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CENTENRIO DO JORNALISTA RAUL REGO
O COMBATENTE
PEDRO FOYOS
Meu querido Raul, a nobreza do teu carter no precisa de
testemunhos. A omisso nestas palavras seria grave dano
no esquecimento. Anos de luta, anos dedicados
nobilitao do que de humano em gente se encontra,
sempre atento ao exemplo dos nossos maiores, dos que
foram ao longo dos sculos os denunciadores pela palavra,
ou atravs da palavra, caso do teu interesse pela figura de
Damio de Goes chegou agora a tua vez, vez nobre no
caminho difcil de tantas dcadas. Foi a coroa de glria que
poucos percebem, no merecem o aviltamento, esse
aviltamento mostra a grandeza da tua alma e a projeo
sensvel do viver quotidiano de quem verdade e retido
tem entregado os melhores dias da sua vida.
EXCERTO DE UMA CARTA DO ESCRITOR RUBEN A.
DIRIGIDA A RAUL REGO
APS O ASSALTO POLTICO AO DIRIO REPBLICA
(MAIO 1975)
Raul Rego foi meu diretor em trs jornais: dois dirios, e o outro
tinha data esquiva de sada, com uma produo oficinal sujeita s
contingncias e riscos da clandestinidade (apesar disso, as tiragens
suplantavam as dos principais dirios portugueses). Nesses
esquecidos tempos do Vero Quente de 1975 no era fcil fazer um
jornal democrtico. Corria-se o Pas, de tipografia em tipografia, e
depois do trabalhinho feito pernas para que vos quero, porque o
pecado no podia cometer-se duas vezes no mesmo stio. Corramos
por muitas razes ou talvez apenas por uma que sumariava as
demais: sob o cabealho, o primeiro de 25 nomes de jornalistas
insubmissos era o de Raul Rego.
Hei-de morrer sem saber qual o brao que devo levantar
Semanas antes, o fio da histria ptria vibrara a ponto de ameaar
quebrar-se por fora de um ciclone comunitrio na Rua da
Misericrdia, em Lisboa. Propagara-se e ressoava, ainda intenso, no
Pas e nos nossos ouvidos: Socialismo, sim! / Ditadura, no!.
Fechar / o jornal / traio a Portugal!. Rego / amigo / o povo
est contigo!.
Um mar de gente gritava l em baixo, na rua. Milhares e milhares a
gritarem, queriam que aparecesse-mos s varandas da Redao.
amos, vacilando na estranheza de uma situao que nenhum de ns
tinha vivido at ao momento. O cdigo profissional no pressupe
que jornalistas acenem multido. Assomvamos trs ou quatro de
cada vez, o espao dos varandins no dava para mais.
Mas a multido era exigente na presena querida:
Rego / amigo / o povo est contigo!.
Doutor Rego, v, as pessoas querem v-lo a si. V agora. Ateno
ao brao!
Ah, o brao do doutor Rego! Havia o rito do punho erguido. A
exteriorizao gestual socialista diferenciava-se da comunista, mas
Raul Rego no atinava: na maioria das vezes erguia o brao errado.
E ns, atrs dele:
doutor Rego, o outro brao!... o outro!
Rego voltava-se para ns, atrapalhadssimo, angustiado:
Hei-de morrer sem saber qual o brao que devo levantar. Acham
mesmo isso importante?
Marcelo Caetano, leitor privilegiado dos editoriais proibidos
Embora sendo autor de vrios livros de teor histrico e poltico
(realo a portentosa Histria da Repblica, em cinco volumes) Raul
Rego ser lembrado, acima de tudo, como o jornalista que mais
intrepidamente combateu a Censura durante a Ditadura, de Salazar a
Marcelo Caetano. Quatro dcadas de uma luta homrica. Escrevia
todos os dias, todos os dias via os seus textos lacerados pelo lpis
azul, a menos que estivesse num dos crceres polticos por onde
passou porque nessas circunstncias no havia estafeta que lhe
levasse as palavras aos Servios de Censura.
