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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - CAMPUS DE CASCAVELCENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
CURO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS – NÍVEL DE MESTRADO E DOUTORADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE
PATRICIA ZANCANARO GODIN
DA MARGEM À CADEIA: ADOLESCENTES NA CRIMINALIDADE E O DISCURSO VEICULADO PELA VEJA
CASCAVEL –PR
2017
PATRICIA ZANCANARO GODIN
DA MARGEM À CADEIA: ADOLESCENTES NA CRIMINALIDADE E O DISCURSO VEICULADO PELA VEJA
Dissertação apresentada à Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE –para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível de Mestrado e Doutorado - área de concentração: Linguagem e Sociedade.
Linha de Pesquisa: Estudos da linguagem: Descrição dos fenômenos linguísticos, culturais, discursivos e de diversidade.
Orientador: Prof. Dr. João Carlos Cattelan
CASCAVEL –PR
Para Khristian, pelo apoio e amor incondicionais. E por acreditar neste sonho nas vezes que nem eu mesma
acreditei.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais por serem a base sob a qual eu construí e realizei muitos sonhos, dentre eles a concretização deste mestrado.
A minha doce Amanda, cuja existêncialeva tudo a fazer sentido.
A Khristian Bayer, meu amor e companheiro de vida, projetos, ideias, sonhos e conquistas.
A minha irmã Marcia, por acreditar em mim e por compartilhar comigo, desde o início da minha existência, todos os meus sonhos e planos para o futuro.
Ao professor orientador João Carlos Cattelan, pela dedicação, atenção eorientação comprometida durante a realização deste trabalho.
Às professoras Roselene e Luciane que compõem a banca desta dissertação, pelos apontamentos relevantes para a concretização deste trabalho.
A minha querida colega de mestrado e amiga Fernanda Pereira, pelas inúmeras conversas, sugestões e apoio durante o período de produção deste trabalho e também por ser uma pessoa de infinita luz e bondade que eu tive o prazer de
conhecer e me aproximar nestes últimos anos.
Aosdemais colegas da pós-graduação, que dividiram saberes ecompartilharamdificuldades, tornando esta caminhada mais prazerosa.
GODIN, Patricia Zancanaro. Da margem à cadeia: adolescentes na criminalidade e o discurso veiculado pela Veja. 2017. 100 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, 2017.
RESUMO
O presente trabalho visa analisar quais efeitos de sentido emergem do discurso da revista Veja sobre adolescentes que cometem ato infracional (ACAI), tomando como perspectiva teórica a corrente francesa da Análise de Discurso (AD), partindo, sobretudo, de Pêcheux (1990; 1995; 1999; 2014). Para tanto, trabalha-se com sequências discursivas extraídas de seis matérias inseridas na editoria Geral da revista, publicadas entre abril de 2013 e janeiro de 2016, que abordam a temática da criminalidade na adolescência, para que, por meio da materialidade linguística, possa-se averiguar a prática discursiva desta revista. Veja é a revista mais vendida no Brasil, seus números expressivos de venda a tornam representativa nacionalmente e seus posicionamentos, ligados a acontecimentos de âmbito nacional, são significativos. Desse modo, a revista encontra-se em um lugar privilegiado no que diz respeito à formação de opinião pública, quer seja dentro do país, quer seja como referencial para as nações estrangeiras. A revista, inserida no Discurso Jornalístico, atua na institucionalização de sentido(s), e contribui com a construção do imaginário social criando modos de ver e interpretar a realidade. Assim, busca-se investigar a produção de sentidos da revista, relacionando o linguístico com sua exterioridade constitutiva para, então, compreender a emergência de determinados sentidos em detrimento de outros. Destaque-se que a análise procura não apenas apontar evidências no discurso da Veja, mas, sobretudo, trabalhar com o processo de produção das evidências identificando as marcas do ideológico que determinam o curso de cada discurso. Acredita-se que elucidar as práticas discursivas e conhecer o processo de construção e de reprodução dos discursos hegemônicos sobre os ACAI, seja um passo fundamental na elaboração e difusão de um discurso alternativo, contra-hegemônico e a construção de um olhar generoso sobre esses jovens no que tange às suas trajetórias de risco, sofrimento e descaso social.
Palavras chave: Análise de discurso, adolescente que comete ato infracional, efeitos de sentido, revista Veja
GODIN, Patricia Zancanaro. From the margin to the Jail: teenagers in criminality and the discourse published by Veja magazine. 2017. 100 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, 2017.
ABSTRACT
The present work aims to analyze what effects of meaning emerge from the discourse of Veja magazine about adolescents, who commit an infraction act (ACAI), taking as theoretical perspective the french Discourse Analysis (AD), starting from Pêcheux (1990) 1995) (1999) (2014). In order to do so, we have worked with discoursive sequences (SD) extracted from six articles included in the magazine's General Publication, published between April 2013 and January 2016, which address the theme of crime during adolescence, so that, the discursive practice of this journal can be verified through linguistic materiality. Veja is the most sold magazine in Brazil, its expressive sales numbers make it representative nationally and its positions, related to national events, are significant. In this way, the journal is in a privileged place regarding the construction of public opinion, whether within the country or as a reference for foreign nations. The magazine, inserted in the Journalistic Discourse, acts in the institutionalization of meaning(s), and contributes to the construction of the social imaginary creating ways of seeing and interpreting reality. Thus, this work seeks to investigate the production of meanings of the journal, relating the linguistic to its constituent exteriority, so that it will be possible to understand the emergence of certain senses in detriment of others. It should be emphasized that the analysis seeks not only to point out evidences in the discourse of Veja magazine, but, above all, to work with the process of production of the evidences, identifying the marks of the ideological that determine the course of each discourse. It is believed that elucidating the discursive practices and knowing the process of construction and reproduction of the hegemonic discourses over the ACAI, will be a fundamental step in the elaboration and diffusion of an alternative, counter-hegemonic discourse and the construction of a generous look on these young people, in relation to their trajectories of risk, suffering and social neglect.
Keywords: Discourse analysis, adolescent who practices infraction act, effects of meaning, Veja magazine
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1
1. O ARCABOUÇO TEÓRICO DE AD.....................................................................................6
1.1 Do estruturalismo à teoria do discurso............................................................................6
1.2 Discurso........................................................................................................................10
1.3 Sentido, Paráfrase e Polissemia...................................................................................16
1.4 Formação discursiva e Formação ideológica................................................................19
1.5 Interdiscurso..................................................................................................................23
1.6 Condições de produção................................................................................................26
1.7 Ideologia e sujeito.........................................................................................................29
2. ADOLESCENTE, MENOR, ATO INFRACIONAL E REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO CENÁRIO NACIONAL: discursos e contradiscursos..................................................34
3. VEJA: uma prática discursiva.........................................................................................43
4. LUGAR DE BANDIDO É NA CADEIA: Veja e a redução da maioridade penal............50
5. PARA A IMPUNIDADE, A CADEIA: Veja e o reforço de paráfrases.............................68
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................92
REFERÊNCIAS......................................................................................................................95
O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta
o poder do qual nos queremos apoderar.
1
INTRODUÇÃO
As causas da criminalidade na adolescência éuma questão que vem
ganhando dimensões cada vez maiores no cenário brasileiro devido ao crescente
número de jovens que se envolvem com a criminalidade. O modelo de produção
capitalista é atravessado por profundas contradições em suas características mais
desiguais e excludentes. Alguns jovens, cujas vidas sãomarcadas pelas rígidas
desigualdades sociais e pela alienação do mundo do capital, encontram na
violência uma maneira individual de fazer parte do sistema, o que gera a sua
associação direta à criminalidade.
Como consequência, os adolescentes que cometem ato infracional
(doravante ACAI) são estigmatizados e sua imagem banalizada por meioda
grande imprensaque tem o poder de construirsentidos positivos ou negativos
acerca deles, além de mobilizar pré-conceitos, dando determinada ênfase a
matérias de crimes cometidos por adolescentes, principalmente adolescentes de
classe pobre.
Quando se fala em mídia, é preciso lembrar que ela representa uma das
instituições que influenciam na formulação de modos de ver e de interpretar a
realidade, haja vista que se faz presente em todos os lugares e momentos da vida
dos indivíduos. Nesse sentido, sob a forma dos veículos de comunicação e do
discurso jornalístico (doravante DJ), ela circula opiniões, impressões, conceitos e
julgamentos. Especificamenteno caso dos ACAI, a mídia age sobre o imaginário
social, construindo um efeito de verdade que leva os indivíduos a pensarem de
determinada maneira, como se as informações veiculadas representassem a
realidade. Outras vezes, ela busca criar uma realidade à parte, apontando formas
de viver e de pensar:
Os discursos veiculados pela mídia, baseados em técnicas como a confissão (reportagens, entrevistas, depoimentos, cartas, relatórios, descrições pedagógicas, pesquisas de mercado), operam um jogo no qual se constituem identidades baseadas na regulamentação de saberes sobre o uso que as pessoas devem fazer de seu corpo, de sua alma, de sua vida(GREGOLIN, 2007, p. 11).
2
Pode se afirmar que os veículos midiáticos têm, com frequência, emitido
juízos sobre a questão da criminalidade na adolescência, seja apontando
soluções para o problema, ou condenando a ‘impunidade’ em se encontram os
ACAI. Refletir sobre essa questão é o fator que impulsiona esta pesquisa, a qual
propõe a investigar como a revista Veja se posiciona sobre o assunto. O objetivo,
então, é identificar quais efeitos de sentido emergem do discurso da revista Veja sobre adolescentes que cometem ato infracional.
O corpus desse trabalho é composto pela análise de sequências
discursivas (SDs) extraídas de seis matérias inseridas na editoria Geral da
revista,publicadas entre abril de 2013 e janeiro de 2016, que abordam a temática
da criminalidade na adolescência. Entende-se que é por meio da materialidade
discursiva que serão encontrados os vestígios do processo de produção do
discurso daVeja e os efeitos de sentido produzidos por ela.Espera-se, ainda,
perceber o posicionamento da revista sobre as medidas preventivas contra a
entrada de adolescentes na criminalidade, ou seja, quais seriam, para ela, as
medidas preventivas e remediativas apresentadas para a questão.
Ressalta-se que a escolha da Veja ocorre por sua representatividade
nacional, pois é a revista mais vendida no Brasil com uma tiragem superior a um
milhão de cópias semanais, fator que justifica a escolha para a análise da
produção discursiva. O semanário participa ativamente de discussões de cunho
ideológico e político, bem como veicula, com certa frequência, reportagens sobre
o tema em questão.
Para fornecer as bases para a análise, tomou-se como perspectiva teórica
acorrente francesa da Análise de Discurso (AD), partindo, sobretudo, de
Pêcheux(1990; 1995; 1999; 2014). De acordo com Gregolin (2007), “a articulação
entre os estudos da mídia e os de análise do discurso enriquece dois campos que
são absolutamente complementares, pois ambos têm como objeto as produções
sociais de sentidos” (GREGOLIN, 2007, p. 13). Enquanto a mídia produz sentidos,
a AD se propõe a investigar como os indivíduos são afetados por eles em termos
de leitura de mundo. Assim, uma análise desenvolvida a partir da AD contempla
aspectos que estão além do dito, que superam o plano superficial da leitura, que
expõem o que está implícitoe, além disso, mostra como os não ditos significam.
Para Orlandi (2010), “a análise de discurso concebe a linguagem como mediação
3
necessária entre o homem e a realidade natural e social” (ORLANDI, 2010, p. 15).
Ainda, segundo ela, o objeto da AD é o “discurso” e o significado de “discurso”
contém a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento, ou seja, é a
linguagem em movimento.
Nesse sentido, a autora defende que o que interessa para a AD é ‘o
significar’, ou seja, a língua enquanto produtora de sentidos, levando em conta os
fatores externos que contribuem para isso, ou seja, os fatores sociais que levam o
homem a se“expressar” de determinada maneira.
A AD preocupa-se com a maneira como o discurso é afetado por fatores
históricos e ideológicos, pois entende que o funcionamento da linguagem não é
constituído por fatores puramente linguísticos. Logo, tendo em vista o objetivo da
AD, este campo teórico relaciona-se com outras áreas do conhecimento como o
Materialismo Histórico e a Psicanálise, buscando contemplar aspectos relativos à
produção dos discursos que a Linguística por si só não conseguiu alcançar.
Retomando os estudos do filósofo Louis Althusser sobre ideologia, Michel
Pêcheux,precursor da AD, “propunha uma teoria do discurso em que se
concebesse o discurso como uma materialidade ideológica” (AMARAL; ZOPPI
FONTANA, 2015, p.42). Pêcheux (2014)entendia a ideologia como uma estrutura
por meio da qual os indivíduos são interpelados em sujeitos. De acordo
comAmaral e Zoppi Fontana(2015), Pêcheux,
na sua proposta de uma teoria materialista dos processos discursivos, traz para o campo dos estudos da linguagem a concepção althusseriana de Ideologia, definindo-a como uma estrutura-funcionamento que dissimula sua existência no interior mesmo de seu funcionamento, produzindo um tecido de evidencias subjetivas[...]nas quais se constitui o sujeito (AMARAL; ZOPPI FONTANA, 2015, p. 42).
Dessa maneira, é a interpelação ideológica que possibilita a inscrição dos
indivíduos em uma determinada formação discursiva e “pela interpelação
ideológica em sujeito inaugura-se a discursividade” (ORLANDI, 2010, p. 48).
Destaca-se que este trabalho não parte de uma perspectiva em que se
considera a imprensa como uma instância manipuladora, visto que o processo de
produção do discurso decorre de um processo mais complexo. Além do mais, há
de se considerar que, para a AD, cada veículo de comunicação está situado em
4
um contexto sócio-histórico-ideológico específico, o que determina seu discurso.
Portanto, entende-se que as posições defendidas pelaVeja resultam de fatores
condicionantes que provêm de uma formação discursiva (FD) e se materializam
no discurso.
Entretanto, por outro lado, é importante assinalar que “o ato de noticiar [...]
não é neutro nem desinteressado: nele se encontram, entrecruzando-se,
interesses ideológicos e econômicos do jornal” (MARIANI, 1999, p.102), o que
significa que a neutralidade midiática é ilusória.
Para a sua constituição, este trabalho será segmentado da seguinte
maneira:No primeiro capítulo, apresenta-se o arcabouço teórico da AD que dá
suporte para a pesquisa. Este capítulo é dividido em cinco seções, que visam
tratar dos principais conceitos da teoria. No item “Do estruturalismo à teoria do
discurso”, discute-se como a teoria do discurso se constitui e quais as
articulações que ela faz.Nos itens seguintes,discutem-se os conceitos de
Discurso, Sentido, Paráfrase e Polissemia, Formação discursiva e Formação
ideológica, Interdiscurso, Condições de Produção, Sujeito e Ideologia, bem como
a relevância desses conceitos para a teoria do discurso.
No segundo capítulo, ADOLESCENTE, MENOR, ATO INFRACIONAL E REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO CENÁRIO NACIONAL: discursos e contradiscursos, buscou-se apresentar um panorama geral da legislação voltada
para os adolescentes que cometem ato infracional e uma breve retomada
histórica dessas leis e as práticas que elas legitimavam sobre esses sujeitos. O
capítulo seguinte buscou fazer alguns apontamentos sobre o discurso jornalístico
e a revista Veja, mostrando algunsdados considerados significativos sobre o
semanário para melhor compreensão do objeto de pesquisa.
O quarto capítulo, intitulado LUGAR DE BANDIDO É NA CADEIA: Veja e a redução da maioridade penal é destinado à apresentação da análise da
reportagem O dever de reagir, em que, a partir da polêmica originada pelo
assassinato cometido por um adolescenteque completaria 18 anos três dias após
o crime,Veja constrói uma argumentação em defesadaredução da maioridade
penal, ancorada na tese de que justiça significa punição. Baseando-se em uma
visão simplista e silenciadora, a revista apresenta três razões pelas quais a
mudança na legislação deveria acontecer.
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No capítulo seguinte,PARA A IMPUNIDADE, A CADEIA: Veja e o reforço de paráfrases, destinado à análise das SDs das demais reportagens, são
apresentadas considerações que permitem identificar regularidades presentes na
FD da Veja. Novamente a revista defende o endurecimento da legislação pautada
na tese de que justiça significa punição e, por meio de diferentes paráfrases,
retoma os mesmos ditos que apontam para a criminalização dos ACAI e os
relegam à prisão, seja pela punição ou pela prevenção.
Por fim, apresentam-se asconsiderações finais, momento em que se as
respostas para as motivações iniciais desta pesquisa são comentadas.
6
Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
Michel Foucault
1.O ARCABOUÇO TEÓRICO DE AD
1.1 Do estruturalismo à teoria do discurso
Em linhas gerais, este capítuloapresenta as bases teóricas da Análise de
Discurso, partindo de seu surgimento na França, na década de 60, e discutindo os
conceitos que são relevantes para o desenvolvimento deste trabalho. Para
tanto,foram apresentadas algumas considerações sobre o empreendimento que
resultou na AD, bem como sobre quais foram os objetivos iniciais da disciplina,
seu surgimento e os desdobramentos atuais.
O início do século XX foi marcado pela eclosão dos estudos linguísticos
desencadeados pela teoria inaugural de Ferdinand Saussure e pela obra Curso de Linguística Geral. Considerado o pai da Linguística Moderna, Saussure,
docente da Universidade de Genebra, desenvolveu uma série de estudos sobre a
língua(gem) que revolucionaram o campo da Linguística e a fizeram ser
concebida como ciência e modelo para as outras ciências.
Dentre as dicotomias elencadas por Saussure, ele concebe, numa delas, a
língua e a linguagem como acontecimentos distintos. Para ele, a língua
não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social, para permitir essa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence, além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade (SAUSSURE, 1939, p. 17).
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Esta dicotomia é tomada como princípio básico de reflexão para a distinção
que é feita entre os estudos da linguagem, em geral, e da língua, em particular, e
do discurso. Saussure (1939) concebia a língua como uma unidade pronta, um
produto social da linguagem e uma ferramenta que auxilia os indivíduos a
produzirem os atos de fala. Conforme explica Marcuschi (2008)
O mestre genebrino concebia a língua como um fenômeno social, mas analisava-a como um código e um sistema de signos. A dar credito aos ensinamentos contidos no Curso, interessavam-lhe apenas o sistema e a forma e não o aspecto de sua realização na fala ou no seu funcionamento em textos (MARCUSCHI, 2008, p. 27).
A linguagem, por sua vez, para ele, constitui-se num conjunto mais
complexo, que envolve fenômenos físicos, psíquicos e fisiológicos. Na dicotomia
mencionada, Saussure estabeleceu uma dicotomia entre a língua e a fala, visto
que, para ele, “a língua não constitui, pois, uma função do falante: é produto que o
indivíduo registra passivamente; não supõe jamais premeditação, e a reflexão
nela intervém somente para a atividade de classificação”(SAUSSURE, 1939, p.22).
Já a fala,
é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1°, as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2°, o mecanismo psico-físico que lhe permite exteriorizar essas combinações (SAUSSURE, 1939, p.22).
Saussure apontou, assim, para a necessidade de uma linguística da fala e
de uma linguística da língua e se dedicou ao estudo da última. Os estudos
doautor mudaram os rumos da Linguística moderna. Sua contribuição teórica
iniciou o movimento denominado como ‘estruturalismo’ e teve influência sobre
diversas áreas até os dias atuais. Além disso, foi a partir de seu trabalho que a
Linguística passou a ser autônoma, “separando-se dos estudos históricos, da
psicologia, da filologia e da literatura” (MARCUSCHI, 2008, p. 27).
No entanto, estudos posteriores buscaram contemplar o que Saussure
alijou da teoria, ou seja, os aspectos que não podem ser contemplados a partir de
sua visão de língua como um sistema fechado. Dentre as diversas correntes
dedicadas a estudar a linguagem (que não serão debatidas aqui, visto que não se
8
configuram como foco deste trabalho), a ADé uma disciplina que se propôs a
estudá-la a partir de seus aspectos linguísticos, históricos e ideológicos.
É dessa forma que o filósofo francês Michel Pêcheux inaugura, na década
de 60, a Teoria do Discurso, a partir da publicação da obra Análise automática do discurso e de doisartigos publicados sob o pseudônimo de Thomas Herbert.
O seu objetivo inicial era instigar uma reviravolta no campo das Ciências Sociais
e, ao mesmo tempo, fornecer o instrumento científico de que teriam necessidade.
De acordo com Henry (2014), para Pêcheux, há uma ligação direta entre as
Ciências Sociais e a prática política, cujo instrumento é o discurso. Dessa
maneira, Pêcheux, “tendo em vista provocar uma ruptura no campo ideológico
das ciências sociais, escolheu o discurso e a análise de discurso como o lugar
preciso para se intervir teoricamente” (HENRY, 2014, p.24) e recusou a
concepção de linguagem proposta pelas ciências sociais, que a reduziam a um
instrumento de comunicação: “é justamente para romper com a concepção
instrumental tradicional da linguagem que Pêcheux fez intervir o discurso”
(HENRY, 2014, p.25).
O que Pêcheux buscava, com a teoria do discurso, era um modo de pensar
a linguagem na sua relação com a história, articulando conhecimentos oriundos
de outros campos, em uma tentativa de conciliar a historicidade das relações e
práticas do homem com os aspectos relativos à língua e à linguagem.
Inicialmente, a teoria de Pêcheux esteve voltada para o discurso político,
visto que a década de 60 foi afetada por grandes transformações políticas e
econômicas. Conforme afirmado, o autor buscava causar uma reviravolta no
campo das Ciências Sociais, pois “esse modo de reflexão estava comprometido
com o empirismo, embaraçado na problemática subjetivista (centrada no
indivíduo), e ligado ao formalismo” (MARIANI, 2008, p.46). Conforme explica
Orlandi (2010),
Em uma proposta em que o político e o simbólico se confrontam, essa nova forma de conhecimento coloca questões para a Linguística, interpelando-a pela historicidade que ela apaga, do mesmo modo que coloca questões para as ciências sociais, interrogando a transparência da linguagem sobre a qual elas se assentam (ORLANDI, 2010, p. 16).
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Desse modo, buscando constituir uma teoria que servisse como método e
que contemplasse uma análise da linguagem em todos os aspectos, Pêcheux
(2014) relacionou a teoria do discurso com conhecimentos advindos de três
outras áreas:
1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;2.a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação, ao mesmo tempo;3.a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.Convém explicitar ainda que essas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica)(PÊCHEUX; FUCHS,2014 p.160).
Dessa articulação resultou o empreendimento que propõe analisar a língua
a partir de outra perspectiva, a do discurso, e pensar a questão do sentido de
maneira diferente do que propunham as teorias linguísticas tradicionais.
Pêcheux inscreve sua reflexão nos princípios fundamentais da concepção materialista de história e, assim, instaura o campo de conhecimento da Análise de Discurso sob a regência de uma ‘teoria do discurso’ orientada e inscrita no materialismo histórico (AMARAL; ZOPPI FONTANA, 2015, p.42).
Pêcheux concebe o discurso como uma esfera determinada, sobretudo,
pelo campo ideológico. Contudo, o autorreconhecea indispensabilidade da língua
como base linguística, submetida a leis internas próprias, como suporte para os
processos discursivos. Conforme explica o autor,
É, pois, sobre a base dessas leis internas que se desenvolvem os processos discursivos e não enquanto expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva, etc., que utilizaria ‘acidentalmente’ os sistemas linguísticos (PÊCHEUX, 1995, p.91).
Para ele, a língua é utilizada por sujeitos que se inscrevem em relações
ideológicas de classes, o que faz com que esse sistema, embora seja o mesmo
para todos, não seja utilizado por todos damesma maneira:
Diremos que as contradições ideológicas que se desenvolvem através da unidade da língua são constituídas pelas relações contraditórias que mantêm, necessariamente, entre si os ‘processos discursivos’, na medida em que se inscrevem em relações ideológicas de classe(PÊCHEUX, 1995, p. 93).
10
Portanto, embora os processos discursivos se desenvolvam sobre a
mesma base linguística, os discursos não são os mesmos,isto é, apesar de a
língua ser comum a todos, os(efeitos de) sentidos se diferenciam, uma vez que
são afetados pela ideologia. Dessa maneira, importa àADtomar a língua enquanto
base comum para que os processos discursivos se desenvolvam.
Sendo assim, em AD, “não se trabalha, como na Linguística, com a língua
fechada nela mesma, mas com o discurso [...] nem se trabalha, por outro lado,
com a história e a sociedade como se elas fossem independentes do fato de que
elas significam” (ORLANDI, 2010, p.16).
