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Sob o nome de realImaginários no jornalismo e no cotidiano

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Ana Taís Martins Portanova Barros

Sob o nome de realImaginários no jornalismo e no cotidiano

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© Ana Taís Martins Portanova Barros

Capa:Editoração: Jaqueline Keiper

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Bibliotecária responsável: Deisi Hauenstein CRB 10/1479

Armazém Digital Comunicação LtdaAv. Des. André da Rocha, 75/3890050-161 – Porto Alegre – RSFone: (51) 3225 3581e-mail: editora@armazemdigital.com.br

Acesse www.armazemdigital.com.br para comprar os livros econhecer os novos lançamentos da editora.

1ª edição/2007

Impresso no Brasil

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Para minhas melhores realidades:Eduardo e Luchino,

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Sumário

Cíntia, Cíntias ................................................. 7

Mapa sobre areias movediças ............................ 35

Imaginar para viver ........................................ 41

Tesouros da multiplicidade

Inventário de imagens

do cotidiano dos camelôs ................................. 53

Da parataxe às grandes dicotomias ..................... 63

Somos míticos e racionais ................................. 67

O iconoclasmo no Ocidente ............................... 71

Factualidade no jornalismo ............................... 77

Encontro no Café dos Cataventos........................ 83

Objetividade iconoclasta .................................. 93

Serão os olhos janelas da alma? ......................... 99

Entre paradigmas e vivências ........................... 111

Mundos diferentes, narrativas plurais ................. 125

Imagens fundantes no jornalismo....................... 129

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Insistência do heróiinventário de imagens do reportar

e das reportagens ......................................... 137

A salamanca do JarauUm mito de iniciação ..................................... 155

Árvore de folhas caducas ................................ 169

Bibliografia ................................................. 181

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CÍNTIA, CÍNTIAS

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A mãe, italiana; o pai, bugre. Não era preto, preto; bugre, umamistura, o Mascarenhas1. Foi quando começou a mistura das raças.Os bisavós maternos vieram da Itália naquele navio em que vieramtodos os italianos, muito tempo atrás. Quando chegou a época decasar, a mãe, casou. Eles eram pobres, plantavam uva lá na VilaNova. Mascarenhas era pedreiro, não pedreiro de construção;cortador de pedra.

Ela é Cíntia, a segunda filha do casal. Tem os cabelos e os olhospretos, brilhantes. Está com nove anos. O pai doou-a para umafamília a quem ela servirá de empregada doméstica. Passam quatro,cinco meses, e a menina com saudades da mãe, dos irmãos, da escola.

— Ele dava para as pessoas ajudarem a criar, entendeu? Nãodar dado. Tira da escola, vai ser doméstica, naquela época a cabeçadeles era assim.

Quando a mãe aparece, finalmente, a menina chora, pede paravoltar para casa, é atendida. Tem muito gosto em estudar, conseguevoltar para a escola, mas, um dia, o pai se embebeda, procurandoum desafogo para os problemas da vida. Dá uma surra na esposa,expulsa-a de casa junto com os filhos, eles têm de dormir na rua.Mascarenhas pensa, pensa, e a única solução que encontra paradiminuir as despesas é entregar Cíntia, de novo, a uma família. ,submissa, não se opõe. Tudo recomeça.

— O nome dele era Mascarenhas Barbosa Machado. Eu souCíntia Machado Mascarenhas porque casei com uma pessoa desobrenome Mascarenhas. A minha mãe era Todeschini Machado.Vou te mostrar as fotografias.

Um dia, a menina está na cozinha, um doce no fogo, ela mexe,mexe, esperando dar ponto. O pai chega da rua, bêbado, repugnan-temente bêbado. Começa o ritual de surrar a mulher, que não reage,

1 Os nomes dos personagens são fictícios para proteger os informantes.

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deixa-se bater à vista dos filhos pequenos. Mas Cíntia, aos noveanos, já tem bastante revolta acumulada no coração. Tomada deuma força muito maior que seu corpo frágil poderia sugerir, dáum empurrão no pai. Ele estaqueia, cambaleia, tonto pelo álcoole pela reação da garotinha que, encorajada com o bem-sucedidode sua ação, prossegue empurrando Mascarenhas, empurra-o parafora de casa, pelo quintal, empurra-o até a borda do poço, a raivalhe aumenta a força, quer empurrá-lo para até o fim do mundo,do seu mundo, vai jogá-lo no poço, sim, quando chegam a mãe ea irmã mais velha e puxam o homem para trás. Mas não! Deixa!A gente diz à polícia que ele caiu sozinho dentro do poço, estavabêbado.

— Olha aqui, é meu pai me levando no meu casamento. Assimmesmo eu não guardo mágoa dele. Aqui ele, bem moreno. Aqui, ó,meus irmãos. Aqui eu, minha irmã mais nova, eu tô com cinqüenta,ela tá com quarenta. Tem esse aqui que tá com quarenta e três.

— Em que ano foi o teu casamento?— Foi em 71. Dia três de julho de 1971. Essa é minha mãe. Essa

é minha sogra. Essa é minha irmã mais velha. Aqui tu podes ver,meu pai é quase preto. Na época eles falavam bugre, eu não sei.Primeiro faleceu meu pai, depois a minha mãe. Ele com 64, e elacom 54. Ela teve câncer no estômago. E depois ficou generalizado,porque ela tinha asma, bronquite, alergia, essas coisas assim.

A fieira de dias recomeça, nem melhor nem pior do que antes.Chega o inverno, a menina dos olhinhos sonhosos continua indoà escola com o mesmo vestido de verão, a barra não cobrindo maisdo que um palmo acima do joelho, os chinelinhos de dedodeixando os pés se enregelarem. Por cima, como recursoextraordinário, veste um casaquinho de tricô, insuficiente para aestação fria gaúcha que, mesmo durante o dia, apresenta facilmentetemperaturas abaixo de 15°C. A menina tremelica de frio, maspersiste nos estudos, quer ser psicóloga. Ou professora.

A mãe, começa a trabalhar, fazer limpeza nas casas dos ricos.Sempre de ônibus, vai até o centro, de lá pega outro para o bairroPetrópolis, onde ficam as casas que contratam seu serviço. Leva

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junto a sua filha de nove anos, aquela valente que sempre lhe fala,quando eu crescer tu não vai mais apanhar do meu pai. Cíntia gostade sentar no banco mais próximo da janela, o nariz tão perto dovidro que chega a embaçá-lo, toda ela quietinha, muda, como édo seu feitio, olhando as casas bonitas. O ônibus sobe a ProtásioAlves bem devagar, dá tempo de admirar as vitrines, aqui hámuitas lojas que vendem lustres, um mais bonito que o outro, aguriazinha sonha, faz de conta que vai morar nesta rua tão rica,numa casa iluminada por lustres assim.

— Agora já faz anos, desde que eu comprei este apartamento.Eu via uma casa, a Kandiêro, ainda existe, é mais lá para cima.Eu via essas coisas assim, ó... (mostra um aparador em estilocolonial, colocado no corredor) então eu era apaixonada, porqueeu trabalhava em casa de rico, eu gostava dessas coisas. E assim,ó, (mostra um abajur) esses móveis assim, ó (mostra os móveisdo quarto, em madeira pesada e escura, estilo colonial) pode vermeus porta-retratos, tudo assim, ó, agora a casa tá meio bagunçadaporque eu não tenho tempo, mas eu sempre comprava essas coisas,eu comecei a trabalhar e sempre comprava.

Chega o dia de Mariana não levar mais surras de Mascarenhas,quando sua filha Cíntia completa dez anos. A mais velha está comtreze, a segunda decide, eu acho que agora eu posso trabalhar parate ajudar a pagar um aluguel e tu pode se separar dele. A filha maisvelha vai para uma casa de família cuidar de criança; Cíntia,olhinhos pretos de jabuticaba, também, e Mariana é cozinheira emrestaurantes, à noite. Continua com as faxinas durante o dia, vaimorar longe do marido, levando os três filhos menores. A maisvelha trabalha o dia inteiro, não prossegue nos estudos, já tinhaparado na terceira série primária.

— Mas eu não queria ser empregada doméstica. Eu tinha naminha cabeça que eu não queria ser empregada doméstica. Fui parapoder ajudar minha mãe, para a gente poder morar sozinha, paraele não bater mais nela.

Está com dez anos, vai de vez trabalhar em casa de família,cuida de criança na casa de uma professora, pede para a patroadeixá-la estudar à tarde. Consegue estudar até dezoito anos, ajudaa mãe a sustentar a casa, os irmãos também estudam.

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— A gente não deixava eles ficarem sem estudar, eu principal-mente, que a minha irmã não tinha muito, assim... a minha irmãmais velha, ela não tinha ambição... porque tu tem que ter ambiçãona vida, senão tu não vais subir nunca, senão tu vais morar lá numavila e lá tu vais ficar.

Quando termina o ginásio, pega um ônibus para o centro dacidade, sozinha, mesmo sabendo que nessa época mulher não andasozinha por aí, mas ela não dá bola para isso e vai procurar umemprego. Consegue logo de início.

— Consegui ser vendedora.

Nas imediações do Mercado Público de Porto Alegre, em meioaos transeuntes e às barracas de camelôs, um cara agachado miraentre as grades que cobrem um bueiro e cospe. Está por tudo ocheiro de fumaça, peixes são assados sobre brasas, espetados emtaquaras. Ouvem-se perfeitamente os passos dos pedestres, somde fundo para os gritos anunciando, “corte o cabelo comprofissional, só cinco reais”. Quem grita é um senhor alto, de portegrandioso, usando um avental com letreiros propagandeando ocabeleireiro.

Na Rua da Praia, as pessoas caminham ora sobre osparalelepípedos, ora sobre a calçada. As mãos firmes apertambolsas de longas alças cruzadas sobre o tronco do corpo. É vésperade Páscoa, abril de 2002, alguns carregam pacotes. “Comproouro”, diz o letreiro no avental de um rapaz que caminha devagar,devagar, cinco passos para a esquerda, oito para a direita, uma mãono queixo, coça o cavanhaque, o outro braço cruzado por trás dascostas, nove passos para a esquerda. “Compro ouro, galeriaMalcom, sala 202”, anuncia outro avental, por trás do qual ohomem que o veste cruza os braços, a temperatura caiu um poucohoje; andava em 37°C, amanheceu 20°C, é o que registra otermômetro da rua. Mãe com filha, a pequena incitando-a a darmais uma olhadinha nesta vitrine. Chuviscos caem, um senhor abreo guarda-chuva preto, as mulheres sacam sombrinhas de dentrodas bolsas, mas são poucas, o chuvisco engrossa, logo se ouve:“Automático a cinco, guarda-chuva automático a cinco, a cinco o

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automático”. Essa voz tem logo outra com que competir,“automático, automático a cinco”. As mulheres continuampassando, olhar meio para a calçada irregular, cuidado para nãotropeçar, meio para as vitrines, meio para o lado, ver quem andatambém por ali, sempre a bolsa junto ao corpo, uma pasta ou folhassoltas na outra mão. Há quem caminhe devagar, talvez tenha tiradoa tarde para compras, já com uma sacola plástica da C&A na mão,olhando com calma as vitrines. Jovens mulheres com andarapressado, olhar duro, em frente, em frente, senhoras de cabelosgrisalhos encobertos por tinturas coloridas, olhar talvez cansado,mas com luz, terão menos esperanças e mais serenidade do queas jovens? Homens de tênis e bermudas, outro caminhando lento,passos pesados, olhos cravados no chão. O chuvisco pára, o carado automático a cinco já não fala mais. Um táxi-lotação passadevagar, abrindo caminho em meio aos pedestres. Toc, toc, alguémde saltos altos tem esse andar firme, ainda produz esse som, masa maioria dos passantes usa chinelos, tênis, mocassins, sandáliasde sola rasa, que não fazem toc, toc.

O que os camelôs da Vigário José Inácio têm para vender?Relógios, capas para telefones celulares, camisetas, CDs, leve trêspague dez reais. Algumas mulheres passam olhando as coisas, masseguem sem comprar. Aqui estão a Emília e o Visconde deSabugosa, bonecos de pano colorido, “barato, Emília, barato”. Umtáxi-lotação desce a rua, ocupando exatamente toda a faixa deasfalto que sobra depois das instalações dos camelôs.

Na primeira quadra abaixo da Salgado Filho, ainda na VigárioJosé Inácio, um camelô come um pastel; chega um cliente, escolhebananas, o cara do pastel procura o troco no bolso da calça comuma mão só, a outra, firme no lanche. O cliente se vai, o camelôarruma algumas frutas com a mão livre, “oito, oito pêras é dois”.Carros passam devagar, alguns procuram lugar para estacionar.Uma moça com roupas de seda chega ao parquímetro, aperta osbotões, unhas compridas, pintadas, pega o tíquete e pergunta aorapaz que se aproxima: “Tem horas?”, e ele, “Três e sete”, ela,“obrigada”. Sai sem se dar conta de que o tíquete recém-adquiridodeve estar registrando a hora exata, acabou de sair da máquina.Mas daí ela não poderia ter falado com o rapaz.

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A calçada está gasta, um pouco suja, tocos de cigarro. Um casalde meia-idade também vende coisas aqui. Os dois mostruáriosestão dispostos lado a lado, não sendo mais nada do que umtabuleiro de compensado de madeira coberto por um panovermelho, sobre os quais estão expostas as miudezas para vender,apoiado sobre dois cavaletes dobráveis. Os camelôs atendem ocliente com os olhos postos sempre mais além. Vigiam o horizonte,procurando as viaturas da Smic (Secretaria Municipal daProdução, Indústria e Comércio) que podem se aproximar. Comoagora. O camelô grita para a colega, “de novo”, rapidamenteambos agarram os seus tabuleiros e os colocam na calçada paranão chamar a atenção dos fiscais que acabam de passar na ruaparalela. Montoeira de gente que circula por aqui ajuda a tapar abanca, por isso é suficiente colocar o tabuleiro no chão, os fiscaisolham de longe e não vêem nada.

Perto da banca de uma outra camelô, junto ao meio-fio, hácascas de banana frescas, um papel pardo amarrotado. A moça temum walkman ligado aos ouvidos por fones, o que será que elaouve? Ela organiza umas moedinhas, deve ser o troco para os lápis,calculadoras, material escolar que vende.

Cíntia, não. Ela vende brinquedos, roupinhas de bebêtricotadas, enfeites para o cabelo. Costuma expor suas coisas naEsquina Democrática, à noite e nos fins-de-semana, como hoje,domingo, 21 de abril de 2002. Antes, trabalhava durante os diasde semana num espaço próximo ao Largo Glênio Peres, noMercado Público, mas só até os fiscais da Smic falarem que erapara ela sair. Daí, ela saiu mesmo, não quis saber de se complicar.Começou a trabalhar como camelô há nove anos, quando foidemitida e não arranjou outro emprego.

— Eu mando currículo, eles olham a idade e já tiram de lado.— Mas como é que tu sabes que eles olham a idade?— Eu tenho uma amiga minha que foi gerente junto comigo

na Ughini, aí eu mandei para a loja dela, ela tem 38 anos, econseguiu. A mesma função que ela exerceu na Ughini, eutambém. Estavam precisando de gerente, aí eu mandei o meucurrículo, tive entrevista com a dona da loja, mas aí o dono, o

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esposo dela, no caso, não aceitou. Ele queria até 35 anos, nomáximo 38 anos. Eu fiz 50 anos agora, em janeiro. Então, é difícil.Na aparência, tu pode ver que eu não aparento 50 anos. E no meutrabalho, como eu digo, condições eu tenho. Eu, se uma pessoame dá uma loja, uma loja vazia, e me diz, tu me monta uma loja,eu sei fazer tudo, porque eu comecei com 18 anos trabalhando noempacotamento, eu cheguei a cargo de gerência, quer dizer queeu tenho valor, eu sei trabalhar. Passei por todos os setores da lojaem que trabalhei. Só fui mandada embora da Ughini porque elesestavam com dificuldades financeiras, tiveram que reduzir oquadro. Tiraram todos os gerentes, e os familiares dos donospassaram a ser gerentes. Tive que vir para o comércio informal,como eles chamam. Fiquei dois anos procurando emprego.Trabalhei numa loja, de vendedora, porque não conseguia paragerência, meu salário seria alto, e daí... também tive esse problema,porque eu fui gerente, então certas lojas não me botaram, na época,porque eu tinha sido gerente, aí achavam que eu não ia me adaptara ser vendedora.

— Quem te deu a idéia de passar para o comércio informal?— Foi meu cunhado, que era dono dessa banca (aponta para

uma banca de revistas e jornais, fechada nesta manhã dedomingo), ele me disse, não, quem sabe tu bota umas coisas paravender aí, que todo mundo vende, aí foi que eu comecei, e nãosaí mais, porque tu vai ganhando, tu ganha até bem mais do quetrabalhar de vendedora numa loja, aí fui ficando, ficando...

Há nove anos, Cíntia estendeu pela primeira vez umpedaço de lona sobre o chão da Rua da Praia, na esquina com aBorges de Medeiros, à esquerda de quem sobe para a SalgadoFilho. “A instalação num território equivale à fundação de ummundo”, escreveu Eliade (1999, p.46). Quando Cíntia precisourepetir o gesto dos deuses, fundando um novo mundo, pois o antigojá estava desgastado e não funcionava mais, seu filho, Oséias,estava com catorze anos. A filha, Liane, aos dezoito, terminava osegundo grau. O marido, então com 44 anos, estava desempregado.

— Vocês devem ter ficado apreensivos.— Sim, porque antes ele tinha emprego bom. Ele também teve

problema da idade, só que ele conseguiu, através de amigos. Ele

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trabalha na indústria, construção civil. Também teve dificuldadepor causa da idade. Só conseguiu porque era amigo, já, era patrãoantigo que ele retornou, já conhecia.

Cíntia organiza suas mercadorias sobre a lona estendida nochão, num ritual que imita o gesto primordial, aquele de há noveanos, quando fez isso pela primeira vez. São calças de tricô,casaquinhos, luvas e sapatinhos e gorros para crianças. Mochilascom estampas do Cebolinha, cachecóis. Hoje é o primeiro dia defrio do ano, 12°C, e há cerca de duas semanas Cíntia não podemais expor suas coisas no espaço do Mercado Público. A Smicestá tentando tirar os camelôs das ruas; agora, Cíntia só tem asnoites e os fins-de-semana para trabalhar.

— Durante o tempo que ficaste trabalhando lá no MercadoPúblico, e também aqui, tu tiveste problema com a prefeitura?

— Sim, a gente tem sempre problema, a gente trabalha assim,ó, se eles deixarem, a gente coloca, às vezes eles deixam por umtempo, mas aí começa a pressão de lojista, aí acham que a gente estáatrapalhando, aí eles vêm e tiram, como eles estão tirando, se tupassares agora, podes ver que não tem mais camelô na rua, a nãoser aqueles cadastrados, lá embaixo, que aí eles têm aquelas bancasgrandes. Eles têm uma licença que foi dada muitos anos atrás, agoraeles não dão licença, acho que há mais de vinte anos que eles nãodão licença. Por isso que a gente não consegue. O único lugar queeu trabalho descansada é aqui, de noite, depois do horário permitidopor eles, que é a partir das seis e meia, eu já posso colocar aqui,sábado a partir da uma, e domingo e feriado o dia inteiro.

— Nunca aconteceu de tu chegares aqui e outro camelô estarocupando o espaço?

— Não, porque o lugar é meu, já estou aqui há quase dez anos.Agora, ela (aponta com o queixo uma camelô do outro lado darua) se eu chego nela, ela quer briga, sabe, tem esse tipo de pessoaque quer brigar, daí sai aquela brigaçada, aquela coisa. Ela é umapessoa sem estudo, humilde. Está ali também, dependendo, paracomer, para pagar a luz e a comida, porque ela mora numa vilainvadida, aqueles terrenos, área verde que eles invadem, fazemuma casinha. Tem este tipo de pessoa, também. Tem gente que tem

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faculdade e que está aqui, também. Ali, ó, aquela banquinha ali,ó, com aquelas roupas ali, a filha daquele casal de velhos, eles têmuma filha que se formou em engenharia. A filha costura, faz asroupas para eles venderem. Só que eu não sei se a filha já arrumouum emprego. Ela se formou em engenharia, que eles pagaram dali,da rua. São tudo assim. Depende da pessoa, lá, que... como eu tedigo, tem uns que seguem um caminho certo, tem outros que não.Porque aqui tu convive no meio de... de... aqui tu convive tudo,tu vê tudo. Tu vê circulação de drogas, de roubo, tu vê tudo. Cabetu ter a tua cabeça para não cair.

Dirige-se a uma mulher que olha as mercadorias:— Pronto, moça?A mulher se afasta sem falar nada.— Alguma vez já tiveste que sair correndo por causa dos fiscais?— Não, porque primeiro eu converso com eles, eu nunca

peguei assim, enfrentar eles, se eles disserem, tu não pode trabalharaí, eu não trabalho. Porque eles são autoridade, no caso. Nãodesafio eles. Aquelas brigas que vocês vêem na televisão, que dáaqueles confrontos da Smic com o pessoal que trabalha aqui, éporque o pessoal querem enfrentar, não querem aceitar, mas eu jáprocuro trabalhar assim... se der para trabalhar de noite, eutrabalho, porque antes eu tinha ponto fixo lá no viaduto, eramsessenta famílias que trabalhavam no viaduto, ponto fixo, trabalheiem torno de sete anos ali, aí eles resolveram, esse ano eles tiraram.Aí foi que a gente começou a trabalhar aqui e ali, um dia trabalhavana Sete (rua Sete de Setembro), outro dia, trabalhei ali embaixo,onde tu me encontrou, essa semana trabalhei lá no finalzinho daAndradas, então, a gente tá todo mundo assim. Quer dizer que láforam sessenta famílias que ficaram sem lugar para trabalhar, eralugar fixo, não atrapalhava nada, mas eles acham que é patrimôniohistórico, que aí não pode ter camelô lá embaixo. Na verdade, elesquerem terminar com esse comércio informal nas ruas, elesquerem terminar.

— E tu achas que eles vão conseguir terminar?— Não, eu acho que eles não vão conseguir porque a maioria,

aqui, é desempregada, é gente que não consegue emprego mesmo.

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Hoje em dia, para tu arrumar emprego, tem que ter informática,uma especialização em alguma coisa. Tu só com segundo grau nãoconsegue, é dificílimo.

Dá um grande trabalho organizar as mercadorias para a expor,leva um tempão, mesmo. Nos fins-de-semana, Oséias, seu filhomais novo, ajuda-a. Ainda não começaram as aulas na UFRGS,2

ele passou no vestibular de geografia, mas a greve das universi-dades federais, em 2001, atrasou em um semestre o início do anoletivo em 2002.

Agora, Cíntia distribui as luvas de adulto, maiores, de napapreta, para motoristas. Dois ursinhos de pelúcia deitados de barrigapara cima, próximos a eles, Cíntia coloca os enfeites de cabeçapara bebês, fitinhas, presilhas de cabelo com pompons, coelhinhos.Ela gasta cerca de duas horas para montar tudo.

Uma senhora pergunta sobre o gorrinho amarelo, com estampada Minnie. Sua filha pega o ursinho, diz que quer. Beija-o nofocinho, pede ao irmão que faça o mesmo. O garotinho pergunta àmãe as horas. A menina está em dúvida, qual é o mais bonito, o begeou o marrom? Junta as cabeças deles, fazendo de conta que sebeijam. Acaba devolvendo os dois a Cíntia, não vão levar nada, hoje.

A música dos CDs de um outro camelô e o barulho dos táxis-lotações chegando, saindo do ponto ali atrás quase impedem aconversa com Cíntia. Um passeio ciclístico sobe a Borges deMedeiros. O pessoal usa camiseta com propaganda da BrasilTelecom. Há bicicletas com três lugares, há quem empurre suabicicleta, lá vem uma ciclista vestida de bruxa, senhores grisalhos,bonecos monstruosos sentados no banquinho, enquanto os seusdonos empurram a bicicleta. Uma criatura vestida toda de roxo,peruca, óculos, preocupada em acenar para os que assistem, quasecai. O Sabugosa e a Emília vêm numa bicicleta de dois lugares,crianças ocupam um banquinho suplementar improvisado na

2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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bicicleta dos seus pais, e uma das bicicletas é modelo antigo, rodagrande na frente e pequena atrás.

Uma moça chega à banca de Cíntia e experimenta uma tiara,pede um espelho para se olhar. Cíntia lhe alcança um estojo demaquiagem com espelho embutido. A moça acaba escolhendotambém uns prendedores de cabelo. Ao receber o troco, perguntase alguém ali troca dólar. Não, ninguém. Chega outra cliente.

— Um real, moça?— É.— E tem o quadradinho, é melhor. Ele não perde a tampa, ó.— E aquele que tem a sacolinha?— Dois reais. E tem aquele, de três.— Não, eu quero de um real, que aí eu posso levar mais coisa.

E aquele, da Barbie?A filha da cliente retruca:— É da Sandy, não da Barbie.— Ah, mesma coisa, né?A senhora com a filha olha os chaveirinhos que trazem junto uma

niqueleira, discutem o preço, as vantagens de cada modelo. Elasainda não decidiram, mas a menina já disse que quer o chaveirinhoda Sandy, não da Barbie. A voz de Cíntia conversando com a clientese some no meio do ruído dos motores dos táxis-lotações que têmponto final aqui na esquina da Rua da Praia com a Borges deMedeiros. A cliente acaba comprando duas niqueleiras, perfazendodois reais. Cíntia procura uma sacola plástica dentro de uma mochilapara embalar a compra. Outro artigo ainda chama a atenção dacliente e de sua filha:

— Quanto está esta luvinha?— A luvinha está dois reais.— Para que idade é?Cíntia calça a luva, que parecia ser de bebê, mas tem tanta

elasticidade que cabe na mão de um adulto.— Quanto?— Dois reais.Mas, em seguida, Cíntia baixa o preço. E a cliente:— Ah, começamos a nos entender.

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Mãe e filha ainda estão em dúvida, levam a preta ou a rosa?Optam pela rosa.

— Quanto é que deu hoje?A filha ri:— Hoje?Cíntia faz as contas e conclui:— Cinco reais. Para a senhora ficar cliente.— Sabendo agradar, a gente sempre volta.Um grupo de moças usando o uniforme dos funcionários da

limpeza urbana passa empurrando lixeiras. Uma delas, grávida, olhalongamente, seriamente, as roupinhas de bebê que Cíntia expõe. Vaiembora sem parar. Passados alguns minutos, a funcionária dalimpeza está de volta com as companheiras. Fica olhando ossapatinhos de bebê, mas não pára de caminhar, vai embora.

— Como é que tu escolhes o tipo de mercadoria para expor?— Eu sempre procuro fazer pesquisa, o que está na moda, o

que estásendo vendido. Vamos supor que tu queres botar uma loja.Tu queres descobrir a mercadoria que vende rápido, para tu pegardinheiro rápido, tu vai nos camelôs. O que os camelôs estãovendendo, é aquilo que vende melhor. Tu tem dinheiro, queraplicar numa lojinha... vai neles e olha o que eles vendem na rua,é o que tá girando no momento. E as épocas, também, tu tem quepegar, é o dia das mães, eu vou colocar mercadoria para as mães,dia das crianças... Páscoa é chocolate. Frio tu já coloca roupa defrio, verão tu coloca verão. E sempre as modinhas, acompanha asmodinhas que daí é uma coisa que gira rápido. E sempre procurarbaixar o preço, que aí é capital de giro. Porque aqui na rua quemcompra é o povão, que não tem acesso às lojas, crédito, não temrenda mensal fixa, trabalha de diarista, não tem cartão, cheque,nada, é ele que é o cliente. Porque quem tem vai no shopping, olojista pensa que nós tiramos o cliente dele, mas não, nós pegamosquem não entra numa loja. Eles procuram... pode ver essa senhora,ela pechinchou para comprar aqui. Eu ganho centavos, mas vendopara ela. Já o lojista não pode, tem o sistema burocrático. Porexemplo, o gerente tem autonomia, pode dar um desconto, masele tem um percentual certo que pode dar. Eu sei porque quando

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trabalhei de gerente, sabia até onde eu podia chegar para dar paraum cliente que comprasse à vista, no caso, o cliente ia na loja,comprava um valor X alto, queria um desconto porque ia pagar àvista, mas eu tinha o percentual que podia dar, não podia passardaquilo ali. Aqui, se eu ganhar cinqüenta centavos, é vantagem,porque amanhã eu vou no atacado e compro de novo. Agora jáestou colocando roupinhas de inverno, tudo acessível de vender,nada muito caro.

— Quanto é que está as luvinhas?— As luvinhas de bebê, dois; as maiorzinhas, três; estas aqui,

de dedinho, também três.— Será que dá para o tamanho dele? — a cliente indica o bebê

que carrega no colo.— A touquinha? Dá. Tenho azul, a vermelhinha, que dá para

ele também.— Esta aí, a senhora só tem amarela?— Eu ainda não recebi, esta semana que eu recebo as cores.

(Para outra cliente, que passa olhando:) Pronto, senhora. Podeolhar à vontade.

— Eu tenho de saber ainda o que é que é o bisneto. Quandoeu souber, venho buscar.

Chega um casal com um bebê no colo e um garotinho pelamão, que logo se agacha, olhando os artigos, enquanto seus paisexperimentam no nenê luvinhas e gorrinhos. O marido pareceguiar a compra. Se agacha ao lado do filho e o repreende, que tirea mão de cima do sapatinho. A mãe: “Não mexe, não mexe”. Ogaroto levanta e vai para outra ponta da banca. Cíntia estáajoelhada sobre a lona, alcançando os objetos para o homem. “Saide cima, Alan”, o pai repreende quando o garotinho se desequilibrae apóia as mãos nos tricôs para não cair. “Bota isso aí no bolso,senão vai perder”, diz a mãe a Alan. Depois, passa a mão nacabecinha dele e lhe toma a mão. Duas senhoras velhinhas previnema mãe de que a chupeta do nenê está a ponto de cair no chão.

— Alguma mercadoria é feita por ti mesma; e o resto, onde éque consegues? — pergunto a Cíntia.

— A gente compra nos atacados — responde ela — ali naVoluntários da Pátria. Muitos viajam para o Paraguai; eu não,

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tenho medo dos assaltos, essas coisas, compro dos atacadistas. Voutoda semana, a gente compra aos poucos. Faço um cheque pré-datado. Consignação, não. Alguns, sim. Os que vendem duranteo dia, com aquelas mesinhas pequenininhas, que vivem correndoda Smic, fugindo, aqueles conseguem consignação com osatacadistas. Eles trabalham para outras pessoas, que têm dinheiro.Eu, no caso, compro a mercadoria. Guardo num carrinho, guardonum depósito. Pago sessenta reais por mês para guardar.

— O depósito é aqui perto?— Sim. Aí, depois eu tenho que pegar um menino, que é um

carregador, quando meu filho não pode vir, que agora ele começaa faculdade.

Alguém pergunta por preço, Cíntia responde:— A luvinha sem dedo? Três reais.E, voltando-se para mim:— Normalmente, eu pago quatro reais por dia de carregador.

Tu vês, dá 120 reais por mês. Mais sessenta do aluguel do depósito,já vão 180 reais, mais a minha passagem, que é dois por dia. Maisum lanchezinho. Mas a gente tem um lucro. Eu vou comprandocom cheque, empurrando a dívida pra frente.

— E o lanchezinho, tu fazes aqui perto?— Sim, tem o pessoal que está sobrevivendo também,

vendendo o lanche. É gente que sobrevive de nós. O prefeito quertirar todo mundo daqui, mas não pensou que são mais de milfamílias dependendo daqui da rua. Tem o depósito onde guardo ocarrinho, que depende de mim, estou colaborando com a rendamensal dele; tem o carregador que sobrevive, esses meninos quenão têm emprego, não têm estudo, eles carregam o carrinho paraa gente. Quer dizer que eles já comem daqui. Muitos deles já têmaté filho, aquela coisa toda. Aí, tem esse pessoal que vem vendero lanche para nós, aqui, que estão ganhando. Como é que eu vouentrar num bar todo o dia e gastar cinco reais para comer? Então,eles vendem a um, um e cinqüenta, tu gasta com eles dois reais,tu tá beneficiando eles também, tão vivendo daqui. Como eu digo,os governantes desse país primeiro têm de ver o problema de cadaum. Eu paguei os cursinhos para meu filho passar na faculdade,

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passou no concurso do Banrisul, que eu te falei, passou noconcurso para guarda municipal. Foi dinheiro daqui. Ano passadoeu fiquei o ano inteiro pagando cursinho para ele. O preparatóriopara o Banrisul e o preparatório para guarda municipal, que elepassou nos dois. Mais a UFRGS, que eu paguei dois anos deUniversitário.3 Ele passou na PUC, passou na UFRGS. Mais o meuneto que eu ajudo, que a minha filha é separada, ela tem um filho,eu ajudo ela também.

— Quantos anos tem o neto?— Nove anos. Ele está fazendo um cursinho para entrar no

Colégio Militar, eu estou pagando, também. São 180 reais. Estouaqui para facilitar a vida para meus filhos. Eu não adiantaria fazeruma faculdade agora, então eu vou investir neles. O meu neto quesempre diz assim, vó, tu investe em mim, ele brinca comigo, diz,vó, tu tem que investir em mim, porque eu vou crescer, voutrabalhar, vou ganhar bem e vou poder te dar.... como é que elediz... vou te dar comida, pagar os teus remedinhos quando tu ficarbem velhinha, é isso que ele fala. (Os olhos pretos de Cíntiabrilham mais com as lágrimas que afloram.) Então ele diz, tuinveste em mim, vó. Tu vê a inteligência dele. Claro, a gentesempre lutou para dar uma educação boa, os meus filhos todos osdois. Meu filho não sai, nunca saiu. Se ele não está aqui, está emcasa, estudando. Não sabe o que é sair na noite. É o tipo deeducação. Aqui também tu encontra muita coisa errada, genteviciada. Mas eu digo para ele, tu faz que não vê nada, senão a gentenão consegue trabalhar. E procurar não se envolver, porque eutenho cabeça feita, mas meu filho é novinho, estou sempreorientando ele.

— A Liane (a filha mais velha) mora contigo?— A Liane se separou do marido e, atualmente, mora comigo.

Eu sou assim, meus filhos, não deu certo, volta para casa, ficacomigo, eu prefiro. Também não tem necessidade de ela morarsozinha, pagar um aluguel, para quê, né?

3 Nome de um cursinho pré-vestibular de Porto Alegre.

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Chega uma senhora com duas crianças, pergunta quanto estáa mochila de ursinho, doze reais. Outra senhora pergunta sobre abolsinha de crochê preta.

— Como foi que conheceste o teu marido? Aliás, eu não sei onome dele, ainda.

— Marcelo, Marcelo Mascarenhas.— Como vocês se conheceram?— A gente era vizinha, morava do lado. Conheci ele com treze

anos, sou casada há trinta anos.— Tu nasceste aqui, em Porto Alegre, Cíntia?— Nasci aqui.— Os teus pais são vivos?— Não.— E quantos irmãos tu tens?— Eu tenho... eu mais quatro. Somos cinco. Eu sou a segunda

mais velha. Tenho a minha mais velha, de 53, depois eu, que tenhocinqüenta... tudo três anos de diferença. A mais nova tem quarenta.Tenho dois irmãos homens. A irmã mais velha não trabalha fora.Ela é só do lar. A mais nova tem uma loja de móveis. E o meuirmão é comerciário, trabalha em loja, só que de moda masculina,desde novinho, também, desde os dezoito anos, e ele está aindana loja, porque foi ficando, né. Atualmente, ele trabalha na Aduana,na Rua da Praia, lá em cima, na esquina com a Dr. Flores. É ummoreno, grisalho, até bem parecido comigo, se tu entrar lá já vaiver que é meu irmão.

— Os teus pais também trabalhavam com o comércio?— Não. A minha mãe, ela trabalhava em restaurante, ela era

cozinheira, e o meu pai, ele era pedreiro, na época ele trabalhavanas pedreiras.

— Em que parte de Porto Alegre tu cresceste?— Na Zona Sul, Ipanema. Eu estudei lá, Ipanema, Tristeza.

Aí, com dezoito anos eu vim pro centro sozinha, porque na minhaépoca, a gente não saía sozinha, assim, na rua. Eu enfrentei, vimsozinha para o centro, para arrumar um emprego e consegui, semnunca ter trabalhado. Fui na Galeria do Rosário, e ali tinha cursosque a gente podia fazer para trabalhar numa loja. Daí eu olhei, e

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tinha uns cursinhos assim... era datilografia, auxiliar de escritório,curso de vendas. Eu peguei e fiz esses cursos, auxiliar de escritório,fiz curso de vendas e datilografia, que era para aprender a bater àmáquina, essas coisas. Eu fiz esses três cursinhos.

— Eram gratuitos?— Não, eles pagavam, mas era pouquinho. Na época, emprego

tinha bastante. Pegava o jornal, metade do jornal era emprego,porque estava tudo começando, o comércio. Aí, eu fui nas lojasBier, que ficavam aqui na rua Uruguai. Aí, ali, eu consegui, sópelos cursos que eu fiz, não por experiência, eu tive a sorte deconseguir. Era uma loja de moda masculina, e eu consegui comoempacotadora, para época de Natal. Aí, eu trabalhei aquele mêsde Natal, comecei cinco de novembro, me lembro até hoje. Quandoterminou o mês de Natal, aí, o gerente chegou para mim e disseolha, a gente te contratou só para trabalhar na época de Natal, mascomo a gente viu que tu tem interesse, a gente gostaria de ficarcontigo. Só que nós não temos lugar no empacotamento, porquejá tinham as antigas. Aí, ele disse, mas tu terias que aprender atrabalhar... que nós temos uma vaga no crediário. Tu tem umasemana para aprender. Aí, eu fui para o crediário para aprender,e, aí, eu aprendi em uma semana. Vim para a filial deles que tinhaaqui na Rua da Praia, tinha uma outra filial Bier aqui na MarechalFloriano com a Andradas,4 na esquina, eram as lojas Biermasculina. Trabalhei no crediário, ali, um ano.

Depois, casei, com dezenove anos. E naquela época eles nãoaceitavam casada, tu casava, eles mandavam embora. Tinha tudoisso. Agora é a idade, antigamente era casada. Fiquei em casa, trêsanos. Não tive filho, fiquei casada, ia arrumar emprego, nãoarrumava porque era recém-casada. Comecei a fazer unscursinhos, assim, esses aqui de crochê, comecei a freqüentar clubede mães. Sempre procurei alguma coisa para ganhar dinheiro. Nãofiquei totalmente parada, ganhava dinheiro em casa, vendia nasfeirinhas. Quer dizer que, quando eu vim para cá, já tinha

4 A rua dos Andradas, em Porto Alegre, também é conhecida como Rua da Praia.

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experiência de feira, também. Aí, eu tive a minha filha, depois detrês anos. Depois de mais três anos e meio, eu tive ele (indicaOséias, que está a poucos metros, cuidando das mercadoriasexpostas).

