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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
DAMIÃO COSME DE CARVALHO ROCHA
NAS FRANJAS DA HISTÓRIA:
SINGULARIDADE E DISTINÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA LIGA
CAMPONESA DE MATINHOS NA TERRA DOS CARNAUBAIS – PIAUÍ
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
SÃO PAULO-SP
2017
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DAMIÃO COSME DE CARVALHO ROCHA
NAS FRANJAS DA HISTÓRIA:
SINGULARIDADE E DISTINÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA LIGA
CAMPONESA DE MATINHOS NA TERRA DOS CARNAUBAIS – PIAUÍ
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontificia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de doutor em História Social sob a orientação da professora Dra. Maria do Rosário da Cunha Peixoto.
SÃO PAULO-SP
2017
2
DAMIÃO COSME DE CARVALHO ROCHA
NAS FRANJAS DA HISTÓRIA:
SINGULARIDADE E DISTINÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA LIGA
CAMPONESA DE MATINHOS NA TERRA DOS CARNAUBAIS – PIAUÍ
Tese defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de
História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, para obtenção
do título de Doutor em História Social, aprovada em _____/_____/_______ pela
Banca Examinadora constituída pelos professores:
___________________________________________________
Profª. Dra. Maria do Rosário da Cunha Peixoto (PUC-SP)
Presidente
___________________________________________________
Profº. Dr. Antonio Fonseca Neto (UFPI)
Membro
___________________________________________________
Profº. Dr. João Batista do Vale Junior (UESPI)
Membro
___________________________________________________
Profª. Dra. Estefânia Knotz Canguçu Fraga (PUC-SP)
Membro
___________________________________________________
Profª. Dra. Heloísa de Faria Cruz (PUC-SP)
Membro
___________________________________________________
Profª. Dra. Maria Antonieta Martines Antonacci (PUC-SP)
Suplente
___________________________________________________
Profº. Dr. Marcos Antônio da Silva (FFLCH/USP)
Suplente
3
AGRADECIMENTOS
Foram quatro longos anos de pesquisa, período de grandes dificuldades
que por várias vezes me levaram a questionar se valeria apena tamanho esforço.
Portanto, são muitas as pessoas às quais devo gratidão eterna pelo incentivo,
inspiração, exemplo e força neste percurso que finalmente alcança seu desiderato.
Agradeço primeiramente aos meus queridos, estimados e valorosos pais.
Luis Rocha de Sousa, o Velhinho sempre presente com sabedoria inigualável e
disponibilidade para além do tempo; à sra Antônia de Carvalho Paz Souza, minha
amada mãe, mulher forte, presente e sempre na espreita dando os arremates
necessários para burilar com a lima da coragem suas joias mais preciosas.
Agradeço também a todos os colegas do curso de doutoramento em
História Social da PUC-SP, turma 2013, em especial Moisés Pereira da Silva,
Gustavo dos Santos e Daniel Valentini, companheiros de todos os seminários,
dificuldades e alegrias.
Também agradeço os professores que desde muito cedo, ainda nos
tempos de CAT – Colégio Agrícola de Teresina me iniciaram na luta por uma
sociedade mais justa, igualitária e fraterna, em especial o professor Fonseca Neto e
a professora Izalia Lustosa.
Estes agradecimentos não ficariam completos sem a menção especial a
figuras humanas maravilhosas, solidárias e companheiras como o Sr Abraão Gama,
homem probo, trabalhador e sensível, por quem tenho respeito de pai; ao profº
Magnus Martins Pinheiro, o Belfagorzinho afoscalhado, amigo com quem
compartilhei ótimos momentos na produção de idéias tão úteis e necessárias à
feitura do presente texto-tese. Francisco das Chagas, homem de coragem e
determinação que generosamente me recebeu em seu apto em São Paulo,
possibilitando as condições de conforto e tranqüilidade necessárias para enfrentar o
frio e o pesado ano de 2013, dedicado integralmente à conclusão das disciplinas
básicas do doutoramento. Também ao professor José de Moura, o Zezão, amigo leal
e sempre otimista quanto ao nosso sucesso acadêmico e profissional.
Levo meus agradecimentos à UESPI – Universidade Estadual do Piauí,
SEMEC- Secretaria Municipal de Educação e à FAPEPI – Fundação de Amparo a
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Pesquisa do Piauí, Instituições sem as quais este doutoramento não teria sido
possível.
Gratidão eterna aos principais protagonistas desta pesquisa: Senhor Luis
Edwiges e toda a sua família, ao Sr. Antônio Damião e Luiz Edite, camponeses que
viveram naquele contexto de tensões, mas também de possibilidades ilimitadas
sobre o qual escrevo. Agradeço ainda aos pesquisadores Antonio José Medeiros e
Ramsés Pinheiro que também trataram do tema e foram bastante úteis na
caminhada. Também rendo gratidão a todos os entrevistados essenciais na
produção desta pesquisa.
Agradeço de modo especial à minha orientadora professora doutora Maria
do Rosário Cunha Peixoto, pela autonomia, confiança, paciência e contribuição
fundamentais não somente para a produção textual, mas para toda futura vida
acadêmica. Tenho convicção e confiança que, para muito além da relação de
orientação, construímos uma sólida amizade que nem o tempo e a distância
abalarão.
Agradeço ainda os professores João Junior da UESPI, Estefânia Knotz da
PUC-SP, presentes no exame de qualificação, momento decisivo na definição dos
rumos desta pesquisa.
Rendo graças de modo muito especial e particular à minha família pelo
amparo e força nesta trajetória cheia de dificuldades: meus irmãos Raimundo
Nonato, Benedito Rocha, Libonato de Carvalho e Cosme Rocha, também ao meu
sogro Jacinto Cardoso e a minha sogra Raimunda Almeida, todos realizados e
felizes com o meu crescimento intelectual.
Por fim agradeço com carinho, amor e reconhecimento especiais à minha
esposa e companheira Maria Salete, por ter sido a segurança e o conforto em toda
essa caminhada cheia de angustia, percalços, avanços e recuos. Mulher forte e
determinada. Obrigado Nega!
Agradeço por último e por primeiro a Deus e as minhas filhas Marcia
Lorenna, ex - gordinha e Ingrid Danielle, meu eterno pescoço seco, fontes de alento
e inspiração intermináveis sem as quais esta tese não teria sequer iniciada.
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RESUMO
No final dos anos 50 e início dos anos 60, a reforma agrária no Brasil entrou a contrapelo na agenda nacional como uma necessidade urgente e imperiosa. Entre os diferentes atores políticos e sociais que a defendiam e os que a reprovavam havia um ponto de confluência: a miséria e a situação de abandono do homem do campo assim como a imediata necessidade de solucioná-la, sob o perigo de a nação ser instabilizada por uma grande revolução social. As ligas camponesas receberam a partir da imprensa, de outros sujeitos políticos atuantes no período, e também da memória, o significado simbólico deste atestado de convulsão social em que o Brasil e, particularmente o nordeste experimentavam. Ancorado na importância desse momento para a História do Brasil e do Piauí em especial, o objetivo nuclear desta pesquisa é analisar o processo de formação das Ligas Camponesas no Estado, a partir da experiência exitosa, singular e distinta da Liga de Matinhos, na terra dos Carnaubais. Nessa perspectiva, a análise recai sobre a constituição deste movimento social embasado na luta sistemática dos trabalhadores rurais que conseguiram forjar formas de organização e resistência capazes de se contrapor aos ditames unilaterais dos latifundiários e do estado, como agentes históricos, na luta por reconhecimento político, por direitos e contra toda e qualquer experiência de rebaixamento social. Argumento que essas experiências históricas absolutamente únicas destes sujeitos foram fundamentais para a criação das ligas no Piauí a partir, principalmente do Governo de Chagas Rodrigues no fim dos anos 50 e início da década de 1960. Nesta abordagem estruturada a partir de um arcabouço teórico renovado, cujo os conceitos e categorias forneceram elementos que priorizassem a dinâmica histórica, e não, retratos estáticos da realidade que, por serem formulados como modelos estanques nunca existiram, procuro enfatizar a questão da terra, o debate sobre a reforma agrária no Piauí, as tensões entre grupos de poder locais, inclusive destacando a atuação da Igreja Católica e a luta cotidiana por acesso à terra, na maioria das vezes sem qual quer mediação do aparato jurídico estatal. A análise sustenta-se em fontes orais, hemerográficas, processos judiciais e na bibliografia acadêmica disponível sobre o tema e objeto. No que diz respeito aos referencias teóricos destaco a importância do conceito de experiência elaborado por E. P. Thompson, aplicado como instrumento para discutir as maneiras como os sujeitos desta pesquisa compreenderam a realidade no seu entorno, e se fizeram atores principais dessa trama alinhavada num tempo saturado de agoras, para construir expectativas de transformação social e política emolduradas pela esperança de acessar e conquistar a terra.
Palavras Chave: Camponeses, Experiência, Liga Camponesa, Território dos Carnaubais, Piauí.
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ABSTRACT
In the late 1950s and early 1960s, agrarian reform in Brazil fell on the national agenda as an urgent and pressing need. Among the different political and social actors who defended it and those who rejected it, there was a point of convergence: the misery and abandonment of the rural man, as well as the immediate need to solve it, in the danger of the nation being destabilized By a great social revolution. The peasant leagues received from the press, from other political subjects active in the period, and also from memory, the symbolic meaning of this attestation of social upheaval in which Brazil and, particularly, the northeast experienced. Anchored in the importance of this moment for the History of Brazil and Piauí in particular, the core objective of this research is to analyze the process of formation of the Peasant Leagues in the State, based on the successful, singular and distinct experience of the League of Matinhos in the land of the Carnaubais. In this perspective, the analysis is based on the constitution of this social movement based on the systematic struggle of rural workers who have been able to forge forms of organization and resistance capable of opposing the unilateral dictates of landlords and the state as historical agents in the struggle for political, By rights and against any experience of social demotion. I argue that these absolutely unique historical experiences of these subjects were fundamental for the creation of the leagues in Piauí from, mainly from the Government of Chagas Rodrigues in the late 1950. and early 1960. In this approach structured from a renewed theoretical framework, whose concepts and categories provided elements that prioritize historical dynamics, not static portraits of reality that, because they are formulated as watertight models, never existed, I try to emphasize the question of land, Debate on agrarian reform in Piauí, tensions between local power groups, including highlighting the Catholic Church's action and the daily struggle for access to land, most often without any mediation of the state legal apparatus. The analysis is based on oral sources, hemerográficas, judicial processes and in the available academic bibliography on the subject and object. Regarding the theoretical references, I emphasize the importance of the concept of experience elaborated by EP Thompson, applied as an instrument to discuss the ways in which the subjects of this research understood the reality in their surroundings, and became main actors of this plot aligned in a time saturated with Agoras, to build expectations of social and political transformation framed by the hope of accessing and conquering the land. Keywords: Peasants, Experience, Peasant League, Carnaubais Territory, Piauí.
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ABSTRACTO
A finales de los años 50 y principios de los 60, la reforma agraria en Brasil fue contra la corriente en la agenda nacional como una necesidad urgente e imperativo. Entre los diferentes actores políticos y sociales que defendía y los que reprochaban era un punto de convergencia: la miseria y el campo de la situación de abandono del hombre, así como la necesidad inmediata de resolverlo, en peligro de ser la nación no estabilizado para una gran revolución social. Las ligas campesinas recibidas de la prensa, otros sujetos políticos activos en el período, así como la memoria, el significado simbólico de este certificado de agitación social en el que Brasil y en particular el noreste experimentaron. Anclado en la importancia de este momento de la historia de Brasil y Piauí, en particular, el objetivo nuclear de esta investigación es analizar el proceso de formación de las Ligas Campesinas en el estado, a partir de la exitosa experiencia, única y distinta de Matinhos Liga, en la tierra de Carnaubais. En esta perspectiva, el análisis se basa en la constitución de este movimiento social basada en la lucha sistemática de los trabajadores rurales que han logrado forjar formas de organización y resistencia capaz de contrarrestar los dictados unilaterales de los terratenientes y el Estado como actores históricos en la lucha por el reconocimiento político, derechos y en contra de cualquier experiencia de la degradación social. Argumento de que estas experiencias históricas absolutamente únicas de estos sujetos fueron fundamentales en la creación de aleaciones piauienses de todo el Gobierno Rodrigues de Chagas a finales de los años 50 y principios de los 1960. Este enfoque estructurado a partir de un nuevo marco teórico, cuyos conceptos y categorías proporcionado elementos que dan prioridad a los retratos dinámicos y no estáticos históricas de la realidad de que, que se formulen como nunca existieron modelos separados, trato de hacer hincapié en la cuestión de la tierra, debate sobre la reforma agraria en Piauí, las tensiones entre los grupos de poder local, entre ellos destaca el papel de la Iglesia Católica y la lucha diaria por el acceso a la tierra, lo más a menudo sin que, o bien la mediación del aparato legal del estado. El análisis argumenta en fuentes orales, hemerográficas, bibliográficas judicial y académica disponibles en el sujeto y el objeto. Con respecto a las referencias teóricas de relieve la importancia del concepto de la experiencia desarrollada por EP Thompson, aplicado como una herramienta para analizar las formas en que los sujetos de este estudio comprendieron la realidad en su entorno, y se convirtieron en los principales actores en este terreno bañado en un tiempo saturado ahoras, para construir expectativas de cambio social y política enmarcada por la esperanza de acceso y conquistar la tierra. Palabras clave: Campesinos, la experiencia, la Liga Campesina, Territorio de Carnaubais, Piauí.
