tese_szanforlin_2011
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
ETNICIDADE, MIGRAO E COMUNICAO: etnopaisagens transculturais e negociao
de pertencimentos
Escola de Comunicao / UFRJ
Doutorado em Comunicao e Cultura
Sofia Zanforlin 2011
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II
Sofia Zanforlin
Etnicidade, Migrao e Comunicao:
Etnopaisagens transculturais e negociao de pertencimentos
Volumes: 1 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura da Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutora em Comunicao e Cultura
Orientador: Professor Doutor Mohammed ElHajji
Rio de Janeiro
2011
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III
Z28 Zanforlin, Sofia
Etnicidade, migrao e comunicao: etnopaisagens transculturais e negociao de pertencimentos / Sofia Zanforlin. Rio de Janeiro, 2011. 186 f.: il. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicao, Programa de Ps-Graduao em Comuni- cao, 2011.
Orientador: Prof. Dr. Mohammed ElHajji.
1. Comunicao. 2. Etnicismo. 3. Migrao. 4. Paisagens culturais. I. ElHajji, Mohammed II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicao. III. Ttulo.
CDD: 302.2
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IV
ETINICIDADE, MIGRAO E COMUNICAO:
Etnopaisagens transculturais e negociao de pertencimentos
Sofia Zanforlin
Orientador: Prof. Dr. Mohammed ElHajji
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura da Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutora em Comunicao e Cultura.
Rio de Janeiro, 18 de maro de 2011.
________________________
Prof. Dr. Mohammed ElHajji Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________
Profa. Dra. Raquel Paiva Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________
Prof. Dr. Paulo Vaz Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________
Profa. Dra. Denise Cogo
Universidade Federal do Vale do Rio do Sinos
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Prof. Dr. Hlion Pvoa Neto
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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V
Aos migrantes de todas as cores, de todos os lugares.
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VI
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VII
AGRADECIMENTOS
Agradeo a Capes por me conceder a minha primeira bolsa de doutorado e a Faperj por me haver brindado com uma bolsa de pesquisador Nota 10. No esqueo, contudo, que o reconhecimento que me conduziu bolsa Nota 10 partiu primeiro da Coordenao da EcoPs, que me indicou Faperj em 2009. A gratido EcoPs vai muito alm do incentivo no formato de uma bolsa de estudos, mas principalmente pelos quatro anos de relao rica e carinhosa com professores, secretrios, colegas, alunos, que logo se transformaram em amigos. Agradeo, portanto, aos coordenadores e ex-coordenadores Micael Herschmann, Paulo Vaz, Joo Freire Filho, Ana Paula Goulart, e aos funcionrios Jorgina, Vincius, Marlene e Thiago. Novamente, no h como traduzir o crescimento pessoal que os quatro anos de doutorado na EcoPs me proporcionaram, e, acima de tudo, descobrir que teoria e pensamento so atribuies cotidianas, ampliadoras na nossa forma de perceber o mundo e nos aproxima das pessoas com mais sensibilidade e respeito. Pensar descobrir o sorriso, como disse Muniz Sodr em uma de suas aulas. No poderia haver definio melhor e mais verdadeira sobre atividade de professor e de pesquisador. Agradeo a Helion Povoa Neto, com quem cursei uma disciplina em 2009 no Ippur, e que solidificou os passos dados nessa pesquisa. Agradeo-lhe o convite para integrar o NIEM Ncleo Interdisciplinar de Estudos Migratrios cuja convivncia com Miriam, Isabela, Joana, Patricia, Regina, e outros, me trouxeram informaes, novos conhecimentos e colegas admirveis. Aos meus entrevistados da Praa Kantuta, do Corredor da Central, e a Jobana Moya, pessoas que encontrei no trajeto desta pesquisa e que me contaram suas histrias, fortes, corajosas, cheias de esperana e desejo de mudana. Ao meu orientador, Mohammed ElHajji, Maktub! Desde a chegada ao Rio, em 2004, os contatos com o Moha sempre foram ampliadores e, sobretudo, enriquecedores. Foi ele quem me levou ao PET, para orientao com os alunos, para a sala de aula. E foram nesses quatro anos que nossa parceria orientador/orientanda, organizador/organizadora de eventos e autores de artigos se confirmou como uma experincia fundadora. Ao Pet, cuja convivncia s me trouxe presentes. Nos eventos que organizamos juntos e sofremos juntos e arrancamos os cabelos juntos, nos ciclos de leituras, nos encontros do Lacosa, nas reunies semanais, foi tudo maravilhoso e quando o tempo passa a gente v o quanto foi bom. So alunos incrveis, revolucionrios, inteligentes, vivazes e cheios de fome pelo mundo, pelas energias transformadoras do mundo. Que continuem famintos, Erick, Ricardo, Iasmine, Bruna, Luana, Luiza T., Luisa L., Jefferson, Lucas, Marina, a minha querida Livinha, o meu primeiro orientando Joo Montenegro, as fofas Tain e Marlia, alm dos velhos, sbios e cidos, Guigga Tomaz, meu monitor de bigodes, e Gustavo Barreto, meu querido companheiro de aula. Adoro vocs. Nesses quatro anos ganhei amigos/irmos/companheiros que me apoiaram, me incentivaram, me inspiraram, me alegraram. Felizes as livres permanncias, felizes os encontros que no se acabam. Fiquem para sempre, por favor, Fernanda Gomes, Danielle Brasiliense, Mayka
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VIII
Castellano, Talitha Ferraz, nosso quinteto EcoGirls, Adriane Martins, Tatiana Galvo, Israel Oliveira, Bruno Campanella, Ericson Saint Clair, Igor Sacramento, Fernanda Martineli, Monica Schiek, Simone do Vale, Bibiana, Cecilia, Clara, Emmanoel, Cesar, Juliana e Marcio. Aos amigos de antes e que se renovam mais amigos, mais presentes, mais amados, Gustavo Souza, Taciana Brown, Henrique Codato, Mari Baltar, Mariana Ribeiro, Eduarda Ribeiro, que voltaram l da Rua Amazonas e trouxeram Bruno Abdon, a Cris Arago e, sempre, Angela Prysthon e Denlson Lopes. E enfim, os agradecimentos de dentro de casa. A Mame e a Papai que me ensinaram a andar pela vida com independncia, coragem e curiosidade. A minha irm que me ensinou sobre interculturalidade quando ainda dividamos o mesmo quarto. A ela de novo que me deu Joo, o afilhado/ sobrinho mais lindo e para quem eu sou to ausente, por enquanto. A minha madrasta malvada, Kioko, que amiga e companheira. Aos meus familiares, tios, tias, primos, primas e sobrinhos, minha saudade e alegria ao sempre reencontrar. E daqui de casa, eu agradeo pela pacincia e torcida de Yuri e Rodrigo. Ao Seu Rodrigo, que desde o primeiro oi traz delicadeza aos nossos encontros, de domingo a sbado, todos os dias.
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IX
Declaration of Nutopia
We announce the birth of a conceptual country, Nutopia. Citizenship of the country can be obtained by declaration of the awareness of Nutopia.
Nutopia has no land, no boundaries, no passports, only people. Nutopia has no laws other than cosmic.
All people of Nutopia are ambassadors of the country.
John Lennon e Yoko Ono
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X
RESUMO
ZANFORLIN, Sofia. Etnicidade, Migrao e Comunicao: etnopaisagens transculturais e
negociao de pertencimentos. Rio de Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em Comunicao e
Cultura) - Escola de Comunicao, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2011
Se no passado o pertencimento de imigrantes era negociado a partir do vis da assimilao, hoje, os grupos preferem muito mais reiterar sua cultura e seus laos originais num processo constante de negociao e interlocuo com a cultura do local em que passam a constituir suas novas vidas. Para desenvolver a nossa anlise, nos concentramos na feira Kantuta, em So Paulo, reduto da comunidade boliviana, e no Corredor da Central, no Rio de Janeiro, onde se dava o encontro dos migrantes africanos. Assim, a relao de negociao do pertencimento nas comunidades de imigrantes est atrelada a uma sociabilidade espacial, onde as etnopaisagens se confirmam como o lugar de troca e construo de redes e contatos entre conterrneos e sociedade a qual procuram se inserir. perceber a praa, ou o corredor, como lugar de diverso familiar e entre amigos, como o lugar da elaborao e renovao de vnculos, a busca por trabalho, a busca por pertencer.
Palavras-chave: 1. Comunicao. 2. Etnicidade. 3. Migrao. 4. Cultura. 5. Sociabilidade
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XI
ABSTRACT
ZANFORLIN, Sofia. Etnicidade, Migrao e Comunicao: etnopaisagens transculturais e
negociao de pertencimentos. Rio de Janeiro, 2011. [ETNICITY, MIGRATION,
COMUNICATION: transcultural etnoscapes and the negotiation of belonging] Thesis
submitted towards the degree of PhD in Communication and Culture School of
Communication, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011
If in the past membership of immigrants was traded from the bias of assimilation, today, the
groups much prefer to renew their original culture and their ties in a constant process of negotiation and dialogue with the culture of where they form their new lives . To develop our analysis, we focus on kantuta fair in Sao Paulo, home of the Bolivian community, and the Central Corridor, in Rio de Janeiro, where he gave the meeting of African migrants. Thus, the relationship of negotiating membership in immigrant communities is tied to a spatial sociability, where etnopaisagens are confirmed as the place of exchange and networking and contacts between compatriots and the society which seek to enter. You see the square, or the corridor as a place for family fun and among friends as the place of creation and renewal of ties, the search for work, the search for belonging.
Keywords: 1. Communication. 2. Etnicity. 3. Migration. 4. Culture. 5. Social Interaction.