O trabalho com a AD não busca se debruçar sobre questões de
organização dos signos ou sobre regras normativas. A ela, interessa o sentido
produzido na/pela língua, uma vez que procura “compreender a língua fazendo
sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral do homem e
da sua história” (ORLANDI, 2010, p.15); compreender os sentidos dos textos
considerando o sujeito inscrito numa circunstância histórica e observando o
homem, significando e compreendendo significados enquanto efeitos de uma
determinada sociedade. Conforme explica Orlandi (2010),
A Análise do Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando (ORLANDI, 2010, p. 15).
Dessa maneira, o que interessa àAD é a significação, ou seja, a língua
enquanto produtora de sentidos, levando em conta os fatores externos que a
afetam eque levam o homem a falar de uma maneira e não de outra.Logo, em
AD, faz-se necessário,sobremaneira,tratar do conceito de‘discurso’, pois a teoria
se constitui a partir de e em torno dele.
1.2 Discurso
Oconceito de‘discurso’parte, sobretudo, de Pêcheux (2014)e não indicia um
objeto no sentido empírico do termo. O discurso aponta parafuncionamento da
11
linguagem e coloca em relação sujeitos afetados pela língua e pela história em
um complexo processo de constituição de sentidos e dos próprios sujeitos.
Conforme explicitadopor Orlandi(1987),
A noção fundamental, parece-me, é a de funcionamento. Quer dizer, do ponto de vista da Análise do Discurso, o que importa é destacar o modo de funcionamento da linguagem, sem esquecer que esse funcionamento não é integralmente linguístico, uma vez que dele fazem parte as condições de produção que representam o mecanismo de posicionamento dos protagonistas e do objeto do discurso (ORLANDI, 1987, p. 107).
A autora esclarece que fazem parte do discurso outros fatores além dos
ingredientes linguísticos;portanto, ele não pode ser concebido como transmissão
de informação oumeio de comunicação, já que a linguagem serve também para
não comunicar. Dessa forma, oque acontece entre os interlocutores é o
processode produção de efeito de sentidos: “o termo discurso[...] não trata
necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B, mas, de modo
mais geral, de um ‘efeito de sentidos' entre os pontos A e B” (PÊCHEUX, 2014,
p.81 - grifo do autor), como esse trabalho procuroumostrar, quando busca analisar
os efeitos de sentido que a Veja (re)produz, buscando estabelecer práticas
discursivas em torno do adolescente que comete ato infracional.
Aproximar o ‘discurso’ da significaçãoe distanciá-lo da tese da transmissão
de informaçãopermite refletir sobre o funcionamento da linguagem de maneira
não reducionista, isto é, pensar a linguagem a partir da perspectiva do discurso
implica considerar a relação entre a língua e a sua exterioridade.
Conceituar ‘discurso’significa, pois, “colocar em relação o campo da língua
(suscetível de ser estudada pela Linguística) e o campo da sociedade (apreendida
pela história e pela ideologia)” (GREGOLIN,1995, p.17). Neste sentido, pensa-se
o discurso como materialização da ideologia. Nas palavras de Brandão (2004), ele
é o ponto onde se articulamprocessos ideológicos e fenômenos linguísticos.
Segundo Fiorin (1990),
o discurso deve ser visto como objeto lingüístico e como objeto histórico. Nem se pode descartar a pesquisa sobre os mecanismos responsáveis pela produção do sentido e pela estruturação do discurso nem sobre os elementos pulsionais e sociais que o atravessam. Esses dois pontos de vista não são excludentes nem
12
metodologicamente heterogêneos. A pesquisa hoje precisa aprofundar o conhecimento dos mecanismos sintáxicos e semânticos geradores de sentido; de outro, necessita compreender o discurso como objeto cultural, produzido a partir de certas condicionantes históricas, em relação dialógica com outros textos (FIORIN, 1990, p. 177).
‘Discurso’ não possuium sentido empírico,não representa a comunicação
entre interlocutores da enunciação e não pressupõe um sistema; pelo contrário,
ele pressupõe um funcionamento e uma materialidade ideológica dosaspectos
que envolvem e afetam os homens em suas relações sociais,colocados em uma
determinada classeno seio da sociedade.
Convémdiferenciar ‘discurso’ e ‘texto’: “enquanto o texto é um enunciado
materializado, o discurso abarca uma esfera mais ampla da prática de linguagem”
(ORSATO, 2009, p.53). O discurso compreende vários textos que circulam e
estão presentes na sociedade, sendo o segundo a ponta do iceberg de uma
FD.Em suas relações cotidianas e sociais, o homem produz discursos em
diferentes esferas. Estes discursos materializam-se por meiode textos que
circulam na sociedade e se inscrevemem diferentes gêneros.
Todavia, o que interessa para a AD é o estudo do texto a partir de seus
aspectos histórico-ideológicos. Isso implica remetê-lo àdeterminada FD e
considerar as suas condições de produção, isto é: quem produziu o texto, para
quem ele foi produzido, em que momento histórico e quais eram as relações
ideológicas que afetavam o contexto de produção. Conforme explica Pêcheux
(2014),
é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma, sendo necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção (PÊCHEUX, 2014, p. 78).
Até os desdobramentos que levaram a Linguística a ser concebida como
ciência, estudar um texto era
colocar a seu respeito questões de natureza variada provenientes, ao mesmo tempo, da prática escolar que ainda é chamada de compreensão do texto, e da atividade do gramático sob modalidades normativas ou descritivas; perguntávamos ao mesmo tempo: ‘De que fala este texto?’ e ‘Este texto está em conformidade com as normas da língua na qual ele se apresenta?’ ou então
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‘Quais são as normas próprias a este texto?’(PÊCHEUX,2014, p. 59).
Assim, por muito tempo, olhou-se para os textos como unidade pronta e
acabada e estabelecer a sua ‘compreensão’ significavatranscorrer sua superfície
para entender o que ele dizia e/ou como ele dizia.Um destes caminhos seria a
Análise de Conteúdo que, de acordo com Pêcheux (2014), situa-se “em um nível
supralinguístico, pois o que está em questão é o acesso ao sentido de um
segmento do texto, atravessando-se sua estrutura linguística” (PÊCHEUX, 2014,
p. 63).
A AD contesta a noção de significação sustentada pela Análise de
Conteúdo, pois, “para esta, o sentido de um texto são as informações que ele
contém”(POSSENTI, 2011 p.358) e seu método de leitura se baseia no
levantamento da informação representadapor categorias temáticas.Para a AD,
para chegar ao sentido de um texto, épreciso remetê-loa condições de produção
específicas:
A ruptura da AD com a análise de conteúdo se dá tanto pela crítica da leitura baseada em categorias temáticas quanto pela diferente abordagem do sentido: em lugar de seu tratamento como informação, a AD introduz a noção de efeito de sentido entre interlocutores(POSSENTI, 2011, p.358).
Portanto, para a AD, a relevância da análise do texto é enquanto discurso,
isto é, há que se desvendar o que não está dado na superfície linguística, ou seja,
os seus aspectos ideológicos, sociais e históricos que envolvem, em primeira
instância, a produção do discurso até a sua materialização enquanto texto:
Entendemos, portanto, discurso como um dos patamares do percurso de geração de sentido de um texto, o lugar onde se manifesta o sujeito da enunciação e onde se pode recuperar as relações entre o texto e o contextosócio-histórico que o produziu(GREGOLIN, 1995, p.17).
O conceito de discurso também encontra respaldo em Foucault1 (2008).
Para ele, o discurso é “um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem
1Michel Foucault é trazido para este trabalho por considerar-se importante para o enriquecimento teórico, entretanto, embora este autor também faça parte da AD, seus apontamentos teóricos se desencontram em alguns conceitos e perspectivas da linha central que segue esta dissertação, respaldada, sobretudo, em Michel Pêcheux.
14
na mesma formação discursiva" (FOUCAULT, 2008, p. 132). O discurso pertence
a um
conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2008, p. 133).
Para Foucault (2008), os discursos são concebidos como uma dispersão,
ou seja, não estão ligados por um princípio de unidade. Para o autor, é necessário
recuperar as regras capazes de compor o discurso,ou seja, as chamadas regras
de formação, isto é, os princípios de regularidade dados por uma mesma FD.
De acordo com o autor, essas regularidades seriam estabelecidas por meio
da análise dos enunciados, visto que o enunciado é o ingrediente principal que
constitui um discurso que, no entanto, não se reduz a uma formação linguística de
signos com estrutura e delimitações; ao invés disso, constitui-se como “função
que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que
apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (FOUCAULT, 2008,
p. 98).
Descobrir tais regularidades significa interrogar a emergência dos
discursos, isto é, o que possibilita o aparecimento de um discurso e impede o
surgimento de outro, pois, toda vez que algo é dito, há outro dito interditado que
deixa de vir à tona por forças coercitivas. Esse jogo de forças provém da
exterioridade, que dita direções, impõe barreiras e controla as práticas discursivas
em um determinado momento histórico. Assim, analisar a prática discursiva da
revista Veja significa interrogar a emergência de determinados sentidos, ou seja,
porque se diz X e não Y sobre adolescentes que cometem ato infracional, quais
as condições de produção desse discurso e a qual/quais discurso(s) ele interdita.
Foucault (1996) destaca, ainda, o discurso como o lugar de articulação
entre o saber e o poder, uma vez que“quem fala, fala de algum lugar, a partir de
um direito reconhecido institucionalmente. Esse discurso, que passa por
verdadeiro, que veicula saber (o saber institucional), é gerador de
poder”(BRANDÃO, 2004, p.37).
15
Logo, pensar em discurso leva a pensar em efeito de sentido e fazer
análise de discurso significa entendercomo o discurso se constitui, quais são as
relações que o cercam, como os ditos se organizam e os nãoditos significam. O
analista deve transcorrer a superfície linguística, buscando as marcas deixadas
pelo ingrediente ideológico quedetermina o curso de cada discurso.
O discurso possui um fio que se liga a outros ditos e também não ditos
para construir o sentido. À AD, importa mostrar como um dito silencia outro e
também porque os ditos vêmà tona e não outros, como se exemplifica a partir da
SD abaixo,que compõe a linha fina da matéria O dever de reagir da edição nº
2318,publicada pela revista Vejaem 24 de abril de 2013:
SD01: Por ser menor de idade, o assassino de Victor Deppman vai ficar não mais que três anos internado. Isso tem de mudar.
De acordo com a SD acima, Veja afirma que o adolescente que matou
Victor Deppman ficará três anos internado por cometer o crime apenas por ter
menos de 18 anos. Ao final da SD, a revista enfatiza queessa situação “tem de
mudar”. Ao analisar discursivamente esta SD, verifica-se que a expressão“não
mais que”produz o efeito de que o tempo que o adolescente ficará internado é um
tempo curto. Para Veja,seria necessária uma pena maiordo que três anos pelo
assassinato. Já “Isso tem de mudar”mostra que a revista se inscreve em uma FD
que entende que os ACAI devem ser condenados e punidos como adultos, sendo
passível a aplicação de penas maiores.
O que não está dito nesta SD é que ambos os rapazes eram menores de
idade: tanto Victor Deppman quanto o rapaz que cometeu o assassinato. O que
fica em silêncio é que o adolescente assassinado pertenciaà classe média,
possuía uma identidade, um nome e sobrenome, uma família e um lugar na
sociedade. Jáo adolescente que cometeu assassinato é designado como
‘assassino’.Seu nome é apagado,destitui-se sua identidade, assim como o seu
lugar/posição na sociedade:
Resta a esses sujeitos a segregação, como se aqueles que estão à margem o fazem por escolha própria, apagando as (não) condições de estarem em outro lugar, considerado, por quem vive ‘dentro das regras comuns, o lugar de quem
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trabalha, estuda, enfim, sobrevive ‘dignamente’ (OLIVEIRA, 2015, p. 197)
É da ordem do ‘discurso’, portanto, colocar o dito em relação com o não
dito. O que é interditado também significa, pois ofator ideológicose manifesta na
língua, cria realidades e produz (efeitos de) sentidos. Tendo em vista que pensar
em discurso implica pensar em efeito de sentido, faz-se necessário abordar como
o sentido é entendido pela AD.
1.3Sentido, Paráfrase e Polissemia
Ao colocar em relação os aspectos linguísticos e os fenômenos históricos
na construção dos dizeres, a teoria do discurso de Pêcheuxdesenvolve uma
noção peculiar de ‘sentido’ e rompecom a ideia de literalidade, visto que a língua
não é um sistema fechado e imutável, masestá sujeita às “condições de
possibilidade do discurso” (ORLANDI, 2010, p. 22).
A teoria proposta por Pêcheux (2014)parte da concepção do sentido como
‘efeito de sentido’, o qual é gerado no interior de uma FD e é afetado por
determinações externas. De acordo com Cattelan (2008),
Pensar o sentido como um efeito é assumir que os recursos da língua não são estáveis; é afirmar que o sentido que assumem são próprios do acontecimento discursivo de que fazem parte, podendo não vir a se repetir (CATTELAN, 2008, p. 34).
Para a AD, o sentido não está colado às palavras e não tem uma relação
direta com o mundo e com as coisas: “o sentido não é função de um
significante/palavra, mas de uma dupla ou de uma (n)upla de
significantes/palavras em relação de mútua substituibilidade” (POSSENTI, 2011,
p.372).
Dessa maneira, descarta-se a literalidade ou a predeterminação dos
sentidos. Também não se pensa em correspondência entre significante e
significado comopropunha Saussure. O sentido é construído a partir de posições
ideológicas e históricas dadas e é formulado no interior de uma FD, por meio de
um processo complexo que independe da vontade e da consciência do
enunciador. Sobre isso, Pêcheux (1995)afirma:
17
Uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe seria ‘próprio’, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva (PÊCHEUX, 1995, p. 161).
Para refletir sobre a questão da determinação do sentido, Pêcheux
(2014)esboça o conceito de ‘efeito metafórico’, sendo ele a determinação do
sentido por meio da relação que uma palavra ou expressão mantém com um
conjunto de outras palavras ou expressões que possuem entre si uma relação
passível de substituição: “Chamaremos efeito metafórico o fenômeno semântico
produzido por uma substituição contextual” (PÊCHEUX, 2014, p. 96).
Nessa perspectiva, a construção de sentido das palavras “nunca é o
sentido de uma palavra, mas de uma família de palavras que estão em relação
metafórica” (POSSENTI, 2011, p.372) no seio de uma FD.
Assim como acontece com as palavras, também acontece com o domínio
dos enunciados. O sentido dos enunciados é efeito da relação de substituibilidade
por enunciados pertencentes a uma mesma FD.De acordo com Pêcheux e Fuchs
(2014), o sentido é construído e
a produção do sentido é estritamente indissociável da relação de paráfrase entre sequências tais que a família parafrástica destas sequências constitui o que se poderia chamar a ‘matriz de sentido’. Isto equivale a dizer que é a partir da relação no interior desta família que se constitui o efeito de sentido, assim como a relação a um referente que implique este efeito (PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 167).
Isto significa que, para produzir sentido, o sujeito recorre,
inconscientemente, a uma rede de palavras e enunciados já ditos, isto é, a uma
família parafrástica, que se constitui como uma “matriz de sentido” (PÊCHEUX,
2014, p. 167) no interior de uma FD. Logo, pensa-se em paráfrase enquanto
matriz de sentido, ou seja, como uma base de formulação do mesmo dizer: “a
paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer” (ORLANDI
2010, p. 36).
Embora o sujeito tenha a ilusão de ser a origem do discurso, os enunciados
apenas se formulam a partir de outros querepousam sob uma memória discursiva.
Produzem-se, assim, formulações variadas desse discurso. O funcionamento
18
parafrástico e o efeito metafórico estão imbricados quanto à constituição de
sentidos. Eles trabalham como processo de sustentação e de retomada dos
sentidos de uma FD.
Acresça-se à paráfrase outra noção relativa ao funcionamento da
linguagem: a polissemia.Orlandi (2010) a define como “a simultaneidade de
movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico” (ORLANDI, 2010, p.
38).A polissemia representa a “ruptura dos processos de significação” (ORLANDI
2010, p. 36), isto é, o deslocamento das regras de produção da linguagem,
fazendo intervir outros sentidos.Para a autora, essas duas forças trabalham
movimentando os dizeres, de modo que representam o mesmo e o diferente.
Dessa maneira, segundo ela, o funcionamento da linguagem ocorre em meio a
um jogo entre processos parafrásticos e polissêmicos, entre o estabilizado e a
ruptura.
Enquanto a paráfrase configura-se como retomada dos já-ditos, a
polissemia representa o deslocamento que acontece por meioda “ruptura do
processo de produção da linguagem, pelo deslocamento das regras, fazendo
intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos
na sua relação com a história e com a língua” (ORLANDI, 2010, p.37).
Para compreender o processo de constituição dos discursos, é preciso
pensar na relação entre o mesmo e o diferente,tendo em vista que é por meio
dele que os sujeitos e os sentidos se movimentam. Ademais, a AD pensa a
linguagem enquanto polissêmica, pois a língua está sujeita a equívocos, com
margem para deslizes e lugar de outro possível, em que se manifestam os efeitos
ideológicos que circunscrevem os homens nas suas relações.
Neste sentido, entender quais são os efeitos de sentido gerados pelo
discurso da Vejasobre os ACAIimplica analisar como ocorrem os processos
parafrásticos e polissêmicos no discurso do semanário, ora (re)formulando
sentidos cristalizados, ora movimentando outros sentidos.Para tanto, apresenta-
se, a seguir, uma análise sumária da SD exposta no item anterior;busca-se, aqui,
entender quais são os efeitos de sentido propiciados pela SD.
SD01: Por ser menor de idade, o assassino de Victor Deppman vai ficar não mais que três anos internado. Isso tem de mudar.
19
Ao afirmar “isso tem de mudar”,Veja se refere à legislação brasileira que
determina que o período máximo de internação de um ACAI seja de três anos.
Nessa SD, a afirmação do semanário vai ao encontro de um determinado
consenso sobre o menor criminosoque defende a redução da maioridade penal.
O que se verifica nessa SD é uma paráfrase de que adolescente que
comete crime é bandido e deve ser condenado e punido como adulto. O
semanário enfatiza “os três anos”como um tempo curto, assume a necessidade
de mudança eproduzum outro/mesmo dizer a partir de um sentido
sedimentado.Os efeitos de sentido dessa SD se restringem a construções que
apontam para a penalização e a depreciação dos ACAI, que são determinados
pela FD de que Veja é suporte.
Para precisar o conceito e a determinação da FD sobre o discurso, aborda-
se, a seguir,oseu conceito ea sua relevância para a teoria do discurso enquanto
instância em quese constitui o sentido.
1.4Formação discursiva e Formação ideológica
Para a AD, o sujeito é determinado pela FD e é atravessado pela ideologia.
Ele não possui controle sobre seus dizeres, pois é a FD que regula o processo de
constituição dos sentidos; ele sofre as determinações do fator ideológico. Todavia,
para entender esse processo, é importante pensá-lo enquanto produto das
relações de classe e do modo de produção dominante de determinada formação
social.
Para Pêcheux e Fuchs (2014), a “reprodução contínua das relações de
classe é assegurada materialmente pela existência de realidades complexas
designadas por Althusser como ‘aparelhos ideológicos do Estado’” (AIE)
(PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 163). Para eles, os AIE põem em jogo “práticas
associadas a lugares ou relações de lugares que remetem às relações de classe”
(PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 163) e estas se organizam em formações que
mantêm entre si relações de confronto, aliança ou dominação. Assim, é no interior
dos AIE que são constituídas formações ideológicas (FIs):
Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento (este aspecto da luta nos aparelhos) suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento; desse
20
modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras. (PÊCHEUX;FUCHS, 2014, p. 163)
As FDs, por sua vez, “representam ‘na linguagem’ as formações
ideológicas que lhe são correspondentes” (PÊCHEUX 1995, p. 161), isto é, elas
materializam a ideologia por meioda linguagem. Logo, a FI está para o crer
enquanto a FD está para o falar, sendo estas duas instâncias discursivas
norteadas pela ideologia. Sobre isso, Pêcheux e Fuchs (2014) explicam que
se deve conceber o discursivo como um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade ideológica. Dito de outro modo, a espécie discursiva pertence, assim pensamos, ao gênero ideológico, o que é o mesmo que dizer que as formações ideológicas ‘comportam necessariamente’ como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito[...] numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes. (PÊCHEUX;FUCHS, 2014, p.163-164).
Para os autores, a Ideologia age por meiodas FIs realizando a interpelação
dos indivíduos em sujeitos a partir de uma determinada conjuntura, isto é, a partir
de características particulares que levam em conta “características ‘regionais’ (o
direito, a moral, o conhecimento, Deus, etc.) e, ao mesmo tempo, de suas
características de classe” (PÊCHEUX, 2014, p.164).
O conceito de FD é fundamental para a AD, “pois permite compreender o
processo de produção de sentidos, a sua relação com a ideologia e também dá
ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no funcionamento do
discurso” (ORLANDI, 2010, p.43).Para Pêcheux (1995), a FD é “aquilo que, numa
formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura
dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve
ser dito” (PÊCHEUX, 1995, p 160).Isso significa dizer que os enunciados são
produzidos a partir de elementos ditados por uma FD, criandoum efeito ilusório de
escolha, ou seja: o indivíduo tem a impressão de ter o controle do discurso
quando é condicionado pela ideologia e pela condição de produção de um lugar
social. Dessa maneira, “o sujeito é levado, então, a deixar de fora de seu discurso
elementos que possam trazer à tona outras formações ideológicas,
21
estabelecendo-se, assim, uma ‘seleção’ de crenças, valores e formas linguísticas”
(TAVARES, 2006, p. 194).
A noção de FD éoriunda de Foucault (2008). Ele a concebe desse modo:
no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 43).
Assim, a FD é concebida por Foucault comouma dispersão em cujo interior
se produz um conjunto de regras, as quais definem o sentido dos enunciados que
a constituem. Essas regularidades são constituídas depré-construído. Para
Brandão (2004),
O pré-construído remete assim às evidências através das quais o sujeito dá a conhecer os objetos de seu discurso: ‘o que cada um sabe’ e simultaneamente ‘o que cada um pode ver’ em uma situação dada. Isso equivale a dizer que se constitui, no seio de uma FD, um Sujeito Universal que garante ‘o que cada um conhece, pode ver ou compreender’ (BRANDÃO, 2004, p.48).
É a partir do domínio da FD que se produzem os pontos de estabilização
no sujeito, que levam a ver e a entender a realidade de certo modo. Reconhecer a
si mesmo como sujeito ocorre no interior das FDs; é ai que o sentido se constitui.
Dessa maneira, uma FD representa discursivamente as formações
ideológicas, isto é, a forma de pensar e de ler o mundo dosujeito, o que
demonstra o caráter ideológico dos sentidos e implica a articulação entre
linguagem e ideologia. Logo, os sentidos são construídos na medida em que são
remetidos à determinada FD.
Pêcheux (2014) reitera que as FDs existem no interior de relações de
classe e se reformulam na história, ou seja, fornecem elementos que podem ser
retomados em outras relações ideológicas, transformando-se em outrasFDs e
originando outros discursos. Assim, deve-se compreender que uma FD não
éfechada e homogênea:“Elas são constituídas pela contradição, são
heterogêneas nelas mesmas e suas fronteiras são fluidas, configurando-se e
reconfigurando-se continuamente em suas relações” (ORLANDI, 2010, p.44).
22
Nesse sentido, Pêcheux (2014) afirma ser impossível precisar as fronteiras
entre FD, FI e condições de produção, considerando o caráter dialético destes
conceitos. Portanto, é preciso pensar nos elementos que trabalham para a
composição do processo discursivo como unidades indissolúveis.
Diante do que vem sendo discutido, busca-se, agora, analisar a SD01 de
modo a identificar em que FD predominanteVeja se inscreve:
SD01: Por ser menor de idade, o assassino de Victor Deppman vai ficar não mais que três anos internado. Isso tem de mudar.
