resenha do livro arte, dor - inquietudes entre estética e psicanálise

Post on 14-Dec-2015

25 Views

Category:

Documents

11 Downloads

Preview:

Click to see full reader

DESCRIPTION

Arte

TRANSCRIPT

RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume43,n.3,191-194·2009 191

arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise

Autor:JoãoAugustoFrayze-PereiraEditora:AteliêEditorial,SãoPaulo,2006,404p.

Resenha:SilvanaRea,1SãoPaulo

Sevidaeobrasecomunicam,conformeafirmaMerleau-Ponty(2004),énopercursodeJoãoAugustoFrayze-Pereiraqueencontramosaquiloqueaobraexigiuàvidadeseuautor.

UmavidaconstruídacomoprofessordoInstitutodePsicologiadaUSPefundadordoLaboratóriodeEstudosemPsicologiadaArtedestainstituição,ecomopsicanalistadaSociedadeBrasileiradePsicanálise.Umavidadedicadaàintensafrequentaçãodaarte.ÉoquêpodemosacompanhardesdeA tentação do ambíguo: sobre a coisa sensível e o objeti-vismo científico(1984)eOlho D’Água: arte e loucura em exposição(1995),respectivamentesuadissertaçãodemestradoetesededoutorado,alémdeinúmerosartigoseensaios,queolevamàlivredocênciaem2000.

InicioaresenhacitandoMerleau-PontyporsereleseminalnopensamentodeJoãoFrayze-Pereira,presentedesdeadissertaçãodemestrado.Mastambémporqueofilósofoconsiderasermostodosnósumaúnicaquestãocontínua.E,nocasodoautor,trata-sedoestudodapercepçãocomoquestionamentodaexperiênciadoserhumanonomundo.Éoqueolevaaproporumarelaçãodeproximidadeentrepsicanáliseeestética,ambasbaliza-daspelafenomenologia.Àpsicanálise,aviadeacessoépelafilosofiadeMerleau-PontyeFoucault.Eàestética,pelopensamentodeDufrenne,FormaggioePareyson,entreoutros.

Destemodo,ointeressepelasquestõesdapercepçãoeaexperiênciacomopsicana-listapermitiram,comoriginalidadeeconsistência,anoçãodepsicanáliseimplicada,apre-sentadapeloautornaintroduçãoefundamentadanocapítulo“Aflutuaçãodoolhar:artesplásticasepsicanáliseimplicada”,comonorteparaosensaiosquesucedem.

Apartirdaexperiênciaclínica,oautordelimitaumaregiãonaqualestéticaepsica-náliseseencontram.Apráticapsicanalítica,quandoimplicada,exigeumaescutaaques-tõessingulareseperturbadoras,permitindoqueoanalistadêforma“àdordoinarticuladoque,porseuprópriomododeser,excedetodatentativaderepresentação”(Frayze-Pereira,2006,p.24).Ouseja,entendidadestamaneira,apsicanáliseaproxima-sedofazerartísti-co,umavezqueéprópriodoartistainstaurarnomundoalgoqueéinédito.Maisainda,opensarestéticoaproxima-sedopensarpsicanalítico,postoqueoprimeirosupõeestabele-cerocontatocomumcampodepassagementreonão-serartísticoeaformaperceptíveleosegundo,implicaotrânsitoentreonãoditoeodizível.Assim,amparadonasideiasdeMerleau-Ponty,oautorligaaexperiênciaestéticaeapsicanalíticaporserem“umasilencio-saaberturaaoquenãoénósequeemnóssefazdizer”(Frayze-Pereira,2006,p.24).

1 CandidatadaSociedadeBrasileiradePsicanálisedeSãoPauloSBPSP.MestreeDoutoraemPsicologiaSocialpelaFaculdadedePsicologiadaUniversidadedeSãoPaulo.