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XII
SUMRIO
Introduo 14
Primeira Parte A relao da cultura com a negociao de pertencimentos 24
1 Cultura x civilizao 25
1.1 Cultura e civilizao: sinnimos? 27
1.2 Cultura e civilizao na frana x kultur e civilizao na alemanha 29
2 Comunidade e sociedade e a negociao de pertencimentos 33
2.1 Estados e naes 37
2.2 A elaborao de uma subjetividade social em Anderson: literatura e jornal costuram uma pertena imaginria 38
2.3 Nacionalismo: a exacerbao do pertencimento 40
3 Cultura e globalizao, migraes e meios de comunicao de massa 44
3.1 Do capitalismo editorial ao capitalismo eletrnico e a formao de etnopaisagens transculturais 48
3.2 As migraes, a imaginao e o pluripertencimento 51
3.3 Panorama brasileiro: as etnopaisagens transculturais locais 56
Segunda parte Espao urbano e fluxos humanos: teorias e debates 59
4 As cidades como poder de atrao de pessoas e apostas 61
4.1 As razes da imigrao: entre o estrutural e o subjetivo 63
4.2 A escola de chicago e georg simmel: o estrangeiro, o homem marginal a caminho do intercultural. 67
4.3 Debates contemporneos: multiculturalismo, interculturalidade e pluripertencimento 79
5 - Migrao brasileira: breve panorama histrico e as implicaes para o debate identitrio nacional. 86
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XIII
5.1 Momentos e fluxos 88
5.2 Paradoxos da poltica imigrantista brasileira: entre a poltica assimilacionista e o ideal da mestiagem 94
5.3 Etnicidade e identidade brasileira: entre atraso mestio e progresso europeizado 97
6 A Praa Kantuta 112
6.1 Bolivianos em So Paulo 113
6.2 Domingo na Kantuta 121
6.3 Kantuta como paisagem intercultural 128
6.4 Entre (in)visibilidades 136
7 O Corredor da Central 147
7. 1 Corredor de migrantes 148
7.2 Migrao angolana como estruturadora de uma rede 155
7.3 Fim de tarde no Corredor 158
7.4 Entre o estigma e a segregao: o devir negro 163
Consideraes finais 170
Bibliografia 177
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INTRODUO
Se no passado o pertencimento de imigrantes era negociado a partir do vis da
assimilao, hoje, os grupos preferem muito mais reiterar sua cultura e seus laos originais
num processo constante de negociao e interlocuo com a cultura do local em que passam a
constituir suas novas vidas. Nesse sentido, a interculturalidade se conduz como um princpio
norteador dos novos grupos de migrantes, ampliando os usos que se fazem do termo, no
apenas no aspecto cultural/ identitrio, mas tambm poltico e cidado.
A problemtica da qual parte a pesquisa diz respeito s negociaes por pertencimento
lanadas pelos grupos migrantes recm-estabelecidos no Brasil, e a relao com a formao
de etnopaisagens transculturais. Dessa forma, voltamo-nos para esses lugares de suspenso de
uma nacionalidade oficializada, sem perder de vista sua identidade tnica, cultural, valendo-
nos dela, como estratgia de negociao para um pertencimento intercultural. Como premissa,
portanto, partimos dos dois diacrticos representativos da contemporaneidade: as migraes e
as comunicaes de massa, essa ltima como fundamento de um ethos midiatizado (Muniz
Sodr, 2002), fomentador de uma nova subjetividade social (Anderson, 2008; Appadurai,
2004).
No entanto, esta pesquisa no est voltada a uma anlise miditica, seja de algum
produto cultural especfico, seja da produo miditica por grupos migrantes. Estamos a nos
referir ao aspecto comunicacional que prescinde de uma justificativa ligada a determinados
meios ou dispositivos, mas aproximado do seu aspecto relacional. pensar a relao entre
comunicao e a constituio de um espao, onde o processo comunicacional est presente e
envolve o trabalho de re-territorializao. Nossa hiptese de trabalho esteve ancorada na
percepo de que a formao de etnopaisagens se configura como parte de um processo
inicial de negociao de um novo pertencimento.
Nesse caminho, a cultura como produo de significado, de discurso, surge como
fundamental nessa negociao. Se a etnicidade oscila entre momentos de anunciao e recusa,
a cultura, pelo contrrio, se coloca como estratgia argumentativa fulcral da atualidade.
Cultura como identidade, cultura como marcadora de diferena, cultura como expresso,
cultura para dar coeso a um grupo, cultura para dar visibilidade. E, dessa forma, tentar
incluir-se, seduzir, entreter, para fazer parte, para pertencer.
Cidadania passa a significar acesso, direitos, dignidade, mais do que propriamente a
substituio de uma identidade por outra. Em meio a esses dois marcos estaria a cultura, que
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ora atua de forma substantiva, como dimenso da diferena, ora como lugar da construo da
identidade de grupo, baseado na diferena. A cultura atualmente se encontra em territrio de
difcil demarcao, uma vez que passa a se constituir como estratgia de argumentao
definitiva, e a atuar em campos onde, num passado no to distante, seria demarcado como o
lugar da poltica ou da economia, por exemplo. A cultura engloba quase todos os setores da
sociedade, numa ampliao e ativao de outros campos que passam a se constituir como
viscerais, como a esttica, a arte, a etnicidade.
preciso, assim, atentar para a influncia capital dos meios de comunicao de massa
como entidade responsvel por diversificar a instncia subjetiva a partir da multiplicao de
imagens e desejos, capazes de modificar e ampliar as possibilidades de construo do eu e os
modos de projeo da vida cotidiana. A instncia imaginativa se configura como vital para a
deciso de migrar e desestabiliza a clssica alegao econmica como sendo a fundamental
sobre as razes que levam ao movimento de mudana. Essa instncia, ala o desejo, a
fantasia, as possibilidades de se imaginar autor de uma nova vida como um dos fatores
mobilizadores.
Nesse quadro, os dispositivos miditicos se configuram como mediadores desse
processo, aliado ao que Appadurai (2004) indica como sendo os dois principais representantes
da contemporaneidade: os fluxos migratrios e as comunicaes de massa. Num mundo em
constante e irrevogvel movimento, observa-se como sendo cada vez mais comum a
aparecimento do que o autor denomina esferas pblicas de dispora, que, por sua vez, seriam
as responsveis pela formao de etnopaisagens nas mais diversas cidades globais, a
reconfigurar a interao nesses locais.
Migrao recente para o Brasil e as etnopaisagens
Por grupos recm-estabelecidos procuramos demarcar a distino entre os clssicos
fluxos migratrios que marcam a histria do recebimento de migrantes do passado para ento
observar os grupos que compem o quadro da imigrao contempornea para o Brasil. Dessa
forma, aps consulta s entidades que trabalham (Caritas, Ministrio da Justia, Aneib e
IMDH) e que estudam o tema (NEPO UNICAMP, NIEM UFRJ, LACOSA UFRJ), foi
possvel destacar dois grupos: latino-americanos e africanos.
Nesses dois grupos possvel salientar duas caractersticas distintas na forma e nas
motivaes apontadas para a deciso de migrar: os latino-americanos poderiam ser
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caracterizados como migrantes econmicos, enquanto os africanos, em sua maioria,
enquadrar-se-iam pela do estatuto de refugiado. No que se refere destinao final, possvel
ainda identificar duas diferenas: os latino-americanos se dirigiriam para So Paulo, se
pensarmos no critrio urbano, na escolha da cidade, e os africanos para o Rio de Janeiro, onde
haveria uma tradio no recebimento de refugiados.
Assim, buscamos percorrer os caminhos que conduzem aos novos meios de se
pertencer no tecido social local, na articulao realizada pelos novos migrantes que chegam
ao Brasil e a relao com a formao de etnopaisagens para costurar seus pertencimentos no
pas. A importncia das etnopaisagens foi-nos apontada pela prpria aproximao com os
grupos mencionados. Estamos nos referindo a espaos elegidos pelos grupos como lugar de
encontro. Nesse caso, nos concentramos na feira Kantuta, em So Paulo, reduto da
comunidade boliviana, e no Corredor da Central, no Rio de Janeiro, onde se encontravam
presentes os migrantes africanos. Isto para compreender como se elaboram processos de
negociao de pertencimentos no tecido social escolhido para ser o novo local de moradia, de
estabelecimento e construo de relaes das mais diversas ordens, sejam elas subjetivas ou
de trabalho.
No Corredor da Central, esse dado se dava ainda de forma inicial, espontnea, no
reconhecida para alm do prprio grupo de migrantes congoleses e angolanos: se o irmo
chega ao Rio hoje, amanh ele vem aqui, afirma J., refugiado congols. Apesar de j ser
reconhecida oficialmente, a praa Kantuta relata experincia semelhante visto que passou de
uma reunio em uma rua sem sada para a formao e legitimao de um espao reconhecido
oficialmente pela prefeitura de So Paulo. Em ambos os casos, a relao com o espao
elegido pelos grupos para o encontro, a elaborao de formas de interao e a construo de
vnculos de naturezas diversas, evidencia a articulao entre o trabalho com o encontro para a
conversa, como meio de aquisio de conhecimentos sobre o novo local e desenvolvimento de
relaes.
A relao de negociao do pertencimento nessas comunidades est definitivamente
atrelada a uma sociabilidade desenvolvida no encontro, no contato, na conversa, onde as
etnopaisagens se confirmam como o lugar de troca e construo de redes e contatos entre
conterrneos e a sociedade em que procuram se inserir. A praa, ou o corredor, como lugar de
encontro, diverso familiar e entre amigos, como o lugar da criao e renovao de vnculos,
a busca por trabalho, a busca por pertencer.
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Acreditamos que ao relacionar o espao com a presena, o territrio com o uso, as
intenes e os desejos, pode trazer novas dimenses aos saberes sobre o Outro, sobre as
questes que envolvem as comunidades, os grupos, as disputas, as conquistas. As questes
que envolvem a relao entre poderes e hegemonias esto permeadas de sensibilidades
imaginadas, medos construdos com base em mitos sobre alteridade, e o estrangeiro com
freqncia o primeiro a carregar essas marcas da diferena. Enfim, o pertencimento para ser
bem sucedido requer um longo caminho de esforos, sofrimentos e angstias. E esse caminho
se d sempre entre fronteiras culturais, identitrias, polticas e estticas.
A cultura como moldura para a construo de pertencimentos
Na primeira parte da tese apreendemos a questo da negociao do pertencimento a
partir da relao com a cultura. Assim, no primeiro captulo, percorremos diversos sentidos do
conceito de cultura, a partir do significado etimolgico do termo que inclui sua diferenciao
com a natureza, alm de ressaltarmos o caminho que aproxima e distancia o sentido de cultura
e o de civilizao. Este debate no apenas se situa como marco definitivo entre o natural e o
cultural, mas tambm forma a base fundamental para a consolidao do eurocentrismo como
marco definidor de hierarquias culturais no sentido do que vem estabelecer-se como
civilizao ocidental. Tais termos so resultantes do debate primordial entre cultura e
civilizao, se desdobram entre estratgias de conquista e marcos de poder, em conceitos
como os de Estado e nao.