Tinha o hbito, nos ltimos tempos, de deixar os textos censurados
na caixa do correio de Marcelo Caetano. O chefe do Governo era um
dos poucos leitores privilegiados desses editoriais proibidos. O
primeiro era o linotipista que os compunha na tipografia; o segundo,
naturalmente, o censor que os censurava; por ltimo, Marcelo
Caetano, que, depois de jantar, talvez reservasse dois minutos para
ler um palmo daquela excelente e inspiradora prosa. De lamentar
que, na impacincia da oferenda, o jornalista tivesse cometido o
frequente lapso de deixar na caixa do correio os prprios originais
provindos da Censura, preciosidades histricas cujo destino ter sido
o caixote do lixo.
Se Jesus Cristo fosse transmontano
Tinha motivos de sobra para odiar os carcereiros da sua liberdade,
mas confidenciava que no conseguia odi-los. Dizia ter por eles uma
compaixo crist. Raul Rego, antigo seminarista, que cursou
Teologia, tornou-se um desabrido anticlerical, abjurara o catolicismo
mas no renegava o cristianismo. Certo dia, contudo, aps o fecho da
edio, numa conversa distendida com os redatores, veio baila o
tema do dio e o nosso diretor abriu uma exceo na sua indulgncia
crist. Havia uma pessoa no mundo que ele odiava deveras. Um
dio de morte, que Cristo me perdoe! Perante a curiosidade geral,
perguntou:
O nome Ablio Augusto Pires diz-vos alguma coisa?
Sim senhor, dizia. Pelo menos a dois de ns:
Quem? O inspetor da PIDE? No foi aquele que levou o Mrio
Soares para o desterro de S. Tom?
Sim, esse mesmo. E bem enganou o Mrio, que no Portugal
Amordaado o apresenta como um pide bonzinho. uma pgina
vergonhosa que o Mrio Soares deveria rasgar do livro.
Mas porqu o dio para com esse tal Augusto Pires?
Ento o nosso diretor contou que durante um interrogatrio na polcia
poltica fora esbofeteado por esse inspetor. J sofrera muitas
acrimnias do gnero, essa doera como nenhuma outra. No por o
ofensor ser um dos esbirros da PIDE enfim, isso seria o menos
mas porque era seu conterrneo. Ficmos a saber, ns, jornalistas do
Repblica, que para o telrico Raul Rego a mais execrvel das
ignomnias era um transmontano ser esbofeteado por outro
transmontano, sobretudo sabendo este que o agredido estava
impedido de um simples meneio de rplica. No havia perdo, perdo
de espcie alguma, fosse humano ou divino, para tamanho ultraje. E
justificava o nosso diretor com a erudio de telogo: se Jesus Cristo
fosse transmontano, tambm no perdoaria.
Tenho c uma ideia para o editorial de amanh
Um orgulho infantil e terno leva-me a ir somando as ruas do Pas que
tm o nome do meu corajoso diretor. So j uma dezena, ou quase.
Uma delas, na Amadora, ascendeu a avenida.
Orgulho infantil? Melhor diria: prospia de menino, porque menino
me vejo no centro de uma roda de gente, alvoroado, cicerone de
circunstncia, um dedo espetado para a placa que tem o nome do
meu diretor, ao mesmo tempo que me empertigo ao proclamar,
solene:
Foi um dos homens mais ntegros e corajosos que conheci! Que
coragem! E que honra, a minha, ter estado ao seu lado em lutas
inesquecveis pela liberdade de expresso! Cometeu erros? Decerto.
Procedimentos evitveis? Com certeza. Um ser humano nunca
perfeito. Tendo oportunidade, um dia bichanar-lhe-ei, como quem
no quer a coisa, que ele deveria, na minha opinio, ter ponderado
melhor numa ou noutra situao. Porm, nesta grande e festiva
avenida do Centenrio evitarei as veredas, tambm a petite histoire,
embora alguns de ns no esqueam que Raul Rego protagonizou
historietas engraadssimas. No. Esta crnica do Centenrio abriu
com Ruben A. e com o autor de O Mundo Minha Procura vai
encerrar na exaltao de Raul Rego um homem corajoso, ntegro,
combatente a tempo inteiro durante uma vida inteira. Anos de luta
escreveu Ruben A. trs meses antes de morrer , dedicados
nobilitao do que de humano em gente se encontra.
Neste passo, possvel, mesmo muito possvel, que levante um
pouco a voz para ser bem ouvido:
Antes e depois do 25 de Abril.
