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REVISTA PASSAGENS
REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO – UFCUNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
ReitorJesualdo Pereira Farias
Diretor do Instituto de Cultura e ArteCustódio Luís Silva de Almeida
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em ComunicaçãoSilas José de Paula
Publicação SemestralISSN 2179-9938
REVISTA PASSAGENS
Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação – UFC
1 | Fev 2013 | vol 2 |
Editorial É hora de retornar!
O retorno é, determinadas vezes, mais cansativo. Nesse caso, será tão prazeroso quanto. Não
queremos tornar essa viagem de volta em uma questão conceitual. Nem queremos questionar as
identidades das artes, em suas mais valorosas contribuições.
Na verdade, foi uma forma encontrada de dividir temas tão distintos em duas edições.
Se a “Passagens” de Ida foi um caminho sinuoso por outras artes, com várias escalas, o
caminho de volta será mais tranquilo, sem muitas conexões. A ideia não é diferenciar uma arte de
outra, ou fazer valer distinções entre elas. Esses trechos foram emitidos de acordo com a
diversidade das temáticas abordadas pelos próprios autores.
Não é intenção tornarmos essa diversidade em uma tônica dominante, afinal, sabemos que a
imagem contemporânea trabalha todas essas linguagens da forma mais democrática possível. Em
um mundo globalizado no qual estamos inseridos, falar em cinema puro é um equívoco. No entanto,
temos que considerar que o audiovisual tem uma linguagem própria, particular. Essa foi a ideia
central para a divisão em duas edições.
O “vai e vem” de Serras da Desordem enfatiza esse espírito e tem tudo a ver com excesso de
informação e visibilidade. O corpo, assim como os afetos, também está presente na obra de Naomi
Kawase. A polêmica sobre a política dos autores também é levada em consideração, assim como a
geografia dos filmes e questões utópicas e migratórias do sertão nordestino. São temáticas que, num
primeiro momento, parecem desconexas, mas que têm uma forte relação com a imagem
contemporânea.
Esperamos que essas “Passagens” de Ida e Volta tenham sido tão prazerosas quanto foi a
organização desses trabalhos. E se a sua viagem for tão rica quanto a nossa, o resultado não poderia
ser melhor: lugares distintos e paisagens maravilhosas!
Sejam bem-vindos.
Beatriz Furtado, Marcelo Dídimo e Riverson Rios.
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1 | Mar 2013 | vol 2 |
O “VAI-E-VEM” EM SERRAS DA DESORDEM
Bernardo Teodorico Costa Souza
Mestre em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp
bernardotcs@hotmail.com
A Partir De Serras...: Desordem
Serras da Desordem é um filme que, não sem razão, foi citado em uma série de
veículos do circuito especializado como merecedor de atenção particular (entre os artigos,
apresentações em congressos, livros e revistas, podemos citar Ismail Xavier, Daniel
Caetano, Consuelo Lins, Andrea França, André Brasil, dentre outros diversos
pesquisadores). Ele vem contribuir para um campo dos estudos de cinema que, sob a
rubrica de “documentário”, em muito se tenciona sobre o caráter siamês da imagem
cinematográfica; uma cabeça de Meliès e um corpo de Lumière1. Este filme, através de
operações múltiplas, dá lugar à existência desse monstro; nos provoca colocando o cinema
sob holofotes para que sua existência dupla e bestial se faça evidente: um “cine-monstro”2.
Através de procedimentos que lançam mão das imagens como recurso a evocar
a história (operação abstrata de ordenação dos eventos no decurso do tempo), Serras da
Desordem está ancorado em algo que o extrapola, fora-de-campo e peso de realidade a
prender o filme no continente do cinema que chamamos de documentário, ao mesmo tempo
em que dele escapa, fazendo da própria História a personagem da ficção que desenvolve.
Buscamos aqui, através deste artigo, problematizar alguns procedimentos do
filme evitando sustentarmos-nos sobre às convencionais categorias de apreensão da
1 COMOLLI, 2008, p. 90 2 Comolli usa dessa expressão para designar os filmes nos quais “o mais vivo da energia cinematográfica circula entre os dois pólos opostos da ficção e do documentário, para entrecruza-los, entrelaçar seus fluxos, invertê-los, fazê-los rebater um no outro. Correntes contrariadas dando belos cine-monstros (...)” (2008, p. 90)
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imagem cinematográfica (“ficção documental”), tentando, desta forma, apresentar o filme
sob uma pespectiva diferente daquelas que até agora o abordaram.
Em 2008, enquanto o filme em questão ainda transitava no circuito comercial
de cinema, um texto apresentado no XVII encontro da Compós (LINS e MESQUITA,
2008) fazia indicações possíveis para a apreciação de Serras da Desordem, bem como para
outros 3 filmes, tratando essas 4 produções contemporâneas (Serras da Desordem, de
Andrea Tonacci, 2006; Santiago, de João Moreira Sales, 2007; Juízo, de Maria Augusta
Ramos. 2007 e Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, 2007) como “obras que dissolvem
distinções tradicionais entre ficção e documentário e ampliam as possibilidades criativas do
cinema brasileiro”, e “problematizando uma questão pouco discutida na criação audiovisual
contemporânea: a crença do espectador diante das imagens no mundo”.
O gesto ambíguo de “crer, não crer, crer apesar de tudo”, que intitula o texto
das autoras e é apontado por elas como viés central para a análise de Serras da Desordem e
dos outros 3 filmes, encontra sua referência na abordagem de Jean-Louis Comolli no que
diz respeito à dimensão espetacular intrínseca ao dispositivo cinematográfico desde sua
emergência e à relação do espectador com essa dimensão, expressa em seu desejo/medo3.
Ele nos diz:
Em todas as épocas as sociedades se formaram, impuseram-se a seus sujeitos e transmitiram-se por representações, mas em seu início as representações cinematográficas adquiriram ao mesmo tempo o grau de realidade e a potência imaginária, capazes de fazer a sociedade que elas representam se voltar para o espetáculo (COMOLLI, 2008, p. 92).
É que o ato da crença entrelaçado na relação cinematográfica não é um gesto simples. Falei do medo do primeiro espectador. Esse medo anima a crença. Acreditar da medo. Medo faz acreditar. Trata-se, para o espectador, de ao mesmo tempo gozar da potencia do cinema e dela se proteger. Acionamento de toda uma cadeia de denegações. Sei muito bem que é apenas uma imagem, mas mesmo assim quero a coisa... sei muito bem que não é o trem de verdade, mas mesmo assim... Isso até a denegação da imperfeição, pois uma representação cinematográfica nunca alcança a plenitude de uma ilusão sem manchas ou falhas (ibid., p. 94).
3 COMOLLI, 2008, p. 94-95
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O texto das autoras, referenciado nas colocações de Comolli, apresenta os
quatro filmes que aborda como obras que interferem na operação de “denegação”4 do
espectador que, para Comolli, é intrínseca à experiência cinematográfica. O texto afirma:
Já um certo tipo de cinema faz da incerteza e da oscilação entre a crença e a descrença a condição essencial do espectador. Uma instabilidade que o obriga a se confrontar com os seus limites e perceber que “a posição de controle é insustentável, tanto no cinema quanto na vida” (Comolli, 2004, p. 418). Uma premissa simples descartada pela maior parte das produções midiáticas talvez por conter possibilidades de evidenciar para o espectador o fato de que ele pode, sim, ser manipulado a todo instante, de que não há absolutamente nada nas imagens que garanta sua veracidade ou autenticidade, de que tudo pode ser simulado, e que saber disso já é, no mínimo, um bom ponto de partida para compreender melhor o que se passa à nossa volta.
O que não quer dizer que a imagem não valha nada: ela pode mentir, falsificar, simulando dizer a verdade, mas pode também ser associada a outras imagens e outros sons para fabricar experiências inéditas, complexificar nossa apreensão do mundo, abrir nossa percepção para outros modos de ver e saber. As imagens são frágeis, impuras, insuficientes para falar do real, mas é justamente com todas as precariedades, a partir de todas as lacunas, apesar de todos os riscos, que é possível trabalhar com elas. (LINS e MESQUITA, 2008, p. 10)
A rica perspectiva de Comolli na qual o trecho acima se referencia corre aqui o
risco de ser tomada como armadilha; se entendermos as operações paradoxais de desejo do
espectador apenas como jogo a ser desvelado por “um certo tipo de cinema” (evidenciar
como o espectador é manipulado, já que “as imagens são frágeis, impuras, insuficientes
para falar do real”), retornaremos de imediato à dicotomia da qual tentamos fugir
(real/ficcional, verdade/mentira) e que Comolli substitui pela dualidade “campo – fora-de-
campo”, e traremos à tona a tão infértil problemática de um recorte do mundo operado pela
linguagem (as imagens como representação arbitrária de um real)5.
Tomaremos então, nesse começo da problematização de Serras..., um trecho
desse texto já citado de Lins e Mesquita como contra-modelo para nossa abordagem,
4 Expressão psicanalista que confere síntese entre crença e descrença. 5 Sobre esse privilégio da desconstrução narrativa como ferramenta analítica, Fernão Ramos realiza uma dura critica, situando tal abordagem como um infértil paradigma hegemônico do campo teórico contemporâneo (RAMOS, 2005, p. 177-184). Texto que reaparecerá sobre outro enfoque no capítulo 3.
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realizando um exercício que, se não goza de cumplicidade com a bibliografia com a qual
dialoga, será necessariamente esclarecedor para nosso entendimento do problema.
A sinopse do filme diz:
Carapirú é um índio nômade que após escapar do massacre de seu grupo familiar em 1977, no Maranhão, passa a perambular sozinho pelas serras do Brasil central. Em novembro de 1988, ou seja, 10 anos depois de deixar sua aldeia, Carapirú foi encontrado pelo sertanista Sydney Possuelo, quando convivia com uma família em Santa Luzia, sertão da Bahia, a 2000 Km de distância do ponto de partida.
Levado para Brasília, Carapirú torna-se manchete nacional e centro da polêmica entre antropólogos e lingüistas quanto à sua origem e identidade. Sua identificação como integrante da tribo Guajá ocorre por intermédio casual de Tiramukõn, um jovem intérprete, órfão de 18 anos, resgatado dos maus tratos de um fazendeiro 10 anos antes. Novamente, o destino surpreenderá os personagens desta história real: Carapirú e Tiramukõn reconhecem-se como pai e filho, ambos sobreviventes do massacre de 1977, ambos acreditando-se mutuamente mortos. O filho leva o pai para o posto e aldeia indígena onde vive com a família, mas a vida na nova comunidade não está mais de acordo com a vivência da liberdade nômade de Carapirú.
Na tênue linha divisória entre ficção e documentário, Serras da Desordem recria o passado de Carapirú e o cotidiano dos índios Guajá antes do massacre, seu percurso e a convivência com a família que o acolheu na Bahia, onde foi finalmente encontrado. Nesta recriação, os personagens são interpretados pelas pessoas que viveram as situações narradas. O filme mostra também a chegada de Carapirú a Brasília, e o retorno ao habitat natural. Paralelamente, cenas ilustram “o progresso” ocorrido no país na década em que Carapirú enfrentava sua jornada solitária.6
Essa longa sinopse é, de certa forma, reforçada nas palavras do texto citado
apresentado na Compós, que, após descrever o trajeto de Carapirú anterior ao filme, diz:
Já que Carapirú, protagonista da história real, interpreta seu próprio papel no passado, duas camadas constantemente interagem: Carapirú é ator, agente da ficção (na encenação do passado), e é "ele mesmo", objeto do olhar “documental” do filme (no presente). Cada uma das cenas de "reconstituição" implica também em reencontro (bem presente) com aqueles que Carapirú conheceu 20 anos antes, em sua jornada pelo Brasil central. Em cada situação, portanto, no sertão da Bahia ou em Brasília, estamos sempre a nos perguntar, a ajustar o canal: Carapirú está fazendo seu papel no passado ou está sendo ele-mesmo no presente? A ambigüidade, permanente, entre pessoa e personagem, tem como efeito o reforço da alteridade de Carapirú, a indevassabilidade de sua experiência, nunca "revelada" ou acessada por inteiro. (LINS e MESQUITA, 2008, p. 5 - grifo nosso)
6 Extraído do site oficial do filme http://www.serrasdadesordem.com.br/pages/sinopse.php (grifo nosso)
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Na intenção de explicação sintética, essa sinopse, assim como o trecho do texto,
reduz, talvez em nome de um caráter didático, a complexidade que esse filme abrange,
recortando sua totalidade sob uma velha dicotomia que opera nas prateleiras fílmicas: o
corte entre ficção e documentário7.
Perguntemos-nos, o que seria a “ficção” e o “documentário” nessa sinopse, qual
o começo e fim de um e de outro?
A sinopse nos sugere bem claramente um corte, um ponto de (bi)polarização.
Enquanto os dois primeiros parágrafos aludem a uma narração verídica que
parece não manter relação alguma com o objeto que apresenta, descrevendo um passado
fixo e objetificável sem nele interferir, o parágrafo final sugere uma atuação por sobre essa
realidade fixa (e não a sua perversão); ela (passado fixado) agora seria apenas o modelo
referencial sobre o qual se constituiria sua negação, a ficção.
Segundo a sinopse, bem como o texto de Lins e Mesquita, o filme “re-
constituiria” um passado, tratando-o como um (passado) objetificável. “Re-estabeleceria”
um extrato objetivo do mundo e, sobre ele, as “pessoas” o “interpretariam”, se convertendo
em “personagens” (ficcionais agora).
Ao voltarmo-nos para a escolha das palavras que descrevem a relação do filme
com memória e história é possível perceber que, na análise em questão, a oposição entre
documentário e ficção se calca na relação entre História e mise-en-scène: Re-encenar a
História equivaleria, então, a ficcionalizá-la.
Esse caminho para se abordar Serras... não apenas nos parece pouco fértil,
como configura um obstáculo àquilo que acreditamos ser central no filme e propomos aqui
como referência para sua abordagem: sua relação com a desordem do passado e da História.
Se a necessidade de uma descrição através dos termos “documentário” e
“ficção” parece inevitável, acreditamos que, dissolvidas as categorias dicotômicas de
passado e presente na mise-en-scène de Serras... (empreendimento ao qual dedicamos
7 Vale lembrar que o velho bordão da crítica que trata esse tipo de filme como “obras que dissolvem distinções tradicionais entre ficção e documentário”, ao mesmo tempo em que sugere um novo horizonte para o cinema, se apóia nas muletas clássicas da terminologia especializada (bem como na distinção dos grupos de pesquisa e mesas de congressos da área). Recria um fantasma para depois exorciza-lo, pensa esse tipo de experimentação como o atravessar de fronteiras e não a criação independente delas.
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algumas das páginas a seguir), se dissolverá também a aplicabilidade das noções
ontológicas de “documentário” e “ficção” ao filme.
As Múltiplas Imagens Que Se Fazem No Filme
Caso a narrativa do filme, em acordo com a sinopse e texto citados, tratasse da
história de Carapirú, esta tomada como realidade prévia a ser “re-constituída” (a para-
história do filme), poderíamos pensar essa narrativa em um regime de imagens o qual
Deleuze chama de “orgânico”. Nesse regime, a narração (narração verídica)
(...) se desenvolve organicamente, segundo conexões legais no espaço e relações cronológicas no tempo. Certamente o alhures poderá avizinhar-se do aqui, e o antigo do presente; porém essa variabilidade dos lugares e dos momentos não põe em questão as relações e conexões, determina antes seus termos ou elementos, tanto assim que a narração implica uma investigação ou testemunhos que a referem ao verdadeiro. (DELEUZE, 2007, p. 163)
Tomada a associação que Deleuze faz dessa narração a um “sistema do
julgamento”, podemos dizer que essa suposta narrativa investiria não apenas na
investigação da verdade, mas, poderíamos dizer, na investigação do real.
Desta forma o filme transitaria sempre sobre um fundo histórico (tomado como
verdade/real) e sobre ele se desenvolveriam seus processos narrativos. A noção ontológica
de real que fundamenta a concepção clássica de documentário seria, num passe de mágica,
substituída pela de história.8
Como queremos demonstrar, esse “fundo histórico” não aparece como
referência para a narrativa de Serras... e, portanto, não nos serve de estratégia para a
descrição ou análise do filme mas, antes, as atrapalha.
Se começarmos por pensar o filme dividido, um enredo separado das
articulações de imagem e som (o primeiro erro ao qual poderíamos incorrer), perceberemos
que Serras da Desordem contém em si uma série de histórias (e não uma História): a
história do índio Carapirú de 1977 (ano do ataque) até seu retorno à reserva dos “Avá
Guajá”; a história do índio Carapirú que encena eventos passados; a história de um
8 Como ilustração desse exemplo nos textos de teoria podemos citar o célebre livro de Bill Nichols cuja abordgem repousa sobre a noção ontologica de “mundo histórico” (NICHOLS, 2005).
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reencontro de Carapirú com as pessoas de um passado; a história do filme sendo feito
(Tonacci em cena); a história do país de 77 (e mesmo antes – a imagem de Carlos
Marighella, assassinado em 1969) até 88... até a data do filme, 2006, etc.
A inscritura de uma história sobre a outra, como realizado em Serras..., impede
que apenas uma se imponha como ponto de referencia para a narrativa. Todas essas
histórias se pronunciam no decorrer filme, procuram se estabilizar, se fixar como a
identidade da narração, para em seguida serem atravessadas por outras histórias, por outras
narrações.
“Serras Da Desordem” Como Poesia
Essas sobreposições na narração cinematográfica que, para Pasolini, em
analogia à literatura, aparecem como uma passagem da prosa para a poesia, constituindo
“pseudo-narrativas” (através de uma estratégia que ele nomeia “subjetiva indireta livre”),9 é
o que ele toma como marco expressivo dos “novos cinemas” na década de 1960.
A formação de uma ‘língua da poesia cinematográfica’ implica, por conseguinte, a possibilidade de criar, pelo contrário (do cinema clássico, como língua de prosa) pseudo-narrativas escritas na língua da poesia: a possibilidade, em suma, de uma prosa de arte, de uma série de páginas líricas, cuja subjetividade será garantida pelo uso do pretexto da ‘subjetiva indireta livre’: onde o verdadeiro protagonista é o estilo. (PASOLINI, 1982, p. 151)
(...)Trata-se pois do momento em que a linguagem, seguindo uma inspiração diferente e talvez também mais autêntica, se liberta da função e se apresenta enquanto ‘linguagem em si própria’: estilo”. (Ibid., p. 149)
Referenciando-se ao modelo da literatura (narrativa direta e indireta), Pasolini
resume o cinema em dois tipos de imagens, a “subjetiva” e a “objetiva”: o que a
personagem vê e o que a câmera vê, respectivamente. Em analogia ao recurso literário da
“narrativa indireta livre”, Pasolini descreve o que ele chama de “subjetiva indireta livre”
como técnica comum a esses filmes que emergiam na década de 1960; um recurso onde
9 “Cinema de Poesia” in PASOLINI, 1982.
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uma inevitável indiscernibilidade contaminaria o que a câmera vê e o que a personagem vê,
criando situações expressivas “onde o verdadeiro protagonista é o estilo”.
A novidade expressiva dos “novos cinemas”, como apresentada por Pasolini
permite, se transferida para o campo do cinema documentário, substituir o problema que o
norteava até então.10 A oposição realidade/ficção, expressa na dualidade “sujeito/objeto”
(enunciador e referente) e que constituía a base do cinema clássico como cinema de prosa,
desaparece no cinema de poesia para dar lugar a outros termos: “subjetivo” e “objetivo”.
De forma sucinta, basta dizer que aquilo apresentado por Pasolini ultrapassa o
problema que norteava o cinema (tanto no domínio da ficção como do documentário) como
prosa: sua adequação a um modelo de verdade que orientaria a narrativa.
Essa reflexão sobre o cinema nos termos de Pasolini nos permite, então, um
entendimento das imagens cinematográficas que não a habitual “política da
representação”.11
Retomando a oposição de Pasolini entre o cinema de prosa e o de poesia,
Deleuze nos apresenta dois regimes de imagem que dela decorrem: o orgânico (“descrição
orgânica” e “narração verídica”), aquele cuja inadequação à narrativa de Serras... já
apontamos, e o cristalino (“descrição cristalina” e “potencias do falso”) que, agora
podemos dizer, a ela corresponde.
Enquanto o regime orgânico/cinético, que corresponderia ao cinema de prosa,
se orientaria por uma verdade/identidade, o regime cristalino/crônico, assim como o cinema
de poesia (“uma série de páginas líricas”), se daria pelos processos de falseamento, onde a
mutação do personagem, que agora se apresenta como um vidente/falsário, expõe uma
incessante multiplicidade onde a forma fixa da verdade é substituída pelas transformações
do falso e a identidade que se resumia em “eu=eu” se substitui por “eu=outro”.
Ao considerarmos que as diversas histórias/narrativas que aparecem em
Serras... fundem a imagem de determinados personagens e determinadas temporalidades, 10 É Deleuze quem redireciona o problema que Pasolini levanta no cinema de ficção para o “cinema de realidade” (DELEUZE, 2007, p. 179-186). 11 Francisco Elinaldo Teixeira, repassando o “cinema de poesia” de Pasolini sob o olhar de Deleuze em “Imagem Tempo”, demonstra como num panorama histórico a abordagem teórica brasileira do documentário negligenciou essa perspectiva se mantendo numa abordagem calcada na oposição real/ficção, sujeito/objeto: uma “política da representação” (TEIXEIRA, 2004)
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nota-se então que, o entrecruzamento dessas narrações, sob a égide da relação passado
presente, sugere uma nova possibilidade ao filme no que diz respeito à relação com a
História.
Eis que o tempo vem converter qualquer possível narração verídica nas
“potencias do falso”: o Carapirú do passado, de um plano a outro, se metamorfoseia no
Carapirú da memória, em um “Carapirú Nannok”12 (caricatura da identidade indígena), no
Carapirú do presente, em um Carapirú fabulador... enfim, em um falsário. “Por toda a parte
são as metamorfoses do falso que substituem a forma do verdadeiro” (DELUZE, 2007, p.
165).
Para melhor ilustrar esse processo, retomemos o trecho de Serras... descrito no
texto de Lins e Mesquita (os encontros e encenações), mas agora sem a “política da
representação” que sustenta a distinção entre “documentação do presente e reconstituição
do passado” (LINS e MESQUITA, 2008, p. 5).
Transformações/Falseamento Do Personagem
As cenas onde Carapirú se depara com as pessoas que, só deduziremos depois,
compuseram seu passado (os camponeses do interior da Bahia), são marcadas pelas
transformações deste como personagem (e não oscilação entre “pessoa” e “personagem”):
Um primeiro personagem os encontra; planos gerais, encenação em 35mm
preto e branco
Um segundo personagem os encontra; câmera na mão, sem encenação em
DV colorido
- “(...) aqui ó.... as fotos. Quando ocê tava mais nós.”
- “rapaz... olha! Cê nem pensava mais de vim aqui, né?!”
Os camponeses re-descrevem o encontro do primeiro personagem;
depoimentos/entrevista, voz off, fotografias.
12 Ao tomar o personagem de Flaherty como imagem análoga à de Carapirú no filme, me refiro aos comentários de Ismail Xavier (in CAETANO, 2008) acerca da seqüência de abertura do filme de Tonacci, na qual a imagem do “outro” se apresenta sob o fascínio pela diferença técnica.
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- “Mas tiraram foi muito retrato!” (voz off e fotografias)
O personagem que agora aparece nas fotografias que preenchem a tela já não é
nem o primeiro nem o segundo, mas um que até então não nos fora apresentado.
Se não sabemos quem é esse ator, o que é uma informação extrínseca ao filme,
ele nos aparece como um mutante, como vários personagens, que vão convergindo (e se
mutiplicando) à medida que o filme se desenvolve.
Se é possível fazer a associação do primeiro ao segundo personagem, é porque,
e somente porque, o desenvolvimento do filme estabelece essas conexões, ligando um
personagem que, agora, é atrelado a uma temporalidade, a outro personagem, outra
temporalidade (o 1º ao passado e o 2º ao presente). Cai por terra a oposição analítica entre
ator e personagem que só foi possível porque o filme os construiu, enquanto personagens
(sempre).