Durante algum tempo, se dedicou totalmente aos dois filhospequenos. Começou a ficar nervosa. Liane estava com sete anose Oséias, com quatro. Os afazeres domésticos estressavam Cíntia,não se sentia talhada para passar assim o resto da vida, cuidandode criança, cuidando de casa.

— Peguei e digo, vou ter que arrumar um emprego numa loja,peguei e fui, morava na zona Sul, consegui nas Casas Carvalho,de vendedora. Trabalhei três anos, nessa loja, de vendedora. Lá,eu aprendi, sempre estava querendo aprender tudo, era modamasculina que eu vendia, estava sempre olhando eles trabalharemno outro setor.

Então, o marido de Cíntia ficou desempregado.

No dia 27 de maio de 2002, três horas da tarde de umasegunda-feira nem fria nem quente, Cíntia está com a televisãoligada na sala do seu apartamento, lá na Protásio Alves. Quasenunca tem tempo para ver os programas de tevê, sempre está narua, de vez em quando se dá uma folga para arrumar a casa. Háperfume de incenso, Cíntia colocou um para queimar agorinhamesmo. Sobre uma mesinha, na sala, O livro da sorte: pequenomanual adivinhatório para responder às questões de amor,finanças. Outro: Minutos de sabedoria. E: Os salmos da Bíblia.Ainda: O evangelho segundo o espiritismo, de Allan Kardec, e Oseu futuro astrológico, além da Bíblia Sagrada. Final dos tempos,retorno à religião — re-ligar -, busca de sentido. O apartamentotem dois quartos, Cíntia vai me mostrando. O quarto da filha e doneto está equipado com um aparelho de tevê só para eles. Ela pegaumas fotografias emolduradas do tempo em que os filhos erampequenos, passa a mão para retirar um pouco do pó acumulado.É uma poeira grossa, cinza-escura, de muito tempo.

Atravessamos de novo a sala, passamos pela cozinha elavanderia para vermos o quarto que está sendo montado para o

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filho, onde seria a dependência de empregada. Voltamos à sala,sentamo-nos nas poltronas em tom azul, trocadas há pouco tempo,atestando que as conquistas de Cíntia não pararam no passado, oqual ela, generosamente, compartilha comigo.

Manhã de domingo, dia de folga nas Casas Carvalho. Cíntiaaproveita para arrumar um pouco a casa, olhar os cadernos dosfilhos e ler o jornal. Procura um emprego para o marido, quemsabe hoje tem sorte? E esse anúncio aqui, está à venda umrestaurante lá na Osvaldo Aranha... talvez não seja impossível.Convida Marcelo, vamos lá ver esse restaurante. Vão.

Trata-se de uma casa que vende pizzas e sucos naturais. O donoaceita imediatamente a troca pelo carro da família, um Fuscanovinho, cujo consórcio, iniciado há cinco anos, acabaram depagar. Cíntia se demite das Casas Carvalho, chama um irmão queestá desempregado e logo todos trabalham na lancheria. Moramna casa que construíram na zona Sul, perto da residência da mãede Cíntia, e vão de ônibus todos os dias trabalhar no bairro BomFim, próximo à região central de Porto Alegre. Assim se passamuns dois anos. Mas quem diz que Cíntia está sossegada? Não está.De novo, aquela vida de doméstica, lavar louça, cozinhar. E,depois, ela não gosta do bairro, acha que há muitos maconheiros,gente que bebe, não é ambiente bom para os filhos. Colocam alancheria à venda, Marcelo recorre aos amigos e consegue umemprego na construção civil. A vontade de mudar persiste, agorase trata da residência, Cíntia ainda não mora no apartamento comque sonhou quando menina.

Um dia, ao pegar o ônibus e ir para o hospital da PUC parafazer um tratamento dentário, ela escolhe um banco ao lado dajanela, bem como fazia aos oito anos de idade, e fica olhando,olhando os prédios e calçadas. Ao iniciar o trajeto pela avenidaProtásio Alves, vê um edifício recém-construído exibindo umaplaca na fachada, apartamentos totalmente financiados pela CaixaFederal. Na volta, ela se encontra com o marido na lancheria esugere, vamos ver esse apartamento, que eu não estou mais comvontade de morar lá na nossa casa, na zona Sul, muito longe, e

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ele, mas é muito caro, dificílimo, não vamos conseguir comprar,e ela, vamos olhar, não custa. Chegam ao prédio no finzinho datarde, encontram o corretor de imóveis na porta, já ia embora.Olha, só tenho mais um apartamento, o 306, o resto está vendido.

Cíntia entra, olha, gosta, é esse que eu quero. Já havia vistooutros, inclusive a papelada para comprar um na rua VenâncioAires já estava pronta, mas não foi aceita, Marcelo trabalha naconstrução civil, que está em crise. Mas a Caixa Federal aceitana hora a mesma papelada, em quinze dias a família está morandono apartamento recém-adquirido.

— O meu sonho de criança. Eu tive um sonho, foi realizado.O meu sonho de criança. (Cíntia chora e repete:) Eu tive umsonho, e foi realizado. Aí eu comecei a montar o apartamento dojeito que eu queria, com os lustres que eu gostava, as coisas queeu via nas casas dos ricos. Eu disse para o meu marido, vouarrumar um emprego numa loja, aqui é um lugar bom, perto detudo. O meu sonho era estudar no Instituto de Educação, mas comoeu nunca pude, fui lá e batalhei uma vaga e consegui botar o meufilho. Eu não fui, mas ele foi.

Cíntia chora novamente. Faz-se silêncio por alguns momentos.Ela continua:

— Aí eu botei a minha filha no colégio Anne Frank, aqui dolado, no bairro Bom Fim. Eu me senti crescendo, aos poucos eufui... (Cíntia não consegue falar, sufocada pelas lágrimas)realizando meus sonhos desde criança. Peguei o jornal, fuiprocurar emprego. Entrei numa fila de duzentas pessoas, nas lojasRenner, lá no centro. Consegui, fiz os testes, passei e tudo, mechamaram, fui trabalhar lá. Fazia uns quatro meses que estavatrabalhando lá, aqui embaixo havia uma loja. Agora é de carros,mas antes era a Ughini. Como eu chegava de noite, não prestavaatenção a quem trabalhava aqui. Um dia, meu filho queria umtênis, eu entrei ali para comprar e quando eu olho...

O gerente da loja é o Mauro, com quem ela tinha trabalhado noseu primeiro emprego, aos dezoito anos. Ela era empacotadora, elevendedor.

— Tu moras aqui? — pergunta o Mauro.

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— Moro aqui em cima.— Tu não queres trabalhar aqui, porque eu te conheço, tu sempre

foste uma ótima funcionária, inclusive tu foste promovida, tu entrastecom dezoito anos sem saber nada, tu trabalhavas no empacotamentoe chegaste ao crediário. Sai do Renner, vem para cá, aqui tu estásperto, não vai gastar condução.

Cíntia foi ao escritório das lojas Ughini, no centro da cidade, fezos testes, passou, foi trabalhar na filial que ficava bem no térreo doedifício em que morava. Depois de uns dois anos, Mauro precisou irpara outra loja e tinha que promover uma pessoa para cargo desubgerente. Ligou para a matriz, olha, eu tenho aqui a Cíntia, quetem condições de ser subgerente, eu trabalho com ela desde os dezoitoanos dela, uma pessoa honesta, trabalhadora, tudo, aí Cíntia foipromovida para subgerente da loja, e lá permaneceu por oito anos.

Ela me mostra os demonstrativos do Fundo de Garantia porTempo de Serviço, para me comprovar todos os anos que trabalhounas famosas lojas Renner e Ughini.

— Aqui, ó, lojas Alfred, que era a primeira que eu trabalhei,antigamente era Bier, depois mudou de nome. Aqui, ó, data deadmissão: 23 de 11 de 1970. Aqui da Ughini, ó, data da admissão,16 de 01 de 1986. Do Plano Collor, da Ughini, eu tenho duas parcelasde R$ 1.205 para receber. Isso aqui prova que eu trabalhei, que eunão estou te mentindo.

Cíntia guarda os comprovantes.Em 1994, Fernando Collor de Mello presidente da República, a

Ughini começou a ter problemas. Dezesseis filiais, todas foramfechadas, restou só a matriz. Todos os gerentes foram demitidos,inclusive Cíntia, que arrumou emprego numa loja, de vendedora,mas não se adaptou ao sistema, pediu demissão e saiu, porqueganhava muito pouquinho, não dava. Foi aí que o cunhado deu aidéia e ela começou a vender suas coisinhas na Esquina Democrática.

— Trabalhando na rua, como vendedora ambulante, o que tuachas pior?

— Ali, é o nível de pessoas. Pessoas muito ignorantes, de nívelbaixo, não me sinto bem. Gostaria mesmo de estar dentro de umaloja. Tu vês, eu tenho apresentação, tenho roupa. Sei trabalhar. Nãosei por que que eu não consigo... por que é que eles querem gentenova para trabalhar? Ali (entre os camelôs), a maioria é gente

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ignorante, mesmo, que não estudou. Não digo todos, alguns têmfaculdade.

— Que tipo de coisa eles fazem que tu achas que é ignorância,falta de educação?

— Assim, eles brigam muito por lugar, não respeitam o espaçodo outro, não sabem dar uma ajuda. Se vem uma outra pessoa ali,moça, será que eu posso colocar aqui as minhas coisinhas paravender, eles não deixam, mas se eu tenho o direito do espaço ali,por que o outro também não tem? Eles são muito ignorantes. Euconvivo num meio que me deixa nervosa, vejo coisas quetraumatizam, cenas de uma mulher com cinco crianças passando natua frente, todo dia eles te pedem dinheiro. Aquela escadinha decriança, um pequeno carregando o outro no colo, aquilo traumatizaa gente, o jeito que está a vida hoje. Eu queria estar trabalhando numaloja, outro ambiente, eu não mereço isso aqui, eu não nasci para issoaqui, por que é que estou aqui? A parte melhor é que ali eu ganhomais. Numa loja, de vendedora, eu vou ganhar no máximo unstrezentos, quatrocentos reais. Ali, eu ganho mil.

Vamos para a cozinha, Cíntia quer fazer chá. Conta quepretende trocar fogão, geladeira, essas coisas, e reformar oapartamento. Depois, ela vai parar de trabalhar. Por enquanto, écorreria. Deixa as refeições prontas no freezer para os filhosesquentarem no microondas. Marcelo, se chega primeiro, tambémcozinha. Os filhos, não.

— A gente sempre vai facilitando a vida para eles. O que euposso deixar pronto, deixo, e vou comprando coisas que elesgostam de comer, pizza, sanduíche, coisa assim, vou deixando tudona geladeira.

— Como eles reagem, contigo fazendo todas essas coisas por eles?— Os meus filhos, eles são justos comigo, porque eles estão

fazendo o que eu pedi, que é estudar. Só que, claro, eles não têmaquela mesma força que eu tenho. Eu consigo trabalhar fora, echegar aqui, vir para casa, cuidar, eles não, já deixam mais atirado,eu tenho que chegar e ir limpando. Eu tomo com adoçante, e tu?

Pegamos as canecas de cerâmica cheias de chá bem quente evoltamos à sala.

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— Por que é assim, na tua opinião?— Acho que a juventude agora é que é assim. Eu fui de outra

criação. Me acho supermãe. O meu medo é quando eu morrer queeles não consigam... viver, não sei por que eu tenho esse medo.Acho que eles não vão ter a mesma coragem que eu tive, que meusirmãos tiveram, de sobreviver. Por isso eu digo para minha filha,não tenha mais filho, eu digo para o meu filho, tu te cuidas, tuarrumas as namoradinhas, mas usa camisinha. Eu tenho medo defilho, de ter filho e não conseguir cuidar. Que a gente vê natelevisão as pessoas sofrendo, pelo mundo que está hoje, adificuldade, a falta de emprego, pobreza, a criminalidade que estáaumentando, eu tenho medo de eles não saberem viver, olha só,que coisa, né? Fico protegendo eles, esqueço de mim. Eu digo,pô, eu poderia me arrumar, hoje, sair... eu vou te mostrar, aqui,meu guarda-roupa.

Cíntia me leva até o seu quarto pela terceira vez nesta tarde,agora para me descortinar seu guarda-roupa repleto.

— Quando eu trabalhava em loja, tinha que estar bem vestida,mas eu saí das lojas e continuo a comprar. Aqui, ó, até com etiqueta,eu nem usei. Eu tenho uma roupa, para onde me convidar, eu tenho.

É uma abundância só. Conjuntos de saias e calças e blusas,tudo combinando, vermelho com preto, preto e branco para usarcom saia branca, saia preta, dezenas de peças quase novas, muitasainda com a etiqueta da confecção.

— E eu não tenho onde ir. Isso eu tenho que mudar, arrumarumas amigas e sair.

Olha a quantidade de roupa. Olha, outro blazer vermelho. Elatem também vestidinhos mais jovens, para botar no domingo, masnunca sai aos domingos.

— As echarpes, assim, ó. Por isso que eu te digo, possotrabalhar numa loja que tenho roupa para isso. Olha aqui essa, essa,as minissaias, as saias de couro, tudo isso....

Blusas, essa para usar com aquela saia, tudo assim, combinando.Aqui, é tudo blusinha. Várias gavetas cheias de blusas bem dobradas,enfileiradas. Abre um segundo conjunto de portas do armário, deslizaa mão sobre os cabides, empurrando-os, fazendo-os se chocarem

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produzindo um barulhinho de madeira. Casacos e casacos, nada depassar frio no inverno, é uma satisfação que Cíntia dá à garotinhaenregelada de antigamente. Abre um armário embutido, por trás doguarda-roupa que estava a mostrar antes. Acende uma luz dentro delepara vermos os calçados que se guardam ali.

— Aqui, tudo é sapato. Aqui, mais para todo dia. Eu tenhomania de comprar. Aqui, é bota, aqui, é sapato. Tudo para combinarcom as roupas. Tudo assim eu compro, porque sempre trabalheicom moda, então eu entendo. Olha aqui, ó, tudo assim. O meumarido que diz, ai, para que tanta coisa? E, no fim, com a históriado desemprego, que a gente daí fica com 50 anos, daí não arrumamais emprego, acabei trabalhando lá na rua, vendendo, de camelô,e não posso mais usar minhas roupas, como é que eu vou mearrumar para ficar lá?

Cíntia superou a timidez da infância para realizar-se comopessoa. Era de se esconder nos cantos, das pessoas, quieta, muda.Na escola, tirava notas boas, por que eu vou estar me escondendo,não falar, não querer subir. Começou a se esforçar. Hoje, ela sevê no filho, que é tímido, ele tem vergonha de tudo, até de atendero telefone, isso aos 24 anos, ela diz a ele, tu tem que conversar, irà luta. Cíntia, ainda menina, achou que tinha de mudar. Isso foidifícil, quando foi procurar o primeiro emprego, ter que conversarcom o gerente, mas ela conseguiu. Só não deu para fazer afaculdade, e disso sente falta.

— Às vezes, eu penso, poderia ter estudado. Vejo que aspessoas trabalham e estudam, em algum momento da minha vidaeu fraquejei. Na minha infância, eu tive que trabalhar para ajudarminha mãe. Depois, eu casei com pobre, eu tinha minha casa econtinuava ajudando a mãe, tinha que dar tudo de mim para oemprego, tinha que me dedicar em casa. Aí, eu não tive força deestudar, um momento de fraqueza minha.

De pé, diante da porta, antes de nos despedirmos, Cíntia aindase pergunta:

— Nunca saio, nos domingos não vou ao shopping, nem à casade minha irmã, será que estou me punindo? Eu gostaria de fazeruma terapia.

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Novo tumulto envolve camelôs

Um pequeno tumulto foi verificado na manhã de ontem comos ambulantes irregulares e os agentes da Secretaria da Produção,Indústria e Comércio (Smic) e a Brigada Militar na rua MarechalFloriano com a Andradas. O conflito começou quando os agentesda Smic chegaram e pediram para os vendedores recolherem osseus produtos. Diante da resistência por parte dos camelôs, aBrigada Militar interveio. Houve enfrentamento, mas não houveferidos. Algumas lojas, apenas por prevenção, decidiram fecharas portas. Os envolvidos foram encaminhados para a 17ªDelegacia de Polícia.

Segundo a Smic, há 1,1 mil camelôs irregulares na área central,além dos 420 ambulantes cadastrados e dos 230 vendedores daFeira da Rua da Praia. Conforme um dos ambulantes, que não seidentificou, o tumulto começou quando um homem ameaçou-ossacando de uma arma, causando a revolta.5

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5 Novo tumulto envolve camelôs. Correio do Povo, 27/fev/2002. p. 21.

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Mapa sobre areias movediças

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Inicio este trabalho sem saber se vou conseguir demonstrá-loargumentativamente ou mostrá-lo poeticamente. Nesta tensãoentre demonstrar e mostrar já reside um dos desafios. Se vou falarda possibilidade e necessidade de o jornalismo superar a dicotomiareal/imaginário, como fazer para não restabelecer no meu própriotexto essa separação? O imaginário abarca o real, contendotambém elementos imateriais, como arquétipos, mitologias,simbolismos, enfim: além de ser constituído pelo capital pensadodo Homo sapiens, o imaginário guarda, também, o nosso capitalnão pensado (DURAND, 1997, p.18), que não se deixa capturarpela argumentação racional, sob pena de se destruir. O imaginárioé dinâmico. Não esqueço que descrevê-lo discursivamente é, decerta forma, imobilizá-lo, e pode racionalizá-lo. Para amenizarisso, opto pela mostração mais do que pela demonstração.

Conjecturo que a dicotomia real/imaginário seja o desaguamentodo iconoclasmo jornalístico: horror à imagem (apesar de sermos,aparentemente, uma civilização grande produtora de imagens), aocorpo, ao afeto, à proximidade. No fazer jornalístico, esse medo vemtravestido de amor à verdade, de fidelidade aos fatos, que pededistanciamento das emoções e do que nasce delas e com elas — asimagens.

Para verificar isso, procuro os contornos do imagináriosustentado por textos jornalísticos (jornal impresso, especifica-mente Zero Hora e Correio do Povo, de Porto Alegre — RS), afim de confrontá-lo com o imaginário no cotidiano que pautou ojornal, elegendo reportagens que se relacionam ao dia-a-dia dacidade. Vou ao encontro dos camelôs, tema que compareceu comfreqüência às páginas do jornalismo local, nos meses de fevereiroa abril de 2002, quando mergulhei na leitura dos jornais. Talfreqüência, aliada à sua presença marcante nas ruas da cidade,pontuando seu cotidiano, motivou a escolha. Além das matérias dos

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jornais, entrevisto dois repórteres, um da Zero Hora, outro doCorreio do Povo, a fim de procurar, nas suas falas, convergênciase/ou divergências do imaginário sustentado jornalisticamente. Oimaginário no cotidiano é traçado a partir da imersão no seuuniverso. À falta de recurso melhor para descrever esse verdadeirosair de mim que foi entrar no mundo deles, arrolo algunsprocedimentos: observação simples da atividade dos camelôs na Ruada Praia, no Centro de Porto Alegre, observação participante ehistória oral de Cíntia, resultando na sua história de vida, narradaanteriormente, e coleta de respostas escritas de alguns camelôs a umquestionário elaborado a partir da história de Cíntia. Tantoprocurando as linhas de força do imaginário circulante nas ruasquanto as do imaginário sustentado pelos jornais utilizo aclassificação do simbolismo trazida por Gilbert Durand em Asestruturas antropológicas do imaginário, cruzada com a propostade narrativas jornalísticas complexas de Cremilda Medina.

A principal suposição deste estudo é de que o jornalismo, aocontrário do que alardeia, não se escora no comumente chamadoreal, e sim no imaginário. Ora, uma hipótese como essa não podeser provada; no máximo, dá para ilustrá-la, porque o imaginárionão se deixa apreender apenas pela via intelectual. Daí a inspiraçãoformista de Michel Maffesoli contribuir decisivamente: oformismo valoriza o que se passa porque se passa (MAFFESOLI,1988, p.212), e seu objetivo é “estabelecer um quadro de análiseque tem por única função fazer sobressair a complexidade de umavivência existente além e aquém de toda apreensão intelectual”(MAFFESOLI, 1998, p.151).

Iniciei o estudo com a história de Cíntia, que, a essas alturas,você já conhece. Ela foi eleita aleatoriamente entre os camelôs doCentro de Porto Alegre. Observando-a, conversando com ela emsua casa, acompanhando-a durante algumas horas no seu trabalho,busquei elementos para recriar sua vida, numa narrativa que querdelinear o imaginário circulante localmente, atenta às recorrências,à ambiência, aos diálogos rituais, aos gestos. Ou seja, no momentoda imersão na realidade, já estou totalmente envolvida com o queobservo. Como forma de confirmação do que me pareceu

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impulsionando o imaginário a partir da história de Cíntia, distribuíentre outros camelôs, também escolhidos aleatoriamente, umquestionário, que eles responderam por escrito.

Após essa introdução, são recapituladas as noções necessáriasao embasamento das buscas no vivido, no trabalho de campo: oque significa o imaginário fundar o real, noções de imagem (nãoicônica, necessariamente), arquétipo, mito, símbolo, e umadescrição de como o iconoclasmo se organiza no Ocidente e naespecificidade do texto jornalístico (prática asséptica, que querdistância do imaginário).

Desde Cíntia, Cíntias e ao longo de todo o trabalho seapresentam fragmentos dos textos que estudei, dispostos ora para-taticamente, querendo deixar para o leitor fazer as ligações como resto do trabalho, ora para exemplificar as noções introduzidase, pois, já se fazendo sua descrição compreensiva. Trata-se dasmatérias jornalísticas da amostragem, de falas de Cíntia, falas dosjornalistas entrevistados e do mito gaúcho escolhido por mimcomo emblemático do fazer jornalístico no que ele tem de aberturapara a alteridade — A salamanca do Jarau, de Simões Lopes Neto.

As indicações dadas pela descrição compreensiva dessesfragmentos nos capítulos em que busco o embasamento reflexivosão olhadas mais de perto nos entremeios especialmente dedicadosao inventário das imagens no cotidiano dos camelôs, no jornalismoe no texto de Simões Lopes Neto.

Esse estudo não pretende ser mais do que um mapa sobreareias movediças. Entre o momento em que eu o rabisco e aqueleem que o vento o fará desaparecer, haverá um fugaz instante deeternidade. Para que mais?

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Imaginar para viver

Pequena, velha, de madeira, com frestas atravessadas pelosventos que desembestam livremente no campo em derredor, assimé minha casa natal, onde me instalei para escrever esse trabalho.Sei lá por que, a coragem agora me falta. Um safanão mais forteda ventania abre a porta e o cheiro de lenha queimada, normal porestas paragens, me traz a lembrança do pão que minha avó paternaassava no forno de tijolos. Amparada pela imagem desseaconchego, retomo a escrita.

A vida humana é impulsionada pelo imaginário. Tanto asquestões que nos afligem quanto as explicações que construímostodos os dias, as estratégias que formulamos para viver o cotidiano,os objetos criados, os gestos, as palavras, os pensamentos, tudoisso, incluindo, portanto, o que se chama de real e de razão, estáfundado no conjunto de arquétipos, mitos e símbolos, originadose originadores de imagens — o imaginário. Michel Maffesoli diz,sobre a noção fornecida por Gilbert Durand em As estruturasantropológicas do imaginário: “O imaginário é a relação entre asintimações objetivas e a subjetividade. As intimações objetivas sãoos limites que as sociedades impõem a cada ser. Relação, portanto,entre as coerções sociais e a subjetividade. Nisso entra, ao mesmotempo, algo sólido, a vida com suas diversas modulações, e algumacoisa que ultrapassa essa solidez. Há sempre um vai-e-vem entreas intimações objetivas e a subjetividade” (MAFFESOLI, 2001,p.80). Nesse vai-e-vem nascem as imagens. Então, as imagens sãoproduto do imaginário que, conforme Gilbert Durand explicita, éo conjunto de imagens não-gratuitas e relações de imagens queconstitui o capital pensado e o capital inconsciente do Homosapiens (DURAND, 1997, p.18). As imagens são não-gratuitaspelo fato de não serem signos, mas conterem, de algum modo, seusentido. Durand postula o semantismo das imagens.

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Isso nos remete à necessidade de uma noção mais estrita deimagem do que a fornecida pelo senso comum, que a entende comouma cópia visual de coisas objetivas. Nesse caso, não se estariafalando de imagem, mas de ícone. Então, quando é que se tem umaimagem?

Em A imaginação simbólica, Gilbert Durand explica que aconsciência pode representar o mundo diretamente, quando aprópria coisa parece estar presente na mente (percepção, sensação)ou indiretamente, quando o objeto não pode se apresentarconcretamente à sensibilidade (por exemplo, nas lembranças, naimaginação sobre centauros, na representação da vida após amorte). Nos casos de consciência indireta, o objeto ausente érepresentado na consciência por uma imagem (DURAND, 1988,p.11-12). Por exemplo, ao contar por que achava importante oestudo, não só para ela, mas também para os irmãos, Cíntia usa aimagem da ascensão:

A gente não deixava eles ficarem sem estudar, euprincipalmente, que a minha irmã não tinha muito, assim...a minha irmã mais velha, ela não tinha ambição... porque tutem que ter ambição na vida, senão tu não vais subir nunca,senão tu vais morar lá numa vila e lá tu vais ficar.

Quando a realidade é, senão presente, pelo menos represen-tável, pode ser codificada por signos arbitrários, indicativos: placasde trânsito indicando contramão, designações de ruas, de cidadesetc. No entanto, quando se trata de conceitos não tão evidentescomo os que repousam em percepções verificáveis, precisamos deimagens: “quando o significado não é mais absolutamenteapresentável” e só é possível referir-se a “um sentido, não a umobjeto sensível” (DURAND, 1988, p.13-14). O não-sensível(inconsciente, metafísico, supra-real) é o campo do imaginário. Arepresentação simbólica jamais pode ser confirmada pelaapresentação daquilo que ela significa, e por isso o símbolo temvalor apenas em si próprio.

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Não se considera, então, como imagem qualquer duplicaçãomnemônica do mundo externo ou uma mímica do real. A imagemcompreendida deste modo, como ícone (na concepção de Peirce,um signo que tem alguma semelhança com o objeto representado,p. ex. retratos, cenas transmitidas pela televisão, os desenhos dabarra de ferramentas do Windows) ressalta imediatamente asuposição de uma ruptura: por um lado, a realidade concreta,objetiva; por outro, o imaginário, entendido como representaçãofantasiosa dessa realidade.

Esta dicotomia presume que o real seja o núcleo duro, invariante,em maior ou menor grau, e o imaginário seja o conteúdo variável.Tal fronteira, segundo Merleau-Ponty, ignora “a relação orgânicaentre sujeito e o mundo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.211). Deve-se reter, agora, a importância de não coisificar a imagem, nãoconfundi-la com uma duplicação mental da percepção, a fim de nãose reduzir e, pois, desvalorizar a imaginação, como recomendaGilbert Durand (DURAND, 1997, p.21). Distingue-se, portanto, aimaginação da percepção e da memória.

O imaginário humano é fundado no momento da evolução emque o homem chega à consciência da morte.1 Então, ele se defendecriando um novo mundo. A morte é vencida pelo mito e pela magia(GRECO, 1987, p.42). No mundo subjetivo são buscadas asrespostas para o mundo objetivo. O imaginário não é um conjuntode fantasias no sentido de irrealidades, mas um conjunto

1 Gilbert Durand cita Bergson, dizendo que a ele “pertence o mérito de haverestabelecido explicitamente o papel biológico da imaginação, daquilo que elechama ‘função fabuladora’. A fabulação é geralmente uma ‘reação da naturezacontra o poder dissolvente da inteligência’, mas esse poder negativo dainteligência se manifesta mais precisamente na consciência da decrepitude e damorte. Desde então, a imaginação se define como uma ‘reação defensiva danatureza contra a representação, através da inteligência, da inevitabilidade damorte’. (...) Finalmente, nós mesmos, apoiando-nos não mais na biologia, comoBergson, ou na psicologia, como Lacroze, mas no balanço antropológico,chegamos a estabelecer que a função da imaginação é, antes de mais nada, umafunção de eufemização, porém não simplesmente ópio negativo, máscara que aconsciência veste diante da horrível figura da morte, mas, ao contrário, dinamismoprospectivo que, através de todas as estruturas do projeto imaginário, tentamelhorar a situação do homem no mundo”. A imaginação simbólica, p. 100-101.

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psicocultural, que está presente tanto no pensamento primitivoquanto no civilizado, no racional como no poético, no normal eno patológico (COELHO, 1997, p.212).

A teoria geral do imaginário, de Gilbert Durand, assim comoas teorias de Jung sobre o inconsciente coletivo, parte da hipóteseda concomitância entre os gestos do corpo, os centros nervosos eas representações simbólicas (BADIA, 1993, p.229). A imaginaçãoassenta na energia dos órgãos do corpo, que são, naturalmente, osmesmos em todos os seres humanos.

Durand (1997, p.51-63) explica que há três dominantesreflexas funcionando como matrizes de sensorialidade: asposturais, as de engolimento e as rítmicas. No ambientetecnológico humano, é procurado o acordo entre os reflexosdominantes e seu prolongamento ou confirmação cultural. A cadagesto reflexológico corresponde uma matéria e uma técnica,suscitando um material imaginário.

À dominante postural (tendência de o ser humano se colocarna posição ereta) correspondem as matérias luminosas, visuais, eas técnicas de separação, de purificação. Seus símbolos freqüentessão as armas, as flechas, as espadas. O simbolismo derivado destadominante, com suas implicações manuais e visuais, e também deagressividade, foi classificado por Gilbert Durand como diurno,organizado num universo heróico. No seguinte trecho de um mitosul-riograndense, A salamanca do Jarau, prestemos atenção àimaginação diurna que se manifesta, numa constelação em tornoda luz, com a importância dada ao olhar, ao pensamento, à idéiade soberania, no momento em que o sacristão está à espera de serenforcado por ter tomado como amante uma mulher muçulmana:

Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres, esses,esses viam o corpo bonito, lindo, belo, da princesa moura, erecreavam-se na luz cegante da cabeça encantada da teiniaguá,onde reinavam os olhos dela, olhos de amor, tão soberanos ecativos como em mil vidas de homem outros se não viram!...(LOPES NETO, 2002, p.76).

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A belicosidade também é imagem diurna, e apareceseguidamente no jornalismo quando o assunto é a camelotagem. Noextrato a seguir, a atitude imaginativa heróica se mostra prevalecente,através de imagens de guerra:

Diante da negativa do diretor de fiscalização da Smic,Sebastião Barbosa, os ânimos se acirraram. Os camelôssaíram da sala e convocaram a imprensa a participar dareunião.

— Entrem e filmem o Sebastião Barbosa dizendo que nãopodemos trabalhar — vociferava a ambulante Alete Pereira,40 anos.

Ao retornarem à sala, os camelôs cercaram Barbosa e oassessor do gabinete para Assuntos do Centro, Juliano Vallejo.Exaltados, fizeram acusações, chamando a aplicação de multapara a retirada de mercadorias apreendidas de “cobrança depropina”. Também reclamaram de “excessos cometidos pelaBrigada Militar” e, em meio às farpas, Barbosa foi acusado dedescumprir um acordo pelo qual os camelôs podiam atuar noCentro.

— Fizemos o acordo em outubro do ano passado —afirmou Josmar Gonçalves da Rosa, um dos representantesdos camelôs.

Segundo Barbosa, uma nova reunião foi marcada para as16h de hoje. Insatisfeitos, os camelôs deixaram o prédiodizendo que retornariam para a rua e enfrentariam a BrigadaMilitar e os fiscais.

— Não adianta ficar de reunião, que isso nunca resolveunosso problema. Vamos para a rua trabalhar e encarar oconfronto — disse Alete.

A prefeitura decidiu recadastrar os 420 camelôs regularesque atuam no Centro a partir de amanhã. A intenção éverificar possíveis irregularidades na titularidade dasbancas.2

2 Camelôs irregulares pressionam prefeitura. Zero Hora, 09/abr/2002, p. 35.

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No pólo oposto ao erguer de espada heróico, temos a descidadigestiva, da dominante de engolimento. A ela correspondemmatérias de profundidade, como a água e a terra cavernosa, quesuscitam os utensílios continentes, como taças e cofres. Osdevaneios, aqui, tendem para as técnicas da bebida e do alimento,e as imagens se organizam no que Durand chama de universomístico. Já a dominante rítmica é a dos gestos rítmicos, dos quaisa sexualidade é o modelo natural. Estes gestos se projetam nosritmos sazonais, anexando os substitutos técnicos do ciclo, comoa roda, a roda de fiar, a vasilha onde se bate a manteiga, o isqueiro.A fricção tecnológica é determinada pela rítmica sexual. Temos,então, o universo dramático.

O simbolismo derivado das dominantes de engolimento e rítmica(universos místico e dramático) foi chamado por Gilbert Durand denoturno. Segundo o autor, a bipartição pôde ser feita porque a libido,na sua evolução genética, valoriza e liga afetivamente as pulsõesdigestivas e sexuais.

A salamanca do Jarau traz várias imagens místicas, onde a cor,a abundância e o recipiente têm papel importante, neste trecho emque o sacristão imagina as riquezas que a captura de uma lagartixaencantada lhe proporcionaria:

E foram-se estendendo e alargando campos sem fim,perdendo o verde no azul das distâncias, e ainda lindandocom outras estâncias que também eram minhas e todas cheiasde gadarias, rebanhos e manadas...

E logo cancheava erva nos meus ervais, cerrados e altoscomo mato virgem...

E atulhava de planta colhida — milho, feijão, mandioca— os meus paióis.

E detrás das minhas camas, em todos os quartos dos meuspalácios amontoava surrões de ouro em pó e pilhotes debarras de prata; dependuradas na galhação de cem cabeçasde cervos, tinha bolsas de couro e de veludo, atochadas dediamantes...

(...)Tudo isso eu podia ter — e tinha de meu, tinha! — porque

era dono da teiniaguá, que estava presa dentro da guampa,

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fechada na canastra forrada de couro cru, tauxiada de cobre,dobradiças de bronze!...(LOPES NETO, 2002, p.67-68)

Mais adiante, o sacristão, ao entrar no seu quarto, não encontramais a lagartixa, mas uma linda princesa moura, na qual ela setransformou. Dividido entre a fé católica e a atração pela moçamuçulmana, o sacristão tem sua situação solucionada num universodramático,3 onde o ritmo, a progressão aglutinam imagens:

E foi se adelgaçando no silêncio a cadência embalanteda fala induzidora...

A cruz do meu rosário...Fui passando as contas, apressado e atrevido, começando

na primeira... e quando tenteei a última... e que entre as duasos meus dedos, formigando, deram com a Cruz do Salvador...fui levantando o Crucificado... bem em frente da bruxa, emsalvatério ...na altura do seu coração... na altura da suagarganta... da sua boca... na altura dos... E aí parou, porqueolhos de amor, tão soberanos e cativos, em mil vidas dehomem outros não se viram!...(LOPES NETO, 2002, p.71)

Ao entrarem em contato com o ambiente natural e social, osgestos vão determinar os grandes arquétipos, e que são conhecidostambém como imagens primordiais: em si mesmas, são formasvazias, preenchidas ultrapassando-se as concretudes individuais,biográficas, regionais e sociais que interferem na sua formação.Só então elas se tornam visíveis à consciência. Nesse momento,segundo Jung, não se pode mais falar em arquétipo, e sim emrepresentação arquetípica. O arquétipo pertence à parte invisível doespectro psíquico, e por isso não é conscientizável. Toda a intuiçãode um arquétipo já é consciente e, pois, distinta do que causou suarepresentação: “O que entendemos por arquétipo é irrepresentável,

3 Os universos heróico, místico e dramático são chamados também, respectivamente,de esquizomorfo, antifrásico e sintético. Para evitar a complicação de nomenclatura,já grande quando se fala de imaginário, optei por chamar cada universo sempre porapenas um nome.

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mas tem efeitos à mercê dos quais são possíveis suas manifestações,as representações arquetípicas” (JUNG, 1991, p.159).

A Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio(Smic) iniciou ontem uma operação de combate à vendairregular de frutas e verduras nas ruas centrais da Capital. Aprimeira ação aconteceu em torno das 9h30min, quando osfiscais da Smic e PMs do 9°BPM abordaram ambulantes quedescarregavam a mercadoria da Kombi placas III 3526 na ruaDoutor Flores, em frente à praça Conde de Porto Alegre. Houvecorreria de alguns vendedores, que fugiram da apreensão comum carrinho cheio.4

Nesse texto jornalístico, a polícia promove o cumprimento dalei. Podemos dizer que a imagem arquetípica do herói é encarnadapelos policiais, se opondo ao monstro invasor, encarnado pelosvendedores irregulares, que estão onde não deviam estar, ou seja,invadem um território. Nos textos, as imagens arquetípicas semanifestam numa idéia geral, que o perpassa.

A imagem arquetípica não é ambivalente, tem universalidadeconstante.5 Esta é a grande diferença entre ela e a imagem simbólica.A rigor, ninguém se pergunta o significado de uma imagem

4 Smic reprime fruteiros irregulares. Correio do Povo, 12/abr/2002, p. 18.5 Em Arquetipos e inconsciente colectivo, a partir da página 146, Jung explica como

chegou à definição de arquétipo. Para ele, existem certas condições inconscientescoletivas que atuam como reguladoras e propulsoras da atividade criadora dafantasia. Observando pacientes cujos sonhos tinham um rico material de fantasia,Jung pedia-lhes que, a partir de uma imagem onírica, desenvolvessem esse temade acordo com a atividade livre de sua fantasia. Isso ocorria de acordo cominclinações ou dotes individuais, através da música, desenho, etc., e o resultado foium sem número de complicadas configurações. A multiplicidade de imagens, deinício caótica, foi tomando forma no decorrer do trabalho, e resultou em certoselementos formais que se repetiam apresentando estruturas idênticas ou análogasnos indivíduos mais diferentes. Jung cita como características fundamentais amultiplicidade caótica e a ordem; oposição de claridade e escuridão, acima e abaixo,direita e esquerda; a unificação de contrários em um terceiro; a quaternidade(quadrilátero, cruz); a rotação (círculo, esfera) e finalmente a ordenação radial, emgeral de acordo com um sistema quaternário. De acordo com Jung, não existenenhum tema de nenhuma mitologia que não apareça nesses produtos. Os seuspacientes não tinham conhecimento de mitologia ou, se tinham, eram mínimos.