192 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume43,n.3·2009

Poroutrolado,comoapráticapsicanalíticacomprometepessoalmenteointérpretedevidoàsuaimplicaçãonoobjetoinvestigado,elapermitequeJoãoFrayzeposicioneapsi-canálisedaarteforadoslimitesdeumasimplespsicanáliseaplicada,poisnãoserestringeaumaverificaçãodométodooudosconceitosdapsicanálise.Sugereentão,ummododetrabalhar,segundooqueFreudrealizouem“MoisésdeMichelangelo”,quandovêaobrapelamodalidadeespecíficadaescutapsicanalítica.

Diantedaescultura,diz,Freudpercebequeháumadimensãoinvisívelcujaconstru-çãoésuscitadapelovisível,oqueolevaaconsiderarumagêneseimaginária,intrínsecaàobra.Eéistoqueelebuscaapreender.Destemodo,aosituarseucampodecompreensãonadinâmicaquevinculaseuolharàobra,eestaaoolhar,enaexperiênciaquealisecria,Freudpossibilitaa “implicação”dapsicanálisenocampodaestéticada recepção,construindouma leituranaqualoespectadorse infiltranocampodacriação.Eassimsustenta-seanoçãodepsicanáliseimplicadanaarte:notrabalhocomamanifestaçãosingulardaobranarelaçãocomoleitorpsicanalista.

Fazendoisso,oautornãoefetuaapenasumatrocadenomesespirituosa,masin-troduzapsicanálisenocampodaestéticapelaprincipalviadeacessoaosfenômenosqueseuprocedimentopermite.Pois,domesmomodoquecabeàescutapsicanalíticanaclíni-ca,permitiralivreassociaçãodopacienteetecercadainterpretaçãoespecíficaparacadapacienteparticulareparacadamomentodoprocesso,cabeaoreceptor-analista,naarte,adotarumaatitudementalabertaaooutroetrabalharcomamanifestaçãosingulardaobranarelaçãoconsigo.

nestesentido,apartirdadelimitaçãodeumcampodeatuação,surgeaquestão:apsicanáliseimplicadanaartepodeserumexercíciodecrítica?Questãoquesedesenvolvenolivroapartirdetrêsblocos:Problemáticas,FundamentoseAnálises.

EmProblemáticaseFundamentos,JoãoFrayzeabordapontosimportantesparaaelaboraçãodeseupensamento,apresentandoseusinterlocutores.

“Apsicologiaentreaestéticaeahistóriadaarte”,marcaoiníciodopercurso.Oautorpartedoargumentodequeaestética,formuladanoséculoXVIIIcomoumaáreadafilosofialigadaaoconhecimentosensível,gradualmenteaproxima-sedapsicologiavindoura,umavezqueparaoséculoXIXaexperiênciaestéticasituava-seapartirdedoispólos:osubjetivoeoobjetivo.Assim,caberiaàpsicologia,queseinstituíacomociência,oaspectosubjetivo.Masospsicólogos,amparadospelométodoexperimental, cadavezmais se ligaramaosaspectosformais.OlaboratóriodeWundteaspesquisasdagestalt,mostramqueonas-cimentodapsicologiacomociênciaestáligadoàspesquisasdosproblemasperceptivosesensoriais;estéticos,portanto.Apsicologiadaarte,instituídaapartirde1950,emespecialpelopensamentodeMarioPedrosa,mostraaimpossibilidadedeconsideraraexperiênciaestéticaapartirdestapolaridade.Istoabreàquestão:Oqueéarte?Umadiscussãoquesedesenvolvedeformaextensaeparaaqualsevale,entreoutros,dePareyson,cujateoriadaformatividadeconsideraaartesimultaneamenteexpressão,conhecimentoefazer,sen-doesseumperfazer.Ouseja,umfazerquefazinventandooporfazereomododefazer.Assim,aarteéforma.Entendidacomoumsignificado,éumserquejáéumdizer.Destamaneira,trata-sedeummododeveraartequeacolocainextrincavelmenteligadaàsin-gularidadedaobra.

