querida mari(oficial) · pelo sabor da comida bem feita. ao redor da mesa, três pessoas ignoravam...

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Créditos

QUERIDA MARICopyright © 2013 Maud Epascolato

Todos os direitos reservados.

RevisãoBárbara Parente

Projeto Gráfico e Diagramação

INDIE 6 | Design Editorial

Edição DigitalINDIE 6 | Design Editorial

www.indie6.com.br

O mal existe. E está em toda parte.

Silêncio.O tique-taque do relógio de

parede da cozinha era o único somaudível. Antes daquele silênciosepulcral, ninguém havia se dadoconta do quão alto era o som. Ecomo era irritante! O esforço para semanter uma mínima concentração eraperdido. Aquilo incomodou Edgar.

Principalmente quando as batidas deseu próprio coração se mostrarammais altas que o ruído produzidopelo objeto.

À sua esquerda estava Estela, airmã, com o rosto sisudo econcentrado, como se estivesseanalisando uma teoria de físicaquântica dificílima. Seu estado deespírito não era dos melhores.Sempre que o marido viajava atrabalho, ela se mostravapreocupada. Ela mesma não sabia

com o quê. Uma sensação deabandono e desassossego adominava cada vez que a casa ficavamais vazia.

De maneira incomum, o climana cozinha − um dos poucosambientes em que um sorriso eramais fácil de ser retribuído − estavapesado. A família se reunia ao redorda mesa, pronta para um deliciosojantar, em que colocariam aconversa em dia e trocariamexperiências. No entanto, aquela

noite de sexta estava diferente...A lâmpada de sessenta volts

iluminava o ambiente comtranquilidade. Parte dela pareciaqueimada, com a luz bruxuleantesolicitando descanso. Apenasaguardavam que ela desse um últimofio de energia para trocá-la.

O tilintar de colheres nospratos se iniciou. Apenas os ruídosdo relógio, das colheres e das bocassorvendo com avidez o líquidofumegante estavam presentes.

Nenhuma voz. Nenhum murmúrio.Nenhuma exclamação de aprovaçãopelo sabor da comida bem feita. Aoredor da mesa, três pessoasignoravam a presença uns dosoutros: Estela, Edgar e Adriana −uma família.

Edgar levantou os olhos,encontrando o olhar seco eprofundamente azul do outro lado damesa. Havia uma boneca, sentadalogo em frente. Tinha cílios muitolongos e sobrancelhas bem altas,

quase no meio da testa. Seu corpoparecia feito de borrachaplastificada (ou seria um plásticoemborrachado?). Não era grande,poderia ser colocada num coloinfantil sem problemas. Os cabeloslouros e curtíssimos assemelhavam-se mais a palha. Usava um vestidobege de tecido de chita. Umaporcaria mal cortada e simplesdemais. Estava muito suja e osdedos pareciam feridos. Seusemblante era divertido, e Edgar

pensou que talvez ela fosse a únicase divertindo naquele momento.

O olhar da boneca não eradoce, como ele acreditava quedeveria ser. Bonecas deveriampassar coisas boas para as crianças,como objeto do carinho de criaturastão puras e de alma tão elevada.Mas aquela... Meu Deus, como erafeia! Chegou a pensar se a sobrinhanão se assustava toda vez que a via.

Edgar sorveu mais uma colherda sopa de ervilha, fazendo um

barulho incômodo. Ele fitou Estela,mas esta parecia presa ao prato,observando o repolho que boiava nocaldo esverdeado.

Ele levou mais uma colherada àboca, encontrando os olhosesbugalhados e de pupilas dilatadasda boneca.

Pupilas dilatadas?Aquela visão o fez estacar.

Seus olhos ficaram fixos nos dela,esperando que suas pupilasvoltassem ao normal. Ora, não

acabara de ver aqueles mesmosolhos divertidos? Não, não vira. Osolhos da boneca o miravam demaneira diferente. E não mais com aexpressão divertida. Eles pareciamquerer engoli-lo! E as pupilas?Estavam menores quando ele a fitoupela primeira vez... Será que a luzda lâmpada o enganara? Ou eleestava sofrendo das mesmasalucinações que o acometeram emjaneiro daquele mesmo ano quandoentrou no sótão malcheiroso da

casa?Os lábios em formato de

coração da boneca formavam umsorriso nauseabundo. Dois pequenosdentes apareciam logo abaixo dolábio superior, separados,pontiagudos. Assemelhavam-se aosde uma cobra prestes a dar o bote.Sua mente começou a imaginaraqueles dentes afiados fincados emsua pele... Ele estremeceu.

Um engasgo o fez tossir comesforço. A vermelhidão de seu rosto,

contorcido pelos espasmos, assustouEstela, que correu para ajudá-lodando-lhe tapinhas nas costas.

− Estou passando mal... – disseele, com a voz rouca, entretossidelas.

– Estou vendo – rebateu a irmã,ainda lhe lançando tapas nas costas.

Quando a tosse cessou, ele nãoresistiu. Uma boneca na cozinha nãoera usual ali. Estela era muitoorganizada quanto a isso. Osbrinquedos de Adriana ficavam no

quarto da menina. O máximopermitido era a sala, onde a pequenapoderia brincar sem problemas, masdevendo guardar tudo depois determinado.