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SIGLAS UTILIZADAS
ACB- Ação Católica Brasileira
ALTACAM- Associação de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Campo Maior
AP- Ação Popular
CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CODESE- Companhia De Desenvolvimento Econômico do Estado
CONSIR- Conselho Nacional de Sindicalização
CONTAG- Confederação de Trabalhadores na Agricultura
D’NOCS- Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
DPE- Defensoria Pública do Estado
FAREPI- Federação de Associações Rurais do Piauí
FETRACE- Federação de Trabalhadores Rurais do Ceará
FRIPISA- Frigorífico do Piauí / S.A
IAEE- Instituto de Água e Esgoto
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia Estatística
MEB- Movimento de Educação de Base
PCB- Partido Comunista Brasileiro
PDC- Partido Democrático Cristão
PSD- Partido Social Democrático
PTB- Partido Trabalhista Brasileiro
SAPPP- Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco
SERSE- Serviço Social do Estado
STRCM- Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior
SUDENE- Superintendência Desenvolvimento do Nordeste
SUPRA- Superintendência da Reforma Agrária
UDN- União Democrática Nacional
UESPI- Universidade Estadual do Piauí
UFPI- Universidade Federal do Piauí
ULTAB- União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícola do Brasil
UNICAMPI- União dos Camponeses Piauienses
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TFP- Tradição Família e Propriedade
IPES- Instituto de Pesquisa Econômicas e Sociais
BNB- Banco do Nordeste do Brasil
SERSE- Serviço Social do Estado
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SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................................ 005
ABSTRACT ............................................................................................................ 006
ABSTRACTO ......................................................................................................... 007
SIGLAS UTILIZADAS ............................................................................................ 008
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 012
CAPÍTULO I
1. QUEM TÁ POR BAIXO, UM DIA VAI SUBIR: A LUTA PELO .
RECONHECIMENTO POLÍTICO E OUTROS DIREITOS ..................................... 040
1.1 Matinhos do Meio, lugar de resistência ....................................................... 040
1.2 O pioneirismo da família Osório Lopes e a Liga Camponesa de Matinhos .. 064
1.3 Luiz Edwiges, uma voz contra o latifúndio .................................................. 075
1.4 Terra: sinal de riqueza e de pobreza contra a renda e a sombra da casa .. 083
1.5 A luta pela terra no Brasil e nos Carnaubais ............................................... 091
CAPÍTULO II
2 A IGREJA ENTRA EM CAMPO: ENTRE INSTITUIÇÃO CLERICAL E AGENTE .
DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL; A DIFÍCIL RELAÇÃO A PARTIR E ALÉM DO .
CONCÍLIO VATICANO II ....................................................................................... 105
2.1 Uma Igreja, vários caminhos e um único fim? ............................................ 105
2.2 O Trem do Nordeste ....................................................................................... 127
2.3 Piauí, a última estação ................................................................................... 134
2.4 Sindicato católico: a luta continua, mas com outras táticas ...................... 145
2.5 Antônio Damião de Sousa: O dono da voz contra a voz do dono ............. 155
CAPÍTULO III
3 UM PE LÁ E OUTRO CÁ: DO IDEÁRIO MODERNIZADOR À PRÁTICA .
ASSISTENCIALISTA DE CHAGAS RODRIGUES AO CONSERVADORISMO .
REFORMISTA DO ESQUEMA PORTELLA .......................................................... 163
3.1 Ecos do trágico acidente da Cruz do Cassaco ............................................ 163
3.2 Governo Chagas Rodrigues: nada do que foi será! .................................... 177
3.3 Entre a realidade e o sonho: a promessa de (re) fundação do Piauí pela .
via da modernização conservadora .................................................................... 193
11
3.4 O assistencialismo como capital político: o papel do Serviço Social do .
Estado – SERSE; e da primeira dama, Maria do Carmo, a mãe dos pobres ... 199
3.5 Estrangeiro na terra pátria ............................................................................. 207
3.6 A travessia de Petrônio pelo conveniente caminho do meio ..................... 212
3.7 Um Governo conservador e reformista, mas nem tanto! ............................ 219
3.8 Pelo Piauí, com a “Revolução” até o fim ...................................................... 229
3.9 Vitória da derrota: O autoritarismo como método ...................................... 231
3.10 Petrônio, o hidridismo em movimento ........................................................ 243
CAPÍTULO IV
4 O FAZER-SE DA NARRATIVA ACADEMICA LOCAL SOBRE AS LIGAS NO .
PIAUI, uma crítica epistemológica ao discurso colonizado que nega a .
experiência peculiar de Matinhos ....................................................................... 247
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 277
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 283
ANEXOS
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INTRODUÇÃO
O tempo passou, dado a celeridade dos fatos, a exigir uma maior urgência
no cotidiano das pessoas. Tudo que acontece é partilhado e logo chega, dentro de
certa instantaneidade, ao conhecimento de todos.
A celeridade com que as mudanças ocorrem deixa a todos atônitos,
perdidos. Certezas quase absolutas tornaram-se dúvidas. Aquilo que era verdadeiro
já não se mostra tanto, e muitas incertezas explodem em diferentes campos e
planos. Uns não arredam pé de suas convicções, alguns poucos tentam manter
certas premissas e comportamentos. Já outros mudam profundamente, e, por vezes,
seguem errantes, agarrando-se a diferentes lugares e posições. Crise tornou-se a
palavra mais recorrente do momento. E na sua recorrência, desmontam-se sonhos,
projetos, modelos e até paradigmas.
A história segue e, há muito, superou a falsa ideia de partir da premissa
absoluta, reta, fixa e que acomodaria uma única explicação sobre os acontecimentos
do passado e do presente. A história se reinventa a partir de diferentes lugares de
reconstrução e recepção, com variadas fontes de informações e linguagens. É uma
mutação fantástica.
Desse modo, os questionamentos formulados ao passado e também ao
presente podem representar caminhos ou descaminhos. José Honório Rodrigues
elucida bem essa questão quando afirma:
O presente é um fator decisivo na compreensão do passado; são as inquietações, são os problemas presentes que levantam as novas perguntas que se devem fazer aos velhos documentos. Sem a formulação do presente, o passado é morto, (do mesmo modo que) a atualização do passado é uma exigência do presente carregado de futuro (RODRIGUES, 1981, p. 30).
Eric Hobsbawn tem também uma contribuição importante e muito
elucidativa sobre a questão:
O passado é (...) uma dimensão permanente da consciência humana, constitutivo inevitável das instituições, valores e padrões da sociedade humana. O problema para os historiadores é analisar a natureza desse sentido do passado na sociedade e identificar suas mudanças e transformações (HOBSBAWN, 1998, p.22).
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A história a ser aqui narrada é impregnada de experiências do
pesquisador. Primeiro como estudante do curso técnico-secundarista no Colégio
Agrícola de Teresina, quando vivenciou , especialmente nos estágios, os problemas
do homem do campo. Segundo, como acadêmico de História, época em que
conviveu com a mais absoluta falta de textos que discutissem a temática campo e o
objeto ligas camponesas.
Há um senso comum de que as escolhas das pessoas estão, na maioria
das vezes, ligadas à forma como elas percebem individualmente o mundo.
Percepções essas referenciadas sempre de suas particulares expectativas.
Em razão disso, sentindo-se ancho na sua condição de observador atento
aos fatos – antes mesmo de narrar os motivos que o conduziram à definição do
tema, bem como o percurso metodológico de produção desta tese de doutoramento –,
o autor desta pesquisa entende ser oportuno deixar claro a sua percepção em relação
à terra, esse bem essencial de produção: O pilar edificante da formação social e
territorial do Brasil e particularmente do Piauí foi e tem-se mantido a concentração
ilimitada de terras em forma de propriedade garantida pelas leis ou que burlem as
leis. Isso tem determinado o que somos e o que não conseguimos ser.
A inclinação do autor deste estudo pelo mundo rural remonta aos tempos
de sua formação em técnico-agrícola e de sua graduação em História. Entretanto,
essa inclinação se consolidou durante o mestrado, época em que investigou o livro
didático de História e sua contribuição para a formação da consciência cidadã dos
alunos. Foi quando percebeu, com maior nitidez – mesmo não sendo esta a
centralidade do foco de seu objeto de estudo –, o quanto a temática do homem do
campo, notadamente o do Piauí – em termos de trabalho, resistência e organização
camponesa como um todo – era invisível, esquecida. Uma realidade não
contemplada pela maioria dos autores pesquisados ou, quando muito, recebia um
tratamento de importância menor.
O agravante maior é quando o camponês ou mesmo suas organizações e
lutas são apropriados historiograficamente a partir de uma compreensão que se
revela reducionista ou generalizante. Em outras palavras, a vida, a luta e a história
dos camponeses em suas especificidades constituem uma lacuna na historiografia
piauiense. Esse tipo de acontecimento segue uma lógica inversa à do pesquisador
atento, comprometido e consciente.
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Esse também é o entendimento de Peter Burke (1992, p. 250) quando,
reportando-se ao papel do pesquisador, estudioso e verdadeiramente
comprometido, alerta que “(...) Nesse sentido, o historiador é alguém que quer se
lembrar de acontecimentos que os outros querem esquecer”.
Também reforçaram o seu interesse pelo tema as incontáveis e repetidas
matérias jornalísticas que evidenciavam sempre a miséria, a fome, os confrontos, a
violência no campo e o dito conformismo do agricultor. Tais matérias o alimentaram
e o encorajaram a pesquisar sobre as lutas levadas a efeito pelos camponeses em
oposição a essa condição – de rebaixamento da dignidade social e desrespeito
jurídico – situação histórica de aviltamento e desumanidade.
Em sua atividade de professor do curso de História da UESPI –
Universidade Estadual do Piauí - orientou, a convite dos próprios alunos, algumas
pesquisas que traziam como objeto de estudo a problemática dos trabalhadores
rurais no estado. Percebeu-se que, na quase totalidade desses trabalhos,
predominava análises circunscritas a relatos canonizados. Em outras palavras, eles
não consideravam as especificidades da realidade piauiense e, mais ainda,
limitavam-se a relatar fatos e apresentar reminiscências.
Dessa maneira – e nem podia ser diferente –, acabou reconduzindo seu
olhar sobre as Ligas Camponesas, principalmente no que tange à singularidade e à
distinção da organização e da luta dos trabalhadores rurais do Piauí. Também, diga-
se, no sentido do reconhecimento enquanto classe trabalhadora que se fazia nos
embates e por outros direitos sociais, econômicos e políticos, ainda situados no
campo da promessa constitucional.
Por outro lado, a sua militância política e a sua participação em
vários cursos de formação patrocinados pela Igreja e pelo Partido dos
Trabalhadores facilitaram-lhe o acesso a muitas lideranças sindicais da cidade
e do campo. Entre elas, o senhor Luiz Ribamar Ozório Lopes, o Luiz Edwiges,
principal liderança camponesa, de então, viva no Piauí e um dos protagonistas deste
estudo.
A proposta desta pesquisa é analisar a singularidade, a especificidade e a
distinção do processo de formação e organização da resistência camponesa no
Estado do Piauí. O foco central de observação é a Liga Camponesa emergida da
15
fazenda Matinhos em Campo Maior, município conhecido como Território dos
Carnaubais¹. Assim denominado em razão de sua mata ser predominantemente
formada por carnaúba, palmácea de cujas palhas um fino pó é extraído para o
fabrico industrial da cera. A sede do município fica a 86 km da capital Teresina.
O recorte temporal deste estudo compreende o período entre 1958 a
1968. Tal recorte caracteriza-se como um período marcado pela crise do modelo
populista², aqui é entendido, grosso modo como uma política de manipulação das
massas por lideranças carismáticas e pela imposição do governo civil-militar, o que
corresponde ao momento em que se abateu dura repressão sobre todos aqueles
que eram rotulados como comunistas ou suspeitos de atos subversivos pelas
autoridades. Autoridades essas não só militares, mas também civis e eclesiásticas
ou ainda pelos latifundiários com estreitas relações com os poderes instituídos pelo
regime de então.
Ressalta-se que o recorte temporal da pesquisa é flexível e está
permeado por várias microconjunturas. Todas caracterizadas por fatos situados
como marcos de tensão próprios do contexto daquele momento. Marcos que se
explicam em razão de o período (1958/1968) ter sido pautado por grandes e
profundas transformações – políticas, econômicas, ambientais, sociais – envolvendo
todos os seus mais diversos atores que protagonizaram essa trama histórica: o
poder estatal, os latifundiários, a Igreja Católica e os movimentos sociais,
particularmente as Ligas Camponesas.
Entre estes ditos marcos, destacam-se a grande seca de 1958; a eleição
não prevista de Chagas Rodrigues para o governo do Estado, a partir da inédita e
estranha aliança política do PTB do governador sufragado – diga-se, o único
candidato a vencer naquele pleito o cargo majoritário por esta sigla – e a UDN de
Petrônio Portella; a emergência e a sedimentação em esfera nacional, desde
o governo de Kubitschek, de um discurso modernizante, de integração nacional e
________________________
¹ Território dos Carnaubais, Localizado na Região Centro Norte do Estado, com uma área de 19.651km², e uma população de 168.024 habitantes com, 84.420 mil residindo na zona rural, formada por 16 Municípios dos quais o mais importante é Campo Maior.
² Populismo, Conceito histórico aplicado quando ocorre a perda de prestígio e força política
da classe dominante unida a uma massa proletária “alienada” de sua posição no meio social, liderada a um líder político carismático capaz de mobilizar o poder e a nação normalmente em um contexto pós-crise econômica associada à crise política. São marcados por governos autoritários e paternalistas.
16
desenvolvimentista que afetou boa parte dos movimentos sociais. Com isso, cria-se
uma expectativa de inclusão desses atores na promessa de modernização.
Tem-se ainda outro momento, embora no mesmo contexto, representado
pela crise mais intensa do governo de Goulart, quando os discursos se polarizam e
radicalizam, afetando até mesmo a compreensão que os movimentos sociais vão ter
de si mesmos. Finalmente, o golpe e a consequente ditadura civil-militar são
impostos; isso marca um divisor de águas na forma como os discursos e as práticas
dos movimentos sociais vão se apresentar.
Dentro dessa dinâmica ampulheta temporal, assistiu-se à atuação de
Dom Avelar Brandão Vilela³ à frente da Arquidiocese de Teresina; o notório
resfriamento da participação política dos trabalhadores, a partir da chegada ao
governo de Petrônio Portela; e, finalmente, a decretação com seus gravosos
desdobramentos do AI-5 – Ato Institucional nº 5, que marcou o momento mais duro na
vida social e política do Brasil e do Piauí, em particular com o fechamento de inúmeras
entidades representativas de trabalhadores, prisões e cassações de mandatos.
No Piauí, partes desses fatos foram oportunamente narrados pelo
advogado Jesualdo Cavalcanti (2006, p. 189) que, na época, integrava uma das
frentes estudantis de apoio aos movimentos sociais que ocorreram no estado e,
particularmente, às Ligas Camponesas. Trata-se muito mais de um memorial
autobiográfico do que de um estudo de caráter acadêmico, sem tanto rigor científico.
Nesse memorial, ele descreve um dos eventos que retrata a atuação dos militares
junto a manifestantes e principais líderes da liga:
A caçada empreendida em Campo Maior rendeu resultados: foram presos Raimundo Antunes Ribeiro (Totó), Antônio Luiz Higino, Luiz Ribamar Ozório Lopes, José Esperidião, Antônio Damião de Sousa, Jesualdo Cavalcante, Manuel Domingos Cardoso e Martim Pereira de Abreu (BARROS, 2006, p. 189).