Portanto,separaapesquisaemarteopontodepartidadeveseraobra,novamentesurgeMerleau-Ponty,paraquemaobranãoexisteemsi.Opintornelaimprimeumsen-tidoque sóganhaexpressãonoolhardoespectador.Aexperiênciade recepção, assim,

Resenhas 193

levaàdissoluçãodapolaridadesujeito/objeto,colocandoemjogo,apartirdaobra,tantoapsicologiadoartista,quantoadoespectador.Introduzaordemtransferencial–ocampopsicanalítico,portanto.Esteé,nopensamentodeFrayze-Pereira,opontoapartirdoqualapsicologiadaartepedeapsicanálise.

Destemodo,nocapítulo“Aflutuaçãodoolhar:artesplásticasepsicanáliseimplica-da”,asquestõesdarecepçãoestéticalevamàelaboraçãodapsicanáliseimplicadanaarte,naqualoespectadorédestinatáriodasinterrogaçõesqueaobra,comoalteridade,propõe.Em seguida, em “Experiência estética e experiência ilusória: correspondências”, o autorapresentaapsicanálisedeWinnicottcomoaquemaisseaproximariadoregimepsíquicoqueéacionadoporumamanifestaçãoplástica,relacionando,pelaviadoparadoxo,aáreaintermediáriadeexperiênciacomafenomenologiadeMerleau-Ponty.

Em“Afotografiacomopercepção:perspectivismo,transcendênciaedor”,partedaposiçãoobjetivistadeBaudelaireedasubjetivistadeSontag,parachegaraMerleau-Ponty,paraquemnavisãoefetua-seapromiscuidadedesujeitoeobjeto.Oautorligaofotógrafoaopsicanalista,naideiadequeafotografiaéaartequemaisseaproximadapsicanálise,postoquepresentificaalgoquejáfoi,remetendoàdordavulnerabilidadedoserhuma-nodiantedamorte.Ora,adoréumadimensãofundamentaldaobservaçãopsicanalíti-ca.Aanalogiaquepropõe,então,refere-seaofatodonegativofotográfico,pormeiodeprocessofísico-químico,transformar-seemumaimagem-objetoquesuscitarecordaçõesenarrativas.Enapsicanálise,dá-seaconversãodenão-sentidoemsentido,pictogramasoupalavras.Transformaçãosimbólicaqueretiraosujeitodoestadodedorsemnome.EépormeiodaatitudepsicoestéticadecompaixãodeBarthesqueesteprocessoviabiliza-se;quandoumparticipadadordooutro,implica-seinteiramenteimplicandoooutro,quandotornamo-nosiguaisperanteainevitabilidadedamorte.Assimcomooexercíciodapráticapsicanalítica,quandoelaéimplicada,ésustentadonacompaixão.

Entreabelezaqueomitea tenebrosaorigemdeAfroditenoBotticellide“nasci-mentodeVênus”eohorrorde“Saturnodevorandoumdeseusfilhos”,deGoya,Frayze-Pereiraconstróiem“Asarmadilhasdatransparência:osegredo,oobsceno…”umespaçoparadiscutiramodernidadeeosegredo.DialogandocomFoucaultnasquestõespolítico-sociais,oautortratadaconstruçãodamodernidadesobreosfundamentosdasociedadedavigilância,quepregaa transparência totaldoparticular edoprivado.E,portanto, ainstituiçãodeindivíduossemsegredo.Ora,dopontodevistapsíquico,osegredoécondi-çãodasingularidade,comoafirmaapartirdeAulagniereMaggi,ecomomostraocinemadeBertolucci,WenderseAntonioni.E,destemodo,tantoapsicanálisequantoaarte,peloesforço individualdepreservaçãododireitoaosegredo,acabamporseconstituircomoatosderesistência.

