revela o espírito e conteúdo do texto. A palavra no ritual é funcional, enquanto
que no não ritual ela não se refere a nada, é simplesmente o testemunho de
uma avaliação pessoal do artista. (BERGAMO, 1997, p.10).
Essa característica, observada na cantilena ortodoxa, permite deduzir
que a palavra ritualizada é uma entonação específica herdada de uma tradição cultural
religiosa. Quando o ator confronta o seu modo de falar com o da tradição religiosa, ele
pode entender que a sua fala individual possui também uma dimensão social e ideológica,
que se manifesta na entonação. A dimensão social da entonação é o que caracteriza a
linguagem nos seus aspectos de comunicação dentro do âmbito dos problemas humanos,
por outro lado, a palavra ritualizada indica a esfera da espiritualidade. Em seus estudos,
Voloshinov e Bakthin (1981) já haviam afirmado que a entonação é o lugar da memória
acústica social, “a entonação é social par excellence” (VOLOSHINOV, 1981, p. 194).
A entonação se encontra na fronteira da vida e da parte
verbal do enunciado, ela transmite a energia da situação vivida no discurso,
ela confere a tudo o que é linguisticamente estável um movimento histórico
vivo e um caráter de singularidade (VOLOSHINOV, 1981, p.199).
No livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), Bakhtin/
Volochinov explica a relação entre a entonação expressiva e a apreciação social –
expressividade – da seguinte maneira:
121
O nível mais óbvio, que é ao mesmo tempo o mais
superficial da apreciação social contida na palavra, é transmitido através da
entoação expressiva (BAKHTIN, VOLOSHINOV, 1986, p.132).
A entonação expressiva é veículo de uma singularidade, que pode ser
psicológica ou social e AV, ao retomar o trabalho sobre esse aspecto da linguagem
distingue três diferentes aspectos dela: exclamativa, narrativa e afirmativa. A elaboração
de um treinamento verbal a partir dessas três formas de entonação será o próximo passo
na investigação pedagógica de AV. O laboratório sobre José e seus irmãos deve ser
considerado, portanto, um momento de transição na pedagogia de AV para a construção
de uma metodologia centrada na pesquisa sobre a palavra ritualizada e a entonação. Os
elementos melódicos do texto falado pelo ator vão ganhar importância frente aos aspectos
interiores de sua psicologia. Embora essa nova abordagem da palavra ditada pela leitura
litúrgica dos textos sagrados se refletisse na maneira de transpor o romance de Thomas
Mann para a cena, o resultado artístico ficou a meio caminho entre a “justificação interior”
e a palavra ritualizada. Isso porque, como os atores trabalhavam a partir do método do
étude, a palavra ritualizada passava ainda pela interiorização, para depois ser expressa em
cena.
O resultado foi um estilo que não se apoiava na vivência
do ator, além de ter ficado a meio caminho do trabalho mais consciente com
a palavra. Como se fosse uma melodia repetida de ouvido, mas não estudada
na partitura. (BERGAMO, 1997).
A maneira formalizada de enunciar a partitura verbal foi desenvolvida
e estabelecida durante os laboratórios sobre o poema épico Ilíada de Homero, quando AV
começou a trabalhar com o verso hexâmetro. O resultado dessa pesquisa foi a elaboração
da técnica da entonação afirmativa.
3.2.2. O Hexâmetro147 - A Ilíada de Homero
Estudar a frase como uma estrutura musical era a função primordial do
laboratório sobre o hexâmetro. AV exemplifica esse tipo de trabalho:
147 O hexâmetro é uma forma de medida da poesia grega antiga consistindo de seis pés métricos por verso, sendo que cada pé possui dois tempos. No hexâmetro dáctilo, que é o mais frequente na Ilíada traduzida para o russo por Gnedich, o tempo longo é seguido por dois curtos. Esse tipo de ritmo se caracteriza por induzir a uma disposição emocional grave e séria, usado em procissões ou ocasiões solenes (LABAN, 1978).
122
Nós estávamos estudando o hexâmetro com a Ilíada, numa
tradução russa baseada sobre um hexâmetro russo específico, mas análogo ao
hexâmetro grego. A leitura deste texto nos fez descobrir uma situação
inteiramente paradoxal... No início, os atores queriam ler o significado: tudo
se tornou grotesco, paródico, nada era compreensível. Em seguida, nós o
lemos a frase como uma frase poética: nós lemos a forma e não somente o
conteúdo. E, este foi o momento que o conteúdo apareceu: límpido,
grandioso148. (VASSILIEV, 1992, p.17, tradução própria).
No laboratório sobre o hexâmetro da Ilíada, AV utiliza a tradução em
russo, feita em 1829, por Nikolai Gnedich149, que é considerada por Aleksandr Púchkin e
outros seus contemporâneos, a melhor tradução dessa obra de Homero para a língua russa.
Dos vinte e quatro cantos, AV trabalha unicamente com o penúltimo, intitulado Jogos em
honra de Pátroclo. Nesse canto, Aquiles e os outros guerreiros realizam o sepultamento
ritual de Pátroclo, enquanto promovem jogos de guerra em sua homenagem. A ação da
guerra é momentaneamente suspensa para que se realize o funeral, daí, possivelmente o
interesse de AV especificamente nesse canto, pois nele os acontecimentos não são da
ordem do cotidiano, do campo de batalha, mas do tempo do jogo, do lúdico, do ritual.
A busca pelo sentido poético musical do hexâmetro passa por um
progressivo processo de purificação da palavra através de um trabalho sobre a entonação
vocal do ator.
Vassíliev começa, portanto, a desenvolver uma técnica
particular dedicada antes de tudo à purificação da palavra do seu conteúdo
habitual, quotidiano, pelos vários clichês e incrustações culturais. Estas se
acumulam, segundo ele, especialmente na entonação que se utiliza ao
pronunciar a palavra150. (RASKINA, 2000, p.122, tradução própria).
O ator precisa aprender uma forma adequada à ideia de “purificação”,
de “esvaziamento”, de “transparência” proposta por AV. Somente quando o ator alcança
essa palavra “esvaziada” é capaz de transmitir o seu conteúdo metafísico. O primeiro
objetivo com o trabalho sobre o hexâmetro é, portanto, arrancar a palavra da tradição
148 Nous avons étudié l'hexamètre avec L'Iliade, dans une traduction russe reposant sur un hexamètre russe spécifique, mais analogue à l'hexamètre grec. La lecture de ce texte nous a fait découvrir une situation entièremente paradoxale... Au début, les acteurs voulaient lire le sens: tout était grotesque, parodique, rien n'était compréhensible. Puis nous avons lu la phrase comme une phrase poétique: nous avons lu la forme et non lus le contenu. Et c'est moment que le contenu est apparu: limpide, grandiose. 149 A principal característica da tradução da Ilíada de Gnedich para o russo é o uso primordial do pé dáctilo, sem o alternar com o troqueu como no hexâmetro grego clássico. 150 Vasil'ev inizia dunque a sviluppare una tecnica particolare minata prima di tutto alla purificazione della parola dal suo contenuto usuale, quotidiano, dai vari clichè ed incrostazioni culturali. Questi incrostazioni si accumulano, secondo lui, soprattutto nell'intonazione che si utilizza nel pronunciare la parola.
123
cultural e dar-lhe outra forma e outro significado, encontrando para ela um valor ritual,
semelhante ao processo descrito na cantilena ortodoxa.
O treinamento verbal sobre o hexâmetro dáctilo da Ilíada passa por três
grandes etapas. A primeira é o trabalho sobre a estrutura do hexâmetro enquanto palavra
(dáctilo151). O Dáctilo é um dos pé de verso, grego ou latino, composto por uma sílaba
longa, seguida de duas breves. Laban afirma que para os gregos havia 6 ritmos
fundamentais (Troqueu, Iambo, Dáctilo, Anapesto, Peão e Jônio), assim
(...) consideravam que todos os demais ritmos eram
variantes destes seis fundamentais. Estes ritmos, denominados de medidas,
eram organizados em versos, estrofes e poemas. Consideravam eles que o
ritmo é o princípio ativo da vitalidade. Em relação à música, investiam o ritmo
de um princípio masculino e a melodia de um feminino. As combinações
destes ritmos detinham associações especiais na mentalidade grega. (LABAN,
1978, p. 199)
O dáctilo, afirma AV, é uma forma não usual de pronunciação e isso
ajuda o ator a libertar a palavra de sua entonação habitual. A segunda etapa é quando o
ator começa a gerir a estrutura do hexâmetro nos versos da Ilíada, não mais apenas no
âmbito da palavra isolada. E uma terceira fase, quando o ator começa a estudar as relações
entre o movimento verbal da fala e o movimento plástico do corpo.
Cada língua tem seu clichê, suas entonações cotidianas às
quais muitas vezes se adicionam os clichês teatrais: por isso, muitas vezes se
fala sobre a cena com estas entonações desfiguradas. Soma-se a este problema,
o fato de que recitamos sempre com entonação narrativa, porque o teatro
sempre conta histórias. Mas se o teatro se torna conceitual, também a
entonação deve ser conceitual e é aí que começam os problemas, uma vez que
estamos acostumados desde a infância a usar a entonação narrativa152.
(VASSÍLIEV, 1996, p. 198, tradução própria).
151 Meierhold denomina um dos seus exercícios na biomecânica de daktil, “esse termo ele tomou emprestado do verso poético (dáctilo), que corresponde ao ritmo métrico do dáctilo grego, uma longa e duas breves, também presente na métrica do daktil na biomecânica. A sílaba longa ou acentuada provoca a elevação do tronco e dos braços, seguido por duas batidas de palma precisas enquanto o ator centraliza sua energia. Cada sílaba possui uma estrutura própria e as duas últimas são ligeiramente menores do que a primeira, como dois quartos seguidos de uma meia nota”. (KUBIK, 2002, p. 37. Tradução de Danilo Pinho e Rafaelle Diógenes). 152 Ogni lingua ha dei cliché, delle intonazioni quotidiane a cui si aggiungono spesso dei clichè teatrali: così molto spesso parliamo sulla scena con queste intonazioni sfigurate. a questo problema si aggiunge il fatto che recitiamo sempre con un'intonazione narrativa, perché il teatro racconta sempre delle storie. Ma se il teatro diventa concettuale anche l'intonazione dovrà essere concettuale, ed è qui che cominciano i problemi, dato che siamo abituati fin dall'infanzia a usare un'intonazione narrativa.
124
O estudo da entonação é um assunto central para o ator, pois se trata
não somente de reproduzir mimeticamente falares caraterísticos mas, principalmente, de
elaborar artisticamente essa enunciação como uma espécie de partitura musical.
Tanto os atores russos quanto os ocidentais, que se utilizam de línguas
com acentuação tônica tendem a ter uma entonação monótona (VASSÍLIEV, 1997).
Afirma que esse é o principal problema do ator, porque no palco se escuta sempre a
mesma melodia, uma espécie de clichê de entonação, que se repete infinitamente e produz
“um discurso sem vida, sem musicalidade, sem variações, sem fraseado” (VASSILIEV,
1995). Esse efeito pode ser percebido nas encenações de textos em prosa, embora seja
muito evidente, principalmente, quando se ouve o ator enunciando no palco os clássicos
da dramaturgia em versos. Para AV, esse não é apenas um problema técnico, mas possui
um fundo ideológico, porque a tal monotonia da enunciação transmite um discurso
banalizante.
Os diretores são diferentes, as obras teatrais são diferentes,
os atores são diferentes, nos ensaios todos falam em diversidade; se discute,
se reflete, as pessoas falam muito doutamente, e muitas vezes essas discussões
estão nos programas. Lendo-os se pensa: ‘Que encenação mais inteligente!’
Porém, depois, eu escuto um discurso banal, porque a entonação porta uma
ideologia banal. [Isto ocorre] porque existe uma enorme contradição entre o
desejo de carregar a palavra de conteúdo e o conteúdo real que a palavra tem
pela entonação. (VASSILIEV, 2000, p.3)153
No vídeo Introduction a la technique verbale par Anatoli Vassiliev,
(2001) realizado pela Acamedie Experimentale des Theâtres, AV usou uma imagem para
fazer os atores entenderem a relação entre a palavra e a entonação no seu processo
pedagógico. A imagem é a de um copo cheio d’água, como sendo o que os atores
habitualmente fazem no teatro, preenchem a palavra (o copo) de intenções (a água). A
proposta de AV é que o ator esvazie a palavra de intenções, como se ele virasse o copo
com a boca para baixo, derramando toda a água. O ator deve aprender a usar a palavra
não como um recipiente, invertendo a sua função para não-recipiente, ou seja, o intérprete
deixa de inserir sua atitude pessoal no discurso. A ideologia a que essa prática de
153 Los directores son diferentes, las obras teatrales son diferentes, los actores son dife- rentes, en los ensayos sólo se tiene en la boca la palabra diversidad; se discute, se reflexiona, las gentes hablan muy doctamente, y a menudo estas discusiones figuran en los programas. Le- yéndolos se dice: "¡Qué puesta en escena más inteligente!" Pero después yo escucho un discurso banal, porque la entonación porta una ideología banal. [Esto ocurre] porque existe una enorme contradicción entre el deseo de llenar la palabra de contenido y el contenido real que la palabra tiene por la entonación».
125
preencher as palavras com intenções psicológicas se refere é a do humanismo, onde a
visão de mundo é construída através de uma perspectiva autocentrada na condição do
homem. O objetivo pedagógico deste treinamento da entonação é que a palavra deixe de
ser “turvada” pela ideologia e passe a ser “transparente” e assim poder, finalmente, portar
um sentido não banal, mas metafísico.
Vassiliev procura encontrar uma palavra, pura, no sentido
de desprovida de história, de passado. Uma palavra vetor do movimento
espiritual, uma palavra que não tem a função de transmitir os sentidos (LUPO,
2006, p. 212, tradução própria)154.
Da mesma forma que as leituras da Bíblia no laboratório-encenação de
José e seus irmãos seguiram o modelo de entonação da tradição religiosa ortodoxa, AV
encontrou no hexâmetro da Ilíada de Homero a tradição arcaica de enunciação vocal da
linguagem poética. A união entre a entonação imperativa da linguagem falada e a métrica
do hexâmetro dáctilo resultou numa entonação especial, que AV denomina de afirmativa.
Além da entonação afirmativa, AV estabelece outras duas para o treinamento dos atores:
a narrativa e a exclamativa. A entonação narrativa corresponde às formas enunciativa e
interrogativa da linguagem falada, enquanto que a exclamativa identifica as curvas de
entoação ascendente ou descendente das frases que terminam com ponto de interrogação
e de exclamação. A principal diferença entre a entonação afirmativa e as outras duas é
que na primeira a curva se dá no início da palavra ou da frase, enquanto nas segundas essa
curva acontece no final, como determinam os símbolos do ponto final, interrogação e
exclamação. AV afirma que no trabalho do ator a entonação afirmativa é a mais
apropriada para a enunciação de textos como a tragédia, a comédia clássica, a mitologia
e a religião, enquanto que as outras duas remetem ao drama e as récitas dramáticas
(VASSILIEV, 1999). Platão já havia percebido que cada métrica poética está ligada a um
tipo de conteúdo e estado emocional característico e propôs como fundamentais na
pedagogia a utilização dos ritmos graves155 que valorizem virtudes afirmativas. Nesse
mesmo sentido, para AV, cada uma das três entonações está ligada a diferentes estados
anímicos: estado normal, narrativa; estado alegre, exclamativa; estado diligente,
afirmativa. A expressão anímica da entonação afirmativa é agressiva e requer para tanto
154 Vassiliev cherche une parole retrouvée, purê, dans le sens de dépourvue d’histoire, de passé. Une parole vecteur du mouvement spirituel, une parole qui n’aurait que pour fonction de laisser passer le sens. 155 Sobre ritmos graves ver nota 18 deste capítulo.
126
um estado de excitação e nem todos os atores conseguem chegar a isto sem um
treinamento adequado.
Como o treinamento verbal com o hexâmetro homérico proposto por
AV é ao mesmo tempo estético e ético, também a poesia homérica não pode ser entendida
apenas como uma forma estética, mas ela deve mergulhar o ator nos fundamentos
culturais da humanidade, o ator deve encontrar o ethos dessa poesia. Jaeger salienta a
supremacia da poesia como forma educativa superior.
A poesia tem vantagem sobre qualquer ensino intelectual
e verdade racional, assim como sobre as meras experiências acidentais da vida
do indivíduo. É mais filosófica que a vida real (...), mas é, ao mesmo tempo,
pela concentração de sua realidade espiritual, mais vital que o conhecimento
filosófico. (JAEGER, 2013, p. 63).