Os nomes grifados em itálico acima pelo autor da pesquisa ressaltam
justamente as lideranças dos camponeses, tanto de orientação radical, Luiz Ribamar
Ozório Lopes, conhecido por Luiz Edwiges, da ALTACAM – Associação de Lavradores
________________________
³ Dom Avelar Brandão Vilela, Nasceu Viçosa 13 de junho de 1912 e faleceu em Salvador
em 19 Dezembro de 1986. Foi Arcebispo de Teresina de 1955 a 1971 período em que criou a rádio Pioneira de Teresina.
17
e Trabalhadores Agrícolas de Campo Maior –, quanto de orientação conservadora,
Antônio Damião de Souza, líder do STRCM – Sindicado dos Trabalhadores Rurais
de Campo Maior, e protegido da Igreja comandada por Dom Avelar Brandão Vilela,
arcebispo de Teresina.
Por consequência, analisaram-se também os impactos da ação do
governo civil-militar sobre as lideranças políticas e sociais do estado, de modo
particular em Campo Maior, a partir da memória dos sujeitos que integravam esse
movimento social voltado à organização e à luta pelo reconhecimento político e por
outros direitos dos trabalhadores do campo naquela região.
Historicamente, em tempos diversos, o homem do campo sempre
procurou criar uma cultura de resistência e um plano reivindicatório referente aos
direitos relacionados à terra; plano no qual sua lida se faz. Em razão disso, ele se
aproxima de seus pares formando um conjunto de sujeitos coletivizados por
experiências compartilhadas no cotidiano.
O pesquisador se apropria teoricamente, nesse contexto de experiência
coletiva, do conceito de classe postulado por Thompson (1981, p.182). Para esse
autor, portanto, a classe é construída em meio a um processo marcado por opções
políticas tomadas por sujeitos que são de “carne, osso e dente” e, nessa condição,
são artífices atuantes de seus próprios destinos.
Esse postulado será oportunamente, como dito, utilizado pelo
pesquisador no momento em que ele caracterizar, neste seu estudo, o movimento
dos trabalhadores rurais, liderados por Luiz Edwiges, que deu organicidade à Liga
Camponesa emergida da fazenda Matinhos no município de Campo Maior.
Para Thompson, a categorização de classe e, por via de consequência, a
sua noção conceitual é resultante de um processo histórico. Isso porque ela é – e
não há como ser diferente –, em termos orgânicos na sua formação, sitiada por um
processo sociocultural. E, portanto, um fazer-se constante e dinâmico.
Não é sem razão, portanto, que ele possibilita inferir que a classe é
situada sempre como construção de uma unidade coletiva. Para esse teórico, a
classe – raciocinando sociologicamente – é um sujeito que se constrói em um fazer-
se contextualmente histórico. Um fazer-se que, segundo ele, Thompson, emerge das
relações de força instauradas entre grupos constantemente em tensão.
18
Desse modo, a classe se faz presente quando os indivíduos se
aproximam e se reconhecem em meio a uma situação de exploração e expropriação.
Assim, a partir da vivencia e da própria experiência do rebaixamento social a que
estão submetidos, esses indivíduos, num empenho de dar um basta a tudo que os
oprimem, articulam objetivos comuns contra os grupos que lhes cerceiam direitos e
lhes impõem certas obrigações abusivamente repressivas.
É comum alguns atores sociais, nos seus protagonismos, principalmente
quando vivenciam uma realidade nova ou impelidos por um enfrentamento mais
acirrado, como, por exemplo, em um regime de exceção, no qual não se vive sob a
égide da lei ou quando a lei existe, mas não vige, darem organicidade a uma classe;
a sua em particular.
Pode-se, portanto, dizer – concordando com a lógica thompsiana – que a
classe insurge em diferentes lugares e momentos; mas nunca exatamente da
mesma maneira. Ela não é, portanto, algo pronto; mas, sim, dinâmica. E não podia
ser diferente porque se funda, conforme já fora preconizado anteriormente, nos
processos históricos em que os sujeitos protagonizam diversas situações
compartilhadas por meio das experiências vividas.
Desse modo, os indivíduos experimentam relações produtivas e de
classe, que são indissociáveis da cultura e da ação política. Portanto, a classe só
adquire existência ao longo de uma trajetória de um processo de luta. É nessa
trajetória que o seu fazer-se, de modo social e político, adquire essência, funda-se,
ganha materialidade.
Os homens e mulheres também retornam como sujeitos dentro desta ideia do termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades de interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) das mais complexas maneiras e em seguida agem, por sua vez, sobre sua situação determinada (THOMPSON. 1981, p. 182).
Em oposição a esse entendimento, o sociólogo Otávio Ianni, orientado por
um viés estruturalista mais conservador, apoiado na ideia de modelo no qual a
realidade concreta se enquadra, argumenta que os camponeses de então não
19
tinham condições de formular “demandas em termos propriamente políticos”. Isso
porque, segundo ele, seu universo social estava impregnado de valores e padrões
comunitários e patrimoniais, “a exemplo do voto de cabresto, do misticismo e do
mutirão” a serem extirpados (OTÁVIO IANNI, apud SANTOS; COSTA. 1997 p. 108-
109).
Análises preconceituosas como essa que enxergam o camponês
brasileiro e particularmente o piauiense nos anos 60 como simples massa rural
incapaz de expressar por si só suas demandas e que, invariavelmente, dependeriam
de forças externas para agir, são resultantes, principalmente, da influência marxista
ortodoxa. Como tais, não reconhecem nos camponeses capital político para se constituir
com força revolucionária.
Essas análises, porém, contrastam com o quadro real que se encontrou
no Piauí, - uma típica região de dentro, marginalizada em relação aos demais
horizontes do país; mas nem por isso imune ou infensa a transformações quando da
realização da pesquisa aqui empreendida. No fluxo dessa jornada, tais coletivos
também evidenciam o momento em que “novos personagens entram em cena”
(SADER, 1988, p.15), enquanto forma de resistência organizada.
Como, então, escapar desses estereótipos? E como, em particular,
pretende-se estudar a ALTACAM4 na crise do populismo às vésperas, durante e logo
depois do golpe civil-militar de 1964? Tem-se por certo, desde o começo, que as
formulações de algumas questões são fundamentais; do contrário, como pensar em
ir além dos modelos cristalizados e canonizados pela historiografia? Quais os
objetivos, a natureza e o comportamento da ALTACAM?
Além desses outros questionamentos pensados e possíveis: como
atuavam, quem foram seus protagonistas, seus antagonistas e quais os principais
desdobramentos advindos de sua atuação? Assim, ao responder a esses e a outros
questionamentos igualmente importantes, acredita-se alcançar o objetivo central e
norteador deste estudo: analisar a singularidade, a especificidade e a distinção do
processo de formação e organização da resistência camponesa da fazenda
Matinhos, no Estado do Piauí.
________________________ 4 ALTACAM, Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Campo Maior, nome
representativo da Liga Camponesa de Matinhos, liderada por Luis Edwiges.
20
Também norteia esta pesquisa a certeza de que uma coisa é formular tais
questionamentos, outra muito distinta é encontrar respostas razoavelmente
apropriadas para essas indagações. Com esses questionamentos e também com
essas certezas, vai-se a campo.
Thompson, ao estudar as ações da multidão inglesa no século XVIII, que
foram identificadas por certas literaturas como práticas sem caráter político e
dotadas de profunda ingenuidade, argumenta:
É fácil caracterizar este comportamento [o da multidão] como infantil, sem dúvida, se insistirmos em olhar para o século XVIII, apenas pela lente do movimento operário do séc. XIX, só veremos o imaturo, e pré-político, a infância de classe (THOMPSON. 1998, p. 62-64).
O autor em questão entende e explica a razão de alguns historiadores
pensarem assim desse modo. Pois tal entendimento é decorrente daquilo que
denomina de “percepção histórica tardia”. Para ele, esses historiadores têm como
referencial o protagonismo da classe do século XIX.
E, sob um aspecto, isso não é uma inverdade; vemos repetidamente prefigurações das atitudes e organizações de classe do século XIX, expressões passageiras de solidariedade em motins, greves – até mesmo diante do patíbulo. É tentador ver os trabalhadores do século XVIII como uma classe trabalhadora imanente que tem sua evolução retardada pelo senso de futilidade de transcender a sua situação (...) uma dose exagerada de percepção histórica tardia nos impede de ver a multidão como realmente era, sui generis, com seus próprios objetivos, operando dentro da complexa e delicada polaridade de forças de seu próprio contexto (THOMPSON, 1998, p. 62-64).
Nesse contexto, Thompson (1998, p. 62-64) elabora a noção de economia
moral na perspectiva de interpretar o comportamento dos ingleses pobres no século
XVIII. Essa postura era orientada por pressupostos éticos e morais, todos referendados
nos costumes, na tradição e em um consenso popular. E estes, ao serem quebrados
pelos poderosos, geravam indignações e ações diretas e indiretas no intuito de
reduzir os prejuízos provocados pela emergente economia do livre mercado.
É James Scott (2002, p. 34-44) quem redimensiona essa noção de
economia moral de Thompson. Ele faz isso ao incluir os princípios de reciprocidade
e de subsistência. Tais princípios, segundo o próprio autor, estão ligados a um
conjunto de deveres e obrigações mútuos. Para ele, esses princípios serviram de
21
orientação às diversas formas de resistências cotidianas do campesinato frente aos
mais fortes. Essa compreensão de Scott foi constituída e consolidada quando ele
estudou, na década de 1970, o comportamento dos camponeses asiáticos.
A pesquisa aqui desenvolvida, também, estabeleceu uma ancoragem
dialogal com três distintas orientações teóricas: com a história vista de baixo; com a
história oral e com a história do tempo presente. Essas correntes forneceram o
necessário suporte para a construção do tema como um estudo relevante e
significativo na sua dimensão historiográfica.
A primeira orientação – história vista de baixo –, aqui colocada, justifica-
se principalmente por reconhecer nos camponeses uma classe social com poder
revolucionário e, também, por ser uma abordagem polêmica (HILL 1987, p. 29-55)
que questiona as velhas certezas históricas. O próprio Hill (1987, p. 35) bem ilustra
a importância e a oportunidade de tal orientação:
Podemos descobrir que homens e mulheres obscuros (...), juntos com alguns menos obscuros, falam mais diretamente a nós que Carlos I ou Pym ou ainda o general Monk, que nos manuais figuram como os autores da história.
A história vista de baixo transgride as convenções, inova nos objetos, não
se prende a preceitos recorrentes e pré-estabelecidos; e por vezes, afronta na
medida em que recorre a fontes não tão convencionais. Sua narrativa contempla,
comprovadamente, pelo menos duas funções importantes.
A primeira serve como um corretivo, paralelo à história da elite, para
mostrar que numa guerra, por exemplo, estão envolvidos minimamente dois lados:
os soldados – que na maioria morrem enquanto lutam, desconhecendo inclusive as
causas da guerra – e também os que criam e os que executam a guerra, como os
governantes e os generais que ocupam posições de mando e, por isso, quase nunca
morrem.
A segunda é que, oferecendo essa abordagem alternativa, a história vista
de baixo abre possibilidade de uma síntese mais rica da história; de uma fusão da
história da experiência do cotidiano das pessoas comuns – camponeses, operários
e artesãos – com a temática dos tipos mais tradicionais da história. A história vista
22
de baixo mantém, em torno de si, uma aura subversiva e isso lhe confere um quê de
atratividade essencial para a pesquisa. Para Hill, é possível outro caminho para o
estudo dos movimentos sociais.
Com base nessas referências, analisa-se como se concretiza, por meio
de ações cotidianas – diretas, como os mutirões, e indiretas ou fragmentárias, como
a cera (morosidade na execução da tarefa) –, o processo de formação e a
organização da resistência camponesa em Matinhos, a luta pelo reconhecimento
político, a luta em defesa do acesso e permanência na terra, pela indenização das
benfeitorias realizadas nas áreas que lhes foram destinadas durante o tempo em
que permaneceram nas terras, como agregados de proprietários, além de outros
direitos, no Piauí entre 1958 -1968, mais precisamente no Território dos
Carnaubais.
As ditas indiretas ou fragmentárias foram assim nominadas porque
sistematicamente – muito a propósito – passavam despercebidas, como a precária
marcação de animais e os conscientes e premeditados descuidos nas colheitas.
Dentre as ações cotidianas diretas anteriormente citadas, os mutirões
devem ser aqui entendidos como atividades coletivas solidárias. Eles se reportam,
em todos os casos, a “trabalho associado, unido” (CALDEIRA. 1956 p. 25-28). Esses
mutirões se configuravam, em favor dos camponeses, como estratégia de
transformação das relações sociais entre os fazendeiros e os camponeses, já que
eram aproveitados pelos últimos, também como espaço de luta política.
Esse caminho não significa que se está apenas, conforme alerta
Hobsbawm (1998, p.219-221), “tentando conferir-lhe um significado político
retrospectivo que nem sempre teve; estar-se sim tentando, mais genericamente
explorar uma dimensão desconhecida do passado”.
Credita-se da maior importância esclarecer que o conjunto de autores
pesquisados e aqui considerados alguns, não todos – E. P. Thompson, Christopher
Hill, Eric Hobsbawm, J.Scott, Roger Chartier e Michel de Certeau –, do campo da
História e outros – Axel Honneth, Bourdieu e Luhmann – da Sociologia. Esse elenco,
porém não se pretende completo e nem tem por objetivo totalizar o conjunto de
abordagens historiográficas e sociológicas referentes ao tema em exame. É
simplesmente resultante da escolha particular e parcial do autor.
23
Esses autores foram selecionados porque representam as referências
mais apropriadas para suporte teórico dessa pesquisa. Particularmente porque
oportunizaram uma leitura mais herética do marxismo, enfatizando a este uma
noção diferenciada, não ortodoxa, aplicada à pesquisa histórica. Esses historiadores
incorporam novas interpretações, novos objetos e novos personagens à
historiografia.
Em relação à história oral, ressalta-se que os pesquisadores das mais
diferentes áreas, mas principalmente da História, nas últimas décadas, têm-se
utilizado, em boa medida, de determinados procedimentos metodológicos de
pesquisa que outrora lhes eram negados: relatos autobiográficos, entrevistas,
depoimentos pessoais, história de vida e outros mais. Esse campo tem-se
constituído num espaço fértil que busca compreender o homem em sua dimensão
social e histórica a partir de seu relato vivo, sua memória e sua oralidade.