Veja se inscreve em uma FD que toma os ACAI como bandidos que devem
ser punidos. Esta FD, por sua vez, está inserida em uma FI de bases direitista e
neoliberal2, que se harmonizam e se caracterizampor um modelo de
gerenciamento de estado e capitalque beneficia, sobretudo, os interesses da
classe média, classe esta de que não faz parte a maioria dos adolescentes que
praticam crimes, já que,
Segundo Rocha (2002), havia no país 9.555 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação e internação provisória. Destes, 90% (noventa por cento) eram do sexo masculino; 76% (setenta e seis por cento) tinham idade entre 16 e 18 anos; 63% (sessenta e três por cento) não eram brancos e destes 97% (noventa e sete por cento) eram afrodescendentes; 51% (cinqüenta e um por cento) não freqüentavam a escola; 90% (noventa por cento) não concluíram o Ensino Fundamental; 49% (quarenta e nove por cento) não trabalhavam; 81% (oitenta e um por cento) viviam com a família quando praticaram o ato infracional; 12,7% (doze vírgula sete por cento) viviam em famílias que não possuíam renda mensal; 66% (sessenta e seis por cento) em famílias com renda mensal de até dois salários mínimos, e 85,6% (oitenta e cinco vírgula seis por cento) eram usuários de drogas. (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE- p.19, grifo nosso)
Logo, os sentidos produzidos a partir desta FD serão sempre negativos
com relação aos ACAI, porque a gama de enunciados disponibilizados para a
construção dos dizeres sobre eles estão em relação de substituibilidade no
interior desta FD. Isto é, embora sejam palavras ou expressões literalmente
diferentes, no interior da FD elas recebem o mesmo sentido.2Afirmação feita a partir de Silva (2008) em que a autora, em um estudo sobre a Veja, conclui que a revista atua sob as bases de uma ideologia neoliberal e trabalha em prol de hegemonizar tal modelo de gerenciamento de capital na sociedade.
23
1.5 Interdiscurso
Acrescente-se outro conceitoda AD que faz parte constitutiva do processo
de produção do discurso: o‘interdiscurso’. Pêcheux (1995) o enfatizaafirmando
que a sua objetividade material contraditória é dissimulada pelas FDs:
[...] propomos chamar interdiscurso a esse ‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação que [...] caracteriza o complexo das formações ideológicas (PÊCHEUX, 1995, p. 162).
A noção de interdiscursoao deslocamento de palavras ou enunciados
acontece historicamente entreFDs e concerne aocaráter heterogêneodo discurso.
O interdiscurso surge como o já-dito e como o fio pelo qual passam os discursos
que se pautam em uma FD e seencontram em relação de dependência para com
esse “todo complexo com dominante”, ratificando/retificando certos sentidos.
A noção de interdiscursode Pêcheux (1995) mostra a dependência das
FDspara com o interdiscurso: “Toda formação discursiva dissimula, pela
transparência do sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito ao
‘todo complexo com dominante’” (PÊCHEUX,1995, p.162). Assim, toda FD será
definida, construída e mantida sobre a relação com o ‘interdiscurso’ como
princípio de constituição.
Logo,assim como uma FD é margeada pelointerdiscurso, a interpelação
dos indivíduos em sujeitos de seu discurso também passa pelo fio do
interdiscurso. Conforme explica Pêcheux (1995),
Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito):essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-inscritosno discurso do próprio sujeito (PÊCHEUX, 1995, p. 163).
Nessa perspectiva, o sujeito ocupa lugares no seio social: lugar do
professor, do aluno, do pai, e é levado a enunciar a partir do que esta posição
requer, ou seja, a FI e a FD determinam o que pode e o que não pode ser dito em
cada posição.
24
A noção de interdiscurso, paraOrlandi (2010), não se diferencia de
memória discursiva, pois ela julga existir uma proximidade entre as duas
concepções: “A memória [..]tem suas características quando pensada em relação
ao interdiscurso.E nessa perspectiva ela é tratada como interdiscurso”(ORLANDI,
2010,p.31).
Para Pêcheux (1999), por outro lado,
a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem reestabelecer os implícitos (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição legível em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 1999, p. 52)
A noção de interdiscurso que Orlandi propõe, mais ou menos, na esteira de
Pêcheux, surge como memória, isto é, um passado discursivo eum conjunto de já-
ditos que sustentam a formulação dos novos dizeres. Para a autora,
Pelo conceito de interdiscurso, Pêcheux nos indica que sempre já há discurso, ou seja, que o enunciável (o dizível) já está aí e é exterior ao sujeito enunciador. Ele se apresenta como séries de formulações que derivam de enunciações distintas e dispersas que formam em seu conjunto o domínio da memória. Esse domínio constitui a exterioridade discursiva para o sujeito do discurso (ORLANDI, 1992, p. 89-90).
Assim, a noção de interdiscursocumpre a função de “designar o exterior
específico de uma FD” (PÊCHEUX, 2014, p.310).Por isso, toda FD só se constitui
e se mantém por meio de sua relação com o discurso outro.
Para Possenti (2011) a noção de ‘interdiscurso’de Maingueneau (1997) é
operacional para a AD e a ideia de espaço discursivo proposta pelo autor coincide
com a definição defendida por Pêcheux.Para Maingueneau (1997),
O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma forma discursiva é levada [...] a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos (MAINGUENEAU, 1997, p. 113).
25
O autor ainda propõe pensar no interdiscurso a partir de uma tríade que
inclui o universo discursivo, o campo discursivo e o espaço discursivo.No primeiro
caso, o autor entende o conjunto de FDs de uma conjuntura dada. Para Possenti
(2011), esse universo constitui-se como o horizonte a partir do qual se constroem
os campos discursivos.Os campos discursivos se referem ao conjunto de FDsque
se encontram em concorrência em uma região desse universo: “É no interior do
campo discursivo que um discurso se constitui [...] tal constituição pode ser
descrita em termos de operações regulares sobre FDs já existentes”
(MAINGUENEAU, 1997,apud POSSENTI, 2011,p.383).O espaço discursivo, por
sua vez, refere-se a subconjuntos de FDs, cuja relaçãodeve ser julgada relevante
pelo analista.
Maingueneau (1997) aloca no interdiscurso a relação do “Mesmo do
discurso e seu Outro” (MAINGUENEAU, 1997, p. 32), isto é, o outro como
condição para o mesmo: “O Outro encontra-se na raiz de um Mesmo sempre já
descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de
ser considerado sob a figura de uma plenitude autônoma”(POSSENTI, 2011,
p.384).
A noção de interdiscurso possibilita dizer que os discursos sempre estão
em relação de troca, isto é, não são independentes uns dos outros. O
interdiscurso funciona como um passado/presente discursivo de discursos
distintos e dispersos.Isso justifica o fato de as sequências linguísticas possíveis
de serem enunciadas por um sujeito já estarem dadas, pois são intercambiáveis e
circulam entre diferentes FDs, fator que constitui o interdiscurso sob condições de
produção dadas.
Para o desenvolvimento deste trabalho, parte-se, sobretudo, do conceito de
interdiscurso proposto por Pêcheux, pois ele define e constitui uma FD enquanto
evidência discursiva e como possibilidade de relação entre discursos. Ele indicia,
assim, a relação de um discurso com outros discursos, fazendo emergir outros
sentidos. Por isso, toda FD só se define na sua relação com o interdiscurso, pois
é ele que dá forma à FD, permitindo as interferências discursivas.Isso significa
que estudar um discurso é colocá-lo em relação com outros e que a emergência
de uma FD surge por meio do interdiscurso como um espaço de regularidade em
quediversos discursos entram na sua composição.
26
Portanto, analisar o discurso de Veja, isto é, analisar seus
posicionamentos, significa entender como os sentidos emergem no interior de
uma FD e na relação com outros discursos, ora se mantendo e ora se
deslocando.
Uma análise da SD01, a partir da perspectiva do interdiscurso, permite que
se vislumbre a que discursoa Veja se opõe, polemicamente:
SD01: Por ser menor de idade, o assassino de Victor Deppman vai ficar não mais que três anos internado. Isso tem de mudar.
Aoafirmar“Isso tem de mudar”, o semanário se contrapõe a uma FD que
entende que a redução da maioridade penal não deve acontecer e que três anos
de internamento é um tempo de reclusão apropriado para a recuperação
dosACAI, incluso nesta FD, está o discurso jurídico3, que assegura a
inimputalibilidade penal aos menores de 18 anos.
Assim, parte-se de um discurso que assegura a inimputabilidade de
menores de idade para um discurso que os condena. O interdiscurso perpassa
essas duas FDs, na medida em que carrega posicionamentos diferentes sobre
eles. Enquanto em uma FD eles são vistos como bandidos e criminosos, na outra,
eles são tidos como crianças/adolescentes que ainda se encontram em processo
de construção de identidade e, por ainda não possuírem completa consciência
dos seus atos, não devem ser submetido ao sistema criminal e criminal comum.
No entanto, deve-se entrever que, para além dessa controvérsia, a
passagem de um discurso para outro mantém, por meio de memória
discursiva,que a solução para a criminalidade é a penalização. Logo, a punição
seria o caminho para conter a criminalidade praticada por adolescentes. A única
diferença entre elas se refere à idade em que imputabilidade seria adequada.
1.6 Condições de produção
A noção de ‘condições de produção’, (CP) que será abordada a partir de
agora, configura-se como um conceito central para a AD. Pêcheux (2014) define
as CP como circunstâncias de um discurso, ou seja, as condições nas quais um
discurso está inserido.Elas “compreendem fundamentalmente os sujeitos e a
3Discurso jurídico é entendido neste trabalho sob a forma do ordenamento jurídico vigente, as leis.
27
situação” (ORLANDI, 2010, p.30).Em sentido estrito, a circunstância diz respeito
ao contexto imediato do discurso e, em sentido amplo, está relacionada ao
contexto sócio-histórico e ideológico. Todavia, deve-se destacar que,
para a AD, os contextos imediatos somente interessam na medida em que, mesmo neles, funcionam condições históricas de produção. Ou seja, os ‘contextos’ fazem parte de uma história, já que, também nessas instâncias de enunciação, os enunciadores se assujeitam à sua FD(POSSENTI, 2011, p.369).
Para Possenti (2011) as CP se distanciam da ideia de contexto e situação,
perspectivas representadas na linguística atual pela pragmática, que supõe
cenários institucionalizados ou ainda situações ritualizadas.Logo,
O que é levado em conta, no que se refere aos participantes de um evento discursivo, não é o eventual conhecimento que tenham das regras que comandam um certo intercâmbio linguístico[...] mas o que lhes escapa[..]: o fato de que cada um enuncia a partir de posições que são historicamente constituídas (POSSENTI, 2011, p. 367).
Ao cunhar a noção de CP, Pêcheux se opõe ao modelo comunicativo da
linguagem4, proposto por Jakobson 1960,no qual considera que o processo de
comunicação se dá entre um emissor (A) e um receptor(B) por meio de um código
comum, a língua, em um determinado contexto e por um canal específico.
Para Pêcheux (2014), a língua/discurso não funciona desse modo. O autor
substitui a noção de “emissor” e “receptor” por locutor e interlocutor e, ao invés de
comunicação, Pêcheux propõe definir ‘discurso’. Ademais, o autor não reconhece
a presença empírica de homens individuais no discurso, mas a representação de
‘lugares’ determinados na estrutura de uma formação social.
Assim, as CPrepresentam uma série de representações que contribuem
para a construção de sentidos. Isso significa que,ao enunciar, o sujeito ocupa
uma determinada posição ideológica, isto é, a posição do patrão, do empregado
etc. A partir desta posição, ele projeta imagens sobre si mesmo e os outros
participantes, que também ocupam lugares discursivos e sustentam determinadas
imagens.
4Não será aprofundado aqui visto que não se configura como foco deste trabalho.
28
Dessa maneira, todo processo discursivo supõe aexistência de formações
imaginárias (FIMs),por meio dasquais os indivíduos produzem imagens de si
mesmos, de seus locutores e do objeto do discurso, o que ocasiona um jogo
ilusivo que coordena a troca de palavras a partir da imagem que cada um faz de
si e do outro(s).Conforme explica Pechêux (2014),
o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações) (PECHÊUX, 2014, p. 82).
Pêcheux (2014) apresenta um quadro por meio do qual é possível
visualizar as FIMs que estão em jogo em todo processo discursivo e esboçam “a
maneira pela qual a posição dos protagonistas do discurso intervém a título de
condições de produção” (PÊCHEUX, 2014, p. 82).Esquematicamente, o autor
apresenta o quadro com asexpressões e respectivas questões que são colocadas
em relação na produção dos discursos. A saber, projeta-se: 1) a imagem do lugar
de A para o sujeito colocado em A, com a pergunta “Quem sou eu para lhe falar
assim?”; 2) a imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A, com a pergunta
“Quem é ele para que eu lhe fale assim?”; 3) a imagem do lugar de B para o
sujeito colocado em B, com a pergunta “Quem sou eu para que ele me fale
assim?”; 4) a imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B, com a pergunta
“Quem é ele para que me fale assim?”; 5) o “ponto de vista” de A sobre R, com a
pergunta “De que lhe falo assim?”; 6) o “ponto de vista” de B sobre R, com a
pergunta “De que ele me fala assim?”. A partir desse complexo jogo de
imagens,constroem-se os processos discursivos. Para Pêcheux (2014), o
contexto ou a situação em que um discurso é construído pertence às CPs.
Pêcheux (2014) defende que a reflexão sobre as CPs permite pensar os
processos discursivos em sua generalidade e considerar que os fenômenos
linguísticos devem ser concebidos em funcionamento, que não é integralmente
linguístico e não pode ser definido “senão em referência ao mecanismo de
colocação dos protagonistas e do objeto de discurso, mecanismo que chamamos
de ‘condição de produção’ do discurso” (PÊCHEUX, 2014, p. 78).
29
Portanto, para a AD, a produção de efeitos de sentido é indissociável das
CPs. Verificar o que um discurso significa implica remetê-lo àsCPs específicas
num momento histórico especifico, isto é, considerar a ligação entre os processos
discursivos e as circunstâncias do discurso.
Dessa maneira, quando Veja enuncia, ela ocupa um lugar determinado na
formação social: o lugar da imprensa jornalística brasileira. Ela produz um
discurso a partir desta posição para um locutor representado por seus leitores.
Isso implica que o semanário se dirija diretamente ao público leitor, em especial,
aos seus leitores que são oriundos, em sua grande maioria, da classe média
brasileira.
Portanto, quando Veja produz um discurso, ela ocupa o seu lugar, que é o
de uma revista política com tendências neoliberais e adepta do capitalismo.
Desse modo, os ditames que a determinam,enquanto esfera jornalística, também
interferem na produção doseu discurso, ou seja, fazem com que ela rompa com a
suposta essência do jornalismo, que teria o dever de ‘informar’, com as demais
implicações que a mídia, enquanto AIE, desempenha na formação social.
Neste sentido, analisar o discurso daVeja significa percorrer o intradiscurso
das reportagens, buscando os vestígios das marcas de produção que determinam
cada tomada de posição da revista. Assim, deve-se partir do texto para o
discurso. Todavia, primeiramente, faz-se necessário discutir sobre como a AD
concebe a constituição do sujeito discursivo e qual a relação deste processo com
a ideologia.
1.7 Ideologia e sujeito
A teoria do discurso proposta por Pêcheux está calcada nos conceitos de
‘ideologia’ e de ‘sujeito’. Para tratar de ‘Ideologia’, Pêcheux retoma os estudos do
filósofo Louis Althusser. Althusser (1985) parte do conceito de ideologia proposto
por Marx e busca desenhar uma concepção mais abrangente. De acordo com ele,
na obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, para manter sua
dominação, a classe dominante gera mecanismos de perpetuação e de
reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração,
usando Aparelhos Repressivos de Estado (ARE): exército, polícia, prisões,
30
tribunais, chefes de estado, governo e administração, e Aparelhos Ideológicos de
Estado (doravante, AIE): família, escola, religião, cultura e mídia.
Para Althusser, estas instituições têm a finalidade de reprodução das
relações de produção assegurada pela superestrutura jurídico-política e
ideológica. O autor destaca, ainda, que não existe aparelho apenas repressivo ou
apenas ideológico, pois ambos trabalham tanto pela ideologia quanto pela
repressão:
Qualquer Aparelho de Estado, seja ele repressivo ou ideológico, funciona simultaneamente pela violência e pela ideologia, mas com uma diferença muito importante que impede a confusão [...]. É que em si mesmo o Aparelho (repressivo) de Estado funciona de uma maneira massivamente prevalente pela repressão (inclusive física), embora funcione secundariamente pela ideologia. [...] Da mesma maneira, mas inversamente, devemos dizer que, em si mesmos, os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam de um modo massivamente prevalente pela ideologia, embora funcionando secundariamente pela repressão, mesmo que no limite, mas apenas no limite, esta seja bastante atenuada, dissimulada ou até simbólica (ALTHUSSER, 1985, p. 47).
A noção de ‘Ideologia’ proposta por Pêcheux toma o conceito elaborado
por Althusser, entretanto, para Pêcheux (1995), as ideologias “não são feitas de
‘ideias’, mas de práticas” (PÊCHEUX, 1995, p. 144). Dessa maneira, a ideologia
deveria ser estudada em sua materialidade expressa no discurso. Pêcheux
entendia que os AIE não eram o modo operante da ideologia da classe
dominante, visto que é impossível atribuir a cada classe sua ideologia, masque
era por meio deles que a ideologia se materializava:
‘A ideologia da classe dominante não se torna dominante pela graça do céu...’, o que quer dizer que os aparelhos ideológicos do Estado não são a expressão da dominação da ideologia dominante, isto é, da ideologia da classe dominante [...], mas sim que eles são seu lugar e meio de realização(PÊCHEUX,1995, p.144-145).
Para o autor, não existe uma ideologia da classe dominante e uma
ideologia da classe dominada; existe, sim, uma ideologia que atravessa a
dinâmica da luta de classes e se concretiza nos AIE.
Ademais, de acordo com Pêcheux e Fuchs (2014), a ideologia não pode
ser concebida como a esfera das ideias e não está acima do mundo das coisas e
31
dos fatos econômicos. Ao contrário, ela deve ser caracterizada como uma
materialidade específica articulada sobre a materialidade econômica. Assim, o
funcionamento da ideologia deveria ser concebido como determinado pela
instância econômica, visto que se configura como uma das condições, condição
não econômica, da reprodução das relações de classes:
Esta reprodução contínua das relações de classe (econômica, mas também, não-econômica) é assegurada materialmente pela existência de realidades complexas designadas por Althusser como ‘aparelhos ideológicos do Estado’ e que se caracterizam pelo fato de colocarem em jogo práticas associadas a lugares ou a relação de lugares que remetem às relações de classes, sem, no entanto, decalcá-las exatamente. (PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p.163)
Eis a importância do conceito de ‘ideologia’ para a teoria do discurso, pois
o discurso é a materialidade específica da ideologia. De acordo com Orlandi
(2010), "um dos pontos fortes da Análise de Discurso é re-significar a noção de
ideologia a partir da consideração da linguagem. Trata-se, assim, de uma
definição discursiva de ideologia" (ORLANDI, 2010, p. 45). Dessa maneira, a
ideologia ganha um sentido maior do que as ideias de classe dominante e
dominada e, por meio da AD, estabelece a relação entre sujeito, língua e mundo
que operam na construção do sentido.
Para Orlandi (2010), a ideologia tem por função produzir evidências que
apagam o processo de interpelação dos indivíduos em sujeitos, dando a eles a
impressão de serem sempre-já-sujeitos e sua inscrição em uma determinada FD
levando-os a crer na literalidade dos sentidos: “São essas evidências que dão aos
sujeitos a realidade como sistema de significações percebidas, experimentadas”
(ORLANDI, 2010, p.47). Para compreender essas evidências, é necessário
discutir como elas ocorrem por meio de esquecimentos.
Para Pêcheux (1995), há duas formas de “esquecimento”.O esquecimento
2 causa a impressão ilusória de linearidade entre o pensamento, a linguagem e o
mundo, ou seja, ele provoca a impressão de controle e de seleção
dosenunciados:
Propomos chamar este efeito de ocultação parcial esquecimento nº2 e identificar aí a fonte da impressão de realidade do pensamento para o sujeito (‘eu sei o que eu digo’, ‘eu sei o que eu falo’) (PÊCHEUX &FUCHS, 2014, p. 175).
32
Esse esquecimento causa a impressão de realidade para o pensamento,
criando uma ilusão referencial, compreendida como evidência do sentido.
Já o esquecimento 1 é ideológico e inconsciente e provoca a impressão de
que o indivíduo é origem dos dizeres e dos sentidos. Ele oculta a maneira como o
sujeito é afetado pela ideologia para que possa ‘significar’: “O esquecimento nº1,
cuja zona é inacessível ao sujeito, precisamente por esta razão, aparece como
constitutivo da subjetividade na língua” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014, p. 177).
Neste sentido, o esquecimento estruturaa subjetividade. Ele se constitui
como um processo necessário para a constituição do sujeito e do sentido, pois as
palavras não se originam nele e os ditos não são dele. O sujeito é o suporte de
um processo que já está em funcionamento.
Para Possenti (2011), a noção de sujeito proposta pela AD talvez seja uma
das principais rupturas da teoria com as demais correntes linguísticas dominantes
e, mais uma vez, Althusser está na origem do conceito, rompendo com a ideia de
ser consciente, dono do discurso e senhor dos sentidos. O sujeito da AD não é a
fonte de sentidos e significados; ele é afetado pela ideologia. Para que produza o
dizer, ele precisa se submeter à língua e à história para constituir e produzir
sentidos.
“Para a AD, não há falante, locutor ou emissor. Há sujeito” (POSSENTI,
2011, p.385) que é interpelado pela ideologia, marcado pelo inconsciente e pela
história, o que significa que nenhum sujeito é a origem dos sentidos e dos
significados: “os sujeitos acreditam que ‘utilizam’ os discursos, quando, na
verdade, são seus ‘servos’ assujeitados, seus suportes” (PÊCHEUX, 1983, apud
POSSENTI, 2011).
Esse assujeitamento é involuntário e não acontece na forma de escala. Os
indivíduos simplesmente entram na ordem do discurso desde o seu nascimento e
são constituídos como sujeitos na medida em que interagem com os outros no
espaço discursivo comum de interlocutores marcados pela ideologia e pela
história. Conforme explica Orlandi (2010), o sujeito é
materialmente dividido desde sua constituição: ele é sujeito de e sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história, pois, para se constituir, para (se) produzir sentidos, ele é afetado por elas. Ele é assim determinado, pois, se não sofrer os efeitos do simbólico, ou seja, se
33
não se submeter à língua e à história, ele não se constitui, ele não fala, não produz sentidos (ORLANDI, 2010, p. 49).
Portanto, para a AD, os sujeitos não correspondem a pessoas empíricas,
mas a lugares sociais. Os sujeitos ocupam lugares determinados na estrutura de
uma formação social, o que os leva a se expressar de determinada maneira, ou
seja, a significar de acordo com o que a posição requer. Orlandi (2010) destaca
que, desse modo, os sujeitos são intercambiáveis, o que significa que, quando se
fala a partir da posição de “mãe”, por exemplo, os sentidos irão derivar do que
requer o lugarde “mãe” inscrita em determinada FD.
Logo, o trabalho em AD leva em conta como os sujeitos se constituem por
meio da ideologia, considerando que esse processo não acontece explicitamente,
mas ele é apagado. Conforme explica Henry (2014),
O que precisa ser compreendido é como os agentes desse sistema reconhecem eles próprios seu lugar sem ‘saber’ que têm um lugar definido no sistema de produção [...] O processo pelo qual os agentes são colocados em seu lugar é apagado;não vemos senão as aparências externas e as consequências (HENRY, 2014, p. 26).
Portanto, para a AD, os indivíduos tornam-se sujeitos discursivos pela
interpelação da ideologia e por meio da identificação com determinada FD.
Considerandoo que foi exposto até aqui,propondo relacionar a teoria a sua
aplicação a um corpus, os conceitos trabalhados neste capítulo serão retomados
na seção de análisedosrecortes discursivosda Veja,todavia, primeiramente, na
seção seguinte, apresentam-se alguns discursos sobre o adolescente que comete
ato infracional, para que se possa entender como a memória discursiva sobre eles
ancora-se em práticas históricas de punição e de repressão.
Sou humano, e nada que é humano me é estranho
Karl Marx
34
2. ADOLESCENTE, MENOR, ATO INFRACIONAL E REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO CENÁRIO NACIONAL: discursos e contradiscursos
Por volta de 1980, a criança e o adolescente passaram a servistos a partir
de outra perspectiva.Movimentos sociais em prol da defesa dos seus
direitosaconteciam em todo o mundo, fator que culminou na Convenção sobre os
Direitos da Infância pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
(ONU). Como fruto desse tratado e do momento que direcionava umolhar especial
sobre a infância, a criança e adolescente passaram a ser percebidoscomo
sujeitos que possuem direitos e necessidades de proteção integral por parte da
família, da sociedade e do estado. No Brasil, o acordado nessa convenção foi
ratificado por meio do artigo 227 e 228 da Constituição Federal de 1988 e,
posteriormente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)5. De acordo
com Sartório (2007),
O ECA é uma lei que nasceu em meio a um contexto de lutas sociais e políticas, de conquistas e rupturas, nasceu em resposta ao esgotamento do Código de Menores, num contexto de afirmação dos direitos humanos, de processo democrático, de descentralização administrativa e de participação da sociedade civil no processo decisório (SARTÓRIO, 2007, p. 32).