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arquetípica, como no texto visto acima, onde o herói e o monstrolá estão, sem que precisem ser explicados.

Por exemplo, quando se pensa no ciclo, vem à mente uma roda,ela se relaciona ao ciclo ultrapassando diversidades culturais. Aroda é a imagem arquetípica do ciclo, da mesma forma que o leiteé imagem arquetípica do alimento, em qualquer cultura. A serpentetambém pode ser relacionada ao ciclo, mas ela é polivalente,significando, eventualmente, o pecado. Por sua polivalência, aserpente é entendida como imagem simbólica, e não como imagemarquetípica.

Mesmo assim, o músico, natural da cidade de Brochier,decidiu voltar a se apresentar no mesmo local em que foireprimido. Sua apresentação durou das 10h às 11h30min,mesclando temas eruditos com sucessos populares. Wentztambém incluiu em seu repertório a música Porto Alegre éDemais.6

A música simboliza, muitas vezes, a harmonia. No caso acima,não se trata de uma música qualquer, e sim de uma que significa,para os gaúchos, o amor à terra natal. Seu título aparece num textoem que se relata a volta de um violinista às ruas da cidade, depoisde ter sido preso, tomado por vendedor ambulante. Embora elerealmente venda CDs (gravações independentes de execuçõessuas), o jornal o distingue claramente dos outros camelôs,acrescentando detalhes de sua biografia que, talvez, mostrem queele não é um ambulante comum. Finalizar o texto citando, entretantas que o violinista toca, o nome daquela música reforça aintegração dele com a cidade, o quanto ele a ama, contrastando,quem sabe, com os camelôs, que trazem o caos para as suas ruas.Aqui, localizada no tempo e no espaço, Porto Alegre é Demais éuma imagem simbólica; jamais uma imagem arquetípica.

6 Violinista volta a tocar no Centro. Zero Hora, 04/abr/2002, p. 43.

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Temos, finalmente, o mito, um sistema dinâmico de imagenssimbólicas e arquetípicas que tende a se compor em narrativa. É“já um esboço de racionalização, porque utiliza o discurso, no qualos símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em idéias”(DURAND, 1997, p.63). A grande importância do mito está emele dar sentido à vida psíquica e, portanto, também à vidacotidiana, porque ele é uma história que o ser humano se contapara se situar no mundo. A noção ampla, que Durand usa paraentender o mito, descreve-o como “uma narrativa (sermomythicus) sem demonstração nem objetivo, descritiva — donde anecessidade de redundâncias — e que quer mostrar como as forçasdiversas se organizam em um universo mental sistêmico”(DURAND, 1996, p.191). 7 O mito é sempre uma “anamnese dosfundamentos” (MAFFESOLI, 1996, p.216) que, ao lembrar a lamaoriginal, também rememora os modelos perfeitos da criação domundo, já que o cosmos é a obra exemplar dos deuses (ELIADE,1994, p.35). Por isso, o mito é uma narrativa organizante e narrar éum ato vital, sem o qual, como bem reforça Cremilda Medina, o serhumano “não se expressa, não se afirma perante as desorganizaçõese as inviabilidades da vida” (MEDINA, 1994, p.24).

Nesse sentido, todo o material da pesquisa empírica dessetrabalho é constituído por narrativas míticas: a história da camelôCíntia, os depoimentos dos jornalistas que escreveram sobre ocomércio ambulante em Porto Alegre e os textos jornalísticos daamostragem. Naturalmente, os tipos de imagens que aparecemnessas narrativas são diferentes. Os textos jornalísticos, por umalimitação imposta pela gramática da profissão, são inibidos no usode uma linguagem simbólica e fogem das metáforas. Essa ausêncianão é inocente, claro, e sinaliza o medo da ambigüidade, dapolivalência, medo que redunda em monofonia. Mas o que desejosublinhar, agora, é a incontornabilidade da imagem, seja elaarquetípica ou simbólica, estereotipada ou preconceituosa. Por isso,

7 Todos os trechos citados de obras em francês foram traduzidos livremente pormim.

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não vou mais me ater mais à distinção entre esses tipos, o que melevaria, além do mais, a uma discussão valorativa de cada um deles.Ora, dar nota às imagens me parece uma atitude pouco fértil nosestudos do imaginário. Utilizarei a palavra imagem para designar,indiferentemente, imagens arquetípicas, simbólicas, estereotipadase preconceituosas, considerando apenas que as últimas dessa listasão mais rígidas — menos polissêmicas — do que as primeiras.

O regime diurno e o regime noturno da imaginação são comple-mentares. A imaginação plena não se isola no dia ou na noite, masse colore no claro-escuro do encontro das imagens. Assim, o serhumano pode ser de uma só vez o combatente impiedoso do universomítico heróico (diurno), a mãe consoladora e alimentadora douniverso mítico místico (noturno), o equilibrador do universomíticodramático (noturno). A fim de verificar isso, façamos uma leituramítica da história de vida de Cíntia e das falas coletadas junto aalguns camelôs que trabalham no Centro de Porto Alegre.

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Tesouros da multiplicidade

Inventário das imagens do cotidiano dos

camelôs

Encontrei Cíntia numa tarde de quarta-feira, nas proximidadesdo Mercado Público de Porto Alegre, quando ela ajeitava asmercadorias sobre uma lona no chão. Eu estava numa fase deimersão no ambiente do comércio ambulante, e tratava de olhar eouvir o mais possível sem interpelar ninguém. Já fazia isso háalguns dias, e o encontro com Cíntia me sinalizou que haviachegado a hora de me expor para poder penetrar com mais decisãonaquele universo. Apresentei-me, expliquei, de modo bem simples,o trabalho que estava fazendo e ela logo se mostrou muito dispostaa partilhar comigo sua experiência. Depois de algumas vezes emque conversamos informalmente, na rua, nos intervalos de seuserviço, ela me convidou a ir até sua casa, para falarmos mais àvontade, sem interrupções nem barulho. Isso já estava nos meusplanos, mas a iniciativa tendo partido dela, tanto melhor.

O cotidiano, do qual a história de Cíntia, no começo do estudo,é uma ilustração, exige do ser humano uma atitude imaginativaplural. O vai-e-vem entre o dia e a noite, motivado ora pelouniverso mítico heróico, ora pelo universo mítico místico, bemcomo o diálogo do dia com a noite, motivado pelo universo míticodramático, são estratégias suscitadas pelo universo da angústia.

O universo da angústia é o das transformações caotizantes quenos colocam em contato com “os rostos do tempo” (título do LivroPrimeiro, primeira parte de As estruturas antropológicas doimaginário, de Gilbert Durand), ou seja, com a presentificação dotempo e da morte, que está na origem das estruturas heróicas,místicas ou dramáticas do imaginário. Diante do problema dafinitude da vida, a angústia gera imagens com um simbolismoteriomorfo (bestiário, animalidade), nictomorfo (trevas) e

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catamorfo (queda). A elas o ser humano reage motivado por umaimaginação heróica, mística ou dramática. Não será demais insistirque o imaginário é exatamente a relação que se estabelece com omundo a partir dessa angústia primordial diante do tempo que passa.

Desçamos, agora, ao detalhe da pluralidade de imagens quesaltaram da cena cotidiana de Porto Alegre nas excursões pelasruas do Centro, no acompanhamento de Cíntia, tanto em sua casacomo no seu local de trabalho, e também na coleta de respostasescritas de outros camelôs.

Ao começar a contar sua história, Cíntia menciona imediata-mente que a mãe era italiana e o pai, bugre. Sublinha a mistura deraças, e recua a tempos muito antigos, quando da imigração dosbisavós italianos para o Brasil. Tempos imemoriais não por falta deregistro histórico, mas porque neles ela situa o começo do mundo:antes disso, não havia nada, para ela. A compreensão mítica do tempoque Cíntia tem se confirma ao narrar o matrimônio dos pais: quandochegou a época de casar, a mãe casou. O regime noturno da imagemabriga o início de sua narrativa, em que as coisas são feitas porqueé hora de fazê-las, porque a roda do tempo atinge o ponto em queelas devem acontecer.

O universo da angústia traz uma primeira imagem de tristeza nainfância de Cíntia: as lágrimas que ela chorava quando foi entreguea uma família que lhe daria sustento em troca de serviços domésticos.Trabalho infantil e escravo ao qual ela foi condenada pelo própriopai. A figura paterna se inscreve na origem das mais fortes angústiasda infância de Cíntia. A resposta a elas só foi encontrada no dia emque, certamente não por acaso, ela mexia uma panela de doce,espécie de caldeirão alquímico. Recolhida, concentrada no trabalho,esperando o ponto certo do cozimento, Cíntia foi surpreendida pelopai que entrou em casa e, bêbado, começou a surrar a mãe. Orecolhimento profundo em que a menina se encontrava parece terdeterminado com mais força o arrebatamento de fúria que a dominoua seguir. O deslizamento do pólo imaginativo noturno para o diurnorespondeu de uma vez por todas ao medo dela que, de modo heróico,expulsou o pai não só de sua vida, mas também da vida de sua mãee irmãos. O universo da angústia lhe enviou um dragão ameaçador;ela o enfrentou e o venceu.

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O medo da pobreza é outra imagem do tempo devastador quesurge no cotidiano dos camelôs. Quando criança, Cíntia nãodispunha de roupas adequadas para suportar o frio do inverno. Hoje,ela tem armários abarrotados, que indiciam o mesmo medo daprivação, não solucionado. Acredita em si mesma, mas receia pelosfilhos. Eles parecem bem encaminhados, o rapaz faz faculdade dedia e trabalha à noite, a moça, já formada em Enfermagem, tem bomemprego numa clínica de cirurgia plástica, onde é muito queridapelos pacientes. Mas o imaginário não se contenta com essasrespostas políticas, e a ansiedade em relação à subsistência é imageminsistente no cotidiano não só de Cíntia, “eu tenho medo de filho,de ter filho e não conseguir cuidar”, mas também de outros camelôs,como Iana Oliveira, “não tive muita coisa porque meu pai e minhamãe não tinham condições de me dar (...) Eu não tinha um brinquedopara brincar, nem uma boneca”, como Carla Oliveira, “Ana, tem diasque são terríveis, porque a venda fica fraca”, como Marco Comte,“recebemos a mixaria todos os dias”.

A camelotagem é a resposta dramática encontrada parasolucionar essa angústia primordial gerada pelo medo de nãosobreviver. “Quando nascemos, nossos pais não disseram, que lindacriança, quando crescer vai ser camelô!”, escreveu a Comissão dosCamelôs de Porto Alegre à Smic, em maio de 2003, na mensagemcom suas principais reivindicações. A consciência da marginalizaçãode seu papel não os intimida porque sua motivação reside no nívelfundador da própria sociedade — o arquetipal. Carla Oliveira conta:“Às vezes sou discriminada, mas não me importo porque nestetrabalho consigo me manter”. Anderson Santos concorda com ela:“Trabalho como ambulante porque é assim que consigo levar osustento para a minha família. (...) É o único jeito de conseguir umacoisa a mais além do alimento”.

A imagem arquetípica do alimento, bem como a da abundância,é freqüente resposta mística à angústia. Cíntia não esconde queprefere ganhar R$ 1.000 como camelô do que R$ 400 comovendedora de loja. Também Iana conta ter encontrado a dignidadeno seu trabalho: “Me sinto gente, porque posso pagar minha luz,minha água, minha casa, sustentar meus cinco filhos, vesti-los.

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Minha renda é de R$ 800, e a do meu marido (camelô, como ela),também”.

O ascetismo exigido de quem resolve se integrar ao comércioambulante informal não é pouco: ignorar as dores do corpo,enfrentando o sol e a chuva e o vento minuano; ignorar as doresda alma, sendo surdo às humilhações a que o trabalho expõe. Omaior sonho de Jaílson Oliveira é: “Ganhar na mega—sena e sairdesta vida de fugir dos fiscais”. Lorena (assim, apenas — Lorena)conta: “A gente não tem teto, e quando vem chuva ou temporalestraga muito as nossas mercadorias”. Eles trabalham, em média,12 horas por dia, alimentando-se de modo precário, com pequenoslanches, vendidos por outros ambulantes.

Esse cotidiano é construído em forma de drama, onde imagenssolares possibilitam o ver adiante, determinando a luta do aqui-agora , convivendo com imagens místicas de riqueza, fecundidade,repouso. Escutemos Cíntia: “E assim, ó, (mostra um abajur) essesmóveis assim, ó (mostra os móveis do quarto, em madeira pesadae escura, estilo colonial) pode ver meus porta-retratos, tudo assim,ó, agora a casa tá meio bagunçada porque eu não tenho tempo,mas eu sempre comprava essas coisas, eu comecei a trabalhar esempre comprava”.

O diálogo do dia com a noite é resposta freqüente dos camelôsàs imagens teriomorfas suscitadas pela fiscalização, que encarna umaespécie de cavalo tectônico infernal, capaz de massacrá-los. Os olhosdos ambulantes irregulares não podem se encontrar com os doscompradores, porque estão sempre postos mais além, procurando asviaturas da Smic. O gesto heróico de distinguir o perigo é seguidodo gesto místico de confundir-se. Colocar os tabuleiros no chão parase furtar à inspeção dos fiscais se assemelha mesmo à descidanoturna, e as hordas de passantes constituem um esconderijoperfeito. Coincidentia oppositorum: distinção e confusão não sãoauto-excludentes, e sim contracenam no cotidiano.

A dinâmica entre os papéis positivos, admitidos explicitamentepelas instituições, e os papéis dissidentes, formalmente negados,também pode se organizar dramaticamente. Os trabalhadoresinformais no Brasil representam 30% do PIB, segundo o IBGE,

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percentual semelhante ao da Itália e da Hungria, por exemplo. Naregião metropolitana de Porto Alegre, cerca de 150 mil pessoas nãotrabalham com carteira assinada, sendo que a populaçãoeconomicamente ativa é de 1 milhão e 739 mil pessoas, conforme aPED (Pesquisa de Emprego e Desemprego) do mês de fevereiro de2003, elaborada pela FEE (Fundação de Economia e Estatística). Ataxa anual de desemprego na região é de 14,8%, o que significa 257mil pessoas sem nenhum tipo de trabalho, formal ou informal.

A pressão dos que se encontram excluídos do mercado detrabalho formal poderia ser insuportável caso o setor informalpudesse ser simplesmente extinto. Trabalhadores como os camelôstêm grande importância na manutenção de uma certa ordem social— e decerto a administração pública sabe disso. O Sindicato dosCamelôs e Ambulantes de Porto Alegre os estima em 2.000irregulares no Centro, e em 10 mil em toda a cidade. A Smiccadastrou 508 ambulantes no Centro, além dos 230 da Feira da Ruada Praia. O cadastro não é um alvará. Serve para a fiscalização fazeruma espécie de chamada diária a fim de impedir a instalação de maiscamelôs no Centro.

Nem sempre o enfrentamento heróico é a reação dos ambulantesà fiscalização. Cíntia, guiada por sua imaginação dramática, procuraa adequação possível: “Primeiro eu converso com eles, eu nuncapeguei assim, enfrentar eles, se eles disserem, tu não pode trabalharaí, eu não trabalho”. Talvez por essa habilidade em procurar osespaços em que sua atividade, se não é permitida, pelo menos étolerada, Cíntia obtém um certo controle sobre as imagens daangústia suscitadas pela fiscalização, controle diferente de outrosambulantes, cuja imaginação diurna motiva uma resposta de desafio,se instalando em locais e horários proibidos. Mas, daí, o purismoheróico parece solicitar sempre um contrabalanço místico, e algunsdos ambulantes que se decidem a fincar pé no chão que escolheramsão obrigados a fugir quando a fiscalização chega. Há também, nomínimo, uma terceira resposta, não majoritária, a da guerra aberta.Praticamente, a única reconhecida pelos jornais.

Em suma, o universo da angústia dos camelôs está povoadocom o medo da pobreza, a ansiedade em relação ao sustento

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material. A atividade é incerta, nunca se sabe se as vendas de hojepoderão garantir o pão de amanhã. Como qualquer trabalhadorindependente, eles têm de labutar mesmo se estiverem mal desaúde; caso contrário, deixam de ganhar. Outra fonte de angústiasão as ameaças e desconfortos que o próprio ambiente de seutrabalho apresenta, tanto pelo sofrimento com as intempéries comopelo caráter de alguns colegas, como diz Comte:

— Eles são uma classe desunida, onde cada um cuida de si eninguém ajuda ninguém.

A isso se soma, para os camelôs irregulares, a insegurança eansiedade que trazem os fiscais da Smic, encarnando o desassossego,a impossibilidade de deixar-se ficar no mesmo lugar, de se aquietarapaziguadamente.

— Eu tenho que fugir da Brigada Militar e dos fiscais com aminha caixinha — conta Jaílson de Oliveira.

Suas infâncias também não parecem ter tido facilidades, apesarde algumas lembranças felizes, como as de Saulo Dias:

— Tive uma infância alegre, uma vida normal, e minha grandeemoção foi meu primeiro dia de aula.

Mas muitos sentem que perderam algo quando eram crianças.Santos se ressente de não ter estudado mais:

— O que marcou minha infância foi parar meus estudos na 6ªsérie.

Outros gostavam de esporte, e tiveram de abandoná-lo.— Eu lutava taekwondô. Eu viajava, eu gostava de viajar a

São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, etc. — lembraOliveira. Comte lamenta ter perdido a chance de ser jogador defutebol. A frustração chegou cedo, seja por não poderem seguiraperfeiçoando seus talentos, seja pela falta de brinquedos,agasalhos e alimentos.

Os impasses vão recebendo respostas plurais, que lançam mãotanto da altivez heróica quanto do enrodilhamento místico e danegociação dramática. Assim é que os sonhos de Cíntia, idealistas,purificados (desejo de conhecimento, de subir na vida) vãoencontrar na força dramática da sonhadora um meio para serealizarem (negociou com a patroa um jeito de ir à escola; chegou

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a um acordo com o dono do restaurante e pôde fechar o negócio).E a tendência mística é igualmente atendida, pois as conquistasque, quando eram apenas um sonho, tinham um caráter idealista,proporcionam agora a segurança material, a intimidade calma. É,aliás, a tendência mística de Cíntia que lhe resolve o problema dafuga da fiscalização: ela simplesmente evita o confronto. Não temlicença para vender nas ruas, então não vende. Ocupa um espaçoque, por enquanto, a prefeitura não interditou, e que ela, Cíntia,conquistou há muito tempo, perto da proteção do cunhado, quetinha uma banca de revistas ao lado.

O equilíbrio do imaginário de Cíntia se confirma nas históriasdos outros camelôs ouvidos, que também apreciam a independênciafinanceira advinda dos ganhos diários na atividade, apesar desentirem que esta profissão está aquém de suas capacidades:

— Me sinto humilhado, porque eu tenho segundo graucompleto — revela Oliveira.

Tentam se dar bem uns com os outros, mas não deixam de lhesenxergar os defeitos, como conta Iana:

— No nosso meio, tem gente boa, gente honesta, mas temgente que não presta, tem ladrão, tem de tudo.

As vendas de hoje podem ser fracas, mas a fé no futuro persiste:— Eu gosto de viver, e acreditar que cada dia será melhor que

o outro — confessa Carla.Procuram seu espaço, seja se integrando pacificamente, sem

desafiar os limites, seja afrontando as leis, mas, nesse caso,sabendo muito bem usar as pernas para correr, se necessário. Otrabalho é estafante, e o homem comum encontra no própriocotidiano exaustivo a receita para vivê-lo sem se aniquilar. Santosmostra como sacraliza o tempo, encontrando segurança na suaconstância:

— Meu dia é muito cheio. Começo às 6h da manhã, semparadeiro, porque corro o tempo todo. Monto e desmonto banca.Carrego sacolas de muitos quilos, até o fim do dia. E começa amesma aventura. E assim vou vivendo o meu dia-a-dia, com aforça de Deus.

Têm sonhos e objetivos. Carla:— Criar meu filho.

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Comte:— Um emprego estável para dar uma vida boa para minha

família.Santos:— Conseguir criar meus filhos com uma vida digna.Me fizeram a gentileza de responder as perguntas, e agradecem

a mim, que tanto lhes devo. Epifania da necessidade humana depôr em comum, explicitada por Comte:

— Termino aqui, deixando meu desabafo.E por Santos:— Obrigado pelas poucas palavras.São guerreiros audazes, querem heroicamente liquidar o

inimigo; e são filhos da Grande Mãe Telúrica, garantem aos seuso alimento e a proteção; e são diplomatas habilidosos, negociamuma solução para o seu drama. Esse imaginário múltiplo éinstaurador de um cosmos bastante visível, dentro do qual vivemtambém os fatos jornalísticos.

***

Um grupo de camelôs irregulares invadiu na manhã deontem o saguão do edifício Comendador Azevedo, na ruaUruguai, onde está instalado provisoriamente o gabinete doprefeito. Eles reivindicavam a permanência de bancas nasruas dos Andradas, Vigário José Inácio, Marechal Florianoe Doutor Flores, além da avenida Salgado Filho.Protestavam ainda contra a ação da fiscalização daSecretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio(Smic) em impedir a ocupação desses locais com suasbarracas.

Houve passeata pelas ruas centrais, com palavras deordem e cartazes. Os ambulantes, atendendo a pedido dotenente Ronaldo, do 9° BPM, desocuparam o saguão e seconcentraram na frente do prédio. Representantes do grupoparticiparam de uma tensa reunião com o chefe de

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fiscalização, Sebastião Barbosa, e o assessor especial daSmic, Luciano Vallejo, que acabou no início da tarde emrevolta dos camelôs diante da negativa em ser liberada aocupação de bancas no quadrilátero central. Houve maistumulto e confusão.

Os camelôs ameaçaram manter suas bancas nas ruasproibidas. “Queremos trabalhar”, justificou Adão Monteiro,um dos líderes do grupo. Barbosa confirmou nova reuniãopara hoje à tarde que discutirá alternativas de ocupação deespaços, como novos pontos e criação de shoppingspopulares.

Ele descartou qualquer possibilidade de liberação doquadrilátero por entender que é preciso garantir o espaçopúblico. Acrescentou que até a segurança na área centralaumenta com as ruas desimpedidas, o que facilita opoliciamento da BM. Barbosa lembrou ainda que asmercadorias vendidas podem ter procedência duvidosa e porisso é exigido comprovante de origem nos casos de apreensãoe pagamento de multa. “Estamos abertos ao diálogo”,afirmou.”1

1 Camelôs invadem prédio no Centro. Correio do Povo, 09/abr/2002. p. 05.

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Da parataxe às grandes dicotomias

O início da construção da fronteira real/imaginário, juntamentecom a distinção essência/aparência e outras grandes dicotomias, dasquais a verdade/erro é emblemática, parece situar-se na GréciaAntiga, conforme descreve Paul Feyerabend. Os textos da GréciaArcaica — as narrativas míticas — são construídos enunciando ladoa lado, em proposições separadas, idéias que, para nós, seriamsubordinadas. Este aspecto da poesia homérica é chamadoparatático, e esclarece por que Afrodite é dita do “doce riso” quandose queixa, chorando, ou porque Aquiles é dito de “pé ligeiro” quandoestá sentado, falando com Príamo. A Afrodite que chora ésimplesmente a Afrodite — e Afrodite é a deusa do riso — inseridanuma situação de se lamentar na qual só externamente participa, semmudança de natureza (FEYERABEND, 1993, p.237). No agregadoparatático, os elementos são dotados da mesma importância, têmentre si apenas uma relação de seqüência, não há hierarquia,nenhuma parte é subordinada ou determinada por outra.

Tratam-se os acontecimentos por adição. Nos quadrosarcaicos, Feyerabend nos aponta outro exemplo: o corpo humanoé um corpo-padrão.

Os estados especiais do corpo, como vida, morte e doença nãosão indicados por qualquer disposição especial de suas partes, maspela representação do mesmo corpo-padrão em diversas posições-padrão. Não há o conceito de perspectiva. Assim, o corpo de umhomem morto num carro funerário articula-se exatamente do mesmomodo que um homem em pé, mas sofre um movimento de 90 grause é inserido no espaço entre o fundo da mortalha e o topo do ataúde.É conformado como o corpo de um homem vivo, e adicionalmentecolocado na posição da morte (FEYARABEND, 1993, p.239).

A arte arcaica nos dá pistas sobre a mundividência do homemde pensamento mítico e sobre como o mito é vivido, experimen-tado. Nos textos de Homero, as ações nunca são iniciadas por um

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“EU” autônomo, mas por ações, acontecimentos, fatos anteriores,podendo incluir a intervenção divina. E é exatamente assim queos fatos mentais são experienciados. Os sonhos, osreconhecimentos súbitos, um aumento repentino de energia vitaldurante uma batalha ou durante uma fuga, a raiva repentina nãosó são explicados pela referência a deuses e demônios, comotambém são sentidos deste modo. A pessoa não tem um sonho, ouseja, ele não é um acontecimento subjetivo; ela vê o sonho, vê-otambém enquanto ele se aproxima e se afasta: é um acontecimentoobjetivo (FEYERABEND, 1993, p.240).

Para o pensamento mítico, todo o fato deve ser explicado, nadaé acidental. O homem é visitado e por vezes habitado por fatosmentais; é um lugar de intercâmbio de influências, mais do queorigem única de ação. No pensamento mítico não há dicotomiaentre essência e aparência. São percebidas coisas, e não aspectosde coisas. O conhecimento completo de um objeto é a enumeraçãode suas partes e traços peculiares. Existem muitas coisas, muitosacontecimentos e muitas situações, e os seres humanos só podemse aproximar de algumas coisas, acontecimentos e situações. Amelhor maneira de apresentar o conhecimento é através de listas.Os deuses têm conhecimentos absolutos, e, ressalta Feyerabend,isso não quer dizer que seu olhar penetre a superfície e capte umaunidade oculta nos acontecimentos, como suporia um raciocínioembasado na dicotomia essência/aparência. É que os deuses têmà sua disposição a mais completa das listas (FEYERABEND,1993, p.261).

O universo paratático da Grécia Arcaica é seguido por umuniverso de dicotomia entre essência/aparência. É a passagem domythos ao logos. Começa a ser deixado para trás o senso comumhomérico, que se servia de uma variedade de distinções sutis, aoinvés de usar dicotomias grandes como essência/aparência, bem/mal, falso/verdadeiro. A nova cosmologia que emerge entre osséculos VII e V a.C. distingue entre muito saber e conhecimentoverdadeiro. Os fatos da vida de todos os dias são agora aparências,e não passam de reflexos enganadores. O mundo verdadeiro ésimples e coerente, e pode ser descrito de maneira uniforme. As

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numerosas descrições que o pensamento mítico usava para mostrarcomo um corpo pode estar inserido no que o rodeia agora sãosubstituídas por um pequeno número de noções abstratas.

Antes, os conceitos possuíam pormenores de atitude,expressão facial, humor, situação e outras circunstâncias concretas.A mundividência pormenorizada e complexa se desgastou e foisendo substituída por outra, abstrata. A distinção entre aparência(primeira impressão, simples opinião) e realidade (conhecimentoverdadeiro) difunde-se. O homem descobre um “EU” autônomo.Para Feyerabend, o logos não se acrescentou ao mythos,simplesmente o dissolveu. A mundividência do mythos e do logosse apresentam incomensuráveis, segundo o autor austríaco. Domesmo modo que há certas coisas intraduzíveis de uma língua paraoutra, o pensamento mítico não pode ser explicado pelopensamento lógico.

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Somos míticos e racionais

Mas Edgar Morin nos diz que o mythos e o logos têm, alémde antagonismos, complementaridades e interferências. Ele falados nossos antepassados arcaicos, que, ao longo de dezenas demilhares de anos, desenvolveram as técnicas da pedra, do osso,do metal e usaram, nas suas estratégias de conhecimento e ação,o pensamento empírico, lógico e racional. Isso não os impedia defazer acompanhar todos os seus atos técnicos de ritos, magias, eos antropólogos do começo do século XX pensaram que o homemarcaico estivesse fechado num pensamento mítico e fosse privadode toda racionalidade (MORIN, 1996, p.144), mas sabe-se que oselvagem alia dois modos de conhecimento: usa tanto o simbólico,mítico como o empírico, técnico, racional.

Para Morin, o pensamento mitológico não desapareceu;transformou-se e integrou-se no pensamento religioso, e continuoua interpretar todos os atos práticos da vida, como nascimentos,casamentos, mortes, caçadas, colheitas, guerras, enquanto opensamento empírico, racional e técnico progredia. Gilbert Durandvai mais longe e não reconhece tal paralelismo entre mito e razão:esta é apenas mais uma solução que o homem encontrou para atendero desejo mítico de resolver o problema do tempo que passa.

O pensamento mítico vive em nós. Recebemos, freqüente-mente, mensagens dos deuses, como quando Cíntia era criança e,de dentro do ônibus que a levava, junto com a mãe, às casas emque fariam faxina, observava as vitrines cheias de lustres bonitos.Quarenta anos depois, a vida revela a Cíntia toda a significaçãodo desfile de vitrines, quando ela tem em sua própria casa osobjetos que admirava na dos outros. Ou, ainda como quando elatomou um ônibus para ir até um hospital público cuidar dos dentes.O encadeamento de coisas banais, dor de dentes, hospital da PUC,embarcar num ônibus que fazia um trajeto diferente do usual, foi

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como um sinal dos deuses para lhe mostrar o prédio comapartamentos financiados pela Caixa Econômica Federal. Nesseprédio, não por acaso, havia apenas mais um imóvel à venda, queestava esperando por ela, Cíntia.

Mircea Eliade sublinha inúmeras vezes que o homem encontranos mitos “uma explicação do mundo e de seu próprio modo deexistir no mundo” (ELIADE, 1994, p.17). Isso é válido para ohomem arcaico e também para o homem contemporâneo,conforme aponta Martín Sagrera: “... todas essas construçõeslógicas descansam sobre a intuição imediata da realidade, sobreos ‘primeiros princípios’ que lhes dá o mito; e assim, as filosofias,como as mundividências, não são verdadeiras nem falsas (...)”(SAGRERA, 1969, p.169).

Real/imaginário é uma subdivisão demasiado simplista paracaptar as complexidades do mundo. A eliminação de pormenores dasnarrações, a idéia de que, assim, o conhecimento pode se tornarobjetivo, marcaram o início do racionalismo na Grécia Antiga. Oprocedimento “longe das passadas dos seres humanos” conduziriaao que é “adequado e necessário” (MORIN, 1996, p.83). Mas ohomem não se contenta com o objetivismo, que supõe existir apenasum mundo, independente da variedade de percepções e sentimentos.A realidade concreta, pressuposta como um núcleo duro e invariável,é também enxergada significando outra coisa, epifanizando algomais; o homem comum reintegra o real ao imaginário.

Isso ajuda a entender a datação que Cíntia faz do casamento dospais, ele bugre, ela italiana: “Foi quando começou a mistura dasraças”. Essa lembrança a faz recuar mais duas gerações: “Meusbisavós vieram da Itália naquele navio em que vieram todos ositalianos”. O fato histórico da chegada dos bisavós é situado paraalém da data histórica, reside num tempo imemorial, e é comprovadopor ter sido partilhado com muitos outros, já que no mesmo naviovieram todos os italianos que estão hoje no Rio Grande do Sul. Nãoé pela falta de pesquisa documental que a chegada dos bisavós deCíntia ao Brasil não tem data, e sim porque esse fato se situarealmente no começo dos tempos, no instante a-histórico dafundação do mundo, quando começou a mistura das raças.

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A realidade não é dada, não é em si. A coisa não pode serseparada de alguém que a perceba, “ela se põe na extremidade deum olhar ou ao termo de uma investigação sensorial que a investede humanidade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.429). Apesar deo objetivismo querer que exista um só mundo, independente dosujeito, a realidade se instaura quando o homem a percebe — e,por isso, o imaginário funda o real. Querer determinar osignificado de tudo por antecipação, sem levar em conta asubjetividade de um ser que se relaciona com esse tudo, de umasó vez desmitologiza (ou seja, dessacraliza) o mito e criasuperstições.

Gilbert Durand: “Na irremediável ruptura entre a fugacidadeda imagem e a perenidade do sentido que o símbolo constitui,precipita-se a totalidade da cultura humana, como uma mediaçãoperpétua entre a Esperança dos homens e sua condição temporal”(DURAND, 1988, p.110).

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O iconoclasmo no Ocidente

Gilbert Durand nos convida a reter a definição do símbolo“enquanto signo que remete a um indizível e invisível significado,assim sendo obrigado a encarnar concretamente essa adequaçãoque lhe escapa, pelo jogo das redundâncias míticas, rituais,iconográficas que corrigem e completam inesgotavelmente ainadequação” (DURAND, 1988, p.19).

Contra essa “imagem imanente de uma transcendência” queé o símbolo se dirigiram numerosas correntes religiosas efilosóficas. Apesar disso, o simbólico sobrevive, é inerente ao serhumano porque, a partir da consciência da morte, é impossível nãopensar no indizível. O iconoclasmo busca um sentido próprio, maseste sentido próprio não é suficiente: precisamos do figurado,precisamos de imagens.

Temos, em grande parte por causa dos meios eletrônicos decomunicação, nos dias de hoje, uma explosão de imagens icônicas,que já foram muito perseguidas na história ocidental. GilbertDurand mapeia o iconoclasmo no Ocidente (DURAND, 1998,p.10), começando pelo monoteísmo da Bíblia que, no livro doÊxodo, proíbe a criação de qualquer imagem como substituto parao divino. A esse iconoclasmo religioso uniu-se o método daverdade, baseado na lógica binária, herança socrática, que acolheapenas dois valores, um falso e um verdadeiro. As dicotomiasplatônicas e o aristotelismo, postulando a experiência dos fatos eas certezas da lógica como única via de acesso à verdade,consolidaram o princípio da “exclusão de um terceiro”: as coisasse resolvem pelo “ou... ou”. Como a percepção da imagem, porsua ambigüidade, não permite que se elabore uma proposta,verdadeira ou falsa, a imaginação, já aí, foi colocada sob suspeita,numa posição oposta à claridade e precisão que se esperava do real.A escolástica medieval, tentando conciliar a racionalidadearistotélica com as verdades da fé, bem como as experiências de

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Galileu e de Descartes, delimitando um universo mecânico ondenão há espaço para a poesia, são outros momentos do iconoclasmoocidental.

Gilbert Durand vê no empirismo factual de nossos dias maisum marco do horror a um imaginário “cada vez mais confundidocom o delírio, o fantasma do sonho e o irracional”. O queprevalece, então, é o fato aliado ao argumento racional, fato quepode ser tanto derivado da percepção como um evento relacionadoà história. No entanto, esta valorização da “razão e da brutalidadedos fatos” em detrimento do imaginário encontrou muitasresistências no próprio Ocidente: à encarnação do Cristo, imagemconcreta da santidade de Deus, logo se acrescentaria a veneraçãoda imagem de todas as pessoas que tivessem atingido uma certasemelhança com Deus, as representações teatrais dos episódios davida de Cristo e dos santos etc. E, lá onde as imagens pintadas ouesculpidas foram frontalmente proibidas — como no levanteiconoclasta de Lutero e Calvino — o imaginário encontrou outrosespaços de afloramento — a música barroca de Bach, por exemplo.No islamismo, a imagem também foi proibida de tomar um suporteicônico, e explodiu na poesia e nos recitais. E, no final do séculoXVIII, a estética romântica descreveu o sexto sentido, aquele quetem a faculdade de atingir o belo, criando, ao lado da razão, umavia de conhecimento que “privilegia mais a intuição pela imagemdo que a demonstração pela sintaxe” (DURAND, 1998, p.27).

O século XX encontrou a civilização humana não maisreprimindo as imagens, mas quase afogada nelas, comoconseqüência da progressão geométrica da informatização domundo. Não mais importa o ser — tão concreto e grosseiro — maso parecer ser. Estar em rede vai além de estar eletronicamenteplugado: está-se imageticamente ligado ao mundo.

Entretanto, esta multiplicação de imagens eletrônicas, virtuais,a asséptica substituição do roçar-se pelo plugar-se, ao alargarhorizontes da subjetividade num certo sentido — posso descobrir-me diante de milhões de outros receptores, seres humanosmediatos —, estreita-os por outro lado — o ser humano imediatome causa estranhamento.

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A coerção que a abundância de imagens icônicas faz àsubjetividade do homem de hoje é muito parecida com a que oiconoclasmo — o horror à imagem — exerceu sobre o homemocidental. A própria lógica que rege a interação com a imagemicônica eletrônica — rejeitá-la ou aceitá-la — é tão binária quantoa da fundação do iconoclasmo, que não reconhecia a legitimidadedo que não se enquadrasse no ou... ou, como vimos antes. MichelMaffesoli mostra como existe uma ligação entre a não-aceitaçãoda aparência e o horror dos sentidos ou, ainda, o ódio à matéria(MAFFESOLI, 1995, p.90). Ora, a imagem icônica virtual é limpa,imaterial ou, pelo menos, dessubstancializada. Partilhar o mundoatravés dela não exige um corpo fremente.

A atrofia dos sentidos aponta para o que Luís Carlos Restrepochama de analfabetismo afetivo. “A sensibilidade foi desterradadas rotinas produtivas e do campo do saber. Ainda hoje, o amor eo êxito econômico e social parecem andar na contramão. Herdeirosde Alexandre e Abraão, continuamos destruindo a possibilidadeda ternura para ver realizadas nossas ambições.” (RESTREPO,1998, p.23).

Ao preferir o conhecimento através dos receptores a distância,êxtero-receptores como a vista e o ouvido, o Ocidente limitou acognição aos sentidos que se podem exercer mantendo a separaçãocorporal. “Olhem com os olhos, e não com os dedos!”, advertemas professoras quando levam seus alunos a museus e exposições.Olhar e não tocar associa-se a respeito. Conforme Restrepo,exemplifica o desejo de se excluírem as experiências que possamcomprometer o aluno na proximidade e intimidade.

Também o jornalismo parece recear as experiências de corpointeiro. No texto seguinte, quais dos seis sentidos foi exercido nacaptação de dados?

