um novo messias
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I
Como havia previsto Ray Kurzweil nas
primeiras décadas do século XXI, homens e
máquinas iriam fundir-se, no máximo, até o ano
de 2045. É bom que se diga “no máximo”, pois a
previsão concretizou-se doze anos antes, com o
próprio Kurzweil recebendo a primeira aplicação
de nanorrobôs em seu organismo. A data era
aguardada por todos os veículos de
comunicação; os céticos duvidavam do próprio
sucesso da operação, enquanto ironizavam a
condição física do nostradamus tecnológico.
Questionavam-no se ele gostaria realmente de
ser imortal como uma ruína.
O Papa, o presidente americano Tedd
Haggard, juntamente com autoridades religiosas
de todo o mundo, proclamaram por todos os
cantos de que aquele ato seria uma afronta a
deus, o que acarretaria na autodestruição
humana. O que se viu, na verdade, foi o elixir da
vida agir diante das câmeras para todo o mundo
e o sorriso de Kurzweil, de orelha a orelha, abrir-
se como uma porta para os novos tempos.
Obviamente aquele não foi o fim da
discussão. O foco dos pessimistas passou da
eficiência da nanotecnologia para a eficiência da
nanotecnologia: se os nanorrobôs eram capazes
de se autorreplicar para manter as funções
biológicas humanas indeterminadamente, o que
os impediria de replicarem-se e migrar para
outros organismos biológicos, ou mesmo
espalharem-se por toda a superfície da Terra,
transformando-na num único ser onisciente. Esta
era a versão corrente, mais não menos
atormentadora, porquanto excluía da equação
qualquer forma biológica, portanto, o próprio
criador humano. No final prevaleceu a máxima
que diz “Antes que os homens desejem tornar-se
robôs, robôs desejarão tornar-se homens”. Nem
os inventores puderam prever que os
microrrobôs inteligentes limitar-se-iam aos
corpos das pessoas. Verificou-se posteriormente
que as máquinas eram atraídas pela emanação
de sentimentos humanos, o que fez com que
elas se concentrassem na manutenção do
hospedeiro – como tecnicamente ficou
conhecido o corpo semibiológico – para gozarem
das emoções tanto boas como más.
Assim como o espírito é
desconhecidamente irregular – talvez pela pouca
pesquisa na área –, algumas pessoas podem
não gostar da possibilidade de uma realidade em
que apenas existam jovens uniformemente
saudáveis. Os nanorrobôs se adaptaram ao
conceito de “idade psicológica”, conferindo ao
hospedeiro a aparência na qual, em sua mente,
se situava. A princípio, podem acreditar, alguns
indivíduos do tecnomundo morreram de velhice.
Pessoas que não estavam preparadas para
soltar as asas numa era onde a imaginação é a
única fronteira inimaginária: eram, na maioria,
senhores e senhoras de idade que acreditavam
não ter mais o que fazer por aqui. O que parou
de acontecer nos anos seguintes, quando os
mesmos nanorrobôs se encarregavam de ativar
as abismais áreas do cérebro que armazenam
os sonhos, as ambições esquecidas por
qualquer motivo.
Voltamos aos líderes religiosos acima, cuja
importância fora adiada para este parágrafo. Os
primeiros a demonizar os avanços científicos em
questão e também os primeiros a se
beneficiarem de suas aplicações, encontraram-
se na possibilidade de estenderem seus
domínios religiosos não só pelos territórios, mas
igualmente pela geografia infinita do tempo. O
discurso é que mudara: antes, o que era uma
afronta ao todo poderoso, a imortalidade fora
defendida como a natural maneira de não legar o
direito à vida somente aos pecadores, e que esta
seria a missão dos cristãos pela eternidade. O
Papa nega os boatos de que teria, ele próprio,
exigido a aplicação nanorrobótica em seu corpo;
assim também o foi para o papa evangélico
Tedd Haggard, que recebera a boa nova em sua
casa, dois dias depois de os exames de rejeição
em Kurzweil serem propagados pela televisão,
com resultados espantosamente positivos.
O mundo segue mais ou menos da mesma
forma. Alguns dizem que esta geração é a mais
importante que já existiu, muitos continuam a
dizer que estamos perto do fim, e a maioria paira
nas dúvidas daquilo que está por vir. Mas, alheio
ao futuro, nas areias da praia, está sentado um
homem no passado – é bom prestar atenção à
preposição “no”, que aqui indica lugar. Portanto,
este homem não é do passado, no entanto vive
nele.
II Este personagem, ainda sem nome por
não ter provado sua importância, revira as
memórias atrás da felicidade que possuíra. As
imagens a que assiste neste momento em suas
lentes de contato – outra maravilha tecnológica,
pela qual é possível acessar aos canais de tv e
todo o conteúdo de vídeos da rede e, como é o
caso, os arquivos visuais guardados na
memória. Estas lentes, portanto, são os objetos
que o separam deste futuro-presente. Exibem as
suas lembranças passadas, mais precisamente
em uma época em que se poderia dizer “feliz”.
Um passante pensaria estar ali um apreciador da
natureza, a passar horas observando o mar que
não muda, as ondas que não cessam de ir e
voltar.
O que não voltaria, nem com todas as
ondas, seria a felicidade estampada no seu
rosto, vista nas cenas reproduzidas pela lente,
nas quais se via ora numa festa de aniversário
ora em outra praia que não esta. A imagem mais
rebobinada (apenas com a força do
pensamento), no entanto, era a lembrança mais
antiga guardada de sua mulher, o momento
exato em que seus olhos, pela primeira vez, se
encontraram no porto: ele, voltando da última
temporada de pesca da sua vida, ela, de sua
última incursão financeiro-sexual antes de ter um
homem só para si. Apaixonaram-se naquele
mesmo instante. Ele decidiu ganhar a vida na
terra, perto de casa, e assim não ficar por muito
longe da mulher; ela, por sua vez, decidiu
ganhar a vida honestamente, para não manchar
a Terra. Foram felizes, como são felizes os
casais cujo amor parece não ter fim. Fizeram
planos e juras, também os concretizaram;
viajaram quando o dinheiro e a ocasião
permitiram. A família os visitava, ainda que
contrariados pela decisão do filho de ter como
mulher alguém de passado tão vergonhoso, e
por isso mesmo não incentivava o casamento.
Ela não tinha família, exceto aquele que era seu
companheiro, amigo, pai e filho.
Viveram a felicidade enquanto o tempo ljes
permitiu. A vida indigna tirou dela os anos e a
saúde, e Josué – agora que tem uma história, já
merece um nome – viu a pessoa que mais
amava morrer, poucos anos antes da revolução
nanorrobótica estar concretizada. Os sogros
viram, não sem certa felicidade, a mancha que
sujara o nome pelo qual tanto zelaram apagar-
se, sem deixar qualquer vestígio de que alguma
vez figurara naquela tão respeitável família
cristã. Quanto ao filho, imaginaram que alguns
meses seria o necessário para fechar a ferida
que o impedia de levar a vida adiante. As
previsões da vida às vezes falham, assim como
as previsões do tempo: Josué insistia em morar
sozinho, junto às coisas de sua falecida mulher,
junto ao jardim que tão bem cuidaram juntos, e
que hoje cresce livre pela vontade da natureza.
A família, quando a tecnologia a permitiu,
chegou mesmo a cogitar com o filho a clonagem
da antiga nora. Para isto bastaria coletar o DNA,
depois Josué se encarregaria de disponibilizar
as lembranças que possuía da mulher; seria
mesmo possível a correção de algum defeito de
personalidade, de caráter (esta mais importante
para estes pais) ou mesmo uma irregularidade
física. Ideia prontamente aniquilada pelo filho, o
qual, de alguma maneira misteriosa, sabia que o
clone, por mais fiel e verossímil que fosse, por
mais capacitada a mão de obra geneticista, não
seria a sua mulher.
Neste ponto, o leitor vai se perguntar se
este é o caso de deixar o personagem morrer à
míngua ou, no pior dos casos, por que o tal
simplesmente não tira a própria vida, já que este
sofrimento o devora. Seria o caso se o destino
ou o narrador não fosse demasiadamente cruel.