Poder trabalhar com os vivos e não somente com os mortos significou
para os pesquisadores de todas as áreas uma grande e fecunda novidade. A história
oral se entrecruza muito frequentemente com outras estratégias, como as histórias
de vida, as análises de trajetórias e com biografias coletivas. Esse tipo de
congraçamento se revela positivo para a história à proporção que possibilita, por
exemplo, a valorização da oralidade como fonte, como registro e como linguagem.
Outra importante contribuição vem da chamada história do tempo
presente. Essa perspectiva se revelou útil e eficaz ao pesquisador na medida em
que o fez enfrentar e superar alguns estigmas, medos, plantados a partir de uma
leitura tradicional e que eram encarados como problemas, convertendo-os em elos
positivos: o envolvimento pessoal e a proximidade temporal. Outro aspecto
importante é que a história do tempo presente representou um duro golpe numa
abordagem historiográfica sedimentada na ideia de imparcialidade, pura
objetividade e narrativa a distância; ou seja, na ilusão de uma história isenta de
subjetividade.
Quanto ao Annimus, destaca-se que a história do tempo presente – o que
em alguns aspectos também se operou em relação à história oral – foi compelida a
recuperar para a História algumas experiências ainda muito recentes e de relevante
importância, mas com rara ou mesmo nenhuma documentação disponível.
24
Nesse diapasão, evidencia-se que também nesse aspecto a história do
tempo presente se vinculou à perspectiva da história vista baixo, consagrando a
necessidade de registrar a experiência histórica de trabalhadores em seus
movimentos sociais, fossem eles reivindicatórios, políticos, de classe ou de qualquer
outra natureza.
Nessa trajetória, tem-se que a relação entre o homem e a terra remonta a
tempos longínquos. A terra sempre se configurou como principal meio de produção
de alimentos. A propriedade na sua origem e evolução tem sido historicamente a
causa principal de inúmeros conflitos, mesmo assim, e por tudo isso, ainda se
configura um tema bastante polêmico e atrativo para os debates acadêmicos.
Não há e talvez não seja muito recomendável existir consenso acerca da
questão. O que se tem é apenas um conjunto de teorias, como pode ser entendido
das palavras de Clóvis Araújo (2005, p. 43):
(...) não há consenso entre os estudiosos no tocante à existência ou inexistência da propriedade em toda a história da sociedade humana. Discute-se se a propriedade é um direito natural ou um fenômeno humano, tendo sido intenso o debate, principalmente, entre jus-naturalistas e positivistas.
Varella (1998, p. 161) concorda com Clóvis Araújo sobre a inexistência
do consenso em relação à origem da propriedade; porém, acrescenta e assume
o entendimento de que a propriedade é um fenômeno social, uma intervenção
humana provavelmente oriunda dos primeiros cercamentos e não um direito
natural.
Nesse sentido, os camponeses, ao se colocarem na luta pela libertação da terra e dos frutos nela produzidos, ou mesmo quando realizam ações solidárias em apoio às famílias com problemas e mais castigadas, estão inseridos num processo contínuo de aprendizagem (FREIRE. 2011 p.123).
É razoável entender que a observação de Freire acima contempla os
camponeses do Piauí também. Desse modo, o mutirão, enquanto prática coletiva e
comunitária constitui-se como uma etapa do processo de aprendizagem e formação
desses trabalhadores. Processo esse que implica em novos comportamentos sociais
25
e políticos na busca de superação provisória – visto oportunizar um espaço de
sociabilidade – de certas situações de exploração imposta aos camponeses
agregados pelos proprietários.
Para o desenvolvimento da pesquisa e elaboração textual da tese, traçou-
se um percurso metodológico ancorado em três pilares distintos. O primeiro diz
respeito à escolha e à natureza da literatura sobre o tema e das fontes (moldura
teórica). O segundo faz referências ao tratamento (Modus operandi) a ser
dispensado a essas fontes e, finalmente, procedeu-se – a partir da inédita relação
experiência e consciência – uma leitura da realidade sócio-histórica, na qual se fez o
movimento campesino no Piauí.
Nesse estudo, utilizaram-se principalmente os relatos realizados pelos
sujeitos que fizeram parte dessa experiência histórica, tanto os que a constituíram
diretamente, como os que a ela se ligaram organicamente.
Acerca dessa modalidade, tornam-se significativas as posições de Michel
Pollack (1982. p. 200-202), o qual aponta para a valorização das memórias
residentes ao núcleo social. Seriam, no caso, as memórias por vivências e as
memórias por tabela. A memória por vivência se refere aos sujeitos que adquiriam
uma memória histórica por serem contemporâneos das situações de sua época, por
terem vivido pessoalmente. E a memória por tabela se refere a acontecimentos
vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer.
Outra particularidade a ser considerada nos estudos da memória é a sua
dimensão coletiva. Esse ensinamento vem de Halbwachs (1990, p. 26), para quem a
memória tem uma dimensão individual e outra coletiva, e tanto uma como a outra
são socialmente compartilhadas. Isso ocorre, entre outras razões, segundo o autor,
porque as pessoas não vivem isoladas, e as experiências, ainda que individuais, são
também sociais, e as lembranças, embora aconteçam de forma diferente para cada
pessoa, são invariavelmente compartilhadas entre o grupo a que ela pertencia
quando da vivência lembrada, seja a família, o sindicato, os amigos ou qualquer
outro grupo social.
Para a efetivação da pesquisa memorial, entrevistaram-se ao longo de
quatro anos 53 pessoas: camponeses, religiosos, proprietários, sindicalistas,
advogados, servidores públicos, pesquisadores, assessores políticos e políticos com
26
mandatos no período da pesquisa. Em relação aos camponeses, entrevistaram-se
tanto os que participaram ativamente da Liga de Matinhos, como os irmãos Edwiges,
como outros que não exerceram qualquer função na entidade.
Quanto aos participantes do Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Campo Maior, entidade que acabou rivalizando com a liga pela representação dos
camponeses, entrevistou-se o presidente Antônio Damião de Sousa e outros oito
agricultores que passaram pela entidade durante a fase de repressão imposta pelo
regime militar.
Outro grupo de trabalhadores entrevistado foi formado a partir de
indivíduos que apenas conviveram à época do movimento, sem dele ter feito parte.
Foram entrevistados seis deles, sendo quatro homens e duas mulheres. No grupo de
servidores públicos, entrevistou-se o policial militar, o sargento Loiola – hoje
professor aposentado – responsável, na patente de cabo à época, pela prisão do
líder camponês Luiz Edwiges. Outro servidor participante foi o advogado Reginaldo
Furtado, que ocupou o cargo de secretário particular do então governador Chagas
Rodrigues e o Sr. Alfredo Nunes, presidente da SUPRA.
Também foram entrevistados os advogados Celso Barros Coelho, Carlos
Lobo, José Luiz Martins Maia e Manoel Emílio Bularmaqui, todos diretamente
envolvidos no apoio jurídico aos vários dos movimentos sociais de então. Quanto
aos demais entrevistados, o sociólogo Antonio José Medeiros, que também
pesquisou a organização dos camponeses no estado e o Sr. Antônio dos Reis,
conhecido como Mestre Zumba, atualmente professor aposentado e que na época
da pesquisa frequentou o grupo escolar localizado na fazenda São Francisco, na
região conhecida como Lagoa dos Corró, única escola da região, de natureza
privada, destinada à preparação dos filhos dos moradores daquelas cercanias, dos
quais alguns são sujeitos dessa pesquisa.
As questões colocadas nas entrevistas foram, na sua quase totalidade,
pensadas de modo a evidenciar – a partir dos referenciais teóricos que balizam este
estudo – a formação, as reivindicações, principais lutas e desafios dos camponeses
no Território dos Carnaubais. Também se levantaram questões complementares
acerca dos núcleos de organização das ligas, do seu funcionamento, das formas de
trabalho, das estratégias de defesa dos camponeses e até da rotina diária dos
trabalhadores.
27
Buscou ainda, assim, saber sobre a relação com outras instituições como
a Igreja, partidos políticos e sobre a quase completa ausência de moeda – o vil
metal, meio circulante –, já que o camponês como ficou evidenciado, vendia sua
produção e recebia o pagamento em mercadorias, como café, açúcar, óleo e
querosene. Essa realidade limitava ainda mais a sua já reduzida autonomia.
Outro recurso metodológico aplicado foi a pesquisa documental. Utilizou-
se de fontes hemerográficas, como importante alternativa de análise, por se tratarem
de instrumentos de comunicação que ocupavam considerável influência na
sociedade. Nesse intento, pesquisaram-se nos arquivos públicos, na Cepro, Fundação
Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí, na Secretaria de Planejamento
do Estado e nas bibliotecas das Universidades Federal e Estadual do Piauí.
Os jornais, tanto os comerciais – O Dia, Folha da Manhã, Jornal do
Comércio e O Estado do Piauí –, quanto os de temáticas específicas – O Dominical,
Santuário de São Francisco (de caráter religioso) e Terra Livre (classista
revolucionário) –, que circulavam em diversas regiões do Piauí, eram, na época,
junto com as emissoras de rádio, os mais importantes meios de difusão de notícias
(Teresina ainda não dispunha de emissoras de TV).
Ressalta-se que os periódicos impressos de então se diferenciavam
enquanto veículos que estabeleciam determinadas produções de sentidos. Eles se
configuravam como elementos subsidiários de acepção do olhar social por meio de
sua linguagem e comunicabilidade. Por esses aspectos, pode-se compreendê-los
não apenas como uma modalidade de leitura do mundo, uma geratriz que fabrica
verdades e valores aos indivíduos, mas como prática social, como ação politica que
expressa e defende interesse e realiza intervenções ativas.
Do mesmo modo, é importante destacar o fato de que estes, através de
sua capacidade narrativa, conseguiam aglomerar os vários deslocamentos, os
acontecidos, as noções de tempo e espaço que compunham os movimentos da
sociedade. E dessa forma devem ser entendidos aqui pelas menções de Braudel:
Crônica ou jornal fornece, ao lado dos grandes acontecimentos, ditos históricos, os medíocres da vida ordinária: um incêndio, uma catástrofe ferroviária, o preço do trigo, um crime, uma representação teatral, uma inundação. Assim cada um compreenderá que haja um tempo curto de todas as formas da vida econômica, social, literária, institucional, religiosa e mesmo geográfica (uma ventania, uma tempestade), assim como política (BRAUDEL, 1992, p. 45-46).
28
Também são valiosos os ensinamentos de Walter Benjamim, quando
critica a noção de tempo linear e progressivo e postula que cada presente é sempre
um tempo saturado de agoras, tenso e que não se configura como um meio onde
existe um antes e um depois, sendo ele uma passagem, ou ainda como afirma
Thompson quando infere das varias possibilidades de futuro que estão postas em
cada tempo, onde algumas vão se realizar ou não.
No artigo Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa
(Projeto História da PUC-SP. N° 35, 2007; p. 253-270), as professoras Heloísa Cruz
e Rosário Peixoto alertam para a premissa de pensar a imprensa como prática social
com interesses e projetos definidos e que as matérias da imprensa não existem para
que os historiadores e cientistas sociais façam pesquisa. A ponderação delas é a
que se segue:
[...] transformar um jornal ou revista em fonte histórica é uma operação de escolha e seleção feita pelo historiador e que supõe seu tratamento teórico metodológico no decorrer de toda pesquisa desde definição do tema à redação do texto final.
Dessa forma, por abarcar do notável ao corriqueiro, do dramático ao
pitoresco, a produção jornalística abre um amplo leque de possibilidades situadas
nos meandros do cotidiano, nessa instância subjetiva e pela qual a história dos
homens se faz constantemente, nos quais são articuladas as artes de fazer.
Suas dimensões tendem a expor toda uma mentalidade social, as
retratações de um perfil em torno de um sujeito – as quais podem inclusive conflitar
com sua sociedade –, as versões elaboradas aos acontecimentos, as teses que
sustentam ou refutam determinados acontecimentos, a trama de um crime, um
confronto de ideias. Em suma, pode-se deparar com uma teia discursiva em que um
jogo e um conflito semântico entram em cena. Em meio a esse cenário, cabe a
quem pesquisa perceber como se davam a apropriação e recepção dessas
produções e ainda quais os interesses contidos nos enunciados propostos, como
infere Bourdieu:
O analista procura a intenção objetiva escondida por baixo da intenção declarada, o querer dizer no que ela declarava. E supõe que nela se enuncia um sentido profundo, uma pulsão expressiva, biológica ou social que a alquimia da forma imposta pela necessidade social do campo tende a tornar irreconhecível (2000, p.73).
29
Em relação às fontes de natureza jurídica – também investigadas nesta
pesquisa –, ressalta-se sua utilidade por estarem vinculadas a questões viscerais
para o desenvolvimento desta análise, no que se refere aos acordos de trabalho
celebrados entre os agricultores e os proprietários e ainda em relação aos
desdobramentos das acusações feitas aos integrantes do movimento no estado.
Também pela possibilidade efetiva de ampliação da visão direcionada ao passado
sobre a qual esta pesquisa se debruça.
Importante nessa perspectiva foi a publicação do livro Brasil Nunca Mais –
emergido de um projeto homônimo da Igreja Católica, elaborado no período de 1979
a 1985, lançado nesse último ano. Nele, encontram-se inúmeros documentos que
narram episódios envolvendo lideranças camponesas participantes desta pesquisa,
das quais se falará oportunamente.
Para qualificar ainda mais a argumentação-base do texto da tese,
recorreu-se a uma extensa bibliografia sobre o tema. Consultou-se, ainda, teses,
dissertações, monografias, mensagens governamentais ao legislativo, artigos, atas
das associações, sindicatos, processos judiciais e inquéritos policial-militares. Isso
porque como pondera Vilanova (1998, p.4):
Uma história para ser bem feita, para a qual, necessariamente, devem-se utilizar fontes orais, além de números, imagens, textos e sons. Se não for assim, corremos o risco de escrever histórias incompletas que silenciem aspectos essenciais de nosso viver.
Neste estudo, o que se pretendeu foi construir uma narrativa, entre as
muitas outras possíveis, de um processo que resultou na formação e organização da
Liga Camponesa de Matinhos. Entidade esta que não aceitou e nem pactuou com a
forma de organização do espaço territorial do campo no Brasil e particularmente no
Piauí. De igual modo, a liga reivindicou, propugnou e reinventou utopias e projetos
para uma sociedade mais justa que desenvolvessem a cultura do respeito aos mais
pobres e humildes.