Cinco meses após a abertura de parte do Centro aotrânsito de automóveis, são poucos os motoristas quetrafegam pelas ruas liberadas nos finais de semana. Camelôsvoltaram a ocupar o último trecho aberto à passagem dosveículos, e a quantidade de pedestres afasta os condutores

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de locais como a Marechal Floriano Peixoto e a Rua dosAndradas. O trecho entre a Avenida Otávio Rocha e as ruasdos Andradas, Marechal Floriano e Doutor Flores, liberadoà noite, aos sábados à tarde e aos domingos é usadoprincipalmente por táxis e lotações. Na tarde do últimosábado, nenhum carro passou pelas vias durante um períodode quase duas horas em que Zero Hora esteve no local. Juntoàs calçadas, bancas de camelôs tomam quase um metro dapista, dificultando ainda mais a passagem das lotações, jáprejudicada pelo excesso de pedestres.1

A leitura desse e da maioria dos textos jornalísticos não nosautoriza a dizer que alguém que vê, escuta, cheira, apalpa, provae intui — um ser humano, em suma — esteve no local doacontecimento. Trata-se de uma obliteração sensorial por partejustamente de quem se atribui a missão de “facilitar a comunicaçãodas pessoas com seu mundo”, se nos fiarmos na frase emolduradaque a Zero Hora exibe na entrada da sala de redação.

O desenvolvimento dos meios de comunicação eletrônicos,especialmente a televisão e, nos últimos dez anos, o computadorpessoal, que permite o acesso à World Wide Web, certamentemodifica os modos de sensibilidade, de relação do homem com omundo. O incremento da experiência virtual faz a aproximaçãodo distante, e, num jogo compensatório, talvez, afaste um poucoo que está bastante próximo, fisicamente. Mas não é isso queremete ao iconoclasmo dos media. Esse ocorre quando as imagensque ajudam a pôr em circulação se tornam opacas, têm reduzidoseu poder evocador, através da velocidade e da quantidade deinformações veiculadas. A imagem opaca é ídolo: não envia a ummistério, permanece ali.

1 BURKHARDT, F. Pouco movimento em ruas liberadas. Zero Hora, 27/fev/2002,p. 43.

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Pelo menos 40% das vagas ofertadas no ShoppingPopular já foram preenchidas por 64 camelôs regularesprovenientes de Largo da Bragança — na praça XV deNovembro — e das ruas José Montaury e Vigário José Inácio,no Centro. De acordo com o coordenador do projeto, HeberMoacir dos Santos, as adesões superaram as expectativas daSecretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio(Smic). “Trabalhávamos com a possibilidade de que 30% dosambulantes iriam aderir ao Shopping Popular nesta primeirarodada de negociações”, comentou Santos, destacando queos 180 dias fixados para a instalação do empreendimento sãosuficientes para que se complete o cadastro. O coordenadoresclareceu que a implantação do empreendimento éirreversível. Segundo ele, a resistência das pessoas que estãohá 30 anos estabelecidas nas calçadas é compreensível.“Quando da implantação dos lotações na cidade, nem todosos taxistas apostaram na mudança. Hoje, o sistema é maislucrativo do que o convencional.”2

O texto acima se escreve com as imagens noturnas da adesão(pois menciona a integração dos camelôs ao projeto) e do porvir(o destaque dado à analogia que o coordenador da Smic faz como caso dos taxistas, indicando que, também para os camelôs, otempo vai trazer benefícios), ainda que haja uma promiscuidadecom o regime diurno, nesse último caso, pois o coordenador secoloca em posição de quem já sabe das coisas, e conta com otempo para o esclarecimento dos que, hoje, não podem entender.

Por aí, se constata que fugir da imagem mais evidente, aquelaque se manifesta na descrição minuciosa de uma cena viva, ou deum clima emocional, por exemplo, não é suficiente para livrar ojornalismo do imaginário. No texto acima, lá estão todas essasimagens, adesão, porvir, esclarecimento, ainda que degradadas emdado burocrático pelos procedimentos jornalísticos. Paralisa-se a

2 Shopping Popular atrai 64 camelôs. Correio do Povo, 11/mar/2002, p. 6.

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imagem e se reduz — para não dizer que se aniquila — suacapacidade comunicativa. Esse não é um processo inconsciente,imprevisto na produção dos media. Longe de se estar diante deapenas um efeito colateral, está-se diante de uma opção não só dosmedia, mas de toda a sociedade ocidental: a preferência pelaracionalidade que, formalmente, busca o sentido próprio dascoisas, e não suas evocações fantasmáticas. A reivindicação dorigor dos fatos quer ignorar o imaginário que os motiva e lhes dásignificação.

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Factualidade no jornalismo

O desejo de realismo do jornalismo, a obrigação que eleassume de dar o real, levou à constituição de um sistema detécnicas que implica o uso de certos códigos, mantidos pelarepetição. O desejo de realismo impõe, desde a sua gênese, umjogo entre o falso e o verdadeiro. A verdade estaria nos fatos —no real concreto. Como o real concreto é aquele que se apresentamaterialmente à nossa percepção, há uma deslegitimação dosimbólico, que fala do impalpável.

O real visto como palpabilidade é também opaco, denso.Encarado desse jeito, se torna pesado e se separa do imaginário.Desprendido esquizofrenicamente do imaginário, continua a pesar.É lento, suas mudanças dependem do resto do imaginário, e se dãodefasadamente: quando ocorrem as primeiras, já são necessáriasas segundas, terceiras ou quintas, porque o imaginário assimordena, porque é o imaginário que dá origem a necessidades. Épelo desejo de “dar o real” — e aqui há apropriação de uma idéiaapresentada por Teixeira Coelho (COELHO, 2000, p.209) usadano contexto do cinema, mas que serve também para o caso quequero ilustrar — que o jornalismo apela para a técnica. A técnicaobedece a um sistema, que impõe um código. O código tem em sio pressuposto de sua manutenção, por isso estabelece a repetição.Dar o real se torna uma tarefa burocrática que poucas coisas vaicolocar em relação, pois acaba podando tudo o que não está noformulário da técnica.

As técnicas consolidadas na prática jornalística parecem tenderà dicotomização, como dirá o repórter G., da Zero Hora, maisadiante, em seu depoimento, à página 125: “A dicotomia é umrisco no jornalismo, mas, ao mesmo tempo, ela, com umafreqüência grande até, consegue levar ao público uma noção umpouco mais clara, talvez...” Assim é que o jornalismo reduz os

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camelôs a invasores, pivôs de desentendimentos entre dos donosde lojas e o poder executivo.

Às vésperas do feriadão de Páscoa, o comércio informalde Porto Alegre volta a criar desentendi-mentos entre lojistase a prefeitura. Na tarde de ontem, Quinta-feira Santa, a faixacentral da Rua dos Andradas entre as ruas General Câmarae Marechal Floriano foi totalmente ocupada por barracas ebalaios dos vendedores ambulantes. À venda, cestas depáscoa e coelhos de chocolates de todas as marcas. Segundoo presidente do Sindilojas, José Alceu Marconato, osambulantes realizaram uma invasão no centro da Capital namanhã de ontem. Ele relata como isso ocorreu.

— Foi impressionante. Por volta das 11h, eles começarama chegar e, em poucos minutos, tomaram conta da rua. Oslojistas estão indignados e não sabem a quem se dirigir —afirma Marconato.1

Por causa desse remédio (amargo) que toma em nome da clarezaa ser levada ao público, o jornalismo ignora mundos inteiros que nãotravam, necessariamente, um combate. A matéria citada acima trazuma ilustração em que o rosto de uma compradora de chocolates doscamelôs foi oculto intencionalmente na edição da fotografia. Paraalém da questão legal, a leitura mítica nos indica o desprezo do heróipelos que se desviam da norma. O jornalismo não se interessa pelocliente do camelô, que Cíntia descreve:

Aqui na rua quem compra é o povão, que não tem acesso àslojas, crédito, não tem renda mensal fixa, trabalha de diarista, nãotem cartão, cheque, nada, é ele que é o cliente. Porque quem temvai no shopping, o lojista pensa que nós tiramos o cliente dele,mas não, nós pegamos quem não entra numa loja. Eles procuram...pode ver essa senhora, ela pechinchou para comprar aqui. Eu

1 BARBOSA, M. Camelôs invadem Centro na véspera da Páscoa. Zero Hora, 29/mar/2002. p. 43.

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ganho centavos, mas vendo para ela. Já o lojista não pode, tem osistema burocrático.

Um testemunho como esse não se encaixa no que o jornalismochama de realidade porque, a julgar pela reportagem citada antes,descrevendo o episódio da véspera da Páscoa, o camelô não temclientes: sendo um fora-da-lei, no máximo rouba clientes do lojista.Diz Dulcília Buitoni: “...os fatos divulgados jornalisticamentecorrespondem a uma certa expectativa do que é importante dentrode uma sociedade e por sua vez contribuem para reforçar essaimportância, gerando uma espécie de ‘regras’ de conduta aprova-das ou desaprovadas” (BUITONI, 1985, p.13). (Grifo meu).

Essa certa expectativa a respeito do que importa é a respostaque o imaginário de uma sociedade dá às suas angústias. Oimaginário não se distingue do real porque, precisamente, ele é orelacionador que confere ao mundo seu aspecto contínuo, seja dito,seu sentido. Mais adiante, Dulcília Buitoni continua: “O periódico,além de dizer tudo e falar de tudo, apresenta-se como se fosse averdade, como se ninguém a tivesse manipulado, como se ninguéma tivesse escrito, como se não existisse intermediário entreacontecimento e leitor” (BUITONI, 1985, p.19). (Grifo meu.)Quem é esse intermediário? Não o jornalista, mas o narrador porele criado, como postula Fernando Resende, na sua tese dedoutoramento, desenvolvida e defendida junto ao Núcleo deEpistemologia do Jornalismo da ECA/USP, em junho de 2002.

O jornalismo distingue o real do imaginário ao considerar o realcomo algo único e separado das interpretações, podendo ser tomadoem si, sem ser afetado pelos emaranhamentos do ser humano: é afactualidade. Resende denuncia essa factualidade ao falar daimportância do descolamento do autor do texto jornalístico, aexistência de um narrador que não se confunde com o repórter, e simé uma criação dele. A confusão entre autor e narrador no jornalismoé sustentada pela idéia de que a comunicação jornalística é referencial,ou seja, fala de algo exterior a ela mesma (RESENDE, 2002).

Ora, a indistinção entre o que escreve e o que narra indica adisjunção real/imaginário. Ao acreditar falar de um mundo que lhe

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é externo, o jornalista não se permite criar um narrador, um foconarrativo, como se essa criação fosse introduzir a dúvida acercado narrado: afinal, isso é o que aconteceu ou o que o repórter achaque aconteceu? O repórter que se cola ao narrador é que não éconfiável, porque escreve como se não tivesse estado presente aoacontecimento, afastando da sua reportagem a contextualizaçãodos fatos, a descrição dos personagens — isso seria dar àreportagem um ponto de vista, ou vários. Explicitar o constructoque é cada reportagem, borrando a fronteira real/imaginário, écaminho para a pluralidade.

Em geral, a produção teórica do jornalismo fala da narrativajornalística como sendo uma representação da realidade. Há, aí,a consciência de que o jornalismo não pode apresentar os fatosao leitor, mas fazer somente uma representação deles. Levam-seem conta as mundividências dos envolvidos no processo.

Boris Kossoy mostra como, no âmbito da fotografia, arepresentação parte da primeira realidade (a do fato passado), passapela criatividade do seu autor, toma corpo em um registro e setorna documento do real. Kossoy chama a isso de processo deconstrução de realidades, assinalando o confronto entre a segundarealidade, a do documento, a representação, e a realidade queenvolveu o assunto, objeto do registro, no contexto da vidapassada, a primeira realidade (KOSSOY, 1999, p.46-47).

Retenho de Boris Kossoy a noção de construção de realidades,mas não equiparo essas construções a representações, porque issoreintroduz a descontinuidade real/imaginário: a primeira realidadeseria o real mesmo, e a segunda, o real imaginário. O jornalismoconstrói realidades, sim, no mesmo momento em que é praticado,e isso independe do tipo de narrativa: descarnada ou literária, secaou saborosa. A idéia de segunda realidade me parece trazerembutida uma espécie de hierarquia de realidades, sobrepostas emcamadas. O uso do número ordinal abriga, mais uma vez, o desejode encontrar aquela que não é a segunda nem a terceira realidade,mas sim a realidade absoluta, em cima das quais foram edificadasas demais — ânsia persistente das epistemologias. Eis-nos, denovo, diante da dicotomia real/imaginário; afinal, as segundas,

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terceiras e quintas realidades podem ser mais ou menos reais, umasem relação às outras e em relação ao que seria a primeira realidade— reconhecida como inatingível, mas intimamente sempre almejada.

O que é denominado imaginário é tão real quanto o que édenominado real. Mas, se o real faz parte do imaginário, ondeficaria o limite entre a manipulação das notícias e a imaginaçãodo autor? O mundo fala desse limite. A adesão ao mundo permitenão transpor o limiar em que o borramento das fronteiras real/imaginário se converte numa manipulação de dados e impressões.A relação orgânica entre o sujeito e o mundo é assim resumidapor Merleau-Ponty: “O mundo é inseparável do sujeito, mas deum sujeito que não é senão projeto do mundo, e o sujeito éinseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta”(MERLEAU-PONTY, 1999, p.576). O imaginário, com seusregimes de imagens, não só organiza, como motiva o real.

Da história de Cíntia e dos depoimentos dos camelôsdepreendemos que o cotidiano, pauteiro incontornável dojornalismo, articula os três universos míticos. Veremos, adiante, queo mesmo não ocorre nas reportagens alimentadas por esse dia-a-dia.

O salto do cotidiano para o jornalismo, resulte ele numamatéria mais ou menos extensa, mais ou menos trabalhada, levasempre a assinatura de um ser humano — o repórter. Busquei odepoimento de dois deles, um de cada jornal estudado.Conheçamos L.,2 do Correio do Povo.

2 Utilizo uma letra maiúscula qualquer para identificar e proteger os dois jornalistasque entrevistei porque, ao fazer a leitura mítica de seus depoimentos, em buscade ressonâncias da sociedade, foi inevitável tocar nos seus mitos pessoais que,algumas vezes, indiciam polarizações inibidoras da pluralidade no jornalismo,tendência questionada nessa tese. Não revelar os nomes dos entrevistados serve,assim, para ressaltar que as imagens não pertencem a fulano ou sicrano, e simvisitam coletividades.

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Encontro no Café dos Cataventos

Tomei lugar em uma mesa do Café dos Cataventos, no andartérreo da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre.Espero pela jornalista L., do Correio do Povo. Nunca nos vimosantes e, por isso, no contato telefônico em que marcamos oencontro, descrevemo-nos mutuamente para nos reconhecermos.Resolvo colocar o gravador de modo ostensivo sobre a mesinha,para que L. me localize ao entrar.

Ela chega, vem direto à mesa que ocupo. Veste uma camisaverde. Hoje é dia 21 de março de 2003, e está um pouco maisfresco do que ontem, mas nada abaixo dos 25°C, acho.

L. se senta na cadeira em frente, inclinando-se levemente emminha direção, sobre a mesa coberta com uma toalha quadriculadaem preto e branco. Pede licença para fumar e logo se posicionamais à vontade, com o corpo recostado no espaldar da cadeira, umbraço descansando sobre a mesa e outro esticado para o lado,tentando afastar cigarro e fumaça de mim.

Aos 14 anos, decidiu ser jornalista. Eu sempre quis ser cientista,astronauta, sempre gostei de uma coisas piradas, assim. Então, oque que eu ia fazer que tivesse todas essas coisas?1 A família nãoera a favor, achava o mercado de trabalho do jornalismo muito ruim,mas eu bati pé e tal e fiz, ou seja, a vontade de L. acabouprevalecendo. Começou a faculdade na Unisinos, em 1995. Sua vidade jornalista iniciou quando ainda era estudante e fez um estágio numsemanário de um município perto de Canoas, na Grande PortoAlegre. Fazia tudo, tu sabes jornal de cidade pequena, né? Entãotu és pauteira, tu diagramas, tu tiras foto, tu és repórter, tu éseditora, tu és tudo. Após algum tempo de aprendizado, quando o

1 A partir daqui, até o final deste bloco, os textos em estilo itálico e/ou negrito sãopalavras literais de L.

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serviço se automatizou, ela começou a se desgastar com o chefe,que não ousava umas pautinhas diferentes, sabe? Enfarada como trabalho, tentou montar uma assessoria de imprensa com umaamiga, mas não deu certo, imagina, duas gurias de 19 anos,nenhuma queria vender, que é uma coisa essencial pra quem vaifazer assessoria. O próximo trabalho foi como estagiária da rádioUnisinos. Lá ficou até alguns meses depois da sua formatura, nofinal do ano 2000. Trabalhou a seguir no Jornal do Comércio,veículo diário impresso e, em 2001, entrou no Correio do Povo,onde está até hoje.

Aos 25 anos, L. sente na profissão o mesmo encanto de quandoa escolheu, aos 14, ainda que, então, a imaginasse com umpouquinho mais de brilho. Ela fala, as mãos gesticulam:

— Muito mais glamour, né? O que me atraía foi eu terpossibilidade de fazer muitas coisas que a maioria das pessoasnão tem possibilidade. E isso eu acho que ainda existe. Aprofissão tem um glamour, mas na verdade, nosso dia-a-dianão é tão glamouroso como as pessoas pensam, né? Minhavizinha, por exemplo, me acha um ser de outro planeta,porque, às vezes ela sai de manhã, eu estou indo para SãoPaulo e estou voltando no final da tarde. Aí, amanhã eu voupara o Rio e volto... ela me acha um ser de outro planeta.

Impulsionada por desafios, L. conta com as forças do regimediurno na organização das imagens que solucionam sua angústiabásica, o medo de se tornar indistinguível num cotidiano amorfo,previsível. O imprevisível, fonte de sofrimento para quem ama arotina, é magnético para L., que gosta da sensação de não saber oque irei fazer quando chego na redação; assim como possoentrevistar o governador, posso ir para uma rebelião em algumpresídio. Isso me excita.

O garçom se aproxima e, apesar de só estarmos tomando águamineral, coloca alguns envelopes de açúcar sobre a nossa mesa.L. ajeita o cabelo atrás da orelha direita, que reparo portar doisbrincos. Para ela, o glamour da profissão resistiu, mas não impediuas decepções:

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— Obviamente, há coisas de Prefeitura que eu tenho quecobrir, de Câmara, óbvio, porque esses são os centros de poderda sociedade. Ponto. Agora, não preciso basear o meu jornalno que vem da Prefeitura, no que vem da... sabe? Ou no quevem das instituições que anunciam no jornal. As famosas 500.1Não sou contra as 500, porque elas são uma forma desubsistência do jornal. Agora, não pode fazer com que umaedição e a tua linha editorial seja norteada só por isso.

As imagens solares do poder e da obviedade de o jornalismoter de lhe dar a palavra justificam, para L., os hábitos jornalísticosna escolha de fontes, mas não são suficientes para tratar direito oassunto. Ela franze a testa e acende outro cigarro:

— Tu tens que dar subsídios para o teu leitor formular umpensamento a respeito daquilo. No caso dos camelôs, porexemplo, não adianta só colocar a posição da Smic e dos camelôse o cara dizer, bom, a Smic está certa, a Smic está errada. Não éum assunto linear. Tu pegas um case de um cara desses, daondeele saiu, porque ele foi virar camelô, sabe? Tu vês, assim, quetem famílias que vivem daquilo. Tem famílias inteiras, de seis,sete, oito pessoas que vivem daquela banquinha que o cara botaali para vender gilete, prestobarba roubado, e isso tu tens queanalisar. Outro viés, também, que tu podes ter é que muitos sãoprodutos roubados, contrabandeados e tal... Qual prejuízo queisso traz em termos de imposto? Tem milhares de possibilidades,mas sempre com o objetivo de dar subsídios pro leitor.

A idealização que L. faz do tratamento do assunto, portanto,não escapa das imagens diurnas que orientam a prática jáestabelecida; antes, constelam com elas. Assim, o objetivo dojornalismo seria fazer as pessoas pensarem. No exemplo doscamelôs, as alternativas estariam em analisar a situação deles, afim de entender que existem seis, sete, oito pessoas que vivemdaquela banquinha. L. cita, entre os objetos vendidos peloscamelôs, prestobarba roubado, o que a lembra de um outroaspecto a ser abordado pelo jornalismo ideal, o prejuízo em termosde impostos causado pelo comércio ambulante.

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— Quando tu sais pra fazer uma reportagem, quais são asqualidades que tu buscas para ela?

— Primeira coisa que eu primo na minha matéria é aprecisão dos dados. Então, se é 72,008 — e ela bate com a mãoem cima da mesa, marcando cada um dos algarismos — é 72,008— ela repete o gesto de bater, suas unhas têm um comprimentomédio, pintadas de rosa-claro — que vai sair na matéria. Outracoisa que eu gosto também, muito, é ter objetividade, sem ficarfazendo firula, ou coisa assim. E eu detono pauta mesmo. Tipo,é bobagem, e eu chego para o editor e digo: eu não vou fazer issoaqui porque isso aqui é bobagem. Como já aconteceu, assim, defazer seminário de cardiologista. Como é que eu vou fazer umseminário de cardiologia? O cara ensinando técnicas para oscaras, como é que eu vou fazer matéria disso? Eu não cubro áreatécnica de saúde. Se fosse para uma revista especializada paramédicos, tudo bem. Agora, um jornal diário não pode.

No que têm de abstração, os números são imagens organizadasno regime diurno, assim como o julgamento, a separação entre oque é bobagem e o que não é. No exemplo que L. traz, o princípiode exclusão justifica seu entendimento de que um assunto comocardiologia não interessaria ao leitor de um jornal diário, e simaos especialistas da área.

A abstração diurna não aglutina sozinha as imagens dodepoimento de L.. Para relatar o que lhe vai na cabeça, ela recorre,quase sempre, a exemplos, e dificilmente desenvolve umateorização. Entre as coisas que ela conta buscar nas reportagensestá a descoberta de, numa pauta, vieses para fazer uma matériaespecial:

— Vou te dar um exemplo. Essa semana, fui ver um espaçonovo que abriu no Mercado Público, que é para as cidades dointerior virem pra Porto Alegre mostrarem seus produtos,para que as pessoas de Porto Alegre vão até lá e conheçam.Aí, eu descobri que em Santo Antônio da Patrulha eles tãofazendo um grupo com dez alambiques para ir para uma feirae fazer cachaça exportação. Não é cachaça 51. São alambiques,né? Ou seja, isso é uma matéria muito legal que dá pra fazer,

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quer dizer... E é uma coisa que está recebendo incentivo dogoverno do Estado e tal. Só que ninguém sabe. Aí eu cheguei,fui fazer, e eu tinha dez linhas para escrever. Aí deixei a históriadesse grupo dos alambiques. Tá guardada dentro da minhagaveta, eu fiz a matéria, tá pronta. Aí vai chegar um fim-de-semana que eu vou dizer: ah, tem isso aqui! E daí vou dar amatéria pra eles. Porque daí eu não queimo os caras,entendeu? Porque isso é uma coisa que acontece muito ali nojornal. Tu chega, pá, entrevista, pá, tira dúvida, não sei o quê,não sei o quê, e depois tu chega e tá desse tamanho a matéria.Isso acaba acontecendo e tu te queima com os caras.

A orientação noturna se faz presente quando L. obtém ocontrole da situação que vive através da narrativa, da historinhaem que ela faz interagirem os elementos que quer expor. Ao falardo papel do jornalismo, enquanto o garçom arruma com estrondoalguns talheres no balcão atrás de nós, novamente as imagens seagrupam num universo heróico:

— Um termo bem dessa guerra aí: ele (o jornalismo) informae desinforma. Contra-informa. Em função daquilo tudo que agente já sabe, interesse econômico tãrãrã-tãrãrã-tãrãrã, que agente tá cansado de discutir e falar. A mídia de uma forma geral,e o jornalismo contribui muito com isso, ele cria nas pessoasnecessidades e realidades que não são reais, né?

A profissão de L. é uma guerra com episódios de pureza eimpureza (informa e desinforma). Investido do poder de criarnecessidades e realidades que não são reais, o jornalismo édescrito com traços de uma soberania uraniana, que coloca emdestaque certos temas para depois lançá-los na invisibilidade,apagando-o da memória do leitor:

— Saiu bastante coisa dos camelôs, mas parou. E oscamelôs continuam na rua. Um problema da cidade,econômico, social, é deixado de lado. E aí? A pessoa que abrejornal diz: bom, acabaram os camelôs? Não, não acabaramos camelôs. Mas o jornal simplesmente fechou os olhos praisso. Quer dizer, enquanto interessava foi saindo, foi saindo,foi saindo, foi saindo. Quando eles pararam de fazer, ninguém

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mais chegou e disse: “Os camelôs continuam aí, a Secretariajá arranjou alguma solução?” De repente, no imagináriocoletivo das pessoas, acabou o problema — ela esmaga o cigarrono cinzeiro. — A pessoa tá vendo aquele problema na rua, maspor que o jornal que ela assina, ou que ela compra diariamentana banca, deixou de falar desse assunto?

A imagem uraniana que L. utiliza para criticar sua profissãonão recebe uma alternativa, e sim um reforço:

— O jornalismo não cumpre com o seu papel de construiras pessoas, para que elas tenham raciocínios e posições arespeito daquele assunto que foi tratado. Ele não faz isso.Raramente se faz isso.

Ora, o gigantismo e o poder do jornalismo continuaminalterados na hipotética transformação de criador de realidadesirreais a construtor de pessoas. Mas, além disso, L. vê, no jornal,espaços para mostrar...

— ...que a sociedade se mobiliza para ajudar os outros, elatem coisas boas. Tu tens que botar a pessoa comum dentro dojornal. Por que são só os fantasiosos, os detentores de poder,os bonitos, os famosos que podem estar no jornal? Não, opobre pode estar num jornal, e não só na área de polícia. Elastêm muita coisa a falar. Os donos do jornal acham que não.Por quê? Porque essas pessoas não vendem jornal? Nãovendem jornal naquelas, né? Porque se tu entrares na favelae pegares um monte de gente pobre, passando fome e tãrãrã-tãrãrã-tãrãrã, e botares isso na capa do jornal, vende. Mas aítu tens que pegar a mazela, tu tens que explorar aquela pessoa.

Enquanto fala, as mãos de L. se juntam no ar, depois seseparam, sempre batendo na mesa a cada mudança de rota, comoum pouso só realizado para impulsionar melhor o vôo.

— Por exemplo. Percorri o interior do Rio Grande do Sulnos municípios atingidos pela seca. De cada lugar, eu saía comum dilema ético: eu estou usando essa pessoa? Ela tem quecaminhar quatro quilômetros para buscar água, para comer,para tomar, para se vestir, para fazer comida, a pouca comidaque tem dentro de casa. Ou eu estou mostrando isso para que

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essa pessoa possa receber ajuda? Eu ainda não cheguei a essaconclusão.

Duas imagens diurnas formam o dilema ético de L., que sepergunta sobre o papel a desempenhar: o de dominadora, estouusando essa pessoa?, ou o de esclarecedora, estou mostrando issopara que essa pessoa possa receber ajuda? A resposta do dilemaé encontrada no mesmo universo heróico que o originou:

— Isso tudo é muito complicado e te exige valores que aprofissão não te dá. Bem pelo contrário, a tendência daprofissão e do mercado de trabalho é te tirar esses valores quetu aprendes com a tua família, com a tua construção, que tutrazes lá desde os teus dois, três anos, sabe? Ser ético, ser umaboa pessoa, ser verdadeiro, ser honesto, ser... sabe?

Joga os cabelos para um lado só da cabeça. Pelo que estouentendendo, ela fala de não se deixar corromper pela profissão:

— A tendência do jornalismo é te tirar tudo isso, porqueeu quero te ralar, eu quero fazer a pauta antes de ti, eu queroter mais coisas do que tu, quer dizer... Tu tens que ter muitocuidado com isso, seja no relacionamento com a fonte, seja comos teus colegas. O mais complicado é essa história de tumanteres os teus valores, porque tu acabas vendendo coisas esendo obrigada, muitas vezes, pela tua empresa porque tu ésempregada da tua empresa. Tu ficas, às vezes, de mãos atadas.

L. enfrenta inúmeros perigos, tens que ter muito cuidado comisso, chegando a ser imobilizada pelas pressões que se exercemsobre ela, tu ficas, às vezes, de mão atadas.

— Mas, aí eu volto para questão de ser foca,1 eu ainda achoque tu podes conseguir fazer essas coisas, tentar fazer umtrabalho ético. (...) Mas tem aquela história: ou tu entras noesquema ou tu estás fora dele. Eu acho que tu podes entrarno esquema sem te afundar. (...) Eu digo assim, que sou foca,porque eu ainda quero mudar algumas coisas. É até nessesentido que eu estou falando, de tu seres ética com as tuasfontes. (...) Eu procuro poder chegar, deitar minha cabecinhae dizer assim, ó: eu fiz direito. Acho que isso é muitoimportante. Tu poderes ter a consciência limpa (...).

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Querer entrar no esquema sem afundar não é, pois, um modode harmonizar as imagens opostas da distinção e da confusão, masum recurso para, de dentro própria morada do inimigo, melhorcombatê-lo. A guerreira solar permanece iluminada por seuidealismo original, sou foca, ainda quero mudar algumas coisas,pela retidão, eu fiz direito, e pela pureza, ter a consciência limpa.

Em meio a esse jogo de forças, onde fica a expressão pessoaldo jornalista? Ela se vira de lado e tosse ligeiramente antes deresponder:

— Começa pela forma como tu elencas as informações alidentro. Pela forma como tu apura as informações: não, essainformação para mim é mais importante, essa é menosimportante, essa... Quer dizer, não existe essa questão deisenção. Isso, para mim, sempre foi uma balela no jornalismo.A única maneira de alcançar a isenção seria colocar todas asinformações no computador e deixar o computador fazer aseleção do que ia para o jornal. Se é que fosse possível, se agente tivesse um programa pra determinar qual é a maisimportante, saísse com a lista das mais importantes.

O pressuposto de que o ser humano, se retirando da cena,tornaria possível a isenção traz embutida a imagem da justiçasuprema alcançada pela clareza e distinção, inatingíveis para omortal comum, enredado em suas emoções que o distanciam daverdade. Se a imprevisibilidade da profissão seduz L., oindeterminado a perturba:

— Por exemplo, para mim é muito importante determi-nado fato, mas para ti não interessa. E essa é a coisa maisdifícil, sabe? Essa é uma coisa que eu não consigo, sabe? Eucanso de chegar, porque eu não tenho vergonha, eu canso dechegar para os meus editores e perguntar: por onde eu abro?2

Eu tenho isso, isso, isso, isso, isso e isso. Óbvio, tem matériasque, obviamente, tá na cara o que que é. Mas tem coisas quetu não consegues determinar, assim...

2 Isto é, “qual informação eu coloco no início do texto?”.

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E os camelôs, qual é o papel deles para essa jornalista em quemas forças solares tantas vezes se juntam, organizando estratégiasde vida? A mão que segura o cigarro se ergue no ar:

— Raramente eu compro em camelô. Raramente. Eucomeço por aí.

Voltando a esticar o braço sobre o espaldar da cadeira vaziaque está a seu lado, prossegue:

— Eu não digo que todos estão ali porque foram levados aisso, não. Muitos estão ali porque optaram por isso. Mas vejoque também são um reflexo da nossa sociedade, da falta deoportunidades, da falta de formação.

Quer dizer, um cara que tem 40 anos, por exemplo, e quemal sabe ler e escrever e tem, provavelmente, mais de cincofilhos, ele tem que trazer dinheiro pra casa... Eu tenho muitoessa história de ficar preocupada, de não ver aquela pessoacomo um cara que está indo contra a lei, que tá deix..., sabe?Sei que tem muita gente sem-vergonha, sei. E que muita gentefaz aquilo porque é vagabundo, porque é isso, porque é aq...Enfim, não interessa. Tu tens que saber diferenciar o joio dotrigo. (...) Por outro lado, eles são um problema para a cidade.Já cansei de brigar com camelô porque tu vais andar na rua,tu não consegues andar na rua. Tem essa questão geográfica,tem a questão de poluição visual. Os centros de cidades,geralmente, são de uma estética baixíssima, ao mesmo tempoque têm prédios maravilhosos e históricos. Então, daí tucolocas esses camelôs, piora, né? Questão de higiene, tãrãrã-tãrãrã-tãrãrã. E também a questão legal, muita coisa écontrabando, é coisa roubada, é carga roubada. (...) Isso semfalar na questão de imposto, bã, bã, bã. Eu, como é que euposso te dizer? Eu não os considero nem vilões, nem heróis.Eu não consegui, ainda, ter uma opinião formada deles,assim... (...) Tu tens o argumento de que essas pessoas queremtrabalhar. (...) Agora, como vai se resolver isso? Não tenho amenor idéia. (Suspira).

Em L., a ação de distinguir é bastante praticada, tu tens quesaber diferenciar o joio do trigo, levando ao julgamento, eles são

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um problema para a cidade, a despeito da preocupação de nãoincorrer em erro político, eu tenho muito essa história de ficarpreocupada, de não ver aquela pessoa como um cara que está indocontra a lei. Imagens de sufocamento, tu não consegues andar narua, de feiúra, centros de cidades são de uma estética baixíssima,(...) daí tu colocas esses camelôs, piora, de sujeira, questão dehigiene, de ilegalidade, muita coisa é contrabando e de prejuízodo bem comum, sem falar na questão de imposto. L. demonstraque tudo isso é bem conhecido de todos, substituindo hipotéticositens da lista que faz por recursos vocais, tãrãrã-tãrãrã-tãrãrã,bã, bã, bã, além de terminar algumas frases um tantoabruptamente, faz aquilo porque é vagabundo, porque é isso,porque é aq..., para bom entendedor, meia palavra basta, ele temque trazer dinheiro pra casa... que tá deix..., sabe? É a imagemda auto-evidência, da clareza que torna as coisas óbvias.

Com sua atitude imaginativa bastante polarizada no regimediurno, L., mesmo portando toda a energia impetuosa do herói,fica sem saber o que concluir, eu não consegui, ainda, ter umaopinião formada deles, assim... Ao constatar, afinal, suaimpotência, essa Atena39 suspira. É ainda o ar lustral que lhe saidos pulmões? Ou um gesto noturno, um recolhimento para dentrode si, à procura de respostas diferentes das de costume?

Desligo o gravador, vamos até o caixa para pagar nossas águasminerais. Já é tardezinha, um ventinho bom sopra do rio Guaíbapara a Rua da Praia. Caminhamos devagar, não porque a calçadaesteja cheia de gente, e está, mas porque jogamos conversa fora,uns assuntinhos femininos. Poucos metros depois, despeço-medela com um abraço, e cada uma segue para seu lado.

3 Deusa grega que, ao nascer, já investida de armadura e capacete, emitiu umressoante grito de guerra. Gostava da arte bélica, de golpes executados cominteligência, da coragem inspirada por um ideal. Dicionário de mitologia p. 202.

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Objetividade iconoclasta

O papel do jornalismo é, comumente, entendido como o datransmissão de informações da atualidade. Segundo José Marquesde Melo, após o triunfo da Revolução Burguesa surgem, naEuropa, duas formas distintas de jornalismo: a francesa,apaixonada, vibrante e impetuosa, “predominando o fluxo dainterpretação da realidade”, e a inglesa, racional, comedida,contida, “imperando o relato dos acontecimentos, isolado docomentário” (MELO, 1985, p.7). O jornalismo inglês trouxe amáxima: “o comentário é livre, mas os fatos são sagrados”(OLSON apud MELO, 1985, p.9), colocando em evidência aquestão da objetividade jornalística.

A idéia de objetividade jornalística se associa a várias outras,na prática e na teorização do jornalismo. Se um dia foi vista comosinônimo de verdade absoluta, a reflexão teórica mostrou que éimpossível alcançá-la, pois “entre o fato e a versão que delepublica qualquer veículo de comunicação de massa há a mediaçãode um jornalista (não raro, de vários jornalistas), que carregaconsigo toda uma formação cultural, todo um background pessoal,eventualmente opiniões muito firmes a respeito do fato que estátestemunhando, o que o leva a ver o fato de maneira distinta deoutro companheiro, com formação, background e opiniõesdiversas” (ROSSI, 1994, p.10-11).

Nas práticas jornalísticas, no entanto, a objetividade seconvertia em técnica de combate à mentira sensacionalista. Nosmanuais de redação dos jornais, a objetividade virou norma deestilo, significando síntese: “captação do máximo possível deinformações com o mínimo possível de palavras” (MELO, 1985,p.13). Hoje, segundo José Marques de Melo, objetividade nojornalismo “implica em pluralidade de observação e de relato. (...)Em síntese: corresponde a assegurar que os acontecimentos sejam

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captados e reproduzidos sob diferentes ângulos, gerando distintasversões, honestamente registradas pelos seus protagonistasprivilegiados — os jornalistas profissionais” (MELO, 1985, p.18).Nesse pequeno trecho, denuncia-se a ambição jornalística decaptar acontecimentos e reproduzi-los, como se fossem objetosconcretos, passíveis de serem recortados da fria realidade eobservados a partir de um ponto privilegiado, sendo as versõessimples variações do ponto de observação. Além disso, aatribuição da protagonização dos fatos ao jornalista trai umaconcepção arrogante do trabalho jornalístico. Ora, nem ojornalismo nem outro campo do saber pode caçar a realidade eenjaulá-la para observá-la. No entanto, o objetivismo que acreditanum mundo estático e comprovável por trás das percepçõesenganadoras do ser humano é uma idéia, senão explicitada, pelomenos vivenciada nas práticas e discursos jornalísticos.

Ouçamos o diretor de um dos maiores jornais do Brasil, aFolha de S.Paulo, Otávio Frias Filho, que faz a crítica da críticada objetividade:

A experiência recente da Folha se enquadra numa espéciede crítica à crítica da objetividade. Isso tem significado trêscoisas. Primeiro, recuperar a dimensão factual do mundo queo jornal registra, factual no sentido de ser verificável forada linguagem. Segundo, estabelecer um método, que pode serbom ou mau, tanto faz, mas que por ter uma aplicaçãorigorosa e impessoal fixa um mesmo olhar e permite assimque os contornos da realidade e seus acidentes, disfarçadospela nuvem da ideologia, apareçam ao leitor atento. Terceiro,utilizar a técnica do confronto ali onde não há experiênciafactual, no mundo das idéias e das versões, onde cada versãocritica uma outra, de forma que elas se combatam até quereste, algum dia, um esqueleto de verdade. Como o ‘presentecontém todo o passado’, essa atitude não é somente umataque ao subjetivismo cômodo, porque simplesmenterenunciava ao enigma da verdade, dos anos 60-70. Elaalcança também o jornalismo da idade do ouro, através de

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uma crítica que assumiu a forma da paródia e dahomenagem. (FRIAS FILHO apud SILVA, 1991, p.103).