Como foi explicado no capítulo anterior, os
nanorrobôs, atraídos pelas emoções humanas,
não tinham por que se ploriferar além dos
respectivos hospedeiros; por outro lado,
igualmente não tinham motivos para se limitarem
aos corpos nos quais foram injetados. O que
historicamente conheceu-se como “Imigração de
Ferro” foi nada mais que o deslocamento
nanorrobótico para campos inexplorados ou
ainda o descontentamento com a falta ou
escassa produtividade de (des)afetos de seus
hospedeiros originais. Nesta mesma época
cresceu o número de inadimplentes que ainda
pagavam pelas aplicações de nanorrobôs em
clínicas de estética, como também os processos
de reembolso pelos primeiros nanorrobotizados.
Aqui valeu outra explicação histórica: o termo
“Imigração de Ferro” não foi escolhido por conta
da composição física das máquinas, mas, sim,
porque um cientista afirmou na época do
fenômeno que não havia jeito de interromper o
processo. A ironia fica aí por conta da mesma
história, que tantas vezes fizera os homens
perseguir os cobres em outras terras e agora faz
com que máquinas persigam o que estes
sempre tiveram de mais banal e valioso: a
consciência.
Portanto, após estas instrutivas
explicações históricas do futuro, concluímos que
também Josué foi alvo da expansão das
máquinas, com a devida consideração de
dizermos que ele é um farto banquete para
quem se alimenta de emoções, boas e outras
não muito boas, no corrente estado das coisas
para ele.
III
Primeiro eram as muitas horas em frente
ao mar e o regresso a casa com a chegada da
noite, depois o total esquecimento do conceito
“casa”, que tanto podia significar seu sofá como
uma construção abandonada para refugiar-se
dos elementos. Não demorou para que também
os conceitos de “hora”, “dia” e “humanamente
aceitável” fossem levados com a maré, tanto que
alguns banhistas o tomassem por um sem-teto,
a julgar pelos andrajos e pela assiduidade com
que frequentava o lugar. E não havia nenhum
conhecido seu que pudesse defendê-lo dos
maus olhares, das palavras degradantes com
que era levianamente julgado, pois todo o seu
tempo naquela vizinhança, todos seus esforços
tinham sido postos em favor de sua condição de
parceiro, para melhor atender as necessidades
básicas da vida de casal, o que significa também
várias horas-extras de dedicação e carinho para
a mulher. Era um casal jovem, numa nova vida,
contra as adversidades de ser um casal. Nem
sequer puderam alcançar o posto de “bons
vizinhos”. Outras pessoas, mais sensíveis,
depositavam alimentos para o indigente, sempre
intocados por Josué. Alheio ao que se passava,
diversas vezes fora surpreendido, ao acordar,
por pratos com comida estragada ao seu redor,
sem nem ao menos juntar as peças para concluir
que o julgavam mendigo.
Por causa da inanição, os nanorrobôs
trabalhavam dobrado no hospedeiro Josué para
receberem seu bendito sustento emocional.
Havia mesmo uma classe particular de máquinas
responsável pela manutenção de combustível no
corpo daquele homem, que se autorreproduziam
para servirem de alimento. Por si só, este seria
um gesto exemplar de sacrifício pelo bem
comum para a cultura humana, mas o fato é
desconhecido ainda hoje, inclusive pela ciência,
por conta, simplesmente, de o nosso
personagem ser de desconhecimento geral na
comunidade acadêmica. A informação, mesmo
não se tratando este texto de um artigo, não é
desnecessária, bastando como argumento o fato
de termos, em todos os tempos, a dificuldade de
alimentarmos todas as bocas do mundo, umas
mais que as demais.
Terminemos o assunto gastronômico –
pois nem só de comida vive o homem – e
tratemos de outros coadjuvantes. Neste caso,
um ocasional ambulante que, entre outros
produtos, oferecia rosas na orla em ocasiões
especiais aos casais inspirados. Numa data
particularmente lucrativa, um provável dia dos
namorados, pela primeira vez reparou no traste
Josué encarando o horizonte. Seus olhos
tumultuados pareciam cobrar alguma resposta,
ao mesmo tempo em que lamentava a falta dela.
O ambulante, conhecedor de causa, soube
diagnosticar em instantes que o que ali se via
era causado pelo ainda sem tratamento “mal de
amor”. Fazendo valer, mais uma vez, seu
diploma na universidade da vida, o florista
(naquele dia era florista) entendeu que de nada
adiantaria desviar o homem de seus lamentos,
mas depositou algumas rosas ao lado do rapaz,
talvez para demonstrar sua compaixão ou por
acreditar que a presença desta categoria de
plantas possa beneficiar aquele lastimoso
homem com suas propriedades simbólicas.
Poderia ser Josué agora confundido com
alguma entidade religiosa, com algum penitente
a implorar a remissão dos pecados inerentes à
humanidade, que já os possuía antes ainda de
existir o termo. E foi assim, como penitente, que
uma turista que passava o fim de semana
naquela praia viu Josué rodeado de flores e
comida. Fosse pela sua religiosidade ou pela
data (agora sabemos que foi mesmo num dia
dos namorados), que amplifica a sensibilidade
feminina, se sensibilizou com a devoção do
decrépito. Sem desconfiar do real motivo da
penitência, correu a chamar seus familiares para
conhecerem um legítimo mártir. Enquanto os
parentes admiravam a situação nada agradável
do homem, a primeira turista, que naquele
momento mais se parecia com uma guia de
vigem, exaltava a “Simplicidade de um homem
que escolheu viver da doação dos piedosos,
para fazer florescer a bondade nos corações”.
Algumas crianças já haviam começado mesmo a
chorar, não pelas lições que aprendiam (estas
igualmente dignas de choro, se você descobrir
em tenra idade que precisa chegar a tal estágio
de decadência para tornar-se um exemplo de
fé), mas pela cena grotesca que transcorria no
corpo daquela estátua, onde os crustáceos
faziam morada. Alguns deles passeavam por
debaixo da camiseta maltrapilha, colocavam as
órbitas para fora de um orifício para, depois, se
esconderem novamente por baixo das roupas.
À família juntaram-se banhistas, curiosos
de verem a aglomeração e mais curiosos ainda
ao verem Josué rodeado de tantas oferendas.
Não tardou que houvesse fome, incluindo da
parte da guia, que a esta altura já dizia sermões
sobre votos de pobreza; trajando sua melhor
roupa de viagem, só dava uma pausa para pedir
que lhe trouxessem aqueles mariscos daquele
ótimo restaurante próximo, que ela tanto
gostava. Não tardou o momento de os
ambulantes notarem que nem todos da multidão
eram tão abastados e que haveria demanda por
alimento. Como a propaganda é a alma do
negócio, alguns desses mesmos ambulantes
começaram a espalhar pelas redondezas, entre
uma venda e outra, que havia ali um homem
santo, o que resultou num maior número de
curiosos e no aumento da lucratividade.
Camisetas com o rosto de Josué,
propositadamente alterado para lhe conferir
mesmo algum ar de santidade, começaram a
circular por um preço justo (para os turistas).
Foram os flashes das câmeras amadoras,
entretanto, que o fizeram submergir de seu
transe. Acordou surpreso, ao lado de duas
meninas que posavam para foto; mais adiante,
uma fila de pessoas que aguardavam pela sua
vez de obterem uma lembrança inesquecível
daquela paragem. Sem dizer palavra alguma,
Josué levantou-se e se dirigiu diretamente para
sua casa.
IV Não é necessário dizer que parte da gente
que acompanhava o martírio na praia estava
igualmente interessada em saber onde aquele
misterioso homem vivia. Apenas por curiosidade,
é bom saber que algumas pessoas imaginaram
tratar-se de uma localidade insólita: uma gruta
dentro da floresta próxima, iluminada por velas,
um pequeno templo adornado por arabescos,
repleto de imagens sagradas; alguns chegaram
a desistir da empreitada por suporem que havia
muito que caminhar. Os fantasiosos quebraram
a cara diante de uma casa comum, exceto pela
falta de cuidados, isolada das demais casas
somente por alguns minutos a pé. Foram
barrados todos do lado de fora, com uma nuvem
de perguntas pairando sobre suas cabeças.