Jaeger (2013) salienta que a importância de Homero como educador
não se limita a algumas passagens que aspirem a produzir um determinado efeito moral,
mas se baseia na própria essência do canto épico. A épica é por natureza um mundo ideal,
afirma Jaeger, e sua relação com o mito é a de utilizá-lo para afirmação dessa instância
mais elevada de vida. Essa idealidade pode ser observada nos detalhes mesmo do estilo e
da estrutura da epopeia. São exemplos os epítetos e o tom enobrecedor das descrições.
Diferentes de outras formas poéticas, a epopeia afirma seu aspecto de formação porque
trata da luta do homem contra o seu destino em prol da execução de um objetivo elevado.
Outro elemento importante é que o poeta Homero, através da
elaboração do percurso de Aquiles ao longo da Ilíada, transformou a epopeia de simples
narração de feitos memoráveis, em um “monumento imortal para o reconhecimento da
vida e da dor humanas” (JAEGER, 2013, p.78). Com isso, o poeta se alça ao status de
intérprete e criador da tradição.
Homero, no entanto, não é autor moderno que considera
tudo simplesmente no seu desenvolvimento interno, como experiência ou
fenômeno de uma consciência humana. No mundo em que vive, nada de
grande acontece sem a cooperação de uma força divina, e a mesma coisa
acontece na epopeia. (JAEGER, 2013, p. 79)
Para Jaeger, a epopeia conserva uma duplicidade característica: as
ações devem ser encaradas tanto pelo ponto de vista divino quanto pelo humano. Para o
estudioso, essa é a estrutura espiritual da epopeia e fica muito evidente na Ilíada, onde as
ações dos homens se enlaçam com as dos deuses.
127
O trabalho sobre os versos da Ilíada significa, para AV, modelar a
forma, sendo Homero, portanto, o par complementar de Platão na pedagogia metafísica
do ator.
Meu teatro, sua escola, sua metodologia – finalmente sua
estética - são fundados sobre dois textos da Grécia Antiga: Homero e Platão
(VASSILIEV, 199, p. 108, tradução própria)156.
3.2.3. Wushu e o trabalho sobre a energia
AV, durante o diálogo com os atores e diretores no curso Fabrica dei
Registri, descrê o seu interesse em desenvolver um treinamento para seus atores:
Eu durante muito tempo procurei o meu treinamento. No
teatro profissional soviético não havia a obrigação de se fazer o treinamento,
nisto diferenciava muito da Europa. Realmente, não se pensava que o ator
devesse vir pela manhã ao treinamento e, em seguida, retornar à tarde para o
ensaio; ainda hoje continua a ser difícil, mas está se tornando cada vez mais
uma metodologia introduzida no teatro profissional157. (VASSÍLIEV, 1997, p.
143, tradução própria).
Os atores realizavam treinamentos corporais de acordo com a
necessidade plástica do espetáculo que estivessem ensaiando, assim, por exemplo, em A
Filha Adulta de um Jovem os atores dançavam o ritmo jazz durante meia hora antes da
apresentação da peça. No processo de ensaio da peça Cerceau, os atores treinaram o
boogie-woogie durante três anos porque AV pretendia criar o quarto ato todo baseado na
movimentação desta dança. Ao final, o ato foi cortado, mas certa qualidade de
movimentação permaneceu nos atores, o que pode ser observado no primeiro e no terceiro
atos. Essa questão sobre o treinamento corporal do ator permanecia sem solução mesmo
depois da abertura do Teatro-Escola de Arte Dramática, ainda durante o ensaio de Esta
noite se representa de improviso, de 1990. O principal problema identificado por AV
(1997) era que os diferentes treinamentos corporais para os atores, em geral, davam ênfase
unicamente ao movimento físico como o elemento principal da técnica, não incluindo o
trabalho do intelecto e sobre a energia (VASSÍLIEV, 1997). Para AV, esses exercícios
156 Mon théâtre, son école, as méthodologie – finalement son esthétique -, sont fondés sur deux textes de la Grèce ancienne: Homere et Platon. 157 Io per tanto tempo ho cercato il mio training. Nel teatro professionale sovietico non esísteva l'obbligo di fare il training, in questo si differenziava molto dall'Europa. Non era proprio pensabile che il attore venisse alla mattina per training e tornasse poi pomeriggio per le prove; anche adesso continua ad essere difficile, ma sta divenendo sempre di più una metodologia introdotta nel teatro professionale.
128
físicos serviam para o espetáculo, mas para o desenvolvimento da pedagogia metafísica
do ator não era esse o caminho justo (VASSÍLIEV, 1997).
Assim como o treinamento verbal sobre a entonação afirmativa atua
sobre o estado anímico do ator, o corporal também o deve fazer, portanto, ambos possuem
o mesmo escopo. Para fundamentar o processo pedagógico do ator, o seu treinamento
corporal deveria ser algo realizado independente do ensaio e ainda conjugar o trabalho do
movimento físico com o intelectual e o energético. Durante o período de trabalho nos
laboratórios com estudos sobre Homero e Platão, AV definiu o treinamento corporal mais
adequado para a sua proposta pedagógica:
Começamos a nos ocupar da técnica chinesa da arte
marcial que se chama Wushu. As diferentes técnicas fazem parte de um
trabalho sobre a plástica, o intelecto e, o mais importante, o trabalho com a
energia158. (VASSÍLIEV, 1997, p. 144, tradução própria).
A arte marcial chinesa além de treinamento físico, abrange uma
formação do caráter do seu praticante, através da veiculação de princípios filosóficos em
conjunto com a prática corporal. Através dos exercícios o praticante está treinando
qualidades espirituais específicas.
Wushu é um termo chinês moderno usado para designar o conjunto das
artes marciais chinesas tradicionais, em seus diferentes estilos e modalidades, desde o
Tai-chi-chuan até o Kung-fu, entre outros. Os princípios filosóficos e religiosos do Wushu
são conhecidos principalmente através de suas duas maiores vertentes: a do Taoísmo e a
do Budismo. As artes marciais chinesas se dividem em duas grandes escolas, a interna
(Neijia) orientada pelos princípios filosóficos do Taoísmo e a externa (Waijia), onde se
observa os preceitos religiosos do Budismo. No Teatro-Escola de Arte Dramática, as
modalidades de Wushu praticadas pertencem à escola Neijia (interna), caracterizada pela
ênfase no cultivo e desenvolvimento do Qi159, que fundamenta, entre outras práticas, o
Tai Chi Chuan (Taijiquan), o Hsing-I Chuan (Xingyiquan), e o Pa Kua Chang
(Baguazhang)160. Quando AV se refere a estas artes marciais utiliza o termo Wushu.
158 abbiamo cominciato ad occuparci della tecnica cinese dell'arte marziale che si chama Wu-Shu. Le diverse tecniche fanno parte di un lavoro sulla plastica, dell'intelletto e, cosa più importante, del lavoro con l'energia. 159 “O Sopro (Qi) é o sopro da respiração e a energia que circula no interior, nos meridianos e em todo o corpo” (DESPEUX, 1981, p. 61) 160 No site do Teatro-Escola de Arte Dramática constam os nomes dos seguintes pedagogos de Wushu: I. Kotikov, K. Ageev (Baguazhang), I. F. Popov (Xingyiquan).
129
Na Fundação Anatóli Vassiliev, em Moscou, assisti aos registros em
vídeo do treino de Wushu feito pelos atores no Teatro-Escola, em 1995. O trabalho dura
quarenta minutos e os atores usam quimonos brancos e fazem movimentos do Wushu,
primeiramente com as mãos livres e depois usando bastões. Além dessas sequências
individuais, os atores também praticam lutas em duplas e posturas estáticas, ambas em
pé. Todo esse treinamento funciona, para o ator de AV, como uma forma de eliminação
dos aspectos cotidianos do corpo, para que ele passe a ser veículo de aspectos metafísicos.
Se o ator não passar por esses treinamentos, com práticas corporais e vocais, para limpar
a “cotidianidade” não será capaz de atuar em textos que estejam vinculados a uma
tradição diferente da realista e psicológica. Por isso, AV fala da ação de “polir o corpo”
como metáfora da purificação, para o que o ator precisa de cerca de um ano, apoiado na
disciplina e sem abandonar os treinos até encontrar a sua energia própria.
No treinamento com os atores russos formados na tradição ocidental
ortodoxa, esses princípios filosóficos e religiosos orientais são lidos através da ética
cristã. Assim, AV salienta que o trabalho com o Wushu também possui, para o ator russo,
o significado religioso de sacrificar o corpo cotidiano do intérprete, com suas reações
psicológicas, para promover a sua transfiguração, através do entendimento das artes
marciais como práticas de ascese. A ética religiosa orienta o trabalho prático dos atores -
muitos deles são fiéis praticantes da religião ortodoxa - também no sentido de promover
uma paulatina renúncia do eu, ou mudança da perspectiva centrada no sujeito, em função
da abertura para a possibilidade da manifestação da condição divina no ser, numa
perspectiva inversa, própria da ortodoxia.
A pesquisadora Stéphanie Lupo (2006) propõe o conceito de corpo-
estrutura para definir o tipo de metamorfose energética promovida pelo treinamento
corporal no Teatro-Escola de Arte Dramática. Segundo a autora, os atores não trabalham
sobre o corpo, mas, sobretudo, sobre uma zona entre a extremidade do corpo e o espaço,
onde vão experimentando diferentes pontos de equilíbrio, à medida que exploram
inúmeras linhas de movimentos por onde deslizam sem se prender. A prática do Tai-chi-
chuan161 treina o corpo dos atores, entre outras coisas, a não se fixar num único centro, o
que poderia fazê-lo perder o equilíbrio. Esses movimentos não são dirigidos ao interior
do corpo, mas buscam a harmonia e a ancoragem da consciência corporal nessa zona
161 Stéphanie Lupo não utiliza o termo Wushu para se referir ao treinamento de arte marcial chinesa no Teatro-Escola de Arte Dramática, mas Tai-chi-chuan.
130
invisível que o circunda162 (LUPO, 2006). No Tai-chi-chuan, afirma Lupo, o corpo é
estruturado desde a perspectiva externa do espaço, o que resulta numa corporeidade
esvaziada do peso dos músculos, ossos e órgãos internos.
O corpo torna-se, assim, uma estrutura cuja função é
simplesmente desaparecer no movimento de respiração. A respiração então
libera a estrutura interna e a projeta para além da superfície. O corpo se deixa
levar pela respiração, leve – e aqui temos a imagem da pipa (LUPO, 2006, p.
226, tradução própria)163.
Os movimentos do Tai-chi-chuan realizados no espaço em torno do
corpo determinam o seu centro em constante mudança de posição. Esse princípio é
encontrado na teoria da perspectiva inversa, onde não é o centro que define a estrutura,
mas a estabilidade dela é que permite revelar o ponto central. Quando a estrutura
determina o centro, o ator ganha flexibilidade e estabilidade, e não sofre os efeitos da
rigidez de um ponto de vista único, sempre abalado pelo conflito iminente com aspectos
externos. Outras qualidades do trabalho corporal com os movimentos do Tai-chi-chuan
que o ator adquire são a fluidez e a precisão, causando a sensação de um estado de
suspensão, abrindo possibilidade para que o ator explore uma grande riqueza de formas e
de sons (LUPO, 2006). As estruturas de movimento do Tai-chi-chuan vão se desdobrando
umas das outras e permitem ao ator metamorfoses constantes, porque não existe nesse
corpo um único centro fixo.
Os movimentos do Tai-chi-chuan também ajudam o ator a criar um
espaço circular em torno do corpo, o qual ele manipula com precisão. Essa circularidade
ao redor do corpo remete ao símbolo do Teatro-Escola de Arte dramática, que passou a
ser utilizado a partir da inauguração do novo prédio em 2001164: O Homem Vitruviano
de Leonardo da Vinci.
162 Tal abordagem é semelhante à da dança Butoh, onde o bailarino produz seus movimentos através da ampliação do espaço entre os membros do corpo e deste em relação ao ambiente ao redor. Essa qualidade é obtida, no caso do bailarino de Butoh, porque ele não pensa em fazer um movimento com o braço, por exemplo, mas em ampliar o espaço que existe entre o braço estendido ao longo do corpo e a lateral do tórax. Nesse mesmo sentido, a respiração tem também a função de criar espaço e, portanto gera internamente um movimento. (Tadashi Endo, Demonstração-palestra, ECUM, 2014, https://www.youtube.com/watch?v=ak7aWBymnmc) 163 Le corps se transforme ainsi en structure dont la fonction n'est plus que s'effacer dans le mouvement de la respiration. Le souffle libère alors la structure de l'intérieur et la projette au-delà de l'enveloppe. Le corps se laisse porter par son souffle, léger - nous retrouvons ici l'image du cerf-volant. 164 Atualmente o símbolo do Teatro-Escola de Arte Dramática é um anjo tocando uma trombeta.
131
(Figura 5 – O Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci)
Para AV, essa representação de Leonardo da Vinci possui uma
significação simbólica, que ele identifica com o processo pedagógico do ator como uma
metáfora de desenvolvimento de uma criança. O ponto central gera duas circunferências,
uma visível e a outra oculta, que identificam dois aspectos diferentes. O primeiro aspecto
se refere à criança no nascimento, quando sua vida interior começa a se desenvolver e,
neste caso, o círculo é o corpo que o rodeia. No segundo aspecto, o ponto é o centro de
duas circunferências, uma interior e outra exterior.
132
(Figura 6 – Desenho de Anatóli Vassíliev: justaposição do Homem Vitruviano e a diagonal do quadrado de oito pés)
A partir desta última representação, AV desenvolve o conceito da
triplicidade do ser humano:
Triplicidade: corpo, mente, alma. A alma - a essência
eterna - é o centro. O círculo interno, o intelecto, a capacidade de pensar. O
círculo exterior, o corpo físico do homem165. (VASSILIEV, 1999, p. 210)
O corpo físico é, nessa representação, percebido como uma
continuidade circular, nunca fragmentado, o que indica o princípio filosófico da unidade
corporal para além de seus aspectos físicos, englobando a mente e a alma. A pesquisadora
Catherine Despeux (1981) afirma que as representações gráficas do Tai-chi-chuan
possuem uma mesma concepção dominante, a do círculo, e que este “sugere uma unidade
perfeita, sem começo nem fim, fechada sobre si mesma”.
A forma circular ou espiralada das diferentes
representações do Taiji, que examinamos, volta a encontrar-se em toda a
prática do Taiji quan. Dizem os mestres, não raro, que os movimentos têm por
base o círculo e o Yin-Yang por utilização; em outras palavras, todo
movimento, alternância do Yin e do Yang, passa a ser um círculo. (...) O ideal
não é obter a forma do círculo perfeito, mas sim que o pensamento criador que
preside ao movimento, a imagem mental (yi166), seja a do círculo. (...) A ideia
do círculo está ligada à da continuidade. (DESPEUX, 1981, p. 52-53).
3.2.4. A entonação afirmativa e a formação musical e gímnica
O treinamento da entonação afirmativa no Teatro-Escola de Arte
Dramática é feito exclusivamente com os versos hexâmetros da Ilíada de Homero. Os
atores começam treinando a pronúncia de sílabas, depois palavras, versos inteiros do texto
e finalmente dísticos, primeiro individualmente e depois em grupo. Todas as vocalizações
são feitas nas três entonações: narrativa, exclamativa e afirmativa, com o objetivo de o
ator identificar e perceber a diferença entre a afirmativa e as outras duas e ser capaz de
utilizá-la independente das outras. Numa conferência sobre o treinamento verbal, que AV
realizou na Espanha em 1998, transcrito por José Gabriel L. Antuñano, com o título de
165 Triplicité: corps, pensée, âme. L'âme - l'essence éternelle - est le centre. Le cercle intérieur, l'intellect, la faculté de penser. Le cercle extérieur, le corps physique de l'homme. 166 “Traduzimos o semantema yi por ‘pensamento criador’ ou ‘imagem mental’. Não se trata, na verdade, de pensamento discursivo, mas de intenção, de emissão criadora do espírito”. (Nota da autora Catherine Despeux, 1981, p.52).
133
Apuntes en torno a la metodologia de Vassíliev. El teatro del juego y la palavra, o diretor
afirma que para alcançar uma entonação afirmativa são necessários três requisitos:
colocar os acentos no lugar adequado, pilotar a palavra e dizer com fluidez.
Os acentos referem-se às diversas formas que o ator pode utilizar para
destacar uma palavra dentro da frase e através deles optar por produzir um determinado
sentido ou outro. Esse assunto já havia sido explorado por Stanislávski, que dedicou um
capítulo sobre o tema intitulando-o “Acentuação: a palavra expressiva”.
A acentuação é um dedo que aponta. Elege a palavra
fundamental de uma frase ou oração. Na palavra assim sublinhada,
encontraremos a alma. A essência interior, o ponto culminante do subtexto.