Em“Doimpériodoolharàartedover:problematizações”,oautortratadosentidodoolhareaexpressãodovernosescritosdeFoucault.Discuteaquestãodovereservistodesde“Ahistóriadaloucura”,passandopor“Onascimentodaclínica”e“Aspalavraseascoisas”.Domesmomodo,nocapítulo“Ocorpocomoobradearte:aunidadedomúltiplo”,abordaasquestõesdavisibilidadedopontodevistadeMerleau-Ponty,paraquemocorpo,sensívelexemplaremummundodecoisassensíveis,embaralhaadistinçãosujeito/objeto,entrequemvêeaquiloqueévisto.ÉnestemomentoqueasideiasdeMerleau-Pontysãoexpostascommaisvagar.

Oúltimoblocodedica-seàsanálisesdeobraseartistas,emumajornadadomo-dernoaocontemporâneo,queseiniciaem“Acrobaciasdaidentidade:oartistamodernoe

194 RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume43,n.3·2009

seusduplos”.nocaso,aanálisecentra-senosaspectosqueconfiguramoartistamodernoenquantopersonagemdovínculoentrearteedor,quesedelineiaapartirdofimdoséculoXIXecomeçodoXX.Situadoentreseusduplos,oromânticoeocontemporâneo,oartistamodernosurgecomoclownouacrobata.Temascarosaalgunsdeles,masqueaquiindicamotransgressivo,instituídopelaintroduçãodeumvazionaordemestabelecidaepormeiodoqualoespectadorpoderirdeseuprópriopeso.Éovazio,portanto,aherançaaoartistadacontemporaneidade.EéapartirdelequeJoãoFrayzechegaàdorcontemporânea,pelaleituradeDubuffet,ReinhardteRothko.

Emseguida,tomaodesafiodededicar-seaVanGogh,artistaquesuscitaincontáveisescritos.Ea ele seguem-seMaxErnst,osbrasileiroscontemporâneosAlexFlemmingeAméliaToledo,asexperiênciasradicaisdabody art.E,comoépropostadapsicanáliseim-plicadanaarte,atenderàdemandadaobraepermitirqueestasoliciteateoriaqueacom-preenda,oautorutilizavérticespsicanalíticosdiferentesparaasdiferentesleituras:oeixokleinianogratidão-reparação,asquestõesdapulsãodemorte,oscaminhosdaperversão.

Masafinal,apsicanáliseimplicadapodeserumexercíciodecrítica?EstaéaquestãoqueJoãoFrayze-Pereirapropõeediscutenolivro,aproximandopsicanáliseearte.Mais,es-tabelecendoestaligação,elereafirmasuaposiçãoemrelaçãoàprópriapsicanálise.BalizadapelafenomenologiadeMerleau-Ponty,elaseapresentacomoaberturaradicalquemarcao trabalhoreflexivodopsicanalistaem iniciaçãoaosmistériosdomundo.Umtrabalhoquesemovimenta“entre-dois”semsefixaremumpólo,deformaaqueseinterpenetrempensamentoeexperiência.Éapsicanáliseentendidacomoimplicaçãoquepermiteopen-samentoencarnado.Eeste,porsuavez,éoquedemelhoropsicanalistapodeofereceràcríticacontemporâneadearteque,diferentementedamoderna,emsuapreocupaçãocomalegitimidade,centra-senalegibilidadedaobraenaparticipaçãodocríticonassituaçõespropostaspelosartistas.

Referências

Frayze-Pereira,J.A.A tentação do ambíguo: sobre a coisa sensível e o objetivismo científico.SãoPaulo:Ática,1984.

_____Olho d’água: arte e loucura em exposição.SãoPaulo:Escuta/FAPESP,1995.Merleau-Ponty,M.AdúvidadeCézanne.In:O olho e o espírito.SãoPaulo:Cosac&naify,2004,p.121-141.

top related