Assim sendo, o ECA, cuja Lei é a de nº 8.069/90, criada em 13 de julho de
1990, dispõe, especificamente, sobre os direitos da criança e do adolescente. De
acordo com o documento, considera-se criança “a pessoa até doze anos de idade
incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (Lei
8.069,1990,Art. 2º).Além de produzir um sistema de garantias constitucionais, o
ECA serve como parâmetro norteador para as políticas de atendimento à criança
e ao adolescente e para as ações jurídico-sociais destinadas à infância e à
juventude.
Em seus capítulos, artigos e parágrafos, o ECA discorre sobre os direitos
básicos da criança e do adolescente, afirmando seu valor intrínseco como ser
humano,e sobre as condições necessárias ao seu desenvolvimento físico, mental,
social, moral e espiritual,bem comosobre a necessidade de atenção e de respeito
à criança e ao adolescente. De acordo com o estatuto,
5LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990.
35
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral [...], assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (LEI 8.069,1990, Art.3º).
Sobre os adolescentes que cometem ato infracional, O ECA dispõe de uma
legislação especial voltada para eles, uma vez que “são penalmente inimputáveis
os menores de dezoito anos”(LEI 8.069,1990, Art.104) e, por assim ser, ficam
sujeitos às normas estabelecidas por uma legislação especial.
Desse modo, a responsabilização de adolescentes por prática de infração
acontece por meio da aplicação de medidas socioeducativas que não visam(ou
não deveriam visar) apenas àpunição pelo ato,mas se pautam, sobretudo, na
busca de ressocialização desses jovens por meio da reeducação,dando-lhesapoio
educativo, material e psicológico, para o conhecimento da ilicitude de seus atos e
compreensão da importância do convívio harmônico em sociedade.
De acordo com o ECA, “considera-se ato infracional a conduta descrita
como crime ou contravenção penal”(LEI 8.069,1990, Art.103). Ainda segundo o
documento, no Artigo 112, as medidas socioeducativas passíveis de ser aplicadas
nesses casos podem ser:
I - advertência;II - obrigação de reparar o dano;III - prestação de serviços à comunidade;IV - liberdade assistida;V - inserção em regime de semiliberdade;VI - internação em estabelecimento educacional.
Quando a medida socioeducativa ocorre em regime de privação de
liberdade, isto é, por meio de internação, ela deve acontecer em estabelecimento
educacional e pode durar até, no máximo, três anos. A internação destina-se a
adolescentes que praticaram atos infracionais graves, que descumpriram medidas
anteriormente impostas ou reincidiram em outras infrações graves.
Buscando normatizar e operacionalizar o uso de medidas
socioeducativas,foi aprovado, em 2006, o projeto de lei que criou o Sistema
Nacional de Atendimento Socieducativo (SINASE)6, pela resolução nº119 do
6LEI Nº 12.594, DE 18 DE JANEIRO DE 2012.
36
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), após
um longo período de debates e de construção coletiva, envolvendo
representantes de entidades especializadas na área, em conjunto com os
operadores do Sistema de Garantias de Direitos. Porém, somente em 18 de
janeiro de 2012, é que o SINASE foi sancionado pela Presidenta da República,
por meio da Lei Federal 12.594, “tendo como premissa básica a necessidade de
se constituir parâmetros mais objetivos e procedimentos mais justos que evitem
ou limitem a discricionariedade” (SINASE, 2006, p.13). Assim, o SINASE
“regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente
que pratique ato infracional” (LEI nº 12.594, 2012, Art.1º). SINASE, portanto, é
O conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com a lei. (LEI 12.594, Art. 1º, § 1º, 2012).
De acordo a Lei 12.594 (2012), as medidas socioeducativas têm por
objetivo
I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação;II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; eIII - a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei. (LEI 12.594, 2012, Art. 1º, § 2º,).
Para que essas medidas socioeducativas sejam aplicadas, foram criadas
as unidades de socioeducação que dispõem (ou deveriam dispor) de um plano de
atendimento voltado para a recuperação dos jovens que praticam ato
infracional,tendo uma finalidade educativa.Estes planos são regulamentados pelo
SINASE, segundo o qual
§ 3o Entendem-se por programa de atendimento a organização e o funcionamento, por unidade, das condições necessárias para o cumprimento das medidas socioeducativas.
37
§ 4o Entende-se por unidade a base física necessária para a organização e o funcionamento de programa de atendimento.§ 5o Entendem-se por entidade de atendimento a pessoa jurídica de direito público ou privado que instala e mantém a unidade e os recursos humanos e materiais necessários ao desenvolvimento de programas de atendimento. (LEI 12.594, Art. 1º, § 3º, § 4o, § 5o, 2012).
De acordo com o SINASE, compete aos estados as funçõesde formular,
instituir, coordenar e manter o Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo,
respeitando as diretrizes fixadas pela União, bem como elaborar o Plano Estadual
de Atendimento Socioeducativo de acordo com o Plano Nacional e desenvolver e
manter programas para a execução das medidas socioeducativas de
semiliberdade e internação. Já, aos municípios,competem as mesmas funções,
porém, destinadas às medidas socioeducativas em meio aberto, sempre
respeitando as diretrizes fixadas pela União e pelo respectivo Estado.
Deve-se salientar que as unidades de socioeducação existiam
anteriormente sob o respaldo da Lei nº 6.697, de 19797, o Código de Menores,
porém somente com a instituição do ECA é que se formularam diretrizes objetivas
para o funcionamento destes centros. Finalmente, em 2012, a Lei Federal nº
12.594 foi instauradacom o fim específico de normatizar os centros de
atendimento ao adolescente que pratica ato infracionale a aplicação das medidas
socioeducativas.
Tanto o ECA quanto o SINASE buscam assegurar o respeito e a
integridade do adolescente que pratique ato infracional:
O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. (LEI nº 8.069,1990, Art.17).
Apesar das garantias asseguradas pela doutrina da proteção integral, a
efetivação das medidas socioeducativas encontra uma série de obstáculos,
devido ao baixo número de recursos destinados à aplicação das medidas e o
caráter repressivo que impera nas ações. De acordo com o SINASE (2006),
7Lei N º 6.697, de 10 de outubro de 1979 que dispunha sobre assistência, proteção e vigilância a menores até dezoito anos de idade, que se encontrassem em situação irregular.
38
As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade estabelecem o princípio - ratificado pelo ECA (artigos 94 e 124) - que o espaço físico das Unidades de privação de liberdade deve assegurar os requisitos de saúde e dignidade humana. Entretanto, 71% (setenta e um por cento) das direções das entidades e/ou programas de atendimento socioeducativo de internação pesquisadas em 2002 (Rocha, 2002) afirmaram que o ambiente físico dessas Unidades não é adequado às necessidades da proposta pedagógica estabelecida pelo ECA. As inadequações variavam desde a inexistência de espaços para atividades esportivas e de convivência, até as péssimas condições de manutenção e limpeza. Outras Unidades, porém, mesmo dispondo de equipamentos para atividades coletivas, não eram utilizadas. Muitas Unidades funcionavam em prédios adaptados e algumas eram antigas prisões. Várias dessas se encontravam com problemas de superlotação com registro de até cinco adolescentes em quartos que possuíam capacidade individual e os quartos coletivos abrigavam até o dobro de sua capacidade (ROCHA, 2002, p.70-71) - (SINASE, 2006, p. 20).
Fatores como estes têm dificultado a efetivação das medidas e influenciado
o seu resultado; como consequência, o contingente de adolescentes que praticam
contravenção penal tem aumentado e, então, o sistema penal surge como opção
para conter esses números.
Esse quadro contribui para que vários efeitos de sentido permeiem a
memória social quanto à relação entre a criminalidade e a adolescência. Os
estereótipos mais comuns estão ligados aos qualificativos de ‘criminoso’ e
‘bandido’ e esses sentidos se encontram naturalizados, sendo retomados por
meio de paráfrases.Porém, não se pode esquecer que opresente e o passado
mostram que a problemática da criminalidade na adolescência se relaciona com a
repressão e o abandono que cercam a infância: principalmente a infância pobre.
O ECAsurgiu em substituiçãoaosCódigos de Menores de 19278 e de
1979.Segundo Sartório (2007), a vigência do Código de Menores correspondeuà
etapa tutelar e vigorou por 63 anos, da aprovação do primeiro Código de
Menores, 1927, terminando com a aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente, em 1990e se caracterizava“por concentrar no juiz de menores o
poder de decidir o que era melhor para a criança, não existindo o devido processo
legal”(SARTÓRIO, 2007, p.40). O Código de Menores ainda “destacava a nítida
8DECRETO Nº 17.943-A DE 12 DE OUTUBRO DE 1927 quedispunha sobre assistência e proteção a menores de idade.
39
criminalização da infância pobre, caracterizada como ‘abandonada’ e
‘delinquente’” (POLETO, 2012, p.04).
O Código de Menores dava uma atenção tutelar, protetiva
eassistencialistaaos menores carentes e abandonados,entretanto, os menores
infratores que eram identificados como perigosos recebiam um atendimento
repressor (nada está muito distante do que acontece hoje, portanto).
Desse modo, diferenciavam-se as crianças que eram denominadas
como“crianças em perigo”e“crianças perigosas”. Assim, os discursos populares no
tocante à questão da infância oscilavam “entre a defesa da criança e a defesa da
sociedade contra a criança que se torna uma ameaça ‘à ordem pública’” (RIZZINI,
1995, p. 111). Todavia, Rizzini (2005) reitera que, mesmo no discurso de proteção
à infância, estava embutida a proposta de defesa da própria sociedade, uma vez
que o aumento do contingente de crianças e adolescentes vivendo em situações
extremas poderia instaurar a desordem, o que era um elemento complicador para
os avanços das relações capitalistas em curso.
Mesmo com a aprovação do novo Código de Menores, em 1979,
predominou“o caráter repressivo da legislação anterior, o que repercutiu numa
prática também punitiva e repressiva por parte das instituições de atendimento à
criança e ao adolescente” (SARTÓRIO, 2007, p.29), pois a nova legislação
estabelecia a situação irregular9 de crianças e adolescentes. Como as crianças de
famílias financeiramente elevadas não se encaixavam na situação irregular, o
atendimento jurídico-policial ordenado pela legislação destinava-se às classes
pauperizadas: “Na situaçãoirregular o foco concentrava-se no menor, deixando-
se de considerar as deficiênciasdas políticas sociais” (SARTÓRIO, 2007, p. 29
grifo do autor).
9Considerava-se em situação irregular, para os efeitos da Lei no 6.697, o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal.
40
Assim, “a infância pobre, caracterizada como abandonada e delinqüente,
foi nitidamente criminalizada neste período” e“o termo ‘menor’ foi sendo
popularizado e incorporado na linguagem comum, para além do círculo jurídico”
(RIZZINI, 2000, p. 41). Além do mais, “as classes populares passaram a ser vistas
como perigosas [...] associando-se a imagem do adolescente pobre à da
delinqüência, como marginais em potencial” (SARTÓRIO, 2007, p.36).
Assim, pode-se afirmar que a exclusão e a segregação cercaram a imagem
da criança pobre no Brasil desde o início do século, o que possibilitou uma
contínua (re)produção de discursos condenatórios pautados na crença da
periculosidade do jovem pobre, crença construída socialmente e reproduzida
historicamente.
Sobre a denominação ‘menor’, Njaine e Minayo (2002) reiteram que
Essa adjetivação-substantivada que vem sendo usada desde os tempos de absoluto desprezo do Estado – materializado no Código de Menores – pelos meninos e adolescentes pobres, abandonados, vivendo nas ruas ou autores de infrações, continua a marcar a linguagem de classe de todos os meios de comunicação social do país. Tratar um adolescente como “menor” significa negar a história dele como pessoa e subsumir o “sujeito de direitos” proclamado no ECA, que a sociedade adultocêntricateima em não reconhecer(NJAINE; MINAYO, 2002, p. 290).
Logo, os efeitos de sentido pejorativos produzidos pelo termo ‘menor’são
resquícios da antiga legislação bem como das práticas que envolviam a infância
pobre e abandonada durante o período que precede a criação do ECA: “os termos
criança e menor representam duas categorias que pertencem a uma mesma
faixa etária, mas [...] não pertencem à mesma classe social(SARTÓRIO, 2007, p
35 - grifo do autor). Conforme afirma Rizzini (2004),
O atendimento institucional sofreu mudanças significativas na história recente, particularmente no período que sucedeu a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990). No entanto [...], muitos de seus desdobramentos são ainda marcados por idéias e práticas do passado (RIZZINI, 2004, p. 13).
Fernandes (1998) ressalta que o Código de Menores teve importância, mas
destaca que esse categorizou parte da infância e juventude como abandonada
41
edelinquente, ratificando o caráter discriminatório. O código ainda “inaugurou a
culturamenorista, conservadora, com práticas perversas de intervenção jurídica
nesta área,além dos estigmas com que foram tratados esses sujeitos sociais”
(SARTÓRIO, 2007, p.27).
Nesse sentido, o ECA representa um avanço na legislação,já que assegura
os direitos da criança e do adolescente como prioridade. Entretanto, para Silva
(2005),ele “se esgota no limite de sua demanda, sob o jugo do antagonismo
capital e trabalho, não tendo por apoio um projeto revolucionário de sociedade”
(SILVA, 2005, p. 36).
Apesar dos avanços trazidos pelo Estatuto sobre os direitos da criança e
do adolescente, a opinião pública, seguida de grande parte dos aparelhos de
imprensa, defende a redução da maioridade penal para 16 anos, mais uma vez
penalizando crianças e adolescentes,desconsiderando as circunstâncias sociais e
a falta do Estado para com eles, a partir de uma visão amparada em paradigmas
consolidados ao longo da história que os responsabiliza, assim como outrora, em
detrimento do estudo do contexto social em que vivem.
É bem no sentido punitivo e descontextualizado que o projeto de Lei (PL
171/1993)10 que visa à redução da maioridade penal para 16 anos vem, há anos,
tramitando na câmara de deputados. Segundo dados do site da câmara, o PL
171/1993 que altera a redação do art. 228 da Constituição Federal e reduz a
imputabilidade penal para 16 anos foi apresentado pela primeira vez em 1993,
pelo ex-deputado Benedito Domingos, do PP do Distrito Federal, e, após anos de
tramitação, foi aprovado em 2 de julho de 2015, após uma série de manobras,
debates e protestos. Atualmente, segue em curso ao lado de inúmeros outros
projetos que possuem a mesma finalidade.
Nesse desvão, milhares de adolescentes vivem diariamente entre a
margem e a cadeia, sobrevivendo em meio a uma sociedade que os exclui, uma
legislação que os subjuga e um estado que os ignora como consequência de um
modelo de sociedade capitalista que “se rege por um processo de gestão
neoliberal, o qual não está circunscrito à esfera econômica”
(RIZZINI;ZAMORA;KLEIN, 2008, p. 14).
10Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14493
42
No contexto brasileiro, a periculosidade permeia a imagem dos
adolescentes, em especial daqueles que são oriundos de classes pobres e não
brancos. Ligadas a esta visão,estão a exclusão e amarginalização.
Como resultado, apesar do caráter garantista do ECA, as práticas relativas
aos adolescentes que praticam ato infracional são marcadas pela estigmatização
e pela repressão: “o que está colocado como imperativo da Lei demora emmudar
as práticas repressivas já introjetadas por considerável parte do corpo social, de
ondenão podemos excluir o próprio Judiciário” (RIZZINI et al., 2008, p.9).
A ordem do discurso jornalístico, com seu sistema de exclusões e limites, marcada por um tipo de relação com a
verdade e com a informação (ou melhor, com a verdade-da-informação), está relacionada por um lado com a ilusão
43
referencial da linguagem e, por outro, com seu próprio processo histórico de constituição.
Bethania Mariani
3. VEJA: uma prática discursiva
Os grandes veículos midiáticos brasileiros vêm, há décadas,
‘apresentando’ e ‘representando’ a realidade sob a ideologia da informação e
atuando supostamente sob os pilares da informatividade, da neutralidade e da
imparcialidade:“a imprensa tanto pode lançar direções de sentidos a partir do
relato de determinado fato como pode perceber tendências de opinião ainda
tênues e dar-lhes visibilidade, tornando-as eventos-noticias” (MARIANI, 1996,
p.62).
Dessa maneira, a ‘realidade’ construída pelo Discurso Jornalístico, ao qual
a revista Veja está subordinada, atinge o imaginário social e contribui para a
construção de interpretações acerca de acontecimentos e sobre a ênfase que é
dada a cada acontecimento. Conforme destacam Soares e Silva (2008),
Como aparelho privado de hegemonia, os órgãos de imprensa propõem permanentemente interpretações sobre a realidade que acabam contribuindo para que os leitores formulem suas visões de mundo. Essas formas de pensar influenciam nos comportamentos políticos e sociais dos sujeitos históricos (SOARES; SILVA, 2008, p.70).
Deve-se ressaltar que, para a AD, o discurso é determinado pela posição
dos sujeitos, sendo afetado pelas suas condições de produção. Logo, o DJ não
foge à regra e aquilo que o discurso jornalístico intitula como ‘verdade’ nada mais
é do que o discurso construído a partir dos elementos históricos e ideológicos que
afetaram seu processo de (re)produção.
ODJpossui a capacidade de incorporar e mediar os discursos de vários
sujeitos em diferentes processos sociais; logo, nele, entrecruzam-se interesses de
jornalistas, empresários da comunicação, patrocinadores e outros que, de alguma
maneira, fazem parte da construção da ‘informação’.Portanto, é importante pensar
que, para além das edições veiculadas pela mídia, existem sujeitos afetados pela
44
história e pela ideologia, atuando de acordo com as convicções que determinam
as formações ideológicas e discursivas de que são suporte.
Mariani (1996) define o DJ como um “discurso sobre”,em que o enunciador
produz um efeito de distanciamento daquilo que fala, podendo, assim, emitir
juízos de valores sobre determinada questão ou assunto.Para a autora, “Os
discursos sobre são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos,
portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória” (MARIANI,
1996, p. 64) e levam o enunciador a se colocar no papel de autoridade sobre
aquilo que fala. Dessa maneira, a ‘informatividade’ serve como pano de fundo
para a legitimação de certas convicções que são instauradas a partir da
construção de verdades e padrões.
Keller (2001) aproxima a cultura da mídia ao discurso político no que se
refere ao estabelecimento de hegemonias geralmente de grupos sociais
específicos que buscam um consenso social para legitimar seus interesses:
A cultura da mídia, assim como os discursos políticos, ajuda a estabelecer a hegemonia de determinados grupos e projetos políticos. Produz representações que tentam induzir anuência a certas posições políticas, levando os membros da sociedade a ver em certas ideologias 'o modo como as coisas são'. [...] Os textos culturais populares naturalizam essas posições e, assim, ajudam a mobilizar o consentimento às posições políticas hegemônicas (KELLNER, 2001, p. 81).
Deve-se, pois, pensar no DJ como não sendo imune a interesses ou
tomadas de posicionamento; pelo contrário, o DJ reproduz os valores de um
veículo de imprensa e eles representam as posições ideológicas assentadas
sobre formações ideológicas de uma estrutura social e de relações de classes.
Frise-se, ainda, que,em face do seu caráter de produção hegemônica,a
mídia é um Aparelho Ideológico de Estado que produz ‘Informação’,pois, para
Althusser (1985), um AIE é “um certo número de realidades que apresentam-se
ao observador imediato sob forma de instituições distintas e especializadas”
(ALTHUSSER, 1985, p. 68) e tem por finalidade a reprodução das relações de
produção, isto é, das relações de exploração capitalistas.
Conforme explica Mariani (1996),
45
Em outras palavras, a noção de informação no jornalismo também precisa ser avaliada como decorrência das leis que constituem a idéia de liberdade presente na instituição imprensa. Observando a ‘comunicação referencial’ por este ângulo comunicar/informar/noticiar (na imprensa) são atos resultantes de um controle exterior, vindo do Estado e do sistema jurídico por um lado, e, por outro, de umcontrole internalizado na própria atividade jornalística (MARIANI, 1996, p. 79).
Desse modo, desmistifica-se o caráter informativo e imparcial dos veículos
de comunicação e se acrescentaque a mídia é suporte de uma ideologia, sendo
atravessada por uma FD no seio de uma formação ideológica e produzsentidos a
partir do que ditar a FD pela qual é interpelada.
Neste sentido, pensar em veículo midiático brasileiro de representatividade
leva a refletir sobre a revista Veja. Seus números expressivos de venda a
tornamrepresentativa nacionalmente e seus posicionamentos, ligados a
acontecimentos de âmbito nacional, são significativos.
Veja é uma das revistas pertencentes à editora Abril. Foi fundada por Victor
Civita, um ítalo-norte-americano naturalizado brasileiro. As suas publicações são
semanais e, atualmente, destaca-se por sua representatividade nacional, sendo a
revista mais vendida no país com uma tiragem superior a um milhão de cópias. A
revista teve sua primeira edição em 11 de setembro de 1968, o que significa mais
de quatro décadas de publicação. Veja trata de temas de abrangência nacional e
global, entretanto, discussões de cunho político e ideológico são os de maior
destaque dentro do semanário.
A criação da revista em 1968 foi resultado de longo período de
planejamento quanto à formulação de uma revista no Brasil que seguisse os
moldes da revista americana Time.Roberto Civita, filho de Victor Civita, dono da
editora Abril, estudou nos Estados Unidos, trabalhou como estagiário na Times
Inc. e lá se preparoupara a construção de uma revista que seguisse o padrão da
Time. Após seu regresso ao Brasil, iniciou um trabalho de seleção e treinamento
de profissionais que integrasse o quadro daVeja.Inicialmente, 250 pessoas foram
classificadas para trabalhar.
Apesar do sucesso atual de publicações, os primeiros anos daVeja foram
marcados por prejuízos devido ao baixo número de vendas. Nessa época, o Brasil
passava pelo período de regime militar o que culminou em complicações ainda
46
maiores para a revista que passou a ter suas edições analisadas pela censura
após a publicação do número 15,intitulada Ato Institucional Número Cinco. O
número foi recolhido das bancas pelo regime.A revista só começou a ter sucesso
a partir de 1975, quando implementou o processo de assinaturas; a partir daí,
alcançou o equilíbrio entre despesas e lucros.
Já no início, Veja se configurava como expressiva em termos de
abordagem política. Seu início nos anos 60 foi marcado por tendências
esquerdistas; entretanto, a partir dos anos 90, passou a se alinhar,
gradativamente, a ideias associadas ao liberalismo11 econômico e às políticas de
direita. Ao longo de sua história, a revista tem trabalhado ativamente para
direcionar os rumos da política sendo porta voz de acontecimentos, como, por
exemplo, o processo de impeachment que ocorreu com o ex-presidente Fernando
Collor de Melo.
Destaca-se, assim, o caráter determinante do semanário em
transformações no cenário político brasileiro e sua atuação no sentido de
hegemonizar os ideais neoliberais com que ela compactua.Em seu estudo sobre a
Veja, Silva (2005) conclui que a revista não é apenas adepta dos partidos
neoliberais de direita, mas “age como partido político, na acepção gramsciana do
termo” (SILVA, 2005, p. 632).
Assim como ocorre com os demais partidos políticos, existe para Veja um projeto e um programa de ação que são estabelecidos em conjunto com outros grupos. A revista assume o papel de Estado Maior de um projeto discutido no âmbito do Fórum Nacional, entidadevinculada ao Instituto de Altos Estudos, coordenado pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso. Dele fazem parte remanescentes de vários grupos de organização da direita que se articularam em torno de um projeto, vinculados ao complexo IPES/IBAD/ESG e posteriormente ao Movimento Democrático Brasileiro. Eles foram a base intelectual do projeto econômico posto em prática pela ditadura militar (SILVA, 2005, p.633).
11Para este trabalho, o conceito de neoliberalismo será entendido a partir de Silva (2008) como “um processo, que vem sendo construído ao longo das últimas décadas, levando a modificações na gestão política, na reestruturação produtiva, na linguagem ideológica e na imposição de uma cultura única. Ele se baseia em uma acelerada internacionalização da economia, na financeirização do capital, na desregulamentação de direitos sociais e no desmantelamento da organização dos trabalhadores” (SILVA, 20008, p. 25).
47
Daí parte o caráter político atribuído a Veja.Todavia, a revista não assume
essa posição abertamente, colocando-se como defensora dos interesses coletivos
nacionais e, apesar de seu apoio a determinados partidos políticos ou candidatos
específicos, “seria um erro definir Veja como governista, pois o apoio aos
governos que ela oferece está em relação direta com o cumprimento de
determinadas condições por ela estabelecidas” (SILVA, 2005, p.637).