– Por que esta boneca está aquina hora do jantar?

Adriana fitou-o com ainocência que a fazia tão especial.

– Ela é minha amiga, tio.Trouxe a Mari aqui para conhecervocês.

– Mari? – perguntaram em

uníssono, estupefatos.Estela sentou-se e passou a

mão por uma mecha de cabelo quelhe caía sobre os olhos.

– Sim. É o nome dela. Por quê?– Filha, este é o nome da sua

avó. – A mãe fitou-a com o olhartriste e a testa franzida. – Por quecolocou o nome da vovó nessaboneca tão...? – Ela parou; seusolhos passearam com nojo pelaboneca imunda.

– Não coloquei o nome nela,

mãe. Foi ela quem disse que sechamava Mari.

Edgar sorriu. Adrianaprovavelmente quis homenagear aavó, falecida havia três meses.

– Ah, ela disse... – fez a mãe,zombando. – Então diga a ela queprecisará trocar de nome, está bem?Não quero o nome da minha mãenessa boneca horrível.

– Mãe, esse é o nome dela!Não posso pedir para ela trocar denome. Você se lembra? Certa vez, eu

quis trocar o meu; queria me chamarJéssica, mas você me disse que nãopoderia trocar.

– Mas Adriana é um nomelindo, filha. Por que queria trocar?

– Gosto de Jéssica. Lá naminha escola, conheço quatromeninas que se chamam Adriana.Não conheço nenhuma Jéssica.

– Isso mostra que nome lindovocê tem! Todos colocam esse nomeem suas filhas. – Ela sorriu, mas seurosto se fechou em seguida ao

encarar a boneca sobre a mesa. –Onde conseguiu essa boneca,querida? Não me lembro de ter lhedado...

– Encontrei no sótão. Elaestava chorando...

Edgar soltou a colher e sentiuum calafrio. Seu rosto anuviou-se. Amenção do sótão o deixavaperturbado, fazendo-o retornar ajaneiro, quando presenciou aquelesfatos que tanto lhe tiraram o sono.Ele nunca mais foi o mesmo. Nunca

mais subiu os degraus que levavamao recinto escuro e úmido, onde selargavam os bagulhos sem maisserventia da família. De repente, alembrança do pai e da música quetocava naquele dia surgiu nítida emsua mente.

– A boneca estava chorando nosótão? Que história é essa, Adriana?– perguntou Estela, franzindo a testa.– Pare de inventar essas coisas! Jánão basta o que aconteceu com o seutio naquele sótão?

– É verdade, mãe. Mari estavachorando. Achei estranho e fui até osótão para ver o que era. Mariestava lá. Não podia deixá-lajogada. Ela precisava de mim...

– Está bem! Não vou discutirisso com você. Mas tire-a de cimada mesa de jantar – ordenou.

– Por que ela não pode ficaraqui na mesa?

– Porque ela é feia, velha esuja! E não se coloca um objetonessas condições sobre a mesa na

hora do jantar. Já lhe ensinei isso! –A resposta de Estela foi dada comaspereza e com a voz elevada.

– Tio Edgar também é feio,velho e ainda não tomou banho eestá na mesa do jantar! – rebateuAdriana gritando.

Edgar virou-se para a menina eabriu a boca, com a intenção deresponder alguma coisa, maspreferiu se calar. Certamente ela nãopensou antes de falar. Crianças... Denada adiantaria ficar indignado

nesse momento ou tentar se defenderda lógica de uma criança de noveanos.

– Adriana! – repreendeu Estela,com os olhos arregalados e umadureza que raramente manifestava. –Peça desculpas agora ao seu tio!

– Estela, deixe isso para lá...Não fiquei ofendido – tentouinterceder.

– Adriana, estou mandandovocê pedir desculpas agora!

A menina olhou para a mãe

com mágoa. Seus olhos brilhavam,tomados de lágrimas. A boca,cerrada, fazia um bico de raiva. Elaabraçou a boneca e saiu correndo dacozinha.

– Adriana, volte aqui!– Estela, por favor, deixe-a. –

Edgar tentou acalmá-la. – Ela estáchateada, porque você não gostou daboneca. Depois vocês conversam.

– Edgar, ela é minha filha.Preciso educá-la. Adriana foigrosseira. Ela não é assim... Não lhe

ensinei isso e não admito que ajadessa maneira. – Ela fez uma pausa,tentando normalizar a respiração. –Ela nunca procedeu desse jeito, meuirmão! E por causa de uma bonecaridícula! Ela tem tantas bonecasbonitas... Por que gostou daquelacoisa horrorosa?

– Não sei, mas... Vá entenderas crianças...

Adriana remexeu-se na cama, osono agitado. Os gritos da mãe nanoite anterior a deixaramaborrecida, porém talvez elaestivesse certa. Mães eram assimmesmo: chatas, cheias de regras,cobradoras. Mas acertavam sempre.Ainda que Estela fosse rígida emexcesso às vezes. Não sentia raiva

da mãe. Apenas não estavaacostumada a ouvi-la gritar. Sentia afalta do pai. Quando ele estava emcasa, tudo parecia mais leve. Haviaa sensação de maior proteção. O tioEdgar não poderia proteger ninguém,nem ele mesmo...