Josué, que seguia em direção ao quarto,
desejava apenas abandonar o corpo em sua
cama abandonada, sem atentar ao burburinho
que se seguia do lado de fora da residência.
Com metade do corpo já na cama, foi
interrompido pelo trovejar seguido de uma chuva
torrencial que golpeava contra o telhado, o que o
fez pensar, pela primeira vez, naquelas pobres
almas ao relento. Abriu-se a porta aos
desesperados, enquanto Josué retornou para
seu repouso no quarto acima. Fechou os olhos
exaustos e a última palavra que ouviu antes de
adormecer, vinda entre as muitas vozes do
andar inferior foi “piedoso”.
Acordou sobressaltado no meio da
madrugada. Tivera um sonho em que o Sol, ao
nascer, varria tudo o que havia na face da Terra,
lambia com chamas as derradeiras fotos de sua
mulher, deixando-o sozinho no mundo, sem
merecer, ao menos, o abraço da morte. Josué,
ao levantar-se, guardou para si um dos poucos
retratos que restara de sua mulher, sobrevivente
de seus acessos de raiva durante sua recém-
viuvez. Saiu para observar o nascer do dia, no
fundo esperando para que este Sol fosse o
mesmo Sol que tudo varria em seu sonho. Não
era. E no retorno torceu para que os espremidos
hóspedes já tivessem partido - por nenhum
momento procurou juntar os fatos para entender
os acontecimentos do dia anterior.
Encontrou a porta da sala trancada, e com
pesadas pancadas assustou o séquito;
acordaram prontamente para atenderem a quem
chegava, nada menos que o próprio anfitrião:
“Perdoe-nos, senhor, por o termos deixado fora
de sua própria casa!” Caídos sobre seus pés,
Josué seguiu ao quarto, onde tratou de restaurar
a decência. Tomou banho, trocou de roupa;
sentou-se na cama esperando pela saída dos
que (por motivo desconhecido) ainda o
aguardavam. Lá embaixo, as pessoas se
questionavam de que maneira foi possível ele
surgir do lado de cá da casa, quando todos eram
testemunhas de tê-lo visto subir as escadas na
noite passada. Como de costume, pessoas não
se julgam no direito de bisbilhotar a intimidade
alheia, quanto menos a casa de outrem, do qual
nem sabem o nome. Bastaria para elucidar o
mistério que alguém, qualquer um, tivesse
explorado os cômodos para descobrir que ali
existia uma porta para os fundos, utilizada por
Josué durante a madrugada, a fim de evitar os
espremidos. A versão que se veio a conhecer,
contada pela velha senhora responsável por
imaginar a casa um templo com incensos e tudo
o mais, foi a de que teria Josué flutuado por
entre os corpos amontoados, pelo único motivo
de não perturbá-los. Foi seu primeiro milagre
notoriamente reconhecido.
As pessoas continuam lá embaixo, e Josué
decide que é hora de ir embora, ainda que
queiram tomar para si o lar onde uma vez foi
feliz. À entrada da casa, percebeu que mais
alguns indivíduos haviam sido somados ao
grupo; velas e imagens e estátuas obstruíam a
passagem. Impaciente de tantos obstáculos,
Josué mandou pelos ares, aos chutes, uma
legião inteira de anjos e santos. Podem imaginar
que terminou por aqui, com este gesto, a vida
beatífica de nosso personagem, mas seria
subestimar demais da fé desta gente que
acabara de crer no milagre da levitação. Ao
contrário, afirmou um grupo mais fervoroso –
vemos aqui a formação do núcleo apostólico –,
aqueles pontapés não representavam um ato de
heresia, todavia uma nova ordem religiosa,
consagrada àqueles que seguissem o caminho
daquele homem. Este trecho da história pode ser
de difícil digestão ao leitor, ou mesmo forçosa a
sua veracidade, devido o grau da afronta contra
as forças celestes, mas com pouca pesquisa irá
o leitor desconfiar que também Maomé deve ter
dado dos seus pontapés em Meca, quando
destruíram os ídolos nos templos daquela
cidade.
V
Sob a luz da manhã sem nuvens, Josué
iniciou a peregrinação com destino incerto; seu
rebanho o acompanhava. Separados apenas por
algumas passadas de distância, o povo
ruminava os desígnios da viagem, as prováveis
provações, as possíveis gratificações para
aqueles que a concluíssem. O núcleo apostólico,
que para este fim serve, tomou a dianteira na
construção cartográfica do paraíso, esboçando
paisagens e deleites sem fim para os bem-
aventurados merecedores. As ideias, neste
sentido, ainda engatinhavam. Este “céu” – que
não poderia receber este nome, devido à
exploração espacial a cada dia mais audaciosa –
deveria localizar-se a pelo menos mil anos da
capacidade tecnológica de alcançá-lo, ou, para
anular uma contestação futura, existiria somente
nos domínios da fé, ou seja, na religiosa
imaginação humana.
Algum leitor mais exigente vai notar uma
incoerência no fato de as pessoas almejarem a
vida eterna quando a mesma eternidade já havia
sido obtida através da ciência, com a ajuda da
nanotecnologia. Faz-se necessário, mais uma
vez, interrompermos as linhas que compõem
estes fatos históricos, para não se perder a
clientela. É verdade que as mortes ocasionadas
pela velhice e os problemas decorrentes dela
haviam se extinguido por completo, por outro
lado, os acidentes e, principalmente, a natureza
destrutiva do homem não. É de se imaginar que
por este tempo as armas de fogo e os métodos
utilizados para a interrupção da vida evoluíram
conforme as renovações tecnológicas. Mesmo
as antigas espingardas de cano duplo podiam
ser adaptadas – para deleite dos que gostam
das coisas à moda antiga – com cartuchos que
emitem pulso eletromagnético, desligando
temporariamente os nanorrobôs, para então abrir
um buraco do tamanho do punho fechado no
peito de algum desafortunado, sem qualquer
chance de regeneração. Os que assim morriam,
poderiam considerar-se com sorte.
Os governos costumam utilizar técnicas
mais tenebrosas para anular dissidentes ou
controlar a já alta densidade demográfica. Neste
segundo caso, os alvos são pessoas cuja
existência é tida como inútil ou dispensável para
a manutenção saudável da sociedade, na
maioria das vezes pobres e artistas – estes
últimos pela dupla falta de serem artistas e
pobres. Um dos procedimentos mais comuns é a
aplicação dos “nanorrobobos” – como ficaram
popularmente conhecidos -, que nada mais são
que outra espécie de nanomáquinas, mas com a
diferença de serem controlados por computador
e descartados após completarem a tarefa para a
qual foram designados. Elas primeiro destroem
as já instaladas máquinas do hospedeiro –
ambos reconhecidos como alvo – eliminando
suas defesas, e depois o comem, literalmente,
vivo.
Os casos de suicídio são raros, mas o
governo se dispõe a interromper o sofrimento
dos descontentes com todo o suporte
necessário. O último de que se tem
conhecimento, caso um tanto popular, é o do
astronauta japonês, participante de uma missão
de pesquisa geológica em Mercúrio, que
desacoplou o módulo de emergência da nave
espacial e se lançou em direção à nossa estrela,
após receber a notícia via celular de que seu
filho fora reprovado no exame vestibular. A
história já seria suficientemente triste, não fosse
descoberto, mais tarde, com a revisão da prova,
que o garoto havia obtido nota suficiente para o
ingresso na Universidade de Astrogeologia de
Tókio.