Transformações/Falseamento Do Tempo-História
Se esses diferentes personagens evocam agora diferentes temporalidades (o que
foi forjado pela narrativa), assim como na mudança entre os personagens, muda o tempo.
Cai também por terra a linearidade histórica (substrato realista) como referência
para a análise.
Dessa forma o primeiro personagem, do passado, não resiste em se transmutar
em um segundo, o personagem do presente, este último, com seus gestos e mímica se
comunica, repetindo os gestos e comunicação de um evento que agora pressupomos já
ocorrido. É novamente lançado no tempo, situando o passado e o presente em um campo
instável, dissolvendo a concepção polarizadora e dicotômica de passado e presente,
propondo o tempo como um “sempre-entre”, onde a narrativa da história não para de
atualizar-se.13
13 Sobre esse procedimento poderíamos tomar como referência a obra de Jean Rouch, na qual, já em Jaguar (1967) ou Moi un Noir (1959) a encenação ganha o caráter de happening e o encenar (como reprodução) é substituído pelo “acontecer”.
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Está então demonstrado nosso primeiro ponto: a impossibilidade de pautar a abordagem do
filme numa horizontalidade histórica como referencia intrínseca a este, posto que, nos
processos narrativos do filme (e é nestes que vamos nos ater), a história não é
horizontal/linerar/contínua.
Transformações/Falseamento Da Materialidade Narrativa
Demonstrado esse primeiro ponto, podemos agora notar que, além do
estratagema dramatúrgico do “repetir/encenar como se fosse o passado” e da “auto mise-en-
scène”, o filme se serve de uma série de recursos para “jogar”14 com o tempo. Dentre estes
recursos há um que se destaca e nos aparece como central tanto para a narrativa de Serras...
quanto para os desdobramentos teóricos que queremos extrair desta.
Serras... se serve, ao longo de toda a sua duração, de uma complexa
heterogeneidade de materiais audiovisuais. Essa oscilação na materialidade que compõe o
filme vai de antigas fotografias, jornais impressos, áudio de reportagens, imagens de
arquivos televisivos e fragmentos de outros filmes, até diferentes suportes na gravação –
35mm colorido, 35mm monocromático, vídeo digital, vídeo analógico, etc.
Essas diferentes imagens/materiais atuam umas sobre as outras. Elas se
intercalam no filme de tal forma que a segunda imagem sempre opera uma modulação no
sentido evocado pela primeira, fazendo o paradigma referente a um tipo específico de
mídia/formatação15 se entrelaçar com o tipo de mídia/formatação da imagem seguinte.
Essa estratégia, que nos conecta diretamente com o princípio de montagem
como produção de sentido no cinema (Kuleschov), opera uma constante fuga na narração,
submetendo-a a uma série de metamorfoses. Assim como o personagem de Carapirú, ela se
converte em uma identidade para, em seguida, falseá-la e lançar-se em uma outra.
Quando a narrativa ameaça se estabilizar, ela se transforma, lançando-se num
jogo de ziguezague no qual o sentido atribuído a uma imagem está sempre à mercê
14 A expressão “jogar” é aqui utilizada sem se perder de vista sua ligação com o “representar”, explícita em línguas como o inglês (to play), o francês (jouer) ou o alemão (spielen). 15 A referência aqui diz respeito aos clichês aos quais é possível atrelar determinadas estilísticas – por exemplo: DV em câmera na mão em longos planos seqüência = documentário contemporâneo sob o horizonte de um “cinema verdade”; 35mm PeB em fusão com 35mm colorido = alusão à memória ou sonho, etc.
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daquelas que a sucederão, e a história à qual somos remetidos, às histórias que sobre esta
virão se inscrever. Um constante devir da história como inscrição do tempo.
A “Ressignificação” Da História Pelas Imagens Em “Serras Da Desordem”
Ao acompanharmos as proposições da “Nova História”16 no que diz respeito à
matéria bruta do historiador, é possível pensar as obras cinematográficas e fragmentos
fílmicos não apenas como registro material do mundo visível, mas como documentos
reveladores de discursos específicos, de expressões culturais e ideologias17.
Os diversos arquivos18 fílmicos re-montados/“ressignificados”19 pela narrativa
de Serras da Desordem, segundo a descrição feita sobre sua materialidade narrativa,
propõem não apenas um diálogo entre imagens de um passado e de um presente, mas
também um diálogo entre formas discursivas da história, entre uma identidade narrativa e
outras tantas.
Essa ressignificação dos diversos materiais audiovisuais presentes em Serras...,
se pensarmos os fragmentos reutilizados como documentos históricos, extrapola apenas
uma atualização das funções narrativas de obras anteriores e as ressignifica enquanto
documentos, agregando ao seu sentido originário um novo sentido contextual,
contemporizando a imagem do passado, ao mobilizar as posições culturais do espectador
desses “fragmentos do passado” a serviço de uma exegese que condiciona determinado
discurso cultural em um tempo e um espaço, a uma interpretação cultural proveniente de
um discurso cultural de um tempo e espaço distintos.20 Subjuga o passado à sua constante e
inevitável reinvenção pelo presente.
16 Como referência Cf. BURKE, 1992. 17 Como referência ao uso do cinema como recurso do historiador Cf. FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1992. 18 Jacques Derrida (Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p.11-16) nos lembra da origem da expressão “arquivo”, recolocando, através da etimologia da palavra (arkhê - arkheion), sua conexão direta com autoridade hermenêutica e poder político. 19 BERNARDET, 2002. 20 Lembremos-nos que, para essa nova interpretação, fruto de uma fusão de temporalidades e sentidos, é necessário que o espectador conheça de antemão os sentidos iniciais agregados ao fragmento reutilizado.
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Sobre esse processo, que na teoria cinematográfica é comumente
problematizado sob a noção de Found Footage, sigamos com uma citação de Wlliam C.
Wees, que diz: Enquanto o espectador vê imagens que foram criadas em outra época, com outro propósito e por outra pessoa que o autor do filme que está contemplando nesse momento, é também consciente da discrepância existente entre o contexto original e o atual, tanto da apresentação como de recepção. Isto abre um espaço interpretativo, conformado pela forma do filme, mas que preenche a resposta do espectador à forma e ao conteúdo da obra. O resultado é um diálogo ativo com – em vez de consumo passivo de – representações visuais do passado (WESS, 2000, p. 71 apud WEINRICHTER, 2009, p. 16).
O que queremos demonstrar é como Serras da Desordem re-articula, então,
esses documentos, refazendo seus sentidos (e, assim, sua própria materialidade) em um
jogo “intertextual”, para fazer, como fazem os historiadores, novas amarras de sentido e
uma nova narrativa do passado: (re)compor/narrar a História.
Tomemos o exemplo da inserção em Serras da Desordem de um fragmento de
um dos filmes de Major Thomas Reis acerca das famosas expedições de Rondon21. Ao
comungar com as sequências do filme, esse plano sugere novas “leituras” históricas para a
relação entre populações ameríndias e as forças estatais. A intenção propagandista que
visava a apresentação cênica do índio como cidadão integrado, vestido e na sala de aula,
exemplo ilustre de processo civilizador no interior do país,22 reaparece agora, na
precariedade do ensino público que o filme descreve, como tensão/dominação entre
culturas. Ou a inserção do trecho de Iracema: uma transa amazônica de Jorge Bodanski e
Orlando Senna,23 na montagem de Serras..., que narra a construção da transamazônica e o
passar de 11 anos no Brasil (77 a 88). Essa inserção não apenas atualiza o filme de
Bodanski e Senna por conjugá-lo com uma das conseqüências contemporâneas da
transamazônica (a situação indígena no Brasil – e a história de Carapirú, índio vivo, cuja
maior parte da família foi exterminada), como o situa numa perspectiva cinematográfica 21 “Ao redor do Brasil: Aspectos do interior e das fronteiras brasileiras” – Thomas Reis 1932. 22 Aqueles que se interessarem por maiores detalhes na construção das imagens das expedições de Rondon Cf. TACCA, Fernando de. A imagética da comissão rondon. Campinas: Papirus, 2001. 23 Sobre a relação entre Serras da Desordem e Iracema, uma transa amazônica, no contexto que aqui mais nos interessa, Cf. FRANÇA, Andrea “O cinema entre a memória e o documental” (in Revista Intexto nº 19 V.2, 2008) no qual a autora ressalta as conexões estabelecidas entre os dois filmes no que concerne à problemática memória-história.
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histórica que o põe em um patamar de diálogo com Serras da Desordem (a forma
dramatúrgica e a utilização de não atores).
Em “A subjetividade e as imagens alheias: Ressignificação” (in BARTUCCI,
2002, p. 21-43) Bernardet aborda o filme de montagem com “imagens de arquivo” como
um “vaivém entre a vida e a morte”, um processo simultaneamente construtivo e destrutivo. Destruição porque a significação que este plano tinha originalmente será perdida, ou no mínimo alterada. Vida, porém, porque ganhará nova significação ao ser inserido na nova montagem. Uso o termo ressignificação para designar este processo.( BERNARDET, Jean-Claude, in BARTUCCI, op. Cit. p. 32)
Esse “vive-morre”, que acomete as “imagens de arquivo” na montagem,
configura exatamente o que tratamos em algumas páginas acima por
“transformações/falseamentos”, as potências falsificantes que insistem em inscrever uma
história sobre a outra, e mais outra, e assim por diante.
Esse narrar do passado, seja pelas mutações do personagem ou
“ressignificações” pela montagem, vem, através de um procedimento de transformações
temporais (um jogo de vai-e-vem), assim como no ato de fabulação, atualizar o passado,
como se o colocasse na instância mítica, uma espécie de “mitopraxis” (SAHLINS, 2001),
fazendo uma mescla entre uma história passada e a sua narração atual. Uma espécie de
História em transe, uma “História-por-vir”.
É dessa constante transmutação operada por Serras da Desordem que este retira
sua maior força, seu experimentalismo, aquilo que acreditamos ser a contribuição maior
desse filme. Em Serras..., a história é o produto da narrativa fílmica, é a mescla dos
sentidos que o filme agencia sem se prender a algo que o apoiaria como tese ou
fundamento, mas se lançando à história, fazendo-a, em si mesmo, um devir-história.
Mais do que pensar em como transita de uma categoria à outra ou como se faz
crível ou não, talvez valha a pena pensar Serras da Desordem como um filme que
exemplifica não um corte transversal entre ficcional ou documental, mas um filme que
extrapola tais categorizações ao propor uma nova inscritura do tempo; ao propor o próprio
tempo como objeto fílmico. Eis seu trunfo.
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Para melhor entender esse trunfo, vale lembrar a célebre frase de Godard (1989)
que, mesmo pelo desgastante uso que a converteu em clichê, é, ainda, atual: “Sempre
pensei que o que se chama de documentário e o que se chama de ficção fossem para mim
dois aspectos de um mesmo movimento, e é a sua ligação que cria o verdadeiro
movimento.”(GODARD, 1989, p. 162 apud DELEUZE, 2007, p. 187)
É acompanhando essa perspectiva de Godard que Tonacci, em entrevista a
Daniel Caetano (CAETANO, 2008, p. 127), ao ser questionado sobre uma frase que havia
dito (“os filmes não serem as pedras no riacho, mas o espaço entre elas.”) respondeu: “É...
A gente usa muitas palavras, mas está sempre tentando falar do movimento”. É submetendo
a “verdade”/História ao tempo que nos é permitido ver que esta se encontra sempre em
movimento.
Referências Bibliográficas
BERNARDET, Jean-Claude. “A Subjetividade e as Imagens Alheias” in BERTUCCI, Giovanna (ORG.) Psicanálise, Cinema e Estéticas de Subjetivação. Rio de Janeiro, Imago, 2002. BURKE, Perter (org.). A Escrita da História, Novas Prespectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992. CAETANO, Daniel (org.) Serras da Desordem. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2008. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocência perdida: televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editota UFMG, 2008 DELEUZE, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo, São Paulo: Brasiliense, 2007. LINS, Consuelo e MESQUITA, Claudia. “Crer, não crer, crer apesar de tudo: a questão da crença nas imagens na recente produção documental brasileira”. In: XVII Encontro Nacional da Compós, 2008, São Paulo. Anais do XVII Encontro Nacional da Compós. São Paulo : Compós/UNIP, 2008. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus Editora, 2005. PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Herege. Lisboa, Assírio & Alvim, 1982. RAMOS, Fernão Pessoa. “A cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem-intensa”. in:
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______. (Org.) Teoria contemporânea do cinema, v.2. Documentário e narratividade ficcional. São Paulo: SENAC, 2005. SAHLINS, Marshall. Ilhas de história, Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 2001 TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. (org.) Documentário no Brasil - Tradição e Transformação. São Paulo, Summus Editorial, 2004. WEINRICHETER, Antonio. Metraje encontrado:la apropriación en el cine documental y experimental. Pamplona: Fondo de Publicaciones del Gobierno de Navarra, 2009.
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TUDO A VER: o império da visibilidade total como sintoma contemporâneo
Marcio Acselrad
Doutor em Comunicação pela UFRJ
macselrad@gmail.com
Tudo a ver
A contemporaneidade, misto de todas as eras anteriores acrescida de algumas
características inéditas, surge sob a égide dos mídia e das novas tecnologias visuais. Trata-
se de uma mudança na esfera do olhar e da simulação, diversa da revolução moderna,
trazida à tona pela razão e pela representação. O mundo da visibilidade plena tem como um
de seus marcos a possibilidade de considerar o planeta como um todo, coetânea à ideia de
que esta nossa morada pode ser provisória. Olhar a Terra como um todo, ver “as tais
fotografias em que apareces inteira”, como cantou Caetano, nos dá a dimensão
artificializante que marca a contemporaneidade.
Hannah Arendt é testemunha inaugural desta mudança. Em A condição humana,
descreve a reação diante do lançamento do primeiro satélite artificial a orbitar o planeta. A
principal sensação não foi, ao contrário do que se podia esperar, a de alegria triunfal, nem
de orgulho nem de assombro, mas de “alívio ante o primeiro passo para libertar o homem
de sua prisão na terra”. (ARENTD, 1995)
Doravante o próprio planeta em que vivemos deixa de ser um habitat natural para
ser uma possibilidade entre outras. Parece que, livrando-se da morada terrestre, o homem se
livra também de tudo o que incomoda, de toda a materialidade inerente à vida humana,
inclusive e principalmente do incômodo e imprevisível contato com o outro. Enquanto não
nos livramos da provisória morada terrestre, vamos nos locupletando de visão. O excesso
de informação não é necessariamente um bem, da mesma forma que o excesso de imagens
não torna a visibilidade mais perfeita. Muita informação pode cegar, assim como muita luz
também não ilumina. “Tudo que é demasiadamente iluminado, obscurece”, lembra Ciro
Marcondes. (MARCONDES, 2000)
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Por vezes o excesso de informação provoca mais a dispersão do que o centramento.
Passando ininterruptamente de imagem para imagem, de meio para meio, de canal para
canal, de site para site, o homem corre o risco de não reter nada, de dispersar-se por
diferentes pensamentos e esquecer-se de si. “A visão”, diz Baitello, “saturada com as
intencionalidades da luz, tornou-se a princípio um sentido habilitado apenas para as
superfícies iluminadas”. (BAITELLO, 2000)
Desta forma, surge uma tendencial perda da sensibilidade para o que não se dá a
plena luz. Tudo o que se manifesta no crepúsculo, no limiar, nas entrelinhas da experiência
da visão (e do pensamento) se perde irreversivelmente para um olho (e um cérebro)
treinados para perceber apenas o que se mostra, o que se evidencia. Assim sendo a
experiência fundamental do esclarecimento, qual seja, a interpretação, fica relegada a
segundo plano. Num universo semiótico restrito a seu aspecto imagético de pura obviedade,
a tridimensionalidade e os demais sentidos são hiper-reduzidos.
Nada a ver
Quando vai descrever a cegueira a que seus personagens subitamente se vêem
entregues, o romancista José Saramago não fala de escuridão ou de ausência mas do
curioso mergulho “numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que
absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira,
duplamente invisíveis”. (SARAMAGO, 1995)
Parece estar justamente descrevendo a sociedade contemporânea, em que a visão
ganha uma força tal que seu excesso transforma-se em sua ausência. Saramago mostra que
é a própria sociedade que está doente, uma vez que relega os cegos ao abandono da própria
sorte e ao ostracismo social. Aquele que não vê o que todos vêem não merece compartilhar
o pão ou a comunidade. A alusão é tão mais poderosa quando nos lembramos que, na
antiguidade, cabia aos cegos como Tirésias o papel de ver o que ninguém mais era capaz de
enxergar, inclusive o futuro.
Com a leitura infindável, já em muitos casos substituída pelo fruir de velozes
imagens-clichês, menos trabalhosas de adquirir e mais difíceis ainda de reter, corre-se o
risco de ter a atenção tornada instável, a opinião maleável ao sabor dos acontecimentos, o
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desejo cambiante dependendo do objeto que ora se observa e da novidade que ele apresenta
(ou diz apresentar). Tudo isto reunido resulta na enorme dificuldade de a crítica se exercer,
visto que para tal é imprescindível uma instância fixa, um ponto qualquer de onde se possa
observar, mas que não seja ele mesmo parte do observado. Já se acreditou que a razão fosse
capaz de desempenhar tal papel. Hoje as dúvidas quanto a esta pertinência são muitas.
A era da mediatização generalizada
O que está em jogo são noções como as de temporalidade e visibilidade. A
mediatização generalizada a que somos expostos incessantemente provoca uma nova
relação com o tempo em que tudo tende a se reduzir à simultaneidade, ao predomínio do
instante, ao aqui e agora. A história deixa de fazer sentido posto que nada temos a aprender
com o passado que o presente não nos ensine melhor e mais velozmente. Não há mais
superação cronológica ou critica operando uma aproximação progressiva da verdade. E não
parece haver espaço para uma superação deste processo, visto como irreversível. Não
devemos, portanto ser nostálgicos. A verdade está perdida para sempre, temos que nos
contentar com o puro fluir do presente, das imagens que se substituem sem cessar. Temos?
Nosso mundo não gosta da lógica nem da coerência racional. Ele está submetido a
outro modelo: o da comunicação por imagens, da fluidez incessante, da informação volátil.
O mundo das imagens, o mundo da mídia, é instantâneo e incoerente, seu motor é mesmo a
instantaneidade, um mundo rápido e desmemoriado, mundo do zapping e do flash; mundo
em que as opiniões são ao mesmo tempo extremamente móveis e frágeis, em que sustentar
firmemente uma lógica de pensamento ou uma identidade qualquer é difícil, visto como
anacrônico.
A crítica da sociedade comunicacional invade de incertezas o real e denuncia as
estratégias da ilusão. O real não há mais, dizem. Desapareceu, esvanecendo-se por trás de
uma avalanche de imagens que se substituem umas às outras sem cessar. Simulacro de
simulacro de simulacro. É a derrocada da ordem simbólica, a proliferação de informações
sem conteúdo substituídas por mais informações sem conteúdo e que, em seu movimento
incessante, criam uma ilusão de real. Mesmo as imagens que poderiam ser ferramentas de
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conscientização e reflexão, que tentam se afastar do perigoso clichê, acabam
paradoxalmente reforçando a noção de distanciamento.
A banalização da violência, da guerra ou da fome, com a qual aprende-se a conviver
através dos noticiários, não permite a concretização de ações políticas. Ao contrário, parece
aumentar a distância entre atores e público, entre quem padece e quem assiste. A famosa
foto da menina vietnamita correndo nua pode ter contribuído para o fim de uma guerra,
porém mais de vinte anos depois tomou-se um clichê entre outros. Mesmo uma obra
fotográfica como a de Sebastião Salgado, cujo objetivo é alertar para a situação de miséria
de boa parte dos habitantes do planeta, pode provocar um efeito contrário ao esperado. O
choque diante das fotos não é tão grande quanto a chocante situação de impotência de quem
as vê e o distanciamento dos que são vistos. Quando tudo se reduz ao ver, a ação torna-se
praticamente impossível.
Ver e entender
A separação entre visibilidade e entendimento, entre ver e enxergar, gera um círculo
vicioso em que a mídia se auto-referencia sem necessidade de uma baliza externa. Baitello
mostra que o maior sacrificado neste processo de redução é o próprio corpo, que tem sua
complexidade de sentidos e experiências reduzida a mais simples e passiva delas, o mero
olhar esvaziado. Este esvaziamento da experiência plena, substituída pela
bidimensionalidade e pela reprodutibilidade da imagem, é decorrente das mudanças
tecnológicas ocorridas ao longo do século vinte. Em uma era tecnológica, a aura não povoa
mais a imagem, como alertava Benjamin, uma vez que não há mais autenticidade, nem
separação possível entre original e cópia. Isto não implica, no entanto, a perda de toda a
capacidade de o entendimento se dar mas, ao contrário, obriga ou ao menos convida à
produção de novas experiências cognitivas. Neste sentido a tecnologia possibilitaria uma
nova compreensão do mundo, desmistificada e renovada, permitindo um novo olhar que
prescinda da condição aurática e que ultrapasse a dicotomia entre original e cópia.
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A perversão televisiva: uma nova forma de censura
Como contrapartida da exacerbação da imagem no mundo midiático, temos o
surgimento de uma nova forma de controle e dominação, uma nova modalidade de censura.
Em plena era da comunicação e da circulação de informações, uma era que se apregoa
livre, a censura, uma das grandes inimigas do pensamento esclarecido, reaparece com nova
roupagem. Trata-se do paradoxal fenômeno da “censura democrática”, que teria surgido
quando a televisão tomou a dianteira dos acontecimentos, passando a ditar as normas do
mundo midiático e determinando o que era e o que não era acontecimento. (RAMONET,
1999)
Mudanças várias no modo de difundir notícias já estavam em curso desde meados do
século dezenove. Quando a literatura se torna uma indústria, dando surgimento à forma
folhetinesca, mais afim ao gosto das classes menos abastadas; quando a imprensa atinge
tiragens enormes de seus jornais, tornando a informação um direito de todos e não apenas
dos ricos; quando o rádio se populariza em todo o mundo nas primeiras décadas do século
vinte, já ficava evidente que a sociedade de massas seria bem diferente daquela que a
antecedeu. Porém os efeitos que a televisão iria produzir nas práticas jornalística e cultural
são incomparavelmente maiores e mais intensos do que tudo que a antecedeu. De novidade
ela passa a complemento e daí, rapidamente, ao centro das atenções de toda uma geração
que não precisa nem saber ler para usufruir (ou ao menos para assistir) as maravilhas (e os
terrores) da vida moderna.
A perversão televisiva resume-se ao fascínio pela imagem, onde só o visível é digno
de importância. O que não tem imagem não é televisável, portanto não existe
midiaticamente. A nova forma de censura dá preferência especial a cenas fortes, imagens
que apresentam situações bizarras, violentas e/ou humorísticas e que, se possível, envolvam
pessoas conhecidas. Há aqui uma curiosa aproximação entre dois extremos, uma
indiferenciação entre imagens que inspiram dor ou sofrimento e outras que convidam ao
riso. Do ponto de vista do espetáculo, humor e horror são intercambiáveis. O conteúdo de
tais situações ou sua importância para a compreensão da realidade são, no mais das vezes,
irrelevantes. “A imagem oblitera o som e o olho suplanta o ouvido”. (RAMONET, 1999)
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Esta ideia remete a fenômenos como o marketing, responsável pela apresentação
estética de uma mensagem, pela transformação de toda e qualquer informação em algo
palatável e acolhedor. Trata-se, pois, de um veículo bem adequado aos nossos tempos, em
que opiniões pessoais são reduzidas a meros rebatimentos de fluxos complexos advindos de
variadas partes da sociedade, inclusive e principalmente dos próprios mídia. O mundo que
se vem formando, alerta Berardi, afasta-se vertiginosamente do ideal iluminista já que nele
“a força dos automatismos tecno-sociais (cognitivos, relacionais, financeiros, produtivos) é
infinitamente superior à força da vontade política”. (BERARDI, 1999)
A nova censura se efetiva na medida em que certas realidades estão proibidas de
produzir imagens, que é o meio mais eficaz de ocultá-las. Se não há imagem, não há
realidade: é como se o fato não tivesse ocorrido. Ramonet fala da relação estabelecida entre
guerra e imagem. A guerra do Vietnã teria sido suficiente para que os estados maiores das
forças armadas compreendessem que imagens poderiam ter um efeito devastador sobre a
opinião pública. Desde então, sempre que se quis diminuir a importância de uma ação
militar qualquer tratou-se de realizá-la o mais longe possível dos holofotes midiáticos. Foi
assim com as invasões de Granada e do Panamá e, mais recentemente, com a guerra do
Golfo, reduzida a um videogame com efeitos visuais mas ‘sem sangue e sem mortes’. Por
outro lado, exemplos não faltam de que, quando o objetivo era aumentar a importância de
um evento, tratou-se de realizá-lo diante do olho eletrônico da mídia.