Eram quase quatro da manhã.Ela virou-se na cama. A dor

tomou seu coração. Um pesadelo seinstaurava no subconsciente. Era opeso de alguém, a força de umsentimento rancoroso e

amedrontador. Ela gemia para sedesvencilhar dessa dor, mas a forçaera intensa demais para uma criançaconseguir resistir.

De súbito, no meio daescuridão, ela conseguiu divisar umcorpo – um corpo idoso, baixo, deformas arredondadas, quecaminhava em sua direção. VovóMari, ela pensou, sorrindo.

A mulher se aproximou e tocouseus cabelos castanhos com doçura.Era mesmo sua avó materna, que

deixara a terra dos vivos e foramorar ao lado de Deus. Seu olharcândido encontrou os olhos vívidosda neta. Ela balbuciava algumaspalavras, mas Adriana nãoconseguia ouvi-las a princípio. Atéque estas finalmente penetraram amente sonolenta da menina:

Cuide dela. Cuide muito bemdela para mim. Não se permitaficar longe dela, meu amor. Caso airrite, fique alerta e tome cuidado...

Num segundo, a imagem se

desfez, levando consigo osignificado daquelas palavras.Adriana estendeu o braço para pegá-la, mas um pó caiu-lhe nos olhos,deixando sua visão turva. Aescuridão tomou conta do sonho,mas não por muito tempo. A imagemhorrenda de um cão manchado desangue apareceu, correndo raivosoem sua direção. Ele sumiu antes detocá-la. Atrás dele estava Estela, aroupa também suja de sangue; nasmãos, um cutelo. Ela olhava para a

filha com os olhos vazios, os olhosda morte. Adriana gritou,desesperada. Logo atrás estava vovóMari, caída, banhada em sanguevivo. Na testa, a marca deixada pelocutelo. A mãe levantou o instrumentomais uma vez para desferir umúltimo golpe e...

Mamãe! Mamãe! Não! Não! Éa vovó Mari. Pare, por favor...

Ela teve a sensação de quealguém forçava um travesseirocontra o seu rosto enquanto dormia.

Num ímpeto, dobrou o corpo,tocando o peito magro com osjoelhos. O suor escorria por suatesta, e o fôlego lhe faltava. Elatentou puxar o ar com sofreguidão, eisso lhe causou uma dor intensa.Fechou os olhos e começou a chorar.Olhou para fora e viu os primeirosraios do Sol penetrarem timidamenteo quarto através da janela.

Mari permanecia sentada nacadeirinha de balanço próxima àjanela, confortável e impassível

como toda boneca deveria ser.

Chorando, Adriana estacou na

entrada da cozinha, onde encontrou amãe, a panela de pressão já no fogochiando e impregnando o ar com ocheiro forte do feijão preto. Aoouvir o seu gemido triste e lhe notaro olhar de arrependimento, esta sevirou.

– Desculpa, mamãe.Desculpa... – repetia ela, com a vozafetada pelas lágrimas e pelo narizentupido pela secreção. – Nãoqueria aborrecer você. Não queria...

– Tudo bem, meu amor. –Estela sentou-se e abraçou-a,acarinhando e enxugando seu rosto.– O que houve com você? Por queestá assim? Fiquei aborrecida, sim,mas está tudo bem. Não precisachorar... Dê-me um beijinho...

Adriana obedeceu e abraçou-a,

repousando a cabeça no ombro damãe.

– Tive um pesadelo, mãe...Com vovó Mari...

– Ah, minha querida, não fiqueassim. O que aconteceu? – Estelafranziu a testa. – Você nunca foi deter pesadelos...

– Sonhei que você haviamatado a vovó! – revelou, com osolhos arregalados.

– O quê? Meu Deus! Que coisahorrível! Não fale uma besteira

dessas...– Você matou a vovó com um

cutelo, mãe... – Adriana chorava esoluçava.

– Jesus! Que horror, minhafilha! Não diga uma coisa dessas!Um cutelo? – Estela pareciaseriamente preocupada com essarevelação.

Um cutelo. Deixava um na partede cima do armário da cozinha, ondeguardava os objetos cortantes, bemlonge do alcance de Adriana. Porém,

ela percebera no dia anterior quefaltava um objeto ali. E era o cutelo!O único cutelo desaparecera dacozinha. Ou Wilson, seu marido, oguardara em outro lugar? Aquilo adeixou apreensiva.

Enquanto isso, no lado externoda casa, Edgar cortava a grama dojardim. Não ouvira a sobrinhaacordando, tampouco seus lamentose choramingos. A máquina de cortargrama fazia um bom trabalho, masera barulhenta demais. E a grama

estava tão alta que ele precisavapassar duas vezes no mesmo lugar.

Até que a máquina parousozinha. Emperrou na raiz de umaárvore e não voltou a funcionar. Eletirou o boné que usava e enxugou atesta. Olhou para a máquina parada,decepcionado. O que faria agora?Levantou-a e notou um galho presona lâmina. Uma fumaça brancacomeçou a subir. Estava quebrada.

Impaciente, Edgar balançou acabeça e olhou para o outro lado.