A esta altura, a procissão havia evoluído
bastante – não nos demos conta disto pelo
simples motivo de termos sido distraídos com
detalhes de menor importância –, e aos
primeiros fiéis, outros foram atraídos, tanto que o
grupo não se limitava mais ao estreito
acostamento da estrada. Josué só pensava em
quando aquelas pessoas insistentes desistiriam
de persegui-lo, quando poderia estar novamente
a sós com suas lembranças, pois seria incabível
que tivessem o físico e o espírito
inquebrantáveis. O espírito podia até ser, o
físico, porém, provou-se que não: numa curva
acentuada da estrada, um carro distraído
(“Estava no piloto automático”, defendeu-se mais
tarde o proprietário) atingiu uma retardatária
senhora na multidão. Ao tempo em que corriam
para socorrê-la, Comé – note-se que este não
era seu nome verdadeiro, mas a alcunha que
recebera por toda vez iniciar seus
questionamentos com os vocábulos “como” e “é”
sincopados –, o cético de plantão, tratou de
duvidar da capacidade de seu profeta diante dos
apóstolos: “Comé que nosso senhor vai se safar
desta, é o que eu quero saber?” Josué,
assustado com o barulho da batida, correu a
verificar o estado de saúde da velha, que não
era nada bom. O choque com o carro
arremessou o corpo direto no asfalto, e a idosa
foi dar com a cachola no chão. Segurando o
corpo desfalecido em seus braços, Josué
verificou uma grande ferida aberta na parte
esquerda da cabeça, pela qual escorria sangue
em profusão, e que, se não recebesse
atendimento prontamente, resultaria na morte
daquela desafortunada. Desesperado, Josué se
lembrou das palavras vaticinais do pai, quando
do começo de seu relacionamento “Esta mulher
só vai lhe trazer problema”, e berrava abraçado
ao corpo “Por quê, pai?!” Suas lágrimas iam cair
diretamente na fonte de todo o sangue; de
repente, uma pequena nuvem cinza apareceu de
seu colo, onde apoiava a cabeça da senhora, e
pairou sobre o ferimento, que, acreditem, se
fechou no mesmo instante, milagrosamente.
Mulheres estavam aos prantos, pessoas
abraçavam-se ou se ajoelhavam com as mãos
para o alto dizendo “Obrigado, Pai!”, todos
desorientados diante da cena. A senhora, ao
abrir os olhos, não pensou em nada mais criativo
a dizer senão “Qual é o teu nome, filho?”; ele,
cujo pensamento ainda estava às voltas com as
palavras que dissera seu pai alguns anos antes,
não teve o que responder senão “Josué”.
VI Não nos deixemos enganar pelo suposto
“milagre das lágrimas curativas” – como
posteriormente ficou sendo chamado o episódio
– para não cometermos o mesmo erro ingênuo
daqueles que presenciaram o episódio.
Recorramos, mais uma vez (e não pela última
vez), à ciência, que a tudo explica, ou, se não
explica, é porque não é chegado o momento,
pois o que seria do espírito humano não fossem
as perguntas para motivá-lo a seguir viagem... O
até então misterioso fenômeno da “nuvem
cinza”, responsável pela cura instantânea da
chaga recuperada, nada mais era do que a
migração em grande escala dos nanorrobôs
localizados no estômago de nosso mártir,
aqueles mesmos nanorrobôs designados a
suprir, através do sacrifício, as refeições que
Josué há algum tempo não conhecia. As
máquinas que trabalhavam em sua capacidade
máxima, sem sucesso, para a restauração dos
tecidos da hospedeira, enviaram o alerta para as
colegas mais próximas (no caso, as
nanomáquinas excedentes do estômago de
Josué). A comunicação se deu por meio de um
mecanismo muito parecido com as sinapses que
ocorrem em nosso cérebro, porém utilizando o
contato físico dos hospedeiros como
neurotransmissores.
Pronto, explicado está o mistério da fé. O
que não se faz necessário explicar, no entanto, é
a imperiosa fome da qual foi
surpreendentemente acometido Josué após o
ocorrido. Pela primeira vez pensou nas
condições extenuantes por que passavam seus
seguidores, que o acompanhavam por um longo
caminho, debaixo de sol forte, cuja sensação de
calor era agravada pelo impiedoso asfalto da
estrada. Seus olhos passeiam pela multidão:
muitos ali são crianças ou idosos, outros muitos
carregam crianças de colo. Passou pela sua
cabeça a probabilidade certeira de que deviam,
como ele, estar famintos e mais ainda sedentos
por algum refresco – perceba que não só de
alimento para a alma vive o homem.
Por sorte, ou por vontade do narrador,
havia ali nas proximidades uma lanchonete, filial
da maior rede de fast food do Sistema Solar,
com acesso para o motorista que vinha na
direção contrária da rodovia. Dirigiu-se para lá
Josué, e com ele seu séquito, que permaneceu
do lado de fora do estabelecimento. Estava
vazio. Uma jovem saiu por uma porta ao lado do
balcão para atendê-lo, a mesma que figurava
sorridente num quadro onde se lia “funcionária
do mês”. Notadamente aborrecida e sem o
sorriso que sustentava na foto, ela media Josué
de baixo para cima, esperando que este falasse:
“Gostaria que você nos servisse.” Sem prestar
muita atenção às palavras de Josué, a atendente
retrucou como se já houvesse formulado antes a
frase “Ah, é mesmo... E qual vai ser a forma de
pagamento?” Constrangido, Josué tentou
argumentar que eles haviam caminhado por todo
o dia, a pé, e que não tinha meios como pagar.
“Olha aqui, seu vagabundo, eu tô fazendo o meu
serviço e você vem aqui me encher o saco! Pode
ir embora que eu não quero ouvir sua história!”
“Mas há pequenos e idosos entre aquelas
pessoas...” “É o seguinte: ou você sai daqui
agora, ou eu chamo a poli...”
A funcionária do mês (que, por sinal, era a
única a trabalhar no lugar) interrompeu a frase
quando se deu conta da quantidade de gente
que adentrava o estabelecimento, atraídas pela
discussão que até então se desenrolava em seu
interior. “Quantos são, senhor?”, perguntou
amedrontada a jovem, que pensou estar sendo
vítima de um arrastão. Josué só foi entender a
mudança de tom repentina na voz da atendente
ao perceber, atrás de si, metade dos curiosos
peregrinos, acotovelados entre mesas e
cadeiras. “Somos uns duzentos.”
A jovem não demorou a mostrar serviço
para parecer diligente. Ligou a máquina de
montar lanches – orgulho das redes de fast food,
responsável pela redução em 40% dos gastos
com mão-de-obra –; em cada compartimento,
começou por colocar os respectivos
ingredientes: parte superior do pão, hambúrguer,
queijo, alface, bacon, parte inferior do pão; as
bisnagas contendo condimentos trabalhavam a
todo vapor. Por uma esteira, os lanches saiam
prontos para consumo, e não havia a
necessidade de a funcionária fazer a distribuição
dos alimentos, pois, antes que estes chegassem
ao fim de seu percurso, uma mão faminta surgia
para agarrá-lo para que não fosse ao chão. Os
refrigerantes também começaram a aparecer por
sobre o balcão, para alegria das bocas sedentas,
e a garota quase ficou maluca quando alguns
fiéis mais inconvenientes iniciaram a exigir mais
opções no cardápio. Esses mesmos fiéis, na
maioria das vezes, comiam por mais de uma
pessoa, o que obrigou alguns a dividir a já pobre
dieta a qual se submetiam.
A noite havia ocupado seu devido lugar na
trajetória do dia, e a Lua deixava-se refletir no
inconstante espelho negro do mar. Os
acontecimentos separavam Josué das areias da
praia, onde foram depositadas tantas lágrimas, e
agora só podia imaginá-las no sopé da
montanha. Novamente recorria às suas lentes de
contato, agora para relembrar a viagem
romântica à Lua, paraíso dos poetas e
apaixonados, que realizara com sua falecida
mulher – fruto de muitos meses de economia e
jornadas duplas de trabalho. O lugar não era tão
interessante como a imaginação o fazia parecer,
não tinha a mesma riqueza de cores da Terra, o
brilho, não tinha uma natureza própria, só
crateras e mais crateras na imensidão cinza. A
colonização humana se esforçava em torná-la o
mínimo atraente com construções faraônicas e
cassinos iluminados. Durantes as festas de fim
de ano, bilhões de luzes eram espalhadas por
sua superfície e ela pairava como um pequeno
enfeite de árvore natal no céu noturno. Um poeta
realmente afirmou “A Lua é como um amor
platônico: só funciona à distância”. Mas tudo isso
não importava a Josué, cuja atenção era
consumida nas lembranças dos olhos de sua
mulher, sejam eles voltados para a Terra como
para a Lua.
Com o estômago satisfeito, a chegada da
noite também trouxe o cansaço para o corpo
exausto de nosso personagem, que fazia
considerações sobre o lugar onde descansaria.