No segundo captulo, abordamos a construo cultural do Estado nao para tentar
compreender de que maneira a cultura est envolvida na elaborao do sentimento de
pertencimento de indivduos, de grupos e de sociedades. Nesse momento, discutimos os
conceitos de comunidade e sociedade, para saber onde se ancoram concepes idealizadoras
que remontam a uma constituio imaginria. Assim, a comunidade guardaria marcas de um
passado idealizado e perdido nas transformaes sociais que distanciam e atomizam os grupos
sociais, e a sociedade, por sua vez, seria fruto de uma construo artificial. Ou seja, para que
diversas comunidades passem a se reconhecer como pertencentes a uma mesma sociedade
necessrio um trabalho de elaborao de vnculos, os quais, por sua vez, seriam
artificialmente elaborados.
As diferenas entre pertencimento a uma comunidade, respaldada por vnculos
afetivos, e o pertencimento a uma sociedade, caracterizado pela troca e pelo contrato,
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marcariam a transformao no modo de vivenciar as relaes na modernidade. Falar de
sociedade aproximar-se definitivamente da construo do Estado nao, onde os vnculos
devem ser produzidos, elaborados e constantemente renovados pela ao e orquestrao de
diversos meios que produzem um discurso unificado e coerente, alimentadores do presente,
projetadores de um futuro.
Nesse caminho, a cultura seria este espao a um tempo subjetivo e tambm social
capaz de alinhavar narrativas que poderiam parecer dispersas se no estivessem conjugadas a
um sentido de histria, memria, rituais e leis. A cultura, portanto, pode ser o libi tanto para
se reivindicar o direito fala, por uma existncia, como para requerer identificaes e buscar
meios de se constituir como grupo. A cultura se referiria, nesse sentido, muito mais a grupos
sociais do que a indivduos isolados, mesmo que se trate de questes de um determinado tipo
de especificidade, a cultura que fornece o esteio para grupos se estabelecerem como
substancias argumentativas, passveis de reconhecimentos e direitos.
J no terceiro captulo, buscamos discutir questes que envolvem a relao da cultura
e da globalizao junto aos dois principais representantes da contemporaneidade, as
migraes e as comunicaes de massa. Nesse ponto se d o encontro com as discusses
desenvolvidas por A. Appadurai no livro As Dimenses Culturais da Globalizao (2004).
Isto , as migraes e as comunicaes de massa constituiriam os dois principais marcos
representativos da atualidade, a formao de etnopaisagens no tecido social urbano se
concretiza, aliada aos recursos disponibilizados pelos meios de comunicao, na elaborao e
fomentao de redes, que servem tanto para a manuteno de vnculos com o local de origem,
como para a negociao do pertencimento ao novo local.
O Brasil, na medida em que avana econmica e politicamente na esfera de influncia
global, adquire visibilidade e passa a povoar o imaginrio de pessoas desejosas de prosperar
em suas vidas, e onde a migrao passa a se constituir como uma possibilidade cada vez mais
banal. Assim, a relao de negociao do pertencimento nas comunidades de imigrantes est
definitavemente atrelada a uma sociabilidade espacial, onde as etnopaisagens se confirmam
como o lugar de troca e na construo de redes e de contatos entre conterrneos e sociedade
a qual procuram se inserir.
Espao urbano e fluxos humanos
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Na segunda parte da tese analisamos as principais teorias em torno do tema da
migrao, tendo em vista a problemtica desenvolvida na pesquisa, a negociao do
pertencimento. Ressaltamos que nesse parte da tese enfatiza-se o debate terico em termos de
disciplinas e elaborao de conceitos que desguam na discusso terica contempornea; das
razes que explicam a migrao, aos estudos da Escola de Chicago que pensaram a adaptao
dos migrantes no novo territrio, para, em seguida, discutirmos as motivaes brasileiras em
torno de migrao, identidade e etnicidade.
Assim, no quarto captulo, vamos trafegar por entre artigos de autores que tentaram
responder indagao, por que se imigra? Essa pergunta tem sido feita h mais de um sculo
e nem sempre com respostas que consigam satisfazer ou apreender a multiplicidade de razes
que justifiquem todas as complexidades geogrficas, culturais, em torno do processo de
mudana. Interessa-nos descobrir que motivaes foram eleitas e formam a base do
pensamento de diversos pesquisadores sobre o tema da migrao. Ou seja, quais os principais
motivos elencados para pensarmos a questo da mobilidade humana, ou em quais contextos
ela se opera.
Inevitavelmente, o tema da migrao no pode ser desvinculado da questo da
urbanizao e do crescimento das cidades como centro das decises polticas, econmicas e
como palco das mudanas culturais nas sociedades. Migrao e urbanizao se articulam para
arregimentar a discusso sobre pertencimento, tendo a cidade como o lugar onde se opera essa
negociao. Dessa forma, a concatenao desses dois temas nos conduz aos conceitos
lanados pelos autores da Escola de Chicago como fundamentais para traar o caminho para
pensarmos a relao entre migrao e cidade. Essa discusso no poderia deixar de lado os
conceitos trabalhados por Georg Simmel, principal influncia do pensamento desenvolvido
pela Escola de Chicago.
Isso feito, chegamos ltima parte do captulo, que concentra as principais discusses
sobre o multiculturalismo e a proposta intercultural, envolvendo a negociao com o espao
urbano, a construo de pertencimentos e as disputas em torno da diversidade e
multiplicidade.
No quinto captulo da tese percorremos os principais marcos que constituem o contexto
histrico em relao ao desenvolvimento da imigrao para o Brasil, do perodo que vai ainda
da coroa portuguesa ao Estado Novo. O objetivo discutir os principais fluxos migratrios
brasileiros, como eles se organizaram no territrio nacional e as expectativas acerca das
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comunidades de imigrantes. Percebemos a aproximao de duas razes que caminham juntas
na acepo da imigrao para o Brasil: a econmica e a tnica.
Duas preocupaes podem, pois, ser ressaltadas em relao s motivaes para atrair o
migrante europeu para o Brasil. A primeira, diz respeito busca do pertencimento ao grupo
de pases que formam as elites ocidentais, pelo caminho do crescimento econmico e a
mudana para mo de obra livre e assalariada. A segunda trata do melhoramento racial, pela
vinculao s teorias eugnicas de branqueamento da populao brasileira. Esses dois
componentes so fundamentais para o entendimento da idia de nao que est na base do
senso comum brasileiro, que alimenta as diversas formas de racismo e percorrem o dia-dia da
nossa sociedade.
Ao enfocar as polticas do Estado para imigrao como marco para a observao do
encadeamento de fluxos migratrios histricos no Brasil, buscamos apreender o que estava
sendo objetivado nos variados contextos em que se davam o estabelecimento de determinadas
aes e assim, perceber o que elas representam em termos de significados do que vem a se
constituir como nao brasileira e as repercusses sobre identidade nacional.
Nesse momento, portanto, procuramos ressaltar na histria da imigrao brasileira o
que estrutura a nossa idia de nao, bem como a nossa relao com o estrangeiro, o migrante
e as apostas feitas atravs da recepo destes e no que essas aes vem a significar. Logo,
no se trata da relao minuciosa e descritiva da histria da migrao no Brasil, nem do relato
de algum grupo especfico de migrantes, mas de observar e de analisar as repercusses dessas
aes para o presente.
Etnopaisagens transculturais e a negociao de pertencimentos
Por fim, na terceira parte da tese onde se encontram as anlises que compem o
corpus da pesquisa: os bolivianos na praa Kantuta, e os africanos no Corredor da Central.
Estamos nos referindo a espaos elegidos pelas comunidades migrantes como lugares de
encontro. Assim, esses espaos, que denominamos de etnopaisagens, surgem como a
materializao da relao entre migrao e a formulao de espaos voltados para a costura
do novo pertencimento comunitrio.
Salientamos que procuramos desenvolver as anlises pela conjugao de entrevistas
colhidas nos locais e pela observao participante, numa aproximao com o mtodo
tradicional da antropologia. Buscamos percorrer um caminho terico que possibilite a adoo
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de um olhar experimental, onde a percepo esttica esteve privilegiada. Um olhar esttico
que no oblitere o entrelaamento com o poltico, com a importncia dos encontros, da
criao dos vnculos que est perpassado pela subjetividade, pela sensibilidade, pela diverso,
pela msica, a culinria, a conversa. Nesse caminho, encontramos suporte nos textos de M.
Santos, R. Haesbaaert, Simmel, Appadurai, Bauman, Maffesoli, Hall, Park, Muniz Sodr, isto
, autores que buscam uma dimenso sensvel aos seus estudos a fim de burlar a anlise
baseada em dados estatsticos e privilegiar o olhar interdisciplinar entre a esttica, a
antropologia, o poltico, o sociolgico, e, sobretudo, o comunicacional.
Se no primeiro captulo da tese buscamos perceber de que modo a cultura adquire
importncia fundamental como mbito onde se delineiam as questes em torno do sentido de
pertencer, agora pensamos a centralidade da cultura vinculada negociao do pertencimento,
como estratgia discursiva fundamental para essa negociao. no mbito da cultura que se
situam as discusses da contemporaneidade. Cultura como prtica social, como geradora de
significado, ou nos dizeres de Hall (1997), toda prtica social tem condies culturais ou
discursivas de existncia. Cultura, nesse sentido, seria sinnimo de produo de significado.
Desse modo que pretendemos lanar uma proposta de abordagem que incorpore,
quem sabe, um olhar fenomenolgico para o entendimento da articulao entre espao,
migrao e comunicao como instancias fundamentais e interligadas na negociao cotidiana
de pertencimentos. Queremos, dessa forma, apontar para a necessidade de ampliar o foco
sobre o tema da migrao contempornea e chamar ateno para novos elementos que se
somam para alm de uma viso dicotmica e simplificadora da relao com a migrao e o
pertencimento, ou seja, para alm de uma negociao em torno da burocracia na busca por
regularizao de documentaes explicada pelo atendimento s necessidades econmicas. A
proposta perceber a relao cada vez mais complexa que envolve mudana, necessidade,
desejo, afetividade, vnculos, burocracias, expectativas, realidades e apostas, e como o
cotidiano passa a ser vivido de forma ampliada da noo moderna de estados e naes.
Discusso que se estende ao logo da tese.