(STANISLÁVSKI, 2001, p.207)
Na proposta de Stanislávski, o acento se vincula tanto a lógica da fala
quanto a expressividade individual do ator, já o acento na entonação afirmativa, segue um
padrão ditado pelo hexâmetro, ou seja, está determinado pela tradição, e deve sempre ser
colocado no início de cada oração. As questões métricas e rítmicas dos versos quase
sempre alteram a ordem gramatical da frase (sujeito, verbo, predicado), por isso é
necessário determinar palavras-chave que determinam o sentido metafísico da
enunciação, pois estas nem sempre coincidem com o começo do verso. Em geral, o
predicado da oração gramatical, não se presta como suporte metafísico, pois quando é
acentuado, torna-se frequentemente narrativo ou exclamativo. Esta técnica exige que o
ator faça um estudo aprofundado da versificação, do ritmo, dos acentos, da musicalidade
e da acentuação das palavras-chave da Ilíada. AV afirma que a mudança da acentuação
da palavra-chave muda o sentido ideológico da frase e do texto. Para exemplificar isto,
cita a frase do Novo Testamento quando Pilatos pergunta: “Que é a verdade?” Num
contexto narrativo, produzido por uma entonação narrativa, a palavra “verdade” parecerá
a mais importante e naturalmente nela cairá o acento, mas se colocamos o acento no
começo da frase, usando a entonação afirmativa, o “que” adquire uma importância
superior à “verdade” em termos de acentuação. Para AV, o sentido que a entonação
afirmativa indica encaminha a questão para um âmbito conceitual, enquanto que a
narrativo, a uma outra, mais concreta. O mesmo acontece com a resposta: “Tu o disseste”.
Que e Tu são os condutores do sentido afirmativo da frase.
O lugar do acento tem um significado ideológico. Se o
acento for colocado no fim, nós lemos o assunto, a história. Se ele é colocado
no início, nós lemos como o assunto se desenvolve: isso significa que nós
134
sabemos o que vai acontecer a seguir. Você, você conta a história. Mas o
objetivo não é o de contar a história. O acento no começo permite mostrar a
estrutura subjacente do texto: onde começa a poesia... O acento, de qualquer
maneira, permite dizer a história, mas sentindo-a167. (VASSÍLIEV, 1992, p.
10, tradução própria).
AV afirma que não é necessário sempre colocar o acento
mecanicamente no começo da frase, porque os autores de textos em verso costumam
modificar a posição dos elementos das frases em função do seu ordenamento dentro da
métrica. Por isso, o ator precisa mentalmente manter o sentido gramatical do texto, sem
as desordens sintáticas introduzidas pelo poeta através das figuras retóricas e acentuar a
palavra que marca o início do verso, em qualquer posição que ela se encontre na sua
arquitetura. A preocupação com a história não deve estar em primeiro plano na mente do
ator, mas deve ser estudada previamente e permanecer como fundo sobre o qual se
desenvolve a enunciação da cadência musical das palavras. Nesse sentido de
conhecimento prévio da história, o ator também carrega as palavras de imagens. Esse é
um aspecto da técnica da entonação afirmativa que AV manteve da pedagógica
Stanislávski-Knebel, como uma forma de fazer a palavra influenciar a ação psíquica do
ator. A palavra, mais do que simples som com um significado, é um suporte que pode e
deve encerrar uma qualidade. Essa qualidade é dada pelo ator através de imagens mentais
associadas. A palavra pronunciada pelo ator, então, deve estar conotada e cheia de
sentido, de modo que o ouvinte capte esse significado sem ajuda de outros meios
expressivos como gestos, inflexão psicológica ou outros meios de comunicação quaisquer
além das palavras em si. Somente a partir do momento em que a palavra adquire
qualidade, ela se torna ação. Assim, quando o ator pronuncia a palavra cavalo, por
exemplo, deve transmitir através da conotação se o cavalo está quieto ou em movimento,
ou de que cor é seu pelo. Também é necessário encontrar no texto as palavras conceituais,
através das quais se forma o sentido e carregá-las de significado. Embora esse treinamento
esteja voltado para o trabalho do ator com textos em versos, ele também pode ser usado
em outros textos que tenham uma estrutura lúdica, como por exemplo, os de Dostoiévski.
No treinamento de pilotar a palavra, o ator deve pronunciá-la nas três
entonações (afirmativa, narrativa e exclamativa) até ser capaz de produzir corretamente
167 La place de l'accent a une signification idéologique. Si l'accent est mis à la fin, on lit le sujet, l'histoire. S'il est mis au début, on lit comment le sujet se déroule: cela signifie qu'on sait ce qui va passer ensuite. Vous, vous racontez l'histoire. mais le but n'est pas de raconter l'histoire. L'accent au début permet de montrer la structure sous-jacent du texte: c'est là que commence la poésie... Il permet de dire quand même l'histoire mais en la sentant.
135
cada uma delas separadamente, primeiro sentado e depois em pé se movimentando. O
exercício é fundamentalmente para o treinamento do aparelho vocal, e o ator permanece
sentado durante uma hora e meia treinando uma sequência de enunciações que começa
com sílabas, depois palavras, seguidas por versos e terminando com dísticos da Ilíada.
Na longa cadência de versos, a enunciação não pode cair no final e tem que manter a
mesma energia ao longo da frase, para isso, o ator marca as palavras com carga tonal
através da entonação afirmativa.
O terceiro requisito é dizer com fluidez as palavras, causando a
sensação de uma cantilena ininterrupta, dessa maneira as ideias também serão
transmitidas sem quebras de sentido. O pensamento deve fluir como um rio e para isso é
necessário que o ator reduza ao mínimo as pausas entre as emissões das palavras, porque
elas interrompem o fluir do verso e as palavras se esvaziam de conteúdo. O espectador
não pode perceber que o ator realiza uma pausa, por menor que seja, por estar buscando
o acento adequado, ou porque as cordas vocais impedem o fluir contínuo, por exemplo.
A técnica empregada é a mesma do cantor que controla sua emissão de ar através do
diafragma. O intuito final dessa técnica verbal de entonação é capacitar o ator a alcançar
o objetivo de esvaziar a palavra de seu significado cotidiano, prático, prosaico e preenchê-
la com o sentido abstrato, espiritual e metafísico.
A princípio, o laboratório dedicado ao estudo do hexâmetro na Ilíada
era diferente daquele onde os atores praticavam os exercícios de arte marcial chinesa,
entretanto, com o passar do tempo essas duas pesquisas foram se tornando uma só,
conforme o que pude observar no treinamento registrado em dois vídeos gravados nos
dias 9 e 10 de outubro de 1995 no Teatro-Escola de Arte Dramática168.
O treinamento da técnica vocal na Escola de Arte Dramática se divide
em duas partes Na primeira, os atores, sentados em cadeiras, fazem o treinamento da
entonação afirmativa com os hexâmetros da Ilíada de Homero. Na segunda parte, cada
ator repassa individualmente e um de cada vez, a sua sequência particular de movimentos
do Wushu, primeiro em silêncio e depois pronunciando um trecho da Ilíada, cada ator
utilizando um texto diferente. Em seguida, são realizadas as sequências coletivas, quando
todos os atores repetem o mesmo movimento, pronunciando um texto comum.
Outra parte importante do trabalho é sobre as relações que
se podem estabelecer entre a palavra e o plástico, ou seja, entre o movimento
verbal e o movimento plástico. Este último, o estudamos separadamente
168 Tive acesso a esses vídeos na Fundação Anatóli Vassiliev durante o Estágio Doutoral no Exterior Capes.
136
usando uma antiga disciplina chinesa, Wushu (...). Através desta disciplina
tentamos combinar os movimentos plásticos com os verbais169. (VASSÍLIEV,
1996, p. 197, tradução própria).
O treinamento em conjunto de sequências de artes marciais e técnica
verbal parece apontar para a associação óbvia da emissão vocal da entonação afirmativa
com os gritos característicos dos lutadores de Wushu. No entanto, ao se observar os
vídeos, percebe-se claramente que os atores não fazem coincidir a enunciação vocal com
a explosão final dos golpes e socos dos movimentos do Wushu. O objetivo desse
treinamento em conjunto das duas linhas de ação é possibilitar que a linha verbal flua
ininterruptamente sem ser perturbada pela sequência de movimentos físicos. Por
exemplo, num dos exercícios, os atores seguram um bastão verticalmente em frente ao
corpo, e golpeando como se fosse atingir algo no alto, só emitem a palavra depois de
realizado o movimento e não em sincronia com ele.
A elaboração de um treinamento verbal baseado na associação da
musicalidade da entonação afirmativa com as técnicas corporais do Wushu pretende uma
formação integral do ator, nos seus aspectos vocais, corporais e psíquicos. Essa proposta
pedagógica, no entanto, vai além da formação técnica do ator, para atingir os aspectos
éticos de seu caráter. Como salientado anteriormente no trabalho de Volochinov e Bakhtin
(1981), na entonação se expressa os conteúdos sociais e portanto éticos da linguagem.
A entonação é a forma sonora da expressão axiológica, ou
seja, a forma de representação do elemento ético no enunciado concreto.
(SOUZA, 2002, p. 129)
Ao treinar o ator na emissão de uma entonação não cotidiana, a
pedagogia de AV promove uma transformação ética do artista, pois interrompe a
reiteração de determinados conteúdos sociais no aparelho psíquico do ator. De maneira
semelhante, o treinamento físico com o Wushu também promove uma alteração do
comportamento cotidiano, interrompendo o fluxo de hábitos corporais adquiridos na
interação social. A articulação desses dois aspectos, o vocal e o físico, intensifica esse
efeito no treinamento verbal e ao mesmo tempo possibilita ao ator a liberdade criativa,
pois ao dominar esses três aspectos da ação (verbal, física e psíquica), ele também adquire
conhecimento do ofício artístico e a capacidade de gerenciar todos os seus aspectos.
169 Un'altra parte importante del lavoro riguarda i rapporti che si possono instaurare tra parola e la plastica, cioè tra il movimento verbale e il movimento plastico. Quest'ultimo lo studiamo separatamente utilizzando un'antica disciplina cinese, il wushu (...). Attraverso questa disciplina cerchiamo di unire i movimenti plastici con quelli verbali.
137
Para Platão, um dos princípios pedagógicos fundamentais de uma
Paideia é a associação da formação poético-musical com os aspectos físicos do ser
humano, um deve ser complementar ao outro e isto pode-se observar na proposta do
treinamento verbal de AV. No entanto, essa proposta pedagógica platônica passa primeiro
por uma crítica da formação tradicional grega nesses dois âmbitos, no sentido de destacar
o novo sentido que essas atividades devem ter na formação metafísica do ser humano. A
formação musical era, na Grécia Antiga, entendida de maneira ampla e englobava além
da música, também a poesia e a própria palavra falada (JAEGER, 2013), além de possuir
como tônica dominante a harmonia e o ritmo, da qual derivam o caráter ético dessas
atividades.
É a música que continua a ser o alimento verdadeiramente
cultural. Também neste ponto o pensamento platônico não está
exclusivamente enformado pela tradição. Platão coloca-se conscientemente o
problema de se é ou não legítimo o primado que a tradição da Paideia grega
reconhece à música sobre as outras artes. E chega à conclusão de que está
perfeitamente justificada, uma vez que são o ritmo e a harmonia os que mais
fundo penetram no íntimo da alma e os que dela se apoderam com mais força,
infundindo-lhe e comunicando-lhe uma atitude nobre. Mas não é só pelo seu
dinamismo anímico que ele julga a música superior às outras artes; é também
porque educa o Homem a captar com precisão incomparável o que há de exato
ou defeituoso numa obra bela e na sua execução. (JAEGER, 2013, p. 800)
Da mesma forma que a formação musical tinha por objetivo a formação
da alma do homem, também a ginástica, uma atividade tradicional da educação na Grécia
Antiga, passa a ser entendida por Platão não somente como uma atividade voltada para
desenvolver a força física e a coragem do guerreiro.
Não é certo, portanto, como muitos acreditam e como o
próprio Platão parecia a princípio entender, que a ginástica tenha a missão de
educar exclusivamente o corpo, e a música, formar exclusivamente a alma. É
a alma que ambos educam primordialmente. (JAEGER, 2013, p. 806)
As duas atividades visam, na Paideia platônica, a formação ética do ser
humano, o mesmo objetivo pode ser observado na proposta pedagógica metafisica de AV,
no sentido de atuar nos aspectos verbais, físicas e psíquicos do ator. No étude clássico, o
fazer artístico dos atores se apoiava totalmente na sua condição psíquica, instância que
comandava os outros dois aspectos, verbal e plástico, ou seja, esses dois sofriam a
influência do outro, que lhes moldava a expressão. Ao propor que o verbal assuma esse
papel através da aquisição de uma entonação afirmativa, calcada na tradição arcaica do
hexâmetro e na cantilena ortodoxa, a pedagogia de AV rompe a condição do ator de ser
138
natural (físico e psíquico), para que se revele a condição oculta do ator, seu ser
sobrenatural (metafísico e verbal).
Nesse sentido, observa-se a importância na pedagogia metafísica de AV
da associação do treinamento verbal com o estudo dialético dos diálogos platônicos, no
sentido de estabelecer parâmetros não exclusivamente técnicos para a formação do artista
ator, propiciando, em conjunto com a vivência dos aspectos metafísicos, a capacidade de
desenvolver um pensamento crítico sobre o seu fazer criativo. Essa visão crítica
possibilita que o ator desvincule o seu fazer artístico dos cânones normativos da imitação
como princípio estético, como expressado no étude clássico, por exemplo. São alguns
elementos que formam o éthos do ator na proposta pedagógica de AV: a abordagem
irônica do papel, a negação do princípio trágico na arte, que afirma que a ação humana é
determinada pelos deuses, o que transposto para o fazer artístico se assemelha a condição
passiva do ator frente à atividade teatral, seja em relação ao diretor ou ao dramaturgo; o
entendimento da atividade artística como um princípio ativo, propositivo, não niilista,
afirmativo de um sentido metafísico da realidade.
3.3. Paideia e metamorphosis do ator
Os fundamentos da pedagogia metafísica de AV, tanto no seu aspecto
dialético quanto verbal, partem da tradição cultural ortodoxa russa, notadamente dos
cantos da tradição religiosa eslava, de origem Bizantina, como também do hexâmetro
homérico e dos diálogos platônicos da Grécia Antiga. A cultura ortodoxa, que se
desenvolveu entre os séculos XI e XXI, é herdeira da tradição cultural greco-romana e
cristã primitiva. Werner Jaeger (1985) observa que a proposta da formação que se
desenvolveu na Grécia Antiga foi, a partir da influência da cultura judaico-cristã,
reelaborada, resultando no que ele denomina de transferência do princípio de morphosis
(formação) para o de metamorphosis (metaformação) progressiva da alma. A
metamorfose final é a capacidade de contemplar a beleza suprema, e este princípio
estético se perpetua no interior da cultura ortodoxa.
Da era bizantina, o legado concerne ao fato de entender
tudo o que está relacionado com a esfera da espiritualidade principalmente de
maneira estética - como um caminho que conduz o homem até Deus, e
139
possibilitando assim que ele acesse o prazer espiritual e a alegria170.