Temos, aí, ativo, o que Durand chamou de regime diurno doimaginário:1 a procura da verdade incorruptível através docombate, o olhar único, resultado de uma aplicação rigorosa eimpessoal de um método derivam da atitude imaginativa de buscar“no sobre-humano da transcendência e da pureza das essências”(DURAND, 1997, p.47) um antídoto para a angústia do devir. Háa preocupação “da reconquista de uma potência perdida, de umtônus degradado pela queda” quando, nos anos 60-70, segundoFrias Filho, o jornalismo renunciou ao enigma da verdade. Estareconquista se faz, no caso, pelo guerreiro, que, numa posiçãoelevada, purgada tanto quanto possível da contaminação comideologias, lança aos fatos seu olhar onisciente e, no caso dedivergências, combate até destruir tudo o que não for a verdade.

A idéia de que o jornalismo deve, simplesmente, difundirinformações imparciais se calca na ambição cientificista de constituirum campo exato de conhecimento, ambição tão mais diurna quantomais racionalista. Gilbert Durand denuncia o abuso, pelo Ocidente,do regime diurno do imaginário, com seu desejo de desmistificar aconsciência, com seu esforço de reduzir o indivíduo humano a umacoisa simples, perfeitamente determinada:

... se o ‘eu penso’ experimenta bem o ser, há pensamentosque degradam essa consciência de ser porque o alienam emobjeto e finalmente na morte. Esses são precisamente ospensamentos iconoclastas, tão costumeiros à nossa civilizaçãoe que consistem em se submeter ao mundo do objeto, sob as

1 Relembro que a bipartição dos regimes do imaginário feita por Gilbert Durandcoloca no regime diurno a luz, com a tecnologia das armas, a sociologia do magosoberano e guerreiro, os rituais da elevação e da purificação, opondo-se às trevasdo regime noturno, com as técnicas do continente e habitat, os valores alimentarese digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, bem como as técnicas dociclo, do calendário agrícola, da indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiaisdo retorno, os dramas e mitos astrobiológicos. As estruturas antropológicas doimaginário, p. 58.

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tranqüili-zadoras modalidades da res extensa, enquanto oespírito e o ser que ele revela só teriam como herança o nadade uma duração insignificante e portadora da morte, uma vezque ao ser seria proposto apenas a escolha desesperada de serpara o mundo ou para a morte. (DURAND, 1997, p.432-433).

A crise de paradigmas que se vivencia hoje solicita uma atitudemenos purista, menos odiosa ao senso comum, e nem por issoapaziguadora. Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, aoanalisar a produção da ciência, diz que existem dois fôlegos: oprimeiro é o da construção dogmática, o segundo é o dadesconstrução ou desdogmatização, hoje conhecido como crise deparadigmas. A dogmatização corresponde à crise de crescimento; adesdogmatização, à crise de degenerescência. Na crise decrescimento, o discurso científico se separa do senso comum, dodiscurso artístico, do discurso religioso e do mítico. É a primeiraruptura epistemológica. Na crise de degenerescência, a ciênciapercebe que está sendo conformadora, e não transformadora. Asconseqüências sociais e humanas da ciência pedem à consciênciacientífica uma retomada do diálogo com o saber comum e comos demais saberes. (SANTOS, 1989, p.18 e ss).

Segundo Santos, o paradigma da ciência moderna, da crise decrescimento da ciência, se constituiu contra o senso comum,recusando se orientar para a vida prática. Nele, a relação eu/tu étransformada em sujeito/objeto, subordinando o objeto ao sujeito.O único conhecimento válido seria o científico, por causa daobjetividade; e a objetividade é alcançada através da separação entreteoria e prática, ciência e ética. O observável é reduzido aomensurável, e o rigor é reduzido ao rigor matemático. Assim foramdesqualificadas as qualidades não mensuráveis, que são exata-menteas que dão sentido às práticas e ao senso comum.

O sociólogo português considera próprio da crise de crescimentoda ciência desconfiar das aparências, bem como distinguir relevantede irrelevante, deixando-se de reconhecer o que não se quer ou nãose pode reconhecer. A julgar pelo testemunho da repórter L., ojornalismo, embora não participe de uma definição mais estrita deciência, se encontra nessa crise:

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E eu detono pauta mesmo. Tipo, é bobagem, e eu chego parao editor e digo: eu não vou fazer isso aqui porque isso aqui ébobagem. Como já aconteceu, assim, de fazer seminário decardiologista. Como é que eu vou fazer um seminário decardiologia? O cara ensinando técnicas para os caras, como éque eu vou fazer matéria disso? Eu não cubro área técnica desaúde. Se fosse para uma revista especializada para médicos,tudo bem. Agora, um jornal diário não pode.

Há avanço na especialização e profissionalização doconhecimento, gerando mais simbiose entre saber e poder, excluindoleigos, que se vêem à margem da competência cognitiva, desarmadosdesse tipo de poder. Produzem-se discursos sem imagens nemmetáforas, desencantados e incompatíveis com os discursos normaisda sociedade (SANTOS, 1989, p.34-35). No jornalismo, issocostuma ser visto como objetividade.

Estudando a questão da objetividade nos manuais de redação,a jornalista Patrícia Patrício, na sua dissertação de mestradodesenvolvida junto ao Núcleo de Epistemologia do Jornalismo daECA/USP, apresentada em 2002, alerta para uma outra presunção,tão grande quanto a de “supor um posicionamento objetivo do eu”,que é a ambição de “querer penetrar completamente no tu”.Todorov diz o mesmo de outra forma: para conhecer o outro, opreconceito de igualdade é um obstáculo tanto quanto o desuperioridade, ou ainda maior, pois ele identifica, simplistamente,“o outro a seu próprio ideal do eu (ou a seu eu)” (TODOROV,1999, p.199). Na trilha da segunda ruptura epistemológicadetectada por Boaventura de Sousa Santos, e valendo-se do legadode Habermas, Patrícia Patrício propõe a transubjetividade:

A objetividade, noção surgida do eu subjetivo, jamais poderáser alcançada em sua plenitude. Porém, se cada um se fecharem sua própria subjetividade, não existe comunicação.Portanto, a saída possível é exercitar a intersubjetividade, odiálogo do eu com o outro, e mais, a transubjeti-vidade,articulação entre objetividade, subjetividade, normatividade e

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inter-subjetividade. Isso não significa, simplesmente, reproduzirdeclarações, mas fazer com que dialoguem entre si, abrir osporos para o não dito, produzindo significados ricos, queajudem na compreensão/apreensão da realidade. (PATRICIO,2002, p.105).

Não se trata de apresentar a realidade como ela é ao receptor,ambição objetivista, mas também não é o caso de assumir a própriasubjetividade como detentora da verdade e impô-la aos outros,numa corrupção do papel do autor. Pede-se ao jornalista humildadepara assumir que não sabe tudo, e coragem para não se deixartiranizar pelas exigências de objetividade que mais servem paraencobrir contradições do processo de produção jornalística do quea intenções de honestidade. Muito mais do que se manter friodiante dos fatos, a profissão de jornalista exige uma capacidaderelacionadora para compreender um mundo que se apresentacomplexo. Essa preocupação se impõe ao repórter G., da ZeroHora.

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Serão os olhos janelas da alma?

O prédio da Zero Hora, em Porto Alegre, batido pela luz dosol por todos os lados, multiplica reflexos nas suas grandesvidraças. Começa a tarde do dia 27 de março de 2003, quente, semnuvens, e estou aqui para tomar o depoimento do jornalista G. Eletem 26 anos e é formado em jornalismo há quatro. Sua vidaprofissional começou no início da faculdade, quando era estagiárioda rádio Gaúcha, empresa do mesmo grupo da Zero Hora, a RBS.Depois, foi para a sucursal da Gazeta Mercantil em Porto Alegre,porque queria mesmo trabalhar com jornal impresso. Há três anose meio faz parte da redação da Zero Hora.

Aguardo no saguão do quarto andar. Na parede, há um quadrocom a missão da empresa: “Facilitar a comunicação das pessoascom o seu mundo”. Sobre a parede que acompanha a escadaria,um pôster com a primeira página da edição de 9 de agosto de 1990:“Tensão, tumulto e morte”. Lembro muito bem dessa edição,porque debrucei-me sobre ela durante os meses em que fiz otrabalho de conclusão do curso de jornalismo, na UFRGS, em1991, estudando a cobertura do jornalismo impresso sobre oconflito da Praça da Matriz, em que os policiais da Brigada Militare o Movimento dos Sem-Terra se envolveram numa luta comfacões, enxadas e armas de fogo. Ver a foto daquele agricultor, decostas para a câmera, empunhando uma foice inclinada em direçãoao grupo de policiais enfileirados do lado de lá da cena foi quasecomo encontrar uma velha conhecida (a foto) num territórioestrangeiro (prédio da Zero Hora).

Além desses dois quadros, há também alguns avisos deproibido fumar pelas paredes atrás da recepção. Num canto, entreo elevador e a escada, um sofá. Acima dele, na parede: “É proibidofumar neste local”. Sentada, uma moça, fumando. Ela não pareceesperar por ninguém, imagino que seja uma jornalista no seu

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momento de pausa. Sentados nos primeiros degraus da escada,mais funcionários, fumando.

Essa é a segunda vez que piso aqui, hoje. Na primeira, G. nãoestava, pois tinha saído para uma pauta emergencial. Por telefone,ele me disse que retornaria em questão de uma hora. Dei umacaminhada pelos arredores, para matar o tempo, e eis-me de volta.

Não terminei ainda de examinar todos os detalhes do saguão,e meu entrevistado surge, num passo ligeiro, desculpando-se peloatraso. O sofá já foi desocupado pela moça que fumava. G. se sentasem se recostar, com os ombros ligeiramente projetados para afrente. Sua expectativa de que a entrevista seja rápida é evidente.Obrigo-me a me postar do mesmo jeito que ele, sem apoiar ascostas, como se estivesse pronta para me levantar a qualquermomento. Ligo o gravador.

G. me conta que se formou na PUCRS (Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio Grande do Sul), em 1999. Sua famíla cultivava aidéia de que os jornalistas eram chatos, a profissão, repugnante.Marcado pela aversão familiar a jornalistas, ele, apesar de gostarmuito de ler e escrever, decidiu fazer o vestibular para Arquitetura,na UFRGS. Estava convencido de que ia passar, mas rodou.Resolveu, então, prestar vestibular na PUCRS, para Publicidade.Namorava uma garota que fazia Jornalismo, lá. Um pouco porinfluência dela, e um pouco e muito pelas descobertas que fiz sobrejornalismo dentro da faculdade, a profissão acabou meconquistando assim, foi arrebatador.1 No ano seguinte, fez de novoo vestibular de Arquitetura, na UFRGS; passou. Ingressou tambémno curso de Jornalismo da PUCRS, e começou a cursar as duasfaculdades ao mesmo tempo. Quando não foi mais possível, pornecessidade de um estágio, tinha que escolher. Escolhi o jornalismoporque cheguei à conclusão de que... tinha sido mordido.

Não é por acaso que G. ingressa no jornalismo, territóriodesejado, mas proibido, pela mão de uma mulher. A namorada dele

1 A partir daqui, e até o fim desse bloco, os textos em estilo itálico e/ou negritosão palavras literais de G.

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é, nesse momento, uma espécie de sereia, seduzindo-o e levando-o para a profissão mal-vista pela família. Ele, certamente, já sentia,antes disso, uma inclinação para o jornalismo, pois frisa o quantogostava de ler e escrever desde a adolescência. A imagemfeminina, na sua ambigüidade terrorífica e acolhedora, atraindoG. para o terreno interdito pela família e encorajando o seu desejo,vem solucionar a angústia. Do pólo heróico, diurno, em que ojornalismo é julgado e condenado, então recriminava, por tabela,a profissão de jornalista, passa-se ao pólo místico, noturno, ondeo êxtase se instaura, a profissão acabou me conquistando assim,foi arrebatador. Há uma inversão da repugnância à atração; há algode dionisíaco no ingresso no jornalismo, um prazer em serenvenenado, cheguei à conclusão de que... tinha sido mordido. Amanducação, aqui, é imagem do universo místico.

— Como tu idealizavas a profissão antes daquela primeiraexperiência, no estágio na rádio?

— Eu acho que eu tinha uma boa noção do que eratrabalhar com o jornalismo, do que eu ia enfrentar,justamente, talvez, por ter esse preconceito caseiro, eu jáestava muito vacinado quando fui fazer jornalismo. Eu sabiaque, se quisesse ser um bom jornalista, teria de manter certosprincípios éticos, valores, que eu cultivava como pessoa, queeu cultivo até hoje. Obviamente que o jornalismo acaba teensinando algumas lições. A prática, para mim, foi muitoparecida com o que eu imaginava.

Imagens realistas (eu tinha uma boa noção do que era tabalharcom o jornalismo), prudentes (já estava muito vacinado),perseverantes (teria de manter certos princípios éticos, valores,que eu cultivava como pessoa, que eu cultivo eles até hoje) vãomostrando que a atitude imaginativa de G. pode ser bastantemística, contrastando com forças heróicas que organizam outrasrespostas:

— O que te atraía na profissão, antes, é o mesmo que te atrai, hoje?— Tinha uma inspiração adolescente, talvez, que se

mantém e que eu acho que vai morrer comigo. Sou filho deuma família superconservadora, militares que apoiavam oregime militar e que, depois, seguiram nas tradições da Arena,

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do PDS. Aos dezessete, dezoito anos, comecei a me distanciardisso cada vez mais e quando entrei na faculdade já estavaseduzido pelas coisas da... da esquerda. Queria mudar o mundo.Entrei na faculdade com esse intuito, politicamente, e queriausar minha profissão pra mudar o mundo, e a faculdade talvez,indiretamente, tenha me dado esta noção: não se muda o mundopelo jornalismo, mas se mudam mundos, pequenos mundos,através do jornalismo.

A motivação primeira que leva G. para o jornalismo é heróica,pois é a visão de coisas erradas que leva alguém a querer mudaro mundo. Ao fazer a travessia rumo ao jornalismo, enquanto viviao êxtase místico que o iniciou na profissão, um herói dentro de G.afiava suas armas. Nota-se que há uma busca de harmonizaçãoentre a idealização heróica e a miniaturização mística, se mudampequenos mundos. Será que chegamos ao universo dramático dacoincidentia oppositorum?

Ocorre que a motivação subjacente ainda provém de umjulgamento distintivo do certo e do errado. O reconhecimento dogigantismo da tarefa de mudar o mundo não desemboca nem numaaceitação do mundo, nem numa historização que aguarde a soluçãopossível, trazida pelo amadurecimento. Esse grande mundo édividido em pequenos mundos para, então, ser dominado. É o heróique faz isso. Para que serve a espada, senão para cortar?

Acresça-se a isso que a ostentação é um valor do regime diurno(DURAND, 1997, p.236). Por paradoxal que seja, pode-seperceber um valor ostentatório no humilde reconhecimento daenorme pretensão que é querer mudar o mundo. Aqui, mais umavez, vemos que a imagem não é nominal, ou, como diz GilbertDurand, é preciso desconfiar dos nomes próprios, pois o mito,muitas vezes, carrega um nome que não é o seu (DURAND, 1996,p.207). Prossigo, então, arriscando a interpretação de que G. ageestimulado pela antítese polêmica: por exemplo, contrariaduplamente a família, ao escolher a profissão maldita e ao querermudar o mundo, já que estava envolvido com as idéias daesquerda, que historicamente se associa à revolução, por contrastecom partidos como Arena e PDS que, também historicamente,estiveram associados à manutenção do status quo.

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Por outro lado, quando se trata do relacionamento imediato deG. com seu trabalho, as contradições são resolvidas por imagensde aceitação, de não-confronto:

— É uma profissão muito difícil. Existem alguns aspectostrabalhistas, por exemplo: salários, carga horária, plantões defim-de-semana... Para tudo isso tu tens que estar preparado,tens que saber, durante a tua formação, que tu vais trabalharnos finais de semana e que isso é ruim. Se tu não fores para omercado de trabalho sabendo disso, vais te frustrar naprimeira semana. Ãhn... fora isso tem, lógico, a frustraçãoque... de tu entrares na... na... numa redação querendo,querendo, ãhn... fazer com que o teu trabalho floresça, que atua, tua perspectiva de jornalismo se manifeste o mais rápidopossível, né? Então, que as tuas matérias se tornem as maiorese as mais ãhn... de maior impacto possível, mas tu entras emconflito com uma estrutura que está toda armada, como aredação. São 250 jornalistas que têm o mesmo objetivo, ãhn...e uma linha editorial que, muitas vezes, não comporta, ãhn...muito do teu plano de jornalismo. Então, isso é um poucofrustrante. Agora, tu não podes te deixar frustrar por umaprofissão que é magnífica em função de um veículo, porqueesse veículo é um veículo dentro de um sistema, né? O dia queeu não... ãhn... não me julgar mais motivado pra trabalhar naZero Hora, eu não vou trabalhar mais na Zero Hora.2

G. tenta se integrar à profissão que escolheu através do jornalem que trabalha no momento e, para o dia em que isso não lheservir mais, já tem uma estratégia pronta: a retirada. Issoequilibraria o místico com o herói que não esquece seu ideal, suaperspectiva de jornalismo, e não ignora a estrutura toda armadaque não comporta seu plano de jornalismo.

O equilíbrio, a meu ver, se anuncia, se ensaia, mas não seestabelece. Há deslocamento para o pólo místico, com imagensgravitando em torno do esforço antifrásico, denotado nas

2 Nesse trecho, não procedi à edição habitual que se faz na transcrição de um relatooral porque as repetições e hesitações, aqui, mais do que peculiaridades da línguafalada, ajudam a indicar a organização imagética que desejo sublinhar.

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reticências, na hesitação, nos modalizadores que diminuem a forçadas contrariedades vividas dentro da empresa: uma linha editorialque, muitas vezes, não comporta, ãhn... muito do teu plano dejornalismo. Essa negação se redobra explicitamente quandopergunto a G. se ele, ao escrever suas matérias, está consciente doque o jornal, minimamente, espera dele:

— Eu... eu aboli essa idéia do que está minimamente deacordo. Eu acho que se a gente escrever pelo raciocínio dalinha editorial, é claro que essa influência é inerente, né? Maseu procuro não me pautar por ela. Eu procuro não ter issoconscientemente.

Por um lado, na hora de escrever, há a tentativa, mística, deignorar as expectativas que a empresa tem a respeito de seutrabalho, e entendo isso como uma negação da pressão exercidasobre ele. Por outro lado, na hora de sair a campo para fazer acaptação de dados para as reportagens, G. procura seguir,heroicamente, as regras tidas como as do bom jornalismo:

— É necessário que se tenha o maior número de informaçõessobre o assunto antes de sair. Então, eu procuro fazer pesquisasem jornais anteriores, internet, livros que possam ter referênciacom o assunto. Claro que, se tu estás fazendo uma pauta do dia,é impossível tu procurares num livro antes de sair prareportagem, mas se tu tens uma pauta especial, tu podes,eventualmente, fazer consultas bibliográficas, tirar um suportepra essa reportagem. Eu procuro sair cercado com o maiornúmero de informações possível a respeito do assunto. O que euvou encontrar na rua? Bom, eu... eu me policio pra isso, naverdade. Procuro sair despido do maior número possível depreconceitos em relação ao assunto. Procuro sair sem uma teserelacionada ao assunto, chegar ao local, ouvir as pessoas, mecercar do ambiente, não só das razões objetivas, mas tambémdas não-racionalidades do Maffesoli, que cercam o assunto, praentão construir uma reportagem, que não é puro dado, mas étambém emoção, né?

G. se cerca de informações, constituindo uma base paracompreender o assunto e se despe de preconceitos: leio aqui o

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pressuposto da separação entre o dado (racional) e o motivado(preconceito). É como se as informações obtidas num primeiromomento fossem apenas constatáveis, não produzindo nenhumefeito, salvo o acúmulo quantitativo na mente do jornalista. Comoantes, agora também as imagens noturnas e diurnas ensaiam umdiálogo, mas redundam numa polarização heróica: todas as açõesenumeradas por G., incluindo a de se cercar pelas não-racionalidades,implicam uma pureza de procedimentos.

Ele falou em emoção. Pergunto: como ela pode ser incluídana reportagem?

— É muito difícil pôr isso numa reportagem, até porque ojornalismo busca, cada vez mais, objetividade, a brevidade. Nomomento em que tu tens de escolher a brevidade, nãonecessariamente parte do repórter isso, mas normalmentechega às páginas do jornal um texto seco, um texto com omaior número de informações possível, o maior número dedados, estatísticas, e, na medida do possível, o que pode seraproveitado de experiência sensorial, do que o repórterpercebeu naquele local. Mas não é fácil, realmente, não é fácil.

G. tenta equacionar a exigência que o jornalismo lhe faz dedados com o entendimento que tem de que não só os dadosimportam, de que eles estão envoltos — eu diria, mesmo, fundados— numa experiência não quantificável e, talvez, indizível, a nãoser pela poesia que, afinal, não diz — comunga. Falamos, então,de poesia, e ele me lembra que não dá para exigir do jornalistaque seja um poeta, mas dá para exigir-lhe a imparcialidade:

— O que se pode exigir de um profissional da imprensa é...puxa, é difícil dizer isso! Aquela história de um jornalismoobjetivo não existe, porque não funciona, não é tirandoadjetivos que tu vais fazer um bom texto, um texto imparcial,mas eu acho que existem formas de buscar a imparcialidade...se despindo dos preconceitos.

Deixar as idéias preconcebidas de lado significa, também,cultivar a capacidade de estranhamento:

— No momento que o jornalista perde essa capacidade deachar o diverso, aquilo que não tem a ver com o seu universo,eu acho que ele cai na sua própria experiência, passa a repro-

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duzir isso como sendo uma verdade, e não necessariamente oleitor vai compreender essa verdade ou necessariamente isso éuma verdade que existe em todas as verdades, variações sobreo mesmo tema.

— Qual é o papel do jornalismo, tanto na sociedade quantona vida particular das pessoas?

— Eu já pensei que o jornalista e o jornal tinham por função,ou por objetivo, o esclarecimento. Foi na mesma época que eu,nossa! Era muito apegado às ideologias, muito apegado aosmetarrelatos. O Mino Carta, que é um jornalista que eu respeitomuito, diz que o jornalismo é oposição. Eu acho que esse é umbom princípio. Na prática política, o que se estabeleceu são osdados que muitas vezes oprimem as próprias populações e, nessesentido, a idéia de que jornalismo é oposição é muito saudável,porque estar ao lado do povo é sempre uma demonstração deabertura, de democracia, né? Nossa!

— E na vida individual, para o assinante, aquele sujeitocomum que recebe o jornal em casa... Por que ele lê o jornal? Qualé o papel do jornalismo para ele?

— Eu acho que o público, talvez, busque no jornal umpouco de esclarecimento, sim. É uma janela para o mundo.

— O cidadão comum lê o jornal para olhar para o mundo.— Talvez. Acho que sim, acho que sim. É uma boa definição.G. é um jornalista que estuda (recém concluiu o mestrado, na

PUCRS), e cujo estudo lhe ensinou a tirar conseqüências das idéiasque assume. Por isso, vigia seus pensamentos, e indica que suacrença juvenil de que o jornalismo tem a missão de esclarecer nãocondiz com as idéias que estão amadurecendo no seu processo decultivar-se. Faz uma espécie de reproche ao que pensava quandoera muito apegado às ideologias, renunciando à imagem doesclarecimento; migra para a imagem da oposição, esse é um bomprincípio, que possibilitaria ao jornalismo estar do lado do povo.Finalmente, pensando no papel do jornalismo na vida do homemcomum, retorna à imagem do esclarecimento, uma janela para omundo. A polarização diurna, heróica se firma.

— Como é que tu vês os camelôs? Pessoalmente, não comorepresentante da Zero Hora.

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— Eu acho que são, fundamentalmente, pessoas paradas,fora de mercado de trabalho. Eu me apego muito à idéia de que,realmente, existe um sistema político que prevê uma massa dedesempregados. Querendo ou não isso, achando bom ou não isso,essa massa de desempregados está na rua, e tem de fazer algumacoisa. Cada um dos relatos deles, de que têm tantos filhos prasustentar, de que precisam disso pra sobreviver, acho muitoconvincente. Eu sei que no jornalismo existem desonestos, namedicina existem desonestos, entre os camelôs existemdesonestos, eu acho que o argumento é muito palpável, é muitoreal. Eu acho que não é alguma coisa, assim, reprimível. Se nãoé exatamente um movimento social, pelo menos não deve sercriminalizado como o MST é criminalizado.

Pergunto a G. por que o jornalismo tenta, muitas vezes, colocarna reportagem duas forças opositoras quando, no cotidiano que opauta, facilmente se orquestra uma multiplicidade de forças. Ele:

— Talvez a gente tenda a responder dicotomicamente a umassunto, a gente cai no maniqueísmo puro e simples, nos doislados que precisam ser ouvidos. O jornalista tem que terconsciência de que são muitos lados, é necessário buscar apluralidade, a complexidade dos fatos. Isso é muito difícil, éum exercício que o próprio Morin chama a atenção, né? É umareeducação, é uma reforma do pensamento, e a gente foiinstruído, tanto eu quanto tu, quanto todos os outrosjornalistas, quanto todos os médicos, quanto todos os dentistasna lógica que exclui lógicas que não a do bem e do mal, a dobom e do ruim, a da verdade e da falsidade. Eu acho que adicotomia é um risco no jornalismo, mas, ao mesmo tempo,ela é, com uma freqüência grande até, eu acho que elaconsegue levar ao público uma noção um pouco mais clara,talvez... o pensamento selvagem3 diz... Nossa, olha eu entrandoem pensamento selvagem!

3 G. nos remete ao título da obra de C. Lévi-Strauss. Gilbert Durand diz que opensamento selvagem é o de toda a espécie humana desde sua aparição sobre aTerra, e que é ainda aquele do homem cotidiano, do homem comum quando elesai de seu laboratório, de seu computador ou de sua fábrica. Introduction à lamythodologie, p. 229.

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— Vamos lá!— Mas, ele tenta reduzir, simplificar ao extremo para

encontrar uma solução, porque, talvez, não consiga ir além.Talvez o jornalismo seja isso.

G. está apaixonado, como vemos desde o início, por umaprofissão que, pelo menos no emprego atual, convoca-o a sedesencantar; mas ele tem outra paixão, aquela da reflexão, do estudo,do conhecimento, que lhe escancara as possibilidades encantatóriasdo mundo. Seus dois amores o dilaceram, e ele, na pulsão pela vida,tenta juntar seus pedaços. Como? Aqui, o herói dá o caminho, e G.é um pouco mais fiel ao jornalismo: ela (a dicotomia) consegue levarao público uma noção um pouco mais clara... Mas essa preferênciaem relação a um deseus amores acaba por assanhar o ciúme no outro,que o chama para o universo noturno: é necessário buscar apluralidade, a complexidade dos fatos.

Ele traz a noção de pensamento selvagem para justificar o uso dedicotomias pelo jornalismo, supondo que o pensamento dicotômicoseja a melhor forma de fazer o homem entender as coisas. A força solarde G., senhora do julgamento, desconfiada das aparênciasenganadoras, instauradora da guerra, é, agora, sua favorita:

— Critiquemos absurdamente o jornalista por sermaniqueísta, por ser, não sei se existe esta expressão,dicotomista... Mas, talvez.. talvez... talvez... lá no fundo existaum pouco da necessidade de reduzir à essência para que sesaiba o mínimo sobre o assunto, pelo menos, para que, a partirdaí, se estabeleça o debate. Talvez, essa função redutora dojornalismo até tenha algum valor, né? Algum valor...

Ele conhece o perigo das fórmulas, por isso usa tantas vezesa palavra “talvez”. Mas esse “talvez” é também uma relativizaçãodo que o distancia da prática desencantatória da sua profissão. G.sente que essa prática é insatisfatória, mas, outra vez, quando setrata de contradições do exercício jornalístico, contorna apolêmica. E contornar a polêmica é, muitas vezes, instaurá-ladentro do texto jornalístico, como na hipótese de, no meio de umentrevero entre policiais e camelôs, G. encontrar uma senhora,também camelô, morrendo de medo:

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— Eu gostaria de conversar largamente com ela. Talvezuma tarde inteira, pra saber a origem pessoal, a históriafamiliar, a origem social, as crenças políticas, os medos, osapegos, a procura pela manutenção que, no fim, é o trabalhoque ela está desempenhando. Eu vou querer saber isso.

— E, para ti, é importante colocar isso na matéria? Porque,talvez, não haja espaço. Como é que tu vais fazer?

— Talvez eu tenha que, simplesmente, refletir o conflito.Assim, quando se torna necessária uma opção, ela é pelo

conflito, a despeito de nem tudo ser conflito, ou, pelo menos, deos medos e apegos também fazerem parte do conflito.

— Tu falaste em refletir o conflito. O jornalismo representa,apresenta, constrói ou reproduz a realidade? Ou o quê?

— Nossa, tomando banho, dias atrás, me deu um insight,eu reduzi tudo ao extremo, e banquei o selvagem, e pensei:talvez, a filosofia tente antever, talvez a história tente rever e,talvez, a gente tente ver, simplesmente.

— O jornalismo tem que tentar ver?— Tentar ver, com todos os riscos que isso implica. A nossa

visão é deficiente, somos um animal com uma visão muitorestrita, claro que não só no sentido ver, claro, mas nossossentidos são muito restritos, e as nossas percepções, talvez, asnossas capacidades de reflexão, também. Então, nesse sentido,a nossa reflexão vai ser a nossa visão distorcida, mas nada,nada, nada me faz crer que a filosofia se sai muito melhor nabusca por antever, e nem a história se saia muito melhor nabusca de rever, até porque, só para dar um exemplo, a históriase atém, profundamente, ao jornalismo como fonte histórica.Cada vez mais.

— Então, nessa busca de ver, o jornalismo vai lá, olha omundo. O que ele faz com esse mundo?

— Talvez, ele tente abrir a janela para que outros vejam...— A mesma coisa que ele viu?— Exato, exato.

G. se levanta, já é mais do que tempo de retornar à sala deredação. Despedimo-nos um tanto atabalhoadamente. Pela quarta

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vez, nessa quinta-feira, tomo o elevador do prédio da Zero Hora.Fito a câmera de vídeo que me vigia. Decididamente, hoje é o diade pensar nas significações heróicas do VER.

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Entre paradigmas e vivências

Ao entender o jornalismo como um meio de se dar ao públicoleitor o acesso aos fatos, grande parte da produção teóricabrasileira se inscreve na crise de crescimento da ciência, que anseiapelo estabelecimento de um campo de saber, senão exato, pelomenos factual ou verificável fora da linguagem, como expressouOtávio Frias Filho, anteriormente citado. Se em dados momentosdo desenvolvimento científico foi possível atribuir a algumasciências o adjetivo de exatas, o jornalismo não estava entre elas,mas, no máximo, entre as ciências ditas humanas. Manter-se sobum teto paradigmático talvez seja possível para as ciências duras;foi e ainda é tentado pelos estudiosos das ciências humanas. Noentanto, para o jornalismo é extremamente difícil seguir umparadigma, pois não lida com objetos, e sim com pessoas vivendoo cotidiano. É próprio do ser humano, sozinho ou em grupo,utilizar, no dia-a-dia, múltiplas estratégias para enfrentar assituações que vão se criando no seu caminho. Essa multiplicidadede estratégias não pode ser reunida em um paradigma, porque elanão é um conjunto de esquemas conceituais para serem aplicadosà realidade. Podemos ir ao texto de Thomas S. Kuhn e relembraruma de suas definições de paradigma: “As realizações científicasque, durante algum tempo, fornecem problemas e soluçõesmodelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”(KUHN, 1996, p.13). Os problemas que todos os dias se põemdiante do homem comum não têm origem na ciência; suas origenssão tão diversas como as escolhas de cada um. Também não seencontram soluções do mesmo jeito que se resolvem equaçõesmatemáticas. O mais apropriado seria falar em estratégias que,talvez, não dêem uma solução definitiva à situação de impasse,mas permitam driblar o momento e ir em frente, como diz Cíntia:

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Eu nunca peguei assim, enfrentar eles, se eles disserem,tu não pode trabalhar aí, eu não trabalho. Porque eles sãoautoridade, no caso. Não desafio eles. Aquelas brigas quevocês vêem na televisão, que dá aqueles confrontos da Smiccom o pessoal que trabalha aqui é porque o pessoal queremenfrentar, não querem aceitar, mas eu já procuro trabalharassim... se der para trabalhar de noite, eu trabalho, porqueantes eu tinha ponto fixo lá no viaduto, eram sessentafamílias que trabalhavam no viaduto, ponto fixo, trabalheiem torno de sete anos ali, aí eles resolveram, esse ano elestiraram. Aí foi que a gente começou a trabalhar aqui e ali,um dia trabalhava na Sete (rua Sete de Setembro), outro dia,trabalhei ali embaixo, onde tu me encontrou, essa semanatrabalhei lá no finalzinho da Andradas, então, a gente tá todomundo assim.

Paradigmática não é uma boa definição da qualidade da relaçãodos seres com o mundo. No cotidiano, se recorre a ações que nãosão esquemas modelares. A ciência, talvez, queira conhecer omundo; o senso comum, nem sempre. O regime diurno motiva oideal científico do esclarecimento, mas o senso comum é maisplural e menos moralista. Para ele, distinguir não é a única açãopossível no mundo, e o cotidiano coloca o ser humano acontracenar e, ainda, a se fundir com o mundo.

Tanto a dicionarizada palavra mundividência quanto as suassinônimas, mundivisão e visão-de-mundo, designam tetos maisamplos do que paradigma. No entanto, se restringem, ainda, à açãoheróica de ver, excluindo a possibilidade de não se querer dissolvertodos os mistérios que existem, mas jogar com eles e mesmoparticipar deles. Por isso, eu falaria simplesmente de vivências,querendo abranger as diversas formas de o homem estar no mundo,das quais a própria ciência é uma.

É com esses homens comuns, com a vida vivida todos os diasque o jornalismo trabalha. A realidade que observa é pulsante,muda a cada momento. Daí a inutilidade de o jornalismo tentar

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constituir um campo positivo de conhecimento, apesar de sercompreensível sua angústia, se for levada em conta a importânciaatribuída aos saberes científicos no Ocidente. Se o que é publicadopelos jornais ou emitido pelos meios eletrônicos de comunicaçãoé incontestável para muitas pessoas comuns, há também entreessas pessoas quem pense exatamente o contrário, tanto que apalavra jornalismo também pode ser empregada para designar“abordagem superficial de um tema, menos interessada emesclarecê-lo do que em agradar o gosto e os interesses popularesque estão na moda” (HOUAISS e VILLAR, 2001, p.1.687).

A busca de critérios que conferissem maior respeitabilidadeao jornalismo levou também à desumanização das práticasjornalísticas. Assim, na rubrica fontes de informação se encontratanto o ser humano que abre para o jornalista todas as gavetinhasde sua alma quanto o político que tenta, pelo contrário, fechar comchave as mesmas gavetinhas, e igualmente as enciclopédias, osdocumentos emitidos por instituições oficiais. A exatidão é um dosobjetivos do jornalismo, entendido como a reprodução fiel dasdeclarações e a transcrição correta de cifras, números, nomes depessoas, horários, datas e locais. A importância da notícia tambémé estabelecida por critérios, como o ineditismo, a improbabilidade,o número de pessoas que podem ter sua vida afetada pela notícia,a curiosidade que possa despertar, o número de pessoas quepossam se identificar com o personagem e a situação da notícia.E a factualidade tem seu peso resumido na recomendação: “Entreum fato e uma declaração, prefira o primeiro”.1

O jornalismo se atribui a tarefa de saber o que dizer ao mundo,tarefa cumprida através de métodos, técnicas que visam auniformizar as práticas da profissão, permitindo que o jornalista,se desejar, tenha apenas de preencher lacunas. Exemplo:

1 MANUAL da redação da Folha de S.Paulo. p. 33.

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Quem? Aproximadamente 300 dos 420

camelôs regularizados pertencentes

aos grupos do Largo da Bragança, da

praça XV de Novembro e das ruas

José Montaury e Vigário José Ignácio

O quê? fizeram uma passeata

Onde? no Centro,

Quando? ontem à tarde,

Por quê? para reivindicar um "camelódromo"

coberto na praça XV. O grupo é

contrário à transferência para o

shopping popular da Voluntários da

Pátria.

Como? Eles usaram a tribuna popular da

Câmara e pediram a criação de

comissão no Legislativo para estudar o

assunto².

Os modelos fornecidos pelo conhecimento jornalístico dariamgarantias quanto à busca da verdade. Mas, quando chega à vidavivida, o jornalista se depara com vivências que não se enquadramno formulário a ser preenchido. Diante da complexidade, ficariadifícil para o repórter cumprir certas normas técnicas dojornalismo, como a fórmula do lide (a coluna da esquerda noexemplo acima), derivada das teorias do norte-americanoLasswell, que elenca algumas perguntas a serem necessariamenterespondidas numa mensagem de comunicação social. O caos épróprio do mundo, e não se deixa apreender facilmente, em meia

2 Camelôs do Centro promovem protesto. Correio do Povo, 19/mar/2002, p. 7

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dúzia de perguntas. Mas as práticas jornalísticas previram isso, etêm regras também para a escolha certa das pessoas a quem sefarão as perguntas básicas, garantindo as respostas eficazes:

O Executivo Municipal espera para este Sábado deAleluia um dia de muita tensão entre vendedores ambulantese a fiscalização pública nas principais ruas do centro dePorto Alegre. A previsão é do secretário municipal daProdução, Indústria e Comércio (Smic) Cezar Alvarez.Ontem, ele se mostrou preocupado em ressaltar a açãopreventiva, a negociação e a fiscalização como formas deevitar tumultos e quebra-quebra.3 (Grifo meu.)

Cremilda Medina, criticando a forma costumeira de ojornalismo selecionar suas fontes de informação, ressalta que, parao bom funcionamento do modelo, é mais seguro buscar as fontesoficiais, ou seja, quem detém o poder político, econômico,científico e corporativo. Se houver tempo e espaço, abre-se ummicrofone também para o homem comum, que é um entre milhões,que não fala pelos milhões, mas por si. Mesmo assim, ouvir essehomem comum é prática justificada pelo poder técnico, que buscana afirmação de uma fonte a legitimação da narrativa preconcebida(MEDINA, 1998, p.136). O texto do jornal de onde extraí ofragmento acima termina assim:

— Ninguém aqui quer briga com a prefeitura e com aBrigada Militar. Nós precisamos trabalhar e, por isso,precisamos desse espaço — protestou um ambulante, queontem comercializava ovos de Páscoa no Centro.