Retomou o caminho da estrada e atrás vinha a
procissão, muitas das pessoas ainda digerindo
seus lanches e agradecendo em oração pelo
pão que seu senhor lhes prouvera. Após quase
meia hora de marcha, Josué encontrou um sítio
ao lado da via, que seria minimamente
apropriado para restabelecer as energias.
Enquanto dormia, uma fogueira foi acesa no
acampamento improvisado a céu aberto; alguns
palestravam sobre o significado da ceia coletiva
“Nosso senhor Josué tira dos poderosos para
beneficiar os desvalidos”; um outro fiel mais
fervoroso afirmou mesmo “Somente terão
alimento, tanto do corpo como da alma, os que
seguissem os passos daquele homem”, e jurou
jamais se separar dele enquanto vivesse. Este
mesmo fiel, que fervorosamente proclamou
estas palavras, haveria de negá-las três vezes
antes que o galo cantasse quando questionado
se conhecia seu senhor. Alguns dos presentes –
assim o afirmaram mais tarde – ouviram a voz
de Josué chamar-lhes através das chamas
durante aquela noite, mas a provável explicação
para isto é a de que ele falava ao dormir.
Os historiadores afirmam ter sido em volta
desta fogueira o exato momento da inauguração
da “nova religião”, quando foram discutidos seus
primeiros preceitos e lições.
VII
Não havia Josué atingido as máximas
altitudes da terra dos sonhos, cujo corpo jazia
descansando na grama silenciosa, quando teve
seu sono abruptamente perturbado. A jovem
funcionária, que acionaria a polícia caso o
vagabundo não fosse embora do
estabelecimento, o fez tão logo o grupo seguiu
viagem. Chegou mesmo a pensar o contrário,
em deixar o assunto por terminado, já que não
sofrera nenhum tipo de ameaça física, sequer
verbal, mas os custos que teria de arcar seriam
suficientes para perder algumas semanas de
salário (isso se ainda lhe sobrasse o emprego).
Os policiais que primeiro chegaram para
atender a ocorrência estranharam o fato de o
“bando de saqueadores” não ter levado o
conteúdo da caixa registradora, pois aquele seria
o alvo natural de qualquer um, ainda mais se
tratando de assaltantes. Contentaram-se com o
estado do lugar, que então parecia ter sido
visitado por um furacão, a julgar pela quantidade
de sujeira espalhada pelo chão, tanto dentro
como fora da lanchonete. E foi também através
do rastro de sujeira despejado feito trilha de
biscoitos ao longo da estrada que, depois de
haverem coletado informações suficientes para
determinarem o provável cabeça do grupo e o
expediente a ser mobilizado, encontraram o sítio
onde acampava a procissão. A tarefa de
localizarem o líder foi igualmente facilitada pela
maneira como se encontravam dispostas as
pessoas do acampamento: todas juntas
formavam um círculo ao redor do homem cujas
características informara a funcionária do
restaurante. As facilidades, no entanto,
terminaram por aí, como vai se ver a seguir.
Ao acercarem-se do local, os policiais se
dirigiram a Josué, que nada havia percebido.
Não foi o grupo mais fervoroso, nem os
fisicamente mais capacitados dos jovens que
impediram o avanço dos policias, formando uma
barreira humana entre eles e o seu salvador, e,
sim, as mulheres e idosos, cegamente
determinados a defendê-lo, qualquer que fosse a
ameaça. Eles retrocediam ao som dos disparos
das armas, para então avançarem novamente na
direção dos policiais, os quais se viam de
repente obrigados a defenderem a si próprios.
Conforme os ânimos se alteravam ainda mais,
os agitadores de ocasião sentiam-se à vontade
para apedrejar e arremessar pedaços de
madeira e pedras na direção das quatro viaturas
estacionadas no acostamento, que agora
funcionavam como barricadas para os homens
da lei.
Quando o batalhão das forças especiais
chegou ao lugar do tumulto, veículos de diversas
emissoras vieram cobrir a ocorrência; um cordão
de isolamento foi colocado ao redor do grupo,
para que ninguém se evadisse da área. Os
canais agora cobriam o tumulto que bloqueava a
estrada, e as informações eram transmitidas em
tempo real para aparelhos de tv, computadores e
celulares. “Estamos aqui com o comandante do
batalhão de forças especiais, que é quem vai
nos dar mais informações sobre o caso:
Comandante, o que aconteceu?” “Bom dia.
Recebemos um chamado de reforço por parte da
polícia, que foi agredida ao tentar efetuar a
prisão do suposto líder do grupo.” “E sob qual
acusação o indivíduo é acusado?” “Formação de
quadrilha, roubo, entre outros. Mas a informação
que nos foi passada é de que este ajuntamento,
na verdade, se trataria de uma espécie de
peregrinação religiosa. Ainda assim, temos de
levar os meliantes para prestarem contas sobre
as acusações, e estamos aguardando novas
ordens.” “Muito obrigada, comandante. A
qualquer momento, voltaremos com mais
informações.” Como não demonstravam
demasiado perigo, alguns repórteres se
atreveram a romper o perímetro e entrevistar os
manifestantes, ávidos por obterem alguma
exclusividade; os entrevistados repetiam o
discurso, e, quase com palavras idênticas,
diziam seguir um homem santo, instrumento de
seu pai, que operava milagres através dele.
Isso mudava as coisas de figura: o que
antes era um cerco a criminosos, passou a ser
noticiado como “O retorno do Messias ou
charlatanismo?” – o suficiente para provocar
comoção e atrair todo o tipo de gente ao local.
Cada vez mais testemunhos e depoimentos
sobre as lições do senhor Josué eram levadas a
público; a velha, em cujo milagre fora realizado,
era exibida para todas as câmeras como um
objeto de curiosidade. Quando perguntada sobre
a religião a que seu senhor submetia-se, outro
fiel mais devotado tratou de dizer o que qualquer
representante religioso aguardava para
pronunciar-se publicamente: nenhuma,
seguimos o caminho de nosso Senhor Josué.
Foi pouco, além de não esclarecer muita coisa,
mas foi o suficiente para padres e pastores
surgirem ao lado dos apresentadores, como
convidados especiais, para negar a suposta
chegada do Messias: “Não nos esqueçamos,
irmãos, que os falsos profetas e falsos prodígios
já foram previstos no livro sagrado.” O que não
estava previsto, no entanto, ainda estava por vir.
O que as câmeras captaram a seguir, para
desespero de quem amaldiçoava as
“testemunhas de Josué” (o termo já havia
surgido num dos programas de notícia), faria até
o mais confiante dos céticos duvidar do que seus
olhos viam. Sob a luz confortante da manhã,
grandes sombras pairaram por algum tempo
sobre a multidão crescente, para depois
executarem acrobacias e rasantes; passavam
rente às cabeças surpresas, como
demonstração de suas habilidades de voo: eram
os orgulhosos “anjos”.
Há uma explicação para que a palavra aqui
seja apresentada entre aspas. Acontece que
estes seres alados – ao contrário do que se
possa pensar num primeiro momento – não têm
nada de divino. Nada mais são do que filhos
bastardos da Ciência, seres humanos cujos
DNAs foram alterados pela ação de nanorrobôs
intrometidos. O que não se sabia até então e foi
comprovado pela pesquisa do nanogeneticista
Protógenes Nebula, é que quando o número de
máquinas no hospedeiro ultrapassa o necessário
para as tarefas fisiológicas, elas literalmente
arrumam o que fazer. No que diz respeito aos
“anjos”, os nanorrobôs excedentes ativaram
genes que normalmente estão adormecidos no
DNA humano, neste caso, os mesmos
responsáveis pela formação das asas nas aves.
Muitos “alterados” foram perseguidos ou
obrigados a viverem longe da sociedade, outros
muitos foram trabalhar em circos de aberrações.
O estado prometia a cura e os dissecava como
cobaias para estudos científicos – sabe-se hoje
que o desenvolvimento de uniformes militares
com teias de mulheres-aranha (mais resistentes
que o kevlar) remonta a este mesmo período.