Onde andam os intelectuais?
No século dezoito surge e se desenvolve um novo personagem, cuja presença será
decisiva para os acontecimentos que se seguiram: o intelectual, alguém que se valia do
poder da escrita, tornando públicas suas ideias através de panfletos, livros, jornais, peças de
teatro e quaisquer outros meios possíveis, um misto de filósofo e ativista político. Lepape
mostra como Voltaire representa com perfeição este personagem de certa forma inaugural
da modernidade. (LEPAPE, op. cit.) Nessa época os jornais eram povoados de personagens
variados como advogados, literatos, políticos e outros, mas o profissional da comunicação,
o jornalista propriamente dito, ainda não havia feito sua entrada neste cenário. Ciro
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Marcondes define esta etapa como a era do jornalismo iluminista, em que a função do
jornal era antes esclarecer do que obter lucros. (MARCONDES, op. cit.)
Aos poucos, no entanto, percebe-se que começa a haver uma separação entre
intelectuais e jornalistas, principalmente a partir do processo de profissionalização dos
últimos. Esta separação não é sempre evidente e entre os jornalistas ainda há muitos que
trazem consigo características do intelectual. Bourdieu chega a utilizar o termo ‘intelectual-
jornalista’ para tratar desta figura híbrida que ainda habita, mesmo que de forma marginal,
as redações. (BOURDIEU, 1997)
Como principais semelhanças temos que ambos lidam com palavras e que ambos
buscam, através delas, um contato com a sociedade. Mas as semelhanças parecem terminar
por aí pois, devido principalmente às mudanças ocorridas no mundo do jornalismo, hoje
vemos um progressivo afastamento entre os dois tipos. Se o intelectual visa antes de mais
nada alterar e aprimorar a vida social, buscando conscientizar seus leitores, o jornalista,
embora também possa ter este objetivo em mente, precisa se sujeitar ao sistema em que está
inserido, o sistema midiático, com suas leis e restrições próprias.
Bourdieu analisa os diversos graus em que o jornalista pode se inserir no contexto
midiático, com níveis diferenciados de autonomia. Esta irá depender da posição do órgão
de imprensa em que trabalha em relação aos demais, numa gradação que vai de um polo
comercial extremo, em que a única preocupação é o mercado, a um polo intelectual, em que
ainda não são privilegiados tão somente aspectos empresariais do jornalismo; da sua
posição dentro do jornal ou do órgão de imprensa, do seu salário e, enfim, de sua
capacidade de produção autônoma da informação. A comunicação moderna transformou-se
em uma grande indústria que mescla informação e entretenimento por vezes em doses
desiguais. Assim sendo o jornalista raramente é dotado da liberdade necessária para se
exprimir. Tem compromissos com uma empresa que, em maior ou menor escala, precisa
obter lucros. O produto de seu trabalho, seja ele uma reportagem ou uma coluna opinativa,
irá inevitavelmente ser transformado em mercadoria e precisa, portanto, condicionar-se a
esta circunstância.
Como consequência teremos fenômenos impensados há um ou dois séculos atrás,
como a supermidiatização. Quando Voltaire levantou como bandeira política a defesa do
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huguenote Calas ou quando Zola defendeu o judeu Dreiffuss, acusado de traição,
precisaram de muita tinta e muito esforço para que suas mensagens pudessem surtir efeito,
penetrar no âmago do pensamento social e alterar o modo como as pessoas pensavam. A
dificuldade era tanto maior porque se tratava, afinal de contas, de homens isolados. Lepape
descreve Voltaire como “um escritor perdido no fundo de uma província fronteiriça,
tentando reabrir um processo sem ter competência legal ou profissional para tanto”.
(LEPAPE, op. cit., p. 227) Surgia, assim, o intelectual, aquele que só dispõe da pena como
ferramenta de conscientização. Pela primeira vez utilizava-se o termo ‘publicidade’, pela
primeira vez apelava-se para a então nascente ‘opinião pública’.
Paradoxos da mediatização generalizada
Hoje parece ocorrer o contrário, quando acontecimentos como a morte de Diana, o
julgamento de O. J. Simpson e o caso extraconjugal do ex-presidente Clinton caminham
por conta própria, não como sugestão de pauta mas como pauta obrigatória, e a opinião
pública converte-se em uma força poderosíssima e anônima, dada a mudanças de humor
repentinas e por vezes violentas. Isto se toma ainda mais evidente na atual etapa do
desenvolvimento dos meios de comunicação, uma vez que eles passam a integrar uma única
e complexa rede de intrincadas conexões. Pensar a mídia hoje implica em pensá-la como
um todo sistemático. Os meios funcionam juntos, em cadeia, uns imitando e
complementando os outros. Assim seu domínio não é vertical e hierárquico, como os
poderes constitucionalmente estabelecidos, mas horizontal, reticular, consensual. Ainda se
pode discutir se a mídia é o quarto ou o primeiro poder. O que não se discute é a amplitude
e dimensão deste poder, tão sutil e penetrante que nele se misturam as instâncias pública e
privada ao ponto da indiscernibilidade. (GUARESCHY, 1991)
“A morte de Diana”, diz Ramonet, “desencadeou um enorme soluço mundial”, um
caso inaugural de agenda setting planetário em tempo real. E no entanto esta catarse global
assemelha-se mais a um conto de fadas macabro do que a um fenômeno político; um
soluço, sim, mas que nada muda nem pretende mudar, um caso extremo de invasão de
privacidade em que se confundem os responsáveis pela investigação acerca da vida privada
de uma figura pública com os responsáveis por sua morte.
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O jornalista aqui se encontra em situação delicada: não pode deixar de noticiar o
acontecimento, o que faria com que perdesse leitores. Deixa de ser o sujeito e passa à
posição de objeto da ação, tornando-se refém do acontecido. A relação mercadológica deixa
evidente sua supremacia. É preciso noticiar o que ninguém noticia, buscar o furo, mas é
também necessário noticiar o que todos noticiam, não ficar de fora. É preciso acusar os
paparazzí que teriam assassinado a princesa, mas é também necessário publicar suas fotos.
Com o enorme desenvolvimento dos diversos meios de comunicação e principalmente
com a exacerbação da cultura da imagem um efeito colateral inesperado passa a ser cada
vez mais experienciado indistintamente por todos quantos habitem esta sociedade.
Passamos a coabitar mais e mais com máquinas que apelam para a imagem: câmeras,
filmadoras e demais dispositivos de vigilância. A convivência com a própria imagem e a
alheia, restrita aos espelhos e retratos nas sociedades tradicionais, passa a ser uma constante
e, como consequência, novos modos de visibilidade se instauram. A imagem perde assim
sua sutileza, seus meandros de luz e sombra, tornando-se explícita, integral, transparente.
Como consequência sobre a produção de novas subjetividades, tem-se que,
paralelamente ao fenômeno da invasão de privacidade, em que celebridades se vêem mais e
mais acossadas pela sede de informação do público e dos veículos da mídia, surge o
fenômeno da evasão da privacidade, em que pessoas comuns lutam por tornar-se, ainda que
por breves instantes (os famosos quinze minutos de Andy Warhol, hoje reduzidos por vezes
a quinze segundos) também elas alvo das câmaras e dos flashes. A celebridade instantânea,
sem sentido ou razão de ser, comprova a tese de que “nada faz tanto sucesso quanto o
sucesso”. (VERÍSSIMO, 2002) Experimentamos hoje uma perversão da premissa sofística
segundo a qual parecer (e aparecer) é superior a ser e em que a forma prescinde de
conteúdo. Temos aqui mais um exemplo de que mostrar nem sempre é sinônimo de
esclarecer, de que iluminar às vezes obscurece, obnubila e prejudica a compreensão. “Há na
exibição total de si algo de infamante, de excessivo, de desagregador”, diz Olgária Matos.
(MATOS, 2000)
Tanto nos fenômenos de invasão quanto nos de evasão de privacidade vemos uma
tendência muito presente e paradoxal: a desaparição do sujeito como princípio de ação
coincide com a exacerbação da subjetividade. No mesmo momento em que deixa de existir
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como instância interior plena e consciente, o sujeito atinge seu apogeu como ícone e
simulacro, como pura figuração, tentativa de preencher o vazio deixado pela saída de cena
da razão.
Quando a referência deixa de ser o jornal impresso e passa para as mãos da televisão,
quando a imagem passa a ter a primazia e o entretenimento se mescla irreversivelmente à
informação, torna-se cada vez mais difícil identificar claramente a separação entre a
imprensa dita séria e a imprensa sensacionalista. Esta oposição, sobre a qual será
constituído o campo jornalístico no século dezenove, tem hoje seus contornos cada vez
mais indefinidos. Um mesmo órgão de imprensa é capaz de estampar em suas páginas (ou
nas chamadas de um telejornal) notícias de relevância lado a lado com fofocas, importantes
decisões governamentais dividindo espaço com casamentos e separações de celebridades.
Com o surgimento do que Ramonet chama de ‘imprensa people’, fica cada vez mais
difícil identificar os órgãos de imprensa que merecem crédito, que prezam pela objetividade
acima de tudo e que buscam informar e esclarecer o leitor. O leque de abrangência se abriu
em demasia. Um princípio de legitimação tal como o reconhecimento pelos pares,
intelectuais e/ou jornalistas, não é suficiente para um veículo de mídia, qualquer que seja.
Sem as concessões que agradam a maioria e que se materializam no número de leitores,
ouvintes ou espectadores, em última instância, sem a aceitação por parte do mercado,
dificilmente um veículo, por mais bem intencionado que seja, resiste e consegue transmitir
suas mensagens. No Brasil isto fica evidente quando vemos a força de um neologismo
criado a partir do nome de uma empresa de aferição de audiência: Ibope não é sinônimo de
qualidade, mas de sucesso. A informação torna-se descontextualizada, dependendo cada
vez menos da ordem política em que se insere. Quando a imagem supera o discurso,
quando a visibilidade é mais importante que a interpretação, a emoção passa a ser a
principal ferramenta de que dispõe o jornalista. Atingir o público é preciso, fazer com que
pense não é preciso.
Considerações finais
Mas não se deve simplificar demasiadamente as coisas. A mídia é certamente uma
ferramenta poderosa e o jornalista assume tanto a função de sujeito quanto de objeto deste
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sistema de poder. Mas o controle dos meios de comunicação não pode ser suficiente para
produzir espíritos apaziguados. Se assim fosse não haveria voz alguma a se levantar contra
ele e viveríamos em uma sociedade catatônica como a de “1984”, de Orwell. O que se vê,
ao contrário, é que o sistema não é à prova de criticas e os próprios jornalistas se
preocupam em apontar suas falhas e abusos. Exemplos podem ser encontrados entre
jornalistas da grande imprensa, como o próprio Ignácio Ramonet e, no Brasil, Alberto
Dines, Zuenir Ventura, Luis Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes entre outros; e fora
dela, em vários sites como o Observatório da Imprensa e o No.com.br.
A influência da mídia sobre a população é grande, mas não é absoluta e muito menos
um fenômeno simples, como acreditavam os criadores da ‘teoria da agulha hipodérmica’.
Hoje é sabido que a recepção é parte importante do processo comunicacional e que ela nem
sempre padece de passividade crônica.
E apesar disto, o pensamento crítico está em crise. Esta, no entanto, não é decorrência
de uma ausência. Ao contrário, talvez nenhuma outra época tenha sido tão atravessada por
críticas. Todos criticam. Jornalistas criticam, intelectuais criticam, mesmo o homem
comum aprendeu a criticar. O problema é que a crítica não parece mais fazer diferença. Já
está a tal ponto incorporada à sociedade do espetáculo que esta não mais a teme. A crítica
está sob controle. Tudo está sob controle. Fala-se demais, é verdade, mas isto parece surtir
cada vez menos efeito.
Referências Bibliográficas
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
BAITELLO, N. “O olho do furacão” In: Encontro Nacional de Pós-Graduação em
Comunicação - COMPÓS, Brasília, 2000.
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midia, cultura e democracia, n. 8, NEPCOM, UFRJ, maio-agosto 1999.
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GUARESCHI, P. (coord) Comunicação e controle social. Petrópolis, Vozes, 1991.
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LEPAPE, P. Voltaire, o nascimento dos intelectuais no século das luzes. Rio de Janeiro:
Editora Jorge Zahar, 1995.
MARCONDES, C. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2000.
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Mais!
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RAMONET, I. A tirania da comunicação. Petrópolis: Vozes, 1999.
SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VERÍSSIMO, L.F. “Filhas do raipi”, O Globo, Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 2002,
Opinião.
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COMO ORGANIZAR BONS ENCONTROS?
Sobre os afetos e os corpos em Shara, de Naomi Kawase
Camila Vieira da Silva
Mestre em Comunicação – Universidade Federal do Ceará (UFC)
Primeiro plano. A câmera lenta percorre o espaço silencioso de um aposento escuro,
enquanto aparecem os créditos iniciais. De maneira flutuante, entre panorâmicas e
travellings, ela se desloca de baixo para cima, para o lado esquerdo, captando tudo o que
está a sua frente e dentro da sala, das paredes com estantes repletas de objetos de madeira à
lâmpada apagada ao centro. Sai pela porta, fixa a atenção numa claraboia, segue pelo
corredor. Enquanto escutamos ao longe duas vozes que dialogam: “- Vai funcionar? – Sim,
é só carvão” –, a câmera continua a se deslocar pelo corredor, gira para o lado direito e
mostra o detalhe da janela do aposento ao qual acabara de sair.
Como se tateasse aquela parede, a câmera continua caminhando até chegar à porta de
um novo aposento, semelhante ao anterior. Aproxima-se, mas não chega a entrar. Do lado
de fora e pelas janelas abertas, mostra os objetos interiores: prensas de madeira e ferro,
caixotes, papéis, uma balança. Pelo vidro de uma das janelas, é possível visualizar o reflexo
de um jardim e dois garotos agachados. A câmera novamente vira para a direita, levanta-se
para seguir o rastro da luz do sol, que se intensifica e ilumina o telhado. Em seguida,
enquadra um plano de conjunto do jardim da casa, onde estão os dois garotos que – só
posteriormente saberemos – são os irmãos gêmeos Shun e Kei, lavando as pernas sujas de
tinta e carvão. As vozes dos dois podem ser ouvidas agora com maior clareza.
Quatro minutos já se passaram. Nenhum corte interrompeu ainda o plano sequência,
que agora se detém na imagem dos dois garotos por alguns segundos, mantendo os
personagens ao centro do quadro, que permanece oscilante. De repente, um dos irmãos olha
pra frente e, numa rápida sucessão de atos, levanta-se, exclama “Shun!” e sai correndo por
um dos corredores da casa. Imediatamente, Shun o segue. A câmera também não hesita em
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segui-los. Um silêncio invade a cena, seguido pelo som repetitivo de algo semelhante a um
sino. Seguindo os passos ligeiros de Shun na perseguição ao irmão, a câmera põe-se a
correr vertiginosamente, capturando rastros de imagem a sua frente, pelos corredores
estreitos da casa, atravessando cortinas e portas, até chegar ao exterior da casa. Primeiro
corte, aos 5 minutos e 8 segundos.
Segundo plano. Shun ainda corre atrás do irmão, pelas ruas do bairro. Do detalhe dos
pés de Shun, o plano se abre, deixando ver o garoto e seu irmão mais ao fundo, correndo
em zigue-zague pelas ruas estreitas, dobrando esquinas, tocando nos enfeites das casas,
circulando entre as árvores de um jardim, ao som do canto das cigarras. Em seguida, a
câmera desiste de acompanhar os garotos e os observa de longe, com uma velocidade lenta.
Ao fundo, podemos perceber que Shun olha para trás, como se instigasse a câmera – e,
consequentemente, o espectador – a se manter correndo e assim não perdê-los de vista. Mas
os dois irmãos saem de quadro, que deixa ver o balanço das folhas das árvores ao vento.
Ouvimos novamente o ressoar do sino. Segundo corte, aos 6 minutos e 37 segundos.
Terceiro plano. O bater do sino continua. Seguindo as regras deste jogo de mise-en-
scène, a câmera opta por continuar a perseguir os garotos pelas ruas, até que Kei dobra uma
esquina. Quando Shun faz o mesmo, Kei já não está mais lá. No corredor, Shun diminui o
passo. A câmera para e, aos poucos, anda para frente. Shun olha ao redor, mas não encontra
o irmão. Um vento forte bate em seus cabelos. Shun olha para cima e a câmera faz o
mesmo movimento, em um delicado contra-plongée. Em seguida, acompanha os lentos
passos de Shun, que volta pelo mesmo caminho, agora ocupado pelos pais e seus amigos. A
mãe de Shun, Reiko, o vê sozinho e logo pergunta por Kei. Shun olha para trás. O pai Taku
insiste: “Vamos, responda!” Terceiro corte.
“Ele se foi”, diz Shun, com o semblante assustado. “O que você quer dizer com ‘se
foi’?”, pergunta a mãe, com o olhar fixo no filho, que permanece atordoado e sem palavras.
Novo corte. A câmera agora foca, em primeiríssimo plano, o rosto de Shun, ainda assustado
e observando a conversa dos pais, que decidem procurar Kei. Escutamos uma voz feminina
– talvez da mãe – perguntar: “Será que os deuses levaram Kei?” Fade-out.
Em pouco menos de 10 minutos, com os três planos-sequência e mais dois planos
curtos descritos acima, somos introduzidos ao filme Shara (Sharasojyu), terceiro longa-
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metragem da japonesa Naomi Kawase, realizado em 2003 e filmado em Nara, a cidade
natal da cineasta e antiga capital do Japão. Nesta sequência que inicia o filme, Kawase
constrói um prólogo sobre o desaparecimento, como elemento modulador que irá perpassar
ao longo de todo o filme. Se compreendermos que “a própria matéria do filme é o registro
de uma construção espacial e de expressões corporais”1, o jogo intenso entre a ausência e a
presença em Shara envolve não só o mero registro de corpos que aparecem e desaparecem
num determinado espaço, mas a compreensão do cinema como um corpo que lida com o
invisível – algo que apenas é sugerido, que ainda não podemos ver, mas está ali de alguma
forma.
De um estado inicial de sono ou embriaguez, a câmera-corpo de Shara deixa-se levar
pela curiosidade de olhar para o interior da casa de Shun e Kei, como se estivesse disposta a
detectar fendas, fissuras, pelas quais se pode violar um segredo – o desaparecimento de um
dos irmãos. Em vez de uma curiosidade passiva – que apenas aguarda os acontecimentos se
desenrolarem à sua frente –, uma curiosidade ativa torna-se cada vez mais aguçada e
penetrante. Ao fazer parte do jogo de perseguição desencadeado no início por Shun ao
alcance de Kei, esta câmera-corpo absorve intensas nuances sentimentais de curiosidade, a
ponto de querer ver por dentro da imagem, de esquadrinhar uma intimidade.
“A partir desta vontade de olhar para o interior das coisas, de olhar o que não se vê, o
que não se deve ver, formam-se estranhos devaneios tensos...” (BACHELARD, 1990, p. 7).
Trata-se de colocar em cena aquilo que se deixa ver e aquilo que não se vê, mas se sente – a
dor que a família de Shun vivencia, mesmo cinco anos depois do desaparecimento de Kei.
Além do interesse ótico de profundidade – de querer ver o íntimo –, há, sobretudo, um
interesse de superfície – de tatear um estado de coisas à flor da pele – a ponto de construir
no/com o filme toda uma poética da tatibilidade.
Não se desvela em nenhum momento o motivo pelo qual Kei desapareceu, mas como
esse desaparecimento afeta os corpos dos membros da família, como eles podem superar a
dor e continuar suas vidas. A superficialidade aqui importa como “um atributo de cinema
1 Cf. a citação de Eric Rohmer, cineasta e ex-redator-chefe dos Cahiers du Cinéma, feita por Antoine Baecque
em COUTRINE (org), 2008, p. 481.
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em que não nos apetece aquilo que simboliza ou remete à, mas aquilo que, em si mesmo, no
grafismo imanente da imagem, é uma presença”2. A questão primeira é: o que podem estes
corpos diante do desaparecimento do outro, de algo imponderável que os invade e que, ao
mesmo tempo, lhes escapa?
Esta problemática considera a famosa pergunta de Espinosa – o que pode o corpo?3 –,
que implica a ética de uma diferente concepção de indivíduo, que dispõe de um direito
natural com base em tudo aquilo que pode seu corpo4. As afecções – que, para Espinosa,
são as paixões e as ações – de um corpo determinam seu conatus – a singularidade que cada
um tem de afetar e ser afetado – e, por sua vez, o conatus é também a procura do que é útil
em função das afecções que o determinam. Todos os corpos se relacionam. Bons encontros
produzem um aumento de potência dos corpos, enquanto maus encontros produzem uma
diminuição da potência de agir dos mesmos. Espinosa reforça a concepção de que a razão
nos possibilita organizar bons encontros, para que possamos evitar procurar aquilo que nos
é útil ao acaso e assim nos perdermos em afecções passivas que nos separam da nossa
potência de agir. No entanto, a razão não representaria qualquer privilégio da condição
humana, mas sim os afetos.
Se os homens vivessem sob a direção da Razão, cada um usufruiria deste direito
sem dano algum para outrem. Mas, como eles estão sujeitos aos afetos, que
ultrapassam de longe a potência, ou seja, a virtude humana, por isso são muitas 2 Cf. BRAGANÇA, Felipe. Filmar, hoje, um corpo (em alguns atos). Junho de 2007. Revista Cinética.
http://www.revistacinetica.com.br/filmarumcorpo.htm. Acessado em 08/03/2009.
3 Segundo DELEUZE (1968, p.1), a pergunta de Espinosa “não implica em nenhuma desvalorização do
pensamento em relação à extensão, mas somente uma desvalorização da consciência em relação ao
pensamento”. Isso quer dizer que Deleuze defende um certo tipo de pensamento, nesse caso, o pensamento do
corpo e não da Razão.
4 Segundo tal princípio, não haveria nenhuma diferença entre o sábio e o insensato, o razoável e o demente, o
forte e o fraco, na medida em que “um e outro se esforçam igualmente em se conservar, tem tanto direito
quanto potência, em função das afecções que preenchem atualmente seu poder de ser afetado” (DELEUZE,
1968, p. 1).
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vezes arrastados em sentidos contrários e são contrários uns aos outros, quando
têm necessidade de mútuo auxílio (ESPINOSA, 1979, p. 249)5.
A câmera-corpo de Shara convida o espectador a mergulhar no universo do filme, a
partir dos afetos dos personagens e de seus próprios afetos, sem necessariamente recorrer a
uma atenção intelectual. Que tipo de pesquisa sensória esta câmera-corpo estabelece com
os corpos dos personagens e com seus afetos transbordantes? A escolha da câmera na mão
não é apenas coerente com a história que está sendo narrada, mas principalmente com a
estratégia de Kawase6 em concentrar a atenção do espectador à instabilidade do vivido e de
seu fluir constante.
Ao apontar corpos em cena que estão em constante relação, o filme aciona uma
“estética do fluxo”, que não se reporta exatamente à velocidade e aos fluxos de informação
proporcionados pelas novas tecnologias midiáticas, mas diz respeito àquilo que o crítico da
revista francesa Cahiers du Cinéma, Stéphane Bouquet7, compreende como uma
possibilidade diferente de se pensar a linguagem cinematográfica na contemporaneidade:
por meio de sensações, que desencadeiam uma multiplicidade de estados possíveis, a partir
de uma série de procedimentos que exploram a relação corpo/espaço dentro de uma
experiência do tempo como atmosfera.
Shara deixa se envolver pela superfície da imagem, o gasoso da imagem, que se
percebe através da materialidade de uma fala, de um olhar, de um gesto. Aquilo que é
invisível da imagem a atravessa como uma disposição sensorial. Desde o primeiro plano
sequência descrito acima, o filme começa com aquilo que vai propor em todo seu percurso:
entregar-se a um arejamento de planos, que não petrifica algo que está suspenso.