Parte da grama estava bem cortada,baixa. Os arbustos estavam secos.Os passarinhos tentavam fazerninhos ali, enquanto um gatoobservava, com a cabeça baixa e osolhos vidrados, pronto para saltarsobre as aves. O cachorro da vizinhalatia sem cessar. O latido rouco,forte, desesperado. Ele se virou paramandá-lo parar e...

Ele viu.Sim, estava ali. Estacou de

repente, o coração galopando dentro

do peito. O que era aquilo na janelado quarto da sobrinha? Ele piscouvárias vezes com a intenção de fazersumir a imagem que mais pareciauma assombração.

Dois olhos enormes oencaravam! Dois olhos desumanos,insensíveis e sedentos... dele!

Edgar deu dois passos para tráse tropeçou na máquina de cortargrama, que começou a funcionar derepente. Ele se levantou com umsalto e desligou-a, sem desviar os

olhos daqueles que o perscrutavam.Olhos enormes e de um azul frio... Asobrinha! A pequena Adriana!

Ele levou a mão ao peito eabriu a boca, angustiado, querendogritar. A menina estava ali, coma q ue l a coisa! Estaria dormindoainda? Ela acordaria do sonoprofundo? Talvez jamais acordassenovamente...

Edgar imaginou a cena terrível,temendo que fosse real. Seu sensode urgência foi acionado, mas as

pernas não obedeciam. De repente, orosto de olhos enormes se contorceu,maléfico, num sorriso pavoroso, osdentes de cobra mal cabendo dentroda boca.

– Adrianaaaaa!O grito de Edgard fez Estela

dar um pulo do sofá. Nessemomento, viu o irmão entrar pelacasa como um foguete, gritandocomo um louco e derrubando o quehavia pela frente. O som dos vasos ebibelôs se quebrando fez Adriana

parar de chorar e abraçar a mãe,amedrontada.

Edgar não as viu, cego etomado pelo desespero de encontrara sobrinha ainda com vida.

A porta do quarto da menina foiaberta num ímpeto. A forçadepositada foi tão grande que elaabriu, bateu na parede e voltou,fechando-se contra o rosto dohomem enlouquecido. Ele nãodesistiu e abriu-a novamente. Masestava tudo no lugar ali: a cama

vazia, a janela com a cortina puxada.E Mari...

– Mari? – chamou ele, hesitanteem entrar.

O silêncio e a tranquilidade doquarto não estavam de acordo com oque vira do lado de fora. E eraperturbador...

– Mari? – Nenhuma resposta.Embora soubesse que uma bonecanão responderia, aquilo o deixoumais apavorado ainda. Eleprecisava encontrar aqueles

terríveis olhos azuis. – Mari? Ondeestá?

Estela apareceu atrás dele, ospassos curtos, os braços cruzados, arespiração forte fazendo seu peitosubir e descer com rapidez.

– Edgar, está louco? Estáchamando uma boneca?

Ele a fitou, o suor empapando acamisa. Mas nada disse.

– O que está acontecendo destavez?

– Adriana... – começou ele. –

Adriana não está aqui... Estela, ondeestá sua filha? Pelo amor de Deus...

– Ela estava comigo na salaquando você passou quebrandotodos os meus enfeites, parecendoum bicho! O que está acontecendo,afinal?

– Eu vi Mari na janela, olhandopara mim...

Estela sorriu, balançando acabeça.

– Ora, de novo isso, meuirmão? Já não basta o trauma

daquele sótão? Vai ficartraumatizado com uma bonecatambém? Está certo que é umaboneca horrorosa, que assustaqualquer um, mas... Bonecas não têmvida! – falou, carinhosa. – Tambémfico incomodada com aquela coisa.– Ela fez um gesto de repulsa. – Nãogostaria de ter que chamar aquelaporcaria de Mari... Nossa mãe nãomerece... Enfim! Procure nãoassustar Adriana com essasloucuras. Minha filha precisa

crescer num ambiente saudável.Ela pegou a mão de Edgar e

conduziu-o para fora do quarto, masele resistiu um pouco, ainda olhandopara a cama vazia da menina. Seucoração pedia para que ele ficassealerta. Alguma coisa fora do comumestava acontecendo. A porta doquarto se fechou atrás deles.

Debaixo da cama de Adriana,havia algo mais que brinquedoscomuns ou caixas de sapatos. HaviaMari, jogada, escondida. Ela sorria,

a boquinha vermelha formando umalinha suave, enquanto os dentessurgiam maiores e mais pontiagudos.

Com ela, a lâmina brilhante docutelo desaparecido...

– Tenho um pouco de medo doque pode acontecer, sabe?

Estela não havia dormido bemà noite. O irmão passara amadrugada inteira fazendo barulhono quarto, abrindo e fechandogavetas e armários e arrastando acama e a cômoda. Ela sabia que eleprocurava pela boneca. Edgar

colocara na cabeça que Marientraria em seu quarto durante amadrugada e lhe golpearia o crâniosem piedade com um martelo.Aquilo a deixava apreensiva etemerosa quanto à sanidade doirmão mais velho.

Agora, ali estava ele, sentado àmesa, observando o copo de cafécom leite. Tinha os olhos caídos, asolheiras mais proeminentes e asbolsas sob os olhos mais densas,resultado da noite em claro.

Ele não respondeu à irmã.Permaneceu ali, a cabeça baixa,enquanto o líquido quente esfriava.