Para muitos autores (M. Canevacci, 2008, S. Morris, 2009, R. Haesbaert, 2010, M.
Santos, 2006), o espao insurge como categoria mister do contemporneo, no lugar do tempo
da modernidade, e deve, portanto, estar sintonizado com uma discusso sobre um
cosmopolitismo de refugiados, migrantes, exilados, e porque no, de habitantes excludos
dos no-lugares citadinos. A cidade contempornea seria fragmentada por espaos oficiosos,
globalizados, transculturais, conflitantes, zonas mutantes em uma nova experincia
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metropolitana baseada em fetichismos visuais, nas palavras citadas de Canevacci (2008).
Fragmentao, portanto, seria o terreno no s dos espaos, mas da prpria Comunicao
Social, que caminha entre fronteiras e se estabelece entre trnsitos, na parfrase de Martn-
Barbero (2004).
Se, de acordo com os autores citados, a categoria tempo da modernidade cede lugar
para a de espao na contemporaneidade, este se apresenta sob o vis da mobilidade, da
pluralidade, onde o deslocamento se apresenta como a marca e a cidade como destino,
entremeadas pelos diversos fluxos comunicacionais que entrecortam e complexificam os
processos interacionais.
Por etnopaisagem, portanto, queremos nos referir necessidade de compreender o
espao dotado de fragmentos culturais particulares reveladores de uma identidade de grupo,
que passam a se reunir em torno de traos culturais especficos, em torno de uma etnicidade
comum. So paisagens, ou fragmentos de lugares, marcados por traos e narrativas culturais
de uma determinada etnicidade. Paisagens tnicas transculturais negociando pertencimentos
na cidade globalizada.
Logo, nos espaos de sociabilizao que a cidade contada, fugindo s grandes
narrativas dos aparelhos de estado e reala o componente local. Tentar compreender o
surgimento de etnopaisagens num contexto de fluxos cada vez mais urgentes o nosso
prximo desafio. Como se inscreve a praa Kantuta na narrativa contempornea paulistana?
Como podemos ler essa praa de encontro de migrantes/ moradores bolivianos/ paulistanos
negociando suas identidades tnicas na cidade global? E como a cidade que cede esse espao
pode ser lida num contexto em que a cultura passa a ser solicitada como moeda discursiva, em
que a criatividade e a diversidade passam a ser solicitadas dentro de um discurso de inovao
e sintonia com a multiplicidade global?
A noo de redes sociais se inscreve como criadora de solidariedades e fundamentais
para subverso dos antigos meios de comunicao corporativos e presentes na questo da
migrao contempornea. As redes solidificam laos, criam lugares de amizade, ambientes
prsperos para a proliferao de novas narrativas: as redes servem como ponto de abstrao
a partir de um sistema global (1987). Seria uma tentativa de perceber formas plurais de
construo de sentidos, afora os domnios das narrativas globalizantes.
Esse parece ser o caminho para se compreender a migrao africana para o Rio de
Janeiro na atualidade. Se so refugiados, ou se vm por conta prpria, se chegam de navio ou
pelo aeroporto, parecem questes importantes, mas que se diluem em meio a histrias de
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sofrimento e aposta. So pessoas que saem de contextos de guerra e privaes e que ao chegar
ao Rio, transformam-se em migrantes desejosos de emprego, laos e oportunidades, como
todos os migrantes. Assim, a relao com a constituio de rede migratria parece confirmar o
transito entre Angola/ Rio e Congo/Rio. Onde o Corredor da Central se estabelecia como um
dos principais pontos de manuteno e renovao dessa rede.
Logo, novas e antigas formas de sociabilidade vm se misturar poltica, busca por
trabalho e regularizao de papis, e no podem ser deixadas de fora do entendimento de
como se do as negociaes entre migrar e pertencer a um novo local. Nada se d fora dos
contatos, das trocas de informao, desde o momento em que se decide partir, at a
reconstituio de uma nova cidadania, ainda que precria. nas etnopaisagens onde esses
laos se efetivam, na Praa Kantuta ou no Corredor da Central.
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Primeira Parte A relao da cultura com a negociao de pertencimentos Na primeira parte da tese buscamos apreender a questo da negociao do pertencimento
a partir da relao com a cultura. No primeiro captulo, percorremos diversos sentidos do
conceito de cultura, que parte do seu significado etimolgico e inclui a diferenciao entre
cultura e natureza, ao que aproxima e distancia o sentido de cultura e o de civilizao. No
segundo captulo, abordamos a construo cultural do Estado nao para tentar compreender
de que maneira a cultura est envolvida na elaborao do sentimento de pertencimento de
indivduos, de grupos e de sociedades.
No terceiro captulo, buscamos discutir as questes que envolvem a relao da cultura
e da globalizao junto aos dois principais representantes da contemporaneidade, as
migraes e as comunicaes de massa. Nesse ponto se d o encontro com as discusses
desenvolvidas por A. Appadurai no livro As Dimenses Culturais da Globalizao (2004), em
cuja premissa esta pesquisa est ancorada. Isto, as migraes e as comunicaes de massa
constituiriam os dois principais marcos representativos da atualidade, e a formao de
etnopaisagens no tecido social urbano se concretiza, para a manuteno de vnculos com o
local de origem, para a negociao do pertencimento ao novo local.
No entanto, nesta sesso nos detemos apenas em apontar a relao entre a cultura e a
negociao de pertencimento com as etnopaisagens mencionadas. As anlises referentes aos
lugares mencionados se apresentaro ao longo dos prximos captulos desta pesquisa. Por ora,
nos concentraremos em elaborar como a idia de pertencimento construda e alinhavada
pela cultura e como esta desempenha papel fundamental na constituio poltica, social,
afetiva da relao do individuo com o grupo e as negociaes em torno de suas filiaes e
pertenas, por vezes temporrias, por vezes duradouras.
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Captulo 1 Cultura X Civilizao
Na primeira parte deste captulo, iniciaremos uma discusso sobre os sentidos de
cultura que marcam desde a oposio natureza e civilizao, e os desdobramentos que essa
mudana acarreta a partir dessa aproximao semntica e conceitual. Cultura significa
cultivo, pressupe elaborao e cuidado ativo, e, nesse sentido, diferencia-se de tudo o que
cresce naturalmente ou ao naturalmente dado: o termo sugere uma dialtica entre o artificial
e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz (...) implica a existncia
de uma natureza ou matria-prima alm de ns; porm, essa matria-prima requer um
trabalho de elaborao numa forma humanamente significativa (Eagleton, 2005, p.11).
A cultura surge pelo homem, e por todos os homens, fruto de um trabalho de
elaborao mental, intelectual, que resultar e m transformao subjetiva, ou material, por
meio da comunicao entre os agentes da cultura. Ampliado seu escopo de sentido e marcada
a diferena entre o natural e o culto, entre passividade e ao, a cultura passaria a abarcar
todas as instncias de uma formao social (Canclini, 2005), isto , desde formas de
cultivar a terra, como tambm a pecuria, at formas cada vez mais complexas, como
modelos de organizao econmicas, formas de exercer o poder, polticas religiosas,
artsticas, etc. A cultura, segundo Canclini, torna-se sinnimo idealista do conceito de
formao social (2005, p. 38).
Compreender o conceito de cultura passa necessariamente por sua raiz etimolgica
latina, colere, cujo sentido pode ser o de cultivar, habitar, proteger ou honrar com venerao.
O sentido mais corriqueiro do termo (ainda no sculo XVI) correspondia ao cultivo agrcola
da lavoura, ou o cultivo que cresce naturalmente, sendo, portanto, derivado da natureza.
Raymond Williams (2007) explica que no sculo XVII, o cuidado com o crescimento
natural amplia-se para incluir o processo de desenvolvimento humano, e que esse sentido
se fortalece a partir do sculo XVIII. A partir da, o sentido do termo passa a englobar o de
cultura como estado, como atividade de cuidado com algo: cultura como ao, ou seja, da
cultura da terra cultura do esprito.
O substantivo cultura passa ento a designar os assuntos do esprito e incorporar o
sujeito refinado ou culto, consolidando as ento emergentes hierarquias sociais e se
tornando uma marca de distino: A palavra mapeia em seu desdobramento semntico a
mudana histrica da prpria humanidade da existncia rural para a urbana, da criao de
porcos a Picasso, do lavrar o solo diviso do tomo (Eagleton, 2005, p. 10) . tambm no
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sculo XVIII, que cultura comea a ser usada como sinnimo de civilizao, sinalizando
um processo geral de progresso intelectual, espiritual e material e estreitando cada vez mais a
relao entre as esferas de deciso, pensamento e gesto (ver Sodr, 2005).
A oposio natureza se fundamenta no iluminismo, em que a cultura passa a ser
considerada como a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade,
considerada como totalidade, ao longo da sua histria (Cuche, 2005, p. 21). Cultura se aplica
unicamente ao que humano, unidade do homem na diversidade dos seus modos de vida
(idem, p.13). Como ressalta o autor, esse era o momento de otimismo por excelncia,
marcando um contexto de avano intelectual e material, de transformao social no sentido do
surgimento de novas classes e maior complexidade do tecido social, pelo menos no que diz
respeito s sociedades europias, que vivenciavam com intensidade s suas conquistas.
Assim, o otimismo do momento estava baseado na confiana do futuro perfeito do ser
humano, que deveria ser compartilhado e espalhado por todos os grupos sociais. Saliente-se
nesse quadro, a diferenciao fundamental entre o rural e o espiritual, o que natural,
espontneo, do que cultivado, trabalhado, transformado pelo homem, pela ao do homem,
que deve a partir de ento marcar a diferena entre os povos. Ou como explica Eagleton:
A prpria palavra cultura compreende uma tenso entre fazer e ser feito, racionalidade e espontaneidade, que censura o intelecto desencarnado do iluminismo tanto quanto desafia o reducionismo cultural de grande parte do pensamento contemporneo. (...) A palavra combina de maneira estranha crescimento e clculo, liberdade e necessidade, a idia de um projeto consciente mas tambm de um excedente no planejvel. (...) Como cultura, a palavra natureza significa tanto o que est a nossa volta como o que est dentro de ns, (...) a cultura, assim, uma questo de auto-superao tanto quanto de auto-realizao. (Eagleton, 2005, p. 14-15)
Se cultura liga-se ao auto-cultivo, ao processo de refinamento intelectual, esttico,
poltico, ento ela se referiria, ainda, segundo Eagleton, tanto a um processo de busca e
empenho individuais, algo que ns fazemos por ns mesmos, mas tambm a algo que passa a
ser feito por ns, em que entra decisivamente o papel do Estado como ente que proporcionaria
o contexto para que o auto-cultivo passasse a ser algo experimentado em grupo, em nome do
crescimento ou refinamento coletivos, isto , o de formador de cidadanias.