Conforme o Sindicato dos Lojistas (Sindilojas), ofaturamento médio do comércio regular em razão da atuaçãode ambulantes pode cair até 25% em relação a 2001. Nomercado informal, um ovo de Páscoa grande pode serencontrado por R$ 5, enquanto nas grandes redes de

3 Smic espera dia tenso com camelôs. Zero Hora, 30/mar/2002, p. 15.

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supermercado, um presente semelhante dificilmente seráencontrado por menos de R$ 15.

Neste trecho, entre as declarações do poder político e as dopoder econômico, a fala do ambulante parece desdizer a si própria.A cena cotidiana que o jornalismo deseja narrar, na sua desordemsuscita angústia, à qual o jornalismo responde sempre com amesma atitude imaginativa — a heróica. Sendo assim, não ésurpreendente que as vozes ouvidas sejam detentoras de poder, eque as vozes marginalizadas sejam incluídas de modo a deporemcontra si mesmas.

O conhecimento científico, segundo Edgar Morin (MORIN, 1991,p.7), é concebido como tendo a missão de dissipar a complexidadeaparente dos fenômenos e revelar a ordem simples a que obedecem.É, decerto, nesse sentido que G. menciona a dicotomização como umprocedimento que, lá no fundo, permite que se saiba o mínimo sobreo assunto. Certo, querer abarcar o todo é uma ambição reducionista.Para integrar as contradições no pensamento é necessário aceitar acomplexidade que não é, de nenhum modo, completude. Acomplexidade quer dar conta das articulações entre os domíniosdisciplinares, aspira ao conhecimento multidimensional, mas sabe queo conhecimento completo é impossível. Esta é a tensão permanenteentre a aspiração a um saber não compartimentado e a incompletudedo conhecimento. O saber não compartimentado reconhece aimpossibilidade de se isolar um objeto para pesquisá-lo. Oconhecimento científico comparti-mentado, hoje, produz especialistasignorantes de tudo o que não é sua especialidade, incapazes de fazera relação entre sua especialidade e outras áreas do conhecimento: é oobscurantismo científico.

No pensamento complexo, a racionalidade é tolerante com asoutras formas de pensar — isso inclui os outros campos científicosdo saber e também as sabedorias do homem comum. O pensamentocomplexo liga a cultura humana e a cultura científica, aceitando ascontradições que surgem de o real se fundar no imaginário.

A verificação racional, para escapar dessas contradições, naturaisquando se leva em conta a dimensão humana, produz absurdos nojornalismo. Procuremos o por quê do fato na seguinte matéria:

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As tardes de domingo na avenida Guaíba, no bairroIpanema, na zona Sul da Capital, já não são tão glamourosascomo antes. A presença de vendedores vem mudando apaisagem do local, que começa a assemelhar-se ao caos daregião central de Porto Alegre, onde os ambulantesinvadiram as ruas e calçadas. Inúmeros carros tomam contado estaciona-mento da avenida, vendendo bebidas alcoólicas,refrigerantes e alimentos sem autorização da Prefeitura. Ocomércio informal começa a ocupar também as calçadas,onde já é possível encontrar bancas de cachorro-quente, dechurrasco e de batatas fritas, por exemplo.

(...)A situação deverá melhorar somente após a realização de

um concurso público, ainda sem data definida, que vaiampliar o quadro de fiscais da Smic. (...)4

O fato que originou a pauta é a decadência dos domingos emIpanema, às margens do rio Guaíba. Por que a fruição dessas tardesestá prejudicada? Por causa da fraca fiscalização, que abre espaçopara a invasão de camelôs. O absurdo, não só dessa explicação,mas também desse fato jornalístico (minha tarde de domingo estáarruinada por causa da inexistência de um fiscal que remova domeu caminho esse camelô) resulta da falta de atenção aos jogosde forças sutis colocados em movimento pelos mitos patentes elatentes, seja dito, pelos conteúdos autorizados e reprimidossocialmente. O esquema causa/conseqüência talvez induza a essetipo de absurdo, mas ele não é o único meio de que nossopensamento dispõe para compreender algo. Se nos furtarmos àânsia explicativa e nos entregarmos ao desejo compreensivo, aintercausalidade se apresentará, e será impossível ignorarmos quehá seres humanos em todos os pólos dessa situação. Não se tratamais de escolher os certos e os errados, respeitando os primeiros

4 MADEIRA, F. Ambulantes em Impanema são irregulares. Correio do Povo, 03/mar/2002. p. 6.

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e objetificando os segundos, e sim de deixar todos os personagensinteragirem, numa atitude imaginativa dramática — a de Hermes,o mito relacionador, deus das comunicações.

O jornalismo que faz a leitura do mundo através da complexi-dade recorre antes às vivências, e não só às verificações racionais.Vai ao não-racional, que inclui o mito, o símbolo, capaz de dialogarcom o imaginário. Ao invés de apenas matrizes dedutivas paraapreender a experiência cotidiana, usa também a intuição. Orepórter lança-se ao mundo com o seu corpo inteiro, abrindo-se àrelação com o outro através de todos os instrumentos sensoriaisde que dispõe, não apenas a visão e a audição. Mesmo estesreceptores a distância estão atrofiados nas práticas jornalísticas,pois só se ouvem declarações de fontes. Suspiros, gemidos, a vozque se alteia ou some, sem falar na voz do coração, há tanto parao repórter ouvir.

O repórter da complexidade usará sua racionalidadeargumentativa, mas deixará que ela se fertilize pela emoção e peloafeto, que estão no cotidiano. Sua reportagem terá partida dascenas do concreto, e não do mundo das idéias. Cremilda Medinaaponta para a necessidade vital de o jornalismo transformar-se designo difusionista em signo da relação (MEDINA, 2000, p.73) Odesejo de decifração, característico do jornalismo que se atribui atarefa de difundir informações, é também um desejo de dominação.Aí, o regime diurno do imaginário fornece a motivação, ojornalista é o herói da notícia. Vai-se ao mundo, vai-se a outro serhumano como se houvesse uma guerra, a guerra contra o enigma,da qual se sai vencedor caso se consiga elucidar tudo.

Entender tudo pode exigir que se arranquem as respostas doentrevistado a qualquer custo e, caso elas não se mostremtotalmente compreensíveis, há que se reduzi-las até que não restedelas nada que não seja absolutamente claro. O resultado dessavitória é a informação desencarnada, que apenas aponta para certosaspectos do assunto tratado, o que pode ser muito pouco.

Quando o jornalismo se desarma, se abre ao outro, ao mundo,o resultado não é o que o outro, o mundo são, como quer uma visãosimplista do direito à informação, nem o que o jornalismo acha

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do outro, do mundo, como quer uma visão simplista do direito deinformar. O resultado do encontro será a relação, difícil de sernarrada a partir do texto jornalístico conciso, que despreza oimaginário para se atribuir credibilidade através de uma supostaverificabilidade. Igualmente é difícil orquestrar num texto todasas linhas de força que atravessam a relação que é assunto dareportagem, pois a complexidade exige que seja contemplado omaior número de conexões possíveis.

Para fazer isso no jornalismo, Cremilda Medina propõe aosrepórteres algumas ferramentas: a pesquisa da raiz histórica dotema da sua pauta, usando fontes documentais; a promoção dodebate conceitual, entrevistando (pessoalmente, e não por telefone,fax ou e-mail) a comunidade científica, que se encontra eminstitutos de pesquisa e universidades; a busca do contextosociocultural do fato, que será encontrado na vida vivida, naspráticas sociais, usando a parceria observativa — os grupos seobservam e o jornalista anota e comenta; é neste momento quetambém se deve averiguar as informações fornecidas pelas fontesdeclaratórias; a busca do protagonista, que é um ser humanorepresentativo do universo que se quer retratar. Na literatura, oprotagonista pode ser qualquer personagem, mas, no jornalismo,é uma pessoa na qual se cruzam várias das forças que atuam sobreo assunto da pauta. Sua figura é fundamental, pois estabelece aligação entre o jornalismo e a vida.5

O uso dessas ferramentas vai fazer com que surja, com oprotagonista, o “corpo inteiro do ‘quem’ (...)”. Já o quê, “núcleo‘objetivo’ do fato noticiável bombardeado de inúmeras forças quesobre ele atuam”, igualmente terá seu delineamento complexificado,não se fugindo “da perturbada contextualização político-econômico-sociocultural contemporânea” (MEDINA, 1996, p.234).

Cremilda Medina pergunta: “Como definir o ‘onde’ subjetivode um perfil e o ‘onde’ mítico de um povo?”. Não é fácil, mastambém o tempo e o espaço adquirem novas dimensões nesse

5 MEDINA, C. Aula ministrada no curso de doutorado em Ciências daComunicação da ECA/USP — primeiro semestre de 2000.

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jornalismo. O quando e o onde não serão resolvidos de modoimediatista, mas exigirão que se preste atenção às recorrênciasmíticas dentro do tempo histórico e à sacralização cósmica doterritório profano.

Cremilda Medina continua:

O ‘como?’ e o ‘por quê?’ têm de ser tecidos na mediaçãosocial, ou melhor, o mediador (repórter-redator-editor) tece, notrânsito social, a complexa rede de significados, no fundo umaleitura cultural possível. Interpretação essa que emerge de um‘quem, o quê, quando e onde, como e por quê?’ constituídos naexaustão arriscada do jornalismo. Na intimidade esférica doacontecimento, com protagonistas complexos, processo deacontecer em tempos e espaços ricos de facetas, o grandedesafio é como a noção de intercausalidade substitui a de causae efeito. (MEDINA, 1996, p.236)

Ao mesmo tempo em que uma reportagem fornece maisrespostas, suscita também mais dúvidas, o que é próprio, aliás, dacomplexidade. Aí está mais uma dificuldade para o jornalismo: oaumento de incertezas não é recebido mansamente no seio de umsistema que, ao invés de equacionar os fatos, tenta elucidá-los.

O poder simbólico, que é o poder de construção de realidades,se fortalece no jornalismo que ousa se contaminar pelacomplexidade, arriscando-se em meio ao caos para construir, comseus textos, um cosmos, ainda que sujeito a rescisão. (ELIADE,1999, p.32-33).1 Esse poder é definido por Cremilda Medina como“a capacidade cultural de criar novos sentidos e interferir nomundo material, no mundo natural e no mundo humano”. O acessoà informação, segundo a autora, é condição para que esse poderseja partilhado. Não se trata, porém, de

6 Mircea Eliade ensina que a característica das sociedades tradicionais é a oposiçãoque elas subentendem entre o cosmos, que é o seu mundo, e o caos, um espaçoestrangeiro, cheio de espectros. O cosmos é um universo em que o sagrado semanifestou no momento da fundação do mundo, fixando limites e estabelecendoa ordem.

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informação repassada pelos técnicos e pelos meiostecnológicos, mas a informação processada nas mediaçõessociais. Nestas, os sentidos e os dados não procedemexclusivamente das elites do conhecimento e são difundidospara as massas ignaras, mas resultam da comunhão entre asnecessidades humanas e os produtores-criadores da ciência,da filosofia, da arte, do cotidiano, das sabedorias intuitivase transcendentes. (MEDINA, 2001, p.1).

Vê-se, aí, a importância que o jornalismo tem na segunda rupturaepistemológica sinalizada por Boaventura de Sousa Santos, quandoocorre a crise de degenerescência da ciência. O jornalismo é um dosmediadores — talvez, o mediador por excelência — entre ciência esenso comum. Isso não significa que ele deva insistir naespecialização interna — jornalismo político, econômico, cultural,etc. — pois a compartimentação traz a adoção de uma linguagemigualmente especializada, perdendo a característica de aproximaçãodo público em geral. Como diz Cremilda Medina: “As mediaçõessociais inter-sujeitos demandam o signo dialógico, criação bem maiscomplexa do que o signo de tradução das informações de um sujeitosábio para um objeto massificado” (MEDINA, 2000, p.3).

O jornalismo dialógico usa a intuição para apreender aexperiência cotidiana, exatamente como faz o senso comum. Adialogia entre ciência, senso comum e jornalismo é regida peloque Michel Maffesoli denomina razão sensível: é a razão da raiz,não só do destino. Isso quer dizer que a procura por causas,simplesmente, não é suficiente; é preciso buscar fundamentos,porque a razão de ser de um indivíduo ou fenômeno não está sóno seu objetivo, no para onde ir, mas também no de onde veio. Opensamento pensado pela razão sensível é orgânico, juntando oantagônico, o contrário, o distante.(MAFFESOLI, 1998, p.61).

Ao trabalhar com a orientação plural dos eixos enumeradosacima — o protagonista, o espaço-temporal, o conceitual, ocontexto sociocultural, — o jornalismo precisa de um código queacolha a multiplicidade, como o faz a poesia, capaz de falar docontraditório e do complementar, do paradoxo, do vivido. A

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linguagem burocrática requerida pela objetividade estilística, queprega um texto conciso, sem imagens, sem metáforas, não é capazde orquestrar os dados apurados junto a fontes tão diversas comoas que se encontram no debate conceitual e na vida vivida. Ojornalismo promove o diálogo entre a diversidade, e dispõe, paraisso, da tecnologia contemporânea, que não é, no entanto, suficiente.A criatividade e o ser inteiro do jornalista são convocados paravencer o desafio de construir um texto que harmonize as diferençaspróprias da realidade caótica, sem recorrer ao apaziguamento pelaredução do que é divergente e contraditório.

Michel Maffesoli fala a respeito da intuição e da linguagemmetafórica: “Assim como a intuição é um bom meio de apreendero retorno da experiência cotidiana, é possível que a metáfora sejaa mais capacitada para perceber o aspecto matizado de um mundomarginal cujos desdobramentos são ainda imprevisíveis”(MAFFESOLI, 1998, p.147). A metáfora não enclausura o quepretende descrever porque se abstém de lhe dar um sentido.

A poética coloca os homens em contato entre si, é a expressão dacumplicidade afetiva estabelecida entre o jornalista e o homemcomum. O mundo se afigura cada vez mais caótico por causa daquantidade sempre crescente de informações, e para o jornalismo estáclaro que não é possível noticiar tudo. Reparar no cotidiano implicaandar mais devagar, e não mais depressa. Talvez seja necessáriodiminuir mais ainda o ritmo; talvez seja necessário prestar maisatenção ao dia-a-dia comum, de onde, afinal, nascem todas as notícias.As diversas angústias do homem contemporâneo demandam um pontode encontro de saberes, de partilha de estratégias de sobrevivência, eo jornalismo é um lugar vocacionado para isso.

A valorização do cotidiano e do homem comum, no entanto, nãofazem parte da gramática jornalística. Cremilda Medina alerta: “Osriscos da centralização informativa, da arrogância simbólica e domonopólio das verdades, da insensibilidade perante o outro e adiferença não comparecem aos manuais dos discursos tecnicistas quelegitimam a excelência da divulgação, da persuasão, da educação edo lazer” (MEDINA, 2000, p.4-5). E Michel Maffesoli convida aindagar se “o inquietante divórcio existente entre as diversas

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categorias da intelligentsia (universitários, jornalistas, políticos,decididores em diversos domínios) e o homem sem qualidades nãorepousa, justamente, na incapacidade daqueles para apreciar, dar seujusto preço, ao hedonismo relativo que impregna a vida corrente. Elesnão têm confiança suficiente na vida” (MAFFESOLI, 1998, p.194).

A ignorância de partes inteiras da existência, o necessáriosufocamento da coincidentia oppositorum para se construir umanarrativa perfeitamente coerente e concisa, faz a vida vingar-se,exacerbando-se e chegando a extremos em explosões perversas,exemplificadas por Michel Maffesoli nas guerras, carnificinas,genocídios, racismos ou os diversos processos de exclusão(MAFFESOLI, 1998, p.29). O jornalismo tem sua quota departicipação no racionalismo que superdesenvolve os dons daorganização, contradizendo a natureza humana, forçando a passagemdo concreto ao abstrato, do singular ao geral, querendo explicar tudoe fazendo de conta que não vê o que não pode explicar.

Aí está a marca iconoclasta do jornalismo, que foge dasimagens porque elas remetem ao inefável, ignorando que é doimaginário que a realidade salta, é para o imaginário que ela corre.

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Mundos diferentes, narrativas plurais

Em Adeus à razão, Feyerabend diz que, no império da razão,a verdade é vista como a realidade, e esta é distinta de opinião.Para o objetivismo atual, todos, independente de sua opinião,vivem no mesmo mundo (FEYERABEND, 1991, p.67). Noentanto, conforme Feyerabend sublinha, nem todos vivem nomesmo mundo. Há mundos diferentes, não apenas aspectosdiferentes do mesmo fato. Se pensamos que há um mundo e váriasinterpretações, ainda supomos a Verdade intacta em algum lugar,e logo surgem os que se arrogam tê-la encontrado.

Mircea Eliade mostra que as narrativas míticas são consideradaspelo homem arcaico como as únicas verdadeiras. “O mitocosmogônico é verdadeiro porque a existência do mundo está aí paraprová-lo, o mito da origem da morte é igualmente verdadeiro porqueé provado pela mortalidade do homem, e assim por diante.”(ELIADE, 1994, p.12). O mito é a história sagrada e, portanto,verdadeira, porque sempre se refere a realidades.

As narrativas construídas com profusão de cenas, como sãoas narrativas literárias e míticas, mostram características, e nãofornecem propriedades abstratas, como fazem os conceitosdescritos através da técnica do sumário. Numa narrativa calorosa,ao contrário dos que postulam um texto objetivo como sendoaquele que dispensa as imagens, não é o autor, mas o ouvinte ouo leitor que faz o seu juízo de valor. Os conceitos introduzidosatravés de histórias não são entidades abstratas, não estãoseparados das coisas; “estão adaptados às circunstâncias em quesão dados a conhecer e mudam em conformidade.” (ELIADE,1994, p.138). O sumário é relato conceitual, abstrato, estável eautoritário, ao contrário da cena, que é narrativa viva, mutante acada olhar, abundante, e deve ter sido rejeitada pelo discursoracional por isso.

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Feyerabend lembra que os filósofos antigos, exceto Sófoclese Heródoto, elogiavam a unidade e denunciavam a abundância.(FEYERABEND, 1991, p.141). O desgaste das idéias concretasexistentes nos tempos homéricos levou ao triunfo dos filósofos quepreferiam as noções claras e facilmente definíveis, os pré-socráticos e Platão. Os intelectuais possuiriam, assim, umconhecimento inacessível aos mortais comuns, incapazes deapreender um relato conceitual, única forma considerada legítimade falar do que é real. As histórias seriam irreais.

Passados tantos séculos, hoje ainda se acredita que o sensocomum, opulento e cheio de analogias, encobre a realidade. Aciência, com suas leis gerais, é capaz de reduzir a pluralidade dosenso comum. Atendendo a alguns fatos, que são as característicasgerais selecionadas pela ciência, pode-se ignorar outros(FEYERABEND, 1991, p.148).

O privilégio dado a conceitos abstratos e simples emdetrimento dos conceitos complexos e concretos trouxe osproblemas de disjunções, como mente/corpo, sujeito/objeto,homem/natureza. A objetividade moderna não conseguiu “fazerjus ao esquema de interações extremamente rico que é o mundo”,e agora se espera que a criatividade seja o milagre que vai eliminaro abismo entre homem e natureza, sujeito e objeto, trazido pelaobjetividade (FEYERABEND, 1991, p.166).

A disjunção real/imaginário segue as pegadas da disjunçãoreal/humano. O real seria o legal, o que está associado a leis, “fazparte de um mundo que existe e se desenvolve independente dospensamentos, vontades e impressões do investigador”. Essepressuposto resulta de uma separação entre natureza ehumanidade, “tornando a primeira inflexível, legítima einacessível, e a segunda voluntariosa, inconstante e afetável pelamenor perturbação” (FEYERABEND, 1991, p.149). Seguindoesse raciocínio, as narrativas pertencem ao humano, não ao real.

As narrativas são necessárias para as pessoas organizarem suasvidas. Histórias contadas ou ouvidas, escritas ou lidas colocamnuma certa ordem vários elementos que, embora variando na suaapresentação, podem entrar em ressonância com dramas pessoais.Cremilda Medina diz:

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Uma definição simples de narrativa é aquela quecompreende uma das respostas humanas diante do caos.Dotado da capacidade de produzir sentidos, ao narrar omundo, o sapiens organiza o caos em um cosmos. (...) Semessa produção cultural, a narrativa, o humano ser não seexpressa, não se afirma perante a desorganização e asinviabilidades da vida. Mais do que talento de alguns, podernarrar é uma necessidade vital.(MEDINA, 1999, p.24).

Nesse sentido, a narrativa se equipara ao mito, que pode serdefinido, também de modo simples, como uma história, coisa,pessoa que forneça uma forma de organização do mundo. MirceaEliade explica: “A principal função do mito consiste em revelaros modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanassignificativas: tanto a alimentação quanto o trabalho, a educação,a arte ou a sabedoria” (ELIADE, 1994, p.13). SAGRERA (1969,p.33) segue os mesmos passos, assinalando que um mito indicaum caminho de relações entre o homem e o universo. ParaMAFFESOLI (1996, p.216), o mito “é sempre uma anamnese dosfundamentos, e a efervescência social a que se assiste hoje em diaé certamente uma maneira de lembrar a lama original”. Ou seja,todo o mito é uma resposta às interrogações que o homem lança àexistência. Pressionado por todos os lados, a começar pelaperspectiva da morte, o homem é fascinado pelas suas origens, poiselas abrigam a solução ao problema da vida. Por isso, segundoMircea Eliade, todos os mitos participam de alguma forma do mitocosmológico.

As narrativas contemporâneas não têm a mesma linguagem damitologia arcaica, nem as mesmas figurações. Elas se multiplicamtodos os dias, são muitas e muitas micronarrativas buscandoorganizar simbolicamente o caos cotidiano, no qual voltam amergulhar e a se dissolver em seguida. Os media fornecem,diariamente, um bom número dessas histórias que, é claro, nãopretendem explicar a origem de tudo. Sua importância não está,de qualquer modo, nisso, mas sim na satisfação, mesmo queprovisória, que as pessoas têm de acrescentar algumas informações

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ao seu estoque pessoal — e não importa, aqui, se essasinformações foram realmente assimiladas, compreendidas erelacionadas com outras. O que se acentua, no momento, é osentimento de entender, por um instante, um pedacinho do caosem que se vive.

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Imagens fundantes no jornalismo

No entanto, além desse papel mítico que exerce automatica-mente só pelo fato de divulgar informações todos os dias, ojornalismo pode ajudar a (re)construção de mitos que forneçamestratégias de vida. O ser humano precisa do conforto de saber quehá algo a ser feito de certa maneira. Um punhado de histórias quefavoreçam a identificação entre os homens comuns, todos os dias,é necessário, e se as pessoas não as encontram nos jornais, vãoprocurar nas novelas ou nos programas de auditório que explorama sordidez humana para conseguir bons índices de audiência. Ojornalismo não cumpre seu papel de ouvir a sociedade, e paga opreço da ansiedade permanente gerada pela busca incessante deinformações sempre mais novas, mais escandalosas, mais raras,quando poderia, simplesmente, ir até a calçada em frente econversar com o pipoqueiro. Ao contrário, o jornalismo se fechaem salas refrigeradas, fugindo do calor das ruas, e entra em contatocom o mundo através de aparelhos sofisticados, que permitem atransmissão de informações à distância, prática esta que sócontribui para avariar ainda mais os sentidos do ser humano que,afinal, é o repórter.

Repórter, aliás, em via de desaparecer totalmente, pois osmeios de comunicação buscam mais e mais as informações nasgrandes agências internacionais. Se as agências possibilitam adivulgação mundial, sem defasagem importante de tempo, dasnotícias que interessam internacionalmente, não dão conta dasrealidades locais, e aí estaria o campo de trabalho do repórter. Noentanto, as reportagens locais são bem poucas, e muitas vezes seusdados são captados através de entrevistas telefônicas, ou por e-mail, ou por fax, inviabilizando o diálogo entre repórter e fonte.Os sentidos do repórter definham, o contato com o outro é feitoatravés dos receptores a distância: audição, visão, exercitadosassepticamente, sublinhando, mais uma vez, o privilégio dado ao

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regime diurno do imaginário, com sua tendência de se projetar parao alto e se distanciar da lama. Imagem da transcendência.

Fazer uma entrevista sem olhar no rosto do entrevistado, semsentir as variações de sua respiração, os gestos de seu corpo, semestar em presença traz dificuldades técnicas, éticas e estéticas.Como o jornalista poderá usar o que disse seu entrevistado se nãotem subsídios para escolher o verbo que vai introduzir asdeclarações? O problema não é só técnico, mas também ético:onde fica o respeito ao que a fonte quis dizer quando se introduzsua fala, usando qualquer verbo, indiferentemente? Se temos umproblema ético, temos também uma questão estética, pois a formaque o repórter dá ao que o entrevistado diz modela seu conteúdo.Não é a mesma coisa escrever “Fulano diz que...” e “Fulano contaque...”. Enquanto no primeiro caso a intenção da fonte ésimplesmente comunicar algo, no segundo caso há a intenção deexpor constatações. Se trata aqui das pretensões de validade doato de fala, que Habermas desenvolve em Teoria da AçãoComunicativa, e que PATRÍCIO (2002, p.75), na sua dissertaçãode mestrado, retoma, tirando conseqüências valiosas para a práticajornalística. A utilização gratuita dos verbos introdutórios deopinião indicia o que acontece quando o jornalismo separa astécnicas da reflexão. Imagem da disjunção.

Os ideais de abrangência informativa podem levar o jornalismoa desvalorizar a vida cotidiana em nome dos supostos grandes fatosda vida nacional e internacional. O homem comum é emudecidopara se dar espaço às vozes autorizadas da política, da economia,da ciência, sem se reparar que é do cotidiano banal que nascem apolítica, a economia e a ciência. Os textos resultantes refletem odesencarnamento da vida pulsante, e orquestram as informaçõescom a mesma sensaboria da captação, acentuando ainda mais odistanciamento entre o saber institucionalizado e o senso comum.Imagem da exclusão.

Para eliminar as ambigüidades que poderiam se apresentarnuma escrita cúmplice da realidade a ser construída, lança-se mãode imagens estereotipadas, cuja aceitação é garantida mais peloesvaziamento de seu sentido, à força da repetição, do que por seruma unanimidade. Certo, o estereótipo tem remotas origens nos

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arquétipos, essas formas vazias que admitem ser preenchidas comoo imaginário mandar. No entanto, essa lembrança arquetipal estáapagada no estereótipo, o qual se produz pela cristalização deimagens. Um estereótipo está a um passo do preconceito. Ao fugirda ambigüidade, o estereótipo recusa a pluralidade, rejeita odiferente, e a isso se chama violência. Imagem da prepotência.

O extrato de reportagem abaixo parte de uma suposição de auto-evidência, a de que são os camelôs irregulares que obstruem amovimentação das pessoas e dos táxis no centro de Porto Alegre. Porconseguinte, a remoção dos ambulantes equivale a uma libertação:

Smic e BM liberam a Doutor Flores

Fiscalização retirou ontem camelôs irregulares que dificultavamtrânsito de pedestres e parada de táxis.

A rua Doutor Flores ficou livre da presença dos camelôsirregulares. Na manhã de ontem, um grupo de 20 fiscais daSecretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio(Smic), com apoio de 20 policiais militares do 9° BPM,ocupou o espaço entre as ruas Voluntários da Pátria eGeneral Vitorino, na área central da cidade. A ação ocorreupor volta das 8h, antes da chegada dos ambulantes, queficaram concentrados na praça Otávio Rocha, semconseguirem desmontar suas barracas. Com a ausência doscamelôs, os taxistas puderam estacionar seus veículos noponto junto à calçada e o fluxo de pedestres melhorou.

O chefe da fiscalização da Smic, Sebastião Rocha, disseque a desocupação da rua é definitiva.

(...)Com o fim do veraneio, a tendência é de que quantidades

crescentes de ambulantes tentem retornar para a área.Responsável pelo grupo de policiais militares que acompa-nhavam os fiscais da Smic, o tenente Pierozan assegurou quea situação seria mantida tranqüila. “Está tudo calmo”,ressaltou, acrescentando que tinha um pelotão extra que poderiaser mobilizado em caso de necessidade.1

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O preconceito social se esboça na suposta obviedade de queos camelôs, por não pagarem impostos, não podem partilhar oespaço a que os honestos cidadãos pagadores de impostos têmdireito. Foram ouvidas duas fontes, ambas oficiais: o responsávelpela fiscalização da Smic e o chefe dos policiais que garantiram,digamos, fisicamente a operação. Escolhas como essa se apóiam,talvez, na idéia estereotipada de que o poder representa apopulação e, pois, responde por ela. As fontes oficiais são tidaspor confiáveis e, como se pode observar nas práticas jornalísticas,suficientes. Imagem da soberania.

Dar atenção a um camelô irregular que, naquele 11 de março de2002, data do fato, foi impedido de montar sua barraca significariatrazer para primeiro plano um jogo de forças contraditórias. Umalista ilustrativa e não conclusiva dessas forças: os desejos míticosde realização humana, que são bem mais enraizados do que a simplesquestão da identidade social do camelô, e que às vezes trombam coma normatividade vigente, e outras vezes cavam um espaço, ainda queintersticial, dentro das instituições. Ora, privilegiar esse cadinho devetores parece muito mais complicado do que encontrar o mocinhoe o bandido da história, e o jornalismo, com a desculpa de simplificaras coisas para seus receptores, aciona o piloto automático. Imagemda antítese polêmica.

MORIN (1998, p.38) diz que o estereótipo, junto com osparadigmas e as doutrinas, constitui um determinismo cognitivoque aprisiona o conhecimento.2 Para enfraquecer os determinismoscognitivos, propõe a dialógica cultural. Como as diversidades dospontos de vista são inibidas pelo imprinting3 e reprimidas pela

1 Smic e BM liberam a Doutor Flores. Correio do Povo, 12/mar/2002, p. 7.2 MORIN, E. O método 4. As idéias. p. 38.3 Edgar Morin explica que o imprinting é um termo que Konrad Lorentz propôs

para dar conta da marca incontornável imposta pelas primeiras experiências dojovem animal, como o passarinho que, ao sair do ovo, segue como se fosse suamãe o primeiro ser vivo ao seu alcance. Morin diz que existe também um“imprinting cultural que marca os seres humanos desde o nascimento, com o seloda cultura, primeiro familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ouna profissão”. (O método 4, p. 34.)

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normalização, resta promover o intercâmbio de idéias paraenfraquecer os dogmatismos e as intolerâncias.

Gilbert Durand também acentua o enrijecimento na formaçãodo estereótipo. Conforme ele explica, as produções simbólicas docircuito comunicacional e educativo envolvem a unidimensio-nalização, que desemboca na saturação do regime imaginário e naformação dos estereótipos. O símbolo perde a carga semântica daeqüivocidade: “são símbolos mortos, como diz Jung, e nenhumaação poética ou produtiva é mais possível” (DURAND apudBADIA, 1993, p.127).

Não é fácil, para o jornalista, sair do esquematismo para o qualfoi treinado desde a faculdade. Existem sérias dificuldades noexercício da narrativa, e Cremilda Medina aponta três das maisimportantes: as racionais (o aprendizado dos sistemas narrativos),as intuitivas (o enriquecimento contínuo da sensibilidade, umaespécie de radar profundo para sentir o mundo) e operacionais (aação do escrever-se e a dialogia numa escrita coletiva):

Fenômenos e institucionalizações que registram essaexperiência, como é o caso do jornalismo, vêm tecendo umagramática narrativa há séculos e, no entanto, não chegaram àsfórmulas mágicas que chamem a si a competência para pautare comunicar o que se passa à nossa volta. Há, sim, umainsatisfação muito latente nos profissionais mais sensíveis diantedas rotinas técnicas que comandam as produções designificados nas empresas, instituições e grupos organizados dassociedades contemporâneas. Da comunicação sindical à grandeimprensa, dos veículos comunitários às potentes redes deinformação, a narrativa que passa por aí freqüentemente deixaos consumidores, fruidores ou parceiros do caos contemporâneofrustrados com o universo simbólico que se oferece comoorganizado nas coberturas jornalísticas. (MEDINA, 1999, p.24).

A autora aponta também alguns desafios de pesquisa eexperimentação lançados aos narradores (jornalistas inclusos):complexidade, afeição, poética:

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No âmbito da complexidade, pouco há a fazer se a emoçãosolidária e a criação estética não estimularem uma razãoluminosa no lugar da razão tecnoburocrata, movida peloarsenal das gramáticas estratificadas. Ainda que afetuoso ogesto, este não resulta numa ação solidária se não for informadopelo repertório e pela disciplina racionais e pela pesquisaestética. E a poética só explode no ato de comunhão, como diziaOctávio Paz. Comunhão, a plenitude da comunicação acontecena tríplice tessitura ética, técnica, estética. (MEDINA, 1999,p.25).

Para movimentar imagens, o jornalismo irmana-se às artes,entrando em contato com as profundezas do ser humano, ondevivem os arquétipos, proporcionadores de reconhecimentos eidentificações. O sentir-se igual é promovido por narrativascriadoras e criativas, que escapam justamente do sempre igual daestereotipia. O autor alcança o máximo de expressão pessoal sendosensível à invariância arquetipal, que nos faz coletividade. O serhumano se reconhece coletivamente em obras únicas, originais.Como equacionar a repetição e a diferenciação? O que comanda,afinal: a circularidade ou a linearidade? Ou as duas?

Em Ilya Prigogine, o universo se cria à medida que avança. Éa flecha do tempo, o tempo é irreversível, o futuro não retroage.Então, nada de arquétipos, mitos, imanência. Nada já está lá. Nãosabemos o que o universo vai fazer, até que o faça. Por isso, aincerteza e a criação permanentes, possibilitadas pela linearidade.

A criatividade como a expressão de algo arquetípico, que jáexiste em forma latente, nega a criatividade, segundo RupertSheldrake. Por outro lado, David Bohm observa que umacriatividade absoluta, sem passado não existe. Se não ter passadofosse condição para a criatividade, “nada poderia existir, pois seesfumaria no exato instante da criação”.(WEBER, 1997, p.221).

Tempo sagrado, tempo profano. O homem religioso, conformeMircea Eliade, vive duas espécies de tempo, sendo o temposagrado “circular, reversível, recuperável, espécie de eternopresente mítico que o homem reintegra periodicamente pela

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linguagem dos ritos” (ELIADE, 1999, p.64). O tempo sagrado éaquele em que o mundo é fundado, em que o mundo é perfeito,pois está novinho em folha; a esse tempo sagrado se precisaretornar quando as coisas vão mal.

O homem contemporâneo também conhece a descontinuidadedo tempo: há o tempo monótono do trabalho, e o tempo das festas;o tempo passa mais rápido quando se está ocupado de modoagradável, e mais lentamente quando se sofre. O homem comum,que todos nós somos, não opta pela circularidade ou pelaprogressão, e utiliza, na vida cotidiana, tanto os ciclos quanto asprogressões lineares. A sabedoria popular recomenda que se toquea bola para frente, o que passou, passou, o que não tem remédioremediado está. Mas a mesma sabedoria adverte que quem semeiavento colhe tempestade, que estamos condenados a repetir aslições da vida que não aprendemos bem. Enfim, a assunçãosimultânea do ciclo do tempo e da seta do tempo se figura bemno adágio: águas passadas não movem moinho, mas fazem chover.

Dialogar com esse homem comum, complexo, que associa noseu espírito idéias antagônicas e complementares, não é simples.Isso, decerto, constitui um dos fatores que leva o jornalismo apreferir a segurança das declarações dos poderes estabelecidos,que se, por modismo, assumem as incertezas, fazem-no com muitacerteza. Imagem do conhecimento pelo verbo.

O problema que se coloca agora, é: como ir ao outro, a essehomem a um tempo comum e singular, e construir uma narrativacomplexa, emancipatória, que não deslize para a arrogância de umrepórter que dita verdades sobre o mundo, nem no falso objetivismode querer reproduzir o mundo, mas que reflita a relação homem/mundo, isto é, o imaginário? Essa narrativa vai incluir as fantasias,as imagens recorrentes na interação, porque “o todo da subjetividadehumana não é menos parte do mundo do que as pulgas, as pedras eos quarks” (FEYERABEND, 1993, p.321).

Que imagens o jornalismo coloca em circulação ao falar doscamelôs? Deixemos que elas nos visitem.

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Insistência do herói

Inventário de imagens do reportar e das

reportagens

A fim de esboçar as linhas de força do imaginário sustentadopelos dois jornais com maior número de leitores no Rio Grandedo Sul (Zero Hora e Correio do Povo, respectivamente com1.482.800 e 949.600 leitores, segundo pesquisa do Ibope divulgadaem março de 2002), foram levados em conta os dois grandes eixosque tenciono cruzar: o das competências jornalísticas e o dasremissões imagéticas. O eixo das competências jornalísticas nãoé autônomo em relação às remissões imagéticas, pelo contrário:ele as engendra, e é engendrado por elas. Precisamente, estemovimento é que constitui o imaginário.

Se a competência jornalística for trialógica, articulando ética,técnica e estética, como quer Cremilda Medina, há que se arcar comuma complexificação das clássicas perguntas da fórmula do lide, quepode se encorpar significativamente ao se deixar contaminar pela éticae pela estética. Tome-se ética no sentido simples, das relações entreas pessoas, e a estética no sentido de raiz, tão sublinhado por MichelMaffesoli: partilha de emoções. Assim, as interpenetrações entre astrês instâncias das competências jornalísticas vão se dar, por exemplo,a partir da estética, com a mediação jornalística colocando em comum— comunicando, oferecendo à partilha — mundisensaçõespossibilitadas pela técnica, que dá forma à ética do envolvimento coma alteridade. Nada impede que se enxergue este jogo começando pelatécnica ou pela ética. Na verdade, ele não começa de lugar nenhum,ele está em curso o tempo inteiro, mas nosso olhar analítico solicitaum ponto de partida — seja dito, de apoio.

De qualquer forma, as confluências com a ética (do envolvi-mento) e a estética (das emoções partilhadas) complexificam astécnicas jornalísticas, de modo que, em primeiro lugar, o quem da

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velha fórmula se liberte da lógica identitária, bastante vigorosa namodernidade, e que implica um papel social mais ou menos fixo,traduzido pelo nome, idade, profissão. Observa-se umdeslizamento da identidade para a identificação, como dizMaffesoli, ou do sujeito coerente e uno para a pessoa múltipla. Onosso quem se enriquece, e temos já um protagonista, um serhumano plural e afetivo, que pode se dilacerar por meio de certezase se unificar por meio de contradições. Não se trata de umpersonagem qualquer, mas de um ser que irradie as forças cruzadasna origem da pauta. Do protagonista se espera a sustentação dareportagem.