– Estou preocupada comAdriana. Ela está tão diferente...Passou quase que o sábado inteirochorando, com medo, achando quematei a avó dela... Meu Deus! Quesituação terrível...

A menção ao nome da sobrinhafê-lo levantar os olhosavermelhados.

– Aquela boneca é

endemoniada – disse ele, olhandocom gravidade para a irmã. – É elaque está influenciando a menina... Sóde tê-la encontrado naquele sótão...

– Ai, Edgar, não posso aceitara ideia de minha filha sofrendoinfluência negativa de uma simplesboneca que ela encontrou num sótãoque você diz ser mal-assombrado –interrompeu Estela, o olhar grave. –Mesmo sendo muito feia, imunda,com um semblante sarcástico demaispara uma boneca... é apenas um

objeto inanimado. Não há vida ali –ela concluiu. – Confesso... Nãogosto dela também. Mas não podeter essa influência toda! Adrianadeve estar com saudades do pai, sóisso...

— Sei bem o que vi naquelelugar – rebateu ele com a vozalterada. – Não se trata apenas deinfluência, Estela. Acredite no mal.Você precisa acreditar para poderver e compreender o que estáacontecendo com sua filha. Acredite,

Estela. Acredite! O mal existe. Eestá em toda parte...

Edgar falava com tantaseriedade que era quase impossívelnão acreditar nele. Estela sentiu umcalafrio e saiu da cozinha, deixando-o tomar o café em paz.

Ela entrou em seu quarto e lheveio à mente a imagem do maridoWilson. Como sentia falta dele.Gostaria que ele estivesse ali,ajudando-a a resolver as questõesque a preocupavam. Além da filha,

ainda havia Edgar. O irmão eradoente, e Adriana gostava muito dotio. Por isso, ele poderia, demaneira inconsciente, colocar coisasna cabeça da menina e torná-la tãoalucinada quanto ele. Ela temia isso.

Ao se aproximar dapenteadeira, seu rosto se iluminou.O sorriso tomou os lábiosapreensivos da mulher. Havia umbotão de rosa colocado entre osvidros de perfume. Um lindo botãovermelho.

– Ah, Wilson... Mesmo longe,você ainda me apronta surpresas...

Estela pegou o botão e sorveu odelicado perfume que emanava dele.Levou-o para perto do coração,pensando no marido carinhoso queencontrara e com quem viveria portoda a vida. O sorriso não a deixoupor nenhum segundo, enquantopensava em Wilson.

Havia um bilhete pendurado naparte de baixo do botão, preso aocaule. Um papel simples, escrito à

caneta. Ela tirou-o e leu, mascertamente não era o que esperava.Sua testa criou fissuras de espanto, ea palidez de seu rosto era nítida. Obotão de rosa foi jogado no chãocom indignação. O semblante suavese transformou numa carranca deraiva.

– Mas que brincadeira é essa?Ela saiu do quarto, pisando

com dureza. A impaciência e airritação eram evidentes, e ela nãoestava disposta a tolerar mais

qualquer coisa que atrapalhasse arotina de sua família, a rotina de suavida.

No pedaço de papel, escritocom letra infantil, apenas duasfrases:

Gostou da flor? Encontrarámuitas dessas em seu velório...

Estela entrou no quarto de

Adriana com um estrondo. A filha,que dormia, levantou a cabeça, osolhos inchados de sono e de choro.

– Foi você, não foi? –perguntou, agressiva. – Foi você queescreveu aquele maldito bilhete!

– Que bilhete, mãe? – A vozfraca e sonolenta de Adriana ecoou,enquanto ela sentava na cama.

– Não se faça de santa, menina!Foi você que escreveu o bilhete edeixou a flor no meu quarto?Responda!

Adriana balançou a cabeça,atordoada, ainda sem entender o queestava acontecendo.

– Não fiz nada, mãe. Nem seido que está falando... Que flor?

– Não vai responder, Adriana?– Mãe...– Onde está? – perguntou a

mulher, ensandecida, virando-se emtodas as direções. – Ah, aqui está! –Ela pegou Mari e encarou seu rostozombeteiro. – Não pense quecontinuará aqui, rindo da minha

cara, boneca dos infernos!– Mãe? O que foi?– Vou dar um fim nessa

porcaria de uma vez por todas! Sópode ser você, sua bonequinhamaldita! Não vai continuar com isso!NÃO VAI!

Estela saiu do quarto, urrandocomo um animal feroz; os passosretumbavam, pesados, sobre ostacos de madeira. Era como se umamulher frágil se transformasse emalgo três vezes maior, em tamanho e

em força. Estela tomara asdimensões de um monstro. Contudo,seu medo era maior que sua raiva. Eera esse medo que tentava guiá-lanesse momento.

Da cozinha, Edgar estranhou aoouvir os gritos da irmã. Ao passarpela sala, ele viu os olhosesbugalhados dela. Mari estava emsuas mãos, sendo espezinhada echacoalhada com fúria. Algumacoisa estava errada...

– Mãe! Mãe! O que vai fazer

com Mari? – Os gritos de Adrianavinham do corredor. A menina,ainda de meias e pijama, correu pelasala, atrás da mãe. Edgar segurou-a.– Tio, a mamãe vai machucar aMari. Não deixe! Ela é minhaamiga...