A incluso do termo cultura no Dicionrio da Academia Francesa, em 1718, marca o
novo significado ao se aproximar do entendimento de refinamento espiritual e intelectual, e
vem compartilhar o sentido de educao, que vem a ser sinnimo de civilizao em diversos
contextos. Dessa forma, se estabelece definitivamente a oposio e o distanciamento entre
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natureza e cultura, ao tempo que se aproximam e se misturam os significados de cultura e
civilizao.
Cultura e Civilizao: sinnimos?
A interao dos significados de cultura e civilizao, segundo Williams (2007), vem
de longa data e ainda hoje sua distino permanece de difcil entendimento. Para alguns
autores, essa aproximao data do sculo XVIII e marca o aparecimento de uma concepo
dessacralizada da histria uma vez que se liberta da seara da teologia e coloca o homem
no centro da reflexo, e, logo, no centro do universo. Na acepo dos filsofos reformadores,
a civilizao resultaria de um processo que arranca a humanidade da ignorncia e da
irracionalidade (Cuche, p. 22). Williams assinala ainda que o principal uso de civilizao
enfatizava mais um estado de ordem social e refinamento, particularmente em contraste
histrico ou cultural deliberado com barbarismo (2007, p. 82). Nesse caminho, o processo
civilizatrio constituiria um direito a ser concedido a todos os povos, at os mais selvagens,
uma vez que todos so vocacionados para entrar no movimento de refinamento e educao, e
caberia aos povos mais avanados o dever de ajudar os mais atrasados (Cuche, 2005).
Para Eagleton, a relao entre a noo de cultura e de civilizao guarda em si diversas
implicaes. A primeira, diria respeito a uma concepo de evolucionismo cultural, seguida
da idia expansionista e imperialista, uma vez que se tm a as sementes que germinaram a
idia do etnocentrismo europeu, j que a civilizao a que se refeririam a europia; alm de
vir a alimentar a querela entre tradio e modernidade (Eagleton, 2005, p. 20).
Diferenas sutis, porm, controversas de sentido podem ser apontadas entre os termos:
cultura evocaria os progressos individuais, ainda ligada ao sentido de cultivo e refinamento
intelectual e educacional, ao passo que civilizao evocaria, por sua vez, os progressos
coletivos. Da resultam expresses como civilizao Inca, por exemplo, ou cultura indgena,
num sentido singularizado, ou especfico. No entanto, francamente possvel a substituio
na mesma expresso pelo termo cultura, o que para alguns autores se referiria a questes
especficas, como hbitos, folclore, etc., o que s revela a dificuldade de atribuir aos dois
termos funes ou significados excludentes ou exclusivos, e, nesse sentido, distintos.
Muniz Sodr (2005) assinala que a cultura, como sentido individual, passa a guardar
em sua acepo a idia de distino social, que, gradativamente, tambm passa a se aplicar ao
sentido de civilizao: a civilidade era, ao mesmo tempo, um estado de distino entre as
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camadas nobres e as outras. como estratgia de distino social que o termo se expande at
civilizao (Muniz Sodr, 2005, p. 16). O autor explica que foi no contexto dos avanos
econmicos e tecnolgicos, trazidos na esteira da revoluo industrial, que se consolida a
idia de progresso, uma vez que o campo cultural passa a incluir as condies necessrias do
saber, do processo, de inveno, de descoberta, em suma, uma idia operacional de futuro
(idem).
Nesse quadro, h tambm a expanso de novas classes sociais, em que surge uma
burguesia vida por novos postos na escala social, e onde a cultura se consolida como
estratgia de poder: ela se torna o terreno para o estabelecimento de uma superioridade branca
europia, coloca-se em prtica uma nova ordem social em favor de elites que buscam
distino e valor tico representativo de suas aspiraes: consolida-se a separao entre o
sublime e o vulgar, entre cultura elevada e cultura popular, entre superior (universal) e o
inferior (...) das massas desprovidas de altos padres de excelncia social (Sodr, 2005, p.
19).
Por sua vez, o movimento romntico na literatura faz da cultura o lugar de enunciao
da verdade do esprito, que estaria localizado na Europa civilizada, e como confirma
Eagleton, no apogeu da burguesia europia, a literatura tinha um papel-chave na formao
dessa subjetividade social (2005, p. 62). Para Sodr, no sculo XIX que a cultura se
estabelece como ideal de aperfeioamento humano, tendo em Freud um dos principais
propulsores dessa idia. Para ele, a cultura a promoo da vida humana acima de suas
condies animais, implicando a retomada do distanciamento entre o que natural e cultural.
Freud concebe, nesse sentido, o estado civilizatrio/cultural como um imenso edifcio
construdo sobre o princpio de renncia s pulses instintivas, naturais (Sodr, op.cit, p. 22).
Logo, o terreno da cultura seria o lugar da pedagogia dos instintos, da conformao
social, da adequao, do controle, da renncia e do recalcamento. O corporal passa, portanto,
a estar ligado ao que baixo, inferior, aos indivduos que no tiveram acesso, ou no
passaram pelo processo civilizatrio que a cultura passa a compreender. A aproximao entre
cultura e civilizao naturaliza a diviso entre o corporal e o mental, entre o material e o
espiritual, abrindo caminho, portanto, diviso do trabalho entre classes sociais (ver Canclini,
2005, p. 37).
O debate entre cultura e civilizao no apenas se situa como marco definitivo entre o
natural e o cultural, mas tambm forma a base fundamental para a consolidao do
eurocentrismo como marco definidor de hierarquias culturais ao encontro do que vem a se
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estabelecer como civilizao ocidental. Uma vez amparados pelos iderios eurocentrados
que se constituem em valores a serem propagados e diversificados para as sociedades
atrasadas, o discurso eurocntrico se torna a escusa fundamental para a abertura do processo
expansionista de conquista e colonizao realizado pelas naes europias.
O eurocentrismo seria o amlgama do prprio esprito geral do Iluminismo, e
sintetizaria o desejo de progresso alcanado pelas naes europias, que se cristalizam como
modelo de superao e conquista. Assim, ao consagrar-se como ideologia legitimadora dos
valores resultantes de anos de evoluo, surge como balizador e smbolo completo da
modernidade, industrializao, cincia, tecnologia, sociedade, cultura, urbanidade e esttica.
Tais termos resultantes do debate primordial entre cultura e civilizao, que se desdobram
entre estaratgias de conquista e marcos de poder, em conceitos como Estado e nao, em que
o eurocentrismo surge como um dos efeitos mais marcantes.
Cultura e civilizao na Frana x kultur e civilizao na Alemanha
A importncia de se observarem as divergncias no debate franco-alemo sobre as
derivaes de sentido dos termos cultura e civilizao decorre das conseqncias polticas
que o debate alemo equaciona. Ou seja, a aproximao de cultura com a idia de nao.
Na Frana, o conceito de cultura permanece por longo tempo associado idia de
refinamento, de cultura como ilustrao, e civilizao ligada s sociedades. Ainda assim, a
aproximao entre os termos se d praticamente sem distines, sendo um quase que tomado
como sinnimo do outro, com leves dissonncias. A idia de civilizao abrange desde boas
maneiras aristocrticas s conquistas tecnolgicas, e, nesse contexto, a cultura marcaria o
terreno dos valores espirituais.
O sentido dos termos na Frana semelhante ao empregado na Inglaterra, como
explica Williams: No final do sculo XVIII, a associao de civilizao com refinamento de
maneiras era normal tanto no ingls como no francs, com diferenas sutis, j que o
desenvolvimento de civilizao para seu sentido moderno, no qual se enfatiza tanto a ordem
social e o conhecimento ordenado quanto o refinamento de maneiras e o comportamento , de
modo geral, mais precoce no francs do que no ingls (Williams, 2007, p. 83).
A distino entre cultura e civilizao se tornar mais marcada na Alemanha, onde o
debate se dar em torno da oposio entre os dois termos. E muito dessa oposio nos
significados conseqente da prpria rivalidade entre os dois pases. Assim, num primeiro
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momento, cultura e civilizao seguem os mesmos caminhos tomados na Frana e se
diferenciaro justamente por esse motivo. A diferena de contexto em que existem os dois
pases na poca tambm de fundamental importncia para compreender as distines entre
os termos.
A Frana j era uma nao unificada enquanto que a Alemanha era constituda por
diversos estados fragmentados. O debate entre os dois termos ser um dos leitimotiv da
unificao territorial alem. Assim, a burguesia intelectual alem adotar o uso de cultura,
ou kultur, onde na Frana se utiliza civilizao, como marcador de distncia para com a
nobreza alem, identificada como mimetizadora dos valores culturais franceses,
desprovidos, portanto de identificao em relao cultura alem.
Para a intelligentsia alem, composta por uma intelectualidade sada dos meios
universitrios e disposta a pensar sobre a construo de uma unidade nacional, era necessria
a crtica a essa nobreza que estaria preocupada demais em imitar as maneiras civilizadas da
corte francesa e desconectada das suas reivindicaes polticas. Dessa maneira, a
diferenciao entre cultura e civilizao vai tomar o caminho para o pensamento de uma
singularidade nacional: enquanto que cultura designa um estado de sofisticao e pureza,
autenticidade e sinceridade, que contribui para o enriquecimento intelectual e atributos do que
viria a compor a cultura nacional alem, civilizao teria a ver com o progresso material,
industrial, econmico, e no necessariamente espiritual.