As lutas empreendidas pela Liga Camponesa de Matinhos, na sua
singularidade e distinção, foram pautadas, inicialmente, a partir de reivindicações por
uma vida digna, com direito de acesso à terra, liberdade de ir e vir; pela
possibilidade de ter outros direitos e pelo reconhecimento no âmbito das relações
políticas e jurídicas.
30
A propósito, a respeito da ação dos movimentos sociais na luta por
reconhecimento político e outros direitos, Axel Honneth faz a seguinte ponderação:
[...] O reconhecimento específico referente às relações jurídicas está vinculado às necessidades dos indivíduos de serem membros com igual valor na comunidade política, isto é, cidadãos. Disto decorre a adjudicação, obtida através da luta social, dos direitos de participação política e dos direitos de bem, que incluem uma medida mínima de formação cultural e de segurança econômica (Honneth, 2003, p 193).
Também se analisaram nessa pesquisa as tensões vividas no interior da
Igreja; entre a Igreja e o Estado; e ainda o papel protagonizado pelos latifundiários
nesse processo durante os governos de Chagas Rodrigues e Petrônio Portella, às
vésperas, durante e nos anos imediatamente seguintes ao golpe civil-militar de 1964.
Reis (1990) explica que, durante a crise do período político identificado
como populismo e a instalação da ditadura civil-militar em março de 1964, “as
instituições políticas pareciam incapazes de conciliar os interesses dominantes e
canalizar as pressões e as insatisfações dos dominados”. Num empenho de melhor
explicar o contexto em questão, o autor acentua:
[...] a crise contaminou os veneráveis suportes dos regimes políticos brasileiros: as forças armadas e a igreja católica. Nas primeiras, divisões verticais e horizontais colocaram em xeque suas bases e organização: a hierarquia e a disciplina. A segunda perdeu coesão e unidade, dividida entre a maioria conservadora, assustada com a união dos “sindicalistas” e “comunistas” e uma minoria progressista favorável às mudanças sociais (REIS, 1990, p. 57).
No caso da Igreja brasileira e em particular a piauiense, os camponeses
constituíram o segmento social privilegiado para as investidas dos religiosos. Assim,
os camponeses de cariz mais conservador foram criando, na proporção de sua
organização, agora orientados e tutelados pelo clero local, os chamados sindicatos
católicos, diga-se, com a chancela da Arquidiocese de Teresina. À frente dela,
encontrava-se Dom Avelar Brandão Vilela, que se mostrava claramente decidido a
conter o movimento das ligas, barrar o comunismo e sufocar, ainda no nascedouro,
outras denominações religiosas, os chamados crentes.
31
Nesta análise, destacou-se a ação do religioso, marcada por uma postura
dúbia, plural: por vezes, medianeira entre o estado e os camponeses; por outras,
propositora à formação de variadas frentes de luta, na maioria tuteladoras.
Embora o chefe religioso se apresente de modo variado, ora mais
progressista, ora mais conservador, não é difícil perceber que, na maioria das vezes,
D. Avelar adota uma posição mais legalista e quando muito avança, torna-se
reformista. É o próprio líder episcopal quem revela sua preferência religiosa ao falar
de sua compreensão sobre a Igreja:
(...) existe uma Igreja popular e uma Igreja institucional. A popular é aquela que nasce do povo, uma Igreja sem muita preocupação com a segurança doutrinária, sem pretender levar em conta a missão especial da hierarquia, dentro da paisagem global (VILELA, 1983 p. 125 -126).
Segurança de qualquer natureza nunca foi competência popular. A Igreja,
como toda e qualquer instituição encravada numa realidade histórica concreta
surgiu, emergiu, sim, a partir de um anseio demandado por uma vontade popular.
Entretanto, logo se estabeleceu, ganhou força e foi vislumbrada como uma possível
ameaça ao estado, a qual veio a ser cooptada por este por meio de um grupo de
elite a ele aliado.
Ao admitir a existência dessa dita Igreja popular – na verdade, embora
não bem vista pelo religioso, uma corrente religiosa que buscava a libertação das
amarras da dominação e principalmente da exploração da força de trabalho dos
campesinos – apenas possibilita se inferir o quanto o clero piauiense na sua
ambiguidade foi conivente e, por um razoável período, submisso à ditadura militar.
Além da fala do chefe religioso acerca de sua compreensão sobre a Igreja
de sua predileção, outros fatos e declarações irão confirmar a posição mais
comedida de Dom Avelar, em torno daquilo que seria seu dito compromisso e
missão à frente da Igreja no Piauí, ou seja, o respeito às determinações da Doutrina
Social da Igreja e a atuação como agente de mobilização social.
Em relação à Liga Camponesa de Matinhos no Piauí, cerne desta
pesquisa, o conjunto de trabalhos produzidos no âmbito das Universidades Federal
e Estadual do Piauí, aos quais se teve acesso, aponta pelo menos três abordagens
32
diferentes entre si, de linhas de análises, posto que em todas elas encontraram-se
alguns elementos diferenciadores a caracterizar esse movimento.
Ressalta-se, entretanto, que mesmo apresentando alguns elementos que
as diferenciem entre si, a quase totalidade das pesquisas examinadas acha-se em
conformidade com os postulados já consagrados, apresentados ora por Clodomir
dos Santos Morais, que defendia a chamada via agrorreformista e tributava a
organização e atuação das ligas aos investimentos comunistas e outros agentes, ou
em oposição a esta, são pesquisas que se filiam à corrente que enaltecem a
atuação pública e destemida do ativista, advogado e deputado federal pelo PSB de
Pernambuco, Francisco Julião, defensor do chamado movimentalismo agrário, como
via para se chegar à revolução camponesa com uma reforma agrária radical e
rupturista. Também existe outro grupo de pesquisa que postula pela total autonomia
dos camponeses, de qualquer maneira todas seguem modelos teóricos prontos.
Na primeira linha na qual se enquadra, por exemplo, a pesquisa de
Libonato de Carvalho Rocha – Ligas Camponesas no Piauí: Município de Campo
Maior. Uma trajetória de Vida –; percebe-se apenas uma preocupação descritiva da
história das ligas, que neste cenário são justificadas pela exploração capitalista,
deveu-se a organização dos camponeses exclusivamente aos seus líderes, sem
influencia externa e segue a mesma análise já canonizada na literatura
historiográfica dominante.
Na segunda linha de análise, os camponeses são considerados
incapazes de arregimentarem, por si só, forças para fazer frente à exploração dos
latifundiários, carecendo de agentes mobilizadores externos como a Igreja e o
Partido Comunista. Nessa linha, o mais significativo estudo, no meio acadêmico, é o
do sociólogo Antônio José Medeiros, intitulado Sindicalização rural e mobilização
camponesa na crise do populismo: o caso do Piauí, 1958-1964.
Na terceira linha –, a luta camponesa é tida como vitoriosa. Entretanto,
além de ser creditada aos investimentos comunistas na região, ressalta também a
incapacidade de os agricultores agirem sozinhos, ou seja, fazerem o enfrentamento
empreendido sem o apoio e a orientação dos agentes externos, como o Partido
Comunista, que almejava a revolução popular no campo. Nesse grupo encontraram-
se apenas duas pesquisas.
33
Ressalta-se, porém, que das duas pesquisas, uma delas adota o termo
“cooperação” entre comunistas e camponeses para justificar, no entendimento do
autor que não havia dependência de um grupo em relação ao outro, mas tão
somente uma relação de cooperação.
A pesquisa aqui em questão – Nas franjas da História: singularidade e
distinção na constituição da Liga Camponesa de Matinhos nos Carnaubais (Piauí) –,
pretensiosamente já colocada pelo próprio autor como um estudo distinto e,
portanto, divergente das pesquisas aqui já analisadas, parte de diferentes
constatações que irão – aí reside a divergência – conferir a esse dito movimento um
caráter particular e específico. Particular e distinto porque, apesar de apresentar
pontualmente alguma semelhança, não guarda relevante similaridade com nenhum
outro estudo anterior. Isso porque esse pesquisador tributa à pesquisa em curso que
os trabalhadores rurais do Brasil, em particular os do Piauí, já registravam, a partir
de suas práticas e comportamentos consciência de si, da conjuntura na qual
estavam inseridos e, principalmente de sua importância como atores políticos na
transformação da dura realidade por eles vivida.
Por ser assim, reconhece, nesses campesinos, a necessidade e a
disposição de organicidade, via entidade que, entre outros desafios, defendessem e
os representasse na luta pelo direito ao reconhecimento, como sujeitos políticos que
pudessem dentro e até mesmo fora da dita legalidade do estado, acessar diferentes
garantias. Garantias, diga-se, constitucionalmente previstas, sobretudo com a
entrada em vigor da Constituição Liberal de 1946, mas somente efetivadas com
muita luta e sofrimento. Em relação à influência ideológica – se o movimento sofreu
– foi seguramente do trabalhismo expresso no Piauí por Chagas Rodrigues, então
governador e uma das principais personalidades políticas do estado.
O movimento emergido da propriedade Matinhos em Campo Maior,
classificado neste estudo como um movimento reivindicativo outro aspecto
diferenciador em relação às demais experiências ocorridas no período, teve, entre
outras motivações, a disposição de lutar contra o desrespeito jurídico, a experiência
do rebaixamento da dignidade social e, de modo particular, contra a permanente
condição de excluídos da posse de direitos – como a liberdade de comercializar sua
produção para outros proprietários além do patrão, o de receber a indenização por
benfeitorias realizadas nas terras em que viviam como agregados, de acesso à
34
escola, de assistência médico-hospitalar – no interior da sociedade da qual
acreditavam ser parte.
Foi, sim, um movimento social vitorioso, o que diverge também dos outros
estudos, em razão das significativas demandas alcançadas. Dentre as quais,
destacam-se acordos agrários jurídico-cartoriais intermediados pela SUPRA, a
redução da renda, a mudança na execução da obrigação de realizar a sombra da
casa e, no limite, representou mudança política considerável na vida tranquila do
interior das propriedades, o que antes era inimaginável.
A relevância da pesquisa reside necessidade de elaboração de uma
produção histórica interpretativa, crítica, que valorize as experiências vividas pelos
trabalhadores e cumpra, além do papel acadêmico, uma função política. Postula-se
ainda pela importância reflexiva desta pesquisa na medida em que auxilie os
movimentos sociais de hoje e contribua para uma melhor compreensão e
consequente resgate da memória do movimento camponês no estado. Assim como
da imagem de Luiz Edwiges e de outras lideranças sociais, no que tange à
organização e ao protagonismo das Ligas Camponesas no Piauí.
Pretende, sim, escapar dos estereótipos sacralizados no meio acadêmico
a partir das primeiras pesquisas que se debruçaram sobre o mesmo objeto: Ligas
Camponesas no Piauí. Nesse propósito, a pesquisa se propõe a resgatar e a
ressignificar a força e a luta da ALTACAM, no contexto da crise do populismo às
vésperas, durante e logo depois do golpe civil-militar de 1964. Essas e outras
questões com suas respectivas amplitudes serão devida e oportunamente
trabalhadas no desenvolvimento dos capítulos que formam esta tese.
Postula-se por tal necessidade dada a ausência de um estudo de fôlego
que possa aferir uma leitura mais substantiva a respeito da trajetória desse
movimento, como também da própria história de luta dos trabalhadores rurais no
estado.
Em outras palavras, pode-se dizer que predomina o silêncio nas
produções relacionadas ao movimento campesino no estado. Eventos como a prisão
e a perseguição de lideranças camponesas no Piauí, como Luiz Edwirges, Luiz
Ceará e muitos outras ficaram ocultados. Tal fato se percebe, inclusive, na mais
recente obra – Retrato da Repressão Política no Campo, Brasil 1962-1985,
35
Camponeses Torturados, Mortos e Desaparecidos –, de Ana Carneiro e Marta
Cioccari, lançada pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário, em parceria com a
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
A obra a que se propõe fazer um retrato da geografia da repressão no
campo inicia com um esclarecimento à segunda edição. Inferindo que foram
introduzidas no texto, agora revisto pequenas alterações corrigindo problemas
técnicos, imprecisões ou informações equivocadas que escaparam à edição anterior,
fazendo referência a alguns nomes da lista de vítimas da repressão em outros
estados do Nordeste. Mas que novamente ignora, desconhece a perseguição e
repressão em outros, como no Piauí, ante a resistência campesina que ainda pulsa
como lugar de memória; e, assim, precisa ser lembrada para não cair no abismo do
esquecimento.
Outro aspecto de relevância deste estudo está no fato de denunciar que
os governos constantes do período considerado (1958-1968), como Juscelino
Kubistchek e também outros jamais fizeram propostas com o efetivo compromisso
de reestruturar o campo. Particularmente, com vistas a tornar o seu uso mais
produtivo e justo, reduzindo de modo significativo as desigualdades. O que se fez, e
muito, foi lançar mão de políticas compensatórias – fomento de crédito agrícola,
assentamentos rurais minguados, distribuição de insumos, frentes de trabalho – com
o intuito de confundir as populações pobres, desassistidas, e de conter as pressões
dos movimentos sociais.
Tem-se analisado questão agrária por um olhar essencialmente político-
ideológico e isso remonta a projetos implantados ao longo da história, bem como a
intenção do Estado com a regulação da propriedade da terra. Uma das razões pelas
quais o Estado brasileiro nunca resolveu o problema fundiário está no fato de que
essa questão sempre foi tratada como caso de polícia, sendo reduzida,
estrategicamente, a esfera do debate aos conflitos agrários, que foram sempre
judicializados.
No tocante ao material documental utilizado – entrevistas, notícias de
jornais, atas de assembleias, fotografias, mensagens governamentais, entre outros –,
destaca-se o compromisso movido pela consciência do pesquisador de não buscar
na leitura um espelho da realidade, mas sim e tão somente tê-la como
36
representação. Uma representação que possa configurar um ponto de vista, dentre
vários possíveis, de um ativista social importante, ou de um jornalista, de um
proprietário e outros mais.