5 Cf. ESPINOSA. Ética, parte IV, proposição XXXVII, escólio II.
6 Podemos atribuir este crédito também à direção de fotografia de Yukata Yamasaki, que colaborou em vários
filmes do cineasta japonês Hirokazu Kore-eda.
7 Cf. BOUQUET, Stéphane. “Plan contre flux”. In: Cahiers du Cinéma, n. 566, março de 2002. Paris: 2002,
pp.46-47.
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Compondo uma topografia coreográfica e gestual, a câmera passeia pelos espaços,
escorre horizontalmente em panorâmicas, recua e avança com seus travellings. São
movimentos de exploração dos corpos e dos espaços, evidenciados principalmente nas
sequências em que os personagens se deslocam – como é o caso dos passeios de bicicleta
de Shun e Yu ao voltarem da escola; a corrida dos dois, pouco antes do parto de Reiko; a
dança de Yu no Festival de Basara, uma festa local organizada pela comunidade. São cenas
em que a câmera acompanha os corpos em movimento, mantendo uma distância mais ou
menos inalterada em relação a eles, mas que também decide, às vezes, afastar-se por alguns
instantes para mover-se ao redor, examinando os espaços8.
A maneira como a câmera filma os corpos em suas relações com o mundo possibilita
pensar um tipo de cinema que compreende seus personagens não pelo que eles são – não
existe, em Shara, uma intenção definida de construção psicológica dos personagens –, mas
pela forma como eles atuam em determinado espaço e estabelecem encontros com outros
corpos, a partir de uma construção dramatúrgica física carregada de sensorialidade. “O
corpo como começo e fim expressivo, não como meio da ação ou sinal de algo além dele ou
sob”9.
Mais do que proporcionar julgamentos, as ações dos personagens desencadeiam
afetos. Novamente a teoria dos afetos de Espinosa deve ser levada em consideração. Para
que possamos compreender melhor esta relação, é preciso esclarecer a diferença que o
filósofo estabelece entre afecções e afetos. Para Espinosa, as afecções são paixões e ações
determinadas, que proporcionam transformações ou marcas corporais. Os afetos são as
variações, as passagens ou transições de um estado do corpo afetado a uma potência de agir
maior ou menor do que aquele em que se encontrava.
8 Cf. LÓPEZ, Jose Manuel. Shara y lo in/visible. Revista Tren de Sombras. N. 3. Abril de 2005.
http://www.trendesombras.com/num3/critica_shara.asp. Acessado em 08/03/2009.
9 Cf. BRAGANÇA, Felipe. Filmar, hoje, um corpo (em alguns atos). Junho de 2007. Revista Cinética.
http://www.revistacinetica.com.br/filmarumcorpo.htm. Acessado em 08/03/2009.
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Há tantas espécies de alegria, de tristeza e de desejo e, consequentemente, de
todos os afetos que desta são compostas, como a flutuação da alma, ou que dela
derivam, como o amor, o ódio, a esperança, o medo, etc., quantas as espécies de
objetos pelos quais somos afetados (idem, p. 210)10.
Dentro de seus limites, o homem deve esforçar-se por provocar bons encontros que
aumentem ao máximo sua potência de agir. Se os afetos tristes nos conduzem ao grau mais
baixo de nossa potência – em que estamos alienados da nossa potência de agir e entregues
aos fantasmas da superstição, do rancor, do ressentimento e às mistificações dos tiranos –,
cabe a nós experimentar afetos alegres por meio de bons encontros. Trata-se de um
problema ético, na medida em que nossa potência de agir se fortalece a partir da capacidade
que acionamos para produzir encontros alegres11.
Após o prólogo que apresenta o desaparecimento de Kei, o filme dá um salto
temporal de cinco anos. A família Aso parece manter normalmente sua rotina de vida, na
antiga cidade de Nara. Shun tem agora 17 anos, estuda e gosta de pintar quadros. O pai
Taku mantém o tradicional ofício de confeccionar tintas artesanais e coordenar o Festival
de Basara, cujos preparativos começam a ser pensados. A mãe Reiko está grávida e cuida
das tarefas domésticas. No entanto, aos poucos, percebe-se que, em pequenos
acontecimentos do cotidiano, a ausência de Kei ainda é sentida por toda a família.
A partir daí, o filme passa a ser a expressão intensa dos esforços de cada personagem
em organizar, cada um a seu modo, encontros alegres, apesar de uma fatalidade ter marcado
suas vidas. Não se trata da conservação de um afeto triste, mas de uma aprendizagem que
10 Cf. ESPINOSA. Ética, parte III, proposição LVI. Em transcrição de um curso sobre Espinosa em
Vincennes, aula de 24 de janeiro de 1978, Deleuze esclarece que “o afeto não se reduz a uma comparação
intelectual das idéias, o afeto é constituído pela transição vivida ou pela passagem vivida de um grau de
perfeição a outro, na medida em que essa passagem é determinada pelas idéias; porém em si mesmo ele não
consiste em uma idéia, ele constitui o afeto” (Tradução de Francisco Traverso Fuchs, obtido no site Deleuze
web, http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=194&groupe=Spinoza&langue=5, acessado em
08/03/2009).
11 Cf. ESPINOSA. Ética, parte III, proposição XI.
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envolve o confronto com a dor inevitável de um acontecimento passado, sem sucumbir ao
ressentimento ou à culpa. Como argumenta Deleuze, em seu curso sobre Espinosa:
Sem dúvida este esforço tem limites: seremos sempre determinados a destruir
certos corpos, nem que seja para subsistir; não evitaremos todo mau encontro;
não evitaremos a morte. Mas nós nos esforçamos de nos unir ao que convém com
a nossa natureza, de compor nossa relação com relações que se combinam com a
nossa, de reunir nossos gestos e pensamentos à imagem de coisas que concordam
conosco. De um tal esforço nós estamos no direito de esperar, por definição, um
máximo de paixões alegres. Nosso poder de ser afetado será preenchido em tais
condições que nossa potência de agir aumentará. E se perguntarem em que
consiste o que nos é mais útil, vemos bem que é o próprio homem. Pois o
homem, em princípio, convém em natureza com o homem.[...] Assim, o esforço
de organizar os encontros é de início o esforço de formar a associação dos
homens sob relações que se compõem (DELEUZE, 1968, p.3).
Pode-se compreender que Shara coloca em evidência as capacidades dos corpos em
aumentar suas potências de agir. Na cena em que alguém – talvez um policial – comunica a
Taku que possivelmente foram encontrados os restos mortais de seu filho, o diálogo
acontece fora-de-campo, enquanto a câmera centra-se em Shun, que escuta a conversa no
piso superior da casa. Até o desfecho, o filme mantém esse sentido ético de preservação do
corpo e da história de Kei: seus restos mortais e seu possível enterro são deixados de fora
da diegese do filme. Ao ouvir a conversa, Shun tenta sair de casa, mas Taku o impede,
como se obrigasse o filho a enfrentar a dolorosa perda do irmão.
Há toda uma orientação budista implícita nesta sequência. No budismo, o corpo é o
lugar da dor, do sofrimento, pois está sempre envolvido na ação do tempo. Enquanto
matéria, o corpo é efêmero, sujeito ao desgaste, tão impermanente quanto tudo aquilo que o
cerca. O sofrimento surge dessa limitação. Diferente do cristianismo que busca uma
justificação do sofrimento por meio do pecado e da culpa, o budismo apenas afirma que o
corpo é capaz de sofrer e que é preciso enfrentar o sofrimento. Nietzsche chegou a
reconhecer no budismo a superioridade em relação ao cristianismo.
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O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo. (...) O budismo é a única
religião autenticamente positiva que a história nos mostra, (...) ela não diz ‘luta
contra o pecado’, senão, dando total razão à realidade, diz ‘luta contra o
sofrimento’. Deixa atrás de si – e isso distingue-o profundamente do cristianismo
– esse logro de si próprio, que são as concepções morais; coloca-se, para falar a
minha linguagem, para além do bem e do mal (NIETZSCHE, 2001, p. 53).
Aqui o sofrimento não depõe contra a vida. Pelo contrário, faz parte dela. Se os
budistas lidam com “uma excessiva sensibilidade que se exprime por uma requintada
capacidade de sofrer” (idem, ibidem), Nietzsche leva até as últimas consequências suas
considerações sobre o sofrimento. Ao compreender o corpo como pluralidade unânime e a
hipótese da alma como estrutura social dos instintos e afetos12, Nietzsche dissolve a
pretensa distinção alma/corpo, pois a alma seria parte do próprio corpo. Cabe considerar
alma e corpo a partir do que sofrem, ficando expostos e marcados pela contingência, pela
diversidade de regularidades e acasos, de acertos, descobertas, vicissitudes e fracassos.
Resumidamente, por meio de todo e de cada querer opera uma pluralidade de
forças, de sentimentos, referentes tanto aos estados e coisas com as quais elas se
relacionam a partir do seu encontro, habitando o corpo e em meio a situações nas
quais ele se insere, como às sensações fisiológicas que se experimentam de
diferentes modos através dos movimentos corporais exigidos pela ação do querer
(JARA, 2003, p. 82).
Não é à toa que Taku abraça seu filho com uma força dura e violenta, gesto que, aos
poucos, acalma Shun. É preciso eleger e levar a cabo uma escolha forte, que, no caso da
família Aso, se efetiva na passagem da “obscuridade” para a “luz” – em uma das cenas
mais belas de Shara, Taku escreve estes dois kanji (ideogramas) em uma lona, na presença
de Shun e Reiko. Se a vida é uma pluralidade de forças, o homem forte, abundante de
forças, é aquele que cria, que dá valor e tem o poder de agir. Age e valora a partir de si.
12 Cf. aforismo 12 de NIETZSCHE. Para Além do Bem e do Mal: Prelúdio de uma Filosofia do Futuro, São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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Através da criação de uma pintura – motivo de aproximação entre pai e filho –, Shun
procura distanciar-se da lembrança de seu irmão, ao criar-lhe um rosto por meio de um
retrato pintado. É uma memória ativa, que funciona pela vontade e pela faculdade ativa do
esquecimento, e não uma memória doente, que não consegue se livrar de uma lembrança.
Trata-se também de um processo de autoafirmação: o rosto imaginado de Kei por Shun
também acaba sendo seu próprio rosto. Esta relação implica a atenção dada pelo filme à
questão do duplo. O título original Sharasojyu remete ao nome de uma árvore simbólica
para o budismo. Quando Buda alcançou o nirvana, ele descansava entre duas árvores
sharasojyu. Segundo Naomi Kawase, em entrevista concedida a Cahiers du Cinéma, este
elemento exerce fundamental importância no filme.
No budismo, Sharasojyu é também o símbolo do par, do duplo. É por isso que
recorri a este símbolo para narrar a vida dos dois irmãos, Shun e Kei, que eram
como dois espelhos que se refletiam um ao outro no início e também para sugerir
todos os grandes dualismos que ordenam o mundo (a vida e a morte, a
obscuridade e a luz, o passado e o futuro, etc.) e sobre os quais o filme é
construído (KAWASE, 2004, p. 23)13.
Por meio da jovem e doce Yu, vizinha e amiga de infância, Shun encontra um corpo
para preencher o vazio deixado pelo desaparecimento do irmão. Ela também enfrenta a
melancolia de um passado obscuro. Em outra cena filmada por um travelling pelas estreitas
ruas de Nara ao entardecer, a mãe de Yu, Shouko, revela-lhe não ser sua mãe biológica,
resguardando as palavras como se fosse uma narrativa de conto de fadas que começa com
“era uma vez...”. Um passado distante que necessita ser esquecido para a afirmação da vida.
13 Tradução minha do seguinte texto: “Dans le bouddhisme, Sharasojyu est aussi le symbole de la paire, du
couple. C’est pourquoi j’ai eu recours à ce symbole pour raconter la vie dês deux frères, Kei et Shun, qui
étaient comme deux miroirs se reflétant l’un l’autre au début, et aussi pour suggérer tous les grands dualisme
qui ordonnent lê monde (la vie et la mort, l’ombre et la lumière, le passe et l’avenir, etc.) et sur lesquels le
film est construit”.
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É, na sequência do Festival de Basara, que Yu exterioriza toda sua potência de vida.
Ela dança e comanda o desfile de sua companhia de bailarinos, com seu corpo de
movimentos enérgicos e olhar desafiante, em uma dança de pura celebração e êxtase
dionisíaco, de uma fisicalidade úmida – a ponto de provocar uma chuva torrencial –,
assemelhando-se ao final de Zatoichi (2003), longa-metragem do também japonês Takeshi
Kitano.
Na sequência final, o parto de Reiko também configura um momento de êxtase, de
celebração da vida, em que todos os personagens participam: Taku, Shun, Yu e Shouko
colaboram para que a mãe Reiko dê a luz a um novo corpo. Acompanhando a respiração e o
suor dos corpos envolvidos, a câmera afasta-se aos poucos logo após o nascimento do bebê,
até sair pelos corredores da casa e, em seguida, sobrevoar a cidade de Nara em um
envolvente plano panorâmico. Uma experiência aventurosa de fidelidade à terra, ao
mundano, em que a vida é vontade, querer ultrapassar, querer ir além.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE AUTORIA E CRIAÇÃO NO CINEMA
Laécio Ricardo de Aquino Rodrigues
Doutorando em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas e professor do Bacharelado em Cinema da UFPE
1. Introdução1
Parece contraditório insistir na ideia de autoria numa modalidade artística como o
cinema, que pulveriza a atividade criadora em diversos setores, delegando-a a múltiplos
indivíduos que, embora mantenham entre si um diálogo contínuo, possuem relativa
autonomia em suas respectivas áreas2. No entanto, apesar do entrave levantado pela
diluição do processo criativo, o debate se mantém fértil nesta arte, inspirando entusiastas e
críticos. Este ensaio recapitula o tema com o objetivo de instigar novas reflexões. O trajeto
tem início com uma revisão da “política dos autores”, defendida nos anos de 1950 pelos
jovens críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma (críticos que se converteriam nos
expoentes da Nouvelle Vague3). Em seguida, mapeio algumas objeções a tal
posicionamento, bem como o que dele reside de fértil, para propor reconsiderações
inspirado no sociólogo Norbert Elias.
2. A Política dos Autores: o papel dos “Jovens Turcos”
Embora tenha defendido sistematicamente a condição de autor para alguns cineastas,
a geração de críticos do Cahiers liderada por Truffaut e Godard nunca formalizou suas
reflexões em obra teórica de fôlego. O que se pode apreender de suas propostas são as
considerações que acompanham seus textos publicados na famosa revista fundada por
1 Uma versão mais concisa deste trabalho foi publicada nos anais do “1º Congreso da Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual” (Asaeca), realizado na cidade de Tandil, em 2009. Embora mais robusto, é preciso ressaltar que o presente artigo ainda não se encontra finalizado. RODRIGUES, Laécio Ricardo de Aquino. Como Pensar a Autoria na Criação Cinematográfico? In: MOGUILLANSKY, Marina, MOLFETTA, Andrea, e SANTAGADA, Miguel. (org.). Teorías Y Práticas Audiovisuales. Buenos Aires: Editorial Teseo, 2010, p. 567-579. 2 Basta pensarmos nos múltiplos cargos de direção comuns à atividade cinematográfica, cada um com forte poder de decisão em suas áreas: cineasta, diretor de arte, de fotografia, de elenco, produtor executivo... 3 François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette, por exemplo.
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André Bazin. Devido à inexistência de formulação abrangente, as ideias do grupo foram
agrupadas na expressão “política dos autores” ou politique des auteurs (Buscombe, 2005),
termo que se consagrou nas décadas seguintes4. No Brasil, estudo pioneiro sobre a
influência dos redatores do Cahiers (geração que ficou conhecida pelo ambíguo epíteto de
jovens turcos) e a repercussão local de suas ideias, foi publicado por Jean-Claude
Bernardet, em 1994. Embora peque pela ausência de referências precisas, seu livro será
peça importante nesta revisão inicial.
Lembra-nos ele que, na tradição francesa que antecede à “política”, a ideia de autoria
no cinema era debitária das reflexões sobre autoria na literatura – respeitado o paralelo,
muitas vezes era o roteirista o profissional incensado como criador. Na revisão proposta
pelos jovens turcos, a experiência cultural que modelará o conceito de autor
cinematográfico ainda será a literária; porém, é o cineasta que emergirá como o “criador-
escritor” e o filme, seu provável romance. No entanto, não deve o cinema se transmutar em
literatura: a nova geração dos Cahiers defende uma arte mais livre da trama, do enredo e da
narrativa; vinculada, portanto, às especificidades cinematográficas (os elementos plásticos,
a encenação, a composição dos planos). Para eles, os valores literários dignos de serem
incorporados pelo cinema são os valores morais (Bernardet, 1994, p. 9 a 18), precisamente
o controle criativo que se atribui ao escritor e o prestígio deste artista numa cultura de forte
tradição literária como a francesa – lembremos que os jovens críticos, e futuros cineastas,
estão às voltas com a tarefa de conferir legitimidade ao cinema5 (Buscombe, 2005, p. 281 e
282).
Inerente a este aspecto da definição está o preceito romântico do autor como aquele
que infunde seu sangue à obra e que vivencia a experiência do ato criador solitário e, não
raro, doloroso (típico da literatura oitocentista)6. A política dos autores rememora
4 A imprecisa designação “Teoria do Autor” é um equívoco do americano Andrew Sarris traduzido no artigo “Notes on the Auter Theory in 1962”, publicado em Film Culture, em edição do inverno de 1962-1963 (Buscombe, 2005, p. 281). 5 Contudo, mesmo defendendo uma dissociação dos elementos da prática literária, os jovens turcos, seja como críticos ou realizadores, não conseguiram se restringir às especificidades fílmicas. Seus textos se amparavam em parâmetros literários (enredo, personagens e conflitos) e seus filmes, não raro, preservavam a diegese (1994). 6 Para Buscombe, os textos dos Cahiers traziam implícita a noção de “centelha divina”, “que separa o artista dos mortais comuns, que distingue o gênio do “artesão” (2005, p. 284).
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Bernardet, ecoando ensaio de Truffaut publicado em 1957, é a apologia do sujeito que se
expressa, uma concepção que nega o cinema enquanto arte coletiva – no tumulto do
estúdio, é possível o isolamento criativo. Para tanto, os jovens turcos defendem uma
centralização da atividade cinematográfica: para impor seu ímpeto artístico, o diretor deve
conciliar as funções de roteirista e produtor; preceito que, embora ingênuo, foi incensado
pela Nouvelle Vague e alguns dos Novos Cinemas. (1994, p. 22 a 26).
Segundo a “política”, o verdadeiro autor seria aquele que faz reverberar sua matriz ou
metáfora obcecante ao longo de sua obra. Esta mesma interioridade, em outros textos, é
denominada de temática plena ou metafísica, termos que não contribuem para lhe conferir
precisão. A matriz dificilmente se vislumbra no primeiro filme, embora este já contenha seu
germe; a tarefa do cineasta-autor, então, é decantá-la ao longo de sua trajetória (Bernardet,
1994, p. 28 a 35). Buscombe confirma que “a noção de unidade produzida pela
personalidade do autor é central na posição do Cahiers; mas é tornada mais explícita por
seu apologista americano, Andrew Sarris” (2005, p. 284). Tal apologia impõe questões que
não encontram respostas fáceis na politique: a matriz faz da obra um sistema fechado e
coeso? Tudo está contido no primeiro filme, mas em potência? A obra, portanto, tem por
função concretizar a promessa esboçada na estreia? Os filmes precedentes profetizam os
posteriores e estes aprimoram os anteriores? Por conseguinte, “escreve-se” sempre o
mesmo filme?
Na “política”, papel crucial é conferido à crítica cinematográfica. Uma vez que o
artista nem sempre consegue verbalizar a inspiração que norteia sua arte, caberia a crítica
analisar sua obra e verificar as similitudes que ratificarão a força criativa de seus filmes,
indicando suas metáforas obcecantes. Abro um parêntese para compartilhar o que me
parece uma dupla suspeita: ao mesmo tempo em que a redação do Cahiers tenta legitimar a
arte cinematográfica e a autoria, verifica-se igualmente um esforço de valorização da
crítica. Ora, à época, os jovens turcos ocupavam precisamente o cargo de críticos (seus
textos, portanto, são uma defesa do posto que exerciam nesta cadeia e das ideias
alavancadas por eles sob tal condição); um decênio depois, o mesmo grupo se consagraria
como cineastas, adotando tais preceitos. Haveria aqui a escavação de um duplo terreno?
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Um aspecto surpreendente na “política” é o fato dos jovens turcos terem articulado
suas ideias não somente a partir do legado dos grandes realizadores europeus (Rossellini,
Renoir, Bresson, Bergman), mas, sobretudo, por meio da análise da obra de cineastas de
Hollywood. Não apenas Welles e Fritz Lang, incensados no Velho Mundo, mas também
Howard Hawks, Nicholas Ray e Alfred Hitchcock, nomes que dividem opiniões. Para
Bernardet, esta singularidade possui claras motivações: ao mapear o “ego” e a autoria num
ambiente que tradicionalmente os rechaçava, e em produções comerciais, tratavam os
jovens turcos de conferir legitimidade às suas ideias; ou seja, a vitória da criação em
“território inimigo” atestaria suas convicções (1994, p. 36 a 45).
Porém, tal entusiasmo perde força quando avaliamos o método empregado nas
análises. Para identificar a matriz dos cineastas hollywoodianos e fundamentar suas
hipóteses, Truffaut e os demais restringiam seu diagnóstico a um grupo específico de filmes
– quando alguma produção não expressava a suposta matriz, era descartada. O gesto
seletivo (aproveitar o que é pertinente e desprezar as exceções) nega um modelo que define
a obra como decantação da matriz e o criador como aquele que sempre reverbera suas
metáforas. Por outro lado, tal gesto também rasura a legitimidade do crítico: como
considerar válido um trabalho analítico que se pretende de conjunto, mas que se revela
excludente?
Para Buscombe, a proposta dos jovens redatores do Cahiers estimulara um apartheid
no campo cinematográfico: de um lados teríamos os criadores autênticos, do outro, meros
artesãos ou realizadores. Para além das rivalidades expressa por tal dicotomia, o
predomínio da visão romântica que incensa os “cineastas verdadeiros” também enfrenta
resistências pelos seguintes motivos: elege a personalidade como critério de valor e de
classificação de uma obra; pressupõe que o gênio independe do tempo, do espaço e do
contexto histórico; despreza as influências do tecido social e dos fatores econômicos no ato
criador e na dinâmica cultural (2005, p. 286 a 290). Considero ingênua esta visão do artista
como oposto à sociedade e o único responsável pelos sentidos da obra – espécie de sujeito
pleno que realiza sua expressão autoral mesmo em ambiente hostil e que, exatamente por
isso, é valorizado. Contra esta posição, mas também não favorável à visão que decreta o
triunfo das estruturas sobre o indivíduo, dirijo minhas colocações no próximo bloco.
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3. Por uma reclassificação do autor e do sujeito
Gostaria de apresentar a primeira crítica que o conceito de autoria defendido pelos
jovens turcos enfrentou a partir dos anos de 1960, período de grande politização no campo
da produção cultural. Num quadro internacional de expansão dos regimes ditatoriais na
América do Sul, de descolonização africana e de fortalecimento das esquerdas no Velho
Mundo, a prática de um cinema autoral – desconectado da urgência da luta de classes e
preso às interioridades de seus criadores – é vista como alienação e excentricidade
(Bernardet, 1994, p. 155 a 162). No lugar da militância e do debate político, sobressair-se-
ia em tais obras a individualidade e o gênio do cineasta-autor encastelado. Esta produção
fechada sobre si, hermética, se distanciava da necessidade de um “cinema de intervenção”,
que somente seria alavancado com a defesa de uma arte voltada aos interesses coletivos.
Emblemático desta crítica é o texto de Solanas e Getino, intitulado “Hacia um Tercer Cine”
(1973), que defende a transição para um novo cinema, expressão das transformações
históricas em vigor, em oposição à produção hollywoodiana (estéril, capitalista e voltada ao
espetáculo) e à politique (de mentalidade burguesa, niilista, mistificadora). No entanto, o
manifesto da dupla não atinge o cinema de autor em seu preceito nuclear (a visão do artista
romântico, decalque do sujeito moderno); sua crítica consiste numa recusa do
intelectualismo e das aspirações pequeno-burguesas presentes na obra dos autores.