Mas nem todos estavam fadados à dor e
humilhação. Logo o motivo de vergonha para as
famílias que mantinham escondidas as crianças
em casa e a clausura para os desafortunados
alados tornou-se oportunidade financeira: igrejas
cristãs começaram a recrutar querubins, os
quais faziam aparições programadas em seus
estabelecimentos; quando adultos, realizavam
verdadeiros espetáculos da fé ao lado de padres
e pastores cantores; diziam que o coro de vozes
os fizera sair de seu lar celestial, quando, na
verdade, fora o som do alarme do relógio que os
lembrara do compromisso. É comum ver um
“anjo” sobrevoando uma igreja para atrair
pessoas à missa, e assim como o abutre que
sobrevoa a carniça que o alimenta, o homem
alado observa de cima a sua refeição sendo
deixada no cesto de arrecadação. Na maioria
das vezes, os “anjos” assinam um alto contrato
de exclusividade com seus patrões, alto o
suficiente para que vivam em mansões
construídas no topo de alguma montanha,
inacessível para os comuns mortais.
Sob pena de quebra de contrato, os
homens alados sobrevoam a multidão em busca
de eternidade; nada seria mais glorioso que
trabalhar para um deus vivo, ter uma estátua
VIII
Seus olhos de rapina já enxergaram o
profeta cujo rosto figurava em todos os
noticiários. “Aquele é o homem, Arcângela.”
Conforme o protocolo, todos os que estavam no
chão ajoelharam-se com o rosto para baixo,
diante dos “anjos”, que estavam prestes a
pousar ao redor de Josué. Todos, exceto os
soldados que acabaram de receber a ordem de
utilizar munição não-letal para atordoar a
multidão e prender o suposto líder, responsável
pelo tumulto. “Estas são as instruções...
Receberemos suporte aéreo assim que tivermos
capturado o sujeito.”
Bombas de efeito (i)moral e granadas de
gás lacrimogêneo choviam sob as pessoas
ajoelhadas, e antes que estes tomassem
conhecimento da investida, Josué era
transportado em um dos helicópteros da polícia.
As aeronaves, ao partirem, dispersaram a
fumaça e o que se via lá de cima eram pessoas
desorientadas e outras tantas caídas pelo chão,
desmaiadas, algumas com ferimentos
provocados pelas coronhadas que receberam,
incluindo a velha senhora em cujo “milagre das
lágrimas curativas” foi realizado, mas que desta
vez não podia contar com seu salvador. Os
“anjos”, que haviam levantado voo ao primeiro
sinal de violência, seguiam os helicópteros de
perto, enquanto um soldado, dominado pelo
instinto infantil de ver um pássaro espatifar-se no
chão após receber uma estilingada, abriu fogo
contra eles pelo puro divertimento de ver algo
belo ser destruído.
O piloto fora instruído pelo alto escalão da
polícia a dirigir-se a um presídio de segurança
máxima. A ordem, que aparecia de última hora,
só chegou quando já haviam se afastado dos
demais helicópteros (estes pertencentes às
redes de tv), que pretendiam acompanhar o
prisioneiro até o seu desembarque. Sob ameaça,
foram intimidados a interromperem a
aproximação.
Josué permanecia desacordado quando o
colocado na solitária, com uma mancha de
sangue ressecado na fronte. Com a pancada
que recebera, suas lentes de contato foram
seriamente avariadas, e se já não bastasse a dor
da coronhada, sua cabeça agora latejava pela
quantidade de informações que são exibidas
diretamente às suas retinas. Como um sonho
tumultuado, imagens de desastres naturais,
pessoas desabrigadas e famintas, lugares
desolados pelas guerras, que deixam povos
inteiros mutilados, somadas a previsões
cataclísmicas de um fim próximo convergiam e
fundiam-se para formar um filme apocalíptico na
cabeça de Josué, cujo protagonista era a própria
humanidade. Eram notícias transmitidas por
todos os telejornais do mundo, que exibiam
alucinadamente o conteúdo dos meses
anteriores, um resumo rápido da brutalidade
humana.
A esta altura, Josué berrava de agonia
dentro do escuro com uma voz profética. Um
vizinho de cela, prisioneiro que havia sido
trancafiado na solitária por mau comportamento
há mais de duas semanas, escutava com temor
as palavras captadas por ouvidos acostumados
ao menor ruído; sua imaginação aguçada,
ferramenta obrigatória para a sobrevivência nas
condições em que se encontrava, incumbiu-se
de criar as cenas terríveis, narradas pela
garganta insana que as proferia. Foi este mesmo
prisioneiro, ainda em seus anos de reclusão, o
responsável por escrever o que depois se veio a
conhecer como “O Livro das Previsões”,
derradeiro capítulo do livro sagrado das
testemunhas de Josué.
Num último momento, a torrente de
imagens mudou seu curso, deixando de ser um
interminável filme sobre a autodestruição e
insensatez humanas; transformou-se, quase que
uniformemente, num documentário daquele que
seria o provável redentor da aflição terrena.
Contrapondo-se a toda angústia do primeiro
filme, Josué assistia ao poço de redenção ser
invocado por bocas sofridas, sedentas por um
caminho pré-concebido em direção à paz física e
espiritual. Onde antes todos os outros falharam
em oferecer uma existência suportável àqueles
que não sabem o que fazer com suas vidas, a
esperança desenhava-se no rosto do nosso
messias distraído: Josué.
Ao abrir os olhos, depois dos breves
segundos de sua visão como salvador, que
podia até mesmo invocar os anjos do céu, Josué
acordou como tal. Acreditava piamente na sua
missão divina, após ter ouvido os testemunhos e
visto por outros ângulos as ações que tomara
(sem dizer da pancada sofrida, que poderia
muito bem ter deixado algum rastro de loucura
na sua cabeça).
Este se mostraria o momento ideal para
colocar à prova a recente conversão de Josué
em “Josué, o filho do homem” e sua fé em si
mesmo. Passos soaram no corredor escuro das
solitárias e silenciaram em frente à sua cela; a
porta de ferro rangeu pesada e duas silhuetas
surgiram em frente a Josué: “Vire-se!” Foi
algemado por um dos guardas, que depois o
levou pelo braço pelo trajeto úmido e estreito até
chegar a uma escada, imperceptível para quem
não conhecesse o lugar, que levava para o piso
inferior. O ar estava estagnado, um cheiro
permanente de carne carbonizada impregnava
as paredes; invisível aos olhos naquela
penumbra, mas não às narinas, a fonte deste
fedor parecia estar atrás da porta metálica, pela
qual vozes abafadas podiam ser ouvidas.
Os quatro senhores que lá estavam
interromperam a conversa assim que os guardas
apresentaram Josué diante deles. A sala era
mal-iluminada por uma única luz central; abaixo
uma mesa de concreto separava o grupo que
acabara de entrar daqueles que estavam no
canto oposto, posicionados bem próximos à
parede, suas faces protegidas pela sombra.
“Amarrem-no”, disse o diretor do presídio aos
guardas, que imediatamente acataram a ordem,
jogando Josué por sobre a mesa; acorrentaram
seus pés e os braços já algemados, passaram
as correntes pelas argolas que havia nas
extremidades da mesa, de modo que Josué
ficasse sentado, com os membros superiores
posicionados para trás, de frente para seus
inquisidores. Toda a luz da saleta incidia sobre a
mesa e iluminado era o corpo de Josué.
Uma das silhuetas tomou a iniciativa e
começou o interrogatório: “Você é mesmo quem
dizem que é?”.
– E que dizem que sou? – redarguiu
Josué.
– Um homem santo, que opera milagres; o
novo messias é o que dizem que é.
– Sim, sou Josué, o iluminado, aquele que
atrai os anjos do céu; Josué que anda entre os
pobres e fracos e é alimento para eles...
– Mentira! – interrompeu o pastor, que mal
podia conter-se de revolta ante as palavras que
ouvia. Estava uma verdadeira pilha de nervos,
estressadíssimo por ter sido escolhido, entre
tantos outros líderes evangélicos, para dar cabo
do homem que arrebatara tantos fiéis de seus
templos.
– Deixe o homem falar – disse o padre
monasticamente tranquilo, como alguém que
deixou de ter estímulos. Continue, por favor.