De igual modo, também evidenciar que o pesquisador levou em
consideração que as fontes não se explicam por si só. É o mesmo que, a partir dos
questionamentos levantados e das análises procedidas, dá sentido ao objeto de
estudo que norteia a pesquisa, tendo em mente sempre o auxílio de outras áreas do
conhecimento, como no caso aqui em questão, a sociologia, a política e a geografia,
por exemplo. O diálogo com outros pesquisadores sejam eles historiadores,
antropólogos, sociólogos, filósofos certamente contribuirão no sentido de ampliar os
horizontes de investigação e elaborar de modo mais adequado as categorias de
análises do processo histórico em estudo, sem, contudo, toma-los como modelos
prontos, não submetidos a críticas.
Em relação à organização do texto final da tese, deu-se a seguinte
estrutura: Introdução, quatro capítulos – dos quais os três primeiros foram
nominações emergidas das falas dos camponeses e de outros entrevistados – assim
intitulados: Quem tá por baixo... um dia vai subir: a luta pelo reconhecimento político
e outros direitos; A igreja entra em campo: entre instituição clerical e agente de
transformação social; a difícil relação a partir e além do Concílio Vaticano II; Um pé
lá e outro cá, do ideário modernizador à pratica assistencialista de Chagas
Rodrigues ao conservadorismo reformista do esquema Portella; e, finalmente, O
fazer-se da narrativa acadêmica local sobre as ligas Camponesas , uma crítica
epistemológica ao discurso colonizado que nega a experiência peculiar de Matinhos
e Considerações Finais.
A introdução revela a intenção do pesquisador, pois discorre sobre o
estudo como um todo: explica de forma sucinta o conteúdo, sumariza a estrutura,
descreve o percurso metodológico, trata das fontes e, também, referencia algumas
ancoragens teóricas: Thompson (classe), Hill (história vista de baixo) e Scott
(economia moral), Honneth (movimento social e luta por reconhecimento), Portelli e
Halbwachs (memória), entre outros.
No primeiro capítulo – Quem tá por baixo... um dia vai subir: a luta pelo
reconhecimento político e outros direitos –, tem-se por foco a experiência
37
organizativa das ligas. Narra-se a luta pela terra no Brasil e no Piauí. Buscam-se as
memórias e evidencia-se a singularidade, especificidade e distinção no processo de
formação das Ligas Camponesas. De modo particular, no Piauí: a experiência
organizativa na Terra dos Carnaubais; motivações, natureza e desafios. Caracteriza-
se a realidade socioeconômica da região e, ainda, relata-se o vanguardismo da
família Osório Lopes. O cerne desse capítulo, como dito, é singularizar e distinguir a
experiência organizativa de Matinhos, em Campo Maior.
No segundo capítulo – A Igreja entra em campo: entre instituição clerical e
agente de transformação social, a difícil relação a partir e além do Concílio Vaticano
II – analisa-se o contexto social e político das décadas de 1950 e 1960 no Piauí,
Brasil e América.
Relacionam-se e comentam-se as principais mudanças ocorridas no
interior da Igreja Católica, e a ação desta no cenário de organização e luta dos
trabalhadores rurais do Piauí a partir das influências do Concílio Vaticano Segundo,
dentre as quais, as advindas da Encíclica Mater at Magister e Pacem in Terris,
entendido como o maior e mais importante acontecimento da Igreja Católica no
século XX. Assim, tecem-se considerações sobre a atuação de Dom Avelar à frente
do clero piauiense.
Sumariza-se o papel das Semanas Ruralistas com ênfase nas semanas
realizadas no Estado. Relata-se, nesse contexto, o primeiro congresso sindical dos
trabalhadores e camponeses do Piauí em 1961. Registra-se a fundação do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior – STRCM, em 1962. Evidencia-se, ainda
no rol de atuação da Igreja, o papel do rádio – de modo particular da emissora
Pioneira de Teresina, de propriedade da Diocese – na transmissão do MEB,
Movimento de Educação de Base – e de programas como Desperta Camponês
associado a outro veículo de comunicação e evangelização, o jornal O Dominical,
nesse processo.
No terceiro capítulo – Um pé lá e outro cá: do ideário modernizador á
prática assistencialista Chagas Rodrigues ao conservadorismo reformista do
esquema Portella –, transita-se entre os governos de Chagas Rodrigues (1959-
1962) e Petrônio Portella Nunes (1963-1966). Discute-se a chegada acidental de
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Chagas Rodrigues ao Palácio de Karnak, a estranha aliança política PTB/UDN, a
abertura política do governo (Chagas) aos movimentos sociais, o assistencialismo e
as tentativas de modernização do Estado (empenho em implantar a barragem de
Boa Esperança) e ainda a criação de uma atmosfera mais democrática e favorável à
ação das organizações populares – criação da casa dos sindicatos – os conflitos em
torno das questões que envolviam a terra e as propostas de reforma agrária, com
ênfase na atuação da SUPRA – Superintendência da Reforma Agrária (1962).
Fazem-se considerações pertinentes à Constituição de 1946,
particularmente aos aspectos relacionados à dita função social da propriedade, aos
Estatutos do Trabalhador Rural (1963) e aos da Terra (1964). Analisa-se, ainda, o
retrocesso político - com cassações de mandatos de parlamentares –, instalado no
Piauí e procede-se uma leitura crítica da atuação política de Portella no estado e,
também, no cenário nacional.
No quarto e último capítulo – O fazer-se da narrativa acadêmica local
sobre as ligas no Piauí, uma crítica epistemológica ao discurso colonizado que nega
a experiência peculiar de Matinhos –, procede-se uma leitura analítica dos estudos
produzidos no estado, no âmbito das Universidades Estadual e Federal por
estudantes dos diversos níveis de formação – graduação e especialização, os quais
foram agrupados nesta pesquisa em três diferentes linhas interpretativas, já
mencionadas sobre as ligas.
Nesse empenho, busca-se identificar, sem qualquer pedantismo teórico a
visão de seus autores sobre o movimento desses campesinos, com vistas a situar a
lógica individual – reducionista ou generalista – deles. E, principalmente, historicisa-
se o movimento social reivindicativo de Matinhos, evidenciando a sua trajetória de
luta pelo reconhecimento político, pelo acesso e permanência na terra, pela reforma
agrária e outros direitos na década de 1960. Também se buscou conhecer as
diferentes concepções de historia, as fontes e os variados percursos metodológicos
desses autores.
Caracteriza-se ainda a estrutura organizacional da liga, observando as
convergências e divergências entre as principais experiências desenvolvidas na
Terra do Sol e do Equador e no Brasil. E, finalizando, busca-se também caracterizar
a composição social do movimento no Brasil e no Piauí vislumbrando detectar
diferenças e semelhanças na sua composição.
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Nas Considerações Finais, evidencia-se – subjacente a todo o
procedimento analítico do estudo aqui empreendido – a ancoragem conclusiva do
pesquisador, na qual aponta e elenca as transformações sociais emergidas na
região de Campo Maior e no Estado do Piauí a partir do movimento, entendido como
vitorioso, dos campesinos de Matinhos, mostrando a riqueza das mobilizações dos
camponeses, como ações autônomas e criativas num contexto de exploração
profunda.
Também, reconhece-se a importância do papel subversivo e transgressor
do movimento desses sujeitos que protagonizaram o enfrentamento necessário à
conquista do reconhecimento político; à imputabilidade moral na mesma medida
dada aos outros membros da sociedade; à defesa da reforma agrária, da
democracia, tenuamente frágil à época; e, por via de consequência, à luta pela
cidadania.
Finalmente, tecem-se conjecturas possíveis, dentro da situação social
vivida às respostas apresentadas aos problemas de então, e também caso o
movimento da Liga Camponesa de Matinhos tivesse sido abortado como pretendiam
os poderes constituídos.
Sobre as informações elencadas em cada capítulo atinentes a
referenciais teóricos e fontes, o pesquisador ressalta que as constantes aqui na
introdução são circunscritas apenas às de maior relevo, às que sinalizam de modo
mais evidente o eixo basilar das abordagens. As outras – as não registradas – têm,
obviamente, suas inserções na oportunidade de suas contextualizações nos seus
respectivos capítulos.
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CAPÍTULO I
1. QUEM TÁ POR BAIXO, UM DIA VAI SUBIR: A LUTA PELO
RECONHECIMENTO POLÍTICO E OUTROS DIREITOS.
1.1 Matinhos do Meio, lugar de resistência.
Enfrentar o latifúndio e opor-se ao estado – representante maior da classe
dominante – tem marcado a história de vida dos camponeses.
Para Martins (1981, p. 113), Azevedo (1982, p. 70) e também para Bastos
(1984, p. 93) Grynszpan (2014. P, 20) estes novos atores históricos passaram, a
partir dos anos 40 e 50, a compor o quadro de agentes que contribuíram para
transformar o cenário da sociedade brasileira, resistindo à expropriação, à expulsão
das terras e à recusa do assalariamento.
Essa resistência objetivava o crescimento da mobilização dos
trabalhadores rurais em diversos pontos do país de forma mais integrada. Assim,
esse novo quadro deu origem às associações de trabalhadores rurais em todo o
país – no Piauí, a União dos Camponeses Piauienses – UNICAMPI, no Brasil a uma
federação de entidades rurais, a ULTAB - União de Lavradores e Trabalhadores
Agrícolas do Brasil, criada em 1954, são exemplos dessas experiências.
Formaram-se ainda um número expressivo de outras entidades
representativas, na forma de associações e sindicatos de perfil político, de classe ou
simplesmente reivindicativo não vinculado a essas entidades federativas. São
exemplos dessas experiências o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Santa Luzia
(MA), a Federação de Trabalhadores Rurais do Ceará (Fetrace) e o Sindicato de
Trabalhadores Rurais de União (PI), dentre outros de forte atuação no meio rural e
que tiveram suas lideranças vitimadas pelos governos militares.
Nesse contexto, as Ligas Camponesas se constituíram na mais
importante das organizações do período, por seu papel fundamental na projeção das
41
lutas do homem do campo pela posse e propriedade ainda que precárias da terra,
muitas vezes com adoção de táticas e estratégias que desafiavam os poderes
estabelecidos.
De acordo com Montenegro (2004, 391-416), as Ligas Camponesas –
aqui apresentadas de forma genérica – ganham destaque, na região Nordeste, como
organizações coletivas desenvolvidas pelos próprios trabalhadores, voltadas às
propostas de melhoria das condições de trabalho e de assistência aos trabalhadores
rurais.
Elas teriam seu gérmen nutrido, em 1954, no Engenho Galileia, em Vitória
de Santo Antão, Pernambuco, a partir da fundação da SAPPP – Sociedade Agrícola
e Pecuária de Plantadores de Pernambuco.
A presença de Francisco Julião, advogado, escritor e deputado pelo
Partido Socialista Brasileiro – PSB conferiu maior radicalismo e visibilidade às ligas
em Pernambuco. Tanto é que se tornaram, em alguns aspectos, modelo e referência
para várias outras experiências organizativas de trabalhadores rurais em todo
território nacional; mas, em maior proporção, na região Nordeste. Jorge Ferreira e
Ângela de Castro Gomes pontuam bem esse momento:
A proposta inicial das ligas era defender os camponeses da exploração dos latifundiários, conscientizando-os sobre as péssimas condições de trabalho e procurando esclarecê-los de que tinham direitos a reclamar. Contudo, sua orientação mudou quando Francisco Julião assumiu a liderança do movimento, tornando-o mais radical na luta pela reforma agrária. Na época, Julião visitou Cuba e voltou bastante influenciado pela experiência revolucionária que ocorria naquele país (FERREIRA; GOMES. 2014, p. 82).
As Ligas Camponesas se tornaram, assim, necessárias e, por excelência,
tidas a partir de então como:
(...) instrumentos de organização e mobilização das massas rurais pelo Partido Comunista, que atuava não só com assalariados da grande propriedade comercial, mas encampou também as reivindicações específicas do campesino, do pequeno produtor ou arrendatário, dos parceiros e posseiros (AZEVEDO 1982, p. 69).
Nessa mesma linha de análise, Andrade (1986. p 27-28) argumenta que
as ligas ganharam importância nas áreas:
42
Onde havia camponeses a serem explorados devido à expansão de cana-de-açúcar, como nos municípios de Vitória do Santo Antão, em Pernambuco e Marí e Sapé, na Bahia, ou nas áreas em ocupação, onde os posseiros eram expulsos da terra por latifundiários e grileiros nos sertões do Maranhão, Piauí e Bahia (ANDRADE, 1986, p. 27-28).
Outra particularidade apresentada às ligas é dada por Clodomir Santos
Morais quando, a despeito de divergências com o advogado Francisco Julião, outro
defensor das ligas, aborda diferentes aspectos de caracterização desse importante
movimento social e que, segundo ele, teria implicação direta no resultado político do
movimento.
Para esse ativista e ao mesmo tempo um dos mais destacados
estudiosos desse movimento social, as ligas possuem estruturação regional e não
local, como afirma Julião. Para ele, elas estavam umbilicalmente ligadas às
estratégias políticas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e – ao contrário do que
defende Francisco Julião – contavam com uma cúpula urbana com funções políticas
específicas e bem definidas, que respaldava os campesinos nas suas demandas.
Também diverge de Julião quanto ao surgimento das ligas, por ele identificadas
como modernas, e organicamente constituídas entre 1945-1947, que corresponde
ao período de legalidade do PCB, força política sem a qual, segundo ele, as ligas
não teriam existido. Além desses existem outros aspectos divergentes.
Pesquisando a experiência piauiense, chegou-se à Vila de Santo Antônio
do Surubim, elevada à categoria de município, de acordo com João Alves Filho
(2011), com o nome de Campo Maior em 28 de dezembro de 1889, região integrante
nos dias atuais do Território dos Carnaubais, distante de Teresina, capital do estado,
aproximadamente 86 km. (conceituar território dos carnaubais)
Foi nessa região, identificada pelos moradores que lá vivem, legítimos
“trabalhadores da memória” (Bosi, 1983) como “lugar valente” que se desenvolveu
na propriedade Matinhos do Meio, pertencente ao senhor João Edwiges (vaqueiro e
pequeno proprietário), pai de Luiz Ribamar Osório Lopes (lavrador), conhecido como
Luiz Edwiges, a mais expressiva organização coletiva de trabalhadores rurais do
estado, a ALTACAM – Associação de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de
Campo Maior.
O processo organizativo dessa Associação, depois de iniciado pelos
próprios campesinos de Matinhos do Meio, veio possivelmente, posterior a este
43
primeiro momento, de algum modo, a ser inspirada, em termos tão somente
documentais, e não orgânicos, na Liga de Teresina, na Fazenda Iniga e,
provavelmente, também nos mesmos termos, na Liga Camponesa de Pernambuco,
do Engenho Galileia. Tal inferência se torna evidente por se saber que cópias dos
estatutos, bem como de outros documentos, como cartilhas de orientação desta
circularam, muito propositalmente, por todo o Nordeste.