Com cores mais sofisticadas, oposição semelhante é manifestada por Pasolini (1981)
ao analisar a ascensão do “cinema de poesia” na obra de diretores influenciados pela
politique des auteurs. De início, pois, o italiano elogia o vigor estético do chamado cinema
de autor. Todavia, ante sua institucionalização e posterior esvaziamento crítico, termina por
censurá-lo; além de debochar do esteticismo demasiado e febril de alguns filmes, Pasolini
identifica na estrutura diegética destas produções a inclusão de personagens-pretextos, tipos
neuróticos ou desviantes, que serviriam para externalizar as angústias individuais dos
diretores e ratificar suas visões de mundo burguesas. Assim, longe de promover qualquer
revolução social, tal arte, aos olhos do italiano, teria o estatuto de um cinema da
reprodução.
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Outra crítica aos jovens turcos pode ser vislumbrada no ensaio de Teixeira sobre o
processo criativo de Júlio Bressane. Se os redatores do Cahiers defendem que cada filme de
autor é expressão das marcas pessoais e intransferíveis da criação que consubstanciam um
estilo a ser sempre maturado (ênfase na continuidade, unidade e fidelidade a si), Teixeira
argumenta, amparado na cinematografia de Bressane, que a verdadeira criação pressupõe
reinvenção e ousadia e, não, estagnação ou lealdade a um estilo e matriz temática (1999).
De sua análise, despontam duas observações: vida e obra devem ser dissociadas (a criação
artística não se confunde com a biografia – ela é transmutação e não reprodução da emoção
vivida); o estilo é devir criador (qualquer cristalização implica em necrose do autor).
Um questionamento mais rigoroso do autor, todavia, resultou da ascensão do anti-
humanismo francês da vertente estruturalista (Lévi-Strauss, Barthes, Lacan e outros), que
negava a primazia do sujeito moderno consagrada pelo Iluminismo e sua celebração da
razão triunfante. No lugar do sujeito pleno e dotado de autonomia, fonte de suas
representações e de seus atos, teríamos um sujeito conformado na multidão, determinado
por estruturas que lhe antecedem e que se impõem a ele (a língua, a religião e o
inconsciente, por exemplo), disciplinado por poderes que lhe escapam e saberes que
legitimam tais práticas de dominação. Por esta visão, o homem contemporâneo despontaria
como uma instância de reprodução de discursos que preexistem a ele – ele não é um
fomentador destes discursos e saberes, mas uma caixa de ressonância a ecoá-los
voluntariamente ou não.
A ascensão da posição estruturalista, metaforizada na provocativa declaração da
“morte do homem”7, representou um severo golpe no conceito de autor esboçado pelo
Cahiers. Questionado o sujeito moderno, fragilizava-se sua personificação no campo das
artes – o autor. Se, pelo homem, transitam discursos que lhes são externos e estruturas que
norteiam sua subjetividade, perde força o conceito de “gênio romântico” e sua condição de
criador iluminado, sem conexão com o tecido histórico – que acredita ser livre das
interdições sociais. Recusa-se a versão da inspiração como ato isolado, denuncia-se o culto
do autor moderno como mistificação (alguém cuja assinatura se converte em grife para
orientar leituras, lotar cinemas e organizar prateleiras) e decreta-se sua “morte”. 7 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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Esta última e ousada sugestão desponta em ensaio demolidor de Roland Barthes
(1988), no qual o francês destaca a escrita como a destruição de toda e qualquer voz
individualizada enquanto mescla heterogênea – um texto não é feito de uma linha de
palavras, que libertam um sentido único e teológico, mas um espaço de dimensões
múltiplas, um tecido de citações proveniente de diversas culturas, e que entram umas com
as outras em diálogo, paródia ou contestação. Um campo aonde vem se perder toda e
qualquer identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve. O único poder do
escritor, assevera Barthes, é o de misturar as escritas, de contrariá-las umas às outras, de
modo a nunca se apoiar numa delas. Tradicionalmente, a explicação da obra é sempre
procurada do lado de quem a produziu, como se a obra fosse a confidência única do autor.
Mas, sugere Barthes, a linguagem que ali fala não é personificação do autor e não é este
quem controla os sentidos do texto; tal multiplicidade apenas se reúne no leitor. A unidade
de um texto, dessa forma, não estaria na sua origem, mas no seu destinatário impessoal.
Foucault, cujo vínculo à corrente estruturalista é ambíguo8, nos convida a perscrutar o
conceito de autor (na realidade ele usa o epíteto função) e suas conexões históricas, em
texto inspirado em seu procedimento genealógico. Para ele, a ascensão desta função, como
hoje a conhecemos, está vinculada a um contexto jurídico e institucional específico. Ela não
se exerce de modo uniforme em todas as épocas e civilizações, despontando num contexto
de forte individualização na história das ideias e saberes, período em que se configuram os
direitos autorais e o mercado de circulação da produção cultural (1992, p. 33).
Mas, se o autor é uma construção histórica, impreciso é o conceito de obra. Uma obra
é o que escreveu o autor? Será que tudo o que ele disse ou deixou atrás de si faz parte de
sua obra? (Foucault, 1992, p. 37 e 38). Trata-se de um problema teórico e técnico: “Como
definir uma obra entre os milhões de vestígios deixados por alguém?” (p. 38). E quando um
texto não possui autoria reconhecida pode ser considerado uma obra? O questionamento
ironiza o esforço da crítica, que não tolera o anonimato, a ausência de datas ou das
8 Traços estruturalistas são evidentes nos textos inicias de Foucault. Contudo, sua obra pós-1975 revela novos pontos de inflexão. Sua vinculação ao estruturalismo é recorrente, mas também é fácil encontrar interlocutores que a questionem; o próprio Foucault recusou enfaticamente tal enquadramento.
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circunstâncias que levaram à produção do texto9. Para Foucault, assim como para Barthes, a
identificação de um autor responde ao esforço da crítica em impor um “fechamento” para o
texto, em “congelar” seus sentidos. Por isso, Barthes dirá que o reino do autor é também o
reino do crítico (1988). Afinal, um trabalho assinado não se confunde com um texto
anônimo – sua recepção exige outro estatuto e sua circulação, outro trajeto.
Influente no contexto do pós-Guerra, a abordagem estruturalista também sofreu
revezes a partir dos anos de 1970. Seu anticientificismo e sua rejeição à noção
existencialista de uma liberdade humana plena, pautada na defesa de que a conduta
individual é orientada por estruturas, constituíam para muitos uma abordagem
conservadora, negativista e determinista, que afastava dos homens a possibilidade de
assumir as rédeas históricas. Uma síntese desta crítica encontra-se numa afirmação de
Lucien Goldmann em debate com Foucault, após a conferência deste último sobre o autor:
“as estruturas não descem à rua”; isto é, “nunca são as estruturas que fazem a história, mas
os homens, ainda que a ação destes tenha sempre um caráter estruturado e significativo”
(Foucault, 1992, p. 80).
Para Stephen Heath, um esforço de recuperação do conceito de autor deve pressupor
um deslocamento desta problemática para a teoria do sujeito. E, no caso do cinema,
qualquer proposição precisa levar em conta as múltiplas especificidades da produção
fílmica (2005, p. 298). Esforcemo-nos por reformular o lugar do sujeito. Goldmann
concorda com Foucault que o indivíduo não é o autor último de um texto (1992). Ou seja,
ele admite que a criação tem uma dimensão social; mas se nega a condenar o sujeito
moderno, propondo sua substituição por um sujeito trans-individual – que concilia em si as
dimensões social e individual, que se constitui nas suas interações sociais e na sua
experiência singular.
Uma posição semelhante pode ser vislumbrada no estudo de Norbert Elias sobre
Mozart, cujo subtítulo é inspirador para o tema deste ensaio – “sociologia de um gênio”
(1995) –, bem como em seu livro “A Sociedade dos Indivíduos” (2001). Comecemos pelo
último volume. Nesta obra, Elias argumenta que a polarização indivíduo e sociedade,
9 As observações de Foucault se dirigem principalmente aos campos literário e científico. Isto não nos impede de expandirmos suas colocações para outros setores criativos, a exemplo do cinema.
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cristalizada em muitas teorias, é falsa. Para o autor, a necessidade de realização das
inclinações pessoais não se opõe às obrigações que devemos cumprir enquanto integrantes
da vida social. Segundo Elias, os indivíduos estão ligados entre si por um fenômeno de
dependência recíproca, dispondo de uma margem até onde podem agir livremente de forma
a não comprometer o equilíbrio do quadro social em que se encontram inseridos (2001).
Elias reconhece que as redes de interdependência atravessam a existência individual
(é na vida social que se forma a individualização, que os sujeitos se diferenciam). Tal
processo, contudo, não é tão determinista. Para ele, a imagem da sociedade é reticular:
nossas vidas se entrecruzam num quadro de influências recíprocas e as ideias que
manifestamos resultam das múltiplas interações de que participamos (2001). Sua
sociologia, portanto, recusa as interpretações que privilegiam o excesso de subjetividade na
conduta individual, mas também não ratifica as abordagens deterministas (estruturalismo,
por exemplo).
Exemplar desta relação é seu estudo sobre Mozart (1995), que tenta esclarecer o
fracasso profissional do músico, apesar do seu inquestionável talento. No livro,
acompanhamos o duelo entre uma subjetividade artística em luta para aflorar versus a
repressão social de seu tempo – Mozart teria sido um visionário numa sociedade que ainda
não concebia a ideia de artista autônomo, que cria conforme suas aspirações. Sua índole se
opunha ao habitus10 da aristocracia e às regras da corte, que exigiam dos compositores total
subordinação – uma estrutura que sufocava a “genialidade”. Embora tenha sido educado na
tradição da corte, Mozart sempre nutriu ressentimento pelos ritos da aristocracia. Tinha
convicção de sua superioridade musical e não aceitava limitações. Lutou para ser um artista
autônomo numa época que não comportava independências – era um gênio numa sociedade
que desconhecia este conceito romântico e não permitia singularidades (1995). Ao mesmo
tempo, desejava ter seu talento reconhecido pela corte – exatamente o tipo de sentimento
que caracteriza um outsider (ser dependente do reconhecimento do grupo que o oprime).
10 Para o conceito de habitus, sugiro a leitura dos seguintes livros: ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001; ELIAS, Norbert. Os Alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
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Mozart tentou driblar a hierarquia aristocrática num momento em que tal manobra
não era admitida – apesar do heroísmo, sua margem de ação foi restrita. Para Elias, Mozart
se arriscou em demasia. O passo ousado e individual o conduziu à maturidade artística, mas
sinalizou sua tragédia social. O reconhecimento definitivo despontaria na posteridade,
quando o habitus burguês se torna hegemônico, redefinindo a relação do artista com o
público. Considero a leitura de Elias rica para repensarmos as noções de sujeito e de autor,
livre de maniqueísmos. Para o sociólogo alemão, o homem não é absolutamente autônomo
nem socialmente determinado em suas decisões – as escolhas dos indivíduos comportam
margens de autonomia. A criação musical, se nos detivermos no exemplo de Mozart, é
modulada por ações individuais e determinismos. Também o conceito de gênio é revisado
por Elias, não se restringindo à figura do indivíduo dotado de grande sensibilidade ou
talento nato; o gênio é aquele que encontrou estímulos e condições de aprimorar seu
talento, alguém cujo processo de maturação não escapa aos laços de reciprocidade social11.
Creio que esta revisão do conceito de gênio redimensiona a ideia do autor e da
criação, sem recair na falácia romântica ou na anulação estruturalista. Pelo menos em sua
dimensão subjetiva, o problema que o “gênio romântico” suscita não é o seu direito
instituído à propriedade privada das ideias12, mas sua suposta condição de criador
iluminado, sem conexão com o tecido histórico. Individual ou em parceria, a criação possui
forte dimensão coletiva – imersos na vida social, os autores são influenciados por milhares
de ideias e imagens que se encontram em trânsito. A criação resulta de um diálogo entre
sua sensibilidade estética e esta pluralidade de informações dispersas e dissonantes. Talvez
pudéssemos estabelecer a analogia de um autor-parabólica, que capta esta infinidade de
sinais e, através de sua experiência singular, ressignifica tudo na forma de arte,
estabelecendo uma síntese criativa.
Teria ele direito de assinar uma obra que possui dimensões sociais? Minha posição
tende a ser afirmativa. É fato que a criação tem componentes sociais, mas a apreensão
destas tensões passa pela sensibilidade singular de um ou mais indivíduos, que funcionam
11 Os livros de Elias revelam um chão histórico de fôlego e surpreendente erudição. Todavia, apesar da análise de sociabilidades que nos são aparentemente distantes, seus livros travam um diálogo com o presente, possibilitando um entendimento da vida social contemporânea. 12 Não é pretensão deste ensaio mergulhar no debate sobre direitos autorais ou propriedade intelectual.
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como síntese do processo. Tal tarefa, convenhamos, não é pouca coisa. Poder-se-ia
argumentar que também a sensibilidade estética do autor possui matriz social – em sua
formação, ele trava um diálogo com uma longa tradição, com a qual precisa se familiarizar
para questioná-la ou aprimorá-la. Mas é preciso levar em conta que tamanha herança é
igualmente ressignificada e contaminada pela experiência particular deste indivíduo –
experiência esta que difere completamente das trajetórias (também singulares!) dos cânones
que lhe inspiraram. Poderíamos pensar o mesmo para o empreendimento científico: um
pesquisador sempre parte de uma bagagem e referencial herdado de sua tradição acadêmica
(um componente social forte), mas é legítimo reconhecer seu esforço individual em levar à
frente a tocha do conhecimento, propondo novos eixos de investigação. Para o artista, vale
igualmente o reconhecimento por insistir em não recuar frente à aventura da criação.
Equivocada, creio, é a ideia romântica de autor cristalizada pelo senso comum, não o
reconhecimento da autoria na criação (de que existe empreendimento individual na arte).
Sobre o processo criativo, cabe também desmistificar um mito perpetuado pela
crítica, que insiste em procurar unidades e em estabelecer comparações na obra de um
autor. A unidade não é preceito para a criação, que comporta perfeitamente fases, rupturas e
contradições. Como argumentou Teixeira (1999), criar é ousar e se reinventar, recusando
estagnações. A coerência pode existir, mas ela não é categoria fundamental da criação –
cada obra existe em si e não necessariamente em relação umas com as outras.
Mas, ao insistir no reconhecimento da autoria no processo criativo (ao valorizar o
empreendimento individual na atividade artística), não desejo ratificar a visão consagrada
do autor como “senhor da obra”. Sem aderir ao radicalismo de Barthes (1988), reconheço o
leitor igualmente como autor – sua fruição é que legitima a criação, lhe confere sentidos, a
ressignifica (a recepção não pode ser controlada por “aquele que assina” o trabalho). No
entanto, creio que esta assinatura pode acionar modos de recepção no espectador – seria,
por exemplo, indexador de formas de apreensão ou indicador de leituras. Lembremos que,
para o público, o autor não é um anônimo, mas uma autoridade legitimada pela crítica,
concordemos ou não. No caso da produção cinematográfica, poderíamos estabelecer um
paralelo, reconhecendo a “assinatura” do cineasta como índice de referencialidade para o
espectador, sugerindo modos de recepção de sua obra (e não de controle!).
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Neste segmento, me inspirei em Elias para propor uma revalorização do sujeito/autor
e flexibilizar a crítica estruturalista do conceito de “gênio”, sem negá-la. Gostaria de
finalizá-lo com uma citação de André Bazin, que se aproxima das considerações de Elias.
Espécie de mentor dos jovens turcos, Bazin nem sempre compartilhou do entusiasmo da
“política”. Surpreende aqui sua intuição para perceber, ainda nos anos de 1950 e em
oposição a seus pares, a complexidade do processo criativo e a dinâmica social que age
sobre o indivíduo.
A evolução da arte ocidental em direção a uma maior personalização deve definitivamente ser vista como um passo à frente, mas apenas na medida em que essa individualização continue sendo apenas uma perfeição final e não pretenda definir a cultura. Neste ponto, devemos lembrar o lugar-comum irrefutável que todos aprendemos na escola: o indivíduo transcende a sociedade, mas esta encontra-se irrevogavelmente dentro dele. De modo que não pode haver uma crítica definitiva do gênio ou do talento que não leve em conta o determinismo social, a combinação histórica de circunstâncias e o embasamento técnico que em grande medida o determinam. (Bazin apud Buscombe, 2005, p. 285, grifos originais).
4. As dimensões sociais da criação no cinema
Para Stephen Heath, como mencionei, a defesa de uma teoria do sujeito, no lugar do
insistente debate sobre o autor, permite uma melhor apreensão do binômio
sociedade/indivíduo no processo criativo. A ideia de autor, tal como postulada pelos jovens
turcos, definia a obra como unidade circunscrita ao indivíduo e desvinculada de pressões
ideológicas. Uma teoria do sujeito, por outro lado, convida o investigador a avaliar o
contexto histórico-social do artista, bem como a heterogeneidade de estruturas que agem
sobre este e o próprio filme, sem descartar as margens de autonomia do criador (sua
contribuição singular). O equívoco maior da “política”, portanto, seria desconectar o filme
de suas influências sociais e desconsiderar as teias ideológicas que delineiam as
subjetividades criadoras (2005, p. 298 e 299).
Deste modo, para Heath, o processo investigativo pode se concentrar em duas
vertentes: orientar-se mais por uma análise estrutural ou enveredar por uma avaliação
estilística, ressaltando suas respectivas ênfases na atividade artística. Entregar-se à pesquisa
estilística implica, sobretudo, mapear o que existe de subjetivo na criação, restringindo-se à
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assinatura do artista e aos procedimentos que lhe são peculiares: seus recursos expressivos,
seus efeitos de estilo. No caso do cinema, corresponderia à identificação de uma câmera
evocativa de “fulano”, uma iluminação típica de tal cinematografia, o uso simbólico de
determinada cor, a preferência em desenvolver personagens femininas, a predileção por
narrativas fragmentadas ou pela diegese tradicional, sua filiação à ficção ou ao
documentário (ou o desejo de fundir tais categorias), dentre inúmeras outras “marcas
autorais”. É válido ponderar se estes efeitos de estilo não resultam de uma herança social (e
aqui retomaríamos a crítica estruturalista em potência máxima); porém, como ressaltei, não
descarto a singularidade do criador neste processo, o sujeito que, contaminado pelos
discursos e ideias dispersos no mundo, produz sua síntese original.
Como neste ensaio não me propus analisar uma cinematografia específica, no lugar
de ponderar sobre os procedimentos estilísticos de um diretor (e ressaltar sua contribuição
individual à criação), gostaria de direcionar a investigação para um breve mapeamento das
possíveis instâncias de interdição social na atividade cinematográfica. E aqui restringir-me-
ei ao que é específico desta prática, não me preocupando com os laços de sociabilidade que
igualmente modelam o indivíduo (a vida familiar e escolar, a religião, gênero e etnia...
enfim, tudo o que norteia sua “visão de mundo”). Evidentemente, este diálogo que
aproxima cinema e sociedade também tem implicações na formação da subjetividade do
cineasta. Serão rápidas as considerações apresentadas.
Arte de elevado custo, de múltiplas etapas e que emprega mão-de-obra numerosa e
qualificada, um filme inevitavelmente é fruto de uma força-tarefa. Sua inserção num
contexto comercial, nos conduz a duas pressuposições: a concepção da obra não pode ser
completamente desvinculada das expectativas do mercado, sob risco de não encontrar um
público; a produção precisa compensar os investimentos estatais ou privados nela
empregados. É precipitado afirmar que um fracasso comercial pode condenar um jovem
diretor ao ostracismo (através de editais ele pode levantar recursos para novos projetos),
mas não restam dúvidas de que o êxito lucrativo tem sido uma prerrogativa do cinema
industrial. Desta observação, despontam duas fortes instâncias de interdição na criação: de
um lado, o mercado (rede exibidora, público, emissoras de TV, locadoras); do outro, a força
dos investidores (setor privado e, indiretamente, as estatais que regulam a política de
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editais), justificada quase sempre pela queda de braço entre diretores e produtores-
executivos. Esta pressão pode, por vezes, promover ou justificar mudanças de estilo,
contradições e rupturas na trajetória de um artista, e mesmo na execução de um único
trabalho, independentemente do anseio individual. Assim, restringir o estilo unicamente à
individualidade é um equívoco – a obra também é concebida a partir de condições
determinadas (Bernardet, 1994, p. 164 a 166).
Por fim, Edward Buscombe nos remete a três questões relevantes. Dada a
contundência dos meios de comunicação na sociedade contemporânea, e a imprecisão sobre
seus efeitos sociais, qualquer produção cultural que acione este aparato difusor, ou dele
dependa, carece de ponderações sobre suas possíveis implicações. A criação, portanto, não
deve prescindir de um juízo sobre os valores e ideologias por ela incensados. Por outro
lado, o cinema, como qualquer arte, trava uma relação dialética (mútua influência), mas
incerta, com o contexto sócio-histórico que circunscreve sua realização. Portanto, ele
interage com as contradições e tendências de seu tempo. Mas como mensurar a
“contaminação” dos desenvolvimentos tecnológicos, das transições políticas e econômicas,
e dos choques ideológicos sobre a criação? Resta uma ressalva: antes de conferir o selo de
originalidade a um cineasta, é preciso discernir em que medida sua obra é um diálogo que
alavanca a tradição artística ou apenas a reproduz. Todos os filmes, assevera Buscombe,
são influenciados pela história do cinema; é preciso, pois, ponderar a dimensão desta
herança, uma vez que algumas obras têm uma relação íntima demais com outras (2005, p.
293 e 294). Assim, uma vez que o processo criativo dialoga com a tradição, ele não pode
ser tão fechado e centralizado no indivíduo, como pressupunha a politique des auteurs. Em
outros termos, não se deve subestimar a prática intertextual que, em diferentes níveis,
fecunda a prática artística.
Referências Bibliográficas
A Política dos Autores – Conjunto de entrevistas publicadas no Cahiers Du Cinéma com
cineastas como Roberto Rossellini, Fritz Lang, Orson Welles e Jean Renoir, dentre outros.
Lisboa: Assírio e Alvim, 1976.
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BARTHES, Roland. A Morte do Autor. In: O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense,
1988.
BERNARDET, Jean-Claude. O Autor no Cinema. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1994
BUSCOMBE, Edward. Idéias de Autoria. In: RAMOS, Fernão (org.). Teoria
Contemporânea do Cinema. Volume 1. São Paulo: Editora Senac, 2005.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
_____________. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
_____________. Mozart – sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1995.
_____________. Os Alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro:
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FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_________________. O que é um autor? 2a. edição. Lisboa: Vega, 1992.
HEATH, Stephen. Comentários sobre Idéias de Autoria. In: RAMOS, Fernão (org.).
Teoria Contemporânea do Cinema. Volume 1. São Paulo: Editora Senac, 2005.
PASOLINI, Pier Paolo. O Cinema de Poesia. In: Empirismo Hereje. Lisboa: Assírio e
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SOLANAS, Fernando e GETINO, Octavio. Hacia um Tercer Cine. In: Cine, Cultura e
Descolonización. Buenos Aires: Siglo XXI, 1973.
TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Autor e Estilo no Cinema. In: Cinemais – Revista de
Cinema e outras Questões Audiovisuais, julho/agosto de 1999, nº 18, Rio de Janeiro.
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GEOGRAFIAS DE CINEMA: O lugar das memórias no filme “A Vila”
Antonio Carlos Queiroz Filho
Doutor em Geografia pela UNICAMP
carlosqueirozfilho@hotmail.com
1. GEOGRAFIAS DE CINEMA: EDUCAÇÃO VISUAL E MEMÓRIAS ESPACIAIS
Olhamos para uma imagem, dela surgem outras. A sensação de naturalidade
com que realizamos essas ligações “entre-imagens” é resultante daquilo que chamamos de
educação visual. Somos educados cotidianamente a dar sentido às imagens que vemos. São
esses sentidos que nos apoiam no entendimento dos filmes. Mas não só deles. Ao voltarmos
nossa atenção para o espaço que é grafado pelo cinema, percebemos que nele estão
adensados sentidos que nos darão possibilidade de, mobilizados pelas suas imagens e sons,
caminhar por essas geografias, a um só tempo, pessoais e coletivas.