– Eu vi o sofrimento, a dor e o medo pelos
olhos da humanidade. Eu vi no que se tornaram
as religiões que deveriam mostrar o caminho da
simplicidade, fraternidade: instituições corruptas,
opulentas, e poderosas, que se beneficiam da fé
de milhões de inocentes...
– Já chega! Senhor diretor...
O diretor do presídio já sabia dos
procedimentos previamente combinados entre
aqueles senhores, antes da chegada de Josué.
Apenas olhou na direção dos guardas, parados
em frente à porta da saleta, esperando por uma
ordem. Um deles encaminhou-se até o canto
esquerdo, onde havia algumas ferramentas
espalhadas pelo chão, e apanhou um objeto
cilíndrico, enquanto o segundo guarda se
ocupava de verificar as correntes; uma faísca
luziu tímida e de repente a chama de um
maçarico iluminou o rosto sombrio que o
carregava na direção da mesa. Josué tremeu.
Começando pela tortura psicológica, o guarda
passeava com a chama infernal perto de seus
olhos; parecia a repetição do pesadelo que tivera
na solitária, quando via corpos desesperados
sob o fogo de bombas incendiárias.
“NÃÃÃOOOO!” Josué berrou quando o
fogo passou pela sua perna. Um cheiro
insuportável de pelos e pele queimada subiu no
ar. A parte carbonizada regenerou-se com a
ação dos nanorrobôs e voltou ao estado normal.
– Josué, seu sofrimento pode acabar
agora, basta você concordar em desmentir tudo
o que diz respeito aos milagres e sobre você ser
o messias. Podemos filmar o seu depoimento,
negando tudo o que nos disse anteriormente, e
deixaremos você ir embora – ofereceu o padre.
– Nunca! – berrou Josué – É justamente de
homens como vocês e tudo o que representam
que eu pretendo, com a graça do pai, acabar.
– Então não nos deixa muita escolha...
Depois de um aceno de cabeça do padre,
como quem diz “continuem”, o guarda
desocupado sacou uma lâmina, com a qual se
desfazia das roupas do torturado, sem se
importar se junto ele também rasgava a pele de
Josué, ensanguentada, mas sem os cortes
profundos. O maçarico agora ardia nos membros
superiores e no peito, enquanto a lâmina riscava
de sangue a testa já molhada de suor. Na
tentativa de utilizar expedientes que não fossem
apenas físicos, o portador da faca passeava com
a ponta da lâmina aquecida a poucos
centímetros da retina do torturado, para deleite
dos guardas e desespero de Josué.
– Este homem parece irredutível. E se ele
realmente for quem diz ser – comentou o padre.
– Então o quê! Você vai deixar toda a sua
igreja ser destruída por conta dele? – respondeu
irritado o pastor. Concordo com você quando diz
que este tal Josué não parece ter a intenção de
mudar de opinião. Estamos perdendo tempo.
Precisamos dar um fim neste problema o mais
rápido possível.
– Você quer dizer matá-lo? Isto nos
causaria problemas com a opinião pública e com
os milhares de fiéis que este homem já angariou.
Não vai demorar muito para descobrirem que o
trouxemos pra cá e venham exigir explicações –
raciocinou o padre.
– Senhor diretor...
– O governador deixou claro que este
prisioneiro está nas mãos dos senhores, desde
que seu nome não seja envolvido em qualquer
eventual escândalo – explicou ao pastor.
– Rabino...?
O rabino, que até aquele momento não
havia se pronunciado, parecia, dentre todos,
bem à vontade com a ocasião, como já tivesse
provado daquela experiência.
– Nosso interesse neste homem era
somente acompanhar os seus passos e as
decisões que os senhores tomariam sobre ele.
Para nós, tanto melhor. Aqui eu lavo as minhas
mãos – pronunciou-se o rabino com ironia cruel,
parecendo antever os desdobramentos da
decisão.
– Senhor diretor, peça a um dos guardas
que retire uma boa amostra do sangue deste
homem – exigiu o pastor. Quanto a vocês,
senhores, eu lhes garanto que não terão
qualquer envolvimento com o caso, muito menos
as partes interessadas. Farei com que Josué
não mais seja visto como um homem santo e
ainda por cima responsável pela sua própria
morte. Darei fim tanto nele como em sua
possível santidade.
Os senhores olhavam-se entre curiosos e
surpresos, exceto o pastor que gozava de sua
própria sagacidade e da sensação de somente
ele saber de um segredo. Um dos guardas
retirou a amostra de sangue com a injeção que
fora buscar na enfermaria. Seu colega já havia
acendido a fornalha, destinada à cremação dos
filhos dos homens, os presos, localizada na
parte direita da sala. Quando da retirada de
Josué da mesa de tortura, um dos guardas ainda
teve o gostinho de quebrar seu braço, para que
se evitasse qualquer dificuldade de mandá-lo
para o fogo.
No escuro da saleta, faces de homens
terríveis eram iluminadas pelo fogo da fornalha;
a mão do braço bom de Josué batia
incessantemente na grade e seus gritos podiam
ser ouvidos por todos os detentos do presídio,
que àquela altura sabiam o significado dos gritos
vindos do crematório. Do lado de fora, só o que
restara de Josué era fumaça, que saía da
chaminé, pela vermelhidão do sol que se punha
cor de sangue. Josué alcançava o reino dos
céus, mas não da forma mais agradável, como
seus seguidores imaginariam.
IX
Abriu os olhos e viu a porta da cela aberta.
Os corredores estavam vazios e silenciosos,
pois era hora do banho de sol, quando detentos
e guardas penitenciários concentravam-se no
pátio da prisão; pode ouvir a movimentação
carcerária à distância. Josué correu para o
portão principal que se encontrava
estranhamente deserto e o escalou. Antes que a
fuga fosse concluída, soldados, que só
aguardavam o momento de a presa aparecer,
surgiram por detrás do fugitivo e o metralharam
pelas costas. Josué ficou por ali mesmo,
dependurado entre o arame farpado, entre os
espinhos de aço, varado por balas de diferentes
calibres. Seu corpo permaneceu sob o sol
escaldante até que fossem captadas imagens
necessárias o suficiente para despontar na
maioria dos canais de tv, que noticiaram a morte
do homem conhecido como “Novo Messias”
durante a tentativa de fuga da prisão, frustrada
pelos seguranças do presídio; a Josué ainda foi
atribuída a morte de um dos guardas, com o qual
estavam as chaves das celas dos presos. Se o
caso fosse corretamente apurado, verificar-se-ia
que não havia digitais de Josué na cena do
assassinato, e sequer tratava-se de um dos
funcionários da detenção, mas, sim, de um dos
próprios detentos, vestido com uniforme de
guarda, cuja natureza indigente não exigia
qualquer satisfação a uma possível família sua.
Entretanto, sob o apelo dos noticiários
sensacionalistas, estas minúcias foram deixadas
de lado, pois o que interessava mesmo era a
imagem de Josué, cravado de balas, como um
crucificado no portão principal da penitenciária.
O plano do pastor evangélico parecia ter
sido executado com perfeição, com eficiência
profissional, como dele se esperava e a situação
requeria: a partir da amostra de sangue retirada
antes do corpo do Josué original ser cremado
vivo, a clonagem do messias foi concebida de
maneira surpreendentemente rápida – pois se
tratava de uma excepcionalidade – pela empresa
clonística de um de seus irmãos, filiado à igreja.
Josué clone seguira o roteiro que lhe fora
previamente escrito sem saber, no qual se
colocava como agente responsável pela própria
execução – aqui cabe a palavra “execução”,
porque teria ele morrido seguisse ou não o
script. Tanto o padre quanto o rabino admitiram
com um sorriso a inventividade com que lidou o
pastor em situação tão capciosa ao saberem da
morte de Josué; quanto ao diretor do presídio,
este nunca mais precisou colocar o pé numa
cadeia, como recompensa por ter posto em
prática o plano do pastor, consideravelmente
feito às pressas, pelo curto espaço de tempo de
que dispunham.