A autora ainda destaca que a revista possui um projeto pedagógico voltado
à consolidação de ideais capitalistas e combate aquilo que seria vinculado a
ideias esquerdistas como os movimentos sociais, industriais e de trabalhadores:
É aqui onde Veja tem uma ação mais transparente, ou seja, na consolidação de uma visão de mundo, tanto no que diz respeito à própria história vivida, como também na inserção dos seus leitores como seres políticos, agentes em posição específica no mundo do trabalho, o que requer padrões comportamentais de forma mais ampla (SILVA, 2005, p.35).
Dessa maneira, pode-se afirmar que o que a revista busca é a consonância
entre os interesses particulares do seu projeto e os rumos governamentais de
uma política brasileira que caminhe em direção à ordem neoliberal; logo “uma
revista como Veja é um instrumento da luta de classes, na medida em que nela se
constroem embates ideológicos vivos, ou seja, aqueles que dizem respeito ao
desenvolvimento histórico” (SILVA, 2005, p.36).
A produção do ‘sujeito Veja’ é outro fator que Silva (2005) destaca como
sendo estratégico para ocultar o projeto político e pedagógico que envolve toda a
revista. Intitulando-se como mera transmissora da realidade, Veja institui e
cristaliza sentidos que corroboram com a ideologia que interpela todo o projeto
Veja.
Veja busca uma homogeneidade em torno de si, criando um “sujeito” como forma de negar os conflitos que porta. Esse sujeito aparece como homogêneo, e envolve tudo o que for publicado pelos seus jornalistas e editores. O editorial é o lugar preferencial de criação deVeja, ocultando os interesses que encerra. Esse “sujeito” incorpora o que já definiu como função da imprensa no geral, mas estabelece suas especificidades. No editorial, o editor deve sumir e dar lugar a Veja (SILVA, 2005, p. 91, grifo do autor).
48
A criminalidade é uma questão que reiteradamente ganha destaque nas
seções de Veja e a redução da maioridade penal é debatida com frequência tanto
pela revista quanto pelos leitores que têm espaço reservado para tecer
comentários e opiniões na Seção do leitor. A questão da violência praticada por
menores vem à tona sempre que um crime que envolve adolescentes ganha
repercussão. A revista, então, propõe a debater o tema se apresentando como
coerente e competente, como se pode verificar na SD abaixo, retirada da matéria
Justiça só para maiores,da edição de número 2430:
SD02: VEJA se propõe a abordar o problema nesta matéria de maneira corajosa, racional e baseada em fatos – justamente o que tem faltado no debate nacional sobre a diminuição da maioridade penal.
Entretanto, deve-se problematizar a suposta coragem e, principalmente, a
assumida racionalidade que o semanário afirma possuir, pois, conforme afirma
Mariani (1996), “nada é neutro nem transparente em termos da prática discursiva”
(MARIANI, 1996, p. 72). Isto significa que o trabalho de análise discursiva busca
desvendar os fios ideológicos sobre o qual se assentam os discursos e aquilo que
é assumido pela Veja como corajoso e racional, nada mais é do que aquilo que
ela opta por mostrar e, ao mesmo tempo, por ocultar. E, uma vez que a aparência
de evidência que constitui osentido e o sujeito é o efeito ideológico
elementar,cabe ao trabalho de análise desvendar como essas evidências operam
nas práticas discursivas.Para tanto, faz-se necessário consideraros processos
históricos e ideológicos que constituem cada sujeito, fator que também diz
respeito à mídia e à Veja, no caso deste estudo.
Deve-se considerar, portanto, a natureza institucional e ideológica da
revista Veja e problematizar a sua suposta racionalidade e coragem, já que não é
preciso muita coragem para dizer o que se diz aos convertidos e nem se pode
afirmar que seja racional aquilo que é tributário de um lugar/posição social:
Isto quer dizer que no discurso jornalístico, como tal, já se tem uma memória da própria instituição da imprensa agindo na produção das notícias. Memória que atua como um ‘'filtro’ na significação das notícias e, conseqüentemente, no modo como o mundo é significado (MARIANI, 1996, p.72).
49
Para a autora, deve-se considerar a historicidade constitutiva do processo
de produção da instituição nos discursos institucionais e como eles são
realizados, pois “não é porque há normas institucionaisorganizando o dizer que a
prática discursiva pode ser reduzida apenas a um espelho detais normas”
(MARIANI, 1996, p. 72).
Este trabalho entende a revista Veja como um ‘aparelho’suporte de uma
prática discursiva,atravessado por processos históricos e ideológicos de natureza
política. Está-se pensando em um veículo midiático que enuncia sob condições de
produção determinadas em um contexto ideológico específico marcado por
aspectos históricos que se materializamem uma prática discursiva, o que será
mostrado nas próximas seções de análise.
50
O desejo de vingança é um anseio de desfazer o que aconteceu de mau, e de retornar a um passado miticamente
bom. Punindo quem nos feriu, ele reequilibra o que foi perturbado na balança das coisas e restaura uma ordem que pensamos recordar, mas que, na verdade, fantasiamos. Já a
busca da justiça está voltada para o futuro. Ela exige, pois, que esqueçamos. Não há justiça sem esquecimento.
Esquecimento quer dizer também anistia.
Renato Janine Ribeiro
4.LUGAR DE BANDIDO É NA CADEIA: Veja e a redução da maioridade penal
A cultura ‘menorista’, instaurada e massificada durante a vigência do
código de menores, segue, ainda, discursivizada e (re)produzindo sentidos no
cenário atual, quando se trata de adolescentes que cometem ato infracional. Por
meio de paráfrases discursivas, o ACAI continua sendo significadopor um
processo em que sentidos são retomados e sustentam um efeito de negatividade.
Atrelada a este efeito de sentido,repete-se enfaticamente a defesa de puniçãoque
atua sobre as consequências da criminalidade e não sobre as causas, práticaque
vigorou durante toda a vigência do código e se mantém ao longo dos anos.
O DJ, por se tratar de menores infratores, possui um papel importante
nesse processo de manutenção, pois ele contribui para a cristalização de
sentidos, assentando sua prática discursiva sobre um já dito constitutivo a partir
do qual os enunciados são re(formulados). Assim, “a parte que cabe ao discurso
jornalístico é seu assujeitamento a um já dito, embora os jornais se julguem livres
para informar” (MARIANI, 1996, p. 120).
Mesmo além da mídia,as denominações relativas ao ACAI vêm carregadas
de um sentido que é sempre negativo. Em termos discursivos, denominações
como ‘menor’, ‘infrator’, ‘trombadinha’, ‘delinquente’, ‘pivete’ surgem sob a forma
de pré-construídos, isto é, de um dizer já posto que, embora reelaborado por meio
de novos enunciados, produz o mesmo efeito de sentido.
Segundo Pêcheux (1995), o pré-construído é
uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é construído pelo enunciado [...] O efeito de pré-construído em sua forma pura é a colocação de uma existência singular e a verdade universal que afeta as asserções que incidem
51
sobre essa singularidade (PÊCHEUX, 1995, p.99).
Predominantemente, os sentidos produzidos pelas denominações relativas
aoACAI estão atrelados à ideia de ‘bandido’ e de um sujeito cuja identidade e
modo de agir já estão significados ideologicamente, isto é, eles possuem uma
imagem fixada, já que o lugar de bandido está previamente assinalado no
imaginário social, o que redunda no discurso da redução da maioridade penal no
cenário atual.
Nesta parte do estudo, aborda-se a discussão sobre a redução da
maioridade penal como alternativa para a diminuição da criminalidade na
adolescência conforme a revista Veja. Aqui, foramanalisadas SDs retiradas da
matéria O dever de reagir, publicada na edição nº 2318, veiculada pela revista
em 24 de abril 2013. Busca-se, com isso, sobretudo, analisar a prática discursiva
da revista sobre o ACAI e revelar que o discurso da redução da maioridade penal
sustenta a defesa da punição.
De início, apresenta-se abaixo a matéria na íntegra, destacando-se que as
SDs analisadas na sequência aparecem em destaque e foram escolhidas na
medida em que vêm ao encontro do objetivo de trabalho proposto nas indagações
inicias daseção.
52
SD03: Nas sociedades primitivas, a única forma de punir um assassino era pela vingança.
Nesta SD, Veja retoma a forma de punição utilizada pelas sociedades
medievais como forma de reação contra um ato praticado: a vingança. Para o
dicionário de Língua Portuguesa Michaelis12,‘vingança’ significa: 1 - Ação ou efeito
de vingar-se. 2 - Ato lesivo praticado em nome próprio ou alheio, contra uma
pessoa, para vingar-se de dano ou ofensa por ela causada; desforço, desforra,
represália, revanche, vendeta, vindita. 3 - Qualquer castigo ou punição.
A referência à ‘vingança’ utilizada pela revista, já no início da matéria, é
justificada na sequência, quando ela apresenta uma conexão entre ‘vingança’ e
‘justiça’.
SD04: A vingança era também indistinta, o que quer dizer que ninguém se importava em dar ao crime uma punição proporcional a sua gravidade. Tal conta não existia. Hoje existe.
Ao assumir que, no passado, “a vingança era indistinta” e, portanto, hoje
12 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=Xp78X. Acesso em 14 mar. 2017.
53
não é mais, pode-se inferir que o efeito de sentido de ‘justiça’ defendido pela Veja está ligado à vingança e à punição, isto é, na matriz de sentidos da FD em que a
revista se inscreve, ‘vingança’ é sinônimo de ‘justiça’, o que coaduna com o título:
O dever de reagir. Sendo o sentido de ‘justiça’, para Veja, próximo ou
equivalente a ‘vingança’, esta remete à reação, ou seja, algo que se torna
praticamente uma obrigação. O termo ‘dever’, por sua vez, está ligado à memória
discursiva, haja vista que cria o efeito de obrigatoriedade e produz sentido a partir
do discurso jurídico em que o termo expressa o conjunto de regras que deve,
obrigatoriamente, ser seguidas por cada sujeito pertencente a uma organização
jurídico-social. Logo, os sentidos estabelecidos por ‘dever’ são acionados a partir
da memória discursiva que remete a dizeres prévios e mobiliza sentidos
institucionalizados pela FD em que o termo se inscreve. Desse modo, o uso
aciona sentidos que remetem à ideia de responsabilidade e de obrigatoriedade de
aceite do modelo de sociedade atual, com sua ordem jurídica de direitos e
deveres. Dito de outro modo, o ‘dever’ de que a revista trata, atrelado à ‘vingança’
medieval, impõe que se faça uma imbricação entre ambos e se perceba que Veja defende a necessidade de revanche contra o ACAI, pois
O discurso jurídico impõe uma grande divisão ao postular o que pode ser dito e, consequentemente, tornar-se material de memória. O discurso jornalístico, atuando no interior desta divisão, não apenas reforça e faz circular os sentidos permitidos pela lei, como também promove a fixação de uma memória da ordem ocidental cristã (MARIANI, 1996, p. 88)
A discussão instaurada por Veja a partir da referência ao emprego da
vingança nas sociedades primitivas abre as portas para o questionamento da
revista sobre a validade dos efeitos da instituição jurídica, conforme se pode ver
na SD abaixo:
SD05: Pode se dar a isso o nome de justiça?
Pode-se inferir de imediato que, para a revista, o questionamento retórico
aponta para a discordância sobre três anos estarem ajustados para a punição de
um crime de morte para o roubo de um celular, pois, neste caso, não haveria a
vingança propalada de início sobre a proporção adequada entre uma infração e a
54
sua punição.
Mobilizam-se, aqui, as noções de certo e errado, que são estabelecidas, no
modelo de sociedade atual, a partir do ordenamento jurídico brasileiro e de suas
leis. Esses conhecimentos se fazem presentes na memória discursiva, em que os
sentidos significam e são ressignificados. Pelo menos três são as FDs
mobilizadas por meiodestas noções. A FD da justiça (FD1), ligada à formação
ideológica jurídica que representa o aparelho ideológico judiciário, aFD do ACAI
(FD2), compreendida como a violação da lei e em oposição ao sistema jurídico, e
a FD na qual a Veja se inscreve (FD3), que sustenta a tese da punição como
forma de, supostamente, reduzir a criminalidade por meio do endurecimento da
legislação voltada para os ACAI.
Na matéria, evidencia-se que a revista Veja se inscreve parcialmente na
FD1, pois concorda que os ACAI devam passar pelo ‘crivo da justiça’, todavia,
assume o sentido de justiça como punição e não como correção. O efeito de
sentido sustentado por Veja para justiça carrega uma memória discursiva do
termo enquanto instituição punitiva e severa e, nesta perspectiva, confronta e se
afasta da FD1, na medida em que ela propõe medidas socioeducativasem caso
de prática de ato infracional e uma legislação especial voltada para os ACAI em
detrimento do sistema penal comum, embora a prática da punição esteja
embutida na proposta13, ainda que paralelamente.
Neste sentido, pode-se afirmar que a Veja se inscreve em outra FD, que
será considerada neste trabalho como estando pautada na punição cada vez mais
precoce (FD3). Sendo assim, Veja apaga outros efeitos de sentidos de ‘justiça’
que não signifiquem vingança e revanche, como, por exemplo, ‘ressocialização’ e
‘criação de condições sociais que possam minimizar a existência do ACAI’. Este
apagamento de outros sentidos é causado pelo esquecimento nº1, “processo pelo
qual uma sequência discursiva concreta é produzida, ou reconhecida como sendo
um sentido para um sujeito” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014 p.166).
Retomando o conceito de formações imaginárias proposto por Pêcheux, é
possível fazer derivar algumas implicações implícitas do discurso da Veja.
13Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm por objetivos: I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação; (LEI Nº 12.594, 2012, Art.1º: § 2º)
55
Considere-se, para tanto, a imagem que a revista produz de si mesma: ela seria
um veículo de comunicação que se acha comprometido com a ética, que defende
a aplicação da lei e atua sob a forma do que prevê o ordenamento
jurídico.Entretanto,
Outro aspecto dessa relação entre o discurso jurídico e sua força na constituição do discurso jornalístico vincula-se ao fato de que este último incorpora o texto da lei, 'torcendo' o sentido impositivo ali colocado: a imagem que a instituição jornalística produz de si mesma é a da isenção, fruto da necessidade de preservar a ética. Com isso ela se acredita estar informando, embora o fato de agir dentro da lei nada mais seja do que manter-se ajustada ao modelo de sujeito então predominante (MARIANI, 1996, p.88).
Desse modo, o que se tem é um discurso que caminha, parcialmente, ao
encontro da FD jurídica, que defende a aplicação prática das atitudes
determinadas pela esfera jurídica e que colabora para a manutenção das
instâncias de poder da ideologia dominante que impera sob a forma dos
aparelhos ideológicos do estado. Mas se deve perceber que, ao defender a
redução da maioridade penal sem refletir sobre o que ocasiona o surgimento do
ACAI, Veja faz com que o ataque seja feito às consequências do problema e não
às suas causas e reforça ainda mais a aplicação da vingança e da revanche com
que a matéria é aberta.
Para Mariani (1996), há um consenso instaurado ideologicamente sobre o
que é o Bem e o Mal. Para a autora, o Bem representa o campo da estabilização
e da permanência, e o Mal representa o campo do Outro, do que pode vir a
desestabilizar o modelo do “Mesmo”. Nesse sentido, o DJ permanentemente
evoca um modelo imaginário de sociedade e de sujeito de direito (acirrando-o no
caso da revista em estudo). Assim, a instituição jornalística, por sua constituição
histórica, acredita instaurar um compromisso com a defesa do bem pressuposto e
reproduz, discursivamente, o “Mesmo” nas suas diferentes formulações,
rejeitando o Outro.
O discurso jornalístico, em seu relato cotidiano, se encontra atravessado por uma memória desses Direitos Humanos, por um já-dito sobre o Bem que se constitui em um já-ouvido no campo dos leitores, o que engendra um efeito de reconhecimento, ou consenso intersubjetivo[...]. Estar no campo do Mesmo é estar partilhando, simbolicamente, os valores do Bem. Ou melhor, é considerar
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‘evidentes’ e ‘naturais’ os sentidos que se alinham na sustentação /legitimidade do sujeito de direito ou dessa ética dos direitos do homem (MARIANI, 1996, p.91).
É esta crença ideológica geral, baseada no senso comum, que justifica a
inscrição parcial da revista na FD1, porque o DJ (e também o da Veja) atua para
a manutenção dos sentidos do Mesmo e, raramente ou nunca, coloca em
circulação sentidos que rompam com a estabilidade e promovam o deslocamento.
O que se observa no caso em estudo, e este é um ponto relevante, é que o
quadro, ao contrário de sofrer alterações, é ainda mais recrudescido, pois se trata
de aplicar a ‘vingança’ a pessoas cada vez mais novas.
Deve-se destacar que, embora, hoje, o discurso jurídico14 tenha uma
legislação especial voltada para os ACAI, os sentidos que permeiam a memória e
as práticas relacionadas a eles ainda estão intimamente ligadas ao caráter
repressivo e punitivo que vigorava nas legislações passadas. Logo, a FD3 em que
Veja se inscreve reproduz o sentido de ‘justiça’ apresentado no código de
menores, já ultrapassado. Assim, apesar das mudanças na legislação, não houve
uma ruptura com os processos de significação que fizesse intervir novos sentidos.
O processo por meio do qual Veja se inscreve na FD3 pleiteada é
apagado, o que pode causar uma impressão de originalidade sobre o discurso da
revista, que, no limite, renega outros sentidos possíveis para justiça, ancora-se
num discurso já existente e de longa duração e contesta determinados
posicionamentos, como se pode ver nas SDs abaixo:
SD06: Os defensores da manutenção desse patamar se apoiam em três argumentos principais: antes dos 18 anos, os jovens ainda não estão plenamente conscientes dos seus atos; a idade penal no Brasil é a mesma desde 1940, e mudá-la agora, sob a influência de mais um crime bárbaro, seria ceder à emoção; baixar esse limite não diminuiria a criminalidade.
Nesta sequência,há um confronto entre FDs: pelo menos, entre a FD3 e a
que entende que a punição deve ser relativizada e não tratada de forma genérica
e abstrata, ou seja, entre a FD3, em que a revista se inscreve, e a FD que
assume outro sentido para ‘justiça’, como é o caso da ressocialização. A matriz
14 Discurso jurídico é entendido neste trabalho sob a forma do ordenamento jurídico vigente, ou seja, as leis.
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de sentido que sustenta a constituição do discurso de Veja interdita enunciados
que disponibilizem construções positivas sobre o ACAI, porque o sentido
pejorativo já está dado no seio desta FD. Logo, o discurso da revista contradiz
enunciados que tragam à tona outros sentidos sobre a justiça e sobre o ACAI:
Assim, se na instituição jornalística em função de sua constituição histórica, se espelha a imagem do sujeito de direito, ou melhor, um compromisso com a defesa do Bem, é de se esperar que se encontre a impossibilidade de uma absorção do dizer do outro (MARIANI, 1996, p. 92).
Para contestar o primeiro argumento dos defensores da não redução da
maioridade penal,como se pode perceber na SD03, Veja busca se apoiar no
discurso de especialistas:
SD07: A levar em conta o primeiro argumento, o psicanalista ContardoCalligaris, em sua coluna na folha de S. Paulo, lembrou que o Brasil teria de elevar a maioridade penal para 25 anos, já que é só nessa fase que o córtex pré-frontal, a parte do cérebro responsável pela tomada de decisões, está plenamente desenvolvido.
Ao se valer do entrecruzamento interdiscursivo com outros campos do
saber, Veja busca cientificizar o seu e minimiza sua parcialidade jornalística; além
do mais, o discurso de um psicanalista representa a voz de autoridade, pois ele,
para a sociedade, é o ‘discurso verdadeiro’. De acordo com Foucault (1979),
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as tendências e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1979, p. 12).
Ao fundamentar seu discurso por meio de opiniões de‘especialistas’, Veja busca se colocar ao lado da ‘verdade’; seus argumentos, então, seriam validados
e condizentes com a realidade, enquanto os argumentos contrários passariam a
ser inverossímeis e não condizentes com ela. Ou seja, Veja está inserida em uma
FD e, assim, é levada “a deixar de fora de seu discurso elementos que possam
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trazer à tona outras formações ideológicas” (TAVARES, 2006, p. 194). Conforme
Mariani (1996),
[...] é como discurso dessa verdade, ligado, portanto, a instâncias de poder, produzindo determinados sentidos para os acontecimentos, com um modo de funcionamento específico e com mecanismos enunciativos próprios, que o discurso jornalístico constrói sua identidade, leva a crer na literalidade de seus relatos e contribui para a disseminação de certas interpretações (MARIANI, 1996, p. 89).
Na materialidade discursiva que vem a seguir, Veja desqualifica o
argumento utilizado peloECA,conforme se verifica na SD abaixo:
SD08: A maturidade é relativa aos olhos da lei. Os mesmos jovens inimputáveis por serem menores de 18 anos têm discernimento para tomar decisões como escolher o presidente da república (16 anos) e manter relações sexuais com um adulto, sem que isso seja considerado estupro presumido (14 anos).
Nesta sequência, como se pode perceber, com vistas a convencer do
acerto do seu ponto de vista, Veja contrapõe a ‘irresponsabilidade’ do ACAI sobre
determinados atos com uma idade a situações em que os adolescentes têm
responsabilidades similares a de um adulto, com outra, como o direito ao voto e a
manter relações sexuais por livre vontade. Constrói-se, assim, um processo de
descredibilização da FD1 e do ‘menor’, a partir da criação de um perfil
maquiavélico, isto é, ele seria um sujeito que se aproveita de sua inimputabilidade
para cometer crimes; essa forma de raciocínio reforça a defesa da existência do
menor bandido e a redução da maioridade penal como solução plausível.
Por outro lado, a revista faz uma crítica à noção de maturidade concebida
pela lei; neste sentido, verifica-se que os sentidos que emergem do
termo‘maturidade’ na FD em que Veja se inscreve associam-se a
responsabilização, o que, no limite, culmina em punição. Não há espaço para a
emergência de outros sentidos nessa FD. Apaga-se, assim, no discurso da Veja,
o dito que assinala as nãocondições sociais em que se encontram os ACAI e as
lacunas deixadas pelo sistema capitalista que os margeia e os subjuga. Dessa
maneira, percebe-se que
os processos de enunciação consistem em uma série de
59
determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que tem por característica colocar o ‘dito’ e em consequência rejeitar o ‘não dito’ (POSSENTI, 2011 p.376).
De acordo com Oliveira (2015), ao se rebelar contra a ordem, o ACAI
esbarra nos direitos e nos deveres estabelecidos pela ordem jurídica imposta pelo
estado, afirmando, além disso, que a formação atual capitalista não absorve
aqueles que vivem à margem, ou seja, “a forma-histórica do sujeito moderno é a
forma capitalista caracterizada como sujeito jurídico, com seus direitos e deveres
e sua livre circulação social” (ORLANDI, 2010b, p. 632).
No modelo atual capitalista, em que a ideologia jurídica é o núcleo da
formação social, estabelecem-se direitos e deveres para os indivíduos sociais,
que precisam encontrar um lugar na estrutura criada pelo capitalismo e, quando
não o fazem, a segregação os atinge: “vivemos em uma formação social
capitalista, na qual há outros dispositivos que fazem parte; existem outras
ideologias, outras economias” (OLIVEIRA, 2015, p. 197)
Eis o confronto entre o que Orlandi (2010b) denomina como simbólico e
político:
Assombrados pelo não sentido, esses sujeitos vivem em cheio o sem-sentido, balançados de um lado para o outro na sua insignificância para uma sociedade em que estão condenados à extinção. Sem lugar na sociedade e na história, pois é essa sua realidade. Se os sentidos são múltiplos e incertos, eles não se sustentam numa racionalidade do Estado ou numa lógica do social, mas na falta de lugar (ORLANDI, 2010b, p. 636).
A seguir, Veja contesta o segundo argumento que, de acordo com ela, é
sustentado pelos defensores da manutenção da maioridade penal aos 18 anos. O
semanário afirma que
SD09: alterações na legislação impulsionadas pela indignação não são necessariamente ruins,
Considerando que
SD10: o aumento do tempo necessário para que um preso por crime hediondo passe do regime fechado para outro mais leve só foi implantado por causa da reação da sociedade ao assassinato brutal do menino João Hélio, no Rio, em 2007.
60
Nestas sequências, pode-se perceber que, para Veja, o aumento do tempo
de reclusão é um aspecto positivo. Destaque-se, ainda, que o uso da palavra
“necessariamente” não ocorre aleatoriamente, mas que é um mecanismo
acionado para funcionar como argumento de que as mudanças na legislação, que
as torne mais severa, podem ser boas. Conforme a revista, essas mudanças
deveriam priorizar a rigorosidade das punições e, ainda que sejam ocasionadas
pelo calor das emoções, são vistas com bons olhos pelo semanário, pois os
enunciados são disponibilizados pela FD da punição. Desse modo, o sentido dos
enunciados “é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no
processo sócio-histórico no qual palavras, expressões ou proposições são
produzidas” (PÊCHEUX, 1995, p.160).