Esse adensamento de sentidos ocorre porque quando assistimos a um filme,
realizamos o movimento de atribuirmos a essas imagens, significados. Por isso a
importância de uma pesquisa com imagens. Não só porque elas pautam nossas ações no
mundo contemporâneo1, mas também pelo risco de confundirmos a sensação de
tranquilidade, de calmaria com que certos significados saltam dessas imagens como se isso
fosse natural, coisa dada. Coutinho (2003) nos explica que:
Uma imagem nunca é sozinha, sugere sempre mais do que se apresenta à visão;
extraída de um cenário maior que lhe dá origem, é um recorte e contém, de
1 Almeida (1999) explica que o cinema é um “Artifício que produz um conhecimento real e práticas de vida. Grande parte do que as pessoas conhecem hoje e entendem como verdadeiro, só o conheceram por imagens visuais e verbais”. (p. 56)
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alguma forma, mais elementos do que aqueles que podemos vislumbrar no
recorte que as câmeras são obrigadas a realizar. (p. 127)
Cortar, recortar, colar. Processo aparentemente simples, mas quando aquilo que
está sendo cortado, recortado e colado são imagens, o resultado é, certamente, outro, como
nos situa Almeida (In: Coutinho, 2003), quando afirma que: “Imagens que foram cortadas,
coladas e colocadas em seqüência, editadas para apresentarem-se em movimento estético e
político. Imagens fantásticas que encantam ou assustam enquanto fazem e refazem a
memória”. (p. 12)
Memória é aqui tomada como conhecimento, ideia que temos das coisas, a
sensação de estarmos localizados no universo cultural, do qual fazemos parte, é sempre
uma construção presente no universo cultural disposto à humanidade. Essa memória nunca
é, para nós, passado, nostalgia, celebração, dada à recuperação do perdido. Nas palavras de
Walter Benjamin (1997, p. 104-105, In: COUTINHO, 2003): Nunca podemos recuperar o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender a nossa saudade. Mas é por isso mesmo que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundamente jaz em nós o esquecido. (p. 79)
O “esquecimento” é uma forma [política] de conhecimento sobre o mundo e,
pelo cinema, afirma Almeida (1999), conhecemos “[...] conforme os caminhos que a
imaginação escolher” (p. 23). Essa é a força da imagem, imagens do cinema. São elas que,
além das imagens da televisão, por exemplo: [...] governam a educação visual
contemporânea e, em estética e política, reconstroem, à sua maneira, a história dos homens
e sociedades. São imagens e sons da língua escrita da realidade, artefatos da memória.
(ALMEIDA, 1999, p. 02)
Aqui estamos lidando com as memórias espaciais. O qualificativo dado serve
para dizer desse movimento associativo que realizamos com as imagens do filme e outras
mais, porém, localizando-os no universo das grafias e pensamentos sobre o espaço.
(MASSEY, 2008) Há um termo para isso: Geografias de Cinema. (OLIVEIRA JR., 2004,
OLIVEIRA JR., s/d.) Ele foi criado para dizer daquilo que seriam os estudos e os encontros
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com a dimensão espacial na qual os personagens de um filme agem. O propósito é lançar
luzes sobre as preocupações geográficas contemporâneas, tomando o cinema, via educação
visual da memória, como produtor de conhecimento e, por conseguinte, mediador das
nossas relações com o mundo e das “grafias” – linguagens – que fazemos dele, sendo o
próprio cinema uma delas. No artigo O que seriam as geografias de cinema? Oliveira Jr
(s/d) explica que: As geografias de cinema, frutos de interpretações subjetivas e de pesquisa das imagens e sons fílmicos, buscam desliteralizar as interpretações habituais dadas a estes filmes... por isso terminam sendo uma proposição educativa, além de poética, das obras do cinema. (p. 06)
E continua: Para que estas geografias de cinema não sejam somente reverberações subjetivas, é preciso dizer onde o sentido que nos ficou do filme acontece. Pesquisar as imagens e sons fílmicos e ver se elas e eles lhe revelam ser verdadeiro o que se intuiu primeiramente. Em seguida, ver de que modo elas o fazem. Enfim, é preciso pesquisar as imagens e sons para descobrir onde elas nos geraram o sentido que nos ficou, o território no qual localizamos os personagens, a geografia na qual estes vivem e agem. É preciso pesquisar as imagens e sons para descobrir se nesta pesquisa elas irão gerar ratificações ou retificações... afinal, as geografias de cinema, sejam elas quais forem, devem estar no filme, terem sido produzidas pelo cinema. (p. 07)
A realização desse percurso nos permitiu dizer que assistir a um filme é uma
experiência geográfica, o que, de certo modo, alerta a geografia contemporânea para as
implicações advindas da atenção dada à linguagem e ao cinema e das geografias que ali são
gestadas.
2. SOBRE O FILME “A VILA”: GEOGRAFIAS DE MEMÓRIAS
A câmera avança silenciosamente. Uma cadeira caída ao chão. Luzes acesas
que não iluminam. O piso sujo, empoeirado. Um enfeite solitário, desprendido da sua
capacidade de adornar, agora lamenta por aquela incerta paisagem. É justamente a imagem
do abandono, aquela que termina esta cena:
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A partir desta cena, surge a dúvida nos habitantes do pequeno vilarejo sobre a
permanência/continuidade daquele lugar. Rodeados por uma floresta povoada por
monstros, o tratado de fronteira feito entre eles havia sido quebrado. Depois da floresta, as
cidades, também ditas como “lugar do mal”, deixam pequena vila com outro
questionamento também: para onde ir? Essa relação entre cidade-floresta-vila foi
apresentada para os espectadores como sendo uma oposição entre bem e mal, simbolizadas
pela vila e cidade, tendo a floresta como elemento separador. Porém, a própria imagem do
abandono redefine essa ideia de separação.
Advindo da possibilidade de se perder o vilarejo, de deixá-lo para trás, o
sentimento de partida como fuga forçada faz com a vila se ligue à cidade via memória dos
Anciãos. Vamos percebendo, na sequencia das cenas, que deixar a vila seria, para eles,
realizar o mesmo movimento que os havia levado a criar a vila. Como aceitar uma nova
fuga? Sob essa situação de ameaça, há o movimento de “preservar” aquele local, ficando
ali. O que acontece neste instante é uma aproximação entre esses dois mundos – a vila e a
cidade – até agora nitidamente separadas pela floresta e pelo conjunto de significados que
definia o modo de olhar e de se relacionar com ela.
O que o filme fez, até então, foi caracterizar, para o espectador, a vila como
lugar bucólico, prazeroso, familiar, seguro, amoroso, inocente. Todas as tensões que
penetraram esse espaço tiveram a função narrativa de criar a sensação da existência de uma
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maior densidade nesses valores ali dentro primados, o que reforça a ideia dada por esse
território de que há uma situação de oposição à cidade: a vila como sua forma contrária.
Através das imagens do dia-a-dia, do modo de lidar com o entorno e da própria organização
interna, a vila vai se mostrando como espaço em que suas crenças, desejos e sonhos são,
propriamente, o inverso de tudo aquilo que ela nega, como numa espécie de
“espelhamento” da cidade: isso é o que eles [Anciãos] querem, de certo modo, ser.
O que acontece no filme a partir de agora, é uma alteração no modo de contar a
história. O foco, que eram as imagens do bem, muda e a caracterização da vila continua,
porém, por meio daquilo que ela nega, mas que está dentro dela mesma enquanto memória:
a cidade como lugar do mal. É uma maneira dada pelo próprio filme de adensar sentidos
para o entendimento daquilo que a vila preza como valor e o que ela rejeita. Ou seja, de
dizer o que a vila é por meio de tudo aquilo que ela não é.
Um dos personagens principais do filme, Noah, inquieto e chorando, bate à
porta de Lucius. Sua visita tem a ver com o anúncio do casamento entre Ivy e Lucius. A
cena é carregada de tensão. Nesse momento, acontece um close facial no filme, que não é o
primeiro, mas que, pelo fato dele acontecer com os dois personagens e em sequência, nos
chama mais atenção do que o close anterior [quando Noah coloca bagas vermelhas na mão
de Ivy]. Ismail Xavier, em A Experiência do Cinema (1983), diz que “O close-up dirige a
atenção do espectador para aquele detalhe que, num ponto, é importante para o curso da
ação”. (p. 58) e continua explicando que “Na tela, a ampliação por meio do close-up
acentua ao máximo a ação emocional do rosto, podendo também destacar o movimento das
mãos onde a raiva e a fúria, o amor ou o ciúme, falam em linguagem inconfundível” (p.47).
O close coloca o espectador em contado direto com esses dois personagens.
Noah é o que nos chama mais atenção. Visto de perto, observamos o momento em que os
ambos são colocados na mesma disposição de ângulo, de posicionamento de câmera:
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Na sequência em que suas faces nos são apresentadas com tanta intimidade,
lidamos com o movimento realizado até agora no filme: o da criação da imagem da
insanidade, da loucura e da desrazão como características do personagem, o qual seria o
mobilizador da grande tensão que se instalaria na vila. É no close e na disposição das duas
imagens, uma após a outra, que olhamos para a relação desses dois personagens e entramos
em contato com a crise que se instalaria, a partir dessa cena, no interior da vila: Noah
comente um crime.
Essa é a “radicalização” da crise e é o que permitirá o cruzamento da floresta,
até então proibida a passagem. Ivy solicita a seu pai a permissão para realizar a travessia. A
partir disso, o filme vai anunciar a pequena vila, como uma invenção. O pai, antes de
permitir a ida de Ivy até as cidades revela o segredo que criou aquele lugar e explica:
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Sr. Walker
Não tenha medo. É apenas uma farsa. Não tenha medo.
Havia rumores sobre criaturas nesta floresta. Está em um dos
livros de história que eu lecionava nas cidades.
Ivy
O grito vindo da floresta?
Sr. Walker
Nós criamos aquele som.
Ivy
A Cerimônia da Carne?
Sr. Walker
Nós nos afastamos e um Ancião é designado.
Ivy
Os treinos também são uma farsa?
Sr. Walker
Não queríamos que ninguém fosse às cidades, Ivy. (...) Não há
ninguém nesta vila que não perdeu alguém, que não tenha
sentido profunda perda a ponto de questionar a própria vida. É
uma escuridão que eu gostaria que você não conhecesse.
O pai de Ivy “mapeia” a floresta para ela, indicando o caminho a ser seguido.
Ele foi contestado pelos outros Anciãos. Primeiro, sua própria mulher, depois, os demais:
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Esposa
Você está pensando em ir às cidades. Diga-me que estou
errada. Você fez uma promessa Edward, como todos nós, de
nunca mais voltar. É uma barganha dolorosa, mas nada de bom
vem sem sacrifício. Estas palavras são suas. Não quebre a
promessa. É sagrada.
Sr. Walker
É um crime o que aconteceu com Lucius.
(...)
Sra. Clark
Concordamos em nunca voltar. Nunca.
Sr. Walker
Qual foi o propósito de partirmos? Não nos esqueçamos que foi
por esperança de algo bom e correto.
Sr. Robert
Não deve tomar decisões sem nós. Foi longe demais.
Sr. Walker
Sou culpado, Robert. Tomei uma decisão de coração. Não posso
encarar ninguém e ver o mesmo olhar que vejo em August sem
justificativa. É muito doloroso e não posso agüentar.
Sra. Clark
- Você comprometeu tudo o que fizemos.
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Sr. Walker
Quem você acha que continuará esse lugar, esta vida? Você vai
viver para sempre? Nosso futuro depende deles. É em Ivy e
Lucius que este estilo de vida continuará. Eu arrisquei. Espero
que sempre possa arriscar tudo pela causa justa. Se não
tomássemos essa decisão, não seríamos mais inocentes. No fim
é isso que protegemos aqui – inocência. Não estou disposto a
abrir mão disso.
A partir desse diálogo, nos é mostrado a vila como o lugar de memórias. Ela
contém a cidade, muito mais presente nela mesma do que se imagina. Negar a cidade,
resumindo-a nos acontecimentos trágicos sofridos por cada um, não impediu, por exemplo,
que a violência ultrapassasse as “barreiras” criadas por eles. Um dos elementos simbólicos
mais significativos dessa contaminação entre cidade e vila é a existência de pequenas
caixas nas quais os Anciãos guardam suas memórias sobre a vida além-vila de cada um.
Vimos as caixas tomando o centro da imagem, em dois momentos no filme. Primeiramente,
elas aparecem sempre fechadas, como, por exemplo, quando Sr. Nicholson conversa com
Lucius.
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Ele aponta para sua caixa, referindo-se a ela como algo que está ligado às suas
tristezas passadas, as quais haviam sido deixadas fora da vila e que agora parecem tê-lo
encontrado. Ele pergunta:
Sr. Nicholson
Você sabe como um cão pode farejá-lo?
[...]
Você pode fugir da tristeza, como nós.
A tristeza o encontrará. Ela pode farejá-lo.
Numa outra situação, Lucius está conversando com sua mãe e aponta para a
caixa e diz que ela esconde os segredos daquele lugar. Ele pede para que ela seja aberta e
sua mãe nega, dizendo que ali estão guardadas suas recordações. Ali, elas estão seguras.
Chegado o ápice da narrativa fílmica, nos é revelado o que tem dentro delas: as caixas são a
cidade na sua forma mais simbólica.
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Fotografias e recortes de jornais: memórias da cidade. Memórias que
mantinham, ao mesmo tempo, escondidas e acesas, as lembranças dos acontecidos com
eles. As caixas e aquilo que elas guardavam eram os alicerces da pequena vila, sua origem,
seu mito fundador. São essas memórias que dão condição de existência para a vila.
Estamos lidando aqui com a noção proustiana de memória. Para Proust, a memória
reconstrói o real, junto com ele próprio. Jacy Alves de Seixas (In: BRESCIANI e
NAXARA, 2004) explica melhor essa concepção, quando diz: Há em Proust a noção de uma otimista memória construtivista. [...] A memória age “tecendo” fios entre os seres, os lugares, os acontecimentos (tornando-os mais densos em relação a outros), mais do que recuperando-os, resgatando-os ou descrevendo-os como “realmente” aconteceram. Atualizam o passado – reencontrando o vivido “ao mesmo tempo no passado e no presente” –, a memória recria o real; nesse sentido, é a própria realidade que se forma na (e pela) memória. (p. 51)
Sob essa perspectiva, passamos a entender que as experiências tidas pelos
Anciãos, na cidade, foram “trazidas” por eles para dentro da vila, na forma de
“persistências”, colocando esses dois locais, pretensamente antagônicos, numa condição de
mistura e contaminação. Por isso, essas memórias não são “passado”, no sentido
cronológico. Elas estão, aparentemente, em um passado, quando olhamos para a vila e nela
identificamos práticas que se ligam à experiência de vida dos Anciãos, quando eles viveram
na Cidade, mas elas estão no presente da imagem e do espectador, que realiza a ligação
entre esses dois locais fílmicos. Para Milton de Almeida (s/d)2, a memória Esquecida ou fragmentada em pequenos lembretes, ela está todo o tempo fazendo-se presente aqui e ali, nos pensamentos e ações deste ou daquele grupo. Pequenos pontos coloridos que aparecem e desaparecem em dobras agitadas pelo vento da história. No sem-tempo da memória, ela é aquilo que aumenta sem mudar de tamanho, pois não o tem. (p. 03)
Esse é o movimento que a própria narrativa do filme faz com essas memórias,
para nós espectadores: aumenta seu tamanho. Para os demais habitantes da vila, salvo os
Anciãos, elas estão lá sem se fazer perceber como moradoras. Elas pautam o modo de vida,
as práticas sociais, os valores que vieram da cidade e são invertidos, para assim caberem na
pequena vila. Novamente, Jacy Alves de Seixas diz que: 2 Cf.: texto disponível em: < http://www.ced.ufsc.br/~nee0a6/encalmeida.PDF>
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A memória é ativada visando, de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto, do presente). Reformar o passado em função do presente via gestão de memórias significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que a memória se expressa (das relíquias aos monumentos, aos arquivos, símbolos, rituais, datas, comemorações...). (p. 42)
E continua dizendo que “A memória é, portanto, algo que ‘atravessa’, que
‘vence obstáculos’, que ‘emerge’, irrompe: os sentimentos associados a este percurso são
ambíguos, mas estão sempre presentes”. (p. 47) Os Anciãos transformaram a dor, a
violência e a ganância – experiências vividas por eles na cidade – em esperança e inocência
como fundamentos de um novo modo de vida para o interior da vila. Essas experiências
indicam o caminho percorrido para conseguir fazer existir a vila quando eles ainda estavam
na cidade.
A agonia coletivizada criou um sentimento de identificação entre eles. Desse
movimento em que uma emoção muito forte confere identidade a um grupo, Pierre Arsant
(In: BRESCIANI e NAXARA, 2004) utiliza o “ódio” como aquilo que irá mobilizar um
grupo qualquer. Para o autor, “O ódio recalcado e depois manifestado cria uma
solidariedade afetiva que, extrapolando as rivalidades internas, permite a reconstituição de
uma coesão, de uma forte identificação de cada um com seu grupo”. (p. 22)
Na vila, os sentimentos são outros: medo, amor, dúvida... Arsant cita ainda
Freud, que afirma ser possível apenas em algum mundo utópico o desapego por inteiro
desses “ressentimentos”. Na vila, eles não poderiam deixar de existir. Esse “ressentir”
(sentir de novo) é a base para o movimento de identificação do grupo que, na vila, se
transformaria nos Anciãos. Deles saíram os desdobramentos normativos que deram
sustentação à vila. Arsant (In: BRESCIANI e NAXARA, 2004) diz ainda que: Para um grupo, a ideologia política, designando claramente os alvos do ódio e do desprezo, pode fornecer aos membros do coletivo um reforço da auto-estima e da segurança interior. [...] ao mesmo tempo que equilibra este vínculo pela difamação das nações rivais. (p. 24-25)
A Cidade que está além-floresta ocupa esse lugar de “nação rival”, não como
um inimigo declarado que se coloca em estado iminente de confronto direto, mas por ser
imagem do desprezo e descrédito, por ser sim, o outro lado. Estar do outro lado – Fora –
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não quer dizer que, de alguma maneira, não exista permeabilidade no Dentro – na vila – e
isso o filme vai nos mostrando com sua narrativa.
Na sequência, é a fotografia do grupo que deu existência à vila, a primeira a
sair da caixa. De cima, a câmera avança até fazer com que ela preencha toda a tela. Ela é,
no tempo de exibição do filme, anterior à formação da vila, mas nos mostra ser de uma
época posterior àquela em que fomos remetidos ao olharmos para o interior da vila nas
primeiras cenas.
Os costumes, vestimentas, a maneira como o cotidiano era preenchido, nos
aludiam a um tempo outro que esse da fotografia, em que as roupas, os cortes de cabelo e a
predominância do marrom, parte do carro que aparece no canto, nos sugerem uma época
posterior àquela vivida na vila. Ela é, por assim dizer, mais recente, mais “moderna”. São
duas temporalidades contidas em duas espacialidades. As fotografias e os jornais não estão
no passado, pois as épocas que elas remetiam fazem o caminho inverso da cronologia: do
mais antigo para o menos antigo. Elas presentificam a cidade na vila, sendo as próprias
imagens dessa cidade.
A memória é, portanto, produto e produtor daquilo que define o pequeno
vilarejo não mais como lugar coeso, estável, mas como território híbrido de segurança e
ameaça: território como mistura. Se pensarmos para além-filme, qual é o lugar ocupado
pelas memórias na constituição das geografias produzidas na contemporaneidade?
Algumas pistas: território como política e pensamento. Pensamento como território e
política. Política como pensamento.
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14 | Fev 2013 | vol 2 |
REFERÊNCIAS
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sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
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Plano Editora, 2003.
MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Trad. Hilda Pareto
Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
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OLIVEIRA JR., Wencesláo Machado. Geografias de Cinema: outras aproximações entre as
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_______________. O que seriam as geografias de cinema? [s/d] Disponível em:
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XAVIER, Ismail [Org.] A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
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CINEMA, ASPIRINAS, URUBUS, PERAMBULAÇÃO, FABULAÇÃO,
ENCONTROS E ALTERIDADE
Marcelo Dídimo Souza Vieira
Professor Adjunto do Instituto de Cultura e Arte da UFC
mdidimo@hotmail.com
Érico Oliveira de Araújo Lima
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC
ericooal@gmail.com
Introdução
A relação entre utopia e migração – principalmente intermediadas pela presença do
sertão – tem força ao longo da história do cinema brasileiro. É nas utopias que os
personagens encontram motivação para os impulsos migratórios. Talvez a materialização
mais comum dessa tríade corresponda à estrutura, já utilizada aos montes, que comporta a
história de famílias (ou indivíduos) que rumaram em direção à cidade grande na tentativa
de fugir das mazelas do sertão, como em Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Dessa
forma, motivados pela utopia de uma vida melhor, que entra em contradição com as
condições impostas pelo sertão, tais personagens se põem ao processo de migração com a
esperança de que o mesmo represente, em suas vidas, o processo de redenção.
Em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes, essa tríade em vários
aspectos é mantida. O destaque do filme recai sobre a presença de dois personagens que se
cruzam e estabelecem um vínculo justamente em decorrência de suas utopias individuais.
Ranulpho é o sertanejo que deseja ir embora de sua terra, local onde só vê miséria e
isolamento. Johann é o alemão que transita pelo interior do Brasil e vai demonstrando, aos
poucos, o fascínio pela terra em que está não necessariamente por seus aspectos
particulares, mas por esses não se assemelharem à imagem que conserva de seu próprio
universo de partida, a Alemanha. Um deles já está em movimento, o outro almeja o mesmo,
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mais que tudo. Em suas cabeças, a migração funciona como uma tentativa de pôr em
prática sonhos e transpor inquietações que os acompanham e estão ligados, direta ou
indiretamente, aos ambientes dos quais partiram.
Quando o diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus, Marcelo Gomes, foi questionado
sobre a presença da luz estourada que preenchia a tela por completo no início do filme, deu
a seguinte resposta:
Eu queria construir o sertão da minha memória afetiva, o sertão que eu lembro das minhas viagens desde pequeno, que me causavam uma impressão muito grande, aqueles silêncios espaciais e aquela luz que parece que vai furar as pálpebras. Eu imaginei que esse alemão, vindo de um clima temperado, chegando no sertão pela primeira vez, vai ter esse problema de fotofobia, vai ver o sertão superexposto. Mas você tem o sertanejo que está fugindo da miséria, do sertão que é quente, árido e seco, ele só consegue ver isso. Então é a visão desses dois personagens que impregna a paisagem. E é essa luz branca que passamos três meses no laboratório pesquisando. Foi uma longa pesquisa até chegar a ela.1
É interessante notar que Gomes não atribui o conceito da luz branca apenas à
representação de Johann daquela realidade, como poderia se pensar a priori. A escolha da
luz também carrega um significado para as pessoas que moram ali, das quais Ranulpho se
destaca por suas características tão peculiares. Mas principalmente, a luz branca possui um
papel extremamente pessoal do diretor, o de construir um olhar particular sobre um espaço
já tão revisitado. E é nesse momento que a tríade construída pelo filme, apesar de
semelhante, mostra notórios sinais de distinção no que se refere à velha relação sertão-
utopia-migração.
É a partir do encontro entre dois personagens, dois universos, duas realidades
impulsionadas por utopias ao mesmo tempo tão parecidas e diferentes, que os elementos
traçados por Cinema, Aspirinas e Urubus se desdobram e se ressignificam. O sertão ainda é
quente, as utopias ainda são redentoras e as migrações, utópicas. Todavia, o olhar de
Gomes em relação ao seu próprio universo segue um ritmo extremamente particular –
assim como as trajetórias dos personagens – que dá espaço para os personagens se
1 Disponível em: http://www.omelete.com.br/cinema/omelete-entrevista-o-diretor-de-cinema-aspirinas-e-urubus/, publicado no dia 10 de novembro de 2005. Último acesso: 14 de março de 2011.