No entanto, só parecia o plano ter sido
perpetrado perfeitamente. Durante o curto
período em que Josué clone permaneceu na
solitária, foi capaz de passar adiante suas
palavras messiânicas. O leitor pode se perguntar
como seria isto possível, uma vez que a mente
de um clone deveria estar tão carente de
memórias como a de um bebê, e o pastor não
seria descuidado a ponto de ter encomendado a
fabricação de um clone com todas as memórias
de seu original, sendo elas, justamente, o que se
pretendia apagar. Um detalhe passou
despercebido pela cabeça do orquestrador do
plano, e mais uma vez estamos falando dos
benditos nanorrobôs, que parecem mesmo fazer
milagres: juntamente com a amostra de sangue
retirada de Josué para a fabricação de seu igual,
muitas dessas máquinas pentelhas viajaram
naquela injeção. Como a necessidade exigia a
replicação imediata, escolheu-se um invólucro –
termo usado em empresas de clonagem para um
corpo humano amorfo, destituído das
informações genéticas que nos distinguem das
demais pessoas, muito usado para casos de
clonagem que requerem urgência – e nele foi
injetado o sangue com o DNA de Josué. Nada
mais foi preciso fazer além de esperar que
nanorrobôs geneticistas fizessem seu serviço,
organizando as informações genéticas de Josué
em seu novo invólucro, que gradativamente
adquiria suas características físicas. Aí estava o
problema que o pastor não previu. Pela forma
como Josué foi clonado, muitas das
nanomáquinas que habitavam seu antigo corpo
foram capazes de se transferirem para o clone e,
se seguirmos o raciocínio lógico, logo
constataremos que as máquinas, que
carregavam a maior parte das lembranças de
seu primeiro hospedeiro, instintivamente
encarregaram-se de abastecer aquele corpo
anêmico de emoções de todas as sensações de
sua vida anterior.
Com as memórias revividas, Josué clone
contou aos prisioneiros – mais tarde alguns de
seus apóstolos mais importantes – as passagens
mais importantes de sua trajetória como messias
(o milagre das lágrimas, a visita dos anjos);
porém, o mais importante de seus relatos, o que
viria realmente a aumentar a santidade daquele
profeta e a literatura daquela religião que
florescia, sem saber, nas entranhas de uma
prisão, era a passagem da ressurreição: Josué
descreveu longamente a forma como foi
torturado e depois lançado ao fogo, sob o olhar
de homens sem rosto, para, depois, acordar
restaurado naquela solitária. A história foi
facilmente verificada pelos prisioneiros, que no
dia anterior tinham ouvido os gritos que vinham
do crematório, e é por isso que hoje dizem
“Josué desceu às entranhas da Terra e foi
consumido pelo fogo, para ressuscitar no dia
seguinte e plantar suas palavras no coração dos
homens”.
Daquela ala da cadeia surgiriam, algum
tempo mais tarde, evangelhos inteiros sobre os
relatos e ensinamentos do clone santo, escritos
pelos próprios apóstolos que ali se encontravam.
Em todos eles há uma passagem em comum:
“Na escuridão do cárcere, a luz emanada de
Josué, nosso Senhor, vencia as trevas que nos
cercava a todos e nossos corações”. Não é o
caso de dizermos que se trata de um simples
recurso narrativo, uma metáfora do poder
reconfortante atribuído à presença do messias,
nem sequer de uma inverdade por parte dos
responsáveis pelas escrituras. A
responsabilidade pelo prodígio é toda do auxiliar
de genética, que deu procedimento à clonagem
de Josué. Talvez pelo baixo salário ou por estar
farto da rigidez de seus superiores (nunca se
saberá ao certo), esse auxiliar sentiu-se
motivado a sabotar a própria empresa na qual
trabalhava; adicionando os genes de uma
espécie de água-viva ao DNA de Josué,
conferia-lhe a capacidade de bioluminescência
daquele animal, e foi devidamente observada
por seus apóstolos, que observavam o brilho
atravessar a vigia e frestas da porta da solitária,
de onde o messias se pronunciava. O autor da
autossabotagem pode ser anônimo, mas os
efeitos de sua brincadeira, pelo contrário, hoje
são de conhecimento notório, o que confirma a
ideia de que o senso de humor foge às páginas
da História, mas não a ironia.
X
A comoção popular foi tremenda, mas não
suficiente para conseguir a liberação do corpo
para que fosse velado em lugar apropriado,
segundo as testemunhas de Josué. Avaliada
como um perigo lógico, era improvável que tal
permissão fosse concedida. Imaginem a
vantagem da nova religião se ela fosse a única a
possuir, sob sua guarda, o corpo de seu profeta;
basta usarmos um pouquinho da imaginação
para percebermos que, se assim ocorresse,
milhões de peregrinos encaminhar-se-iam de
todas as partes do mundo para tal sítio, uns em
busca de salvação, uns por causa do fator
milagroso que inevitavelmente seria atribuído ao
corpo, e até mesmo pelas excursões das
criancinhas feitas durante a catequese, estas
poderiam sempre se gabar de terem visitado seu
messias, ao invés dos infinitos tipos de
representação, que são quaisquer coisas menos
fiéis. Se isto realmente ocorresse – continuamos
no campo hipotético do narrador – nenhuma
testemunha de Josué passaria pela
inconveniente situação, em alguma parte da sua
vida, de se deparar com a pergunta capciosa
sobre sua convicção quanto à existência do tal
salvador, como quando desiludimos alguém que
insiste em acreditar no Papai Noel (muitas vezes
só para ganhar o famigerado presente de Natal).
Sob pena de excomunhão, os pais de
Josué foram aconselhados pelo padre da
paróquia a qual frequentavam a não se
apresentarem perante a justiça como parentes,
sendo-lhes lembrada a passagem da escritura
referente aos falsos profetas, na qual Josué
estava enquadrado no código penal bíblico.
Falta-me o conhecimento jurídico necessário
para saber se estes pais teriam o devido direito
para exigirem a posse do corpo pois, como
sabemos, trata-se de um clone e não o filho
verdadeiro. Se fosse levado a diante, o caso
precursor exigiria mais uma adaptação por parte
da justiça quanto aos avanços e mudanças do
modo de vida dos seres que a elas se
submetem, ao contrário da justiça divina, que já
nos julgou culpados desde o começo dos
tempos.
Nos meses seguintes até os dias de hoje
as testemunhas de Josué andaram ocupadas
como formigas. O primeiro monumento a ser
erguido foi o Templo de Lagrimilagres, no
mesmo sítio onde ocorreu sem querer o “milagre
das lágrimas”; no alto de seus muros, lado a
lado, encontram-se em eterna vigilância os
anjos mercenários esculpidos em mármore, que
vem e vieram ao auxílio do messias distraído.
Graças às doações de seu crescente séquito, foi
a primeira religião a obter as condições
financeiras necessárias para a construção de
uma catedral na superfície lunar, motivo de
inveja para as demais instituições do
seguimento. Podem orgulhar-se, pois já
possuem seu próprio livro sagrado, com
ensinamentos, apóstolos e anjos próprios, cuja
composição se deu tanto por alguns daqueles
que participaram da marcha a lugar nenhum
empreendida por Josué quanto pelos
prisioneiros que o encontraram na solitária, cada
qual com seu evangelho, dignos também de
estátuas de mármore. Mas apenas lembrar suas
conquistas seria um desrespeito aos
testemunhas de Josué que, como qualquer
religião iniciante, precisou engatinhar pelos
caminhos do descrédito e da perseguição antes
de assegurar seu direito à existência. Muitos
foram massacrados e vítimas de preconceito, a
eles foi dada a alcunha de “mártires” – é óbvio
que estes crimes ainda acontecem aqui e ali, e
pelos mesmos motivos, porém sem a mesma
relevância e atenção de antes e sem a atribuição
do título de “mártir”, que para um testemunha de
Josué seria o equivalente a receber uma
medalha de bravura um soldado.
O fato é que ao custo de vidas e
sofrimento o culto à Josué e seu pai alcançou a
consolidação que buscava e expandiu-se;
convive atualmente com as muitas outras
religiões que por nós conhecidas, mas nem por
isso nos encontramos mais distantes do
precipício que sempre nos rondou. O mundo
continua mais ou menos da mesma forma: os
homens a aguardar pela salvação, pelo novo
messias, incapazes de depositar em algum lugar
do passado os muitos dias de solidão que ainda
terão de enfrentar.
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