A unidade da nao, na concepo da intelligentsia alem, se daria por meio da
conscincia da cultura, ou da kultur, e ainda, por esta tomada de conscincia, a nfase da
anttese cultura civilizao se desloca pouco a pouco da oposio social para a oposio
nacional (Cuche apud Elias, 1939). Essa noo, portanto, ser a idia-fora para a unificao
territorial da ptria germnica, em contraposio noo francesa de civilizao. Assim,
cultura passa a ser considerada como a expresso da alma profunda de um povo e civilizao
marcaria o progresso material ligado ao desenvolvimento econmico e tcnico:
Esta idia essencialista e particularista da cultura est em perfeita adequao com o conceito tnico-racial de nao comunidade de indivduos de mesma origem que se desenvolve no mesmo momento na Alemanha e que servir de fundamento constituio do Estado-nao alemo. (Dumont, 1991)
Este debate se d tambm acerca da noo universalista que o imperialismo
intelectual da filosofia francesa do iluminismo desenvolve sobre a cultura, e onde na
Alemanha tomar o caminho oposto, o do particularismo, ou da valorizao da diversidade e
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das diferenas que compem cada povo. Obviamente, esse debate surge na esteira das
discusses para a unificao do territrio alemo, em que cada povo, atravs de sua cultura
prpria, tem um destino especfico a realizar (Cuche, 2005) e ganha corpo no sculo XIX,
para enfatizar e consolidar as diferenas nacionais. No entanto, o caminho alemo abre espao
para um novo debate acerca do conceito de cultura, em que a diferenciao entre as noes
universalistas e particularistas vo repercutir diretamente na sociologia e antropologia, por
exemplo.
Assim, se por um lado, na concepo francesa, o conceito de cultura se inscreve pela
universalidade e generalidade do homem, por outro, e a partir do debate alemo, ele passa a
dar conta da diversidade e da especificidade dos costumes e normas que guiam
comportamentos e aes no mbito dos grupos sociais. Um dos principais nomes que iro
desencadear esse debate Franz Boas, antroplogo alemo, para quem a cultura passa a
designar a noo de diversidade: o debate franco-alemo do sculo XVIII ao sculo XIX
arquetpico das duas concepes de cultura, uma particularista, outra universalista, que esto
na base das duas maneiras de definir o conceito de cultura nas cincias sociais
contemporneas (Cuche, op.cit, p. 31).
O Estado passa a ser requisitado como instncia que fornecer as condies de
desenvolvimento e aprimoramento da educao e, portanto, da transformao cultural que
permitir a inscrio definitiva do povo na cidadania e noo de civilidade, ou seja, nas
concepes estabelecidas acerca de ordem, refinamento, instruo que compem o processo
civilizador. O debate franco-alemo, por sua vez, lana as bases das concepes do conceito
de Estado-nao, atravs, principalmente, da inscrio do pertencimento cultural ao conjunto
de noes que do identidade a uma determinada nacionalidade, isto , ao conjunto de noes
que constroem a base material e histrica da evoluo de determinada nao, constituindo o
que vem a se consolidar como identidade cidad.
Ser cidado de uma determinada nao pertencer a uma cultura especfica, um
idioma, uma fronteira geogrfica, a um conjunto diversificado, porm, narrados como nicos,
de caractersticas que vo compor uma enunciao em torno de um estado, de uma nao. O
ser francs aquele indivduo que comunga com outros seres os mesmos, ou, vrios,
discursos, narrativas, que constroem uma instncia significativa, histrica, um repositrio de
memria e expectativas que o integram a essa configurao espao-temporal do que se
convencionou a se chamar de pas, nao, estado francs. O conceito de Estado-Nao ,
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portanto, fundamental, para a compreenso do sentido de pertencimento. Tanto poltico, como
cultural.
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Captulo 2 Comunidade e Sociedade e a negociao de pertencimentos
Antes de continuar a discusso da relao de costura do pertencimento e Estado-
nao, faz-se necessrio pensarmos o conceito de comunidade. Um dos principais autores
sobre comunidade F. Tnnies com a obra intitulada Gemeinschaft und Gesellschaft,
conhecida com o ttulo de Comunidade e Sociedade. preciso lembrar que a obra nunca foi
traduzida para o portugus. Porm, o livro Para ler Ferdinand Tnnies (1995) preenche
parcialmente a lacuna causada pela ausncia da obra do autor, uma vez que alm de
apresentar vrios textos que comentam as principais idias de Tnnies, traz excertos da sua
mais importante obra Comunidade e Sociedade. Assim, tentaremos sintetizar os conceitos e
as diferenas entre os dois termos na acepo de Tnnies, e o que essa diferenciao acarreta
para a discusso proposta nesta pesquisa.
A Gemeinschaft , ou comunidade, estaria situada quase que cronologicamente como
um estgio primordial do agrupamento social, caracterizada pelo prevalecimento dos laos de
sangue, parentesco e amizade, das associaes com a terra e o lugar, sentimentos partilhados e
crenas comuns. A comunidade presume a unidade, a mesmidade entre o grupo,
representadas pela unidade familiar, a parquia, a aldeia e a vizinhana. Por sua vez, a
unidade de tais grupos existiria anteriormente a seus membros atuais, que receberiam a forma
comunal e seus valores pela tradio, ou, como modo de vida j dado.
Dessa forma, preciso salientar que as comunidades possuem um tecido de unidade
que subjaz e que anterior s relaes construdas na coletividade, isto , a comunidade no
apenas anterior ao indivduo como dura mais que ele. A comunidade seria o lugar onde se
encontra uma legio de pessoas aproximadas pela afetividade, pela naturalidade e pelo
entendimento tcito, ou um entendimento compartilhado por todos os seus membros, que
diferente do consenso, uma vez que esse no prescinde da negociao.
Se a marca da Gemeinschaft pode ser descrita pela afetividade e a tradio, ou pela
ao pessoal, o da Gesellschaft , ou da sociedade, caracterizado pela troca, o contrato
explcito ou implcito, as relaes impessoais, funcionais e o propsito declarado. Assim, a
construo artificial a marca da sociedade, um agregado de seres humanos atomizados cuja
forma bsica a contratual. As corporaes de negcios, burocracias de estado, organizaes
profissionais, grupos de interesses, so exemplos apontados por Tnnies como representantes
dessa forma de agrupamento social.
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Tnnies, num primeiro momento, aponta que as duas tendncias mesclam-se no
moderno agrupamento social, e posteriormente a esta observao o autor passa a acreditar que
as relaes de tipo Gesellschaft teriam avanado em detrimento da Gemeinschaft. Sociedade
se diferencia, portanto, dos vnculos afetivos e quem sabe mais espontneos da comunidade,
seria fruto de uma construo artificial; ou seja, para que diversas comunidades passem a se
reconhecer como pertencentes a uma mesma sociedade necessrio um trabalho de
elaborao de vnculos, estes, por sua vez, seriam artificialmente elaborados.
Caberia neste momento uma reflexo em torno da idia de artificialidade presente na
acepo em torno dos vnculos formados na sociedade. Diz-se artificial porque estaria em
oposio a uma suposta naturalidade legitimada pelos laos sangneos, ou dos laos
biologizados; porque requer elaborao, ou trabalho, tanto para a sua criao como para sua
manuteno, sujeito, dessa forma, ao rompimento; e, por ltimo, objetivada, porque visa a
determinado fim, podendo se dissipar quando concludo o assunto que primeiro proporcionou
o encontro, desprovidas, portanto, de valor sentimental e desejo de continuidade. Ao
contrrio, as relaes de base comunitria so abordadas a partir de um construto subjetivo e
sentimental, de laos de proximidade e conhecimento legitimado pelo tempo e pela
autoridade.
O entendimento ao estilo comunitrio, para Z. Bauman (2005), pressupe um tipo
em que a comunidade por si baseia e precede todos os acordos e desacordos: no uma linha
de chegada, mas o ponto de partida de toda unio, um sentimento recproco e vinculante.
Nesse sentido, o autor K. Schmitz (1995) comenta que a comunidade pode ser vista como
uma rede de relaes vitais entre indivduos, uma rede na qual cada indivduo experimentaria
um sentido de partilhamento: certamente, a rede experencial um elemento essencial para a
maioria dos indivduos (p. 181). O que marcaria, mais uma vez, a diferena da relao
interpessoal do tipo societrio, caracterizado pela coletividade ao invs da comunidade.
Para Schmitz, a comunidade precisa ser desenhada a partir de seus agenciamentos
histricos sociais, culturais e tcnicos requereria tanto estabilidade quanto mudana para
sua manuteno, e esta tenso s poderia resistir sendo uma forma social que possua
legitimidade em si mesma. O autor destaca que as formas comunais, dentro do ideal de
unidade intrnseco de sua elaborao, seriam como remdios para a radical incompletude da
natureza humana, assim que, cada forma social que morre demonstraria, desse modo, a sua
prpria incompletude tambm (1995, p. 189). Schmitz aponta o pluralismo social como
possibilidade de reinveno do ideal comunitrio dentro do contexto atual, num caminho que
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contraria a expectativa de unidade e mesmidade que se mantm como emblema da
conceituao sobre comunidade.
Ainda de acordo com esse pensamento e tambm fundamentada pelo mesmo autor,
Tnnies, R. Paiva (1998) lembra que a idia de comunidade fundamental no pensamento
romntico alemo e trafega por conceitos como povo, nao, estado e sociedade, fazendo
meno ao que foi discutido na sesso anterior deste captulo, aos pressupostos invocados
pela Alemanha para organizao do seu Estado.
Na origem desse pensamento, portanto, est a necessidade de alinhar-se a concepes
idealizadoras que remontam a constituio imaginria, a de que a comunidade guardaria
marcas de um passado idealizado e perdido nas transformaes sociais que distanciam e
atomizam os grupos sociais. Logo, a idia de comunidade guarda em si uma aposta na
recuperao de uma espcie de paraso perdido, da reunio de um agrupamento marcado pela
permanncia e durao dos laos afetivos, do reconhecimento, da identificao entre as
pessoas, unidas pela crena do compartilhamento de um ideal comum de sociedade. A
comunidade representaria para o individuo a garantia de certeza, segurana e proteo aos
desafios intrnsecos prpria vida. Desnecessrio muito exerccio crtico para perceber
quanto de fantasia envolve esta crena.
Paiva assinala ainda que comunidade surge muitas vezes como um projeto a ser
retomado como alternativa crise instalada na sociedade (...), desta vez, o mito de que
retornar a um estgio anterior, onde presumivelmente haveria compreenso maior entre os
homens, ou seja, comunho pode promover alterao no estado atual das coisas, e comenta
sobre a tentativa de construo de um conceito de comunidade: observa-se que se acerca
mais de uma idia imaginria do que de um conceito que se possa usar operativamente (Paiva,
1998, p. 69 - 71).