(BYCHKOV, 1998, p. 195, tradução própria)
Os princípios da estética religiosa russa servem de modelo para a formação do
ator na pedagogia teatral de AV, e são eles: a beleza como uma experiência da verdade e
do essencial, uma sensibilidade particular para a beleza da atividade artística e a
associação da luz à beleza (BYCHKOV, 1998). Segundo Arlete Cavaliere, a beleza é
considerada pelos antigos eslavos orientais o critério de verdade de um pensamento:
Apenas a beleza permitiria afirmar a verdade do
cristianismo. A pintura de ícones, a arquitetura, a música e, mais tarde, a
poesia se associariam indissoluvelmente ao pensamento especulativo que se
exprimiria por intermédio das cores, das formas arquitetônicas, da música, da
arte verbal. Há, sem duvida, na lenda uma visão de mundo, onde o vínculo
entre a estética e o sagrado parece indissolúvel e que se exprime de forma
evidente na arte dos ícones: a beleza não é simplesmente bela, a beleza é um
critério de verdade, e é o critério de verdade mais profundo e mais
fundamental. (CAVALIERE, site:
http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/iconografia/arte_e_cultura_na_russia_
antiga.html, sem data, acessado em 07/03/2015)
Neste sentido, o ícone ortodoxo passa a ser o modelo estético do ator
na pedagogia metafisica de AV, no sentido que ele é a representação visível da beleza
invisível. Os fundamentos filosóficos dessa concepção estético-religiosa dos ícones
também são desenvolvidos pelo padre ortodoxo Pável Floriênski171, que a pesquisadora
Stéphanie Lupo observa como uma das principais influências sobre o pensamento
artístico de AV:
Particularmente interessado em arte e na estética, o Padre
Pavel Floriênski é sem dúvida nenhuma, o pensador daquela época172 que mais
170 De l'ère byzantine, l'heritage concerne le fait d'appréhender tout ce qui se rattache à la sphere de la spiritualité avant tout de manière esthétique - comme un chemin conduisant l'homme à Dieu, et lui faisant accéder au plaisir spirituel et à la joie. 171 Nascido em Ievlakh, no Azerbaijão, em 1882, Pável Aleksándrovitch Floriênski, padre ortodoxo, filósofo, matemático, historiador e teórico da arte, foi um dos mais influentes pensadores da denominada Idade de Prata russa. O legado de Floriênski constitui-se de tratados científicos na área da física e matemática, ensaios filosóficos, teológicos e sobre a arte e, ainda, vasta correspondência com escritores, artistas, filósofos e cientistas de seu tempo. Não obstante sua intensa participação em diversas frentes na Rússia pós-revolucionária, em 1937, acusado de atividades subversivas, foi condenado à morte e executado pelo regime stalinista. Entre os seus principais escritos estão A perspectiva inversa, A Iconostase e A liturgia como síntese das artes. 172 A pesquisadora Stéphanie Lupo observa que o projeto artístico do diretor russo Anatoli Vassiliev pode ser entendido como uma continuação ou retomada da “Era de Prata” da literatura russa, movimento artístico marcado, entre outros, pelo simbolismo e pela paixão religiosa, que ocorreu entre o final do
140
influência teve sobre Vassíliev. A perspectiva invertida, Iconostasis e A
Liturgia como uma síntese das artes, textos sobre a arte da representação de
ícones da Igreja Ortodoxa, são as chaves para capturar as bases teóricas do
método de Vassíliev e as diferenças entre as estruturas do jogo lúdico e as
estruturas psicológicas. (LUP0, 2006, p. 120, tradução própria) 173
O pensamento de Floriênski deve ser contextualizado no renascimento
espiritual e cultural que aconteceu na Rússia entre o final do século XIX e início do XX.
Floriênki participou de todos os debates filosóficos e teológicos de sua época,
especialmente os que giravam em torno do dogmatismo e da ortodoxia, fortemente
questionados pelas propostas174 do escritor Liev Tolstoi (1828-1910). Argumentando no
terreno filosófico ao invés do teológico ou espiritual, Floriênski (2001, 2012) refletiu
sobre a função da “palavra” e o do “ícone” como símbolos que relacionam o visível com
o invisível, a realidade ultraterrena com a terrena, Deus com o mundo. Para isso, elaborou
uma “filosofia da linguagem” que se encaminha para a definição da “palavra profética”,
ou seja, da palavra que transcende e se desvincula definitivamente do simples falar
cotidiano. Como também, de uma “concepção estética” elaborada na reflexão das
relações da pintura com a perspectiva científica e a sua inversão na tradição ortodoxa,
elaborando, assim, uma complexa teoria sobre os “ícones” e sobre o olhar de quem os
observa. Sua compreensão da estética religiosa ortodoxa aprofunda o entendimento da
função da beleza como a linguagem da verdade (Floriênski, 1997).
O projeto pedagógico de AV, que parte de uma tradição teatral
fundamentada no realismo psicológico, dos espetáculos Vassa Geleznova e A filha mais
Velha, atravessando o período marcado pelas chamadas estruturas lúdicas, com os
século XIX e inicio da revolução Bolchevique em 1917. Essa busca pela espiritualidade pode ser observada, principalmente, na obra dos poetas simbolistas Valeri Brioussov (1873–1924), Andriéi Biély (1880–1934), Aleksandr Blok (1880–1921), ou Viatcheslav Ivánov (1866 – 1949). O simbolismo russo é fortemente impregnado pelo misticismo do poeta Vladimir Soloviev (1853–1900), e pela filosofia religiosa de Sergéi Boulgakov (1871 – 1944), Nicolas Berdiaev (1874 - 1948) e Pavel Floriênski (1882 - 1937) entre outros. Sendo este último o que mais influenciou o pensamento artístico de Vassiliev. 173 Particulière intéressé par l’art et l’esthétique, le Père Paul Florensky est san aucun doute le plus influente des penseurs de cette époque sur Vassiliev. “La perspective inversée”, “L’Iconostase” et “La liturgie comme synthèse des arts”, des textes sur l’art de la represéntation des ícones dans l’église orthodoxe, sont em effect des clés pour saisir les fondements theóriques de la méthode de Vassiliev et la diference entre strutures de jeu ludique et strutures psychologiques. 174 O Tolstoísmo é uma corrente ideológica dos discípulos do escritor e filósofo russo Liev Tolstoi, que propagava as idéias de não-violência e de amor ao ser humano, da superação da alienação, do auto-aperfeiçoamento moral da personalidade através de sua união com Deus sem a mediação da Igreja oficial. De acordo com Tolstoi, o Estado, a propriedade privada e a igreja formal dificultam a realização deste ideal. Os tolstoianos, que criaram suas seitas em vários países, idealizam a vida rural, o trabalho camponês e a comunidade agrícola. Falam contra a desigualdade social e a opressão, e são a favor da fraternidade de todos os seres humanos.
141
laboratórios sobre os diálogos platônicos, chega, finalmente, na fase centrada na palavra,
do ciclo Puchkin e produções como Medéia e Ilíada. Essa trajetória se dá, não através de
uma negação da tradição, mas ao contrário, através de uma reelaboração de seus
pressupostos fundamentais e de seus consequentes desdobramentos. As ideias de
Floriênski vão acompanhar o pensamento estético de AV ao longo de todas essas fases,
desde a reelaboração da noção de espaço-tempo no drama psicológico, até o trabalho com
a palavra ritual da fase final.
3.3.1. Ícone e perspectiva inversa
No ensaio A perspectiva inversa (2012)175, Floriênski analisa a
perspectiva linear ou científica da pintura ocidental, como uma expressão da filosofia
humanista do renascimento, e a perspectiva inversa dos ícones como uma forma de
expressão de um pensamento religioso oriental. Na perspectiva linear, o ponto de fuga se
situa em profundidade dentro do quadro (figura 1), enquanto que na perspectiva inversa
o ponto de fuga se situa à frente, fora do quadro (figura 2).
175 Floriênski redigiu A perspectiva inversa originalmente como um relatório a ser apresentado à comissão para a conservação dos Monumentos e Antiguidades do Monastério da Santa Trindade de São Sérgio, em 1919, ano de grande efervescência e de tremendos contrastes sociais. Com o regime stalinista, o nome de muitos autores e artistas foram literalmente apagados da história oficial russa. A primeira publicação de A perspectiva inversa na Rússia se daria apenas em 1967, graças aos esforços dos semioticistas da Escola de Tartu-Moscou, reunidos em torno de Iuri Lotman (1922-1983). (JALLAGEAS, 2012) O geólogo Pável Vassílievitch, neto de Floriênski, declarou o seguinte, em 2006: A primeira grande publicação de Floriênski após 35 anos de silêncio foi A perspectiva inversa. Eu me lembro muito bem como falavam sobre isso, discretamente, A. A. Dórogov, V. V. Ivánov e B. A. Uspiênski – que a publicaram com um prefácio bastante competente em 1967 na cidade de Tartu – e também como eles ficaram orgulhosos com seu feito, que naquela época podia ser comparado a um ato heroico. (Vassílievitch, apud JALLAGEAS, 2012, p. 10) Apesar das restrições à publicação da obra de Floriênski, suas ideias vão continuar influenciando importantes artistas russos, principalmente, a partir da década de 60, entre eles, o diretor de cinema Andriêi Tarkóvski, que rodou um longa-metragem sobre a vida de Rublióv, considerado o mais importante iconólogo medieval russo, além de tratar teoricamente das ideias do ensaio A perspectiva Inversa no seu livro Esculpir o tempo (1990).
142
(Figura 7 – a perspectiva direta) (Figura 8 – a perspectiva invertida)
AV faz uma analogia entre a perspectiva linear ocidental e a estrutura
psicológica e entre a perspectiva invertida e a estrutura lúdica. Na estrutura psicológica,
o ator é parte da situação onde atua, da mesma forma como na perspectiva linear, onde o
ponto de fuga faz parte do quadro, enquanto que na estrutura lúdica, o objeto do jogo está
localizado fora dele, no tema ou assunto do texto, como na perspectiva inversa. Em termos
práticos, na estrutura psicológica o ator busca em si, na sua memória, nos seus
sentimentos pessoais o material para dar “vida” ao texto literário. Na estrutura lúdica o
ator busca no texto, nos conteúdos, nas suas ideias o material para dar “vida” a si mesmo
em cena. Floriênski aponta a existência nos ícones dos chamados “sistemas de linhas
potenciais”. Essas linhas tensionam forças não visíveis no espaço (JALLEGEAS, 2007),
ou seja, elas não estão relacionadas com a representação do espaço, mas remetem ao plano
metafísico. Entre essas linhas, Floriênski destaca as chamadas rasdelkas, que não
estabelecem correspondência com nenhum objeto fisicamente visível, ou seja, com
nenhum sistema de linhas.
As linhas de rasdelka revelam, com mais força que suas
linhas visíveis, o esquema metafísico do objeto em questão, sua dinâmica. No
entanto, por si só são completamente invisíveis e ao traçar-se sobre o ícone,
estabelecem, de acordo com a ideia do pintor, um conjunto de objetivos que
se apresentam ao olho como aquelas linhas que este deveria seguir em sua
contemplação. Essas linhas oferecem à consciência um esquema para a
reconstrução do objeto contemplado. (FLORIENSKI, 2005, p. 28)
Essas “linhas potenciais” representam a progressiva metamorfose
produzida pelo processo pedagógico, partindo do mundo sensível até o mundo das ideias
abstratas e divinas. Ou, para usar um mito criado por Platão, o percurso da alma do mundo
das sombras da caverna para o alto em direção à luz do sol.
143
Pode-se perceber, da mesma maneira, na entonação afirmativa a
aplicação desse conceito da perspectiva invertida, ao treinar o ator para colocar o acento
no início da frase e não no seu final. Também no treinamento com o Wushu, existe uma
relação com esta perspectiva, pois pretende trabalhar a dimensão espiritual e não apenas
a física. “O ator para Vassíliev deve ser no teatro, o que o ícone é na pintura” (LUPO,
2006, p. 229). O círculo que o ator traça em torno de seu corpo com os movimentos do
Wushu lembram aqueles em torno da cabeça das imagens representadas nos ícones. Para
alcançar essa dimensão, o ator necessita de um treinamento que não é apenas físico, mas
deve se concentrar na prática do que AV denomina de “gesto espiritual”. Para AV,
existem gestos que se situam no espaço real, ou espaço profano, como os de uma
bailarina, por exemplo, e os gestos que se situam num meta-espaço, como os do Xamã.
Se você e eu estamos construindo nossas ações e gestos no
espaço cotidiano, banal, não podemos esperar ser religados com estes gestos -
e com estas ações - a outro espaço – a um espaço sagrado. É um engano.
Temos de recorrer aos gestos antigos176.(VASSÍLIEV, 1999, p. 90, tradução
própria)
Como exemplos desses gestos antigos, AV cita a ritualização da Divina
Liturgia Ortodoxa e comenta o seu aspecto ritual:
O que está implícito no ritual? A precisão absoluta da
presença física. No espaço macrocósmico, um gesto físico cósmico de
precisão milimétrica! (...) É quando este gesto físico de precisão absoluta é
como "transplantado" para a vida de Deus, que o homem se comunica com
Sua Imensidão. Tal é o ascetismo dos monges chineses Shaolin, dos monges
gregos no Monte Athos. Todos os dias eles se exercitam no rigor do antigo
canto bizantino. Entre eles o gesto físico do verbo está no som177.
(VASSÍLIEV, 1999, p. 84, tradução própria)
3.3.2. A estrutura tricotômica da palavra
176 Si vous et moi nous construisons nos actions et nos gestes dans un espace quotidien, banal, nous ne pouvons pas espérer être reliés par ces gestes - et ces actions - à un autre espace - un espace sacral. C'est un leurre. Nous devons recourir aux gestes antiques. 177 Que suppose le rituel? La précision absolue de la présence physique. Dans l'espace macrocosmique, un geste physique précis au millimètre cosmique près! (...) C'est quand ce geste physique d'une précision absolue est comme "greffé" dans la vie de Dieu, que l'homme communie avec Son Immensité. Telle est l'ascèse des moines chinois à Shaolin, des moines grecs sur le mont Athos. Chaque jour ils s'exercent à la rigueur du chant byzantin ancien. Chez eux le geste physique du verbe agit dans le son.
144
Particularmente interessante para o entendimento da pedagogia de AV
são os ensaios de Floriênski sobre a linguagem, todos publicados na revista moscovita
Feniks, a partir de 1922: Ciência como uma descrição simbólica, A dialética, As
antinomias da linguagem, O Termo, A estrutura da palavra, A natureza mágica da
palavra, Veneração do nome como um pressuposto filosófico, Em nome de Deus (ZAK,
2003). Na sua obra Os Limites da Epistemologia (1996), Pavel Floriênski descreve o
conhecimento como um ato que ocorre na síntese entre a visão objetiva e subjetiva do
mundo. A diferença dos pontos de vista sobre o mundo, um subjetivo, dirigido ao
individuo em si mesmo e o outro objetivo, voltado para a relação com os outros,
encontram a sua síntese na, por ele denominado, “terceira via”, que romperia o problema
da dualidade do mundo.
Na terminologia antiga esses dois lados são chamados de
substância ou essência e atividade ou energia. Esta estrutura bipolar de toda a
realidade existente, é a condição ontológica que torna possível e, de fato,
requer como o mais adequado, o conhecimento de acordo com o modelo da
"terceira via". Porque se, de um lado, os seres vivos são irredutíveis um ao
outro por causa de sua identidade única, por outro eles podem chegar a uma
verdadeira unidade somente através de suas energias. Uma tal unidade -
explica Floriênski – “pode ser pensada não como uma soma de atividades,
como um contato mecânico, mas como uma interpenetração de energias,
sinergia: não mais uma ou outra energia separada, mas algo novo”178. (ZAK,
2003, http://mondodomani.org/dialegesthai/lz04.htm#rif10. Acessado em
08/03/2015. Tradução Própria).
Para Floriênski, a palavra é o elemento que produz a união entre o
interior e o exterior, entre subjetividade e objetividade, como uma sinergia da substância
ou essência. A palavra é o ato, o verbo, o ponto de encontro da substância com a energia,
e além desse aspecto ela possui uma estrutura tricotômica: fonema, morfema e semema
(FLORIÊNSKI, 2001). A palavra é inicialmente som e Floriênski denomina essa esfera
de fonema. A palavra, depois, é também um significado, um morfema que determina um
conceito gramatical preciso. O morfema é para Floriênski a forma externa da palavra. E,
finalmente, ela é também um significado, semema, a sua forma interna. A relação entre
fonema, morfema e semema é uma relação de dependência mútua que sustenta a
178 Nell'antica terminologia questi due lati vengono chiamati sostanza o essenza e attività o energia. Tale bipolare struttura di ogni realtà esistente, è la condizione ontologica che rende possibile e, anzi, richiede come la più adatta, la conoscenza secondo il modello della «terza via». Perché se, da una parte, gli esseri viventi sono irriducibili l'uno all'altro a causa della loro singolare identità, dall'altra essi possono giungere a una vera unità solo attraverso le loro energie.Una tale unità -- spiega Florenskij -- «può essere pensata non come una somma di attività, come un contatto meccanico, bensì come un compenetrarsi delle energie, synérgeia : non più l'una e l'altra energia separate, ma qualcosa di nuovo».
145
revelação dinâmica da palavra. É evidente que cada um dos três elementos da palavra é
"construído" a partir do outros dois, preservando, ao mesmo tempo, uma autonomia
singular, o que permite pensar na palavra como uma realidade única e, ao mesmo tempo,
dividida em três camadas, cada uma das quais podendo estar sujeitas a uma interpretação
particular. (FLORIÊNSKI, 2001). Essa conceituação tricotômica é importante para o
processo pedagógico de AV no que diz respeito ao entendimento da palavra como um
sedimento de um conteúdo oculto, que o ator deve aprender a acessar através da técnica
verbal.