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mostrarem sem a pressão de arcos dramáticos ou contratos sociais. É um ritmo próprio, que
por estar em uma estrutura já tão conhecida, revela-se extremamente pertinente na
construção de uma realidade sincera, real e palpável.
Encontros inesperados
Promover encontros. Na relação de uma imagem a outra, de um afeto a outro, de um
personagem a outro, Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005) faz com que
mundos se toquem, tempos se revolvam, regimes de imagem e de historicidade se
interpelem. A migração está em cena no filme de Gomes, não só como tema de uma
narrativa, mas como princípio condutor das imagens, dispositivo para percorrer um sertão
que se inventa. É um problema desencadeado pelo realizador para investigar a postura dos
corpos em um mundo, para pôr em trânsito um universo já visitado por outros – o sertão-
idéia já investigado esteticamente por diferentes tradições cinematográficas, o sertão-lugar
que já foi espaço para vidas tantas, secas e férteis, andantes e permanentes, individuais e
coletivas. O cinema depara-se com o real para inventar mundos possíveis, relacionar o
vivido, o visível e o dizível. Invenção de formas de olhar e de dizer, a arte cinematográfica
mesma move-se pelos tempos e espaços, abre-se ao imponderável dos encontros entre as
imagens de mundos. Assim, pois, uma questão pode ser formulada: o que o cinema põe em
movimento ao fazer mundos se encontrarem?
Na caminhonete do alemão Johann (Peter Ketnath), circulam afetos, compõem-se
quadros de sociabilização e tateios do conhecimento mútuo. O vagar do carro pela estrada
organiza imagens, articula modalidades de encontro com o outro, níveis de relação com o
sertão. O nordestino Ranulpho (João Miguel) é um dos viajantes que o estrangeiro
encontra. As motivações e origens de cada um são reveladas aos poucos, em diálogos de
poucas palavras e, por vezes, de incompreensão. “Vem de onde?”, pergunta, de forma
direta, Ranulpho – “Da Alemanha” é o que responde Johann. Não compreendeu,
desentendimento que não é só de ordem lingüística, mas se liga, sobretudo, à relação
particular que cada um estabelece com as formas de enunciar o mundo e de dizer sobre si.
O que Ranulpho queria dizer, ele explica na mesma cena: “Não de onde é, de onde vem.”
Finalmente, o alemão consegue fazer a própria resposta corresponder à dúvida do outro
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viajante: “Do Rio de Janeiro”, responde. De lá Johann vem vendendo aspirinas, parando em
diversas cidades do país, com exibição de filmes que fazem a propaganda do produto. Mas
ele, de fato, é da Alemanha; de lá ele veio primeiro, de lá escapou – quis fugir da violência,
da segunda guerra mundial, em que um homem tinha que matar outro homem. Johann
passa, então, a buscar realização não só na fuga, mas na perambulação.
Já Ranulpho, ele contará em outro momento, é da cidade de Bonança, mas
tampouco é de lá que vem. Há tempos, já vem de lugar nenhum, buscando saídas,
formulando desejos. O que importa para ele é aonde quer ir: ao Rio de Janeiro, promessa de
vida nova, diferente do espaço de desconforto em que vive. Ranulpho, como a Hermila de
O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), sente-se deslocado com o sertão, com as pessoas;
tem um desejo por outras possibilidades de estar no mundo, uma aposta em uma mudança
de espaço como forma de transformar a vida. No filme de Aïnouz, essa correspondência
não estava completamente assegurada; será preciso ver em que chave Gomes articula a
utopia de evadir-se, o sonho com outro lugar.
No encontro de Johann e Ranulpho, o cineasta opera o contato de mundos. Os dois
migrantes, errantes, veiculam sentimentos, formas de ver e de dizer, modos de esquadrinhar
o espaço e o tempo. Há, em cada um, sertões diferentes, porque é na forma que os
personagens são afetados pelo sertão que Gomes vai encontrar uma enunciação possível.
Nos atos de fala dos dois constantes interlocutores, vislumbram-se projetos de vida,
vontades de mundo. A conversa vai ser, no filme, um dos procedimentos de reunir
universos, de encenar o encontro como dispositivo de enquadrar corpos, lugares e
temporalidades. É todo um jogo de interações que a conversa no cinema pode mover, já
observou Deleuze (2007). Na articulação das formas de dizer o outro e de ser dito, de
projetar lugares no futuro e de elaborar discursos sobre o passado e o presente, os atos de
fala são característicos da medida em que se acredita no mundo e do nível de abertura que
se opera na construção de relações. É conforme as relações de força na conversa, ainda
segundo Deleuze, que se estabelecem sentimentos e interesses no entre-dois. Já não são as
estruturas exteriores que determinam a conversa, posto que ela mesma conduz o encontro e
faz-se corresponder na interação.
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O característico da conversa é redistribuir o que está em jogo, e instaurar interações entre pessoas que supomos dispersas e independentes, e que atravessam a cena aleatoriamente: tanto assim que a conversa é um rumor contraído, e o rumor, uma conversa dilatada, que revelam, ambos, a autonomia da comunicação ou da circulação. Desta vez, não é a conversa que serve de modelo à interação, é a interação entre pessoas separadas, ou numa única e mesma pessoa, que é modelo para a conversa. O que poderíamos chamar de sociabilidade, ou “mundaneidade” num sentido bem geral, jamais se confunde com a sociedade: trata-se das interações que coincidem com os atos de fala, e não de ações e reações que passam por eles segundo uma estrutura prévia. (DELEUZE, 2007, pp. 273-274)
Uma mundaneidade é colocada em questão na conversa que faz interagirem dois
estrangeiros. Se é possível falar no surgimento de uma amizade entre desconhecidos, o que
tem relevo primeiro no encontro de Ranulpho e Johann é o próprio processo de
estabelecimento da interação, é a situação mesma do puro encontro, do puro tocar de
mundos. Nos termos deleuzeanos, já não se têm mais situações que se prolongam em ações.
O encadeamento das imagens no filme de Gomes não dá a ver esquemas sensório-motores,
mas situações em que a própria imagem e o próprio som carregam sentido. A experiência
ótica e sonora pura, particular da imagem-tempo, permite a Cinema, Aspirinas e Urubus
operar migrações na dimensão mesma da imagem, desencadeadora de perambulações pelo
espaço do sertão, e na dimensão mesma do som, autônomo e veículo de atos de fala de
personagens com vontade de mundo.
Há entradas e saídas de cena que pontuam um processo de inventário de um
universo. Na circulação dos que passam, no trajeto dos que vagam, no encontro com os que
permanecem, a câmera esquadrinha fluxos, acompanha singularidades que povoam a cena
como habitam o mundo. Como na cena em que Johann para o carro na estrada e pergunta o
caminho da pequena cidade de Triunfo. Na conversa curta, com um interlocutor de poucas
palavras, o alemão oferece ao final uma carona: “Vai pra lá ou pra cá?”. Ao que o outro,
aparentemente no meio de um nada, responde: “Vou ficar por aqui mesmo”. E há o
personagem também indecifrável que, pouco depois de entrar no carro, pede em alvoroço:
“pare o carro, homem!” – ele sai com uma espingarda e vai em direção ao extracampo, às
pressas. Johann não espera: é difícil saber o que move o outro, ele só sabe o que o
impulsiona.
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O carro de Johann está sempre aberto a receber esses fluxos, esses personagens
flutuantes, que não são representações de tipos, nem caricaturas de gestos. Personagens
opacos. São seres que estão ou que perpetuamente vêm a ser: difícil investigar o que são,
pois o cinema de Gomes não é das essências, mas da passagem, do devir de espaços e
personagens. Logo, já não se trata mais de transcender o que está em cena para remeter a
esferas mais gerais, na lógica da metáfora e da alegoria; o que se busca é imanência, na
tentativa de encontrar o que é próprio dos encontros, das imagens e das experiências de
vida.
Xavier (2000), ao comparar posturas e tradições cinematográficas diferentes, aponta
para certa recorrência no cinema atual, mais voltado para mentalidades e posturas
particulares. Segundo ele, era a experiência nacional que estava em jogo nos embates
estético-políticos do Cinema Novo, sertão e favela como espaços que transcendiam em
direção a uma idéia do nacional-popular. A imagem buscava compor conjuntos, organizar
totalidades. A leitura de Xavier dá ênfase à idéia de alegorias, “aptas a condensar o
complexo, esquematizar os agentes, compor um mundo imaginário capaz de resumir, sem
perder expressão, as regras do jogo” (2000, p.109). Ainda segundo o autor, na singularidade
dos encontros encenados em filmes brasileiros a partir dos anos 90, não há generalização de
um projeto de nação, mas investigação de aspectos pontuais relacionados aos sujeitos. São
“os 'encontros inesperados' que a migração ou o espaço da cidade oferecem meio por
acaso” (2000, p.109) elementos condutores das narrativas de obras cinematográficas
contemporâneas.
[Uma] face do cinema contemporâneo tem sido a reiteração do motivo do encontro de dois estrangeiros singulares que, em princípio, estão marcados por uma radical alteridade, mas que se interceptam mutuamente num momento que termina por marcar decisivamente suas vidas. […] O característico aqui não é o fato de que tais encontros sejam exclusivos do mundo moderno, mas de se criar um quase gênero do cinema atual, sinalizador de um “humanismo” multicultural de tipo distinto daquele mais clássico, que envolvia encontros em que a relação entre os dois indivíduos era pautada pelo que eles representavam enquanto membros de uma etnia, de uma classe social, de uma nacionalidade. Agora há casos em que interessa mais justamente o que não decorre diretamente dessa “representatividade” de cada um; instala-se uma relação oblíqua entre os atributos das personagens e o eixo do conflito em que estão inseridos. (XAVIER, 2000, pp. 117-118)
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Baile Perfumado (Lírio Ferreira, 1997) ia nessa linha, ao encenar os contatos do
libanês Benjamin Abrahão com o cangaceiro Lampião. Assim como no filme de Gomes, o
próprio cinema, enquanto produzido ou exibido na narrativa, estabelecia aproximações
entre grupos e entre sujeitos. Mas são abordagens estéticas diferentes as de Ferreira e de
Gomes. O universo pop e o sertão marcado pelo hibridismo, pelo verde e por volumes de
água em Baile Perfumado estabelecem uma relação com a realidade com nuances bem
diferenciadas em relação à paisagem mais seca, aos silêncios dos personagens e à cadência
da câmera de Cinema, Aspirinas e Urubus. O motivo do encontro, observado por Xavier,
precisa ser investigado esteticamente, a própria migração desencadeadora de relações
compõe imagens diferentes conforme o arranjo específico efetuado pelos realizadores: se
há um motivo, há também diferentes formas de orquestrá-lo e fazê-lo ressoar
imageticamente.
Havia também encontros nas narrativas do Cinema Novo. Ainda que a ênfase de
Xavier busque flexionar a comparação em termos do que era alegórico nos filmes dos anos
1960 e do que hoje permanece como pontual e singular, podem-se propor abordagens que
ponham em relevo a dimensão coletiva e política do encontro cinemanovista, sem que isso
implique considerar menos políticos ou menos utópicos os encontros singulares do cinema
contemporâneo. Pode-se tensionar um pouco: até que ponto a leitura pela chave da alegoria
dá conta da experiência estética do Cinema Novo, como matriz e tradição de um cinema
que se embate com o mundo hoje? São os personagens de filmes-chave do período figuras,
representações de classe? Em que medida as imagens, no contexto de um cinema moderno,
encontram-se na dimensão da representação?
Retomar as inquietações da geração cinemanovista pode oferecer uma composição
de leituras possíveis do trabalho de Marcelo Gomes em Cinema, Aspirinas e Urubus. O
diretor encontra-se com a história, ao encenar encontros no sertão de 1942; encontra-se com
o cinema, ao remeter à imagem possibilidades de fabulação; encontra-se com a vida, ao
buscar nos relatos do tio-avô, Ranulpho Gomes, a matriz para inventar a própria escritura
de mundos possíveis. Pondo em trânsito o sertão, o realizador busca formas de expressão
pela imagem e pelo som. É preciso agora propor novas questões, novas inflexões para
mover o pensamento: que imagens estão em jogo na invenção de sertões possíveis? Que
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implicações tem a idéia de um sertão em trânsito na postura cinematográfica de Cinema,
Aspirinas e Urubus?
Perambulação, fabulação
O sertão em trânsito de Cinema, Aspirinas e Urubus é uma passagem. Não é
somente como a cidade de Iguatu em O Céu de Suely, também lugar de passagem. Pois lá
ainda havia um centro em torno do qual se organizavam as imagens, enquanto no filme de
Marcelo Gomes, as imagens estão mais sujeitas a um imponderável, ao desconhecimento
quanto ao que se tem pela frente na estrada, ao que se tem adiante no curso da própria vida,
a quem e ao que é possível encontrar. Pode-se ser picado por uma cobra, como acontece a
Johann, pode-se ter de cuidar do outro, o que passa a fazer Ranulpho enquanto o
companheiro de viagem está doente, pode-se receber a notícia de que o Brasil entrou em
guerra com a Alemanha, mudança para a vida do alemão, pode-se receber de presente um
carro e partir para mais imponderabilidades, o que acontece a Ranulpho ao final do filme.
Vagar é abertura à incerteza, como era em Vidas Secas, mas ao contrário do que acontecia
no filme de 1963, a perambulação na obra de Gomes não ocorre porque a sociedade
abandonou esses sujeitos. A opção de evadir-se é aposta ativa de que será possível
encontrar uma realização. Não se trata, então, somente da necessidade material, embora
essa possa também estar presente em Ranulpho, mas a questão é sobretudo de um desejo,
de uma inquietação da ordem dos afetos. Afetos que se explicitam e se constroem na
passagem.
Ranulpho pontua o desconforto com o sertão, na postura inicial de quem rejeita a
própria terra, “um buraco”, e as pessoas que nela vivem. “Esse povo”, ele diz ao referir-se
em determinado momento aos habitantes do sertão. Ao ser indagado por Johann – “Esse
povo que o senhor está falando, o senhor também faz parte dele, não é?” –, ele só responde
com um gesto e um “mais ou menos”, um meio termo; em verdade, é ainda uma indecisão,
uma ambigüidade na constituição de Ranulpho, que ainda se revolve num entre. O discurso
do sertão como atraso, do sertanejo como povo “mesquino, do tempo do ronca” aparece
constantemente na fala de Ranulpho. A relação dele com o lugar é de negação, resistência
ao pertencimento, ênfase na própria diferença em relação aos outros. Ele lamenta a seca, a
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miséria, o atraso. O sertão é um mundo para Ranulpho, mas é outro para Johann, diferença
exposta quando o nordestino pergunta ao alemão: “O que é que o moço acha de interessante
num lugar tão miserável como esse?... Aqui é seco e pobre” – ao que Johann responde:
“Mas pelo menos não caem bombas do céu”. Era com relação à própria terra que Johann
sentia desconforto, e desbravar o Brasil como estrangeiro era para ele já uma realização. No
pôr-se em movimento, longe da guerra, pode-se encontrar uma crença maior nas
possibilidades da vida, potencializada pelo que há de dinâmico no trânsito, no
conhecimento de outro lugar, no encontro de outro mundo. O sertão é, para Johann, a
segurança diante do perigo das bombas, numa leitura mais imediata, mas é também
abertura à descoberta, a um mundo em que se pode acreditar.
Assim, o filme abre-se à heterogeneidade de pontos de vista para inventariar o
mundo, para enunciar o visível. À medida que se acumulam os encontros, formas distintas
de ser afetado pelo sertão entram em jogo. No trânsito, isso vai ser expresso pela
composição dos corpos em cena, pois se acrescentam personagens aos dois habituais
interlocutores: são dois mais um em geral. É assim quando Jovelina (Hermila Guedes) entra
na caminhonete para pegar uma carona no caminho seguido por Johann e Ranulpho. Um
cruzamento de caminhos, mais um encontro. Mas Jovelina só vai seguir até certo ponto,
desce bem antes de Triunfo, já adianta. Ela tem uma história, é uma das poucas
personagens que pegam carona e estabelecem diálogo mais elucidativo do que se passa na
própria vida. O novo encontro que aí se opera é um acréscimo de afeto, de ponto de vista
sobre o sertão, de olhar para o mundo. Mais um recurso de composição, a entrada em cena
de Jovelina insere uma perspectiva feminina, tensiona os desejos dela com as crenças deles.
E esses afetos passam sempre pelo interior do carro, lugar da maior proximidade, da
fotografia mais definida, diferente do excesso de luz que há do lado de fora; é o carro o
condutor e potencializador de relações, de um entre, do toque de mundos. O dentro e o fora
estão em jogo aí, na relação do que vive no mundo e da parcela que é enquadrada pela
câmera, das vidas dispersas pelo sertão, múltiplas, e das vidas que passam pela cena, que
entram no carro de Johann.
Mas ainda não é só o carro que tem o privilégio dos encontros. Ele constitui-se
como recurso fundamental da mise-en-scène, mas há também situações em outros espaços.
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Como a cena do almoço, em que conversam Johann e Ranulpho, sempre com os adendos de
“seu” José, senhor responsável pelo estabelecimento. É mais uma vez uma construção em
três, os dois protagonistas em primeiro plano, e o novo personagem ao fundo, de pé, sem
estar sentado à mesa, sem partilhar integralmente do diálogo que se estabelece. Ele apenas
pontua momentos da conversa e permite vislumbrar novos mundos, novos níveis de relação
com o sertão, como aquele que sublinha a tranqüilidade do lugar e não se queixa da terra. O
que ele teme são “as feras” da Amazônia, para onde vão os soldados da borracha.
E é também fora do carro que se processam relações entre mundos distintos. Vai ser
o encontro do arcaico com o moderno, das novidades trazidas pelo viajante com os
habitantes das pequenas cidades. O cinema é modernidade viva que desloca a rotina das
pequenas comunidades sertanejas; o medicamento milagroso, “fim de todos os males”,
como é vendida a aspirina, também insere elemento novo; a propaganda, sua linguagem,
suas promessas, os mundos que cria, é tudo uma ponte que se dissocia do regime de
temporalidade habitual. Na tela, elemento de encantamento, as imagens das grandes
metrópoles do Centro-Sul prometem um país do futuro, as cachoeiras promovem a idéia de
um Brasil maravilhoso, a felicidade é associada à tranqüilidade que se pode obter após
tomar uma aspirina. O mundo moderno parece um dado inquestionável e irrevogável nas
imagens exibidas a céu aberto nas pequenas cidades, uma chamada à saída do atraso.
Não parece à toa que justo a cidade buscada por Johann ao longo de boa parte do
filme chama-se Triunfo. Lá onde se encontram as pontes maiores com a ideologia do
moderno, professada, sobretudo, pelas lideranças locais, por uma espécie de novo coronel
do sertão. O discurso do progresso entra aí pela mediação de homens que se empolgam com
a presença do estrangeiro e de suas ferramentas, no entusiasmo com os contatos com um
mundo novo. Será possível, mais adiante, pensar essas relações numa chave que remonta ao
mito desbravador do período de colonização, ao contato entre culturas e povos distintos. O
que interessa, por enquanto, é o tensionamento arcaico/moderno operado nos encontros de
Cinema, Aspirinas e Urubus. Na possibilidade de migrar mundos instaurada pelo filme, o
sertão já não é mais isolado, pois para ele dirigem-se diferentes linhas de força, nele se
relacionam distintas temporalidades. Ainda que Ranulpho reitere a miséria e o atraso, há
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novas variáveis que vão se acumulando na sucessão de imagens, na passagem operada
pelos fluxos do filme.
A fronteira entre o arcaico e o moderno já era também presente em O Dragão da
maldade contra o Santo guerreiro (Glauber Rocha, 1969), obra de período histórico em que
eram a modernização conservadora e seus limites pontos de embate para a arte
cinematográfica. A relação possível não poderia passar pela negação do moderno nem pela
exaltação deste. O que se expunha era a própria contradição, pelo exacerbamento do
conflito com a tradição e pela incorporação de signos da modernidade na estética e na cena
fílmicas, como já observou Xavier (1993), ao analisar a mudança de tom dos filmes da
segunda metade da década de 1960, diante do recrudescimento do regime militar e da
ideologia do progresso encampada pela propaganda oficial. É nesse sentido que o filme
realizado por Glauber em 1969 será uma “reflexão do cineasta sobre a modernização do
país e seus efeitos” (1993, p.162). A chegada de Antônio das Mortes à pequena cidade de
Jardim das Piranhas, palco da encenação de O Dragão da maldade, já anuncia o universo
sertanejo que Glauber propõe:
Em Jardim das Piranhas, o sertão encontra os sinais do tempo novo: Antônio chega de Rural Willys – não mais a pé como o caminhante solitário de Deus e o Diabo ou o ícone que abre o próprio O Dragão da maldade; os caminhões, a estrada, o posto de gasolina e a oficina estão próximos, a fazer o contato do sertão com o mundo da cidade. Ouve-se o rádio, existe na praça o bar Alvorada com os emblemas da fachada do palácio em Brasília. Não estamos no sertão de Deus e o Diabo, microcosmo fechado a compor um mundo de interações sociais orgânico, coeso. Aqui, o sertão já não se põe no centro, revela seus limites e reconhece todo um mundo para além de suas fronteiras, mundo de onde vem toda uma série de novidades que minam pela base a tradição. (XAVIER, 1993, pp.164-165)
O contato entre um país do futuro e outro do passado também foi mote para filmes
do período convencionalmente classificado como retomada do cinema brasileiro, segundo
observa Nagib (2006). A autora observa, no entanto, nova tônica nesse cruzamento, com
uma circularidade de certos filmes em torno de um centro vazio, de modo que uma noção
de zero afirma-se, “ao mesmo tempo como anúncio e negação da utopia” (2006, p.61). Um
Brasil é desbravado por realizadores que, ao remeterem-se a elementos da tradição
cinematográfica dos anos 1960, encaminham-se mais para uma proximidade temática do
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que efetivamente estética. “Sem serem obras radicais, esses filmes remetem, de um ou
outro modo, a momentos de radicalismo do cinema brasileiro” (2006, p.65). Nos “zeros da
nação”, para usar a chave de análise de Nagib, cineastas dos anos 1990 buscam berços de
“brasilidade”, desbravam o vazio para trazer um país distante dos grandes centros urbanos e
pô-lo em contato com elementos modernos. Em Central do Brasil (Walter Salles, 1999),
esse movimento em direção ao centro vai traduzir-se na “euforia da pátria reencontrada”
(2006, p.67). Na procura pelo pai empreendida pelo menino Josué, configuram-se uma ação
interna à narrativa, de encontro com origens, e uma atitude do próprio cineasta, envolvido
na história do cinema, na “busca da pátria nordestina perdida no passado do cinema novo,
destinada a oferecer filiação histórica ao cineasta atual” (2006, p.71). Mas esse movimento
acaba envolvido na reiteração de certo distanciamento, já problematizado em relação à
postura da produção industrial brasileira dos anos 1950: o sertanejo é o Outro, o sertão é
distante, palco de mitos, religiosidade e também certa pureza. Empreendido o movimento
da cidade para o sertão, prevalece o exótico no universo do interior nordestino:
A seca e a miséria no Nordeste de origem se apresentam, assim, como detalhes pitorescos, que não acarretam conseqüências na vida de seus habitantes nem pedem intervenção no presente. Na verdade, o filme, como um caso exemplar de sua época, em lugar de propiciar identificação de um país, evidencia pelo olhar distanciado e a citação, a própria impossibilidade de se reencenar o projeto nacional. A utopia só se realiza como ausência, reencontro hipotético com um pai, chamado Jesus, que jamais se materializa e é apenas concebível enquanto ficção ou mito. Para tornar verossímil esse pai/pátria improvável, a narrativa envereda pelo melodrama e os personagens se deslocam do universo moderno e repleto de ameaças da estação central para o isolamento seguro e confortável do Brasil arcaico, perfazendo assim o movimento contrário dos migrantes brasileiros reais. (NAGIB, 2006, p.72)
Esse sertão “imune ao tempo e aos males da modernidade”, “iconografia do
passado, com função apaziguadora no presente” (2006, p.76), é bem diferente do universo
de O Dragão da maldade e de obras mais contemporâneas, como O Céu de Suely, Árido
Movie (Lírio Ferreira, 2005) e o próprio Cinema, Aspirinas e Urubus. O filme de Lírio
Ferreira rejeitava o isolamento do sertão no conjunto de seus procedimentos, que
aproximam o litoral do interior e estabelecem uma ponte que vai de São Paulo à pequena
cidade de Rocha, passando por Recife. Elementos pop, música eletrônica e certo clima de
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aventura compunham um sertão de misturas, em que novas e antigas práticas convivem, em
que a tradição permanece, mas manifestada sob novos aspectos. Mas, como ressaltado
acima, a estética de Ferreira é diferente em relação à de Gomes: no lugar da música
eletrônica, ouvem-se em Cinema, Aspirinas e Urubus canções da própria época, numa
textura sonora de rádio antigo; enquanto a imagem de Árido Movie carrega-se de
velocidades, ações e reações de ritmo acelerado, o regime imagético é outro no trabalho de
Gomes, mais atento à espera, à observação, a situações puras em que se intensifica a
dimensão mesma do tempo.