Porm, a autora destaca duas concepes no caminho de operar o conceito, um pelo
vis psicolgico, que comportaria relaes sociais que vo desde a amizade intimidade
entre as pessoas, comunicao ou comunho de idias, outro pelo vis filosfico e poltico
em que existiria a possibilidade de participao nas decises que o grupo deve tomar,
vigendo o direito de ser consultado, de formular propostas, a tnica da cooperao (idem, p.
71).
O que podemos concluir que a idia de comunidade, erigida na reunio de pessoas
aproximadas atravs de vnculos de afinidade e comunho, est baseada na localizao do
territrio, na rotina, no idioma, no controle dos que so e sero legitimados pela comunidade
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como pertencentes dela. A suposio de acordo tcito demonstra que a presuno da unio da
comunidade se d pela manuteno de uma ordem vigente, fundada e confirmada no tempo,
pela memria, pelo acordo e repetio, ou reafirmao de uma ordem pr-estabelecida por
uma autoridade.
Nesse ideal esto excludos de antemo o conflito, a crtica, ou, para convidar Bauman
discusso, a liberdade de pensar ou querer diferente do que foi estabelecido. Pois, para o
autor, liberdade e comunidade estariam em desacordo, uma vez que liberdade e segurana,
so difceis de conciliar sem atrito, transformando esse debate em um desafio filosfico sem
remdio conhecido... citando o mito de Tntalo s de Ssifo, Bauman comenta:
A comunidade realmente existente ser diferente das de seus sonhos - mais semelhante a seu contrrio: aumentar seus temores e insegurana em vez de dilu-los ou deix-los de lado. Exigir vigilncia vinte e quatro horas por dia e a afiao de espadas, para a luta, dia sim, dia no, para manter os estranhos fora dos muros e para caar os vira-casacas em seu prprio meio. (...) O Aconchego do lar deve ser buscado, cotidianamente, na linha de frente. (Bauman, 2003, p. 22).
Colocado dessa forma, Bauman retira as mscaras de iluso romntica que povoam o
ideal comunitrio como sendo o lugar confortvel do encontro baseado em afinidades, e que
estas, por sua vez, so alimentadas por boas doses de imaginao e cerceamento do pensar,
desejos individuais, e principalmente, pela anulao da diferena. A fragilidade do acordo
comunitrio acentuada no encontro com o estrangeiro, com a divergncia.
Da que os movimentos migratrios recrudescidos em meados do sculo XIX, com o
aparecimento de novos meios de transporte, geraram no apenas fluxos de capital, de pessoas
e ampliao de fronteiras, mas tambm troca de informaes alternativas acerca de novas
possibilidades de viver. Estes fatores apontados pelo autor como um dos principais
movimentos que desafiaram o ideal comunitrio e assim, a distncia, outrora a mais
formidvel das defesas da comunidade, perdeu muito de sua significao (idem, p., 18).
Mais adiante, discutiremos a questo da migrao na contemporaneidade, num
contexto de fluxos e trocas intensificadas pela globalizao, o que constitui influncia
decisiva na estruturao ou retomada do debate sobre comunidade, vez que reala as
divergncias entre o local e o global, e suas implicaes na remodelao do Estado nao
atual, mediante propostas tericas lanadas por Appadurai (2005; 2009).
preciso ressaltar que a discusso em torno da comunidade chama ateno para a
querela entre identidade e diferena, entre eles e ns, entre identidade e alteridade, portanto.
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Sendo a idia de comunidade alimentada pelo imaginrio de homogeneidade, de mesmice, de
conciliao, h que se perceber a tentao reacionria, de excluso, fechamento e xenofobia,
que ronda esse ideal. E mais, preciso debater outras questes que surgem a partir dessas
consideraes, isto , retomar a exposio em torno da formao do Estado nao.
As diferenas entre pertencimento a uma comunidade, respaldada pelos vnculos
afetivos, e o pertencimento a uma sociedade, caracterizado pela troca e o contrato, marcaria a
transformao no modo de vivenciar as relaes na modernidade. Muitos autores consideram
as relaes desenvolvidas na sociedade, ou da gesellschaft, sucednea da comunidade, e
estaria mais prxima do entendimento do conceito de Estado. Procederemos, ento, a um
encadeamento de conceitos at chegarmos premissa desenvolvida por B. Anderson (1998),
a de que o Estado nao seria uma comunidade imaginada, por excelncia.
Falar de sociedade aproximar-se definitivamente da construo do Estado nao.
Onde os vnculos devem ser produzidos, elaborados e constantemente renovados pela ao e
orquestrao de diversos meios no sentido de produzir um discurso unificado e coerente e que
abarque diferentes campos, desde histria, idioma, comunicao, leis, ordem, coero,
celebrao de laos culturais, datas comemorativas das glrias narradas do passado,
alimentadores do presente, projetadores de um futuro.
Estados e Naes
Duas categorias so fundamentais para dar sustentao ao pertencimento a uma
nacionalidade: tempo e idioma. Para elaborar a questo do tempo, Anderson (2008) recorre
a W. Benjamin, ao seu ensaio Sobre o conceito de Histria (ver Benjamin, 1994). Nele,
Benjamin discorre sobre a noo de tempo vazio e homogneo, o qual seria responsvel pela
crena da simultaneidade. Anderson, por seu turno, elabora essa questo para falar de como o
romance literrio e o jornal, ao terem profunda relao com a rotina, alimentam essa mesma
crena da simultaneidade pela estruturao de uma similaridade, de uma rotina comum,
organizada no cotidiano: a diviso do dia, dos afazeres, aproximaria os indivduos que passam
a pensar o compartilhamento de um mesmo espao/tempo de trabalho.
O idioma, ou compartilhamento de uma mesma lngua, ao mesmo tempo em que
recorta os que no pertencem a um determinado grupo de falantes, tambm costura o
pertencimento a uma comunidade, a uma mesma nacionalidade. Na opinio de Anderson, a
lngua ter sido mais importante do que a etnia no sentido de pensar uma comunidade
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homognea. No momento em que se expandem, o romance, o livro, passam a materializar a
percepo de que muitas, milhares de pessoas, compartilham um mesmo idioma, materializam
a percepo de possuir companheiros de leitura, ligados pela letra impressa, que passam a
ter uma visibilidade invisvel, e so o embrio da comunidade nacionalmente imaginada
(p.78).
O capitalismo editorial, assim chamado por Anderson, e a ascenso definitiva do livro,
confirmada pela multiplicao de editoras que passam a transbordar as fronteiras territoriais,
a semente da formao de uma subjetividade social necessria para pensar e vivenciar a
idia de um Estado nacional, o grande aglutinador de comunidades, o pai da sociedade. Mas o
que uma subjetividade social? Ela pode ser traduzida pela... cultura?
A criao de uma subjetividade social em Anderson: literatura e jornal costuram uma pertena imaginria
Anderson (2008) apresenta o Estado nao europeu como um produto cultural, ou
seja, fruto de um trabalho de elaborao consciente em torno de idias comuns e
compartilhadas, e uma das definies propostas pelo autor seria: uma comunidade poltica
imaginada, intrinsecamente limitada e soberana. A nao passa a ser concebida como uma
profunda camaradagem horizontal, com solidariedades e identificaes pressupostas entre
seus membros.
Diferente do reino dinstico, em que sua legitimidade deriva da divindade e no da
populao, composta por sditos, e no por cidados: por sob o declnio das comunidades,
lnguas e linhagens sagradas estava ocorrendo uma transformao fundamental na forma de
apreender o mundo, que possibilitou pensar a nao (Anderson, 2008, p. 52).
O Estado nao nasce quando o iluminismo questiona a legitimidade do reino
dinstico hierrquico de ordem divina, e nesse contexto, surge como garantia e como
emblema de uma liberdade desejada.
A decadncia da sociedade monrquica, a Reforma de Lutero e a traduo da Bblia do
latim para o alemo, cujas primeiras tradues foram pregadas nas portas das igrejas,
produziram uma revoluo na forma de interao entre os povos, desmistificando a ligao
entre lngua e verdade, e, dessa forma, ampliaram consideravelmente a quantidade de pessoas
que passaram a ter acesso aos textos sagrados, uma vez que o latim era lido por uma elite
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ilustrada. O protestantismo, portanto, passava a fazer uso do mercado editorial que florescia e
se expandia alm das fronteiras geogrficas nacionais.
O livro considerado por Anderson como o primeiro produto cultural massivo e
globalizante, com livreiros interessados em lucrar e, por conseguinte, em ampliar cada vez
mais a popularidades das obras editadas. O nascimento do livro, do romance e em seguida do
jornal so os pilares do que Anderson denomina como capitalismo editorial, e constitui as
bases da elaborao de uma conscincia nacional.
Assim, num contexto acelerado de transformao econmica e desenvolvimento dos
meios de comunicao, buscou-se unir significativamente fraternidade, poder e tempo, isto ,
a aposta na transposio do ideal comunitrio de afinidade e proximidade, vivenciado por
uma nova forma de constituir o poder, dessa vez pela criao de um estado legitimado e
reconhecido pela populao, unida por um encadeamento de experincias cotidianas comuns.
O romance e o jornal proporcionam os meios tcnicos para representar o tipo de
comunidade imaginada correspondente nao, produzem uma coincidncia temporal medida
pelo relgio e pelo calendrio, e do materialidade ao que Benjamin (1994) qualifica de
tempo vazio e homogneo, produzindo a conscincia de uma coincidncia cronolgica, em
que o mundo caminha inexoravelmente em frente. E dessa maneira que o formato
romanesco do jornal constri a percepo de uma comunidade slida percorrendo
constantemente a histria, seja em sentido ascendente, seja descendente.
Ocorre, assim, a materializao da confiana na atividade constante, annima e
simultnea entre os compatriotas, uma vez que cria a percepo de compartilhamento de uma
mesma lgica cultural e histrica. O desenvolvimento da imprensa como mercadoria a
chave para a criao de idias inteiramente novas sobre simultaneidade: o conhecimento
atravs da letra impressa passa a viver da reprodutibilidade e da disseminao. Alm do mais,
o jornal e o livro que criam campos unificados de intercmbio e comunicao para alm do
latim.