Tome-se, por exemplo, a sua esfera de semema, de
significado. Ele não é fixo e compacto como um bloco de pedra, mas é em
camadas. As várias camadas de semema são formadas ao longo do tempo por
atos criativos específicos, cada um dos quais pressupõe a conclusão de algum
crescimento espiritual vivido, em geral, por todo um povo. Pode-se dizer: cada
camada é uma sedimentação, na palavra, de um processo espiritual ("é o
espírito que se fez carne"), que passa do subconsciente (semi-consciente) à
consciência e se concentra em um ponto, numa extremidade acuminata179.
(ZAK, 2011, http://mondodomani.org/dialegesthai/lz04.htm#rif10. Acessado
em 08/03/2015. Tradução Própria).
Para Floriênski, a palavra sedimentar pode ser encontrada
principalmente nos clássicos da literatura mundial, como também nas orações da divina
liturgia ortodoxa. A palavra possui, portanto, camadas sedimentares de conteúdos ocultos
que, na pedagogia de AV, o ator deve aprender a escavar para acessá-los. Assim, a
pedagogia com a cantilena ortodoxa e o hexâmetro homérico são pontos nesse processo
de formação do ator neste sentido, como também o são os laboratórios sobre as pequenas
tragédias de Púchkin. O crítico Nikolai Pessotchínski afirma que nos laboratórios sobre a
poesia lírica e sobre as pequenas tragédias180 de Púchkin, AV propôs um processo
pedagógico voltado para essa ação de revelação de conteúdos não manifestos na obra.
179 Prendiamo, ad esempio, la sua sfera del semema, del significato. Essa non è fissa e compatta come un blocco di pietra, ma è stratificata. I molteplici strati del semema vengono formati nel tempo da atti creativi specifici, ciascuno dei quali presuppone il compimento di una qualche crescita spirituale vissuta, in genere, da un intero popolo. Si potrebbe dire: ogni singolo strato è una sedimentazione, nella parola, di un processo spirituale («è lo spirito che si fa carne») che passa dal subconscio (semiconscio) alla coscienza e si concentra in un punto, una estremità acuminata. 180 Púchkin escreveu, em 1830, quatro peças curtas que foram nomeadas no seu conjunto como pequenas tragédias: O cavaleiro avarento, Mozart e Salieri, O convidado de pedra e Festim nos tempos da peste. Sempre envolvido nas questões teatrais, Púchkin tentava elaborar o que seria uma tragédia romântica, tendo como modelo o “enredo ao estilo de Shakespeare” (GATTO, 1972). Na tragédia romântica, as relações e os aspectos da estrutura psicológica dos personagens são mais delineados, sem perder o seu o valor simbólico e trágico, não se tratando, portanto, de mera busca de maior realismo das ações. ‘Nas pequenas Tragédias’ a força de representação vai além de todo o realismo (...) para assumir um valor simbólico, produto de meditações sobre o aspecto moral do fenômeno. O mesmo se aplica ao tema da
146
Ele desejava ver em Púchkin o impacto entre dois tipos de
consciência, a antiga e a judaico-cristã. Mas, para penetrar tão profundamente
no “subconsciente” do texto, é preciso tornar transparente sua camada externa.
(...) A ação está direcionada para revelar a música oculta e secreta em que o
autor escreveu o texto verbal. (PESSOTCHÍNSKI, 2011, p. 377)
Nesses laboratórios, AV utilizou a técnica verbal da entonação
afirmativa como forma de revelar essa música oculta da consciência cristã primitiva,
eliminando o seu conteúdo narrativo, e assim permitindo que o enredo oculto do
evangelho se manifeste no texto de Púchkin. Além de possibilitar que o ator entre em
contato com essa camada sedimentar oculta, a pedagogia metafísica de AV também
possibilita que o ator perceba que o elemento trágico existente na obra literária não é o
limite final a ser atingido, e que para além dele existe a beleza como fonte de inspiração
espiritual.
3.3.3. Beleza e luz tabórica
No seu tratado sobre teodiceia ortodoxa, La colonna e il fondamento
della Verità (1974), Pavel Floriênski adverte o leitor sobre a impossibilidade de definir a
eclesiástica ortodoxa sem reduzi-la à uma definição esquemática e racionalista181: “o
caráter indefinível da eclesiástica ortodoxa é a melhor prova da sua força vital”
(FLORIÊNSKI, 1974, p. 13). No entanto, quando tenta explicar que coisa é a ortodoxia,
a resposta de Floriênski irrompe com surpreendente clareza:
É uma nova vida, a vida no Espírito. Qual é o critério que
legitima essa vida? A beleza. Porque existe uma particular beleza espiritual,
indescritível com formas lógicas, mas, ao mesmo tempo, único método justo
de definir o que é ortodoxo e o que não é. Os especialistas desta beleza são os
stariets espirituais: os mestres da “arte da arte”, que é ascética, nas palavras
dos Santos Padres182. (FLORIÊNSKI, 1974, p.13, tradução própria)
inveja como aparece em Mozart e Salieri, que supera a mesquinha inveja contingente (...) e assume o valor simbólico do trágico de uma inveja que se baseia no amor (GATTO, 1972, p. 141). 181 Essa preocupação de Floriênski ecoa as divergências históricas entre as concepções religiosas entre a Igreja ocidental romana e a oriental grega, a primeira voltada para a busca do entendimento racional da divindade e a segunda com sua ênfase na experiência espiritual. 182 È una vita nuova, la vita nello Spirito. Qual è il criterio che legittima questa vita? La belleza. Perché esiste una particolare belleza spirituale, inafferrabile con le forme logiche, ma, allo stesso tempo, unico metodo giusto per definire che cosa è ortodosso e che cosa non lo è. Gli specialisti di questa belleza sono gli starcy spirittuali: i maestri dell'arte delle arti" che è l'ascetica, secondo le parole dei santi Padri.
147
Para Floriênski, existe somente um método para entender a ortodoxia,
que é a experiência ortodoxa direta e para entendê-la é necessário que o aspirante
mergulhe nela de corpo e alma. Nesse sentido, pode-se entender que a beleza referida não
é uma propriedade formal, reduzível a uma fórmula lógica e conceitual, mas uma
dimensão constitutiva do ser. O filósofo Nikolai Berdiaev (1952) afirma que “a beleza é
a característica suprema da existência”, tratando-se de uma realidade que na sua essência
simbólica interpela e ilumina a existência, para fazer resplandecer nela a luz da verdade.
Na ortodoxia, essa beleza resplandece não nos tratados teóricos, mas nos ícones e na
liturgia religiosa, que propiciam a experiência visível do invisível. A beleza espiritual na
ortodoxia se manifesta na perspectiva da visão, e pode ser expressa na forma visão-
contemplação icônica e visão-audição litúrgica. A liturgia ortodoxa contém a essência da
concepção de “ver escutando e escutar vendo” que se manifesta no ressoar interior da
palavra (litúrgica), que extrapola o seu sentido ordinário, “evidenciando a revelação do
significado do seu audire e ob-audire” (VALENTINI, 2010, p. 18), como também na
movimentação ritual, descrita por Gogol, como acima citada e na representação icônica
dos santos e padres.
Cada Divina Liturgia é sempre oferecida como uma
pedagogia da escuta e da visão que purifica a criatura e a torna digna do
encontro com aquele que é santo; porque ela mantém em cada detalhe
(palavra, gesto, sinal, som, matéria ...) um retorno contínuo à fonte de
deificação183. (VALENTINI, 2010, p. 19, tradução própria).
Essa pedagogia da escuta e da visão da beleza na ortodoxia assume
importância fundamental no trabalho pedagógico de AV, pois o processo que ela promove
na formação do ator se assemelha a essa ideia de purificação, que pode ser mais bem
expressa pelo conceito de metamorphosis proposto por Werner Jaeger, ao tratar sobre a
pedagogia do cristianismo primitivo. Ao tratar sobre assunto, Jaeger aponta nos teólogos
do cristianismo primitivo pontos que traçam uma linha evolutiva da concepção grega de
Paideia para a concepção cristã. Na Grécia Antiga, o conceito de beleza (kalós) também
era um ideal a ser atingido na Paideia, tanto homérica, quanto platônica.
Esta Paideia clássica pretende a formação “integral do homem, na sua
conduta e comportamento exterior e na sua atitude interior” (JAEGER, 1985). Homero e
183 Ogni Divina Liturgia si offre sempre come pedagogia all'ascolto e alla visione che purifica la creatura e la rende degna dell'incontro con Colui che è santo; per questo essa custodisce in ogni suo dettaglio (parola, gesto, segno, suono, materia...) un continuo rimando verso la sorgente della deificazione.
148
Platão oferecem uma imagem ideal do homem, tanto no seu comportamento externo
quanto no interno, como um ideal de beleza, de Kalokagathia. O sentido estético se
encontra com o ético.
A escultura grega não idealiza um corpo abstrato, mas
busca uma beleza ideal operando uma síntese de corpos vivos, na qual se
exprime a beleza psicofísica que harmoniza a alma e o corpo, ou seja, a beleza
das formas e a bondade da alma: é este o ideal da kalokagathía. (ECO, 2004,
p. 45)
Para Jaeger, o ideal grego de excelência (aretê), significa “fazer a sua
beleza”, promover as condições para que ela irrompa na vida. Desejar a beleza e fazê-la
sua é, para o homem grego, não perder nenhuma oportunidade de praticar ações do mais
alto heroísmo moral. É, em última instância, a subordinação do físico a uma beleza mais
elevada. Entre Homero e Platão se encontra uma linha ininterrupta de evolução do
conceito de beleza ideal a que os aristocratas, guerreiros e poetas aspiravam como bem
mais elevado.
[Platão] foi o primeiro no ocidente a falar sobre a base
invisível da existência visível. Falou quase a mesma língua dos upanixades e
dos tratados budistas. Aqui o Oriente e o Ocidente se encontram (Aleksandr
Men184, apud PESSOTCHÍNSKI, 2011, p. 382).
Para Platão, o homem pode se elevar da beleza sensível até a beleza
absoluta, que é “o brilho ou esplendor da verdade”. O processo para alcançar esse
esplendor é pedagógico e ocorre através da dialética, no sentido de que ela propicia a
reminiscência dessa beleza ou esplendor da verdade. A contemplação da beleza é
tematizado por Platão na alegoria da caverna, que é por sua vez, como afirmado
anteriormente, uma descrição metafórica do próprio processo pedagógico do filósofo e
por similaridade, também o de AV. Outra relação desta alegoria com o teatro, é apontada
por AV, quando os espetadores sentados na plateia se assemelham aos habitantes da
caverna, acorrentados e virados para a parede, de tal forma que só veem o reflexo daquilo
que acontece do lado de fora, e não “a própria realidade, nem a luz, nem as figuras que
estão lá, mas apenas suas sombras” (PESSOTCHÍNSKI, 2011, p. 371). Essa metáfora é
especialmente importante no teatro de AV, porque vai influenciar o encenador em
algumas opções estéticas, como por exemplo, manter as luzes da plateia sempre acesas
durante a representação, na concepção arquitetônica do Teatro-Escola de Arte Dramática
com suas salas e camarins de vidro transparente mas, fundamentalmente, inspirar uma
184 Aleksandr Men (1935 – 1990), teólogo ortodoxo, estudioso da Bíblia e escritor russo.
149
concepção de que a atividade teatral é uma espécie de maiêutica, resgatando o sentido da
filosofia platônica, como atividade onde de se dá a luz (VASSÍLIEV, 1994).
Platão está na base da religiosidade católica ocidental, tendo
influenciado, entre outros, o pensamento de Santo Agostinho e de Plotino. Na Idade
Média madura, Tomás de Aquino recorda que à beleza são necessárias três coisas: a
proporção, a integridade e a claritas, vale dizer, a clareza e a luminosidade (ECO, 2004).
Uma das origens da estética da claritas deriva certamente
do fato de que em numerosas civilizações Deus era personificado com a luz:
Baal semítico, o Rá egípcio, o Ahura Mazda iraniano, são todos
personificações do sol ou da benéfica ação da luz, que chegam naturalmente
à concepção do Bem como sol das ideias em Platão; através do neoplatonismo
estas imagens penetram na tradição cristã. (ECO, 2004, p. 102)
Sthéphanie Lupo (2006) afirma que AV utiliza duas imagens que
identificam comportamentos para acessar o esplendor ou a beleza: a de Narciso (“aquele
que olha para si, e ama somente a si mesmo”) e a de Apolo (“com as flechas à mão”).
Enquanto Narciso perece, Apolo resplandece. A imagem que AV apresenta de Apolo
resplandecente está longe daquela mais conhecida do deus brando e suave representado
nas estátuas de mármore. Nesse sentido, “o Apolo de Vassíliev poderia ter Dionísio por
irmão” (LUPO, 2006), e ao contrário de Narciso que ama somente a si mesmo, o poder
de Apolo se encontra nas flechas que ele envia ao exterior de si mesmo. Como modelo
pedagógico para o ator, AV retoma a imagem de Apolo como ele surge durante a noite
na Ilíada185.
Aparecendo de noite na Ilíada, o deus do arco de prata
(canto 1) Febo Apolo brilha como a lua. (...) Deus muito complexo,
terrivelmente trivializado quando se o reduz a um homem jovem, sábio e belo;
ou quando se o opõe, na simplificação feita por Nietzche, a Dionísio, como a
razão e a paixão. Não, Apolo é o símbolo de uma vitória sobre a violência, de
uma mestria do entusiasmo, da aliança da paixão com a razão. Filho de um
deus, por Zeus e neto de um Titã, por Leto, sua mãe. Sua sabedoria é o fruto
de uma conquista, não de uma herança. Todas as potências da vida se
conjugam nele para incitá-lo a não encontrar o seu equilíbrio nos píncaros,
para conduzi-lo para “a entrada da imensa caverna” (Ésquilo) “acima dos
céus” (Plutarco). Simboliza a suprema espiritualização; é um dos símbolos
185 Isso disse ele na súplica; ouvido por Febo foi logo./O coração indignado, se atira dos cumes do Olimpo;/atravessado nos ombros leva o arco e o carcás bem lavrado./A cada passo que dá, cheio de ira, ressoam-lhe as flechas/nos ombros largos; à noite Semelha, que baixa terrível./Longe das naves se foi assentar, donde as flechas dispara./Do arco de prata começa a irradiar-se um clangor pavoroso. Homero, Ilíada, tradução e introdução Carlos Alberto Nunes, p. 66.
150
mais belos da ascensão humana186. (CHEVALIER, 1986, p.112, tradução
própria).
Símbolo da ascensão humana, Apolo representa no processo
pedagógico de AV uma progressiva transformação, uma metamorphosis de todo o ser.
Deus solar, Apolo representa também a luz, como os raios solares. Na mística ortodoxa,
o contato da energia do homem com as energias incriadas de Deus, gera uma sinergia que
se manifesta como luz tabórica187.
A ideia de luz tabórica, que os apóstolos viam do lado de
fora de si, na transfiguração, no corpo vivo de Jesus, se transforma assim, com
a morte e a ressureição, numa luz interior, uma luz que faz com que o místico
se transforme numa pessoa tabórica, causando um processo de transfiguração,
de metanóia física, ou seja, o contato contínuo com o divino deveria
transformar também as feições do místico, seu rosto, gerando nele uma luz
estranha, palpável, mas indefinível. (PONDÉ, 2003, p. 88 a 89)
A espiritualidade na fé ortodoxa é fundamentada na experimentação
“palpável” dessa luz tabórica. Dessa forma, espírito e luz tabórica andam sempre lado a
lado, preenchendo de concretude a mística ortodoxa. Um ícone188 na Igreja ortodoxa é,
por exemplo, um objeto luminoso de onde emana a energia (luz) do Espírito Santo ou as
energias incriadas de Deus. Um místico pode ser também um ícone, porque dele pode
emanar essa mesma luz. O entendimento da espiritualidade como uma luz que se
experimenta vai ser fundamental para o entendimento de todo o percurso artístico-
pedagógico de AV e de como ele próprio entende o seu fazer teatral:
Imagine que exista um pequeno galpão de madeira que fica
em um jardim ou em um parque cheio de luz. Alguns raios de luz penetram na
abertura entre as tábuas e se cria uma pequena faixa de luz repleta de muitos
grãos de poeira que parecem "vivos" e você sente claramente a materialidade
deste raio, desta superfície brilhante. Bem, o meu teatro se coloca nessa
186 Apareciendo de noche en la Ilíada, el dios de! arco de plata (canto 1) Febo Apolo brilla como la luna. (...) Dios muy complejo, horrorosamente trivializado cuando se lo reduce a un hombre joven, sabio y bello; o cuando se lo opone, simplificando a Nietzsche, a Dioniso, como la razón al entusiasmo. No, Apolo es el símbolo de una victoria sobre la violencia, de un autodominio en el entusiasmo, de la alianza de la pasión y la razón, el hijo de un dios, por Zeus y el nieto de un Titán, por Leto, su madre. Su sabiduría es el fruto de una conquista, no una herencia. Todas las potencias de la vida se conjugan en él para incitarlo a no encontrar su equilibrio más que sobre las cumbres, para conducirlo desde «la entrada de la caverna inmensa» (Esquilo) «a las cimas de los cielos» (Plutarco). Simboliza la suprema espiritualización; es uno de los símbolos más bellos de la ascensión humana. 187 “As energias incriadas de Deus, que correspondem à luz tabórica, sobrenatural, são percebidas com os olhos da alma, que é, no recôndito de sua substância, de origem e estatuto sobrenaturais, permeável ao sobrenatural”. (PONDÉ, 2003, p.90) 188 Do ponto de vista específico da teologia ortodoxa, o ícone é resultado de uma inserção do Transcendente naquilo que nós ocidentais chamamos de arte. (PONDÉ, 2003, p. 95).
