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Uma Comissão da Verdade?
Affonso Romano de Sant’anna
Em 9 de janeiro de 2011
Dizem os jornais que o governo vai instalar uma Comissão da Verdade com-
posta de sete pessoas para reconsiderar a nossa desastrosa história entre 64 e 84.
Acho isto uma temeridade. Primeiro, a presunção de que alguém ou um grupo
de sete pessoas possa saber o que é a "verdade". Segundo, porque até agora esse tema
tem sido tratado emocional e ideologicamente. O resultado está aí: cerca de quatro
bilhões de reais pagos às "vitimas" da repressão. Isto virou uma indústria. E louvo
os poucos amigos de esquerda que tiveram a coragem de recusar essa "indenização".
Se eu quisesse poderia também entrar nesse trem da alegria, pois também fui "preju-
dicado". Mas como disse num artigo há uns 20 anos, que causou problema com
alguns amigos equivocados, como medir financeiramente os choques, as porradas, a
aflição, a morte, o exílio e a desilusão?
Dizem que ex-presidentes, senadores, governadores, ministros, parlamentares,
entre milhares de outros, receberam essa "bolsa ditadura". Não quero nem mencionar
jornalistas e intelectuais que deveriam ter mais pudor. É um escândalo. Deveriam ter
devolvido o dinheiro. Ou na pior das hipóteses, encaminhando para uma instituição
de caridade. Com esse dinheiro todo, que não paga nem apaga qualquer chaga moral e
cívica, resolveríamos, no mínimo, o problema de não sei quantas as favelas brasileiras.
Tirante os que foram levados equivocadamente no arrastão da repressão, quem
entrou naquela guerra, entrou porque queria, porque acreditava. E guerra é guerra.
Eu vivi aquele período. Perdi amigos, convivi com inimigos. Sei do que estou falando.
Tentei até demover alguns amigos de que aquela aventura era um erro. Foi um erro à
esquerda e um erro à direita. Injustiças e equívocos dos dois lados. A tortura é abo-
minável, tanto quanto a ilusão guerrilheira de que você deve matar "sem perder
jamais a ternura".
Um dos reflexos da confusão mental e ideológica em que nos metemos é o caso
desse terrorista Battisti. Como brasileiro, sinto-me amargamente envergonhado do que
está ocorrendo. Como o Lula e seus juristas podem ser tão "expertos" e pusilânimes?
Isto se explica pelo contexto ideológico em que estamos. Há uma angelização
da velha esquerda, que faz com que muitos até hoje, sintam-se à vontade para conde-
nar o nazismo e o fascismo, mas silenciem diante de Stalin, Mao e outros.
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Outro dia, estava num restaurante em Madrid e um americano rico, sabendo-
me brasileiro, fez uma piada de mau gosto, mas infelizmente cruel e verdadeira. Dizia
ele que, se os negócios dele dessem errado, ele tinha um "plano b": fugir para o Brasil.
Estava jogando na minha cara, que isso aqui é o paraíso da impunidade.
Essa questão da "verdade" e da "história" é complexa. Estamos correndo o risco
de escrever uma "história oficial", de cima para baixo. Prefiro várias versões da histó-
ria à versão oficiosa. E a "neutralidade" é uma falácia. É possível que essa geração
que viveu o trauma de 64/84 tenha que desaparecer para que um dia outros falem dessa
época com mais isenção.
Os que estavam no poder entre 64 e 84 cometeram erros que hoje são públicos
e notórios. É fácil falar disto, sobretudo, "depois". O difícil, o arriscado e impreterível é
falar dos erros que, hoje no poder, estamos cometendo com as "melhores" intenções.
Observações:
1) Artigo publicado no Estado de Minhas e no Correio Braziliense de 9 de janeiro de
2011;
2) O autor é escritor e professor universitário, e, atualmente, é colunista do Estado de
Minas e do Correio Braziliense;
3) As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores e não representam, neces-
sariamente, o pensamento da ABD.
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