Assim, a propagao e disseminao do romance e do jornal proporcionam a
solidificao de uma conscincia nacional na medida em que d visibilidade e desperta a
compreenso de que milhares, e at milhes de pessoas num determinado campo lingstico,
que compartilham saberes e informaes comuns, criam campos unificados de intercmbio e
comunicao: esses companheiros de leitura, os quais estavam ligados atravs da letra
impressa, constituram, na sua visibilidade invisvel, secular e particular, o embrio da
comunidade nacional imaginada (Anderson, 2008, p. 78). A unificao em torno de um
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idioma, de um territrio, de um sistema ordenado de regras, leis e acessos, costurados por
uma cultura comum constituem as bases do sentimento do pertencimento a uma nao.
No entanto, Anderson chama a ateno para as narrativas em torno do Estado nao
que proporcionaro a exacerbao do sentimento de superioridade e estigmatizao na forma
do nacionalismo. O nacionalismo estaria alinhado aos mesmos sistemas culturais e lealdades
que vigoravam durante o reino dinstico e o qual o prprio Estado nao chamado a
combater. Se o patriotismo pode ser apontado como uma virtude, uma vez que o apelo
patritico se configura como um ato intencional de pertencimento e participao cidad em
determinada nao, o nacionalismo seria o chamado de uma causa que no hesita em pedir ao
indivduo que sacrifique a prpria vida em seu favor.
Portanto, para Anderson, o nacionalismo no estaria ligado a ideologias polticas
conscientemente elaboradas, mas aos mesmos sistemas de valores hierrquicos e
dominadores. Os Estados naes, nessa forma, se alimentaro de objetivos exploradores,
conquistadores de subjugo de povos e culturas as quais se pretende civilizar.
Nacionalismo: a exacerbao do pertencimento
Uma comunidade imaginada pelo homem mais uma priso poltica para o homem Arjun Appadurai
Existe um correlato poltico da unidade do individual e do universal, conhecido como
Estado-nao. (...) Para serem arrancadas das casualidades do tempo e erguidas condio de
necessidade, as naes precisam da mediao universalizante do Estado (Eagleton (2005, p.
88). O Estado, segundo esse pensamento, vem a ser a instncia capaz de agrupar e emoldurar
as diferenas inerentes aos grupos culturalmente diversos que habitam um territrio. O Estado
estaria na ordem da normatizao, da lei, que concede direitos, deveres e liberdades civis
ampla populao que se organiza e se identifica ao conjunto de costumes, ritos, idiomas, que
qualificam a nao: pertencer a uma nao ao invs de outra to vitalmente importante que
as pessoas muitas vezes esto preparadas para matar ou morrer por essa questo (idem, p.
89). O sentimento de pertencimento a uma nao o combustvel que alimenta o
nacionalismo.
Por meio da afinao de hegemonias dispersas, das diversas expresses culturais
orquestradas a uma narrativa sincronizada que se organizam em torno do Estado nao, e
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reclamam uma existncia singular e representativa, ou seja, atravs da pressuposio de um
vnculo interno entre a cultura e a poltica, e assim:
esto idealmente unidos Estado-nao, ento, ethos e direitos abstratos, unicidade tnica e universalidade poltica, Gemeinschaft e Gesellschaft, o povo comum e a intelligentsia cosmopolita. Idealmente, devoes, costumes e afinidades locais em uma palavra, cultura so preservados, mas h unidade poltica superveniente a eles. (Eagleton, 2005, p. 91)
O Estado nao, portanto, se legitima como o lugar da expresso da cultura de um
povo. Para que essa expresso se torne convincente deve-se reunir e homogeneizar em torno
de um histrico discursivo que viabilize a sustentao e harmonizao das diferenas em
torno de um ideal comum, de um projeto de sociedade. Se a construo do pertencimento a
uma comunidade no passa necessariamente pela construo de uma unidade de Estado, a
construo de uma sociedade, por sua vez, est diretamente ligada ao Estado-nao, e
identificao a um territrio.
O Estado nao se consagra pela capacidade de sntese, de aglutinador de diferenas
entre as diversas comunidades encontradas e espalhadas por um territrio, a fim de
transformar o que fragmentao em coeso textual, narrativa, temporal, geogrfica,
lingstica, cultural, em unidade, por fim. O nacionalismo seria a radicalizao desse
sentimento de unidade, prope fechar os olhos para as diferenas internas e se arma contra as
ameaas externas, contra as possveis quebras dessa harmonia construda e que necessita ser
constantemente renovada.
Por sua vez, a peculiaridade de uma cultura, ou de uma religio, etnia, lngua, se torna
a escusa quando um grupo ou povo busca sua emancipao poltica, (ver Appadurai, 2004) ,
pois medida que a nao pr-moderna d lugar ao Estado-nao moderno, a estrutura de
papis tradicionais j no pode manter a sociedade unida, e a cultura (...) que intervm como
princpio de unidade social (idem, p.42).
Porm, para Eagleton, o potencial unificador da cultura s se realiza efetivamente
atravs do Estado, que a entidade capaz de dar forma e legitimidade real aos vnculos
elaborados culturalmente: de fato, o que distingue originalmente a idia de nacionalismo no
tanto uma reivindicao de soberania territorial, mas de soberania de um povo especfico
que acontece ocupar um particular pedacinho de terra (idem, p. 90). O nacionalismo seria a
exacerbao de um sentimento de unidade reivindicada, de uma legitimidade proclamada, em
torno de um ideal de ns, ou o que Appadurai (2009) vai denominar de um ethnos nacional.
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Anderson explica que primeiramente o nacionalismo foi solicitado para atuar como
solda primeiro em uma relao hierarquizada pelos imprios e dinastias entre povos
colonizados, mais tarde entre as colnias dominadas pelas metrpoles j organizadas em torno
de um Estado nao. Em um segundo momento, no entanto, o mesmo sentimento de
nacionalismo solicitado como reao colonizao (ver Anderson, p. 208), e cita como
exemplo os movimentos de independncia das Amricas, e em seguida, e mais recentemente,
os movimentos conhecidos como ps-coloniais, vivenciado em pases da frica e na ndia,
dentre outros. Nacionalismos, portanto, caminham entre tnues linhas de ortodoxia, tm forte
vocao para fundamentalismos, so as sementes do fascismo, e geralmente, acompanham-se
por altas doses de racismo.
A cultura nesse contexto passa a imbuir-se de uma atuao vital no campo da poltica,
alm de se aproximar da identidade, vinculando-se a um atributo discursivo prximo do que
vivemos na contemporaneidade, da cultura como o lugar da expresso de uma identidade, da
expresso da diferena: Desde a dcada de 1960, a palavra cultura foi girando sobre seu
eixo at significar quase exatamente o oposto. Ela agora significa a afirmao de uma
identidade especfica nacional, sexual, tnica, regional (Eagleton, 2005, p.60).
Para empreender a construo de pertencimentos em torno do Estado, tendo em vista
que todo agrupamento est sujeito s inmeras disparidades culturais intrnsecas s
complexidades tnicas, de idioma, religio, e vincul-los a solidariedades especficas,
necessrio lanar-se materializao dessa comunidade. Para tanto a imaginao pode ser um
ingrediente solicitado, tendo como motor dessa idia uma cultura homogeneizada em torno de
semelhanas construdas e alinhavadas pela criao imaginria a um pertencimento conjunto.
Assim, h substancial fator imaginativo nos relatos que do forma e materialidade aos Estados
naes, e na cultura local onde se conectam o simblico e os sentidos formatados em textos
e relatos.
Para Anderson, como visto anteriormente, seria a subjetividade social, criada pelo
romance e pelo jornal, o alicerce para que elementos discursivos e comunicacionais
promovam o terreno para sedimentao das comunidades. E assim, a imaginao se
materializa em forma de textos, sons, batalhas, conquistas, enfim, em forma de histria, de
continuidade, de linearidade, que aponte, sobretudo, para o futuro, legitimado pelo passado.
Novamente, a cultura realiza intersees entre a poltica e a identidade, construindo pontes e
borrando fronteiras do que poderia ser considerado, pelo menos primeira vista, como
campos distintos e particulares.
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O Estado nao se fundamenta na modernidade como sendo o principal smbolo de
uma unidade conquistada, de um ideal de ns homogneo, representativo de uma autoridade
paternalista e defensora dos discursos sintetizados em torno de uma histria comum.
Anderson aponta os acontecimentos da Primeira Guerra, seguida pela Segunda Grande
Guerra, alm da criao da Liga das Naes, como os ltimos acontecimentos que
sedimentaram a instncia do Estado nao, o lugar do pertencimento total e soberano,
expresso de um etnos nacional, glorificado pelos textos de uma cultura comum.
Porm, preciso atentar para os aspectos que operam na elaborao do estado e em sua
homogeneidade e ao mesmo tempo fornecem elementos para a sua desestabilizao: o ideal
de ns tem sua vulnerabilidade exposta a partir da ampliao e complexificao das
comunicaes de massa e das migraes. Esses dois fenmenos, por sua vez, so
potencializados na esteira das amplas mudanas proporcionadas pela globalizao. E nesse
contexto que passaremos a pensar as novas formas ou as reinvenes de se pertencer.
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Captulo 3 Cultura e globalizao, migraes e meios de comunicao de massa Se o Estado nao fundamenta sua supremacia durante o perodo moderno,
constituindo-se como aquele que territorializa o pertencimento, a partir da legitimidade de
suas leis, costumes, cultura, povo, demarcao de fronteiras geogrficas e limites territoriais,
baseado na segurana e na soberania, essa sensao vem definitivamente ser posta em cheque
pela globalizao. Com o advento da globalizao surge um novo vocabulrio cujo principal
efeito vem a ser a relativizao da maior parte do que constitui e caracterizou o Estado-nao,
desestabilizando e borrando fronteiras antes consideradas fortemente delineadas. Assim,
fragmentao, desterritorializao, transnacionalidade e pluripertencimentos vm acrescentar
novos significados e maneiras de vivenciar o cotidiano contemporneo, construindo pontes
virtuais e velozes, onde trocas e fluxos se tornam cada vez mais complicados e difceis de
mapear.
O mundo passa a se tornar regido pela busca de um mercado produtor e consumidor
comum, onde os fluxos volteis de capital constroem e ao mesmo tempo destroem economias,
e cada vez menos esse movimento pode ser entendido por meio de polaridades. Sbitas crises
financeiras entram para a ordem do dia, desestabilizando bolsas de valores transcontinentais
em um mercado global interdependente e vulnervel. Nesse contexto, a produo se torna
transnacional, em que um carro de uma montadora de origem al
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