151
superfície. Nem mais alto, nem mais baixo, mas apenas nessa superfície189
(VASSILIEV, 1993, p. 326. Tradução Própria).
O motivo da luz também pode ser encontrado no trabalho com a voz.
Natalia Isaeva denomina de “matéria fonética radiante” os elementos vocais presentes na
pedagogia de AV sobre a entonação:
Durante os últimos anos, Vassíliev trabalhou em uma
técnica especial fundada sobre o domínio da respiração, uma técnica
curiosamente próxima de algumas práticas orientais (podemos realmente
encontrar surpreendentes paralelos no Xivaísmo de Caxemira190, em algumas
escolas taoístas, ou na tradição bizantina de hesicasmo). Com a entonação
afirmativa, elaborada por Vassíliev, descobrimos que a energia do discurso
(um teólogo Xivaísta poderia dizer: nós encontramos Vac, ou a Deusa da Fala,
anunciada por Utpaladeva ou Abhinavagupta), começa a se revelar, começa a
nos afetar diretamente, mesmo contra a nossa vontade, acima e além de
qualquer significado usual domesticado das palavras comuns. Os primeiros
exercícios, as primeiras experiências com essa matéria fonética irradiante
foram iniciadas há cerca de dez anos atrás, com as primeiras abordagens para
a encenação de Anfitrião de Molière191 (ISAEVA, 2005, p. 04).
Essa “matéria fonética radiante” pode ser entendida no contexto
espiritual religioso do teatro de AV como a sinergia entre a voz do ator e espiritualidade,
ou energia incriada.
3.4. Considerações
189 Immaginate di essere in piccola baracca di legno che si trova in um giardino o in um parco pieno di luce. Alcuni raggi de luce penetrando in uma fessura presente tra le assi e creano uma piccola striscia di luce animata de tanti granelli di polvere che ci “vivono”, e voi avvertite chiaramente la materialità di questa striscia, di questa superficie luminosa. Ebbene, il mio teatro si coloca su questa superfície. Nè più in alto, né più in basso, ma solo su questa superfície. 190 O Shivaísmo é uma das seitas mais antigas do hinduísmo. Seus seguidores reverenciam a divindade Shiva como o Ser Supremo, que é tudo e que está em tudo, o criador, preservador, destruidor e revelador de tudo o que existe. O Shivaismo está espalhado por toda a Índia, Nepal e Sri Lanka, e também está presente em diversas partes da Ásia Meridional como a Malásia, Cingapura e Indonésia. 191 According to Vassiliev, who is always suspicious of any meaning born from the narrative story, the content is usually transmitted to us through oral intonation. So, in order to eliminate that ordinary, ‘horizontal’ intonation, we have first of all to disregard the normal accents of everyday speech; only in that way we can come to the primordial force of speech regarded as pure energy, as a kind of phonic matter which can be found at the origins of the world. During these last years Vassiliev has worked out a special technique founded upon the mastering of respiration, a technique strangely close to some Oriental practices (we can find really astonishing parallels in Kashmir Shaivism, in some Taoist schools, or in the tradition of Byzantine hesychasm). Owing to affirmative intonation, elaborated by Vassiliev, we find that energy of the speech (a Shaiva theologist could say: we meet Vac, or the Goddess of Speech, preached by Utpaladeva or Abhinavagupta) which starts to unfold itself, which starts to affect us directly, even against our will, over and beyond any usual tame meaning of ordinary words. The first exercises, the first experiences with that radiating phonetic matter were started some ten years ago, with the first approaches towards Amphitryon of Moliere.
152
Na teologia ortodoxa, o conhecimento de Deus não se dá pela razão,
que é um dom natural, mas através da mística que é um dom sobrenatural. Essa mística
se refere a uma experiência do transcendente, do divino, do espiritual e do religioso em
relação com o humano. Pondé considera que essa discussão sobre o contato de Deus com
o humano ultrapassa o universo ortodoxo e encontra ressonância no pensamento do
teólogo protestante Rudolf Otto192, para quem:
Uma coisa é apenas acreditar no supra sensorial; outra,
também vivenciá-lo; uma coisa é ter ideias sobre o sagrado; outra, perceber e
dar-se conta do sagrado como algo atuante, vigente, a se manifestar em sua
atuação. É convicção fundamental de todas as religiões e da religião em si que
também a segunda possibilidade é viável, que não só a voz interior, a
consciência religiosa, o discreto sussurro do espírito no coração, o palpite e o
anseio prestem testemunho a seu respeito, mas que seja possível encontrá-los
em eventos, fatos, pessoas, em atos de auto revelação, ou seja, que além da
revelação interior no espírito também haja revelação exterior do divino
(Rudolf Otto apud PONDÉ, 2003, p. 57).
Ou seja, a mística ortodoxa vai de encontro a outras tradições religiosas,
como o hinduísmo, budismo, xivaísmo, islamismo, cânticos da tradição e com a própria
tradição religiosa dos gregos antigos, num verdadeiro espírito ecumênico que transcende
seus próprios seus limites.
A mística ortodoxa afirma a existência de um sistema de cognição
sobrenatural, chamado de epignose, que é traduzido de uma maneira aproximada por
Pondé (2003) como “o sentido de Deus, o sentido do sobrenatural para os medievais, ou
aquilo que a partir de Mircea Eliade, já no século XX, pode-se chamar de ‘tato religioso’”.
Conforme o teólogo russo Paul Evdokimov (1979), o processo de aproximação com Deus
na mística ortodoxa se dá através de três estágios. O primeiro é a catharsis, ou purificação,
o segundo, chama-se theoria ou iluminação, e o último theosis, a deificação.
A catharsis precede a conversão e se constitui de uma purificação da
mente e do corpo, como preparação para o segundo degrau, a theoria. (A catharsis) Visa
a purificação da consciência (nous193), para ativar a faculdade de discernimento e
192 Rudolf Otto (1869 a 1937) foi um eminente teólogo protestante alemão e erudito em religiões comparadas. Autor de The Idea of the Holy, publicado pela primeira vez em 1917 como Das Heilige, considerado um dos mais importantes tratados teológicos em língua alemã do século XX, e criador do termo numinous, que é o ser sagrado supremo a quem todas as religiões buscam apreender e o primeiro sentimento religioso gerado por experiências hierofanias. 193 Nous, termo filosófico grego que não possui uma transcrição direta para a língua portuguesa, e que significa atividade do intelecto ou da razão em oposição aos sentidos materiais. Muitos autores atribuem
153
conhecimento, cujo despertar é essencial para sair do estado de ilusão que é característico
do mundano. Na religião ortodoxa, a theoria está além do conhecimento conceitual. É o
estado em que a nous é focada na imanência da Trindade de Deus, que se manifesta como
iluminação. Esta é a luz tabórica, uma luz que permeia todas as coisas e é, sem fonte, uma
luz que ilumina não só o mundo físico, mas também a escuridão dentro da humanidade.
Theosis é o processo de transformação de um crente que está pondo em prática os ensinos
espirituais de Jesus Cristo e seu Evangelho. Em particular, Theosis refere-se à realização
de semelhança a ou união com Deus, que é o estágio final do processo de transformação
e, como tal, o objetivo da vida espiritual.
Formado na tradição da escola russa de teatro, que coloca a relação
pedagógica entre diretor e ator como central no processo artístico, AV não esconde que o
seu trabalho está ancorado em uma postura religiosa (POLIAKOV, 2006). Como
Stanislávski, que igualava “o espaço cênico ao espaço espiritual” (PESSOTCHÍNSKI,
2011, p. 378), AV tem uma postura semelhante a outros encenadores como Craig,
Meierhold, Artaud, Grotowski, todos procurando procedimentos para a expressão de
diferentes níveis e aspectos da existência imaterial. No entanto, esse desejo de expressão
do imaterial no palco, muitas vezes, esbarrou na própria materialidade do ator ou na sua
falta de preparo e treinamento. Craig chegou a propor a eliminação do ator do processo
teatral, com a criação da supermarionete194, único ser capaz de expressar no palco os
aspectos espirituais da arte. Meierhold, já na Cia. Do Drama Novo195, começa a sua busca
obstinada por um novo ator, entendendo que a expressão de conteúdos espirituais exigia
novos meios técnicos e expressivos. Artaud pretendia que o ator ultrapassasse o seu corpo
como sinônimo a Nous os termos "Inteligência" ou "Pensamento". É também utilizado para descrever uma forma de percepção que opera dentro da mente ("olho da mente"), ao invés de ser apenas através dos sentidos (RORTY, 1979). O significado ambíguo do termo é resultado de sua constante apropriação por diversos filósofos, para denominar diferentes conceitos e idéias. Nous refere-se, dependendo do filósofo e do contexto, vezes a uma faculdade mental ou característica, outras vezes a uma correspondente qualidade do universo ou de Deus. 194 Em seu livro Da Arte do Teatro Gordon Craig escolhe começar o capitulo “O Actor e a Sur-Marionete” com uma frase de Eleonora Duse: “Para que o Teatro se salve é preciso destruí-lo; que todos actores e actrizes morram da peste... Eles tornam a Arte impossível”. 195 Cia que surgiu quando Meierhold se uniu ao dramaturgo A. M. Rêmizov em 1903. (THAIS, 2009)
154
cotidiano rumo ao seu duplo, metafísico e transcendente196. E ainda Grotowski, que
pregava a necessidade de um ator santo, no sentido do auto despojamento e da ascese197.
O ator, no trabalho de AV, precisa voltar seu entendimento do mundo
natural e humanista, oriundo de uma formação acadêmica ou prática profissional, para o
sobrenatural e espiritual. Isso nem sempre é de fácil compreensão ou realização. Uma
imagem, feita por um colaborador198 de AV, exemplifica bem a dificuldade que os atores
têm com a abordagem proposta pelo diretor:
É muito complicado fazer o seu teatro: o ator deve segurar
os seus cabelos, se puxar para cima, saindo do chão e permanecer por um
tempo suspenso no ar199 (VASSILIEV, 1993, p. 326).
Nesta frase há um componente espiritual, elevação do solo, imagem que
lembra a ascensão de Jesus Cristo e outro material, a impossibilidade física do ator
realizar tal ato, como por exemplo, na torre de Babel ou ainda no sonho de Ícaro. Na
imagem de Cristo em ascensão temos o poder da fé operando milagres, nas outras o desejo
de alcançar o divino leva o homem a desgraça e a queda. AV repete essa frase que ouviu
de um ator, para exemplificar a posição em que se encontra o seu teatro, uma posição
intermediária, entre o mundo físico e o mundo espiritual. Nesse sentido, o seu teatro é a
construção de um território que possibilita um diálogo entre oriente e ocidente, entre
ortodoxia e catolicismo, entre o ator e o personagem. A imagem que se pode associar a
descrita pelo ator acima é a da figura de Cristo em ascensão. Dentro da mística ortodoxa
russa, esse é o processo final da união do humano com o divino conhecido como Theósis.
196 E há um sétimo estado situado acima das respirações e que, através da porta da Guna superior, o estado de Sativa, reúne o manifesto com o não-manifesto. Se alguém disser que o ator, não sendo metafísico por essência, não precisa preocupar-se com esse sétimo estado, responderemos que, a nosso ver, e embora o teatro seja o símbolo mais perfeito e mais completo da manifestação universal, o ator traz em si o princípio desse estado, desse caminho de sangue pelo qual ele penetra em todos os outros cada vez que seus órgãos potenciais despertam de seu sono (ARTAUD, 2006, p. 137). 197 GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Editora Civilização Brasileira: São Paulo, 1984. 198 Trata-se de Yuri Sergeyevich Grebenshchikov (Ю́рий Серге́евич Гребенщико́в), nascido em 1937, Sverdlovsk e falecido em 1988, Moscou. Atuou nas seguintes peças de AV: "A primeira versão do "Vassa Zheleznova", em 1978; "A filha adulta de um jovem",em 1979; "Serso", em 1985. 199 È molto complicato fare il tuo teatro: l'attore deve prendersi per i capelli, tirarsi all'insù, staccarsi dal suolo e rimanere per un po' sospeso in aria.
155
CONCLUSÃO
Retomo aqui à hipótese descrita na introdução, de que o processo
artístico-pedagógico de AV com os diálogos platônicos, efetivado nas experiências
realizadas na École des Maïtres e na Fabrica dei Registri, em conjunto com o treinamento
verbal, desenvolvidos nos laboratórios sobre o hexâmetro homérico, a cantilena ortodoxa
e o Wushu, no Teatro-escola de Arte Dramática, configura-se como uma formação do
artista no sentido de uma Paideia, pois pretende uma transformação ética do ator, através
de uma pedagogia metafisica, cuja prática está fundamentada nas ações dialética, verbal
e ortodoxa.
Como afirma Jaeger (2013), os gregos deram o nome de Paideia à
"todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como
nós o designamos por Bildung ou pela palavra latina, cultura." (2013, p. 11). Assim, para
traduzir o termo paideía,
Não se pode evitar o emprego de expressões modernas
como civilização, tradição, literatura, ou educação; nenhuma delas
coincidindo, porém, com o que os gregos entendiam por paideia. Cada um
daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global. Para
abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de
uma só vez. (...) Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura
não constituem uma arte formal ou uma teoria abstrata, distintas de estrutura
histórica objetiva da vida espiritual de uma nação; para eles, tais valores
concretizavam-se na literatura, que é a expressão real de toda a cultura
superior. (JAEGER, 2013, p. XXI).
Na pedagogia de AV, o texto literário é o elemento fundamental no
processo de formação do ator. O próprio AV se considera um diretor que trabalha a partir
do texto (FÉRAL, 1997), e isto pode ser observado nos espetáculos que montou ao longo
de sua carreira, todos partindo de textos de diferentes autores, entre eles, Máximo Gorki,
Viktor Slavkin, Pirandello, Platão, Oscar Wilde, Dostoiévski, Molière, Liermontov,
Thomas Mann, Púchkin, Homero e outros de uma lista extensa.
Na pedagogia de AV, o ator não modifica o texto, nem trabalha
independente dele, busca, ao contrário, desvendar os seus segredos. Disto decorre que a
formação do ator está ancorada no texto e dela não deve se afastar, a não ser por curtos
espaços de tempo. No entanto, a relação do ator com o texto depende do tipo de estética
em que ele foi composto, o que também determina, em última instância, o caráter do
próprio processo pedagógico.
156
É interessante observar que o aprofundamento da pedagogia de AV,
rumo ao metafisico, se deu a partir da fundação do Teatro-Escola de Arte Dramática e da
encenação de Seis personagens em busca de um autor200. Sobre a encenação do texto de
Pirandello, quero lembrar que, no enredo, personagens invadem um ensaio, buscando
atores que os representem exatamente como eles são. Na peça de Pirandello, os atores
possuem personalidades mesquinhas e vulgares, o que os impedem de entenderem a
nobreza e a elevação do caráter dos seis personagens e sua história trágica. A
impossibilidade de transformação dos atores e a fixação do caráter dos personagens
estabelece o conflito na peça de Pirandello. O personagem, enquanto texto literário está
fixado pelo autor e, portanto condenado a se repetir, enquanto que o ator, livre na sua
autodeterminação, é o único capaz de agir, embora não o faça. Essa peça pode ser a
metáfora da condição do ator no teatro de estética realista, limitado a viver papéis
próximos a sua personalidade.
A Paideia do ator de AV começa com o desenvolvimento de sua
capacidade de escolha. A única maneira de romper com o determinismo, filosofia esta
que torna impossível a ideia de Paideia, é romper com a cadeia de causa e efeito oriunda
do passado e assumir que “a responsabilidade é de quem escolhe a sua sorte. Não é Deus
que é responsável” (JAEGER, 2013, p. 1004).