Embora as primeiras conversas e ações no sentido de organizar e fazer
atuar as ligas remeta ao ano de 1961, oficialmente a Liga de Matinhos só foi fundada
em 08 de julho de 1962, e teve como principais membros os irmãos Lopes: Luiz
Osório Lopes, uma espécie de ativista forjado nos marcos constitucionais da carta
liberal de 1946, Raimundo José Osório Lopes, com perfil mais pacificador e,
finalmente, Ribamar Osório Lopes, uma espécie de autor intelectual, ou como dizia o
próprio Luiz Edwiges, “uma lanterna que iluminava os passos e as ideias dos outros
membros da liga”. A liga contou também no início com a atuação incansável dos
agricultores Francisco de Souza Pereira e Luiz Pedro da Rocha, o Luiz Edite.
Em entrevista realizada em 27.02.2012, na sua própria casa – uma
construção simples que combina o velho com o novo, o passado com o presente e
que guarda, segundo o próprio Edwiges, “bons e maus bocados de sua vida” –, o
lavrador, ao puxar pela memória para falar do tempo de luta, recorda do irmão
Ribamar Lopes, que, segundo ele, estava sempre disposto a orientar os
companheiros. O líder camponês visivelmente emocionado, apoiado em um cacete
de jucá, que funciona como extensão de seu corpo cada vez mais corcunda, ao
relembrar a luta para fundar a liga e da forte atuação do irmão nesse intento,
declarou:
(...) era um home danado de sabido, todo mundo gostava da prosa dele. O Ribamar pegava tudo que era de jornal, papel, livro, qualquer coisa que ele encontrasse no munturo e que servia para ensinar nóis. Ele pegava, separava e lia na boca da noite com uma lamparina de querosene na mão. E tinha mais! Explicava tudo, às vezes até com versos, acredita? Tinha um que dizia assim: Eu sou de uma terra que o povo padece, mas não esmorece e procura vencer. Não me alembro mais... sei que falava de luta.
Embora fossem oriundos de uma região econômico-social pouco
abastada, os irmãos Lopes detinham uma apurada consciência política em relação à
44
necessidade de organizar e defender os trabalhadores rurais de Matinhos e de
outras localidades circunvizinhas, tais como: Buritizinho, Belo Monte, Puba, Floresta,
Corredores e Fazendinha, que também sofriam diversas retaliações por parte dos
proprietários. Assim, como sujeitos pensantes e reflexivos (CHAUÍ. 2001.p.118)
procuravam romper com as ordens estabelecidas.
Na região de Campo Maior, particularmente na fazenda Matinhos e
localidades próximas e também circunvizinhas, percebia-se a clara coerção e
privação dos direitos civis, políticos, econômicos e culturais impostos aos
camponeses. Dentre essas, uma das que mais se contrapunha à vontade dos
camponeses era a obrigação de executar a sombra da casa. O agregado se sentia
humilhado porque era coagido – obrigação aviltante e indigna segundo muitos deles
– a comparecer, no dia determinado, para fazer a sombra da casa, sob pena de sua
falta ser punida com a expulsão dele, agregado, e da sua família das terras do
patrão. O não comparecimento era injustificável; tolerado apenas se, no
impedimento do morador, o agregado enviasse para a tarefa um filho ou enteado.
Mas porque a realização da sombra da casa agredia tanto aos camponeses?
Realizada quase sempre aos domingos dia consagrado na cultura
sertaneja, ao Senhor e também ao descanso familiar, essa obrigação talvez
provocasse nos agricultores e vaqueiros da região mais indignação e revolta do que
o próprio pagamento da renda. Em entrevista a este pesquisador o senhor Salomão
Pereira, devoto de Santo Antônio, santo padroeiro do lugar, ao se reportar ao dia de
domingo, dia do senhor e também escolhido pelos proprietários para realizar a
sombra da casa, assim se posiciona:
“Seu moço eu não me alembro de quantas moradas eu pedi pra ir embora, é certo que fizemo, eu a dona Chica, mãe dos meninos e um afiado que morava com agente umas três a quatro mudas. Era de terra em terra, sabe por quê? Por que o único dia que nós tinha pra ficar junto, rezar e agradecer a Deus Pai todo poderoso, era o Domingo e agente ainda tinha que trabalhar? E trabalhar pro outros? eu não aceitei mais e juntei mais 5 companheiros e fizemos um pedido aos donos das terras. Você me acredita que só dois aceitaram mudar pro sábado de tarde? O meu foi um dos que não aceitou, peguei meus trapos e fui me embora e nesse dia combinei com a mulher que nós só ia agora pra donde o patrão desse o domingo pra nosso descanso e agradecimento ao Pai Nosso Senhor, num sabe”?.
45
Com esse posicionamento ficou evidenciado que os camponeses
guardavam os dias considerados santificados e a pressão dos proprietários gerava
uma espécie de rebeldia em defesa desses costumes. Thompson entende tratar-se
de “comunidade de interesses” e quando os supostos direitos desse grupo eram
ameaçados, os camponeses reagiam com exigências do cumprimento daquilo que
entendiam ser direito deles e obrigação das elites respeitarem.
Além da dita tarefa de fazer a sombra da casa, os campesinos agregados
da fazenda Matinhos e regiões adjacentes e circunvizinhas também consideravam
absurdamente aviltantes o monopólio da venda, sem recebimento de qualquer valor
em dinheiro, dos produtos por eles extraídos do babaçu e do tucum: palmáceas, cujas
bagas dos frutos (cocos) serviam para abastecer as indústrias oleaginosas da região,
além de ser para muitos deles uma fonte de renda complementar, obtida a partir do
fabrico artesanal e da venda ou troca na “moita” do azeite entre os próprios lavradores.
Também lhes agrediam outras proibições, dentre as quais a da realização
solidária de atividades recíprocas de trabalhos. Aqueles feitos por tradição cultural
entre si, os conhecidos mutirões, utilizados na recuperação de cercas caídas, na
cobertura de casas, nas brocas, nos plantios e colheitas. Esses mutirões
representavam aos olhos dos proprietários oportunidades conspiratórias e, portanto,
um espaço de prática política e de reforço de sociabilidades.
O disparate desses cerceamentos chegava ao absurdo de proibir até
mesmo a realização de certas cerimônias religiosas – nominadas aqui no Piauí entre
os agricultores de adjuntórios – como batismo de crianças, celebrações de
novenários, com ou sem leilões, nos quais os lavradores tinham por tradição doar
uma “prenda”, dar um adjunto.
As lideranças do movimento dos trabalhadores rurais da região – à frente
o Luiz Edwiges e seus irmãos – contrapunham-se a todos esses absurdos
protagonizados pelos patrões proprietários das fazendas, ilegalidades invisíveis aos
olhos do estado.
As taxas cobradas pela ocupação e exploração da terra (renda), irritavam-
lhes sobremaneira, deixavam-lhes – e também aos demais – possessos, porque eles
as consideravam injustas e consequentemente ilegais. Essas taxas se traduziam no
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pagamento de duas a três quartas de produtos (milho e feijão) e, no caso da
mandioca, duas cargas (a carga corresponde a 60 Kg) por cada linha de roça
plantada (uma linha representa 25 braças em quadra).
Além dessas cobranças, o agregado ainda era submetido ao pagamento
de prestação de serviços em dois dias da semana (cambão) na propriedade do
fazendeiro. Essa obrigação era outra violência comum que muito os agredia. Muitos,
ainda que indignados, respondiam às vezes com silêncio profundo, abandonando as
terras onde viveram por muito tempo, deixando, para trás, casa, plantações e
recordações, que, às vezes, doíam mais que os prejuízos materiais não indenizados
pelos proprietários; em outras, com ações concretas e diretas, como as invasões de
terras, como a recusa de se retirar da propriedade sem indenização ou, ainda, a não
concordância de certos pagamentos que os proprietários lhes impunham naqueles
momentos.
Luiz Edite, um dos fundadores da Liga de Matinhos e posterior membro
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, ilustra bem a questão:
[...] Nós tava tudim, eu, cumpade Luiz, o Damião, o Chico da Cruz, que mora nas Pubas, e uns outros mais... quando escutemos a notícia que um fulano, lá de perto da Lagoa dos Corró, tinha sido corrido das terra de um certo proprietário, e pense... sem direito a nada... já pensou? Pois a história que todo mundo sabe aqui é que esse pobre fez um destroço tão grande, mas tão grande, dizem e foi verdade, que eu mesmo fui lá pra espiar. Sabe o que esse caboquim veio fez? Derrubou uma casa de farinha, um bocado de pé de manaíba, arrancou outros pelo tronco, cortou umas mangueiras bonitas que tinha na terra, derrubou uma casa de morada. Meu amigo... lá foi coisa! O cabra se vingou e nós achemos bonito. Afinal, ele já morava lá uma vida!
Entretanto, a maior de todas as agressões era mesmo a humilhante
indiferença dos proprietários com os seus moradores. A situação, não raras vezes,
chegava a ser exasperadora, principalmente quando aqueles negavam auxílio a
estes ou a qualquer membro da família em caso de enfermidades e até de
acidentes. Embora não fossem todos, a maioria sempre se mostrava indiferente em
tais situações, por maior que fosse a dor, o infortúnio da família agregada. Isso ficou
evidenciado na fazenda Monte Belo da família Gentil Alves, como bem relata Luiz
Edwiges:
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Foi um dia da semana, num sei se quarta ou quinta-feira. Sei que era do mei pro fim. Um homi bem pouquim, chegou lá em casa na boca da noite dizendo que tava sendo corrido das terras do fulano, porque vendeu umas bagas de coco para comprar remédio para passar a febre do filho mais velho, que tava muito doente (cezão), se queimando de febre. Pra quê? O homi ficou sabendo... eles tudim tinha um puxa-saco, num sabe?... que a venda tinha sido feita em outra quitanda de outro proprietário, num sabe? Rapaz, pra quê? Esse homi se danou e disse cobras e lagartos com o pobre... disse as do fim e que ele nunca mais ia fazer venda para ninguém, pois daquele dia em diante ele podia procurar outras terras para morar.
Naquele dia não preguei os oi, não dormia, levantava e rezava pra aquela noite passar logo e eu ir com outros companheiros na casa do homi lá, do coisa ruim, defender nosso irmão que tava cuidando do filho, da família, e nem assim o fazendeiro ajudava. Isso não aguentei.
Esse tipo de atitude dos proprietários de terra constituía-se naquilo que
Honneth (2003, p. 224) classifica de “experiência do desrespeito.” Isso só fazia
aumentar a revolta dos camponeses. Alguns desses respondiam com ações –
sabotagens – (táticas), fragmentárias, sutis e difusas, como na realização precária
de consertos das cercas das fazendas, na sombra da casa5, ou no cometimento
deliberado de erros na marcação de animais (boi, cabras e burros) e até na colheita
de milho, feijão e mandioca, furando as fileiras do plantio para reduzir a produção e,
consequentemente, a quantia a ser paga aos proprietários na forma de renda ou meia.
Como se percebe, no Piauí dos anos 60, ainda persistia a manutenção de
formas de trabalho fundadas na coerção extraeconômica, com liames de
dependência e subordinação que se mostraram para além das relações impessoais
e que variavam desde a violência aberta como as identificadas anteriormente, até a
intromissão privada na vida do agregado, que era às vezes proibido, embora não
acatasse, de receber visitas e até mesmo entregar o filho para outro proprietário
apadrinhar. O apadrinhamento por outro proprietário somente era tolerado se esse
ainda que não fosse correligionário, pelo menos não alimentasse alguma diferença
com aquele proprietário onde o agregado morava ou fazia sua roça.
_____________________ 5 Sombra da casa, espécie de obrigação a que eram submetidos os trabalhadores
agregados das propriedades localizadas na região do território dos carnaubais. Obrigação de limpar os arredores da casa do proprietário até o limite da sombra delimitada pelo sol do meio-dia. Obrigação normalmente exercida em mutirão e aos domingos.
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Como os camponeses poderiam superar essas práticas e
comportamentos dos proprietários presentes na vida social que simbolizavam clara
experiência de ofensa ou desrespeito, ferindo profundamente a honra e a dignidade
desses indivíduos como membro de uma comunidade cultural de valores?
Os movimentos sociais, como bem se sabe, continuam sendo
atores sociais, jurídicos e políticos de grande importância. Superada a fase
clássica de enfrentamentos sociais e mais especificamente trabalhistas do
século XlX e pacifistas do século XX, há hoje uma agenda bastante ampla de
mobilizações.
Postula-se, também, que os movimentos sociais existem principalmente
como consequência de um estado omisso ou opressor, e de uma sociedade
desigual e injusta, que demandem um tipo de organismo social de reivindicação e
luta. A cultura nos movimentos sociais se expressa através do conflito e da
solidariedade, da carência, da escassez e da falta, e é justamente essa cultura que
se reúne em um mesmo organismo de resistência.
Para Touraine (2003), os movimentos sociais contemporâneos – campo
ou cidade – não estão necessariamente a serviço de nenhum modelo de sociedade
perfeita, mas lutam pela democratização das relações sociais. Ele enfatiza melhor
sua posição ao afirmar:
Os movimentos sociais são aqueles que combinam um conflito social com um projeto cultural, e que defendem um modelo diferente de uso dos valores morais. Portanto, baseiam-se na consciência de um conflito com um adversário social. (TOURAINE, 2003, p.119).
Na mesma perspectiva de Touraine, o sociólogo alemão Axel Honneth
argumenta que a luta pelo reconhecimento e a forma como a falta de
reconhecimento atinge os indivíduos estão diretamente relacionados à maneira de
constituição do contexto político e cultural dos sujeitos afetados. A argumentação
por ele proposta é a de que somente pela articulação a um movimento social:
[...] a experiência do desrespeito pode tornar-se uma fonte de motivação para ações de resistência política. No entanto, só uma análise que procure explicar as lutas sociais a partir da dinâmica das experiências morais orienta acerca da lógica que segue o surgimento desses movimentos coletivos (HONNETH, 2003, p. 224).