Por passos análogos, Cremilda Medina ensina: o que doacontecimento se expande num contexto político, social, econômico,cultural, o quando não se limita ao imediato, mas se amplifica numprocesso histórico + mítico, o onde se desloca do que é simplesmentepróximo para o que é humano e universal, o como e o por quê jánão admitem esquematismos, exigindo do jornalista a tessitura deuma rede de significados (MEDINA, 1996, p.233 e ss).

A narrativa jornalística coloca em movimento, como todas asoutras, imagens, no sentido anteriormente mencionado, represen-tação mental não gratuita (isto é, determinada tanto por pulsõessubjetivas quanto por pressões objetivas), distinta de uma simplesduplicação mnemônica feita pela percepção. As imagens sãoimpalpáveis, indemonstráveis, habitam os limites da consciência.Estão lá, mas se as olharmos de frente, desaparecem. “A imagemé o olhar do nada sobre nós”, disse GODARD (2002, p.D12). Nãopodemos capturá-las, mas podemos entrar em contato com suasmanifestações. Por isso defini como sendo o das remissõesimagéticas esse segundo eixo, que busca mais diretamente oscontornos do imaginário jornalístico. Relembremos mais uma vezas contribuições de Gilbert Durand, que embasam esse momentodo estudo. As imagens podem se abrigar sob dois grandes regimes,o diurno e o noturno. O caminho para detectar essa organizaçãose abre por meio da isotopia das imagens: é necessário levantarsuas recorrências para saber se estamos diante de um imaginárioregido diurna ou noturnamente. Recapitulemos:

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No regime diurno da imaginação, a ação (que Gilbert Duranddenomina esquema verbal, já que o verbo designa a ação)fundamental é da distinção, engendrada pelo reflexo postural, queprivilegia as sensações à distância, visão e audiofonação. Asexplicações se dão conforme os princípios de exclusão,contradição e identidade, afins aos ato de julgar, discernir,sugeridos pela clareza advinda do olhar que se lança ao mundoquando se está de pé. As imagens arquetípicas, aqui, andam aospares, constituindo opostos onde o pólo da pureza se esforça portranscender o da impureza, o claro do escuro, o alto do baixo, ocume do abismo, o herói do monstro, etc.

O regime noturno abriga dois esquemas verbais (duas ações):reunir, que se coaduna com a dominante copulativa, trazendo areunião de contradições através do tempo, e se desdobrando emimagens arquetípicas como a do porvir, a da roda, a da androginia,a do deus plural; confundir, sugerida pela dominante digestiva,confirmada nas imagens arquetípicas de intimidade, calor,alimento, substância etc., e com explicações pelo princípio deanalogia e similitude.

Aos três grandes esquemas de ação correspondem trêsuniversos míticos: no regime diurno, tem-se o universo heróico(também chamado esquizomorfo, por causa da tendência àseparação), acionado pela distinção; no regime noturno, encontra-se o universo dramático (ou sintético), regido pelo verbo reunir,e o universo místico (ou antifrásico, por causa da tendênciaeufemística), cujo esquema verbal é confundir.

Cada um dos textos do corpus da pesquisa foi lido inúmerasvezes, tomando-se notas e se fazendo um levantamento dasimagens e das competências jornalísticas.

No eixo das competências jornalísticas, observei como, aolongo das reportagens, vão sendo respondidas as perguntas sobreo fato jornalístico (o quê?), seu sujeito (quem?), suas explicações,justificações e/ou lógicas (como? por quê?), o tempo (quando?) eo espaço (onde?).

No eixo das remissões imagéticas, seguindo o métododurandiano, prestei atenção às recorrências das três grandes ações

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(distinguir, reunir, confundir), às imagens arquetípicas e às lógicase explicações (exclusão, contradição, identidade; causalidade;analogia). Essas remissões imagéticas servem para detectar qualdos universos míticos é preponderante no embasamento da atitudeimaginativa das reportagens estudadas. Cada uma das matérias docorpus foi lida dessa forma. Selecionei uma delas para apresentarnesse momento. Considero-a representativa porque, como a maiorparte das outras, traz imagens predominantemente diurnas, e,como algumas das outras, traços de imagens noturnas. As palavrasnegritadas indiciam imagens que desejo destacar:

Ambulantes irregulares ameaçam enfrentar Brigada nas ruas hoje

Camelôs desafiam prefeitura

Vendedores ambulantes irregulares e técnicos daSecretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio(Smic) não chegaram a um acordo ontem, na segundareunião após a invasão do prédio no qual funciona o gabinetedo prefeito da Capital, João Verle, na segunda-feira.

Em tom agressivo, os camelôs anunciaram a intenção deresistir na área central da Capital e enfrentar a BrigadaMilitar (BM), orientada a apoiar a fiscalização rígida.

A tentativa de diálogo com vendedores ambulantes não-regularizados pela prefeitura esbarrou em uma decisão firmetomada pela Smic: a de não ceder os espaços públicosretomados do comércio informal no quadrilátero central —delimitado pelas ruas Caldas Júnior, Mauá, Doutor Florese Riachuelo. A intenção contraria parte das reivindicaçõesdos camelôs. Na segunda-feira — em uma reunião de 50minutos com a direção de fiscalização da Smic —, elesexigiram a liberação do comércio nas vias Doutor Flores,Sete de Setembro, Voluntários da Pátria, Marechal Floriano,Salgado Filho e Vigário José Inácio, e pediram a retiradado efetivo extra da Brigada Militar do Centro. Numa atitude

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agressiva, os ambulantes irregulares chegaram a cercar odiretor de Fiscalização da secretaria, Sebastião Barbosa.

Smic e B M renovam convênio para garantir a segurança

A mesma intransigência foi revelada ontem após umanova tentativa de diálogo:

— O resumo da reunião é: se quisermos trabalhar, seráabaixo de repressão da BM. Temos um grupo de cem camelôsirregulares esperando nossa resposta. Amanhã (hoje), vamospara a rua enfrentar a polícia — ameaçou Josmar Gonçalvesda Rocha, um dos representantes da Comissão dos CamelôsIrregulares.

O convênio firmado entre a Smic e o 9° Batalhão de PolíciaMilitar (BPM) foi renovado ontem. Segundo o comandante dePoliciamento da Capital (CPC), coronel Ilson Pinto de Oliveira,o mesmo efetivo normalmente utilizado será mobilizado paragarantir a segurança dos fiscais que sairão às ruas hoje. Odiretor de Fiscalização, Sebastião Barbosa, descartou oconfronto.

— Iniciamos negociações e estamos dispostos a ouvirnovas propostas. Não desejamos conflito, mas vamos seguira ótica da retomada e desocupação do Centro. Nãocederemos às pressões — alertou Juliano Inacio Vallejo,assessor especial da Smic para assuntos do Centro.

Prefeitura estudará shopping para camelôs irregulares

Ontem, em um único ponto houve confluência entre osdiscursos de ambulantes e autoridades: ambos concordaramem incluir camelôs irregulares no projeto de construção deshoppings populares.

Os ambulantes sugeriram os galpões das antigas lojasLobras, JH Santos e Colombinas — todos fora de uso naregião central. A análise da viabilidade técnica e econômicapor parte da Smic deve ser realizada nas próximas semanas.

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A decisão de enrijecer a restrição à atuação deambulantes foi aplaudida por empresários do Centro. Parao presidente do Sindilojas, José Alceu Marconato, o novoExecutivo, liderado pelo prefeito João Verle, trouxeexpectativas positivas para o comércio da Capital.

— Nós temos a obrigação de saudar a nova postura daSmic. Estamos ansiosos pela continuidade dessa disposiçãode manter a lei e a ordem. O Centro será melhor com essainiciativa — entende Marconato.

Ainda que o conflito com a BM tenha sido anunciadopelos líderes dos camelôs, uma nova reunião foi agendadaentre a Smic e os ambulantes para a próxima terça-feira.1

No texto acima, a imagem heróica da agressividade, encarnadapelos camelôs, constela com a imagem arquetípica, tambémheróica, do olho uraniano, que se depreende encarnada pelorepórter, ao buscar simplesmente descrever o que viu e ouviu,prendendo-se, pois, às manifestações sensoriais supostamenteverificáveis: uma cena e uma fala podem ser gravadas, bemdiferente do que ocorre com cheiros, por exemplo, e ainda maisdiferente do que ocorre com a atmosfera emocional.

O início dessa reportagem se organiza sob a espada heróica.A imagem arquetípica da pureza oposta à impureza se manifestajá no antetítulo (ambulantes irregulares), constelando com abelicosidade (ameaçam enfrentar; desafiam).

No terceiro parágrafo, o regime noturno se imiscui, com adramatização de imagens opostas. Uma negociação se tenta iniciar,mas é inibida pelo poder. Essa autoridade não sufoca completamenteo outro lado: contraria parte das reivindicações dos camelôs.

As imagens desse drama, no entanto, se reagrupam de outraforma a seguir, e a oposição diurna entre o fora-da-lei e aautoridade normativa reaparece: numa atitude agressiva, osambulantes irregulares chegaram a cercar o diretor deFiscalização da Smic.

1 NETTO, A. Camelôs desafiam prefeitura. Zero Hora, 10/abr/2002. p. 39.

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Muito embora o primeiro intertítulo anuncie o esquema verbalda reunião constelando com a representação diacrônica, no quepoderia ser um universo dramático (renovam convênio), há quese levar em conta o caráter homogeneizante da junção destes doispoderes instituídos, a Smic e a BM. A imagem é a da preparaçãopara o combate, diurna, pois, e não noturna.

A intransigência dos camelôs se revela, polarizando-se coma tentativa de diálogo que a autoridade quer estabelecer. Ora, arecusa a participar de um diálogo é mesmo uma atitude bestial, jáque a transcendência humana se manifesta também pela palavra,pelo verbo. A intransigência é a obscuridade que se opõe à clarezado diálogo; aliás, essa imagem luminosa constela com a darevelação, na mesma frase.

Forças dramáticas motivam o esquema verbal da reunião etemos algumas imagens de harmonização na declaração dorepresentante da Smic: “Iniciamos negociações e estamosdispostos a ouvir novas propostas”. O regime noturno seapresenta: “ ...houve confluência entre os discursos de ambulantese autoridades: ambos concordaram em incluir camelôsirregulares no projeto de construção... “.

Após a sugestão dos ambulantes, o universo dramático sedespede e o universo heróico se encarrega de terminar a reportagem,com mais imagens de esclarecimento (análise da viabilidade técnicae econômica), de virilidade soberana (decisão de enrijecer;obrigação de manter a lei e a ordem).

Na última frase, imagens contraditórias mais uma vez seorganizam dramaticamente, e o conflito dos camelôs com a BMnão exclui uma nova reunião deles com a Smic.

Às lógicas e explicações das remissões imagéticas correspondemos comos e porquês das competências jornalísticas. Comecemos poraqui o cruzamento desses eixos. Os camelôs ameaçam lutar corpo-a-corpo com as autoridades municipais porque a fiscalização dasatividades deles, camelôs, está mais rígida. Ao optar pelo binômiocausa/efeito, que nem com muita indulgência pode ser consideradouma explicação, a reportagem coloca numa zona cega as motivaçõesdos seres humanos envolvidos nessa história, e que os irmana comos possíveis leitores do jornal. Consideremos as explicações

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convencional-mente dadas: os camelôs existem porque não hácolocação para todos no mercado formal de trabalho; o própriosistema econômico e social precisa dos camelôs, para desafogara tensão que seria criada com sua exclusão total da economia;muitas pessoas vão para a camelotagem por opção, para escapardos impostos etc. Essas explicações não chegam a aparecer nasreportagens, que se detêm na imediatez da causa/efeito. Mesmoque se traçasse um quadro político, econômico e social com asexplicações possíveis, ainda estaríamos longe das compreensõesenquanto o jornalismo não reconhecesse o desejo mítico queestimula as ações humanas — no caso, o anseio pela dignidadena satisfação de necessidades materiais básicas, constituídas noprocesso civilizatório como condição para a transcendência daanimalidade.

As demais competências jornalísticas seguem a trilha aberta peloabstracionismo inicial dos comos e porquês. A lógica antitética dailegalidade se opondo à legalidade orienta naturalmente a caracte-rização identitária dos protagonistas da narrativa: representantes decamelôs irregulares, da Smic e dos lojistas. O papel social definidounidimensionaliza politicamente esses sujeitos, fazendo com queeles percam sua humanidade, como aconteceu antes ao se ignorarsuas motivações míticas.

O tempo (ontem) e o espaço (no centro de Porto Alegre) sãoabstraídos de seu furta-cor sacro-profano. Suas indicações servempara a reportagem cumprir os quesitos de atualidade e proximidade,tomados simplistamente. A abordagem esquemática do tempo fá-loabsurdo, desliga-o do processo dramático que dá sentido às nossasações. O espaço tem significação especial para os camelôs, pois nasua disputa reside grande parte de suas angústias. Apegar-se à letrada lei sobre o espaço público e concluir que os ambulantes estãoerrados porque se adonaram da rua equivale a uma profanação domundo deles, ambulantes. Assim, se os camelôs trazem o caos pordesorganizarem o cosmos público, também a sociedade profana oterritório sagrado dos camelôs ao julgar que eles estão onde nãodeviam estar. Na prática, essa situação tem mais nuances do que ojornalismo faz supor, e a própria a Smic dá conta, em seus relatórios,das “atividades toleradas” nas ruas.

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A seguir, em forma de sobrevôo descritivo, o resultado daimersão na leitura das reportagens tomadas conjuntamente:

Os contextos geradores da pauta se reduzem a alguns quêsao longo dos dois meses de acompanhamento do tema dos camelôsnos jornais estudados. O constructo mais recorrentemente dadocomo fato jornalístico é a tensão entre os camelôs, regulares ouirregulares, e as pessoas supostamente prejudicadas pela atividadedo comércio ambulante (os lojistas, pedestres, taxistas), ou entreos camelôs e os fiscais da Smic. Outros fatos que originam asmatérias são as iniciativas agressivas por parte dos camelôs(confrontos com policiais), protestos deles e alternativas para suasituação. Os camelôs aparecem, ainda, ameaçando a Smic eatrapalhando a vida cotidiana da cidade.

Há, também, uma matéria cujo fato é um músico de rua serinjustamente tratado como camelô. Nela, se assinala bem a diferençaentre os papéis aceitos, institucionalizados e os papéis marginais, nãoreconhecidos. O artista não tinha licença para tocar em público, evendia seus CDs na rua, o que é proibido. No entanto, a reportagemapresentou-o de forma simpática, mostrando que, ao contrário doscamelôs, o papel do músico é aceito, talvez porque não ameace ospapéis aprovados socialmente.

O protagonismo se encontra inibido pelo sujeito identitário.As matérias não apresentam uma pessoa múltipla vivendo a tragédiado cotidiano, e sim um quem unidimensional, identificável pelaprofissão e, às vezes, pelo nome: “conforme um dos ambulantes, quenão se identificou”; “afirmou um dos ambulantes, que preferiu nãose identificar”; “ameaçou o camelô Antônio Carlos Bonissoni”;“reclamou Marcos Santos, da Comissão de Camelôs Irregulares”;“diz Mário Rolim, 44 anos, auxiliar de gerente de uma loja decalçados na Rua dos Andradas”; “um ambulante, que ontemcomercializava ovos de Páscoa no Centro”; etc. O músicoconfundido com camelô, mencionado no parágrafo anterior, émostrado de forma mais complexa, com detalhes de sua vida, deseu modo de ser e de se expressar.

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Os protagonistas são, em geral, ambulantes regulares ouirregulares, que protestam, atrapalham o trânsito, brigam. Comuma incidência bem menor, mas igualmente significativa para oque se quer mostrar, os lojistas protagonizam o fato jornalístico,reclamando da falta de fiscalização municipal. Umas e outrasações deixam perceber a dimensão política desses protagonistas.

Já o artista confundido com camelô não tem só nome, idade,profissão, mas também é natural de Brochier, no interior doEstado, estudou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul ese apresentou nos Estados Unidos e Alemanha. Foi detido comose fosse ambulante, e todos essas ações sinalizam a (uni)dimensãopolítica do artista. No entanto, ele se pluraliza, porque sua históriapessoal é valorizada, sua voz aparece declarando amor por PortoAlegre, e sua ação na narrativa é profundamente humana:“violinista volta a emocionar”.

Buscando um cruzamento entre a abordagem jornalística dosujeito da notícia, do protagonista do fato, e a teoria geral doimaginário, evoquemos Gilbert Durand quando ele fala dos trêsníveis da tópica sociocultural: nos fundamentos, o nívelarquetípico, uma espécie de id, abrigando o inconsciente coletivoe a pluralidade dos arquétipos; a seguir, tem-se o ego sociocultural,o plano das teatralizações, dos papéis sociais; acima deste, osuperego sociocultural, nível dos empreendimentos racionaislógicos. (DURAND, 1996, p.145). Ao se racionalizar na tópicado superego sociocultural, o mito se desmitologiza. Mas, aqui,interessa que, no plano do ego sociocultural, das teatralizações,também chamado de actancial, os atores do jogo social desempe-nham papéis positivos, confortados pelo ideário vigente, e papéisnegativos, marginalizados, dissidentes.

No caso do protagonismo dos textos estudados, percebe-se queos próprios textos informam e reforçam os papéis aceitos e osmarginais. Dá para dizer que a produção jornalística integra o nívelracional, espécie de superego social em que residem os ideáriosadmitidos, exercendo um papel pedagógico, reforçando uns papéise desestimulando outros.

A abordagem do tempo e do espaço se faz pelo imediatismo(na manhã de ontem, no Largo Glênio Peres etc.). No primeiro

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caso, esse padrão se faz acompanhar, algumas vezes, de um esforçomaior por situar o fato num contexto histórico, e então a abordagemse expande em linha reta: do pontual para o panorâmico, apresentadoem boxes com cronologias.

No caso do espaço, mapas do local em questão acompanhamo texto, um serviço que se presta ao leitor para ele se organizarcaso precise, nas suas andanças, passar pelas áreas onde sedesenrolam os fatos.

O espaço mítico não é levado em conta pelo jornalismo. A ânsiade limites, no caso, geográficos, leva à definição de detalhescartográficos que, no entanto, não captam o onde cósmico(MEDINA, 1996, p.236). Mas nós, como o homem arcaico, tambémconhecemos a descontinuidade do espaço-tempo. Movimentamo-nospor espaços que podem ser vistos como sempre sagrados — casodos templos, dos lugares de recordação de vivências marcantes —e por espaços que, na descontinuidade do tempo, ora se sacralizam,ora se laicizam. Por exemplo, a nossa casa, rotineiramente, é profana,e se sacraliza quando ansiamos por ela no fim de um dia estafante:ela se torna, então, o lugar de retorno ao início perfeito, o ponto deonde é possível regenerar o mundo.

Mesmo para o homem contemporâneo, o espaço-temposagrado (mítico) se mistura ao espaço-tempo profano. Para queos lugares que ocupamos sejam legitimamente nossos, é necessáriaa fundação de um mundo, mediante uma repetição ritual dacosmogonia (ELIADE, 1999, p.30 e ss). Um camelô funda ummundo no momento em que estende sua lona sobre a calçada —ainda que esta fundação, do ponto de vista do lojista, seja umaameaça, e o camelô se torne, assim, invasor.

Ora, o ato de fundar o mundo não se dá no tempo histórico eirreversível, mas no tempo sagrado e reversível, ou seja, que podeser repetido quando for necessário. Os acontecimentos não serealizam inteiramente num instante histórico dado, como faz supora abordagem jornalística; estão em processo numa medida detempo histórica e também mítica, já que correspondem àcristalização de desejos a-históricos. Tanto a prática jornalísticade resolver a questão do tempo através de expressões imediatistas

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quanto a de organizar os acontecimentos por datas lineares,compondo cronologias, não reconhece a complexidade deste eixocom que, no entanto, o jornalismo trabalha o tempo todo: “Nãose contempla nunca a circularidade cultural, propulsora do ato deviver frente à morte” (MEDINA, 1996, p.235). O detalhamentodos espaços e tempos na narrativa traria afetividade e, pois, adimensão sagrada desse eixo.

Há persistência do binômio causa/efeito, incidência deexplicações e ausência de compreensão e de intercausalidade nosdebates conceituais das matérias estudadas. Os comos e porquêsse resolvem quase sempre na seqüência causa/efeito. Assim, prevê-se que haverá um conflito com os camelôs porque houvefortalecimento da fiscalização nos últimos dias. Outro fato, aconcorrência entre lojistas e camelôs na véspera da Páscoa, é causadopela fiscalização deficiente da Smic. Ou, ainda, a teimosia dosfruteiros irregulares é que causa a ação da Smic para coibi-los.

Às vezes, o fato é mostrado dando origem a um efeito, maisdo que sendo originado por uma causa: o impedimento doscamelôs de montarem suas barracas teve como efeito a melhoriada circulação de pedestres e taxistas. Outras vezes, estas duasperguntas (como? por quê?) não recebem resposta nenhuma, aocontrário das duas anteriores (onde? quando?), que sempre sãorespondidas. Com igual freqüência, ao invés de uma simples causa,é fornecida uma explicação, mais elaborada. No caso da ZeroHora, quase sempre a causa ou explicação vem num quadroseparado do texto, intitulado “Contraponto”.

O esquematismo das respostas que comporiam um debateconceitual sublinha a dificuldade, já anotada anteriormente, de ojornalismo orquestrar a multiplicidade de forças que se conjugamnum acontecimento. A prática jornalística se revela extremamentecomplexa e exigente. Como diz Cremilda Medina: “Na intimidadeesférica do acontecimento, com protagonistas complexos, processode acontecer em tempos e espaços também ricos de facetas, ogrande desafio é como a noção de intercausalidade substitui a decausa e efeito” (MEDINA, 1996, p.236).

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Há uma tendência diurna nas imagens remetidas pelosesquemas verbais, que giram em torno da distinção, com açõesde revelação, esclarecimentos (“o coordenador esclareceu que aimplantação do empreendimento é irreversível”), separação entrelegal e ilegal (“a rua Doutor Flores ficou livre da presença doscamelôs irregulares”), entre quem prejudica e quem é prejudicado(queda no faturamento do comércio em função dos vendedoresambulantes), enfim, entre puro e impuro.

Em menor escala, mas nunca desprezível, comparece oesquema verbal da reunião (“se os vendedores ambulantesacreditarem no sucesso do novo local”; “se trata de uma alternativaa longo prazo”), onde a lógica reúne as contradições pelo tempo,se creditando uma solução ao futuro, sinalizando as estruturasdramáticas do regime noturno.

O camelô, nas matérias, é a imagem arquetípica domonstro invasor. As imagens arquetípicas mais freqüentes são asdo caos e do monstro invasor (“camelôs invadem Centro navéspera da Páscoa”), seguidas pela do combate (“Para combatera proliferação de camelôs no Centro...”; iniciou uma operação decombate à venda irregular...”; “houve empurra-empurra, mas a PMconseguiu manter a ordem”). O monstro invasor é encarnado pelosvendedores ambulantes. Chegando de fora, eles ocupam umterritório que, supostamente, já tem dono. A rua, pública, é umespaço geográfico tornado sagrado pelo direito reconhecido aospedestres de por ali circularem. Há o espaço simbólico que oslojistas perdem para os camelôs quando os consumidores preferemcomprar dos ambulantes. Ora, quem profana o espaço sagrado ésempre o monstro invasor. Aliás, a palavra “invasão” compareceliteralmente nas reportagens. E o monstro invasor traz o caos, queé a motivação mesma das produções imaginárias (“As tardes dedomingo na avenida Guaíba, no bairro Ipanema, já não são tãoglamourosas como antes. A presença de vendedores vem mudandoa paisagem do local, que começa a assemelhar-se ao caos da regiãocentral de Porto Alegre, onde os ambulantes invadiram ruas ecalçadas.”).

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Num universo heróico como esse, o combate é uma das formasde se resolver o problema colocado pela angústia, e talvez por issosua figuração se associe ao caos e ao monstro invasor (“Durantetodo o ano de 2001, houve confusão, e os fiscais da Smic chegarama entrar em confronto com ambulantes não cadastrados...” “Osfiscais têm o reforço da Brigada Militar na repressão aosambulantes irregulares. Os choques se intensificam nas vésperasde datas comerciais, como Páscoa e Natal.”).

A imagem da pureza contraposta à impureza vem constelar nouniverso heróico e diurno que se firma: “Fiscalização retirouontem camelôs irregulares que dificultavam trânsito de pedestrese parada de táxis.” “Com a ausência de camelôs, os taxistaspuderam estacionar seus veículos no ponto junto à calçada e ofluxo de pedestres melhorou.”

O binômio anjo/animal faz sua aparição no episódio doviolinista detido como se fosse camelô: “Um veículo da BrigadaMilitar foi usado para calar os acordes do clássico Ave Mariaontem pela manhã...”. A imagem das “ruas proibidas aos camelôs”também vem reforçar essa tendência diurna.

Todas as outras imagens arquetípicas presentes enviam à açãodistintiva, exceto a imagem do porvir, que nos remete à açãounificadora. É quando se apresentam alternativas para regularizaro irregular: um shopping é construído para abrigar os camelôs, ea dialética dos antagonistas (lei x ilegais) anuncia um drama (alei se abre para acolher quem a contraria, e o ilegal se submete aum cadastramento que lhe trará exigências sociais em troca daregularização).

A tendência diurna e heróica à distinção verificada nosesquemas verbais se confirma e constela com as antíteses quepresidem os princípios explicativos. Ou seja, as representaçõesantitéticas e a exclusão/identidade apóiam as lógicas. Assim, osfatos têm sempre um protagonista (os lojistas, os motoristas queprecisam circular pela região central, os policiais da BrigadaMilitar) e um antagonista (os camelôs irregulares, que prejudicamas vendas dos lojistas, superlotam as ruas, dificultando o tráfego,agridem policiais).

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Enfim, o herói comanda o universo mítico do jornalismo,como mostra a conjugação dos eixos das competênciasjornalísticas com os eixos das remissões imagéticas. Desde oestudo do primeiro (pela ordem, não pela importância) aspectojornalístico, o do contexto, já se observa a fragmentaçãocaracterística deste universo mítico, que prossegue noprotagonismo, no recorte espaço-temporal, no debate conceitual.A representação da antítese polêmica confirma o universo míticoheróico no pressuposto ético de ouvir os dois lados, explicitado,no caso da Zero Hora, pelo quadro intitulado “Contraponto”.

A ação de separar domina a narrativa: o fato se descola do seuentorno social, econômico, político, cultural; o protagonista sedesumaniza, transformado em um papel social unidimensional; otempo e o espaço são pontuais, imediatos, sem ressonância como universal; o debate conceitual também recorta causas e efeitosque, além de apontarem para a fragmentação diairética, indiciamo procedimento judicativo, característico do herói que enxergacom clareza e levanta sua espada para separar o certo do errado.

A meticulosa separação em editorias reforça a imagem dadistinção. Por exemplo, na edição do dia 27/fev/2002, o Correiodo Povo traz, sob a rubrica de Geral, à página 6, uma matéria sobreo shopping popular para os ambulantes. À página 21, na editoriade Polícia, a mesma edição do jornal fala de tumulto com oscamelôs. Nenhuma relação entre os dois assuntos? A fragmentaçãoeditorial esquarteja a vida vivida.

Esse procedimento jornalístico de desconsiderar acomplexidade orgânica da realidade que lhe serve de motivaçãona sua construção simbólica parece inspirado pelo mitológicoProcrustes, um bandido que habitava a floresta no caminho entreMêgara e Atenas. Para reduzir suas vítimas a um tamanho comum,fazia-as deitarem sobre uma cama, cortava os pés de quem eramuito alto e esticava as pernas de quem era muito baixo. Comoexplica DIEL (1991, p.125), os pés e as pernas simbolizam a alma.Então, o procedimento de Procrustes denuncia a redução da almaa uma medida convencional; talvez, simbolize mesmo a perda daalma — também no jornalismo.

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Ao iniciar a pesquisa, procurei, entre as remissões imagéticas, assimbólicas, que, se diferenciando das imagens arquetípicas por suapolivalência, se expressam no texto através de palavras. No entanto,a tarefa foi desanimadora, não encontrei quase nada. Esta é, quemsabe, mais uma pista para entender a instauração da dicotomia entrereal e imaginário no jornalismo. O símbolo justamente não reconheceessa dicotomia, encarnando a fusão perfeita do aqui-simbolizante como alhures-simbolizado. Ao privilegiar a objetividade, o jornalismoprefere trabalhar com o objeto opaco, que não trai imediatamente aexistência do que o transcende. Mas se consegue escapar da armadilhaimaginal constituída pelo símbolo, demasiada explícita para não sernotada, o jornalismo não pode contornar remissões como as dasimagens arquetípicas, expressas pelas idéias gerais que permeiam otexto, as das ações e as das lógicas. Afinal, mesmo a busca da realidadevisível e palpável é ditada pelo imaginário. De novo, a imaginaçãodá as ordens.

DURAND (1997, p.391) faz a divisão do imaginário em trêsuniversos míticos diferentes, impulsionados pelo universo daangústia, mas deixa claro que a imaginação é sempre inteira. Se,de um lado, há um imperialismo das imagens e dos arquétipostolerados pela ambiência social — o que foi localizado,anteriormente, no superego sociocultural —, por outro lado há asfantasias advindas da revolta pelo sufocamento deste ou daqueleregime da imagem. O que faz uma estrutura preponderar sobre asoutras é a formalização, como a que ocorre em procedimentos quebuscam uma eficácia técnica. Daí a dificuldade de se proporqualquer método para se praticar um jornalismo complexo: afórmula monofônica pode sempre depauperar a polifonia dasformas, e se a fórmula for polifônica, já não oferecerá garantiasde execução, já não será uma fórmula.

No caso dos textos jornalísticos estudados, a imaginaçãoheróica, com toda sua combatividade implacável, obscurece aoscilação entre a esperança e o desespero, própria da imaginaçãodramática, e as amenizações eufemísticas, características daimaginação mística. Resta pensar nas conseqüências destesufocamento, já que os aspectos reprimidos de um imaginário nãodesaparecem, mas ficam latentes, preparando seu retorno.

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Quais aspectos do imaginário se reprimem no fazer jornalístico?Escolhi um mito gaúcho para servir de referência na resposta a essaque considero, como diz Todorov, a questão do outro. É a ele que ojornalista vai para fazer seu trabalho. A vocação jornalística supõeuma contínua abertura para o outro, possibilitada pela capacidadede espanto e de cumplicidade humana. Nada mais distante do espíritoda reportagem que um olhar entediado sobre o mundo. O jornalismoexige uma disposição para a promiscuidade, pois não hápossibilidade de relação sem que um dê ao outro algo de si e se deixeinvadir por algo do outro.

Um mito gaúcho fala da busca do si-mesmo como encontrocom a alteridade. Sugiro que esse seja o desejo mítico da vocaçãojornalística, e por isso te convido a ti, homem de alma forte ecoração sereno, a entrar na furna encantada do cerro do Jarau.

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A Salamanca do Jarau

Um mito de iniciação

A salamanca do Jarau foi publicada em 1913. O escritor, JoãoSimões Lopes Neto, nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul, em1865. Na adolescência, morou no Rio de Janeiro, onde estudouHumanidades, retornando à terra natal aos 17 anos. Trabalhoucomo corretor, funcionário público, despachante e jornalista.Recolheu histórias na tradição oral e publicou-as, mas superandolargamente o mero registro folclórico, conforme assinalaFISCHER (2002, p.16).

Em A salamanca do Jarau, Blau Nunes, que em outros contose lendas de Lopes Neto aparece apenas como narrador, participacomo personagem. A história se passa em 1650, quando um sacristãoda Missão de São Tomé, na divisa do Rio Grande do Sul com oUruguai, é encantado por uma princesa moura. Depois de duzentosanos, durante os quais o sacristão está preso ao encantamento, BlauNunes encontra seu fantasma e acaba por libertá-lo.

LOPES NETO (2002, p.50) explica que o cerro do Jarau ficana “Coxilha Geral de Santana, sobre a linha divisória com aRepública do Uruguai” e que salamanca é uma “furna encantada;provém a denominação da cidade de Salamanca, na Espanha, ondeexistia, diz-se, uma célebre escola de magia, no tempo dos mouros”.

Os estudiosos de literatura se inclinam sobre a questão dogênero: A salamanca é um conto ou uma lenda? Para os objetivosdesse estudo, no entanto, interessa que estamos diante de um relatomítico, onde se reconhecem imagens simbólicas, com suascontingências locais (gaúchas), induzidas por arquétipos(universais). A história é mais ou menos assim:

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Blau Nunes, gaúcho valente, domador, plantador e pobre,1

desde o dia em que topou com a caipora,2 ficou um pouco menostudo aquilo.

Já no início, imagens do universo heróico e místico dialogam,numa resultante dramática:

Domador destorcido e parador,3 que só por pabulagemgostava de paletear,4 ainda era domador, agora; mas, quandogineteava mais folheiro, às vezes, num redepente, era volteado.5

Blau não perdeu as qualidades do herói, e, sim, as teve um poucodiminuídas. Um dia, a cavalo, procurando um boi barroso, queestava perdido, ia cantando, e pensando na sua pobreza, no atrasodas suas cousas, quando se deparou com um vulto, de facetristonha e mui branca. Era o fantasma do sacristão encantado pelaprincesa moura, duzentos anos atrás.

Correu-lhe um arrepio no corpo, mas era tarde para recuar: umhomem é para outro homem!...

E como era ele quem chegava, ele é que tinha de louvar;saudou:

— Laus’Sus-Cris!6

O vulto respondeu à saudação, e disse que o boi barroso vaitrepando cerro acima. Blau, não tendo mencionado ao vulto o queestava procurando, se admirou da adivinhação, mas repostou:

— Vou no rastro!...— Está enredado...

1 A partir daqui, as palavras literais de Simões Lopes Neto são transcritas em estiloitálico. Utilizo a edição de Lendas do Sul introduzida e anotada por Luís AugustoFischer (Artes e Ofícios, 2002). As palavras em estilo negrito indicam imagensdiurnas e noturnas que desejo destacar para conduzir a interpretação que faço domito. São de Luís Augusto Fischer as explicações sobre o vocabulário regional,que achei por bem aproveitar.

2 Personagem da mitologia tupi, representado como um indivíduo que tem os pésinvertidos, com os calcanhares para a frente e os dedos para trás, e que traz azarpara quem o vê.

3 Destorcido: hábil; parador: peão que lida com o gado.4 Meter as esporas na paleta do animal, o que o faz reagir vigorosamente.5 Ser volteado: ser derrubado do cavalo.6 Nota de Simões Lopes Neto: “Forma abreviada e estranha, é certo, porém

expressiva, da saudação ‘Louvado seja Jesus Cristo!’. Ouvimo-la inúmeras vezes,em nossa infância.”

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— Sou tapejara,7 sei tudo, palmo a palmo, até à boca pretada furna do cerro...

Ao topar com o fantasma, os valores heróicos da valentia, damasculinidade, impedem Blau de fugir. Além disso, ele observauma regra de convivência civilizada, e saúda o outro de acordocom o hábito da época, mesmo achando que está diante de umaassombração. Não demonstra susto nem quando o fantasmaadivinha sua procura, e se dispõe imediatamente a seguir aindicação dada. E o que Blau procura? Um boi barroso, que,conforme nos explica Simões Lopes Neto, é um boi encantado,que aparecia porém nunca era encontrado, por muito procuradoque fosse.

Nesse início da narrativa, já podemos arriscar alguns sentidospara o mito. O arquétipo da busca coloca Blau frente a frente como fantasma; esse lhe indica um caminho complicado, que podelevar ao enredamento. O gaúcho, no entanto, confia no seu atributode tapejara, como Hermes, conhecedor dos caminhos. Parece quese anuncia, aí, um mito noturno, notadamente dramático.

O sacristão encantado pergunta o que Blau sabe da salamancado cerro do Jarau, e Blau lhe conta o que sua avó, índia charrua,contava. Em Salamanca, na Espanha, viviam os mouros, mestresda bruxaria, que tinham um condão mágico guardado numa furnaescura, no regaço duma fada velha, que era uma princesa moça,encantada, e bonita, bonita como só ela!... Numa quaresma, osmouros escarneceram do jejum dos cristãos, e perderam umabatalha. Foram humilhados e alguns se fingiram de batizados parapassar o mar e vir para o Brasil, procurar riquezas a fim derecuperarem seu poder sobre os cristãos. Trouxeram, paraprotegê-los, a princesa encantada que guardava o condão mágico.

Chegando aos pampas, o diabo deles, que neste lado do mundoera chamado de Anhangá-pitã, ficou muito feliz com os propósitosdos mouros. Transformou a princesa em teiniaguá sem cabeça.Esfregou o condão mágico no suor do seu corpo e virou-o em

7 Conhecedor dos caminhos.

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pedra transparente, e colocou a pedra por cabeça da teiniaguá.Ensinou à teiniaguá a vaqueanagem8 de todas as furnasrecamadas de tesouros escondidos por sovinas, perdidos para osmedrosos e achadios de valentes. E deitou para dormir, esperandoque as desgraças que semeou começassem a acontecer. Só nãotomou tenência que a teiniaguá era mulher.

Abundância de imagens noturnas: o condão mágico é guardadoem concavidades umas dentro das outras (no regaço da princesa,que estava dentro da furna). A princesa moura é transformadanuma teiniaguá, réptil, participante do bestiário da lua; sua cabeça,de pedra vermelha e transparente, é feita esfregando-se o condãocontra o suor do diabo, anhangá-pitã, que significa “diabovermelho”. Ora, o diabo também participa do imaginário noturno.

A pedra remete à experiência do eterno. Unida ao corpometamórfico da lagartixa-princesa, temos a permanência no seio daimpermanência. Além disso, a pedra é transparente, o que lhe dá umacaracterística de cristal, reforçando a dramatização dos opostos, numdiálogo da matéria com o espírito (FRANZ, 1995, p.209).9

Por fim, esse imaginário noturno destaca o elemento feminino,carregado de polivalência. A mulher pode ser terrível OU sedutora,mas, também, terrível E sedutora. Pode destruir e redimir. Aoesquecer que a teiniaguá é mulher, e isso é repetido três vezes nanarrativa, o diabo parece cometer um erro quanto à consecuçãode seus propósitos.

A partir daqui, o sacristão encantado toma a palavra e continuaa contar a história, dando testemunho do que viveu.