O único saber com valor é saber escolher, pois dá ao
homem a capacidade de adotar a verdadeira decisão. (...) O grande risco por
todos corrido é a escolha do destino da vida, que para o filósofo é sinônimo
de forma de vida ou de ideal de vida. É por isso que ele deve se esforçar por
adquirir o saber que o habilita a realizar esta escolha, sem se preocupar com
nenhuma outra coisa. Esse ponto de vista esclarece definitivamente o que é
paideia. (JAEGER, 2013, p. 1005)
O processo pedagógico de AV possibilita ao ator adquirir o saber que o
habilita a realizar as suas escolhas estéticas e artísticas. A discussão estética da relação
entre ator e personagem que propõe Pirandello serve de ponto de partida para uma
reflexão sobre a própria pedagogia do ator. A escolha do ator, num primeiro momento, se
dá sobre permanecer no trabalho sobre si mesmo, ou iniciar a jornada rumo ao outro,
rumo a sua transformação. Nesta situação, a pedagogia metafísica de AV alcança o seu
200 Recordo que a pesquisadora Sthéphanie Lupo, desenvolveu toda uma tese, observando em Cerceau inúmeros pontos que apontam o desenvolvimento posterior das estuturas lúdicas. No entanto, tanto eu, quanto a profa. Polina Bogdanova, acreditam que isso é um erro, pois o texto de Slavkin ainda era ligado a estética do realimo pesicologico.
157
aspecto de Paideia ortodoxa, pois através do seu processo de formação (morphosis),
aponta para a metamorphosis (transformação) do ator.
Para que o processo pedagógico do ator resulte em metamorphosis
artística é necessário que a relação ator/personagem seja também transformada. Pode-se
facilmente, observar que a relação, que se estabelece entre o ator e personagem, nos textos
realistas, é de contiguidade e similaridade. Esta proximidade e semelhança tornam os
textos realista inapropriados para o desenvolvimento de um processo de metamorphosis
do ator, pois tendem a exigir do ator um mínimo de transformação, em comparação com
um texto que promovesse maior afastamento ou distância.
Nos textos realistas o personagem é o ator, por isso o ator
não precisa melhorar como pessoa, como ser humano. O que ele precisa são
técnicas que o permitam ser ele mesmo em cena – não existe transformação.
(FÉRAL, 1997, p. 37).
A distância entre o personagem e o ator permite que a energia do ator
seja mobilizada e comece a fluir, sendo o contrário também verdadeiro, a proximidade de
ambos tende a bloquear a energia do ator, estagnando-a. AV usa um exemplo bem
prosaico para explicar esse processo. Trata-se do jogo do amor, quando os amantes estão
próximos, não conseguem expressá-lo, mas quando estão longe, acende-os o desejo e a
paixão. Esse exemplo se relaciona com a Paideia platônica, no sentido de que Eros é a
energia que mobiliza o ser. Gostaria de exemplificar esse tema com um espetáculo de
AV, Don Juan ou o convidado de pedra e outras poesias, 1998. Ao final da encenação,
Don Juan caminha para a morte, distanciando-se assim de sua amada Dona Anna. A
personagem recita uma elegia que marca o derradeiro caminho do amor para Don Juan:
Mas não desejo, amigos meus, morrer;
Quero ser para pensar e sofrer.
E sei que há gozos para mim guardados
Entre aflições, desgostos e cuidados:
Inda a concórdia poderei cantar,
Sobre prantos fingidos triunfar,
E talvez com sorrir de despedida
Brilhe o amor no sol-pôr de minha vida201.
201 Tradução de José Calado para a parte final do poema Elegia de 1830: “Но не хочу, о други, умирать;/ Я жить хочу, чтоб мыслить и страдать;/И ведаю, мне будут наслажденья/Меж горестей, забот и треволненья:/Порой опять гармонией упьюсь,/Над вымыслом слезами обольюсь,/И может быть — на мой закат печальный/Безумных лет угасшее веселье.”
158
Com esse poema se finaliza a composição sobre o percurso da alma do
poeta, do amor físico rumo à redenção pelo amor ideal. Na Paideia platônica, esse
processo de transformação operado pelo amor é o principio ativo de formação da alma, e
é tematizada no Banquete. O amor é o brilho que resplandece no final da vida do poeta,
esse é o mistério a que ele chega. Na encenação de AV, Don Juan atravessa o percurso
do sedutor absoluto, comandado por suas energias naturais e instintivas, rumo a
“transfiguração suprema que atinge o espírito, quando este contempla a ideia do belo”.
(JAEGER, 2013, p. 729). Platão julga impossível o homem alcançar essa beleza sem o
“impulso e o entusiasmo inesgotáveis e incessantemente renovadas das forças irracionais
do homem” (JAEGER, 2013, p. 729).
A união do éros e da paideía, eis a ideia central do
Banquete. (...) É sob essa nova forma, como o mais alto voo espiritual de duas
almas intimamente unidas até o reino do eternamente belo, que Platão introduz
o éros na eternidade. (JAEGER, 2013, p. 729)
Na sua teoria do éros, Platão lança uma ponte entre o abismo que separa
o dionisíaco e o apolíneo, entre os reinos do terreno e do divino, através dos seus diálogos,
que tematizam questões abstratas a partir de situações e exemplos comuns. O éros
platônico é aquele que age como interprete entre os deuses e os homens, um daimon,
neste sentido pode-se dizer que Don Juan supera a morte, ao vencer a si mesmo e se
sacrificar pela beleza. Amor e a beleza são duas manifestações de um mesmo princípio,
no sentido platônico de que éros anseia a beleza, e nela se realiza, revelando assim o seu
verdadeiro eu, a sua natureza autêntica.
(...) a aspiração à nossa natureza autêntica, não tem
absolutamente nada a ver com o que podemos chamar de complacência em si
mesmo, ou amor-próprio. Nada mais diferente da autêntica philautia socrática
do que o narcisismo que poderia descortinar quem, ao pretender interpretá-lo
psicologicamente, a distorcesse. O éros socrático é o anseio de quem se sabe
imperfeito por se formar espiritualmente a si próprio, com os olhos sempre
fitos na Ideia. É, a rigor, o que Platão entende por filosofia: a aspiração de
conseguir modelar dentro do homem o verdadeiro Homem. (JAEGER, 2013,
p. 745).
Percebe-se, com este exemplo, a importância do distanciamento como
recurso pedagógico na formação da personalidade artística do ator. Um texto ideal para o
processo pedagógico promovido pela pedagogia de AV é aquele em que o distanciamento
159
não somente ocorra no sentido do caráter do personagem ser superior ao do ator, em
termos de nobreza, mas também quanto ao tipo de consciência ser distinto da moderna e
contemporânea. Neste sentido, os diálogos platônicos e os hexâmetros homéricos são
textos que potencializam a distância que pode ser obtida no processo de formação ator.
Esses textos, platônico e homérico, permitem que no processo
pedagógico, se inicie no ator, um processo que culmina com o desenvolvimento de sua
personalidade artística. A transformação do ator através do seu crescimento artístico, o
leva-o a se tornar o que AV denomina de persona, ou seja, torna-se o poeta de sua própria
criatividade artística. Quando AV se volta para a literatura antiga, tendo em Homero e
Platão os seus pilares, não é um simples retorno a fontes arcaicas gregas, mas, sobretudo
o meio ideal para a formação cultural do ator, na dialética entre os fundamentos dessa
literatura e a cultura judaico-cristã.
Em palestra na Espanha, por ocasião do lançamento da tradução do
livro de Maria Knebel para o espanhol em 1998, AV responde a pergunta sobre quais
qualidades são essenciais para o ator, apontando: capacidade de improvisação, energia e
religiosidade.
1 – Capacidade de improvisação
No percurso artístico-pedagógico de AV, observa-se uma transição do
trabalho com o método do étude, baseado no recurso da improvisação, para o plano da
ação e da forma verbal, que tem no training o seu fundamento de aprendizado. Embora a
improvisação deixe de estar no início do trabalho pedagógico, ela permanece no centro
da criação artística como capacidade de livre criação do ator com os elementos técnicos
da entonação afirmativa. A improvisação é um dos elementos lúdicos, sem o qual o
trabalho do ator perde sua capacidade de criação e de liberdade. Entenda-se improvisação,
na pedagogia de AV, como o jogo do ator a partir de uma estrutura textual, seja ela
psicológica, lúdica ou mista, da qual nunca deve se afastar, mas utiliza-la como parâmetro
de seu próprio processo criativo, como uma espécie de guia, de farol.
Lembra a rota de um navio guiada por um farol, uma rota
pontuada por uma série de pequenas boias luminosas; a boia emana a mesma
luz do farol, a mesma emoção, o mesmo conteúdo e também a mesma
filosofia. O ator começa a se mover seguindo o caminho indicado por esses
projetores até o fim, ao farol final. (VASSÍLIEV, 1995, p. 210. Tradução
própria.)
2 – Energia
160
A energia do ator é sua capacidade de agir e se dá em três planos
simultâneos: o físico, o psíquico e o verbal. Na tradição stanislavskiana, o processo
artístico do ator se dá a partir do psicofisico para o verbal e durante muito tempo AV
trabalhou nesse sentido. No entanto, a partir das pesquisas com a entonação afirmativa, o
diretor-pedagogo inverteu esse processo, começando do verbal para o psicofísico. Essa
inversão não significa um retorno aos ensaios de mesa, típicos do MXAT, mas, sobretudo,
um entendimento filosófico que não privilegia o humano como centro do universo, e
busca no espiritual a sua estruturação.
A palavra e o som, o ritmo e a harmonia, na medida em
que atuam pela palavra, pelo som ou por ambos, são as únicas forças
formadoras da alma, pois o fator decisivo em toda paideía é a energia, mais
importante ainda para a formação do espírito que para a aquisição das aptidões
corporais do ágon. (JAEGER, 2013, p. 16)
3 - Religiosidade
AV elucida que religiosidade é a capacidade de entender o mito. Para
ele, os atores perderam essa capacidade porque têm trabalhado durante muito tempo
exclusivamente com os pressupostos humanistas, onde tudo se determina pela dimensão
humana natural, excluindo a sobrenatural. A capacidade do ator em compreender o mito
significa que ele é começa a agir a partir dessa perspectiva, que pode ser entendida como
escatológica. O ator aprende a agir a partir de uma perspectiva escatológica quando suas
ações são motivadas não por impulsos psicológicos, mas pela antevisão do mundo desde
o fim.
Esses três aspectos da pedagogia de AV apontam para a formação de
uma Paideia. O primeiro, a improvisação, está ligado às fontes lúdicas dos textos
platônicos; o segundo, à energia verbal do hexâmetro homérico e, finalmente, a
religiosidade pode ser observada na cantilena da entonação afirmativa. E o aspecto
metafisico da pedagogia de AV pode ser traçado na sua função de reminiscência, que
indica a existência de fundamentos arcaicos e mitológicos, tanto na dramaturgia quanto
na estrutura do próprio ser.
O sóbrio e moderno julgamento ocidental tem como base
uma total falta de compreensão das realidades descritas no conto de fadas, no
mito e nas divinas comédias de redenção. Essas formas, no mundo antigo,
eram consideradas de natureza mais elevada que a tragédia, manifestações de
uma verdade mais profunda, de percepção mais difícil, de estrutura mais
sólida e de revelação mais completa. (CAMPBEL, p.17 e 18)
161
A retomada de um pensamento mítico acontece no final do processo
dialético, não é um à priori ao percurso pedagógico, mas uma experiência emocional
adquirida através da reminiscência. Esse é um aspecto importante da metafisica platônica,
e o é também na pedagogia de AV, pois o acesso ao mítico não se dá através unicamente
do pensamento racional, mas ele é o procedimento que ao chegar ao seu limite revela uma
verdade até então não vislumbrada, uma verdade luminosa, visível. Nesse sentido, o ator
torna-se um theoros, aquele que testemunha uma visão e retorna para relatá-la,
exatamente como no mito da caverna de Platão.
Gostaria de terminar concedendo a palavra a AV, numa citação longa,
mas que reflete todo o percurso desenvolvido nesta tese e também esclarece o fundamento
ortodoxo e ético de seu processo artístico-pedagógico:
Na arte teatral as pessoas se dedicam à relação entre os
homens e isso se converte no tema do seu teatro. Descobrir, de uma forma
rica, substanciosa, detalhada, inteligente, com talento, como se relacionam os
homens entre si, como se afetam uns aos outros, como se transmitem
felicidade e infelicidade. Este é o tema, um tema real. Também eu tratei deste
tema e depois, de repente eu entendi que já havia contado tudo, que não tinha
nada mais pra dizer, que me repetia. Porque o homem não transmite ao homem
tanta bondade, digamos, senão desgraça. No século vinte... bom não quero
generalizar... porém relatamos demasiado como o homem sofre pelo homem,
como sofre por si mesmo. E este relato, o relato sobre o homem, de qualquer
maneira tem um fim, um limite. Como se fores por uma rua... que te agrada...
mas de qualquer modo terminas detendo-te. Claro que o relato sobre o homem
parece infinito, sempre se poderá falar do homem, porém, se sempre se fala
do homem com a ideia da palavra infinito, de repente entendes, que vasto!
Que já sofreste o suficiente, por ti mesmo, pelo homem, pela humanidade, que
te mortificaste demasiado, que te irritaste e tudo isto é mais do que suficiente.
Tens que se passar por todas essas coisas e depois que as tenha vivido,
compreendes que existe outra história, outro tema: o homem e... um outro!
Que já não é o homem. E esse outro é mais, é mais, é mais que o “demais”, o
único, a essência, é Deus! Então esse tema se converte no mais importante, ao
qual podemos dedicar toda a vida e que nunca termina. E no interior desse
grande e único tema desconhecido existe outro tema, o homem. Quando
comecei a me dedicar a isto diariamente, senti... que na arte... como para mim
mesmo... comecei a encontrar... (pausa com um suspiro) a luz! Como uma
purificação. Eu continuei na vida me mortificando e pecando como antes, não
transformei a minha vida, porém sei que a transformei na arte e essa mudança
na arte me transformou a vida. E essa possibilidade me outorgou o senhor,
Deus. Porque não fui eu por mim mesmo que a ele chegou, senão foi ele quem
me deu a oportunidade de abrir isto para mim. Abriu a porta e disse: sou eu,
preste atenção. E o faço mal, porque eu sou assim. Quisera poder fazer melhor,
ainda que eu tenha realizado coisas boas, excelentes. Porém no interior dessas
ideias, pode ser dentro delas, porém talvez não expressadas claramente. Pode
ser que sempre as tive, não sei. Porém, penso que tenho que fazer “algo” que
outros também considerem “algo”. Porque até agora tenho feito histórias que
para mim são histórias e outras pessoas, contudo, não as consideram como
162
tais, porque nessas historias que eu realizei para mim mesmo e não para os
outros não existe a ilusão, tão indispensável para os outros. Na arte não se
pode criar somente a partir de ideias puras, desgraçadamente. Não! Sim, se
pode! É necessário! Criar somente partindo de ideias puras, porém, então,
deves saber que estas histórias que consideras excelentes e grandiosas, outros
não as consideram excelentes e grandiosas, porque nelas não há suficiente
ilusão e necessitam mais. Para a humanidade são indispensáveis todos esses
enganos, todas essas evocações da vida cotidiana, todo esse humor que torna
suportável a vida cotidiana, tudo isso necessita a humanidade, muito mais que
algo ascético, sério, cru em sua limpeza e verdade. O homem tem essa
exigência. Dar como alimento somente pão, claro que o pão é o principio e o
fim, com o pão começamos e terminamos, porém ele quererá por manteiga no
pão e na manteiga colocar salchicha e outro alimento, além de algum outro
regalo, porque para ele não é suficiente o pão. Isso é surpreendente, ainda que
o pão componha toda a sua vida. Não, para ele é pouco, tem que dar-lhe algo
que lhe dê a ilusão de alimento, que contenha todos os sabores, cores, etc., etc.
Afinal, isso não é uma conversa sobre Deus, mas sobre o homem, o homem
como ele é, como ele se encontra no teatro. (VASSÍLIEV, 1997, Vídeo,
tradução em espanhol Alejandro Gonzalez e Emilio Oscar Alcalde. Tradução
própria)
163
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Introduction a la technique verbale par Anatoli Vassiliev (2001), realizado pela
Acamedie Experimentale des Theâtres.
Don Juan ou ‘O convidado de pedra” e outras poesias (1998), realizado por Teatro-
Escola de Arte Dramática.
169
ANEXO
CRONOLOGIA DE ANATÓLI VASSÍLIEV
FORMAÇÃO E PRIMEIRAS ENCENAÇÕES
4 DE MAIO DE 1942: nascimento em Penza, Rússia.
Faculdade de Química em Rostov-sur-le-Don.
Atividades teatrais na Universidade. Dois anos embarcado num navio
pelo Pacifico, em pesquisa oceanográfica no mar. Não termina a
faculdade. Prepara-se para o concurso do VGIK (Instituto Nacional de
Cinema) e para o GITIS (Instituto Estatal de Arte Teatral).