Logo se sobrepe a figura franzina de Raul Rego, sempre um tudo-
nada agitado, retardando, numa tnue gaguez, a articulao das
palavras:
Isso passado. Agora temos de seguir em frente. Tenho c uma
ideia para o editorial de amanh Onde pra a minha pequena
mquina de escrever?... No demoro. Preciso de vinte, trinta
minutos Pode ser?
Na abertura: Raul Rego visto por Henrique Tigo
PARECER CENSRIO SOBRE O LIVRO
HORIZONTES FECHADOS, DE RAUL REGO
PROPONDO A PROIBIO DO MESMO
(1969 / CONSULADO MARCELISTA)
Constitui ou constituiu-se este livro um panfleto de ataque ao
Governo, como se infere logo claramente do Prefcio, onde
claramente (sic) se estrutura esse plano de ataque.
Composto, em grande parte, por artigos que tiveram a interveno
da Censura, como confessa o Autor, bastaria isso para o tornar
censurvel.
Mas logo o primeiro captulo, "A Censura Imprensa", uma
diatribe desmarcada e solta contra esse servio oficial, isto : contra
quem o instituiu e legislou, desbocando-se, aqui e alm, em frases de
apreciao insultuosas ou ridicularizantes para quem exerce a
Censura.
Mais adiante, a meio do livro, vem o captulo inconveniente, pelos
seus expressionismos, "O exlio do Bispo do Porto", e finalmente a
ltima parte, "Primavera Poltica", que constitui um ataque cerrado,
em que a ironia corre parelhas com a intolerncia actual poltica
nacional, encarnada no Senhor Presidente do Conselho, Dr. Marcelo
Caetano.
Parece-me de proibir um to descabelado panfleto poltico.
O parecer, com imediato despacho favorvel, foi cancelado no ano
seguinte (1970) quando Marcelo Caetano comeou a propagandear
que no havia Censura no pas. Alguns livros proibidos beneficiaram
deste anncio, mas na realidade no se observou a mnima alterao
nos procedimentos censrios relativamente aos rgos da
comunicao social.
PEDRO FOYOS | ARQUIVO HISTRICO DE IMPRENSA
Nota. To logo se concluiu a impresso e acabamento do livro, Raul
Rego apressou-se a entregar pessoalmente um exemplar autografado
na residncia de Marcelo Caetano. Este procedimento de frontalidade
e de cortesia foi de imediato objeto de uma minuciosa informao
policial de que guardo cpia. Um episdio risvel que relatarei noutra
ocasio. PF
JUSTIFICAO MANUSCRITA DE UM CENSOR
PARA SE PROIBIR UM EDITORIAL DE RAUL REGO:
Cheio da pior inteno poltica
imenso o acervo de textos de Raul Rego que a Censura golpeou
parcialmente ou na totalidade. Ao longo de dcadas, raros foram
aqueles que permaneceram intocados aps a perscrutao exercida,
no caso de Raul Rego e de outros autores "problemticos", por uma
elite censria especialmente atenta ao que podia transmitir-se "nas
entrelinhas". Por vezes, o censor fundamentava, na prova tipogrfica,
a "justeza" da proibio. Foi o caso do editorial de Raul Rego aqui
reproduzido. Leia-se a nota manuscrita na margem direita.
PEDRO FOYOS | ARQUIVO HISTRICO DE IMPRENSA
FICHA DA PIDE/DGS
Aljube e Caxias na "biografia prisional"
do jornalista Raul Rego
A ficha da PIDE/DGS relativa a Raul Rego e preservada no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo regista os perodos de priso a que foi
sujeito o jornalista, nas cadeias do Aljube e de Caxias. No
mencionada uma primeira priso em 1945, quando Raul Rego era
membro do recm-criado Movimento de Unidade Democrtica (MUD).
O mbil das recluses estriba-se sempre numa conhecida frase: por
exerccio de actividades contra a segurana do Estado.
NOVO ESPAO EDITORIAL
EM HOMENAGEM A RAUL REGO
Gratamente informamos que Pedro Foyos inaugurar neste stio
no dia 15 de abril (data exata do centenrio de Raul Rego)
um novo espao editorial intitulado
O CASO DO JORNAL ASSALTADO
com revelaes e evocaes de episdios
que ficaram historicamente inventariados sob o nome de
O CASO "REPBLICA"
(dirio de que Raul Rego era diretor em 1975).
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