Num dia, na hora do mormaço, em que todos sesteavam, e porisso ninguém viu, o sacristão saiu da sombra fresca e benta e foiandando, como que levado até uma lagoa larga e funda.Inexplicavelmente, suas águas estavam fervendo. O sacristão deviavoltar para a igreja e fazer algo para esconjurar aquela obra do

8 Destreza em conhecer caminhos.9 Segundo M. -L. von Franz, o cristal simboliza, muitas vezes, a união de extremos

opostos, como a matéria e o espírito.

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inferno, mas não o fez: ficou lá parado e viu sair da lagoa, em meioa um clarão, sem medo e sem ameaça, a teiniaguá de cabeça depedra luzente, que veio até ele. Ele a colocou numa guampa comágua e a levou para seu quarto na casa-grande dos padres. Pôs aguampa dentro de um baú, e a teiniaguá encantada ficou, assim,triplamente guardada. Depois, ele saiu para buscar mel paraalimentar o animalzinho. Ao retornar, encontrou, no quarto, nãoa lagartixa, mas uma linda moça:

— Eu sou a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca domundo... (...) A teiniaguá que sabe dos tesouros, sou eu, mas soutambém princesa moura... Sou jovem... sou formosa..., o meucorpo é rijo e não tocado!... E estava escrito que tu serias o meupar. Serás o meu par... se a cruz do teu rosário me não esconjurar...Senão, serás ligado ao meu flanco, para, quando quebrado oencantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente,guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todasas riquezas que eu sei e as que tu carrearás por via dessas.

(...)

Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante ocrescente dos infiéis...

Vê-se que a princesa, por ser muçulmana, religião simbolizadana cena pela lua crescente, teme a cruz do rosário do sacristão.Não a leitura política, mas a leitura mítica me leva a sentir, aí, maisdo que o antagonismo entre cristãos e muçulmanos. A lua crescentesublinha, reforça, repete, insiste no elemento feminino. A descriçãode Lopes Neto me traz à mente uma representação do século IIIa. C., da deusa Ishtar, da Babilônia, em que ela traz na cabeça umacoroa em forma de lua crescente.

O sacristão, levando sua vida de acordo com o que a sociedadeesperava dele, quer conhecer o interdito, que é, no caso, o outro.E quer tanto que não denuncia aos padres a obra do diabo, a lagoacom água fervendo. Sua atitude é passiva, vale dizer, receptiva. Aintegração do feminino já começa ali. Para um homem cristão,nada mais natural do que ser apresentado à alteridade pela mãode uma mulher muçulmana.

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Terna, inocente e fatal ao mesmo tempo, a teiniaguá encantadaé a mulher que tem beleza, saber e poder. Encarna a terra-mãe,pois sabe dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo;encarna a mulher bela e sensual, pois sou jovem... sou formosa...,o meu corpo é rijo e não tocado!...

Até certo ponto, é possível reconhecer em A salamanca doCerro um esquema melusiano: “um ser sobrenatural apaixona-sepor um ser humano, segue-o no mundo dos mortais e se casa comele, sob a condição de ser respeitada certa interdição; com atransgressão do pacto, o ser sobrenatural retorna ao outro mundo,deixando descendência” (LANCNER, 2000, p.627). Esse esquemaestá previsto na auto-apresentação da princesa moura, que fala dacondição (se a cruz do teu rosário me não esconjurar) e projeta adescendência (do sangue de nós ambos nascer uma nova gente).

O sacristão bem que tentou levantar a cruz diante do rosto dabruxa, em salvatério, mas não conseguiu, porque olhos de amor,tão soberanos e cativos, em mil vidas de homens outros se nãoviram. Iniciou-se, para ele, uma seqüência de noites de orgia coma princesa moura que, de manhã, virava lagartixa e voltava para aguampa com água, dentro do baú.

A teiniaguá reúne símbolos das trevas — mulher terrível efascinante, que seduz um homem honesto e respeitador de valores.A queda moral está, assim, feminizada. O sacristão reage, de início,com medo do estrangeiro, mas é magnetizado pela anima daprincesa. Entrega-se, renunciando aos valores anteriormentecultivados. Ela lhe apresenta a animalidade, fá-lo entrar em contatocom as forças invisíveis, pode ajudar os homens a conseguir asriquezas que desejam, desempenhando um papel de ligadora dedois mundos. É solar e lunar, sua presença irradia luz e consola.Mantém uma relação especial com a natureza, pois pode semetamorfosear em lagartixa. Através dela, o sacristão toma contatocom a ambivalência, a instabilidade, o indefinível. Ele a amamesmo disfarçada em forma animal, imperfeita, porque aprendeua confiar no amor onde natureza e espírito estão unidos.

Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinhodo santo sacrifício; e eu fui, busquei no altar o copo de ouro

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consagrado, todo lavorado de palmas e resplendores; e trouxe-o, transbordante, transbordando...

De boca para boca, por lábios incendiados o passamos...E embebedados caímos abraçados.Imagens místicas como a do mel, do vinho, da mistura, da

fartura, da comunhão vêm compor a cena ao lado de imagensheróicas como a do altar, do ouro, do resplendor, da pureza.

O vinho, a embriaguez produz o enfraquecimento daconsciência, que permite ao sacristão, na sua iniciação orgiástica,“experimentar em sua plenitude o poder fertilizante da Mãe Terra”(HENDERSON, 1995, p.141). Beber da taça cristã ou da taça deDionísio é igualmente um ritual de comunhão. O que os diferencia,conforme HENDERSON (1995, p.143), é que a comunhãodionisíaca centra-se no eterno ciclo de nascimento e morte danatureza, enquanto “o mistério cristão acena ao iniciado, no futuro,com a esperança suprema de união com um deus transcendente”.

A queda do casal é conjunta, caem abraçados, encarnam ahumanidade decaída, mas consciente, tanto que, de dia, o sacristãosentia dor quando o padre lançava a bênção sobre a genteajoelhada, que rezava para alívio dos seus pobres pecados, quenem pecados eram, comparados com os meus.

Num amanhecer, os padres entraram no quarto do sacristão eo flagraram no cenário da última noitada com a moura encantada.Entre os objetos, uma echarpe com o desenho da meia-luaprendendo entre as aspas uma estrela.

Mais do que um indício da nacionalidade da amante dosacristão, vejo nesse desenho a lua crescente e a estrela de Belém,o princípio feminino dual da santa/pecadora.

Torturaram o rapaz para que ele dissesse quem era a mulhermuçulmana que o visitava. Ele nada disse, por senha da vontadea boca não falou... não falou por senha firme da vontade, e foicondenado a morrer pelo garrote, enforcamento sem suspensão,apertando-se ao redor do pescoço uma corda ou colar de ferro atéasfixiar o condenado.

A recusa do sacristão a falar aponta a oposição entre duasculturas, “a luta entre duas palavras investidas de poder: a cultura

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popular, da feiticeira, e a cultura letrada, dos juízes...” (GABORIT,2000, p.353). Há incomunicabilidade entre o discurso do poder eo discurso do outro, do saber popular. Sobretudo, o sacristãoconserva o silêncio dos iniciados, que nada declaram aos nãoiniciados sobre as coisas que devem manter em segredo.

Condenado fui por ter dado passo errado com bicho imundo,que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira. Aanimalização da feminilidade é a imagem angustiante que leva aoutra imagem angustiante, a da queda moral, ambas resolvidascom a imagem heróica da punição. Mas não é possível concluirque a motivação seja realmente heróica, pois não há arrependi-mento, ou seja, não há assunção do valor heróico.

Na hora da morte, o sacristão chorou uma lágrima de adeus àteiniaguá encantada, desencadeando um tremor de terra e umventarrão que estourou sobre a água da lagoa, acompanhados devozes guaranis — os índios que viviam na missão jesuítica em quese passa a história — , ordenando a libertação do condenado. Osolhos do pensamento do sacristão viam a linda princesa moura,que fazia força para libertá-lo.

A teiniaguá provocou um rasgão na barranca do rio Uruguai,que se despencou por ali. Quando todos achavam que tudo estavaperdido, apareceu no céu o desenho da Cruz Bendita e as coisasse aquietaram. O povo se recolheu, os padres, também e o sacristãoseguiu atrás da teiniaguá para a cerro do Jarau, sem peso de ferrosno corpo, sem peso de remorsos na alma.

A leitura moralista não é encorajada, pois o sacristão, mesmocrivado de pecados mortais, não se arrepende; pelo contrário, eleé libertado pela teiniaguá encantada. A cruz aparece no céu paraaquietar o povo.

Dentro do cerro do Jarau, o sacristão encontrou todas asriquezas, mas se enfarou de ter tanto e de não poder gozar nadaentre os homens, como quando era como eles e como eles gemianecessidades e cuspia invejas, tendo horas de bom coração pordias de maldade e sempre aborrecimento do que possuía,ambicionando o que não possuía... Ele viveu duzentos anos assim,e tinha consentimento para contratar a sorte com os homens de

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alma forte e coração sereno, mas que acabaram loucos, solitários.Muitos têm vindo... e têm saído piorados, para lá longe iremmorrer do medo aqui pegado, ou andarem pelos povoadosassustando as gentes, loucos, ou pelos campos, fazendo vida comos bichos brutos... (...) Mas todos os que vieram são altaneiros evieram arrastados pela ânsia da cobiça ou dos vícios, ou dosódios: tu foste o único que veio sem pensar e o único que mesaudou como filho de Deus...

O sacristão encantado não teve, ainda, concluída sua iniciação.Depois de ter vivido seguindo os valores heróicos, masculinos,olhando para o céu e distinguindo o pecado da virtude, o certo doerrado, afundou-se na terra, entrando na salamanca do cerro,encontrando a riqueza. Migrou de um pólo a outro, nãoconseguindo, ainda, o diálogo entre eles, mas sabe que é nessediálogo, nessa dramatização que reside seu equilíbrio. Diz: a vidaé um peso entre o mandar e o ser mandado. E: tempo e homemvirão para me libertar (...) eu esperei, no entanto, vivendo naminha tristeza seca de arrependido que não chora... Tudo o quevolteia no ar tem seu dia de aquietar-se no chão.

Estando preso à furna, no meio da terra, o santão do cerroprepara seu renascimento, pois a terra é um ventre materno, deonde se sai. Para isso, ele precisa ainda da ajuda de um homemde alma forte e coração sereno, que o saudará três vezes em nomede Deus.

Blau Nunes era esse homem, e foi convidado a entrar na furnaescura, um lugar povoado pelos espíritos da teiniaguá, seusescravos, que metem medo em quem é covarde e encorajam quemé firme. Blau entrou na salamanca silenciosa, onde ele sentiu mãosde gente que não viu, ouviu ruídos de espadas se chocando, divisousombras de homens brigando. Pensou em parar, mas lembrou daregra que o vulto da face branca e tristonha ditou — alma forte ecoração sereno. Seguiu o conselho, não recuou, não enfrentou assombras, e meteu o peito entre o espinheiro de espadas, sentiu ocorte delas, o fino das pontas, o redondo dos corpos. Soube quesua atitude estava certa porque mãos mais leves bateram-lhe noombro, como carinhosas e satisfeitas.

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O ritmo, imagem dramática, dá a Blau a solução do desafioque tem de enfrentar. Ele não luta, como faria um herói típico, nemrecua, como faria um místico típico; mantém-se sem pressa nemvagar, atravessando pelo meio de espadas que se chocam, dejaguares e pumas de goela aberta, de esqueletos e corpos de sereshumanos despedaçados, de fogo e água fervente, passando ao ladode uma cobra cascavel, andando, sem dar atenção a uma rondade moças — cada qual mais cativa, que lhe acenavam para alindeza de seus corpos, atirando no chão esteiras macias, numconvite aberto e ardiloso. Vai andando, embora com as fontesgolpeando, por motivo do ar malicioso que o seu bofe respirava,e atravessa assim, também, o sétimo passo da prova, quando érodeado por uma tropa de anões cambaios e cabeçudos, cada qualmelhor para galhofa. (...) Porém o paisano meteu o peito neles epassou, sem nem sequer um riso no canto dos olhos.

A incursão de Blau pela furna encantada é uma descida a ummundo pavoroso, mas todas as ameaças que surgem diante delesão fantasmas, que, ao serem ignorados, são vencidos. Entrar nafurna, subir e descer, atravessando portas, é refletir, ingressar nopróprio mundo, um percurso que se cumpre para descobrir todoo universo latente que existe no interior da terra-mãe. Blau faz atravessia das aparências em busca da riqueza, e descobre que omundo é um “teatro de sombras” (PEYRONIE, 2000, p.564). Ocaminho simbólico em busca de conhecimento é um percursoiniciático, em que Blau é incentivado pelo desejo e testado pelasdificuldades de alcançar a sabedoria.

E se pensássemos que Blau e o sacristão encantado são um só?No início da história, o gaúcho está à procura de um boi barroso,um boi que aparece mas nunca é encontrado. Isso não mostrariao desejo mítico de compreender o imponderável? Blau teve umamudança em sua vida, e desde o encontro com a caipora tempassado por dificuldades. Pobre de dinheiro, rico de talentos: bomdomador, bom plantador, bom de briga. Esses talentos diminuem,obrigando Blau a olhar com mais atenção para dentro de si. Oslimites externos forçam o homem a procurar respostas internas —o boi barroso. É então que o paisano encontra o fantasma do

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sacristão encantado, como se visse, diante de si, sua própria almadesejosa de emancipação.

O tapejara, hermesiano, conhecedor dos caminhos, finalmenteestá em condições de encarar um desejo que o assombra, esse doconhecimento de algo além. Desejo que certamente habita ohomem desde o nascimento, mas precisa ser reconhecido,assumido, respeitado para ter condições de ser realizado. Emboraessa vontade ancestral estivesse o tempo todo dentro de Blau,somente no momento certo ele a reconhece. É quando vê ofantasma e o cumprimenta.

Para se libertar, o sacristão devia ser saudado três vezes porum homem de alma forte e coração sereno. Quando Blau o vê, seassusta, mas não foge, convoca seus valores, um homem é paraoutro homem, e louva do jeito que a sociedade manda, comrespeito, Laus’Sus-Cris. Isso o credencia a entrar na furna eprocurar os tesouros prometidos pela princesa moura.

A descida de Blau à terra é mesmo uma descida aos infernos,e ele é assaltado pelas imagens de sua angústia: lutas de espada, elembremos que ele era valente, bom de briga, mas tem deabandonar esse seu aspecto heróico e ir adiante; animais ferozes,e Blau é domador destorcido e parador, mas nessa hora ele nãoenfrenta as feras, nem foge delas; corpos despedaçados, esqueletosestão no seu caminho, e Blau sente que a reação habitual de fazero sinal-da-cruz precisa ser abandonada; segue em frente, semesboçar gesto.

As respostas habituais desse gaúcho são extremas: ou puxar aespada, ou fugir, ou se entregar totalmente, como seria no casodas moças sedutoras e dos anões engraçados. Mas, agora, Blau temde responder às angústias sem ceder à polarização de valores.

Ao final dos sete passos, ele reencontrou o fantasma, que lhetomou a mão e o levou até uma velha com uma varinha mágica.Ela lhe ofereceu opções de recompensas por ter passado nos testes:sorte no jogo; dom da música que atrai as mulheres; o conheci-mento das plantas, para curar; a mão certeira, para não errar golpede tiro, lança ou faca; a obediência do povo de seu distrito; ariqueza de campo e de gado; o dom das artes plásticas e das letras.

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Blau recusou tudo, e ficou quieto, sem dizer que o que queria eraa teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo!... Éstudo o que eu não sei o que é, porém atino que existe fora de mim,em volta de mim, superior a mim... Eu te queria a ti, teiniaguáencantada!...

Eis explícito o desejo mítico de se ultrapassar, de renascer, dedescobrir o outro. As recompensas oferecidas pela velha nãotentam Blau, pois fazem parte da impermanência do mundo que,ele acaba de saber, não passa de sombras. Essa é uma história sobrea plenitude do amor humano: a carne, enfim satisfeita, quer recebera vida espiritual, a ser concedida na descoberta do outro.

Blau desejava o conhecimento, entrar nos mistérios do mundo,mas isso não lhe foi oferecido, e ele não ousou falar. Saiu da furnasem levar nada e, uma vez lá fora, se arrependeu de não teraceitado nada do que fora ofertado. Apareceu-lhe, então, o vultode face branca e tristonha, que lamentou o ocorrido, mas seabsteve de julgar, dando-lhe uma resposta dramática:

— Não te direi se bem fizeste ou mal.Blau recebeu do fantasma, para aliviar a pobreza que o afligia,

uma onça de ouro furada pelo condão mágico, que lhe dariasempre tantas outras moedas quantas quisesse, mas sempre umapor vez. A partir daí, o gaúcho não teve mais problemas comdinheiro: metia a mão na guaiaca para tirar as moedas dopagamento, encontrava-as até que bastasse, mas sempre uma decada vez, o que se tornou uma dificuldade nas compras mais caras,quando ele passava quase o dia inteiro a tirar moeda por moedada bolsa.

Tudo parecia correr bem, mas quem fazia negócio com ele,depois, passava a fazer maus negócios, e perdia exatamente aquantia que tinha recebido de Blau. Logo se comentava que asúbita riqueza dele era mandinga arrumada na salamanca doJarau, onde ele foi visto mais de uma feita. Passou a ser evitadopor todos, e ficou solitário. Resolveu voltar ao cerro para acabarcom o cerco de isolamento, que o ralava e esmorecia... Lá,reencontrou o sacristão encantado, saudou-o em nome de Cristo(Laus’Sus-Cris!...) e jogou-lhe aos pés a onça de ouro furada pelo

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condão, dizendo que preferia a pobreza à solidão. Despediu-se,Fica com Deus, sacristão — e essa foi a terceira vez que falou onome de Deus ao outro, quebrando o encantamento que o prenderapor duzentos anos. O cerro do Jarau tremeu e os tesouros dasalamanca se queimaram.

Para os olhos de Blau, o cerro ficou transparente, e ele viuos personagens que o assombraram nos sete passos, os brigões,os jaguares, os esqueletos, os anões, as lindas moças, tudo torcidoe enovelado, amontoado, revolvido, corcoveava dentro daslabaredas. Um universo, sem dúvida, diurno, onde o herói atingea clarividência e observa o fogo purificador.

A teiniaguá e o sacristão, no meio disso tudo, passaram maisuma vez pelas transformações que sofriam durante oencantamento: ela, de velha enrugada em teiniaguá, em princesamoura e, por fim, em tapuia formosa; ele, de fantasma a sacristãoe, por fim, em guasca desempenado. O par, juntado e tangido peloDestino, que é o senhor de todos nós, aquele par novo, de mãosdadas como namorados saiu em viagem de alegria, a caminhodo repouso!...

Um desfecho perfeitamente dramático, onde as polarizaçõessão abolidas pela reunião proporcionada pelo amadurecimentotrazido pelo tempo — o destino.

Blau Nunes ficou com o coração aliviado, sabendo que erapobre como dantes, mas que comeria em paz o seu churrasco...;e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!...

Após a jornada interior, que o levou ao conhecimento de si,Blau volta transformado, valorizando a vida. Ao vencer os setepassos dentro da furna encantada, ele se faz merecedor, sim, doconhecimento que deseja, e o ganha na sua vida prática, com aonça furada pelo condão e todas as experiências de relacionamentocom a alteridade que ela proporciona. Volta ao cerro para devolvera onça mágica porque não precisa mais dela, já renasceu. O casalnovo, que parte em viagem de alegria, mostra como o únicomomento do eu se faz na descoberta do outro. Ao cumprimentaro fantasma por três vezes, Blau alcança sua própria emancipaçãoe, além disso, ensina que cada um deveria permitir ao outro entrarno paraíso.

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Árvore de Folhas caducas

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Como Blau Nunes sai em busca do imponderável, percorrendoum caminho iniciático, também o repórter, na sua viagem cotidianaà sociedade, faz um caminho simbólico, em busca do boi barroso:o fato jornalístico, afinal, existe, aparece, mas nunca é capturável,por obedecer ao imaginário, que o funda e o abala sem nosprevenir. Como Blau, também o repórter, após todas as aventurasque tomam corpo em narrativas, encontrará o que estava lá o tempotodo, mas que só se revela na abertura para o outro: ele mesmo.

A teiniaguá encantada é esse real tão perseguido pelo jornalista.Para chegar até ela, é solicitado o abandono de gestos habituais,como o julgamento do que é relevante e irrelevante, e a adesão àsimposições do mercado, por exemplo. No caminho de Blau, essaetapa corresponde aos sete passos, que ele dá corretamente,mantendo-se sereno, sem rejeitar nem apegar-se a nada.

A despeito de estar face a face com a teiniaguá encantada, ojornalista não consegue, como Blau não conseguiu, possuir averdade, dominar o real que ele sabe existir fora de si, em volta desi, superior a si. Falta-lhe atinar para sua ligação orgânica com issoque ele sente como exterior. Entrar na furna encantada lhe possibilitadesenvolver a coragem e a serenidade, mas depois é necessário sairdela e descobrir a importância dos relacionamentos. A salamanca docerro do Jarau diz que o único conhecimento possível é o de si,através do outro.

Como Blau deu ao sacristão encantado a senha para que elepudesse se libertar e se unir à princesa moura, também o percursodo jornalista alcançará sua significação final ao ser oferecido àpartilha em forma de narrativa, fornecendo ao leitor não as chavespara entrar no paraíso, mas um fiozinho para estimular seu ingressono labirinto — o mundo ou o autoconhecimento, dá na mesma. Aliás,já se disse que o fio de Ariadne é o fio do discurso. A narrativajornalística é um fiozinho cujo destino é ser abandonado, porquesó servirá de pretexto para que outras realidades se construam.

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A busca do fato como busca do boi barroso nos ensina que oreal, sendo fundado no imaginário, é fugidio. Não se trata de pegá-lo, e sim de construí-lo. Mesmo esse constructo nos escapa aseguir, pois, ao se erguer, é imediatamente apropriado emodificado pelos outros partícipes.

O fato, afinal, não importa, e sim o imaginário. Enxames deimagens se amontoam e formam um ponto, que se apresenta,assim, distinguível e é chamado de real. Ele existe, sim, mas comoresultante do cruzamento de vetores imaginais.

Mesmo se esforçando por introduzir a disjunção real/imaginário, o jornalismo não consegue se livrar do que o assombra.Para ele, o real é sagrado; exatamente como o homem religioso(ELIADE, 1999, p.72), o jornalista quer chegar ao tempo em queas coisas nascem, os fatos ocorrem. Essa sacralização do realindicia que o jornalismo sente o poder instaurador do imaginário.

No entanto, há um conjunto de regras a serem seguidas pelojornalista, e elas estimulam mais as estruturas heróicas do que asmísticas ou dramáticas do imaginário. Também o jogo de poderdas empresas de comunicação pode trazer uma explicação: ojornalista é obrigado a seguir a linha editorial de quem o contrata,e, em geral, as linhas editoriais prescrevem mais a distinção doque a reunião dramática e a confusão mística. As justificaçõespolíticas e econômicas foram várias vezes trazidas à luz pelasanálises críticas da comunicação. Buscando uma motivação maisdo que uma explicação, eu diria que o jornalismo expressademandas humanas, e uma delas, certamente, é o desejo míticode paralisar o mundo, sentir-se inalterável e imortal. Seguir regrasé, também, tentar experenciar algo eterno.

A abordagem jornalística do tempo o constrói de modoimediato e linear. Eis, de novo, o desejo mítico de eternidademotivando a ação: o tempo linear é sempre igual, cada instantetem o mesmo valor dos outros instantes. Só que isso, ao invés deestabelecer a eternidade do sempre igual, traz a efemeridadeextrema, porque a validade da informação se atém à sua atualidade.É assim que a compulsão difusionista atraiçoa um outro desejomítico do jornalista, que é o de transformar o mundo, conforme bem

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vemos nos depoimentos de L. e G. A mudança se assegura no tempocircular e mítico, e não no linear e histórico. Recriar o mundo é gestodivino, acolhido no tempo sagrado, que se abre para os momentoshumanos culminantes, propiciadores da renovação. Como ojornalista pode entrar nesses tempos fabulosos? Bachelard responde:sendo sério como uma criança sonhadora, substituindo a percepçãopela admiração. “Admirar para receber os valores daquilo que sepercebe” (1988, p.113). (Grifo meu.) Para receber, não para ditaros valores. Nisso nos ajuda o formismo, bem destacado porMaffesoli: o que se passa é importante porque se passa.

O inventário das imagens das histórias dos camelôs, quepautaram as reportagens estudadas, mostra a pluralidade fértil quepermite ao homem comum multiplicar suas estratégias diante dosproblemas colocados pela pulsão vital. Esta multiplicidadeconstitui uma riqueza à qual têm direito de acesso todos os sereshumanos. O jornalismo procura detectar fatos e explicá-los, masse esquece de voltar àquilo de que se alimenta: as vivênciascotidianas, que constituem a maneira que o ser coletivo tem de selançar ao mundo — o imaginário.

A pluralidade, reconhecida por fazedores e teóricos como umideal a ser buscado pelo jornalismo, é própria, como vimos, doregime noturno da imagem, mais especificamente do universomítico dramático. Portanto, a retórica sobre a pluralidadejornalística não se coaduna com a prática que, como se podedepreender a partir das leituras míticas do reportar e dasreportagens nesse trabalho, se aglutinam com prevalência sob oregime diurno da imagem. O jornalismo que não depõe as armasjamais poderá dialogar com o cotidiano e o homem comum. Omito da salamanca do cerro do Jarau mostra a incomunicabilidadeentre o discurso do poder e o saber popular. Para dissolvê-la, nãobastam os bons propósitos. Um processo iniciático terá de serempreendido, com dor, sim, pois exige o abandono de automa-tismos, mas também com encantamento, o mesmo que, em geral,leva alguém a se tornar jornalista. É uma terceira alternativa às duasoutras, deprimentes, que se apresentam ao repórter atravessado porcontradições: burocratizar-se ou abandonar a profissão.

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Conforme Gilbert Durand, vivemos hoje, ainda, sob a influênciade Prometeu, o mártir, um mito do século XIX que está nas nossaspedagogias, com sua obrigação ao saber; Dionísio, libertado emrelação a qualquer ambição, comparece, especialmente, nos media;e Hermes, com as suas características relacionadoras, inspira aciência. Esta delimitação de território pode, no entanto, serextrapolada na tentativa de uma compreensão do jornalismo a partirde suas relações com o imaginário.

O jornalismo participa dos media, mas constato seu domínio porimagens solares, e não místicas. Isso, aliado às suas ânsias explicacio-nistas e à indicação que ele faz dos papéis aceitos socialmente,percebida na lógica identitária que rege sua relação com as fontes deinformação, mostra que Prometeu o anima. No entanto, a generosidadede Prometeu, sacrificando-se para trazer à humanidade o fogo dointelecto, pode se transmutar em vaidade, apagando a motivaçãooriginal do ato heróico: o outro. A busca institucionalizada do prazerdionisíaco nos media, por exemplo, flagrante na recorrência deprogramas televisivos abundantes em apelos eróticos, esquece que “oorgiasmo é o próprio desmentido da história abstrata, então é tambéma afirmação coletiva da história vivida no dia-a-dia” (MAFFESOLI,1985, p.177). O jornalismo, nesse sentido, tem uma esplêndida formade se deixar levar por Dionísio, oferecendo-se como encruzilhada aossaberes do homem comum e, assim, sem arrogância explicativa,transfigurar-se em Hermes.

De onde vem a necessidade humana de informar-se? Talvez,das pressões do meio sociocultural, que não perdoam quem nãoestá a par das últimas notícias. Uma pessoa que não se deixaagendar1 pelos meios de comunicação pode ser marginalizada noseu grupo por não poder partilhar das conversas (fiadas, quesejam), e isso não porque seja impossível ter seu ponto de vistasobre os assuntos em pauta sem se expor aos media, mas porque

1 A hipótese agenda-setting diz que as pessoas agendam os assuntos de suasconversas em função do que os media veiculam. Ela faz parte do paradigmafuncionalista dos estudos de comunicação.

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os media dão a conhecer o clima geral a respeito do tema(HOLFELDT, 2001, p.235).2

No entanto, captar a opinião geral que se tem sobre os assuntosnão há de ser o único motivo pelo qual as pessoas acompanhamos jornais. Saber o que se passa e o que se pensa sobre o que sepassa é importante, mas cansativo. Mesmo com o grande númerode pautas que são descartadas nas redações dos jornais todos osdias, a quantidade de informação disponível não pára de aumentar.Não somos capazes de absorver tudo o que recebemos pelosmedia, mas mesmo assim continuamos a nos expor a eles. Porquê? Porque essa atitude mantém firme o laço que nos une ao restoda humanidade. Estamos, desta forma, sim, imageticamenteligados ao mundo.

O que une os sujeitos receptores entre si não é a pletora deícones e de informações que invade os lares todos os dias, mas aimagem dessa união, que se movimenta a partir do momento emque se ligam os aparelhos de comunicação, em que se compram ese abrem os jornais. A imagem em jogo, nesse caso, não parte dosmedia em direção aos receptores; os media, sozinhos, nãoproduzem imagem. Eles podem constituir uma intimação que, seentrar em ressonância com a subjetividade do receptor, poderácriar um espaço para a circulação de imagens, dentre as quais sedestacarão as do sentimento de partilha do mundo. MAFFESOLI(1995, p.93) vê na imagem midiática, antes de tudo, “um vetorde comunhão, ela interessa menos pela mensagem que devetransportar do que pela emoção que faz compartilhar”. Aí está adimensão estética e dionisíaca das narrativas jornalísticas: oferecerà partilha modos de ver, viver, sentir, enfrentar o mundo.

A estética, então, não se limita a uma forma de expressão, auma linguagem mais ou menos figurada, a um texto mais ou menosprazeroso. Trata-se de uma estética comprometida com a relaçãode ser humano com ser humano, ou seja, com a ética. Para assumir

2 A hipótese da espiral do silêncio, desenvolvida por Elisabeth Noelle- Neumann,diz que a sociedade ameaça os indivíduos isolados; o medo ao isolamento fazcom que os indivíduos tentem avaliar continuamente o clima de opinião, o que éfeito através da exposição aos media.

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esta estética, as técnicas têm de ser repensadas, reinventadas,reconstruídas.

Longe de ser atrapalhado no conhecimento do fato que narrapor seu envolvimento nele, o jornalista o desconhece porque nãose envolve. A cumplicidade afetiva (Cremilda Medina) é o meiopara o repórter perceber as forças que jogam sobre o tema de suapauta. É com ela que se conhecem não só os lados opostos de umcombate, como os do universo mítico heróico, mas também aencenação da esperança/desesperança do universo míticodramático e o apaziguamento místico. Uma narrativa fiel aos fatosserá, em primeiro lugar, fiel aos protagonistas dos fatos,inseparáveis deles. Se “onde és terno, dizes plural” (Barthes), acumplicidade afetiva vai levar à multiplicidade e, pois,aprofundamentos e larguezas.

O jornalismo separa o real do imaginário na medida em quesupõe o real como algo verificável, seja pelos argumentos(intelectualismo), seja pelas experiências (empirismo). Num caso,parte-se de um mundo em si que age diante dos nossos olhos;noutro, tem-se uma consciência ou um pensamento do mundo,“mas a própria natureza deste mundo não mudou: ele é sempredefinido pela exterioridade absoluta de suas partes e apenasduplicado em toda a sua extensão por um pensamento que oconstrói.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.69). Ou seja, aobjetividade e a subjetividade absolutas têm o mesmo valor, é aíque Merleau-Ponty vê o parentesco profundo entre o empirismoe o intelectualismo. Deixar de falar em reprodução da realidadepara falar na sua representação é ainda sustentar que a realidadeé em si, está intacta em algum lugar.

“Os problemas da ‘realidade’ surgem quando os ingredientesde universos complexos são subordinados a conceitos abstratos edepois avaliados, isto é, declarados ‘reais’ ou ‘imaginários’ nessabase. Não são o fruto de modos de pensar mais sofisticados; surgemem virtude de questões delicadas comparadas com idéias em brutoe consideram-se destituídos de rudeza.” (FEYERABEND, 1991,p.81). O problema de classificação, se não desaparece, pelo menosdeixa de ser tão agudo caso o jornalismo compreenda que a narrativa

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do mundo imediatamente se integra a esse mundo. A percepção domundo já é o próprio mundo:

(...) não é preciso perguntar-se se nós percebemosverdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário: omundo é aquilo que nós percebemos. Mais geralmente, nãoé preciso perguntar se nossas evidências são mesmoverdades, ou se, por um vício de nosso espírito, aquilo que éevidente para nós não seria ilusório com referência a algumaverdade em si: pois, se falamos de ilusão, é porquereconhecemos ilusões, e só pudemos fazê-lo em nome dealguma percepção que, no mesmo instante, se atestava comoverdadeira, de forma que a dúvida, ou o temor de se enganar,afirma ao mesmo tempo nosso poder de desvelar o erro e nãopoderia, portanto, desenraizar-nos da verdade. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.14).

O jornalismo, por mais informativo e objetivo que almeje ser,dá existência não só a informações, mas a todo um universosimbólico, como se viu no mapeamento do imaginário das matériasjornalísticas. No universo vivido, o mítico não se separa doracional, o tempo histórico não exclui o cíclico, o espaço sagradonão se divorcia do profano. As coisas percebidas podem dizer maisdo que sua imediatez, eis o pensamento mítico indissociável doracional; os rituais cotidianos são ciclos dentro da linearidadehistórica, os momentos de festa, ainda que historicamentemarcados, são momentos de volta ao informe primordial, eis aregeneração periódica do mundo se metendo no progressismo. Oesforço heróico, se deixado agir sozinho, no entanto, é bem capazde levantar seu gládio e arbitrar um corte no mundo, chamandoum pedaço de real e outro de imaginário.

A reportagem resultante e a que deixa de resultar do processo depauta, captação, redação e edição não é efeito de um acontecimentoexterno ao jornalismo, mas, sim, representa o jeito de esse jornalismoir ao encontro do mundo, ou do que é chamado de fato. O jornalista,em quem as pressões do sistema que o emprega se cruzam com assolicitações plurais dos universos dos quais é mediador, acaba

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desconfiando de suas intuições e se convence de saber “aquilo quepercebe melhor do que o sabe na percepção” (MERLEAU-PONTY,1999, p.388). Então, fazem-se ouvidos moucos aos gritos da intuiçãoque, justamente, é o caminho para se obterem os significados maispreciosos, segundo Trinca: “Somente por essa intuição podemos saberalgo mais a respeito da existência que se apresenta; porque, nessascondições, o que se apresenta é anterior à contextualização oferecidapelo entendimento e pela razão” (1999, p.248). No jornalismo,entretanto, os sonhos, desejos, anseios, medos, devaneios, afetividadessão apagados, e do mito fundante não restam que os aspectos toleradose institucionalizados pela ambiência sociocultural, econômica ehistórica. O procedimento de ignorar as intuições começa pelaexclusão da possibilidade do envolvimento afetivo. É dada atençãototal às induções e deduções, que se mostram seguras por semovimentarem sempre a partir do que já está aceito. Por isso, ojornalismo tem um aspecto repetitivo tão forte.

Agarrado a técnicas e prescrições, sejam elas as daobjetividade, precisão, imparcialidade, isenção ou exatidão, ojornalismo ignora as vivências, os fenômenos que atestam aindissociabilidade do real com o imaginário, considerando o realcomo em si e o imaginário como versões, interpretações, pontosde vista sobre o real. Mas se o fato não é separado de alguém queo viva, percebê-lo é comunicar e até comungar, não simplesmentedifundir. Como diz Merleau-Ponty, ao reino do percebido nãopertencem só os objetos presentes, mas tudo aquilo que faz partedo nosso ambiente e que cuja existência ou inexistência contampara nós: “O respeito dos outros homens ou essa amizade fiel jáme deixam em dificuldades quando se retiram” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.430).

O jornalista não tem dados a coletar no seu trabalho, e simimagens a considerar. A realidade não é algo que está aí o tempotodo, esperando ser descoberta; ela tem de ser inventada. Ela nãoexiste sem a subjetividade, e uma vez instaurada, nunca é a mesma:depois que a percebemos, nossa percepção a altera, e vice-versa, demodo a ser impossível atribuir a alguma ponta desse processo aanterioridade fundadora. A invenção da realidade não é obra de um

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homem só, e daí o jornalista ter de prestar atenção às imagens queo visitam e que visitam os protagonistas da reportagem que faz.

Não é fácil delinear um caminho para a transcendência dedicotomias que tradicionalmente vêm embasando o jornalismo.Não se trata de outra linguagem, outro jeito de dizer. “A expressãoé a linguagem da coisa mesma e nasce da sua configuração.”(MERLEAU-PONTY, 1999, p.432). Não é possível estabelecerqual é a linguagem a ser usada no jornalismo da cumplicidadeafetiva, pois ela vai se impor ao jornalista quando ele entrar emcontato com o fato que tem de narrar. É uma autoria que se deslocado eu identitário para o eu plural, repelindo a noção de que o autoré reconhecível em qualquer uma de suas obras. Essa prisãoidentitária não faz sentido porque o jornalista-autor não éconvocado a dizer o que ele é, atitude tão autista quanto éesquizofrênica a de pretender dizer o que os fatos são. A questãodo direito de informar e do direito à informação adquire, aqui,outro ingrediente: a necessidade da relação. Não se trata de umaautoria egocêntrica de quem só faz ouvir sua voz, achando que édela que o mundo necessita.

Mais uma vez, o mito da salamanca do cerro pode nos servir.Blau Nunes é tapejara, conhecedor dos caminhos, ou seja, do queliga uma coisa a outra. Esse o desafio que torna complexo o fazerjornalístico: o repórter tem de se deixar levar por Hermes e setornar tapejara, sendo sensível ao imaginário, tramando suas linhasde força numa reportagem autoral. Das pressões mercadológicasàs debilidades técnicas, da carência cultural ao medo da palavraemocionada, não são poucas as dificuldades dessa iniciação. Ojornalismo é uma atividade de contínuo mergulho na alteridade.Isso significa comunicação de ser humano para ser humano. Apretensão de explicar o real se esvai, ficando a angústia decompreender o desejo mítico do outro. A reportagem daí nascidanão servirá para explicar o mundo, e sim para dizer um pouco doseu mistério.

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Olhos d’Água, 27 de maio de 2003.O frio seco, de 9°C, ajuda a definir contra o céu limpo os

galhos nus dos cinamomos que cercam a casa. É outono. Osgalos e galinhas ciscam energicamente o terreiro, afastando as

folhas mortas, procurando, na terra fresca, coisinhas paracomer. A caducidade dos cinamomos coincide magicamentecom o fim dessa minha escritura. Ela também veio ao mundo

como inconcludência. Ainda bem.

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