Na SD10, Veja se dirige à sociedade ao rememorar uma mudança na lei
ocasionada pelo clamor social. A revista afirma que a sociedade tem o poder de
alcançar mudanças, como é o seu desejo, por exemplo, da redução da
maioridade penal. Mais uma vez, percebe-se o trabalho da memória discursiva
que faz emergir o sentido instaurado com o título O dever de reagir. Reiterando
uma vez mais: a revista sugere o dever de a sociedade reagir à impunidade em
que, pressupostamente, encontram-se os ACAI, silenciando as condições sociais
em que eles se fazem e defendendo o ataque às consequências de um sistema
social injusto e não às causas que ele proporciona para que a marginalidade
aconteça; em última instância, ela protege o sistema em que se acha inserida e
protege aqueles que a financiam.
Percebe-se, neste sentido, a interdiscursividade que atravessa o discurso
de Veja. Os sentidos que emergem da FD3, em que o semanário se inscreve, vão
ao encontro da punição como remédio e não há espaço para o debate sobre o
que leva ao alto índice de criminalidade na adolescência, como as péssimas
condições em que nasce e se desenvolve a grande maioria destas crianças; eles
são marginais porque estão à margem.
É preciso, portanto, analisar o discurso de Veja a partir das condições de
produção que o determinam. Conforme indica a literatura corrente, o
posicionamento adotado pela Veja é de direita e seus leitores são, em grande
maioria, oriundas da classe média e alta, o que coloca em cena a questão social
dos ACAI, que surge como ‘ameaça’ à elite, embora se saiba que a violência não
61
ocorra apenas nas esferas menos privilegiados da sociedade. Defende-se, pois,
que o que está em jogo é mais do que uma mera mudança de lei e a punição de
um grupo de pessoas específicas, pois são os interesses de uma determinada
classe que estão sendo defendidos. Desse modo, a Veja coloca-se a serviço da
proteção de um parcela da sociedade contra a criança perigosa. Para
Rizzini(2008), este é um discurso ambíguo, “onde a criança deve ser protegida,
mas também contida, a fim de que não cause danos à sociedade” (RIZZINI, 2008,
p. 28); reitere-se, não à sociedade como um todo, mas à parte dela.
Por consequência, pode-se defender que a Veja e seus leitores partilham
de uma memória sobre um objeto discursivo, pautados em “um já dito sobre o
Bem que se constitui em um já-ouvido no campo dos leitores, o que engendra um
efeito de reconhecimento, ou consenso intersubjetivo” (MARIANI, 1996, p.90). Em
resumo, a memória que atravessa o discurso da revista é partilhada pelos leitores
e ambos ‘pactuaram’ que o menor criminoso deve ser contido para que não cause
prejuízo (em todos os sentidos, mas preponderantemente em temos econômicos)
a outros ‘João Vitors’. Além do mais,
as instituições precisam garantir para os sujeitos que se inscrevem nelas, que eles compartilhem uma mesma realidade, que tenham, portanto uma mesma memória. Com essa memória em comum, os gestos de interpretação podem ser homogeneizados no presente. Isso garante o controle (FLORES, 2015, p. 115).
Sobre ao terceiro argumento contra a redução da maioridade penal, Veja afirma:
SD11:É verdade que não há estudos que comprovem uma relação direta entre a redução da maioridade penal e a diminuição da criminalidade e a criminalidade.
Nesta sequência, Veja parece reconhecer que não há relação direta entre
a idade penal e os índices de criminalidade, mas ainda assim defende a redução
da maioridade penal, pois, “como o discurso jornalístico de referência atua na
manutenção e/ ou absorção dos sentidos no campo do Mesmo, dificilmente irá
colocar em circulação sentidos que rompam com a estabilidade da ‘lógica’
ocidental” (MARIANI, 1996, p.93), o que significa dizer que, por meio da
discursividade, a revista Veja opera para a manutenção dos sentidos, ora
62
provocando a retomada, ora ocasionando diferenças na própria repetição.
Na sequência, Veja afirma:
SD12: mas a manutenção do atual patamar aumenta o número de jovens instrumentalizáveis por bandidos mais velhos.
A SD acima parece (mas só parece) apresentar uma contradição no
discurso da revista, já que o semanário afirma que esses adolescentes possuem
maturidade suficiente para assumir seus atos e, aqui, eles se tornam
“instrumentalizáveis”, isto é, passíveis de serem usados por adultos na prática de
crimes. O termo ainda sugere uma ironia devido a sua natureza técnica comercial,
que mostra o crime como um mercado e o ACAI como massa de manobra fácil
por parte dos adultos, fator que parece manter a contradição, já que a revista
prega o caráter maquiavélico destes jovens, reafirmando sua maturidade. No
fundo, produzem-se dois efeitos de sentido: um de autonomia e de capacidade de
discernir o que acontece e, então, o crime é uma escolha; outro de dependência e
de influência dos demais sobre o comportamento. No fim, quer seja por uma via
ou por outra, o adolescente que comete ato infracional deve ser imputável.
Em resumo, o que se vê é a sustentação do discurso de que os ACAI são
bandidos e da defesa da punição para eles; ora por meio da afirmação de que são
conscientes de seus atos e, portanto, devem ser responsáveis por eles, ora por
meioda tese da intimidação e do aliciamento; então, deve-se punir para reprimir.
O que se mantêm intacto são os sentidos que apontam para o castigo, porque
eles provêm da FD da punição, que não disponibiliza sentidos que permitam
outras construções. A análise até aqui permite mostrar, pois, o posicionamento da
Veja sobre a redução da maioridade penal e perceber que
[...] o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 54)
Na sequência da matéria, Veja destaca que:
SD13: O número de menores em instituições de correção triplicou em uma década:de 7.600, em 2002, passou para 22.000, em 2011.
63
Essa explosão foi impulsionada principalmente por infratores internados por tráfico de drogas.
Como vem sendo recorrente no discurso da Veja,há um
silenciamentosobre o papel do estado na criação de políticas de prevenção à
entrada de crianças e adolescentes na criminalidade, dando condições de
permanência na escola e assistência a famílias que vivem à margem, em extrema
pobreza e violência. O discurso da revista silencia as nãocondições de os jovens
estarem em outro lugar, bem como a culpa do estado pela falta de atuação junto
aos adolescentes. De acordo com SINASE (2006),
O Levantamento estatístico da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (Murad, 2004) identificou que existiam no Brasil cerca de 39.578 adolescentes no sistema socioeducativo (SINASE, 2006, p. 18).
Destes,
12,7% (doze vírgula sete por cento) viviam em famílias que não possuíam renda mensal; 66% (sessenta e seis por cento) em famílias com renda mensal de até dois salários mínimos (SINASE, 2006, p. 19)
Percebe-se, pois, que a questão social contribui diretamente com a prática
de ato infracional e que as condições em que são aplicadas as medidas
socioeducativas, isto é, a precariedade dos centros de socioeducação em que são
aplicadas as medidas de internação e de semiliberdade, bem como “o modelo
punitivo que impera no atendimento de adolescentes aumentou o número de
internos e incentivou a reincidência” (RIZZINI, 2008, p.13); mas, reitera-se: a Veja silencia sobre isso e, ao fazê-lo, é conivente com as causas que geram os
problemas que ela denuncia e pretende atacar nas consequências.
Além disso,deve-se destacar que
A grande maioria (mais de 70%) dos atos infracionais são contra o patrimônio, demonstrando que os casos de adolescentes infratores que poderiam ser considerados perigosos e autores de homicídios são minoritários (ALVES, 2007, apud RIZZINI, 2008, p. 11).
Esses dados quebram o mito da periculosidade do ACAI. Crimes contra o
patrimônio e o tráfico de drogas, conforme apontado pela própria revista, são as
64
maiores incidências entre estes jovens, fator que aponta para a questão social
como problema preponderante na busca da redução da criminalidade na
adolescência, uma busca que deve ser, sobretudo, para garantir a todos os
jovens uma vida fora da criminalidade, por meio de oportunidades que lhes sejam
asseguradas. Nesse mesmo sentido, Faleiros (2004) afirma que
O internamento não tem servido nem para recuperar nem para punir, pois aumenta a vinculação do interno com o próprio crime organizado e o mantém sem projeto. A violência da privação de liberdade mostra que o processo de aprisionamento é também um processo de criminalização, onde a violência e o crime são praticados cotidianamente (FALEIROS, 2004, p. 87).
Todavia, o discurso punitivo propalado pela Veja (re)produz sentidos que
incorporam o imaginário dos leitores, criando um efeito ilusivo de verdade, de
modo que as teses expostas parecem se tornar incontestáveis. Como já dito,
discute-se a consequência e as formas de punição e silenciam-se as causas.
Assim, os sentidos sobre o ACAI são reproduzidos e são reformulados na medida
em que são disseminados e cristalizados pela mídia, cuja produção dos menores
como sujeitos anormais, perigosos e possuidores de mau caráter desencadeiam a
segregação e a estigmatização como consequência.
A tese final de Veja é a de que ‘justiça’deve ser praticada, pois
SD14: a proporcionalidade entre a ofensa e a punição é uma conquista da civilização – e compõe o que chamamos de justiça.
Percebe-se, novamente, que a revista se posiciona a favor da punição por
meio do ataque à consequência e um estado de coisa que é silenciado. Neste
caso, a interdiscursividade atravessa o discurso, acionando os já ditos sobre a
transgressão da lei, justiça, punição/castigo e os (re)configurando a partir de
determinada FD. Conforme Mariani (1996),
O cotidiano e a história, apresentados de modo fragmentado nas diversas seções do jornal, ganham sentido ao serem ‘conectados’ interdiscursivamente a um ‘já-lá’dos assuntos em pauta. E essa interdiscursividade pode ser reconstruída através da análise dos processos parafrásticos presentes na cadeia intertextual que vai se construindo ao longo do tempo (MARIANI, 1996, p. 64).
No final da matéria,Veja afirma que o Brasil deve reagir por Victor
65
Deppman:
SD15: Victor Deppman não avançou contra o seu assassino nem relutou em entregar-lhe seu celular. Morreu mesmo assim.
Nesta SD, destaca-se o contraste entre os termos utilizados para se referir
aos dois adolescentes. Conforme já assinalado na parte de análise da linha fina
desta matéria (capítulo teórico), a referência ao adolescente que foi assassinado
por meio do seu nome próprio produz um efeito de reforço da sua identidade; em
contrapartida, o outro jovem é denominado apenas como ‘assassino’. A escolha
do termo silencia construções como‘adolescente’ e ‘jovem’ ou o uso das inicias do
nome do ACAI. Atrelados a esta escolha, estão os efeitos gerados no seio da FD3
em que Veja se inscreve sobre os adolescentes que cometem ato infracional,
sentidos que apontam para a criminalidade/criminalização e, consequentemente,
como visto até aqui, para a Veja, a punição deve ser a reação contra a
criminalidade.
A matéria ainda afirma que
SD16: O Brasil tem o dever de reagir por ele.
Pode-se inferir que o efeito de sentido do termo‘reagir’ está relacionado à
mudança na legislação defendida por Veja, isto é, a redução da maioridade penal.
‘Reagir’, aqui, significa apoiar a mudança na legislação para que adolescentes
sejam punidos como adultos. O que possibilita a irrupção deste sentido em
detrimento de outro é a inscrição da revista em uma FD que considera o ACAI
bandido. As CPS do discurso de Veja são cruciais para compreender por que
produz esse discurso, pois diz o que diz a partir da ideologia que a atravessa.
Conforme afirma Silva (2009), Veja está inserida em uma FI neoliberal, o
que a torna um meio de comunicação voltado à classe média brasileira e justifica
a defesa da redução da maioridade penal, já que esta é uma tese que tem
aceitação nesta classe. Ademais, a matéria em questão faz referência a um crime
que teve como vítima um adolescente de classe média, que gerou grande
repercussão e reacendeu o debate sobre maioridade penal.
Nesse sentido, o que se observa no decorrer do discurso é o cruzamento e
o confronto entre FDs. De um lado, a FD em que Veja se inscreve e, de outro, a
66
FD dos defensores da maioridade penal aos 18 anos, cujos pontos de vista são
criticados pela revista. Observa-se, ainda, que Veja se inscreve parcialmente na
FD jurídica, entretanto, os sentidos acionados para ‘justiça’ são sinônimos de
punição.
Em meio à construção de “evidências”, a Veja constitui o discurso e o
sentido que ela sustenta pode variar ao passar para outra FD por meio da
interdiscursividade, visto que “o sentido não existe em si, mas é determinado
pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que
as palavras são produzidas” (ORLANDI, 2010, p 42).Mas ela silencia e parece
desconhecer completamente a existência destes outros; ou melhor, ela fala
exatamente contra eles.
O discurso que permeia a matéria parte, portanto, da presunção de
impunidade do ACAI. Pode-se dizer, assim, que a Veja deixa transparecer uma
concepção dura de ‘justiça’, fortemente influenciada pelo modelo de formação
social capitalista que abarca os que têm um lugar determinado nesta estrutura e
marginalizam os que não se encaixam ou se voltam contra este modelo
segregador e predatório.
Há um silêncio conivente e cúmplice que obtém o efeito de desviar a culpa
do Estado pelos altos índices de criminalidade na adolescência para os jovens,
silenciando problemas relativos às condições de subsistência em que vive a
maioria dosACAI.
Embora aVeja se coloque numa posição de preocupação com os índices
alarmantes da criminalidade juvenil, no fim, o fio que rege a ‘sua’ FD é o
atendimento aos interesses da classe média e a sua segurança, já que ela se
sente ameaçada ao sair às ruas, pois não se pode esquecer que osACAI (na sua
grande maioria) são oriundos da classe baixa e entram para criminalidade como
forma de subsistência. Mascarados estes interesses, é preciso garantir que a
sociedade compartilhe de uma mesma memória, ou seja, compartilhe a FD da
revista, para que se instaurem os mesmos sentidos e se possibilitem as mesmas
construções.
Por isso entendemos que noticiar, no discurso jornalístico, é tornar os acontecimentos visíveis de modo a impedir a circulação de sentidos indesejáveis, ou seja, determinar um sentido, cujo modo de produção pode ser variável conforme cada jornal, mas que
67
estará sempre submetido às injunções das relações de poder vigentes e predominantes (MARIANI, 1996, p.89)
A problemática parece simples de resolver a partir da perspectiva desta
FD, já que bastaria transferir osACAI para prisões e condenar os novos
‘criminosos’, para, assim, restaurar a ordem na sociedade. A questão é: a ordem
de quem e para quem? Qual ordem? Mais uma vez, a instância econômica volta a
sobredeterminar a discussão, excluindo os que não fazem parte da ordem em
benefício dos que importam à ordem.
Mobilizam-se, assim, sentidos, que, até aqui, são mantidos e reiterados,
tornando raros novos sentidos, bem como rarefazendo o aparecimento de
acontecimentos. Em Veja, como se constata, não há deslocamento: o discurso de
proteção à sociedade contra a criança perigosa, que vigora desde a antiga
legislação voltada para crianças e adolescentes, segue produzindo efeitos e se
reestruturando a partir de novos enunciados e, neste caso, sendo reforçado pela
defesa de uma diminuição ainda maior da idade deimputabilidade penal.
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O fato de que a língua seja indiferente à divisão de classes e a sua luta, não quer dizer que as classes sejam
indiferentes à língua.
ÉtienneBalibar
5. PARA A IMPUNIDADE, A CADEIA: Veja e o reforço de paráfrases
É por meioda materialidade discursiva que a ideologia se manifesta; é nela
que se assentam os processos de significação de um objeto do discurso. É sob
esta perspectiva que as materialidades discursivas usadas para a análise nesta
seção foramobservadas, buscando identificar o processo por meio do qual a Veja se coloca como veículo de sentido sujeito e interpreta o mundo de um modo
estabelecido, filiando-se a posições ditadas pelas FDs com as quais se identifica.
Conforme Orlandi (2010), “um discurso aponta para outros que o
sustentam assim como para dizeres futuros. Todo discurso é visto como um
estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo” (ORLANDI, 2010, p. 39).
É nessa perspectiva que esta seção de análise foi conduzida, buscando
compreender os efeitos ideológicos que permeiam o processo discursivo da Veja sobre os ACAI e a levam o produzir diferentes formulações do mesmo sentido.
O discurso da redução da maioridade penal sustentado pela Veja, conforme demonstrado na seção anterior, não é um acontecimento isolado ou um
ponto de vista singular de um editor, presente apenas em uma matéria; ele é
repetido e é reiterado a partir de diferentes construções que são regidas pela
mesma FD e produzem os mesmos efeitos de sentido.Neste caso, a imagem que
se sustenta sobre o ACAI e sobre a punição pode ser também visualizado nas
materialidades discursivas que serão apresentadas neste capítulo.
Nesta parte da pesquisa, trabalha-se com a análise dos títulos, linhas finas
e sequências discursivas de cincomatérias da revista Veja, publicadas no período
de abril de 2015 a janeiro de 2016 com a temática ‘criminalidade na
adolescência’.
Com o objetivo de didatização e de organização, apresenta-se abaixo uma
tabela contendo o número da edição em que cada matéria foi publicada, a data de
sua publicação, o título e a linha fina de cada matéria e, na sequência, propõem-
se algumas reflexões.
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Data Edição Título e Linha fina Linha fina17/06/2015 2430 JUSTIÇA SÓ
PARA MAIORESOs jovens que participaram do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo?
24/06/2015 2431 PELO FIM DA IMPUNIDADE
Pela primeira vez, uma proposta para mudar a lei brasileira para menores infratores, uma das mais lenientes do mundo, avança no congresso
22/07/2015 2435 EM TRÊS ANOS, NAS RUAS
Os menores condenados pelo estupro de quatro meninas no Piauí, uma das quais morreu, voltaram a matar. Desta vez, a vítima foi o cúmplice que delatou o grupo. Pelos dois crimes bárbaros, os adolescentes ficarão não mais do que três anos numa casa de correção, de onde sairão com a ficha limpa. É o que diz a lei. Mas agora ela pode mudar.
30/12/2015 2458 A DOIS ANOS DA LIBERDADE
(Sem linha fina)
13/01/2016 2460 PARA ELES, COMPENSOU
Estudo do Ministério Público acompanhou por um ano 1.000 infratores saídos da Fundação Casa e concluiu que os menores reincidem mais vezes e mais rápido que os maiores
Já de início, pode-se perceber que os títulos e as linhas finas apontam para
efeitos de sentido que são mobilizados com as materialidades discursivas e
assinalam para construções negativas sobre os ACAI, o que é recorrente na FD
que constitui a Veja.Um dos exemplos é o do título abaixo:
SD17: JUSTIÇA SÓ PARA MAIORES (VEJA, 2015, Ed.2430).
Nesta sequência, Veja sugere que a ‘justiça’ só acontece para maiores de
idade, isto é, os menores de idade estão imunes a ela, somente em virtude da
idade que possuem. Conhecendo os efeitos de sentido de ‘justiça’ de que a
revista é suporte, pode-se inferir de imediato que a matéria, outra vez, irá
instaurar uma polêmica sobre a ‘ineficácia’ da lei, que não pune menores de
idade, pois há como se defender que, para a Veja, ‘justiça’ significa ‘punição’; o
princípio fundamental desta crença está ancorada no antigo ditame do “olho por
olho, dente por dente”. Esse posicionamento discursivo fica ainda mais evidente
na linha fina da matéria:
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SD18: Os jovens que participaram do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo? (VEJA, 2015, Ed.2430).
Percebe-se o ataque recorrente da Veja ao tempo máximo estabelecido
pela legislação para que um ACAI fique internado, isto é, três anos. O que se vê
aqui é uma paráfrase da linha fina analisada na parte teórica do trabalho, pois ela
reafirma os efeitos de sentido originados a partir da FD da punição, que defende
que três anos é um tempo de reclusão curto e desproporcional ao ato praticado
pelos ACAI e entende que a redução da maioridade penal é uma forma eficaz de
reduzir a criminalidade. Todavia, se, na análise não surpreende verificar a
repetição do discurso da punição materializado sob a defesa da redução da
maioridade penal e da negativização dos ACAI, para o leitor, nem sempre essa
repetição fica clara ao ler as reportagens em separado, pois,
Do ponto de vista da Análise do Discurso, a mera repetição já significa diferentemente, pois introduz uma modificação no processo discursivo. Quando digo a mesma coisa duas vezes, há um efeito de sentido que não me permite identificar a segunda à primeira vez. (ORLANDI, 1981, p.14)
Além do mais,
No funcionamento jornalístico [...], fica apagado para o sujeito-leitor o processo de construção da notícia. A produção de sentidos, que se processa a partir de um trabalho no plano da língua, seja no plano das operações sintáticas descritas, seja pelo conjunto da memória mobilizada lexicalmente, não é perceptível para o sujeito envolvido historicamente. Assim, essa prática discursiva impõe a imagem de uma ‘leitura literal’, realizada com sentidos transparentes capazes de captar os fatos em sua 'essência' (MARIANI, 1996, p.69).
Esse apagamento acontece por meio do processo de assujeitamento
ideológico, que provoca a ilusão de literalidade e de dominância da língua e dos
sentidos, que afetam tanto o produtor da notícia quanto o leitor.
Na SD18, com Isso é justo?, aVejamanifesta uma suposta
inquietaçãofrenteao que seria uma iniquidade oportunizada pela impunidade dos
ACAI; reitere-se, fato devido, conforme a revista, tão somente a um fator numérico
de contagem de tempo cronológico de vida. Mas, conhecendo o funcionamento
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discursivo da revista, pode-se inferir que a ‘aflição’ da Veja a partir da questão
retórica final tem o objetivo de comover o leitor e levá-lo a compartilhar o mesmo
posicionamento discursivo da revista sobre a questão dos ACAI. Dito de outro
modo: a pergunta já traz em si a resposta desejada pela revista e pode servir para
induzir o leitor a aderir à mirada valorativa que é defendida pelo periódico, em
face da defesa de quem ela é porta-voz.
A discussão instaurada no corpo da matéria ratifica a regularidade
discursiva da FD da punição mostrada no decorrer deste trabalho. A SD abaixo
permite perceber os obstáculos colocados pela revista para a efetivação doECA:
ela contribui para a falta de apoio social e de adesão a práticas que o incorporem
efetivamente.
SD19: Os quatro adolescentes serão encaminhados a centros de correção, onde ficarão internados por um prazo máximo de três anos e de onde sairão como réus primários. É o que determina no Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – um dos mais lenientes conjuntos de leis do mundo destinados a lidar com menores infratores (VEJA, 2015, Ed.2430).
Percebe-se que o que ‘aborrece’ a Veja é asuposta ‘leniência’ do ECA,
que, de acordo com ela, lida com adolescentes com o intuito de recuperação e
não unicamente de punição.Na SD, a revista acusa a lei de ser uma das mais
brandas do mundo no tocante à questão da criminalidade na adolescência;
todavia, deve-se ressaltar que esta perspectiva de ‘leniência’ é adotada a partir
das condições de produção do discurso da Veja, isto é, ela se sustenta num efeito
de sentido de justiça a partir de uma memória discursiva sobre a lei e o modo
como ela opera, considerando que a trajetória jurídica a que o ACAI foi submetido
ao longo da história sempre foi marcada pela repressão.
Na SD abaixo, aVeja, retoricamente, constrói perguntas que buscam criar
um efeito de distanciamento da questão e se colocar numa aparente posição de
imparcialidade e de descomprometido engajamento (mas as perguntas são só
retóricas, porque as respostas já estão previstas):
SD20: O adulto vai pegar trinta anos de cadeia. Os menores, três anos, sendo que uma ínfima parcela deles cumpre todo período de reclusão. Isso é certo? É errado? Tem certo e errado nessa questão? Essas são as perguntas certas a fazer quando um país é abalado todos os dias por histórias de crimes violentos e cruéis
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cometidos por menores de idade? (VEJA, 2015, Ed.2430).