1968: Estuda direção teatral no GITIS com Andrei Popov e Maria Knebel.
1973: Solo para tempo de batalha (Соло для часов с боем), de O. Zagradnik, Teatro de
Arte de Moscou.
1978: Vassa Zheleznova – primeira versão, de Máximo Gorki, Teatro Stanislávski,
Moscou.
1979: A filha adulta de um jovem, de Victor Slavkin, Teatro Stanislávski, Moscou.
1981: O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, com Maria Babanova, espetáculo
radiofônico, Moscou.
1982: Oh! Les beaux jours, de S. Beckett, com Maria Babanova (1900-1982), Teatro de
Arte de Moscou, (projeto interrompido e não realizado).
1983: Rei Lear, de W. Shakespeare, com Andrei Popov (1920-1983), Teatro de Arte de
Moscou, (projeto interrompido e não realizado).
1983: Professor no GITIS, inicialmente como assistente de Anatoli Efros, depois, em
1985, torna-se titular da cadeira de direção.
1984-1985: Cerceau, de Victor Slavkin, La Taganka, Moscou.
170
ATIVIDADES NA “ESCOLA DE ARTE DRAMÁTICA”
(1987-2007)
1987
24 de fevereiro202: inauguração do Teatro “Escola de Arte Dramática” com estreia de
SEIS PERSONAGENS A PROCURA DE UM AUTOR de Pirandello.
Junho-julho: Primeira tournée europeia. Cerceau em Londres, Stuttgart, Rotterdam.
Setembro: Cerceau em Belgrado.
Dezembro: estreia de DUMAS, de Alexandre Dumas.
1988
Fevereiro: estreia do espetáculo baseado em OS DEMÔNIOS, de Dostoiévski.
Espetáculo de conclusão dos alunos do departamento “Hors les Murs”, do curso de
direção do GITIS.
Junho-Agosto: Seis personagens a procura de um autor, no Wiener Festwochen Festival
em Autriche, no Piccolo Teatro de Milão, no Festival de Avignon e no Split Summer
Festival, na Croácia.
Julho: Vis à vis, laboratório sobre Alexandre Dumas, em Miramas, França.
Setembro: A Escola de Arte Dramática vai à Berlim. Cerceau e Seis personagens a
procura de um autor em Theatermanufactur.
Outubro: Cerceau em Helsinki, Munique, Bruxellas e Budapeste.
Seis personagens a procura de um autor no Festival de Outono em Madri.
Anatóli Vassíliev recebe o prêmio Ubu em Milão, por melhor espetáculo estrangeiro com
Seis personagens a procura de um autor.
Estreia do trabalho de laboratório: SOIRÉE MAUPASSANT, SOIRÉE PIRANDELLO.
Dezembro: Cerceau no Festival de Outono em Paris (Bobigny).
Anatóli Vassíliev recebe o prêmio Stanislávski da Federação Russa.
Estreia do laboratório sobre OS DIÁLOGOS de Platão.
1989
Janeiro: Cerceau, Teatro Argentina, em Roma.
202 Meses ou anos marcados em negrito, indicam um ou mais textos, marcados em MAÍSCULAS, que foram encenados pela primeira vez, ou tiveram uma apresentação pública.
171
Fevereiro: Seis personagens a procura de um autor recebe o prêmio de melhor espetáculo
do ano no Festival de Barcelona.
Março: Seis personagens a procura de um autor em Palermo e Prato, na Itália.
Março-Abril: Conferência “A pesquisa é uma linha de fronteira”, em Udine, Itália.
Maio: estreia do espetáculo de conclusão do curso “Hors les Murs”, do curso de direção
do GITIS, OS DEMÔNIOS (segunda versão).
estreia do laboratório COLÓQUIOS, de E. de Rotterdam.
Julho – Agosto: Seis personagens a procura de um autor em Montreal, onde Vassíliev
recebe o prêmio de melhor direção e melhor espetáculo.
Seis personagens a procura de um autor em Londres, Nova York e México.
Setembro: Estágio de direção a partir das obras de Dostoiévski CRIME E CASTIGO, O
IDIOTA, OR IRMÃOS KARAMAZOV E O JOGADOR, no Künstlerhaus Bethanien
Center em Berlim.
Dezembro: estreia do LABORATÓRIO SOBRE OSCAR WILDE.
1990
Abril: Seis personagens a procura de um autor no Teatro Laboratório de Grotowski, em
Wroclaw, Polônia.
Estreia de ESSA NOITE SE IMPROVISA de Pirandello, no Festival de Fontanellato na
Itália.
Maio: Participação no primeiro semestre do projeto internacional L’École des Maîtres.
Julho – Agosto: Essa noite se improvisa, em Salzbourg.
Agosto – Setembro: Estágio de encenação, a partir de O Idiota de Dostoiévski no
Künstlerhaus Bethanien Center em Berlim.
Setembro: Estágio a partir de O Jogador de Dostoiévski, em Londres.
Outubro: participação no Simpósio Stanislávski em Moscou.
1991
Fevereiro: Estreia do trabalho de laboratório, Platão-Magritte, DIÁLOGOS.
Abril: Participação na Conferência sobre os Mestres do Teatro Comtemporâneo na
Universidade da Sapienza em Roma.
Estágio sobre Pirandello.
Maio: Estreia do trabalho de laboratório, CADA UM A SEU MODO, de Pirandello.
172
Junho: estreia do trabalho de laboratório, EU SOU UMA GAIVOTA, a partir das obras
de Tchékhov.
Julho: Conferência na Itália com Grotowski.
Dezembro: Participação no segundo semestre L’École des Maîtres: “A peça e sua
composição”, Udine, Itália.
1992
Janeiro – Fevereiro: VIS-À-VIS, a partir de O Idiota de Dostoiévski, projeto de
colaboração Moscou – Berlim, entre a Escola de Arte Dramática e o Künstlerhaus
Bethanien Center.
Fevereiro: Estreia do trabalho de laboratório SALOMÉ, de O. Wilde, projeto com o
laboratório dos teatros em Luzerne Suíça.
24 de fevereiro: soirée “performance”, aniversário do Teatro-Escola: A REPÚBLICA de
Platão, FIORENZA de Thomas Mann, O Idiota de Dostoiévski.
Estágio sobre BAL MASQUE de Lermontov, em Bruxellas.
Junho: encenação de Bal Masqué, Comédie-Française, com Valérie Dréville e Jean-Luc
Boutté.
Julho: Prêmio Pirandello em Agrigente, na Itália.
Estreia do filme em vídeo NO CAMINHO PARA CHATTANOOGA.
Dezembro: estreia do laboratório Soirée Molière, ANFITRIÃO e ESCOLA DE
MULHERES.
1993
Janeiro: Anatóli Vassíliev recebe o título “Artista de Honra” na Rússia.
Abril: Espetáculo a partir do laboratório JOSÉ E SEUS IRMÃOS, de Thomas Mann, no
Festival de Wroclaw na Polônia.
Maio: projeto entre A Escola de Arte Dramática e o centro Jerzy Grotowski.
Maio – Junho: estreia de CADA UM A SEU MODO de Pirandello. Projeto entre a
Escola de Arte Dramática e o Centro Teatro Ateneo em Roma.
Julho: estreia do espetáculo FIORENZA de Thomas Mann. Trabalho de conclusão do
curso de direção “Hors les Murs”, do GITIS.
Setembro: estreia do espetáculo JOSÉ E SEUS IRMÃOS de Thomas Mann, no Toga
Festival, Japão.
Estreia de FIORENZA com uma nova encenação.
173
Outubro: laboratório de Moscou, classes de Vassíliev no projeto “Laboratório mise em
scène” organizado pela Academia Experimental de Teatro, Festival de Outono e Teatro
de Rond-Point. Trabalho sobre Os Diálogos de Platão com atores franceses e russos.
1994
Fevereiro: estreia do laboratório CONVERSAS COM UM POETA.
Junho: Anfitrião de Molière, em Bratislava.
Estreia dos filmes para televisão KACHTANKA e O IDIOTA.
Julho: “Da palavra ao canto” seminário organizado pela Academia Experimental de
Teatro; estágio sobre O CONVIDADO DE PEDRA de Púchkin, em Verbier, Suiça.
Agosto: Estágio sobre Dostoiévski, em Bogotá, Colombia.
Setembro: Anfitrião de Molière, na Macedônia.
Outubro: “Das palavras aos cantos”, em Paris, conferência e apresentação de Anfitrião de
Molière.
Dezembro: Anfitrião em Taormina, Itália.
1995
Fevereiro: estreia do capítulo O SONHO DO TIO de Dostoiévski.
Maio: Anfitrião no Centro Grotowski na Polônia.
Junho: Anfitrião e estreia do espetáculo de laboratório soirées Púchkin (MOZART E
SALIERE, CENAS DE FAUSTO, O CONVIDADO DE PEDRA E OUTROS VERSOS,
DIÁLOGOS E INTERLÚDIOS, EUGENE ONIÉGUIN), no Teatrformen à
Braunschweig, na Alemanha.
Julho: participação na quarta sessão de L’École des Maîtres. Estágio “Estrutura da peça.
Análise da ação – ação em jogo”. Trabalho sobre MÉNON e ÍON de Platão, em Udine ,
Itália.
Agosto: ensaio aberto de ILÍADA de Homero, em Delfos, na Grécia.
Setembro: Estágio para atores franceses em Moscou. Trabalho sobre Os Diálogos de
Platão e sobre Tchékhov.
Vassiliev recebe o prêmio Stanislávski por sua contribuição à pedagogia teatral.
Outubro – Dezembro: Estágio no Centro de Formação para técnicos do Espetáculo em
Bargnolet, sobe o tema “Púchkin e Dostoiévski. Método para estruturar o diálogo como
uma prática fundamental da ação dramática” ( O convidado de pedra, O Idiota, Os
Demônios, A Gaivota).
174
1996
Janeiro: projeto em colaboração com o Centro Grotowski.
Fevereiro: estreia das LAMENTAÇÕES DE JEREMIAS (versão cantada do livro
Lamentações de Jeremias). Compositor Vladimir Martynov.
Março – Abril: Anfitrião em Bogotá, Colômbia.
Abril – Maio: laboratório de atores em Moscou, projeto organizado em conjunto com a
Academia Experimental de Teatro, classes com Anatóli Vassíliev.
Maio – Junho: Anfitrião no Festival Fabbrica Europa, em Florença, Itália.
Junho: Anfitrião, Lecce, Itália.
Eu sou uma gaivota e Eugene Oniéguin, em Bratislava, na Eslováquia.
Julho: Anatóli Vassíliev e Jerzy Grotowski em Paris.
Anfitrião, A Ilíada, 23 canto e O Convidado de pedra, em Volterra, na Itália.
Setembro: estágio sobre OS ESCLUÍDOS de Dostoiévski em Glasgow na Escócia.
Outubro: Conferência sobre Grotowski, em São Paulo.
1997
Janeiro: As lamentações de Jeremias, Taormina, na Sicília.
Abril: O convidado de pedra, no Centro Grotowski, na Polônia.
Maio – Junho: As lamentações de Jeremias, Hebbel-Theater, em Berlim.
Junho – Julho: ensaio aberto de Convidado de pedra e outros poemas de Púchkin na
Escola de Arte Dramática em Moscou.
Julho: Anfitrião e As lamentações de Jeremias, em Avignon.
Conferências sobre Anfitrião e ensaios abertos do 23º canto da Ilíada.
Agosto: A Ilíada, 23º canto, no Toga Festival, Japão.
Agosto – Setembro: 6ª sessão da École des Maîtres em Fagagna na Itália. Estágio sobre
O Jogador de Dostoiévski. Ensaios abertos em Fagagna, Roma, Paris, Bruxellas e
Moscou.
Outubro: conferência no projeto Academia Experimental dos Teatros “Teatro da
linguagem, A linguagem dos teatros”.
Novembro: conferência “O teatro de arte: escola e pesquisa” no Théatre du Vieux
Colombier em Paris.
175
1998
Fevereiro: estreia de CONVIDADO DE PEDRA de Púchkin, cenário de Igor Popov, na
Escola de Arte Dramática em Moscou.
Julho: participação no “3º fórum de teatro europeu” em Saint Étienne.
Agosto: As lamentações de Jeremias, em Estocolmo.
Setembro: As lamentações de Jeremias, na Estônia.
Dezembro: As lamentações de Jeremias, no Théâtre du Soleil, em Paris.
1999
Janeiro – Fevereiro: As lamentações de Jeremias, em Sevilha e Barcelona.
Março: conferência “A palavra e a ação”, na Espanha.
Março – Abril: estágio para atores franceses na Escola de Arte Dramática em Moscou,
assistido pelo pedagogo Vassili Skorik. Trabalho sobre PSYCHÉ de Molière, OS
DEMÔNIOS de Lermontov. O SIMPÓSIO de Platão.
Junho: prêmio da Federação Russa pelas artes e literatura, para Anatóli Vassíliev e Igor
Popov pela fundação da Escola de arte Dramática em Moscou.
Setembro – Outubro: K***, de Púchkin, no Teatro Molière, Maison da poesia em Paris.
Outubro: “Teoria e prática do diálogo de forma poética”, em Valência, Espanha.
2000
24 de fevereiro: estreia de MOZART E SALIERE, na Escola de Arte Dramática em
Moscou. Composição de Vladimir Martynov.
Abril – Junho: estágio com alunos da escola de Saint Étienne. Trabalho sobre AS TRÊS
IRMÃS de Tchékhov.
Maio: Convidado de pedra e outros poemas, para celebração do 40º aniversário do Centro
Grotowski na Polônia.
Junho: estreia de Matine Púchkin, na Escola de Arte Dramática em Moscou.
Julho: A República de Platão e As três irmãs de Tchékhov, em Delfos na Grécia.
Outubro: Mozart e Saliere, no teatro Valle, durante o Festival de outono em Roma.
Outubro – Dezembro: estágio na ARTA, Cartoucherie de Vincennes, trabalho sobre LA
FEMME D’UM AUTRE OU LE MARI SOUS LE LIT, de Dostoiévski.
Dezembro: conferência sobre Meierhold em Paris.
2001
176
Janeiro: prêmio “o triunfo” em Moscou.
Abril: a Escola de Arte Dramática se torna membro da União Europeia dos Teatros.
Abril – Julho: para as Olimpíadas do Teatro em Moscou, a Escola organiza um programa
internacional acompanhado de conferências “The Scythian slanting glance” (“Uma
viagem através das fontes da atividade espiritual humana, através das raízes mitológicas
do teatro e de suas tradições rituais e religiosas”).
4 de maio: Abertura do novo prédio da Escola de Arte Dramática, na rua Srtenka,
17-19, em Moscou.
Maio: estreia do trabalho de laboratório AS BODAS DE SANGUE de Federico Garcia
Lorca, na Escola de Arte Dramática.
Junho: estreia do trabalho de laboratório, LITANIA À VIRGEM MARIA, na Escola de
Arte Dramática, compositor Vladimir Martynov.
Estreia de MEDÉIA-MATERIAL de Heiner Müller, com Valérie Dréville, na escola de
Arte Dramática.
Estreia do filme de Anatóli Vassíliev “CHANTS ANCIENS. THE POSITIVE RUSHES”.
Dezembro: Medéia-Material em Paris.
2002
Março – Abril: Mozart e Saliere em Budapest.
Maio: Medéia-Material em Florença.
Julho: As lamentações de Jeremias, no novo teatro em Moscou.
Medéia-Material em Avignon.
ANFITRIÃO, de Molière, cenário de Boris Zoubov, Comédie-Française, Paris.
TRABALHOS FORA DO PERÍODO ESTUDADO NA TESE
2003: A Viagem de Oniéguin de Púchkin e Tchaikovisk.
2004: A Ilíada 23 º canção no Festival Europalia, Anvers.
2005: Medéia-Material no Théâtre des Amandiers, Nanterre.
2006: Mozart e Saliere em Budapeste.
Mozart e Salieri e A Ilíada 23 º canção no Festival de Avignon.
2007: Thérèse philosophe de Jean-Baptiste Boyer d'Argens, Théâtre de l'Odéon, Paris.
Julho: Anatóli Vassíliev apresenta sua demissão da direção da Escola de Arte
Dramática por não concordar com a política cultural.
177
2008: Medéia, de Eurípides, no antigo teatro de Epidauros, Grécia.
2009: O dia todo debaixo das árvores, a peça de Marguerite Duras. Teatro de Kaposvar
em conjunto com o Teatro Nacional de Budapeste.
2012: Anatóli Vassíliev retorna a Moscou para abrir uma extensão da Escola de Arte
Dramática. Projeto ainda em processo.
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