São diferentes também as imagens da seca na comparação entre os dois filmes. Elas
estão no percurso de Ranulpho e Johann, vislumbram-se estratégias de sobrevivência da
população, promovem-se encontros com a paisagem árida, e é também da seca, ainda que
não só dela, que Ranulpho tenta fugir. Já o sertão de Lírio Ferreira, verde em Baile
Perfumado, é seco em Árido Movie, e em torno da falta de água e das previsões de chuva
giram elementos da narrativa. Mas não há muitas estratégias diante das carências, e o foco
recai sobre as famílias tradicionais e seus jogos de poder para manter os privilégios. A
ênfase é, então, na permanência, já que “não há previsões de mudanças”, como diz o
homem do tempo e protagonista do filme, Jonas – a dimensão utópica aí já não tem muita
força.
Isso é diferente tanto em Cinema, Aspirinas e Urubus quanto em O Céu de Suely,
filmes de personagens que se movem e se inquietam por ainda acreditarem em
possibilidades de transformação. São filmes em que se vislumbra maior crença no mundo,
em que a imagem não pretende dar conta do conjunto nem oferecer soluções, mas abrir
caminhos, fazer irromper da cena desejos que são potentes. No filme de Aïnouz, Hermila
parte em um ônibus, continuando seu movimento. Em Gomes, os personagens também
prosseguem caminhadas, em busca de constituir os próprios destinos. Johann parte de trem
em direção à Amazônia, Ranulpho assume a caminhonete e segue viagem. Não há certezas,
mas indicação de que a busca prossegue, de que as vidas foram deslocadas e se puseram em
devir.
O foco que tanto Gomes quanto Aïnouz dão às particularidades, ao privado, não é
menos político ou menos utópico que a estética cinemanovista. Há, pelo contrário, um
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tensionamento do político em jogo aí, daquilo que se pode propor como gesto estético-
político. Pois há micropolíticas, contidas nas formas utilizadas pelos indivíduos em sua
relação com o mundo, em suas decisões de vida, de ocupação de espaços e de enunciação.
Cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra já se
encaminhavam, nos anos 1960, para a problematização da idéia de um só povo. Passavam
ao que Deleuze (2007) pontua como a falta do povo, a impossibilidade de dirigir-se a algo
já dado e encontrado pronto na sociedade. “Se o povo falta, já não há consciência,
evolução, revolução, é o próprio esquema da reversão que se revela impossível. Não haverá
mais conquista de poder pelo proletariado, ou por um povo unido e unificado” (2007,
p.262). A transição para essa concepção, reconhecerá Deleuze, era lenta e envolvia embates
dos realizadores com as próprias visões de mundo. A questão era formulada pelo cinema
moderno, o problema e a fratura eram explicitados. O cinema contemporâneo, nas posturas
de filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus e O Céu de Suely, torna-se, então, um “cinema
de minorias”, consciente de que há vários povos, que não devem ser unidos, “pois o povo
só existe enquanto minoria, por isso ele falta. É nas minorias que o assunto privado é,
imediatamente, político” (Deleuze, 2007, p.262). O devir minoritário, que já era formulado
em Fabiano, ganha nova força em Ranulpho e Johann, em sua perambulação e em sua
fabulação.
“A única história que sei contar é a minha” – é o que Ranulpho responde a Johann,
quando solicitado a contar uma história. Nessa impossibilidade de dar conta de um universo
amplo, está o reconhecimento da força do devir minoritário. O monólogo de Ranulpho, com
olhar que confronta a câmera, será aí momento de invenção de um povo, na história
contada sobre a trajetória de um nordestino (o próprio contador da história ou não) que vai
ao Centro-Sul do país e depara-se com preconceitos e estereótipos. Mais adiante, ele dirá a
Johann que nunca foi ao Rio de Janeiro, nunca saiu do sertão. Mas a questão que importa já
não é mais a verdade dos acontecimentos que se passaram ou não ao personagem, pois o
falso também tem potência, já destruído qualquer modelo de verdade, retomando Deleuze.
O que o cinema deve apreender não é a identidade de uma personagem, real ou fictícia, através de seus aspectos objetivos e subjetivos. É o devir da personagem real quando ela própria se põe a “ficcionar”, quando entra em “flagrante delito de
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criar lendas”, e assim contribuir para a invenção de seu povo. A personagem não é separável de um antes e de um depois, mas que ela reúne na passagem de um estado a outro. Ela própria se torna um outro, quando se põe a fabular sem nunca ser fictícia. (DELEUZE, 2007, p.183)
Ranulpho fabula. Dessa história que ele conta, ele retira forças para afirmar-se, no
retorno, ou na ida pela primeira vez, ao Rio de Janeiro, para resistir à vergonha e à infâmia.
Johann também resiste, sobretudo à morte que é a guerra, e no devir da estrada tenta
encontrar vida. Os dois irão fabular juntos quando, embriagados, concebem a situação
hipotética de um encontro dos dois na guerra, em lados contrários e, portanto, em confronto
que implicaria a morte de um pelo outro. Com espingardas imaginadas, granadas fictícias,
eles brincam, fingem, jogam com o imponderável dos acontecimentos. Na cena, o que está
em questão é novamente uma resistência à destruição que põe em conflito os indivíduos,
pois a imagem do encontro entre Johann e Ranulpho suscita crença nas possibilidades do
mundo. As conversas na estrada, os contatos de mundos e o trânsito pelo sertão ganham
nova força no filme de fabulação de Gomes, que encontra em Ranulpho e Johann seus
“intercessores”, no conceito de Deleuze:
O autor dá um passo no rumo de suas personagens, mas as personagens dão um passo rumo ao autor: duplo devir. A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca pára de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ela própria, enunciados coletivos. (DELEUZE, 2007, p.264)
Nesse movimento de intercessão, a postura cinematográfica de Cinema, Aspirinas e
Urubus atravessa dimensões de vivência individuais, e isso não implica perda de potência
política – o gesto utópico e, mais ainda, fabulador, é questão de relevo na obra. Não se está
mais em pauta a construção de um projeto nacional, dirigido a um povo suposto, mas a
busca por inventar esse povo na própria imagem, pelo movimento que relaciona o gesto
artístico do autor com os atos de fala e as posturas dos corpos dos personagens na cena
fílmica. O encontro com o sertão em trânsito é menos um desvendamento de um Brasil
profundo e pitoresco que um esquadrinhamento de espaços e tempos para inventar mundos
possíveis.
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O mito desbravador e um olhar externo sobre o Brasil
Choque de culturas. No encontro operado entre os mundos de Johann e Ranulpho,
há também a dimensão de um contato entre práticas e valores culturais diferentes. Em plena
década de 1940, não há dois mundos que poderiam ser mais contrastantes que a Alemanha
industrial – a qual se prepara para a guerra – e o sertão do nordeste brasileiro. Duas
realidades que ora divergem, ora se completam, mas que pouco a pouco se definem em
meio ao processo do encontro. De um lado, há o avanço tecnológico e a possibilidade de
ascensão material, mas também há a violência bélica e a degradação de valores. Do outro, o
atraso, a precariedade social a que está sujeita a população, mas também há a natureza pura,
o diálogo simples e as relações humanas. São características múltiplas que nascem no
acompanhamento dos personagens, com impressões vinculadas às próprias disposições dos
corpos no mundo, ao lugar onde esses seres habitam.
Sendo assim, não parece à toa que Gomes tenha escolhido como primeira imagem
de seu filme a luz branca que ocupa a tela em sua totalidade, impedindo a visualização de
qualquer outra coisa. É a luz do sol, a luz dura que castiga a terra e marca de forma incisiva
a vida daquelas pessoas, luz que compõe o cenário natural pelo qual Johann vai perambular.
Mas não apenas isso. O estourado inicial da imagem ajuda a construir uma idéia daquilo
que é novo e, portanto, estranho aos olhos. É uma luz que não apenas é forte, mas
justamente por ser forte – e diferente –, acentua muito bem a diferença de mundos, o
contraste de costumes e das formas de pensar. É a luz do desconhecido, do exótico, do
distante, ao que Johann a partir desse momento está sujeito. É a luz da diversidade humana.
Os primeiros momentos do filme acompanham Johann em sua busca pela cidade de
Triunfo. Ele dirige sozinho seu caminhão ao som do rádio local. Suas ações são vagas,
como se tateasse um percurso adequado ou coerente para seguir; como se construísse seu
próprio caminho em meio ao sertão. Consulta mapas, pede orientação de pessoas que vê na
estrada. Avança de forma cada vez mais profunda na terra. Johann não conhece bem o lugar
que explora, fica claro que sua relação com esse espaço vai sendo construída aos poucos,
movida por um desejo de estar em movimento. É nesse momento que a cena em que se
depara com uma porteira tem grande potência. Para seguir em frente, é necessário que
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Johann desça do caminhão, abra a porteira e volte a dirigir. A porteira, então, é mais um
elemento que Johann precisa ultrapassar para alcançar Triunfo.
Nesse momento, a câmera se mantém sempre próxima do personagem, uma
aproximação que adentra na própria diegese do filme. Assim, o ambiente que se constrói
aos nossos olhos assemelha-se ao que Johann vê: uma aparência de homogeneidade nos
aspectos físicos e geográficos, que será problematizada pelo próprio painel humano
composto pelo filme. Há cactos, estradas de terra e o sol quente, pouco importa para que
lado se olhe. Johann toma banho em meio ao sertão sem qualquer pudor ou preocupação de
estar sendo visto. Não há vínculos ainda com o local, não há relações estabelecidas de
contato. As pessoas parecem se apresentar a Johann sempre da mesma maneira,
simplesmente estão ali, inseridas naquele lugar, prontas para pegar uma carona ou tirar uma
dúvida. Elas surgem, num primeiro momento, de forma brusca e uniforme, como o próprio
desconhecido. Mesmo a entrada de Ranulpho na trama nasce assim, sem maiores
preparações.
Se os nordestinos – e num contexto maior, os brasileiros – apresentam-se como um
povo culturalmente diferente ao que Johann está acostumado, o contrário também pode ser
dito. O alemão, a começar pela sua aparência e sotaque, destaca-se dos habitantes locais.
Não raramente, recebe olhares de curiosidade e admiração, frutos de uma sociedade que
não está acostumada à presença natural de pessoas oriundas de outras terras. Não é à toa
que, depois de Johann ter negociado a venda de suas aspirinas para um empresário local,
este exclama: “eu quero brindar a proeza desse alemão autêntico que veio lá do outro lado
do mundo pra trazer o futuro pra nossa cidade”. Pouco importa que posição ocupava
Johann em sua própria terra. O simples fato de ser alemão já significa bastante aos olhos do
empresário. Bem por isso Ranulpho retruca: “Tá todo mundo admirado com o moço.
Parece até que ninguém nunca viu um estrangeiro antes. Ê, povinho besta”.
Essa relação do brasileiro com aquele que vem de fora é analisada por Xavier
(2000), quando o autor discute o cinema brasileiro nos anos 90. Ao citar O Que É Isso,
Companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e Como nascem os anjos (Murilo Salles, 1996),
Xavier destaca a posição do estrangeiro (norte-americano) nos dois filmes em questão
como os detentores da razão e do bom senso:
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O Gabeira imaginário do filme e o embaixador definem uma relação que consolida a imagem diferenciada de ambos diante dos outros, confirmando a vítima como a figura mais serena do episódio, espécie de voz da razão que aconselha, dá palpites certos e compreende melhor o que se passa. [...] Nos dois filmes, trata-se de um americano lúcido, exemplo de civilidade, em situação de cárcere, a observar compreensivamente brasileiros nada serenos se ameaçando e se matando. (XAVIER, 2000, p. 118)
É nesse processo de encontro que Johann estabelece de vez sua posição como
estrangeiro. É ele quem possui o aparato tecnológico, as novidades de quem vem de fora,
um exemplo particular de um contexto muito mais amplo de dependência tecnológica do
Brasil para com outros países. O alemão dirige um caminhão, traz consigo películas
cinematográficas, projetores, aspirinas... é certa idéia civilizatória sendo levada ao interior
do nordeste. São possibilidades de avanço e progresso sendo introduzidas pelas ações de
Johann. Mas não sem um preço. O alemão está ali para vender seus produtos, para
convencer as pessoas de que a aspirina é completamente necessária às suas vidas. Não é
difícil estabelecer uma ligação entre as atitudes de Johann e a prática do escambo, muito
comum nos primeiros anos de colonização. Ainda que não se possa conectar de vez as duas
práticas – principalmente pelo caráter exploratório dos anos 1500 e pelas motivações
distintas em ambas as situações –, o fato é que ao longo de Cinema, Aspirinas e Urubus
ocorre uma série de “trocas de mercadorias”, que se realizam tanto no campo dos produtos
materiais como também no âmbito do conhecimento e da abstração.
Talvez o maior exemplo dessa troca seja o uso do dispositivo cinematográfico para
vender aos habitantes locais o produto da aspirina. O fascínio causado pela presença de
uma projeção de imagem em movimento, algo nunca visto antes pela maioria dessas
pessoas, é tamanho que muitas delas se dispõem a dar seu dinheiro não apenas pela
aspirina, mas também para poder vislumbrar novamente a projeção cinematográfica.
Johann sabe bem que a presença do cinema naquelas vilas causaria fascinação, tal como
causou a exibição de A chegada do trem à estação, dos irmãos Lumière, na Paris de 1895.
A diferença é que, em Cinema, Aspirinas e Urubus, o cinema já existia há quase cinqüenta
anos. Da mesma forma, Ranulpho aprende pouco a pouco a operar a máquina
cinematográfica ou a dirigir o caminhão de Johann, conhecimentos que nascem graças ao
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contato com o estrangeiro – e esse conhecimento é passado apenas para Ranulpho porque
ele de fato conquistou a afeição pessoal do alemão; o restante da população continua em
posição de consumir, de dar e receber e de ingerir o cinema e a aspirina.
E há também a comida enlatada que Johann compartilha com Ranulpho. Prática, a
comida surge como mais um elemento industrial desconhecido pelos nordestinos.
Entretanto, diferentemente do cinema, o produto não encanta nem traz o fascínio a
Ranulpho, muito pelo contrário. O nordestino claramente despreza o gosto da comida pré-
feita, do produto que está incrustado de artificialismo. É por isso que pede “comida de
verdade”, ou seja, “comida de panela”. Nesse caso, há a valorização daquilo que é da terra,
que é natural e primitivo. Johann é apresentado então à carne de bode, ao arroz e à farofa. A
troca se inverte e é o alemão quem se põe a conhecer especiarias novas, a provar o gosto da
natureza e das relações que surgem daí.
Esse distanciamento dos sertanejos para com as novidades civilizatórias é visto de
modo ambíguo. Para Ranulpho e o empresário, por exemplo, esse distanciamento desdobra-
se em um equivalente atraso. Aquele espaço encontra-se deslocado do mundo, seja em
temos de tempo – quantos anos o cinema demorou para chegar ali? –, seja em termos de
espaço – segundo Ranulpho, “ali nem guerra chega”. Já Johann consegue visualizar nesse
quadro uma certa permanência da pureza, dos relações singelas que as pessoas estabelecem
entre si e entre o ambiente, afinal de contas, “pelo menos aqui não caem bombas do céu”,
diz ele.
Essa tensionamento entre o espaço primitivo – sertão – e o espaço civilizado –
cidade urbana, Europa – já é recorrente na cinematografia brasileira. Luiz Zanin Oricchio
discorre sobre essa relação quando analisa Central do Brasil.
A cidade é o lugar da violência, no qual uma pessoa pode ser friamente assassinada sob o olhar indiferente de todos. É onde crianças são raptadas e servem para o comércio de órgãos, talvez a forma mais hedionda do potencial criminal humano. O campo – o sertão, no caso – funciona como exata contrapartida e seria uma espécie de reserva moral da nação. É o lugar da pobreza digna, da solidariedade, dos valores profundos que se foram perdendo em outras partes, mas lá estão preservados, como num sítio arqueológico da ética nacional. (ORICCHIO, 2003, pp. 137-138)
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O sertão, então, passa a ser construído como uma esfera dos bons costumes, um
lugar idealizado não pela falta de atribuições negativas, mas pela maneira de lidar com elas.
Não é à toa, por exemplo, que a descrição feita por Oricchio se assemelha bastante com o
que Montaigne falou sobre a sociedade indígena na sua época, ainda no século XVI.
Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualitativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las. (MONTAIGNE, 1972, p. 102)
A conotação do “bom selvagem” passa a ser importante para que se possa entender
o encanto que Johann tem sobre esta terra. Entretanto, não é assim que o próprio Ranulpho
se vê na maior parte do tempo. Na cena em que estão comendo carne de bode, por exemplo,
Ranulpho comenta: “Aqui no Brasil, nem guerra chega”. O senhor nordestino que servia a
comida comenta: “Chega não. Nosso Brasil é bom demais. Calmo.” Pelos mesmos motivos,
o sertão consegue ser visto tanto com desdém como por admiração. Enxergamos em nossa
terra as piores mazelas da humanidade, mas nos orgulhamos de como, de alguma forma,
lidamos com elas. Oricchio, ao analisar o filme Eu, tu, eles (Andrucha Waddington, 2000),
discute bem essa construção da visão que o brasileiro tem sobre ele mesmo.
Às vezes somos uma nação que não gosta de si mesma, com complexo de vira-lata, um Narciso às avessas que cospe na própria imagem, como dizia Nelson Rodrigues. Em outras, vivemos no alto-astral desmotivado, na alegria obrigatória, na mitologia de país moreno e malemolente. Essa ciclotimia, essa mudança súbita de humor, que vai de um extremo a outro sem meio-termo, da euforia à depressão, talvez seja o que melhor nos caracteriza. (ORICCHIO, 2003, p. 140)
Nesse sentido, Cinema, Aspirinas e Urubus tenta expor uma fratura: internamente,
na visão de personagens da própria narrativa fílmica, há diferentes Brasis, diferentes
sertões. Por um lado, o interior nordestino seria o lugar vítima no que diz respeito a
diversas questões sociais e culturais: não acompanha os avanços, é marcado por atraso,
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miséria, fome, desigualdade social; e o Brasil é um país periférico, à margem das grandes
discussões e acontecimentos, onde “nem a guerra chega”. Mas há também a visão de que
somos um país sincero, intenso, acolhedor, apreciado por quem vem de fora, entusiasmado
com suas próprias conquistas futebolistas e carnavalescas, onde o povo é muito mais
valorizado do que as estruturas sociais e políticas que deveriam servi-lo. O filme de
Marcelo Gomes dialoga com tudo isso, não apenas com os extremos, mas com tudo o que
está entre eles.
Resta-nos apenas observar e tentar refletir sobre como uma região tão complexa e
indefinível do globo pôde ser espaço de conciliação entre duas utopias individuais, que já
não focam tanto a dimensão coletiva; enfim, todo o percurso feito por esses personagens
diziam mais a eles mesmos que aos grupos a que poderiam pertencer. A necessidade de se
manter em movimento, menos do que a negação da qualidade de um lugar, impulsionam o
filme. “Atribuímos um certo romance aos lugares remotos” (Carl Sagan, 1994, p.2). São os
romances particulares de Johann e Ranulpho que os movem, que são responsáveis por todos
esses processos de encontros e descobertas. As migrações fazem parte de uma utopia
individual que os fazem circular pelo sertão, rumo a terras desconhecidas, ou espaços
previamente conhecidos em suas imaginações.
Considerações finais
Perambuladores, fabuladores, desbravadores, Johann, Ranulpho e o próprio diretor
vivem um sertão em trânsito, uma passagem dos mundos que se tocam, desejos de outra
vida. Gomes dá-se personagens intercessores para extrair das inquietações individuais a
fabulação de um povo por vir. O motivo do encontro, organizado em torno da conversa, é
dispositivo que desencadeia uma sociabilização, modulada como uma mundaneidade, uma
relação estabelecida seja no aspecto cultural, seja na dimensão das formas de enunciar o
que se apresenta no percurso. São os atos de fala em Cinema, Aspirinas e Urubus invenções
de lugares para os sujeitos, formas de operar o sensível e mover a vida.
É essa uma forma de as imagens instaurarem deslocamentos no cinema, pôr
universos em devir. O sertão de Gomes é uma invenção estética, que passa por um
mergulho nas intensidades do espaço, das histórias e das vontades dos seres. Inventar é
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reconhecer que o mundo não está dado, que para articular o dizível e o visível na imagem, é
preciso formular a questão do olhar como um problema estético, um olhar que, na
observação cuidadosa, não reproduz o real, mas o coloca num estado de flutuação e
incertezas. Pois a postura cinematográfica do filme não é a de quem postula caminhos,
estabelece o que é certo ou errado nas ações dos personagens ou o que eles devem fazer a
cada momento: Cinema, Aspirinas e Urubus enuncia, sem pregar, desbrava, sem dominar,
acompanha vidas, sem submetê-las a esquemas.
Nesse processo de inventar o sertão, o filme de Marcelo Gomes tem a sua volta
filmes contemporâneos e uma tradição cinematográfica que ecoa sem determinar a estrutura
geral da obra. A modernidade estética de filmes do Cinema Novo, como Vidas Secas, abre
possibilidades para abordagens, para formas de aproximar-se do sertanejo e de seu
universo. A perambulação do filme de Nelson Pereira dos Santos surge mediada pela
contemporaneidade do olhar, já mais detido nas potências de fala das minorias, da
resistência contida no devir minoritário. É uma postura que passa por modulações e
elaborações na produção recente. Junto a O Céu de Suely, sobretudo, Cinema, Aspirinas e
Urubus busca trabalhar os desconfortos dos sujeitos, as relações do indivíduo com o
mundo, ligando o assunto privado à política, já não mais no sentido macro, mas na
dimensão menor, das potências do indivíduo desejante.
Das imagens que movem. Dos silêncios que carregam afetos. Dos mundos que se
tocam. Dos personagens que fabulam. Nosso percurso para pensar Cinema, Aspirinas e
Urubus busca articular as potências que partem do filme, ele mesmo o fio condutor de
nosso pensamento. As inflexões que desenvolvemos, as curvas que fizemos, os retornos
que tomamos têm como linha originária o trabalho realizado por Marcelo Gomes.
Acreditamos na importância metodológica desse percurso, que se dobra e desdobra, sempre
na busca pelas modulações que emanam do objeto em estudo. Operar conceitualmente a
obra fílmica é mais do que buscar respostas, mas tentar estabelecer ligações, propor novas
perguntas, debater-se com o próprio objeto analisado. Assim, pois, o filme pode aparecer,
não instrumentalizado pela análise, mas trazido para uma conversa. Aqui a proposta é
pensar com o filme, caminhar pelos passos do realizador na constituição de um pensamento
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com imagens, na pesquisa estética de um olhar, um ouvir, um afetar e ser afetado pelas
imagens do sertão.
Referências bibliográficas
BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaios sobre o cinema
brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2007
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo (Cinema 2). São Paulo: Brasiliense, 2007
GOMES, Marcelo. Entrevista ao site Omelete. Disponível em:
http://www.omelete.com.br/cinema/omelete-entrevista-o-diretor-de-cinema-aspirinas-e-
urubus/
NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgias, distopias. São
Paulo: Cosac Naify, 2006
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1980
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo,
SP: Estação Liberdade, 2003
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro nos anos 90. Entrevista à revista Praga – estudos
marxistas, São Paulo, Editora Hucitec, n° 9, junho de 2000, p. 97-138.
_______________. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac
Naify, 2007
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