– Vá trocar de roupa, pequena.Uma mocinha não sai de casa depijama. Precisa ter bons modos.Mamãe vai só cuidar da Mari. Nãose preocupe – disse ele, enquantosegurava a menina e tentava levá-la

de volta ao quarto.– Tio, não viu que a mamãe

levou a Mari? Vocês não gostam daMari, não gostam da minha amiga. –Dizendo isso, Adriana deu um chutena canela de Edgar, que soltou umimpropério, e correu para fora decasa, encontrando a mãe próxima àcerca-viva.

– Onde você colocou a Mari? –gritou aos prantos. – Onde está ela?

– Já para dentro! – berrouEstela. – Ela foi dar um passeio para

nunca mais voltar! Não quero aquelacoisa dentro da minha casa! Está meouvindo, Adriana? Está me ouvindo?

– Você não quer que eu tenhaamigos! Você é má! Não gosto maisde você! Eu só tenho a Mari! Porque não entende isso?

– Volte já para o seu quarto! –ordenou a mãe, com o rosto muitovermelho. Edgar chegou a pensarque ela teria uma síncope. – E nãosaia de lá até que eu dê ordem parasair, entendeu? Você está de castigo!

Adriana correu para o quarto enão saiu de lá até o dia seguinte.

A menina entrou na cozinha, osolhos inchados e avermelhados, apele pálida, os cabelosdesgrenhados. O rosto estava semexpressão. Havia chorado odomingo inteiro, trancada no quarto,chamando pela amiga. A mãe nãolhe dera autorização para sair, masestava na hora do café, e ela

precisava se alimentar.Ela sentou-se na cadeira. Estela

estava de costas, preparando o café,virada para a pia, e não viu quandoa filha entrou. Adriana não tirou osolhos magoados e frios da mãe. Nãoera o olhar de uma criança doce denove anos – mas o olhar duro de umfelino selvagem, pronto para abatera presa.

Edgar, que havia saído paracomprar pão, entrou na cozinha jácomentando as notícias da rua:

– Estela, Estela – chamou ele. –Luiza está desesperada, só sabechorar. O cachorro dela morreunesta madrugada e ninguém sabe oque aconteceu... Foi uma coisahorrível! Parece que a mandíbula dopobrezinho caiu e...

Ele estacou.Sobre a mesa da cozinha estava

Mari, suja de terra e tomada demordidas.

A expressão de Edgar setransformou numa máscara tensa e

apavorada. Seu coração disparou, eele não conseguiu dar mais nenhumpasso.

– Sim, Edgar, estou ouvindo...– disse a irmã. – O que houve com ocachorro da vizinha?

Estela se virou e tomou umchoque. A garrafa de café seespatifou no chão. Mari estava ali,olhando para ela, os olhos lheperfurando a alma. Acima do olhoesquerdo, a marca do dente afiadodo cachorro de Luiza.

Mas como? Jogara a boneca aocachorro no dia anterior. Comoaparecera novamente em sua casa? Ecomo o cachorro havia morrido?Havia dado uma ordem a Adriana.Não queria a boneca de novo ali. Eela desobedecera! De repente, sentiuuma força crescer dentro dela, umaraiva latente, um sentimentoavassalador e impulsivo. Nãopoderia aceitar isso, esse inferno.Ela fitou a filha e sentiu a frieza deseu olhar, mas aquilo não era o

suficiente para intimidá-la.– Eu não lhe disse que não

queria essa coisa dentro de casa?Onde a encontrou?

– Não a encontrei – respondeua menina, séria. – Ela apareceu nomeu quarto hoje de manhã. Disseque estava com saudades...

Estela voltou-se para Edgar,bufando de raiva.

– Foi você, Edgar? – acusou,imaginando que o irmão havia feitoaquilo para que ela aceitasse suas

convicções sobre a boneca.– Deus que me perdoe se eu

fizer uma coisa dessas! – Eleparecia indignado. – Essa bonecame dá calafrios...

A cabeça de Mari estavavoltada na direção de Estela, mas osolhos virados para ele, desafiadorese sarcásticos. O homem sentiu umarrepio lhe percorrer a espinha.Jogou o saco de pães sobre a mesa egirou os calcanhares, duro comouma estátua de pedra-sabão.

– Não vou permitir que acabecom a minha paz, entendeu? – Estelafalava com a boneca. – Não voupermitir que destrua a minha família!

Ela agarrou Mari diante dosolhos atônitos da filha e lançou-apela janela com ódio crescente. Suavoz estava rouca e transtornada.Estela já não era uma mulher sã; nãohavia mais nenhum controleemocional nessa mãe de famíliacomum.

Adriana gritou e correu para

fora, encontrando Mari caída nojardim, sem um dos braços. Ela seajoelhou, enquanto ainda ouvia amãe berrando.

– Suma da minha frente,criatura maldita! Não apareça maisaqui! Eu preciso de paz, Senhor dosdesgraçados! Destrua essa coisa!Vou acabar com você, Mari! Vouacabar com você! – esbravejava.

– Está vendo, Drica? Sua mãenão gosta de mim. Hoje ela memachucou. Amanhã ela vai me

matar, igual ao seu sonho... Você selembra do sonho? Você se lembrado que ela fez comigo?