Como dito, a retórica tecida pela Veja já traz as respostas subjacentes ao
próprio texto; as questões servem apenas para maquiar a parcialidade que vem
sendo evidenciada no decorrer do trabalho a partir das análises, pois, nesta SD,
quando a revista afirma que uma pequena parcela de ‘menores’ envolvidos em
ato infracional cumpre o período completo de reclusão, fica pressuposto que a
maioria permanece, portanto, impune, o que não deveria acontecer, de acordo
com a revista. Além do mais, os adjetivos associados aos “crimes” servem para
ratificar o suposto caráter perverso que vem sendo defendido pelo semanário em
relação ao ACAI. Quando Veja lança mão dos questionamentos, na verdade, seu
posicionamento está estabelecido, mas o leitor nem sempre o percebe e se deixa
levar pelos sentidos (re)produzidos na matéria e defendidos por meio do que a
revista considera notícia. Assim, Veja procura se mostrar fora de uma FD, como
se não fosse atravessada por condicionantes de ordem ideológica (mesmo que
sejam inconscientes).
Emseguida, Veja se empenha em afirmar que a suposta ‘impunidade’ é
maior na prática, visto que, de acordo com ela, “raramente um menor infrator
cumpre o prazo máximo” (VEJA, 2015, edição 2430, p.44), referindo-se ao
período de internamento, conforme se pode ver abaixo:
SD21: Um levantamento do Ministério Público Estadual de São Paulo, que analisou os casos de 1552 jovens internados na Fundação Casa de agosto do ano passado ao fim de maio deste ano, descobriu que apenas oito deles ficaram mais de dois anos na instituição. Nove em cada dez jovens criminosos não passam nem um ano internados (VEJA, 2015, Ed.2430).
Como se percebe, gera-se um efeito de sentido negativo acerca destes
dadosdo Ministério Público (MP). Veja traz esses dados para discussão com o
intuito de reforçar a tese de que a punição não ocorre, pois a justiça e a lei não
seriam eficazes. Entretanto, de acordo com o Art.121 daLei nº 8.069,
A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”. Além do mais “as medidas socioeducativas de liberdade assistida, de semiliberdade e de internação deverão ser reavaliadas no máximo a cada 6
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(seis) meses(LEI Nº 12.594, Art. 42, grifo nosso).
Segundo o previsto, a continuidade da internação deve ser avaliada a cada
seis meses e pautada em pareceres de profissionais que acompanham os
adolescentes e seu progresso na recuperação. Logo, a informação apontada pelo
MP na SD acima poderia gerar um efeito de sentido positivo, que revela o bom
andamento e o progresso das medidas socioeducativas, já que boa parte dos
adolescentes alcança o direito à liberdade precocemente. Porém, visualiza-se
que, embora saiba dos estudos levantados pelo MP, Veja desconhece ou ignora
as disposições do ECA e do SINASE sobre a modalidade da internação para
medidas socioeducativas, tornando-se mais um obstáculo para o ECA.
Embora as medidas preconizadas pelo Estatuto estejam sendo implementadas pelo poder judiciário, houve pouca modificação no que se refere aos equipamentos sociais que dariam suporte às ações determinadas pelo Estatuto. Agravando esse fato, encontra-se a frágil atuação de muitos Conselhos de Defesa e Tutelares, instâncias de proteção também previstas pelo ECA. Assim, o estado real de precariedade do cumprimento das medidas socioeducativas contribui para o quadro atual de questionamento, discriminação e, por vezes, de rejeição por parte de vários segmentos da sociedade, às propostas constitucionais de direitos das crianças e dos adolescentes (NJAINE; MINAYO, 2002, p.288).
A partir do exposto, é possível compreender que a prática discursiva da
revista Veja atua na repercussão e na homogeneização das ideologias e práticas
da ordem dominante da sociedade e que, em seu funcionamento discursivo, os
enunciados são regulados pela FD da punição, da mesma forma que os sentidos,
gerados no interior desta FD, apontam sempre para a criminalização do ACAI e
nunca para a sua remissão. Conforme se verifica abaixo,
SD22: De agosto para cá, o período compreendido pelo estudo do MP, ao menos 108 pessoas foram assassinadas, estupradas ou seqüestradas por adolescentes, que, no máximo em breve, estarão de volta às ruas. E desfrutando o mesmo status de cidadão honesto que os familiares de suas vítimas, dado que a lei impede qualquer registro criminal no caso de menores de 18 anos (VEJA, 2015, Ed.2430).
Pode-se percebe que, de acordo com a Veja, ser um cidadão honesto
significa não ter histórico criminal e, devido ao fato de que a lei proíbe registro
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criminal de menores de idade, os adolescentes podem usufruir do que a revista
considera como benefício. O efeito de sentido que se produz é de que esses
adolescentes são criminosos e, como tal, deveriam ser condenados à cadeia e
marcados para se diferenciarem dos “cidadãos honestos”.
O efeito de periculosidade é criado ao sugerir que esses adolescentes
“desfrutarão do status de cidadão honesto”, traço que é atribuído ao ACAI pela
revista em todas as reportagens. Essa característica de agente perigoso apaga
qualquer reconhecimento de subjetividade e emotividade, bem como de toda a
história que constitui o menor, que é apagada no discurso da Veja; ela não trata
das causas que o levaram à criminalidade; não aborda a falta do estado, a
omissão da sociedade e a invisibilidade a que ele está sujeito.
Em nenhuma matéria se falou de suas famílias, como se esses jovens compusessem um grupo alienado, sem raízes, sem relações primárias, sem sentimentos e afetos, a não ser a agressividade, o ódio e a raiva que os tornam anti-sociais. Com o olhar da sociedade do ‘bem’, as matérias projetam a idéia de que eles geram uma desordem social incontrolável e um caos social irremediável, em confronto com um poder público fraco, leniente, não suficientemente repressivo, enfatizando o esfacelamento da lei e da justiça (NJAINE; MINAYO, 2002, p.291).
A discussão sobre o estado é levantada somente com relação à suposta
“leniência”; em nenhum momento aborda-se a sua omissão para com esses
jovens. Os problemas a que esses jovens estão sujeitos desde muito cedo, bem
como a violência que sofrem por parte da polícia e da sociedade, tanto física
quanto verbal, também não são discutidas.
A redução da maioridade penal é elencada como solução, mesmo sem
base científica, já que a própria Veja afirma (em outro momento, discutido no
capítulo anterior) que não há estudos que comprovem a ligação direta entre a
redução da maioridade penal e a diminuição da criminalidade na adolescência. A
punição se sobrepõe à prevenção, porque, demagogicamente, ela é mais aceita
dentro da comunidade discursiva da Veja e também por se tratar de uma prática
que vem sendo reproduzida contínua e historicamentepelas elites em detrimento
das classes subalternas.
Na sequência da matéria, Veja afirma:
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SD23: A discussão em torno da proposta de redução da maioridade penal virou um embate ideológico. Quem defende mudanças no estatuto é logo qualificado de ‘direitista’ ou ‘fascista’. Está obvio que, do jeito que estão, as coisas não podem ficar (VEJA, 2015, Ed.2430).
Nesta SD, é possível visualizar a formação imaginária projetada por Veja sobre a imagem que a população em geral, isto é, os leitores e não leitores,
fazem de seu lugar discursivo, ao assinalar que “Quem defende mudanças no
estatuto é qualificado de “direitista” ou “fascista”’. Percebe-se que a revista,
embora não ratifique, identifica o posicionamento que ocupa frente ao debate
sobre a redução da maioridade penal. E a Veja não nega este lugar; apenas
ressalta que, “do jeito que estão, as coisas não podem ficar”. Nesse momento, a
revista sugere que uma mudança deve acontecer. Deixando transparecer uma
preocupação com os índices da criminalidade, ela apresenta os problemas como
se estivesse preocupada e comprometida em resolvê-los, mas a sua abordagem
se limita a uma análise de pouca profundidade, que silencia fatores importantes
de caráter econômico e ideológico. Além do mais, conforme vem se
demonstrando, a revista defende a redução da maioridade penal e outras
mudanças que endureçam a legislação como fator punitivo sobreposto ao
preventivo, o que desdiz o suposto ‘comprometimento’ da revista.
Ao afirmar que “a discussão em torno da proposta de redução da
maioridade penal virou um embate ideológico”, Veja pretende se colocar fora da
ideologia, afastando a discussão de si e a atribuindo apenas às pessoas que
defendem que a redução da maioridade penal não deve acontecer. Assim, ela
parece estar isenta de posicionamento, como se estivesse fora de uma FD e do
ideológico. Contudo, esse é um efeito da própria ideologia, ocasionado pelo
esquecimento de número 1,que provoca a impressão de que o indivíduo está na
fonte e é a origem dos dizeres e dos sentidos, ocultando a maneira como o sujeito
é afetado pela ideologia.
O título da matéria seguinte, carregado de um ingrediente indutor de
comoção, traz a seguinte expressão exclamativa:
SD24: PELO FIM DA IMPUNIDADE (VEJA, 2015, Ed.2431).
Nesta SD, tem-se novamente um processo parafrástico atravessando o
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discurso da Veja, que retomaa tese da redução da maioridade penal, já que
acabar com a impunidade, para ela, significa reduzir a idade penal e estender o
sistema prisional comum para os menores de idade. Observa-se, ainda, que a
revista silencia completamente a questão da aplicação de medidas
socioeducativas, pregando a impunidade dos ACAI,apesar do fato de que a
maioria dos centros de socioeducação se parece com presídios tradicionais e que
“a segurança, o processo de socialização e o desenvolvimento das
potencialidades dos adolescentes comparecem [...] nos discursos oficiais, mas
pouco se evidenciam na aplicação e execução das medidas sócio-educativas”, o
que, para Wacquant (apud COSTA, 2005), constitui um paradoxo, já que
[...] pretende remediar com ‘mais estado’ policial e penitenciário o ‘menos estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto no Primeiro como no Segundo Mundo (WACQUANT apud COSTA, 2005, p. 65).
A linha fina que segue o título afirma que,
SD25: Pela primeira vez, uma proposta para mudar a lei brasileira para menores infratores, uma das mais lenientes do mundo, avança no congresso (VEJA, 2015, Ed.2431).
Nesta SD, que complementa o título Pelo fim da impunidade, como se vê,
o fim da impunidade está relacionado ao avanço de um projeto de lei que visa
endurecer a legislação para adolescentes que cometerem ato infracional, por
meio de uma forma de punição mais severa. Ressalte-se que, neste caso, o
projeto não aborda a redução da maioridade penal especificamente, mas sim o
endurecimento da legislação para menores de idade, isto é: trata-se de
fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva, à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir (FOUCAULT, 1987, p. 70).
Pode-se perceber, ainda, um tom de comemoração na SD 25, já que a
mudança, defendida pela revista, caminha ao encontro da concretização do que
ela defende. Esse funcionamento discursivo, já assinalado, provém da FD da
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punição,na qual as posições filiadas já institucionalizaram a imagem do ACAI e
assinalaram seu lugar: em última instância, a cadeia.
Na SD abaixo, Veja reafirma a suposta leniência da legislação brasileira
para com menores infratores, tese defendida também no corpo da reportagem
conforme se pode ver abaixo:
SD26: Na semana passada, VEJA trouxe um levantamento que mostra que a legislação brasileira para menores é uma das mais lenientes do mundo (VEJA, 2015, Ed.2431).
Novamente, tem-se um silêncio omisso sobre as carências sociais que
assolam o Brasil com altos índicesde desigualdade social e políticas quase
nulasde prevenção à criminalidade. Essa parece ser uma questão desconhecida,
desconsiderada ou pouco importante para a revista e revela a sua parcialidade, já
que ela traz, para as discussões relacionadas à criminalidade juvenil, números,
índices e pesquisas (quando eles servem para reforçar o seu ponto de vista.
Conforme afirma Silva (2005),
A realidade social que produz a desigualdade jamais é analisada por Veja, que se limitaa constatar sua existência. Dois são, portanto, os movimentos principais da revista – difundir omedo, o que corresponde a demandar mais e mais repressão (punição), e definir quem são aspessoas que merecem proteção (socialmente seletiva) (SILVA, 2005, p. 510).
Seu posicionamento está, portanto, ligado a interesses econômicos,o que a
leva a discursivizar, isto é, a colocar em pauta os ‘problemas’ que atingem apenas
as instâncias que a interessam e que a financiam: “A revista assume -
implicitamente - que os crimes corriqueiros, de botequim, crimes pobres, pouco
importam, pois não estão nas suas páginas, ou ainda, não estão nas suas
páginas porque pouco importam” (SILVA, 2005, p. 510).
A materialidade do discurso (o texto) traz diversas paráfrases que retêm os
efeitos de sentido de que o ACAI é bandido e criminoso e ela difunde um caráter
perverso sobre eles, conforme pode ser visualizado na SD abaixo:
SD27: Quando furtou o notebook I.V.I., já estava bem distante da imagem de menor inconseqüente, levado pela ingenuidade a cometer um delito (VEJA, 2015, Ed.2431).
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Percebe-se que a Veja busca romper com a inocência da infância e afastar
o adolescente da ingenuidade. A periculosidade, de certo modo, é tratada como
maldade inata, como se os adolescentes já nascessem para a vida criminosa e,
portanto, pudessem ser equiparados a adultos no fator de punição por seus
atos.Essa equiparação do adolescente ao adulto, no que concerne ao nível de
responsabilização pelos atos que produz, serve de apoio para a defesa da
redução da maioridade penal.
As causas dos crimes, como o roubo de notebook (citado na SD 27), não
são questionadas e debatidas pela Veja, nem mesmo citadas, visto que não
configuram um fato jornalístico relevante para o semanário ou residem na sombra
daquilo que não deve ser dito. A forma sensacionalista com que a imagem do
ACAI é veiculada e os contextos psicossociais e socioeconômicos em que esse
jovem está inserido aparecem naturalizados.
Na SD a seguir, a revista aponta novamente para a questão do não
cumprimento integral do período máximo de internação:
SD28: O caso dele ilustra bem o que os críticos do atual sistema apontam:mesmo a pena de três anos de internação raramente é cumprida (VEJA, 2015, Ed.2431).
Nesta SD, a revista faz menção “aos críticos do atual sistema”, como se
não fizesse parte do conjunto e como se representasse uma opinião isenta; mas
as análises demonstram que, mais do que se posicionar frente à defesa da
redução da maioridade penal, a Veja tem instaurado uma campanha em prol do
projeto. Logo, “a idéia colocada no ECA, de privação de liberdade como medida
socioeducativa é substituída, conotativamente, pela de encarceramento de
criminosos” (NJAINE; MINAYO, 2002, p. 291). O ECA é claramente ignorado e o
ACAI é tratado pejorativamente como criminoso que se esconde atrás de uma
legislação que o protege.
Esse processo discursivo é regulado pela FD em que a revista se inscreve,
o que significa que a Veja, entendida como uma unidade, enuncia de acordo com
aquilo que lhe é permitido pela FD, pois estar em uma FD significa ter sido
interpelado por ela, constituído por ela, não existindo possibilidade de escolha. A
inscrição em determinada FD apaga a possibilidade de outros sentidos que não
sejam originados nela e por ela, o que leva os sujeitos a rejeitarem outros
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sentidos para um mesmo objeto discursivo, sentidos oriundos de outra FD. Como
pode se ver na SD abaixo:
SD29: O governo Dilma Rousseff é contrário à redução da maioridade. Desde maio, o Palácio do Planalto vinha tentando derrubar a proposta da comissão [...] Para isso recorreu ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que no começo da semana apresentou um estudo para tentar mostrar que o ECA seria mais rigoroso do que se pensa – tese que não encontra respaldo na realidade (VEJA, 2015, Ed.2431, grifo nosso).
A SD mostra que a revista renega os dados apresentados pelo Ipea sobre
a rigorosidade do ECA, isso porque os sentidos para o termo partem de FDs
distintas. Para a Veja,a rigorosidade está associada a castigo e, para ela, o ECA
não permite punir com rigorosidade. Desse modo, tem-se o confronto entre duas
FDs que partem de perspectivas diferentes sobre rigorosidade e também sobre
como tratar os adolescentes envolvidos na criminalidade.
Outro fato que merece destaque é a “realidade” retratada pelaVeja.
Estudos e dados oficiais mostram a precariedade das instituições destinadas à
socioeducação. Em vários destes locais, as práticas chegam a ser desumanas;
esta é a realidade de diversos jovens que vivem privados de liberdade. Todavia,
esta é uma realidade não abordada pela revista, que se limita a retratar a
legislação na teoria, silenciando as práticas vividas dentro destes centros.
Neste sentido, não se pode deixar de relacionar a prática discursiva da
Veja às condições de produção que envolvem as particularidades do discurso
jornalístico como esfera que trabalha na manutenção dos sentidos no campo da
sua estabilização, como demonstrado na parte teórica deste trabalho. Além disso,
há que se destacar o papel da mídia na manutenção da ideologia dominante,
configurando-se como um aparelho ideológico do estado:
O funcionamento da instância ideológica deve ser concebido como “determinado em última instância” pela instância econômica, na medida em que aparece como uma das condições (não econômicas) da reprodução da base econômica, mais especificamente das relações de produção inerentes a esta base econômica. A modalidade particular do funcionamento da instância ideológica quanto à reprodução das relações de produção consiste no que se convencionou chamar interpelação, ou o assujeitamento ideológico como sujeito ideológico, de tal modo que cada um seja conduzido, sem se dar conta, e tendo a
80
impressão de estar exercendo a sua livre vontade, a ocupar o seu lugar em uma ou em outra das duas classes sociais antagônicas do modo de produção (ou naquela categoria, camada ou fração de classe ligada a uma delas) (PÊCHEUX;FUCHS, 2014, p.162, grifo do autor).
Como se tem procurado demonstrar, língua e ideologia mantêm uma
estreita relação. Toda manifestação discursiva carrega uma carga social que
aponta para as condições sócio-históricas que a constituem:“Nenhum enunciado
pode,então, ser considerado neutro, pois, se desligado da base material e
ideológica que lhedá origem, anula-se a possibilidade de ele produzir efeitos de
sentido” (ORSATTO, 2009, p.148).
A edição número 2435 traz uma matéria cujo título é:
SD30: EM TRÊS ANOS, NAS RUAS (VEJA, 2015, Ed.2435).
O efeito de sentido desencadeado pelo termo ‘ruas’aponta para o efeito de
liberdade e poderia produzir um sentido positivo sobre o retorno do ACAI à
sociedade; entretanto, este dito efetivamente se relaciona a outro sentido, cujo
significado remete aestar solto para cometer novos crimes e que, como ato falho,
denuncia a vida dura vivida pela maioriados adolescentes que entram na
criminalidade. Orlandi (2010), em um estudo sobre a violência e a delinquência,
afirma que uma das formas ideológicas que regem o imaginário citadino é o fato
de que a solidariedade e a reciprocidade cedem lugar à rivalidade, o que culmina
na marginalização, isto é, na colocação à margem. A autora afirma que esses
sujeitos não são sustentados nem na racionalidade do estado, nem na lógica da
pertença social, mas por meio da falta de um lugar, tanto na família quanto nos
diversos grupos sociais. Nesse sentido,
O discurso jurídico aparece aí como uma importante fonte de legitimação dessas práticas que afetam a juventude pobre, por fazer crer que se as injustiças acontecem é porque a lei não foi cumprida. Quando, na verdade, a lei não passa de uma maneira de silenciar, para os que estão de fora, os que berram dentro dos muros (BUDÓ, 2013, p. 33).
O que se tem percebido até aqui é que o discurso da Veja aciona efeitos
de sentido que, embora não se saiba a origem, ratificam, o tempo todo, a
81
marginalização dos adolescentes que cometem ato infracional, pregando, na
medida do possível, que a penalização seja ainda mais severa.
O enunciado que compõe a linha fina que segue o título analisado
anteriormente apresenta um deslizamento em relação à produção de um efeito de
sentido, já que o menor que anteriormente foi designado como assassino, agora,
após a sua morte, é uma ‘vítima’:
SD31: Os menores condenados pelo estupro de quatro meninas no Piauí, uma das quais morreu, voltaram a matar. Desta vez, a vítima foi o cúmplice que delatou o grupo. Pelos dois crimes bárbaros, os adolescentes ficarão não mais do que três anos numa casa de correção, de onde sairão com a ficha limpa. É o que diz a lei. Mas agora ela pode mudar (VEJA, 2015, Ed.2435, grifo nosso).
Ao utilizar ‘casa de correção’, Vejaparece pretender criar um efeito de
eufemismo e de visada positiva sobre a prisão juvenil e levar a inferir um
resultado positivo do modo de internamento destinado ao ACAI; porém, deve-se
ressaltar que o crime de que trata o enunciado aconteceu exatamente nesta casa
de correção, o que contradiz o princípio discursivo de que esses centros são
locais amenos e de que, no limite, servem para não punir, o que deveria
acontecer, conforme a tese central de correção assumida pela revista.
O recurso ao adjetivo ‘bárbaro’, para caracterizar o substantivo ‘crime’,
também não ocorre aleatoriamente, já que se percebe que ele busca reforçar o
suposto caráter maquiavélico que é atribuído aos ACAI e ratificar o perfil de
‘menor bandido’ defendido pela revista.
Nesse sentido, entende-se que a Vejaestá submetida a um princípio de
regularidade discursiva, cujo funcionamento se caracteriza, sobretudo, pela
presença de paráfrases de efeitos negativos e que apontam para a defesa de
criminalização do ACAI. Em termos de processo discursivo, há uma mesma
direção de sentidos que retorna sempre, sob a aparência de modificações,
reiterando que os adolescentes que cometem ato infracional são bandidos e
devem, portanto, ser segregados: esta segregação vem em forma de prisão. E
assim, nesse retorno, o silêncio em torno deoutros sentidos parao ACAI reitera o
efeito de literalidade do sentido, embora
o sentido (seja) sempre dividido, tendo uma direção que se especifica na história, pelo mecanismo ideológico de sua
82
constituição; há simbolização das relações de força, de poder, que se estabelecem na divisão própria à sociedade capitalista. Ligam-se aí três noções: o político, o histórico (o Outro, a memória, o interdiscurso) e o ideológico (ORLANDI, 2013, p.06).
Percebe-se, ainda na mesma SD, o descontentamento de Veja com o fato
de que, após o cumprimento das medidas socioeducativas, o ACAI tenha o
histórico penal apagado, com isso, não podendo ser identificado ou segregado.
Esta postura é defendida também no corpo da reportagem, conforme pode se ver
na SD abaixo:
SD32: Agora, esse segundo assassinato não acrescentará um único dia de internação ao tempo já previsto. Em 2018, os três assassinos estarão de volta às ruas, usufruindo o status de réu primário como o mais reto dos cidadãos, já que o ECA proíbe qualquer registro criminal no caso de infratores menores de 18 anos (VEJA, 2015, Ed.2435).
Na reportagem em questão, Veja deixa transparecer um suposto desejo de
‘justiça’ pela morte de um dos adolescentes, ocasionada pelo restante do grupo.
Porém, na edição 2430, a matéria Justiça só para maiores trata dos mesmos
adolescentes e, conforme analisado, em momento algum, a revista demonstra
sensibilidade ou preocupação com o destino dos adolescentes, pelo contrário,
lhes atribui um caráter perigoso e perverso. Nesse sentido, é possível inferir que,
efetivamente, o que mobiliza o discurso da Veja é a busca pela punição, conforme
deixa clara a SD abaixo:
SD33: A lei brasileira é uma das mais lenientes do mundo quando se trata de punir adolescentes criminosos (VEJA, 2015, Ed.2435, grifo nosso)
De acordo com Gomide (1990), a narrativa jornalística, em particular a de
estilo policialesco, tem sido um dos setores responsáveis frente à opinião pública
pela construção da imagem de crianças e adolescentes associados a animais,
como seres de natureza perversa, nocivos à sociedade, sujeitos sem recuperação
ou desumanos, com agressividade incontrolada, fator que atua na produção de
sentidos negativos e uma memória institucionalizada. Ela contribui para um
processo de dominaçãosociopolítica que, na sua hegemonia, torna a maturidade
do ACAI precoce e cerceia o seu desenvolvimento integral.
83
Percebe-se, a partir disso, que, para a revista, não há redenção; sendo
praticada a infração penal, os adolescentes deverão carregar para sempre a
‘marca’ da segregação que os distinguirá dentre os outros cidadãos, pois
Se ontem, os adolescentes eram penalizados por estarem em situação irregular, hoje são penalizados e tidos como fracassados por não conseguirem se incluir na sociedade de consumo; se antes as falhas das políticas sociais eram desconsideradas quando da estereotipação do adolescente como irregular, hoje as políticas neoliberais deixam o espaço de socialização dos adolescentes aberto para a atuação do tráfico de drogas; se antes os adolescentes eram tidos como vagabundos, hoje são vistos e tratados como de alta periculosidade e criminosos (SARTÓRIO, 2007, p.90, grifo do autor).
Os processos sociais que constituem a criminalidade juvenil têm sido
historicamente silenciados no DJ e também no da Veja, mas, em contrapartida, os
já-ditos negativos são reiterados e atuam não apenas retrospectivamente, mas
também reverberando o futuro, numa espécie de prevenção por parte da
sociedade: “Faltam históricos [...] que contribuam para explicar os motivos da
violência, e também não há um foco nas soluções, [...] raramente é cobrada a
presença do Poder Público e denunciada a ausência de políticas públicas”
(SALES, 2004, p.187-189).