Adriana fez que sim com acabeça, atordoada. Não sabia se avoz que ouvia era de vovó Mari oude sua própria consciência. Só sabiaque falava de forma suave e infantil,como uma amiga muito triste.

– Você vai deixar que ela façaisso comigo? Vai deixar que memate?

– Não, não! Você não pode

morrer...– Então faça alguma coisa.

Não espere mais! Sua mãe precisapagar pelo que está fazendo! Evocê precisa dar um fim a essaviolência – ordenou, maléfica; a vozficou mais grossa, mais forte, maisexplosiva. A própria voz dodemônio. – E só há uma forma defazer isso! Você sabe qual é, nãosabe? Se não fizer isso, vamoscontinuar sofrendo nas mãos de suamãe! Você quer isso? Quer ficar de

castigo todos os dias?Adriana balançou a cabeça de

um lado para o outro, chorando. Aforça da boneca sobre o seu ânimoera impressionante e assustadora, aomesmo tempo.

– Não, não quero... – respondeuela, o rosto molhado. – Eu precisofazer alguma coisa. Preciso fazerisso tudo parar...

Naquela mesma noite, depois

que a mãe e o tio foram dormir,Adriana saiu do quartosorrateiramente e seguiu em direçãoao jardim. Usava um pijama deflanela com flores estampadas e umpar de meias brancas. O friozinho danoite quase a fez continuar na cama,protegida pelo cobertor, masprecisava agir, precisava tomar umaatitude em relação à situação queatordoava sua vida.

Ao passar pelo quarto do tio, amenina parou para observar. Eleestava deitado, olhando para o teto,gesticulando e falando como sehouvesse mais alguém ali dentro.Não sabia se dormia ou se estavaacordado. Mas conhecendo o tiocomo conhecia, ela não sepreocupou. Ele é doidinho, pensouela. Refletiu sobre como gostavatanto do tio e em como ele lheparecia tão frágil.

Em seguida, esgueirou-se até o

quarto da mãe. Estela dormia,fazendo ressoar os ruídos do sonosolto. A respiração estava lenta, osolhos mexiam de forma muitorápida.

– Mãe? – sussurrou. Semresposta.

Satisfeita com a ausência deresposta, seguiu o caminho. Saiupela porta da sala, ganhando ojardim.

Ela se deteve por um momento.Pensou nas poucas coisas que vivera

até ali. Pensou no pai ausente, quetrabalhava para dar o que comer àfamília. Pensou no tio louco queprecisava de apoio para continuarvivo. Pensou na mãe, nervosa,autoritária, mas que queria o bem.Pensou em Mari... Ah, a queridaMari...

Adriana suspirou. Estavadisposta a fazer aquilo. Não queriaque os desentendimentos e a raivaperdurassem dentro de casa.Também ansiava pela paz no lar

onde morava. Mari tinha razão,precisava acabar com tudo aquilo!

Ela juntou alguns galhos secosno caminho de cimento que levava aporta da frente à rua. Riscou umfósforo e acendeu a fogueira.Colocou pedaços de jornal, queviraram cinzas em questão desegundos. Entrou novamente em casae seguiu até o quarto.

No trajeto, ela encontrou a mãe,acordada e apavorada com o cheirode queimado.

– O que está havendo? Quecheiro de queimado é esse?

Adriana não respondeu.Edgar apareceu na porta, os

olhos vidrados de quem ignorava asituação, mas pressentia que algoruim estava prestes a arrancá-lo deseus devaneios.

– Alguma coisa estáqueimando, Edgar! O que estáacontecendo aqui?

Adriana subiu correndo aescadaria que levava ao sótão.

– Mari? Mari? Onde está você?– chamava.

Estela viu a fogueira lá fora eafastou-se da janela, atordoada.Edgar postou-se ao lado dela, amente girando. Ele saiu e pegou umamangueira para apagar o fogo.

– Mari? Apareça! Sou eu,Adriana, sua amiga...

– Vá embora daqui!Atrás dela, a porta se fechou

com um estrondo.Estela virou-se, alarmada. A

sala inteira rodava diante dela.Essa voz! Essa voz não era de

ninguém que conhecia. Uma vozmasculina, forte, nefasta, cheia demaldade. E falava com sua filha!

– Edgar, Edgar! – gritou ela. –Adriana está falando com alguém nosótão! Pelo amor de Deus, ajude-me!Tem um homem lá em cima!

– O quê? – Edgar ficouapavorado. Seu pesadelo maisaterrador estava retornando. Ele nãopoderia continuar fingindo que nada

acontecia. Precisava ser firme parasuportar. Aquele pesadelo estavaagora chamando uma criança...

– Adriana, abra a porta! –pediu Estela, desesperada, tentandoentrar e chocando-se contra a peçade madeira. – Abra, minha filha!Quem está aí com você?

Dentro do sótão, ela ouviu avoz aliciante que torturava osouvidos da menina:

– Sua mãe não gosta de você equer lhe tirar a única amiga. Você

vai deixar que isso aconteça? Façaalguma coisa, Drica! Se não selivrar dela, ela vai se livrar demim. Você tem que fazer isso. Pelonosso bem!

– Não acredite nisso, filha!Meu Deus, abra essa porta! – elagritava, enquanto jogava o própriocorpo contra a porta.

– Cale a boca, boneca feia! Enão me chame assim! Se eu nãoquero obedecer a mamãe, por quevou aceitar obedecer você? Você

não manda em mim!Ouviu-se um barulho lá dentro.

Objetos caíam no chão e eramarrastados. A voz de Adriana podiaser percebida pela série de gemidosagonizantes. Aqueles sonsatormentavam a mente de Estela, quecada vez mais se atirava contra aporta que impedia a salvação de suafilha indefesa.

– O que acha de brincarmosum pouco, menina atrevida? – dissea voz, demoníaca e irônica. – Deixe-

a entrar...A porta se abriu de repente. O

corpo de Estela foi lançado paradentro do sótão, e então a porta sefechou. Agora eram só Adriana,Estela e... Mari! Na mão da boneca,o cutelo manchado de sangue.

Estela foi tomada pelo pavor ecorreu para a porta, porém nãoconseguiu abri-la. Adriana estavaferida, mas permanecia firme,disposta a livrar-se daquele fardo.

Do outro lado da porta, Edgar

entrou em desespero.Não consigo. Não consigo.

Não posso entrar aí de novo. Nãofaça isso comigo, meu Deus! Eunão posso...

– Estela, abra a porta! – gritou.– Edgar! Adriana está ferida!

Ajude-me, por favor!– Abra essa porta, Estela! – Ele

chutava, mas a porta de madeiramaciça não cedia. Mesmo semnenhuma chave na fechadura, estavatrancada.

Ele sentiu que alguém mexeu namaçaneta do outro lado, a respiraçãoforte e lenta.

– Estela?– Quer brincar também, seu

medroso? Vou deixar você entrar...Tomado de pavor, Edgar se

afastou num salto. Desceu aescadaria, tropeçando nos própriospés, atordoado. O que faria?Enfrentaria o monstro do sótão, queinquietava sua mente toda vez queolhava para o alto da escadaria? Ou

aguardaria sua vitória sobre afragilidade de Estela e Adriana?

Descartou a segunda opção.Precisava enfrentar a fobia que tantoo atormentava. Pensando assim, elese postou novamente em frente àporta e chutou-a com toda a força.Enquanto isso, os ruídos lá dentroficavam mais intensos.

Edgar ouviu um grito curto esufocado. Um vidro se quebrara. Umchoro contido tomou o ambiente,mas logo cessou.

De repente, somente o silêncio.Ele parou de chutar a porta e

passou a ouvir apenas a própriarespiração e as batidas de seucoração, que lutava por maisespaço, quase lhe rasgando a peledo peito.

A porta se abriu lentamente.Apreensivo, ele se posicionou parasair correndo ao primeiro sinal doser insólito e demoníaco. Mas o queviu sair daquele sótão o deixoualiviado.

A pequena Adriana caminhoucambaleante em direção à porta. Ocorpo magro e vulnerável estavacoberto de sangue. Ela olhava o tiocom uma tristeza aterradora;lágrimas encharcavam seus olhosmeigos. Era como se dissesse queprecisava dele agora. Precisava decarinho para aplacar a dor latenteque se apossaria de seus dias daliem diante...

Em sua mão direita, o cuteloensanguentado; na mão esquerda, a

cabeça da boneca dos infernos,ainda sorrindo, cínica.

Edgar olhou para dentro dosótão e conseguiu ver Mari empedaços. Os braços para um lado, aspernas para o outro, o tronco nujogado aos pés da irmã...

Estela!Ele deu um passo à frente e

perscrutou o estado do sótão. Sanguetomava as paredes, antes verdes. Ocheiro do líquido vermelhoimpregnava o ar de maneira tão

intensa que o fez ter náuseas. Amorte escolhera aquele lugar parapassar suas férias.

No fundo do recinto, eleencontrou Estela, caída, o rostovermelho pela enxurrada que desciade sua cabeça. Edgar se lembrou daúnica vez que vira uma cachoeira,ainda na infância. Ela jorrava águacom uma força tremenda, levandoconsigo tudo o que estava próximo.Ele ficara maravilhado ante oespetáculo da natureza. Nesse

momento, o sangue de Estela era aágua que jorrava... Sua vida sedissipando com o mesmo ímpeto danatureza indomável que tanto oassombrara...

Ele se aproximou da irmã e seajoelhou. A perplexidade estavaestampada em seu rosto, muda econdescendente. Ele balançou acabeça, inundado pelas lágrimasincontroláveis, e invadido pelo maislegítimo sentimento de terror.

Ele tocou os cabelos molhados

da irmã, acarinhou sua cabeça esentiu...

Na testa de Estela, a marcaafiada do cutelo.

Nascida em 26 de maio de 1979 na cidadedo Rio de Janeiro, Maud Epascolato foicriada no município de Angra dos Reis, no

sul fluminense. Leitora assídua e fã deromances policiais e de suspense,começou a escrever histórias de mistérioaos 14 anos. Formada em Letras, Mauddeixou a literatura por alguns anos para sededicar a outras atividades, mas retornoupor entender que é o que melhor sabefazer. Em 2013, publicou seu primeirolivro, “Medo do Escuro e outras histórias”,uma coletânea de contos de horror esuspense.

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