Na sequência da matéria, é possível perceber que o semanário traz o
discurso do MP para ratificar sua posição:
SD34: Promotores da Infância e da Juventude afirmam que, além de estender a pena para determinados delitos, é fundamental estabelecer um tempo mínimo de internação para os autores desses crimes (VEJA, 2015, Ed.2435).
Para Maingueneau (2005), “o discurso ‘filtra’ a aparição, no campo da
palavra, de uma população distinta” (MAINGUENEAU, 2005, p. 137, o que
significa que, ao trazer outros discursos, há uma seleção por parte da FD da Veja de modo que os sentidos não sejam conflitantes, ou seja, deve haver condições
para que esses discursos outros nela se inscrevam e sejam chamados a se
inscrever. Além do mais, ao colocar em cena outras vozes discursivas que
compactuem com seu posicionamento, no caso em questão, um parecer de peso,
a revista reforça sua tese de endurecimento da legislação e mantém sua
84
legitimidade.
No que se refere às deficiências relativas à estrutura e ao sistema que
culminaram no episódio da morte do adolescente, Veja se limita a citá-los:
SD35: A superlotação dos estabelecimentos destinados a abrigar infratores e seu despreparo para recebê-los – no caso da morte de Gleison, o fato de ele estar no mesmo quarto que os comparsas que delatou configura ‘um erro de procedimento básico e gritante’, como afirma o promotor Cezário Cavalcante – são só algumas das muitas falhas a ser corrigidas antes de se por em prática qualquer mudança na lei (VEJA, 2015, Ed.2435).
Nesta reportagem, pela primeira vez, a revista faz menção às falhas
dasinstituições de ressocialização e a necessidade de correção dessas. Mas ela é
citada de modo geral e sem a problematização necessária. Além do mais, a crítica
denuncia as deficiências com o intuito de que sejam corrigidas para uma melhor
punição:“o projeto pedagógico que, pela sua total inconsistência transformadora,
acaba por criar, recriar e reforçaros papéis de delinqüentes, não encontra espaço
político-informacional”(NJAINE; MINAYO2002, p. 294).
Por fim, a revista afirma que
SD36: Os entraves, mesmo sendo muitos e complexos, não podem servir de argumento para que se perpetue a impunidade (VEJA, 2015, Ed.2435).
No enunciado acima, as carências do sistema são tratadas como
“entraves”, isto é, obstruções que dificultam a aplicação das punições, mas se
silencia o fato de que elas culminaram na morte de um dos jovens que estava sob
a responsabilidade do sistema judiciário. O fato de ele ter sido colocado na
mesma cela que os outros adolescentes, após ter confessado a culpa do grupo
todo, é tratado pelo MP e também pela Veja como um “erro básico e gritante” e,
por fim, como entrave que dificulta a punição. Desse modo, percebe-se o trabalho
da FD em que a Veja se inscreve, direcionando sentidos e o efeito da ideologia,
ocasionando a ilusão de transparência da linguagem, como se as teses
apresentadas fossem evidências; desse modo, enunciados ideológicos aparecem
como verdadeiros e lógicos, quando, na verdade, são oriundos da inscrição da
Veja em determinada FD.
No título seguinte,Veja apresenta o enunciado seguinte:
85
SD37: A DOIS ANOS DA LIBERDADE (VEJA, 2015, Ed.2458).
É possível identificar o tom acusatório usado pela revista na construção da
SD, já que coloca a liberdade como uma concretização próxima e,a partir das
análises realizadas, tem se identificado o descontentamento daVeja sobre
conceber a liberdade ‘apressada’ a qualquer ACAI; pelo contrário, para ela,
quanto maior e mais dura a pena, maior é a aceitação. Nesse sentido, o efeito de
sentido pretendido pela Veja é o da indução à revolta, já que a liberdade
representa o oposto do que prega a FD em que a revista se inscreve.
Percebe-se, portanto que a revista se afasta da FD jurídica e a coloca em
xeque, apesar de compactuar com as noções de certo e errado e direitos e
deveres impostas pelo discurso jurídico e impetradas pelo aparelho ideológico da
justiça. Esse distanciamento se deve ao fato de que os sentidos de justiça para o
ECAnão pertencem à mesma matriz de sentidos da Veja, o que leva a revista a
contestar e a confrontar esses sentidos com o intuito de ‘consertar’ a legislação, o
que culmina na defesa da redução da maioridade penal.
A construção da suposta ‘indignação’ por parte da Veja segue no curto
texto da reportagem que está presente na edição especial de final de ano e traz
apenas os assuntos destaques do ano:
SD38: O crime de Castelo do Piauí (PI) já tinha elementos suficientes para abalar o país: sua crueldade extraordinária, o sofrimento impingido às vítimas e até a situação, tristemente prosaica, que levou uma delas à morte [...] Em julho, dois meses depois de terem sido presos, três dos criminosos de Castelo do Piauí (PI) mataram a pancadas o quarto comparsa, que havia delatado o grupo. Pela morte da menina e do colega de cela, os jovens passarão no máximo mais dois anos e seis meses internados – e sairão como réus primários (VEJA, 2015, Ed.2458, grifo nosso)
A construção da ‘comoção’ é visível no trecho acima e permite ratificar o
comportamento discursivo da revista que mantém, por meio de paráfrases, o
mesmo dizer negativo sobre o ACAI, difundindo um perfil perigoso e perverso que
reverbera o estigma de menor bandido enfrentado historicamente pela infância
pobre e pelo ACAI.
A banalização da imagem do ACAI surge sob a forma de diferentes pré-
86
construídos, muitas vezes sarcásticos e pejorativos, que apontam para uma só
direção: a criminalização e a necessidade de exílio social destes sujeitos. A outra
história, a da segregação, por sua vez, não é contada:
De um lado, pois, impera o discurso da verdade e da lei; e, do outro, a todos os que se batem contra a ordem, restam a desqualificação ou a redução ao silêncio. Afinal, eles não devem ter o direito à palavra, porque são delinqüentes. Daí por que, muitas vezes, precisam dizer com atos (incêndios de carros, rebeliões, destruição de unidades de internação, etc.) a sua revolta. Constroem formas diferentes de acessar o discurso e somente assim aquilo que pensam e precisam pode penetrar, como conjunto de enunciados, numa determinada sistematicidade e desencadear efeitos regulares de poder (SALES, 2004, p.185).
Na sequência, a edição 2460 traz, como título de uma matéria sobre os
ACAI, a seguinte afirmativa:
SD39: PARA ELES, COMPENSOU (VEJA, 2015, Ed.2460).
Nesta SD, aVejabusca criar um efeito de distanciamento em relação ao
ditado popular que afirma que ‘o crime não compensa’, fazendo uso da memória
e do senso comum; interdiscursivamente, a revista contrapõe os dois discursos
para criticar a impunidade e defender que ela acabe, já que, no caso, o crime
compensou porque ficaram impunes. É importante destacar que a construção
destes enunciados “não se trata de uma seleção paradigmática, em termos de
língua, mas de assumir uma posição discursiva” (POSSENTI, 2011, p.376), pois
“qualquer enunciação supõe uma posição” (POSSENTI, 2011, p.372); isso quer
dizer que as escolhas parafrásticas de Veja se assentam sobre uma ideologia
dominante que a leva assumir determinada atitude discursiva.
Nesse sentido, toda tomada de palavra por parte da Veja dirige-se a
defender sua posição discursiva e buscar ‘justificar’ suas convicções por meio de
argumentos, dados e estudos, e sem constatar seu assujeitamento àposição
ideológica que a constitui, conforme pode se observar na sequência abaixo:
SD40: Estudo do Ministério Público acompanhou por um ano 1.000 infratores saídos da Fundação Casa e concluiu que os menores reincidem mais vezes e mais rápido que os maiores (VEJA, 2015, Ed.2460).
87
A revista traz, para o discurso, dados que reforçam seu ponto de vista. No
enunciado, ela se vale de um estudo realizado pelo Ministério Público buscando
comprovar a tese de que a reincidência está relacionada à inimputabilidade do
ACAI, conforme ficou claro a partir da análise do título da matéria a que a linha
fina está ligada. Em suma, o efeito de sentido que se cria a partir do enunciado é
que os adolescentes devem ser mais temidos que os adultos na prática de
crimes, já que “reincidem mais vezes e mais rápido que os maiores”. Para a
Veja,devem ser punidospara vingar a prática do crime e paradesencorajar os que
não cometeram o delito, a fim de bloquear a ocasião e a repetição.
Budó (2013), em um estudo sobre a interferência do discurso político e
midiático sobre o ato infracional na produção de políticas destinadas à criança e
ao adolescente, conclui que, no Brasil, preponderam as políticas repressivas em
detrimento das sociais e que, por detrás de um discurso protetivo, vigora uma
série de práticas punitivas que, somadas a uma enraizada ideologia menorista,
culminam na difusão de uma política penal cada vez mais acirrada.
Nesse sentido, a autora afirma que
os discursos político e midiático, ao interagirem na (re)producao do pensamento hegemônico sobre o adolescente, o ato infracional e as medidas socioeducativas, também auxiliam na reprodução material das relações de desigualdade social tão características do Brasil contemporâneo. Definem quem devem ser os perseguidos, por quais atos e com quais consequências: jovens pobres não brancos das periferias, por crimes de rua ocorridos em locais geograficamente privilegiados das cidades, com a consequência de punição através da exclusão social com a privação longa de liberdade (BUDÓ, 2013, p.420).
Em linhas gerais, o estudo realizado por Budó (2013) demonstra uma forte
predominância da adoção de posturas estatais repressivas em detrimento de
posturas voltadas ao bem-estar social, que configura a intervenção mínima de um
Estado social e a máxima de um Estado penal. Nesse sentido, ao silenciar
determinadas questões nas matérias, a Veja legitima as práticas de repressão
sobre o ACAI, além de ratificá-las em seu próprio discurso, o que permite
perceber a formação ideológica neoliberal, caracterizada, sobretudo, pela
manutenção de um estado forte com interferência mínima em questões de cunho
social, materializando-se no discurso do semanário, conforme pode se verificar na
SD abaixo, retirada do texto da matéria:
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SD41: A iniciativa do MP parte de uma lacuna deixada pelo estado – que não tem nenhum plano de acompanhamento dos egressos da Fundação Casa, uma exigência prevista no ECA (VEJA, 2015, Ed.2460).
Nesta SD, a Veja apresenta uma ‘crítica’ ao estado por não apresentar um
plano de acompanhamento para os adolescentes que deixam a Fundação Casa;
entretanto, a ponderação se refere ao fato de não ser possível precisar os
números de reincidência destes jovens. Nesse sentido, a ‘preocupação’ da Veja está relacionada ao melhor controle dos adolescentes e não com seu bem estar;
nesse caso, a falha é apontada como lacuna do estado, algo a ser corrigido, com
foco na melhor punição.
Neste contexto, é possível relacionar as práticas relacionadas ao ACAI e a
aplicação das medidas socioeducativas, sobremaneira, as privativas de liberdade,
com a destruição deliberada do Estado social e a hipertrofia súbita do Estado
penal dos últimos anos, apontados por Wacquant (2003) como desenvolvimentos
complementares e concomitantes. Para ele, ambos acabaram participando do
estabelecimento de um novo governo da miséria, no qual a privação de liberdade
ocupa uma posição central. Ele é denominado pelo autor como Estado centauro,
uma cabeça liberal sobre um corpo autoritário, que aplica a doutrina do
laissezfaire, laissezpasser, ao tratar das causas das desigualdades sociais, mas
se revela paternalista e punitivo quando se trata de assumir as consequências
(WACQUANT, 2003).
A SD abaixo revela os efeitos de sentido estipulados sobre a lei a partir da
FD de que a Veja é suporte:
SD42: O estudo revelou que os menores que atingiram a maioridade nesse período - ficando, portanto, sujeitos às mesmas penas que bandidos adultos - reincidiram muito menos no crime do que aqueles que, por não terem 18 anos de idade, permaneceram protegidos dos rigores da lei pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (VEJA, 2015, Ed.2460).
Na SD acima, produzem-se dois efeitos de sentido. O primeiro deles é
ocasionado pelo uso da sentença “bandidos adultos”. Sugere-se, a partir disso,
que há duas classificações de ‘bandidos’, cuja separação se dá pela maneira
como são julgados. Nesse contexto, há bandidos adolescentes e adultos, mas de
89
modo generalizado são todos ‘bandidos’.O recurso a termos pejorativos para se
referir ao ACAI reforça o menosprezo, a ideia de nãosujeito e de grupo informe
difundido na sociedade. “Além disso, ao colocarem a palavra ‘menores’ como
sujeito indefinido das frases, os títulos enunciam [...] a condição de oposição entre
esses meninos e os adolescentes não-infratores, assinalando a inferioridade dos
primeiros”(NJAINE; MINAYO, 2002, p.292).
O segundo efeito de sentido gerado a partir da SD é o de que o ECA não é
lei. Nas linhas finais da sequência, a revista afirma que o ECA protege “dos
rigores da lei”, distanciando-o de sua especificidade de lei e sugerindo que o
estatuto serve para perpetuar a impunidade. O dito apoia-se em uma memória
discursiva de lei como finalidade de repressão e de dominação, assim como o
termo ‘justiça’, discutido no capítulo anterior. Logo, nessa matriz de sentidos, as
leis servem para punir, não para recuperar ou ressocializar indivíduos; desse
modo, ao elencar uma doutrina de proteção, o ECA conflitua com os sentidos já
instaurados e instituídos na memória discursiva sobre a lei.
Na sequência do texto, a revista volta a incorporar o discurso do MP:
SD43: ‘A pesquisa indica que a pena mais severa que acompanha a maioridade penal pode funcionar como um frio para o cometimento de crimes’, diz a promotora (VEJA, 2015, Ed.2460).
Percebe-se que a Veja considera o estudo realizado pelo MP como válido
e o inclui, aliás, na discussão em prol do endurecimento da legislação voltada
para adolescentes. Porém, deve-se ressaltar que, em outra matéria, a revista
desabona um estudo realizado pelo Ipea proposto pelo Governo Federal para
mostrar que o ECA é, de fato, rigoroso. A partir disso, é possivel identificar um
quadro de regularidades no discurso da Veja, de maneira que opiniões, estudos e
dados que desabonem a imagem do ACAI e defendam a redução da maioridade
penal ou o endurecimento da legislação são trazidos e validados pelo semanário,
mas posições que sustentem outros sentidos são repelidos.
Em resumo, o que se vê a partir da análiseé a ênfase da FD em que Veja se inscreve na defesa da punição, apontando uma direção de sentidos que
criminaliza o ACAI e o relega à prisão, por vingança ou por ‘proteção’ dos
interesses de uma parcela da sociedade. De todo modo, a prática discursiva da
90
revista coloca em discussão apenas um sentido para solução da criminalidade
juvenil, por uma via de mão dupla: punir para vingar ou punir para remediar.
Desse modo, a partir das posições que vêm sendo sustentadas pelaVeja, fica claro que o sentido não é neutro nem natural, mas “determinado pelas
posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as
palavras, expressões e proposições são produzidas” (PÊCHEUX, 1995, p.160).
Além do mais, percebe-se o trabalho da ideologia dominante legitimada pelo
discurso da Veja operando sob o AEI da informação em conjunto com o ARE da
justiça que atua coercitivamente sob o pretexto do bem comum, pois “a língua da
ideologia jurídica permite conduzir a luta de classes sob a aparência da paz
social” (PÊCHEUX, 1990, p. 11).
Na conclusão da matéria, percebe-se um tom de descontentamento no
enunciado da Veja pelo nãoavanço no congresso de duas propostas que previam
o endurecimento da legislação para adolescentes que viessem a cometer ato
infracional:
SD44: No ano passado, o congresso desengavetou uma proposta de redução da maioridade penal que estava parada desde 1993 e colocou em discussão uma modificação no ECA que ampliaria o tempo de internação dos menores infratores que houvessem cometido delitos violentos [...] Mais uma vez, no entanto, as duas propostas terminaram o ano esquecidas (VEJA, 2015, Ed.2460).
A insatisfação da Veja com a falta de andamento das propostas pode estar
relacionada a seu esforço particular na aprovação dos projetos, já que, durante o
ano de 2015, conforme demonstrado a partir da análise das matérias, a revista foi
protagonista de discussões envolvendo a defesa da redução da maioridade penal
e se enpenhou em mobilizar a opinião pública para que isso repercurtisse no
congresso; logo, é possível compreender o seu desapontamento em relação a
essa situação.
Essa postura demonstra o assujeitamento da revista à FD que a interpela,
pois ela é chamada a compartilhar aquilo que está socialmente posto em uma
forma de ler o mundo que a precede. Portanto, o discurso da punição não está
restrito a ou foi originado na Veja; ela apenas o reproduz por meio dos diferentes
enunciados demonstrados no decorrer deste trabalho.
No discurso da revista, cuja origem se desconhece, não se discute a
91
responsabilidade do estado ou as condições sociais dos sujeitos autores da
prática infracional, ou seja, não se vislumbram políticas de prevenção. Os motivos
para que estas questões sejam silenciadas podem ser relacionados a questões
ideológicas e econômicas, uma vez que, instauradaessa discussão, a
responsabilidade do ACAI e sua perversão seriam colocados em xeque, ao passo
que a sua culpabilidade minimizada, o que não é pertinente para o discurso da
revista.Além disso, romper-se-ia com a sua lógica, isto é, a memória do ‘menor
bandido’ disponibilizada a partir da memória discursiva que permite que a Veja reverbere, de diferentes formas, o mesmo dizer.
Como se demonstrou na análise até aqui, há uma paráfrase constante
negativa sobre o ACAI no discurso da Veja que se sustenta na FD da punição. A
inimputabilidade penal dos menores de idade é constantemente atacada e
apontada como razão da criminalidade juvenil pela revista; então, como ‘solução’
para o problema, a Vejadefendea redução da maioridade penal. A causa e a
culpa da criminalidade juvenil é atribuída ao caráter ‘perverso’ do ACAI e a
‘certeza de sua impunidade’. Assim, silenciam-se a falta do estado em termos de
políticas de assistência social para a prevenção à criminalidade e para evitar a
reincidência daqueles que passaram, e foram afetados, pelo mundo do crime.
Diante do exposto, não se pode deixar de relacionar a prática discursiva da
revista com a criminalização da infância pobre e marginalizada, processo
discursivo que, embora não se possa precisar a origem, tem se mantido
historicamente e, no caso do ACAI, imposto a uma identidade permeada de
estigmas, sem efetuar uma leitura crítica da realidade social.Acrescente-se a isso
o fato de que o discurso jornalístico e, portanto, o da Veja, atuam na manutenção
dos sentidos nesse campo e, assim sendo, dificilmente ou nunca colocam em
circulação sentidos que desfaçam essa lógica.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para se compreender as práticas hegemônicas que imperam em
determinado momento histórico, é fundamental conhecer seu processo de
constituição. A análise de discurso entende que as formações ideológicas se
materializam por meioda linguagem e assim interpelam os indivíduos em sujeitos
clivados, esses sujeitos, por sua vez, enunciam a partir dessas posições
ideológicas que o dominam. Dessa maneira, a língua constituia possibilidade de
discurso em que diversos dizeres são colocados em relação, mas, no fim,
recebem seu sentido da base ideológica afetada pela história. Nenhum enunciado
pode, então, ser considerado neutro, nem sertomado de maneira isolada de suas
condições de produção, pois é a partir da relação com a exterioridade que o
processo discursivo se constitui.
A partir dessa perspectiva, o objetivo inicial deste trabalho foi o de analisar
para compreender a prática discursiva da revista Veja sobre adolescentes que
praticam ato infracional, considerando que a Veja configura-se como órgão
midiático e, portanto, seu discurso carrega traços do discurso jornalístico próprios
de sua constituição enquanto instituição.
Nesse sentido, esse trabalho de análise procurou não apenasapontar
evidências no discurso da Veja, mas, sobretudo, trabalhar com o processo de
produção das evidências identificando as marcas do ideológico que determinam o
curso de cada discurso, pois “as notícias jornalísticas se reinscrevem, sob o efeito
ideológico da evidência, da obviedade, na direção de sentidos
desejada/determinada politicamente pela formação discursiva hegemônica”
(MARIANI, 1996, p. 237)
Observando a relação entre língua e exterioridade e ainda recusando a
concepção de linguagem como mero instrumento de comunicação, foi possível
elucidar que a prática discursiva da revista Veja se regulamenta a partir da FD da
punição que dita os sentidos e rege as construções sobre adolescentes que
cometem ato infracional, o que permite a construção de enunciados negativizados
sobre eles e a reverberação de uma memória instaurada historicamente de menor
bandido que segue cristalizada por meio de paráfrases discursivas.
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O trabalho de análise desta dissertação buscou compreender, de maneira
geral, como se articula a prática discursiva da Veja sobre a questão da
criminalidade juvenil, a partir da análise discursiva damatéria O dever de reagir da edição nº 2318 (no primeiro capítulo) e da análise dos títulos, linhas finas e
sequências discursivas de cinco reportagens das edições nº 2430, 2431, 2435,
2458 e 2460 (no segundo capítulo).
A análise das sequências, nos dois capítulos, permitiu identificar a
paráfrase constante, organizada sob a forma de diferentes enunciados, de que a
punição é a solução para a criminalidade juvenil e deve ser materializada sob a
forma da redução da maioridade penal e o endurecimento da legislação voltada
para menores de idade, tese para a qual Veja advoga reiteradamente.
Em alguns casos, a revista afirma que a punição deve ser aplicada com o
intuito de vingança e, em outros casos, como prevenção à criminalidade juvenil,
todavia, por uma maneira ou por outra,Veja defende a punição.
Tornou-se possível ainda identificar os valores que orientam a produção
discursiva da revista, dentre eles destaca-se a adoção de concepções
ultrapassadas de justiça, marcadas por práticas severas de punição, a denúncia e
o frequente ataque às consequências da criminalidade juvenil. Além disso, um
silêncio conivente às causas do problema, a criação de uma imagem perversa e
maquiavélica dos ACAI que ‘justifica’ a tese de punição e de redução da
maioridade penal e, por fim, a questão que rege toda produção discursiva da
revista: o modelo de gestão neoliberal que defende interesses capitalistas e
protege quem se encaixa nesse modelo de sociedade, excluindo os que estão à
margem dele como os ACAI.
Nesse sentido, cabe dizer que Veja articula seu discurso de modo a
defender os interesses de uma parcela da sociedade: a elite brasileira que a
financia, para tanto, coloca em circulação uma realidade à parte, isto é, traz para
suas matérias discussões acerca de crimes cometidos por menores de idade,
enquanto a violência da qual os ACAI são vítimas é silenciada.
Ainda, foi possível concluir que o discurso jornalístico, e também o da Veja,
contribuem na produção e na cristalização de ‘verdades’ que estão sempre
ligadas aos sistemas de poder, isto é, “a prática discursiva jornalística permitea
institucionalização social de certos sentidos, remetendo 'ao que todo mundo
94
sabe'(uma verdade local) e ao silenciamento de outros sentidos, resultado de uma
política do silêncio (MARIANI, 1996, p.38). Conforme afirma Foucault (1979), o
discurso serve também para legitimar as instâncias de poder, isto é, o discurso é
o lugar onde o poder é exercido, nesse sentido, pode-se relacionar o lugar da
mídia, e o da Veja, como lugar de poder que produz um discurso veiculado como
‘válido’ e ‘verdadeiro’ e assim tem poder de homogeneizar sentidos.
Desse modo, entender as práticas discursivas e, sobretudo, o processo de
construção e de reprodução dos discursos hegemônicos sobre o crime e o ato
infracional, é um passo fundamental na elaboração edifusão de um discurso
alternativo, contra-hegemônico, e na construção de um olhar generoso sobre os
ACAI no que tange às suas trajetórias de risco, de sofrimento e de descaso social.
Como se procurou demonstrar, não é possível escapar dos efeitos
ideológicos, a ideologia age reproduzindo no discurso e,por meio dele, as
relações sociais que cercam os indivíduos, desse modo, o discurso da Veja de
punição e de repressão é uma paráfrase construída historicamente sob os moldes
do modelo de estado capitalista que margeia os que, por (falta de) condições, não
se encaixam nesse sistema, e, assim, precisam ser excluídos e segregados para
que não instaurem a desordem e o caos, afinal, não são importantes,já que não
fazem parte do sistema. Então, a solução aparece como encarceramento, tese
defendida veemente pela revista Veja no decorrer desta dissertação.
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