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Assim, o contexto brasileiro e particularmente o piauiense nas décadas de
50 e 60 do século passado, era marcado pela ausência ou presença mínima de uma
efetiva e sólida esfera pública que deixava populações inteiras, especialmente as do
campo, às margens do processo econômico, social e político. Isso quando leva à
organização popular, o que se deu no Piauí, faz surgir um sujeito coletivo e
empoderado que enfrenta as lealdades locais e repercutem quando mostram a
deficiência do estado diante da questão social. Nessa perspectiva, os movimentos
sociais mais ostensivos são aqueles cuja pauta de demandas está ligada ao
questionamento e consequente enfrentamento das profundas desigualdades sociais
e econômicas.
Esses movimentos, a exemplo da Liga de Matinhos, aqui classificada
como movimento social reivindicativo, têm sua legitimidade garantida por uma
cultura de exclusão do popular, de invisibilidade e da notória fragilização do público
em favor dos interesses privados. Nesse contexto, muitos sujeitos sociais atuavam
cada um defendendo seu interesse específico, no sentido de desqualificar, reprimir e
deslegitimar as demandas que questionam o status quo econômico e social, fonte de
toda desigualdade.
Certa vez, Hannah Arendt (2007) mencionara que a condição humana se
constitui enquanto um processo dinâmico e relacional distribuído em vários aspectos
e faces da vida cotidiana (labor, ação, trabalho). Em meio a tais aspectos, os
sujeitos são levados a pensar sobre o lugar social que ocupam, e,
concomitantemente, seus papéis dentro do núcleo coletivo ao qual pertencem.
É a partir desse momento que estes trafegam por caminhos nos quais se
torna possível perceber o jogo de relações sociais e políticas que se
encontram articuladas às suas condições de existir e, em contrapartida,
constroem possibilidades para expressar certos questionamentos acerca de tais
condições.
O fragmento transcrito na citação a seguir denota a emergência
dessa percepção de compreensão crítica relacionada a uma realidade
experimentada. Através do ato de rememorar e lançar mão de determinadas
sensibilidades por meio de um exercício memorialístico, reflexivo e pessoal,
ela evidencia uma leitura de mundo feita por um indivíduo que se percebeu
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enquanto alguém comprometido com a tarefa de edificar um lugar de direito para si
mesmo e para seus pares, enquanto categoria social esculpida na teoria e na
prática.
[...] eu sentia que alguém que tinha documento alguém que tinha, era categoria, e a gente que não tinha, aí eu começava a falar essas coisas pra ele, e eu perguntava pra ele: será se não tinha um jeito, da gente se organizar?Porque os motoristas já tinham uma categoriazinha meio pequena, os militares tinham, os médicos tinham, os padres tinham, os bancários tinham e alguns empresários também já tinham, e ele olhava pra mim e achava graça e dizia: “Luiz, tem. Desse jeito, tem; mas o rico não quer que o pobre faça isso não, porque eles pensam assim, muitos deles, não é todos não! Mas tem um bocado aí que pensa assim: esse gado aqui é todo meu, essa terra toda é minha, esses “cabocos” são tudo meu, aqui quem manda sou eu, quem não fizer o que eu quero, do meu jeito, vai embora”. Sempre acontecia essas coisas desse tipo assim.... Aquilo também despertava a gente um pouco... Saber daquelas histórias de longe, e eu era interessado em saber dessas histórias, nós continuamos assim, no rumo das histórias das ligas camponesas.
O sujeito em questão é um vaqueiro e lavrador que percebera, diante das
condições do meio social ao qual pertencia, a necessidade de romper com o quadro
de rebaixamento social, de não reconhecimento político e de exploração a que
estava submetido. Seu nome: Luiz Osório Lopes, conhecido como Luiz Edwiges
Lopes.
Atento ao devido cuidado para não confundir realidades de lugar e tempo
distintos, correndo o risco de assumir postura inclusive anacrônica, o pesquisador
considerou o contexto – formação e desenvolvimento – da liga de Matinhos,
envolvendo ações, tensões e revoltas em torno da posse e permanência na terra, na
luta pelo reconhecimento político e pela legalidade de outras demandas – no período
entre 1958/1968 –, que pode ser compreendido à luz da noção de economia moral,
postulado por Thompson e ampliado por James Scott.
Essa noção, de acordo com a leitura processada, auxilia na explicação do
comportamento e nas ações dos camponeses piauienses. Isso porque agricultores
“independentes”, agregados e até pequenos sitiantes, quando (re) agiam, faziam-no
impulsionados por referências morais e éticas, senso de justiça, necessidade de
segurança alimentar e reconhecimento político, justificados, inclusive, pelo
significado histórico da terra culturalmente livre, compartilhada e sem cercas.
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Por atenção a essas diferenças, e com o cuidado de considerar as
particularidades do Piauí, como região marginal em relação a outros centros,
percebeu-se que muitas das situações que envolviam o sertanejo local guardavam,
de certo modo, uma identidade comum com a situação daqueles camponeses
asiáticos, particularmente na utilização da terra para o cultivo familiar.
Nesse mesmo paralelo, também se assemelha a posse da terra para
enriquecimento dos grandes proprietários rurais, latifundiários, que agiam
violentamente na exploração dos agricultores; muitas vezes, com a proteção da
polícia e do poder judiciário, instrumentos constitutivos do estado.
Acerca do significado político dos latifúndios e da atuação de seus
proprietários no complexo mundo jurídico-político brasileiro, BRUNO (1997, p.11) faz
a seguinte ponderação:
Ser grande proprietário de terras no Brasil é sinônimo de prestígio, status e autoridade. Diria mesmo que a implementação de um modelo de desenvolvimento que “casou numa figura única” o capitalismo e a grande propriedade fundiária, as novas relações e alianças que se estabelecem entre o capital e a propriedade capitalista, a imensa força política dos grandes proprietários de terra, desproporcional ao seu peso econômico, são processos que, por sua vez, também expressam a apologia da grande propriedade no país.
[...] As leis, as instituições políticas, os tribunais e o direito consubstanciam este Ethos de grande propriedade fundiária, com o cuidado de, ocasionalmente, conceder alguns direitos aos trabalhadores rurais e, continuamente, preservar o monopólio e o privilégio dos grandes. Hoje, a propriedade está mais protegida e cercada pelas leis, pela força, pelo capital territorializado e pelo Estado. A integração de capital gerou, ao nível dos dominantes, interesses muito mais amplos, e assim os grandes proprietários de terra se sentem mais seguros porque não contam apenas com aliados potenciais, mas com parceiros que têm interesses comuns. Por isso, é que as designações latifundiários e empresários são complementares, não opostas, porque ambas inscrevem-se em um espaço de referências e de significações e ambas englobam a improdutividade e o lucro. Em conjunto, elas instituem uma nova realidade, onde velhas e novas formas de dominação convivem sem maiores escrúpulos: através da agroindústria esconde-se o latifúndio; atrás do banqueiro, organiza-se a associação de criadores; atrás das sociedades anônimas, decidem os clãs familiares; atrás do rei da produção, flagra-se o jagunço ou pistoleiro, ou seja, atrás do discurso moderno, tenta-se dissimular o conservador.
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Era comum, nesse cenário, a truculência dos delegados de polícia, braço
armado do estado, sempre na espreita a serviço dos fazendeiros. Tal situação é
evidenciada na matéria publicada no Jornal do Piauí, em 16 de novembro de 1963,
com o título: Latifundiários alugam bandidos para atacar camponeses indefesos:
Há pouco tempo, um dos mais ferrenhos latifundiários do município na zona chamada de Puba, alugou 45 capangas para atacar os camponeses que limpavam a terra, obrigando-os a caminharem por cinco léguas.
Situações como a descrita acima, além de outras tantas – de teor
semelhante – reforçavam para os trabalhadores a necessidade de criação de uma
entidade representativa que amparasse as suas demandas como legítimas,
justificando ainda as lutas pelo reconhecimento político dos campesinos. Eles, os
irmãos Lopes, foram os primeiros a vislumbrarem essa possibilidade e a
empreenderem a concretização desse ideal.
Quanto mais cresciam as tensões, mais os irmãos Lopes se davam conta
de que precisavam, e de forma imperiosa, de uma entidade que, além de se
constituir num canal de interlocução, zelasse pela classe de trabalhadores e a
defendesse, inclusive juridicamente, nas suas demandas por reconhecimento
político, por respeito, por segurança alimentar e, de igual modo, buscasse
desenvolver outras estratégias de sobrevivência, numa sociedade marcada pela
cultura do favor como instrumento do aniquilamento da autonomia pessoal e da
liberdade negativa proporcionada pela lei.
Assim, os irmãos Lopes logo procuraram de modo muito consciente
adquirir subsídios e se articularam com vários outros companheiros para dar feitura
a uma entidade organizativa, voltada aos interesses dos camponeses.
Com esse propósito, mantiveram contato com o agricultor José Esperidião
Fernandes, um conhecido ativista e idealizador de uma associação organizativa de
camponeses da capital Teresina. Este já organizava também alguns trabalhadores
no povoado Ininga, zona rural de Teresina – hoje um bairro da classe alta – onde se
localizava uma importante fazenda do mesmo nome, pertencente ao Senhor Noé de
Araujo Fortes, grande proprietário rural e destacado representante da Federação
das Associações Rurais do Piauí – FAREPI, principal órgão de defesa dos
latifundiários do estado.
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Esperidião também costumava fazer reuniões em Timon, vizinha cidade
do Maranhão, onde uma grande quantidade de trabalhadores rurais igualmente
aspirava fundar um núcleo das Ligas Camponesas.
Os primeiros diálogos dos irmãos Lopes com Esperidião ocorreram
inicialmente por meio de cartas, nas quais compartilharam questões comuns sobre
uma organização para os camponeses de Campo Maior e de todo o estado. A partir
desses diálogos missivistas, resolveram se encontrar para discutir e aprofundar
sobre o itinerário a seguir para criar núcleos das ligas em suas localidades.
Os diálogos ocorridos entre José Esperidião e os irmãos Lopes
oportunizaram a estes a possibilidade de conhecerem o Estatuto da Liga
Camponesa de Pernambuco – documento deliberadamente difundido com o
propósito de auxiliar no surgimento de outras organizações – e se inteirarem sobre o
movimento político dos campesinos liderado por Francisco Julião. Esse documento,
de certo modo, transformou-se no abecedário – Vade mecum – para o processo de
articulação, em termos documentais das ligas no Piauí.
Luiz Edwiges tratou de adquiri-lo, por intermédio de José Esperidião
Fernandes, para fazer uma cópia e, através dela, orientar os passos futuros desse
líder campesino com vistas a melhor organizar o movimento embrionário da Liga
Camponesa de Matinhos e, mais à frente, criar delegacias – núcleos da liga de
trabalhadores em alguns outros povoados da região (Catinga, Puba, Floresta).
O intento de expandir a liga, por meio de núcleos, a povoados
circunvizinhos não foi alcançado plenamente por Luiz Edwiges. Nesses povoados,
ele apenas conseguiu ter contatos com lideranças locais para fazer as interlocuções
necessárias à divulgação das ações da Liga Camponesa de Matinhos.
Aliás, a liga de Campo Maior não era, assim como nenhuma outra,
subordinada à Liga Camponesa de Teresina; todas eram entidades autônomas,
orgânicas e juridicamente independentes. Esse perfil organizativo das ligas do Piauí
se contrapõe ao centralismo democrático, preceituado nos Estatutos das Ligas
Camponesas do Estado do Rio de Janeiro e Pernambuco formulados por Francisco
Julião para servir de modelo para os demais estados.
Convém ressaltar que essas formas organizativas de caráter
associativistas eram constituídas a partir de lacunas legais existentes no Código
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Civil, que permitia a criação de associações rurais desde que não ficasse evidente
que se tratasse de organizações de trabalhadores com fins sindicais.
Ao relembrar tal momento, Luiz Edwiges se afoitou na memória e buscou
reproduzir o diálogo que teve com o companheiro Esperidião, num empenho de
melhor ilustrar aquele significativo momento:
– Esperidião, me empresta esse documento. Meu irmão sabe datilografar, e eu mando ele tirar copia né! E quando eu tirar lá, eu venho deixar aqui: – Luiz, tudo bem! Eu lhe empresto com maior prazer né! Eu vou logo lhe dizendo... se você quiser ir fazendo o negócio lá, em Campo Maior primeiro que nós aqui, vá fazendo lá, que eu não tou ainda articulado como você tá, não! Pela sua história, lá tá bem andado.
Desde sua fundação, a ALTACAM foi alvo de forte repressão.
Inicialmente, por parte dos proprietários de terra, que usavam de meios coercitivos
para inibir as reuniões entre os camponeses. Em seu primeiro encontro oficial,
realizado na fazenda Matinhos, os líderes estimavam reunir cerca de 1.300
lavradores vindos das mais variadas regiões. No entanto, a partir de uma série de
estratégias de intimidação dos fazendeiros latifundiários, plantou-se certo temor do
que poderia acontecer com os campesinos e suas famílias, caso eles fossem
adiante com aquele intento.
Assim, muitos dos lavradores foram advertidos que seus contatos e
filiações junto aos disseminadores da ideia de criação de uma associação, clube,
irmandade ou mesmo sindicato receberiam, consequentemente, variados tipos de
retaliações.
Com esse propósito, disseminaram o estigma de comunista na identidade
das lideranças; ameaçaram de desagregação da terra os que viessem aos
comunistas se juntar e, no mínimo, sofreriam de início a redução das áreas de
cultivo e, caso continuassem, até mesmo suspensão do direito de plantar; e, por fim,
torná-los proscritos entre os detentores latifundiários de terra no estado, ou seja, não
mais agregá-los em nenhum pedaço de chão.
Assim, mais ainda, espalharam-se, também, boatos de que a
polícia estaria à espreita para reprimir os comunistas desordeiros. Isso tudo
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reduziu para aproximadamente 500, ainda assim uma verdadeira multidão, o
número de presentes no primeiro encontro marcado para a fundação da
associação.
Depois da difícil tarefa de mobilizar os lavradores, organizar na prática a
associação, compor sua direção provisória e apresentá-la às instituições e à
sociedade como legítima representante dos agricultores de Campo Maior e regiões
vizinhas, as lideranças, a partir de então, tiveram a missão de reconhecer, em
cartório, conforme a legislação vigente seus estatutos, e finalmente completar o rito
institucional – Código Civil – de fundação da mais importante entidade
representativa da classe de trabalhadores rurais do Piauí, até aquele momento.
E a Liga Camponesa de Campo Maior, passou a ter, assim, mais força,
visibilidade e também maior perseguição, no cenário piauiense. E, a seguir, foram
registradas, com extrato no Jornal O Dia, edições 03 e 04 de 24 de agosto de 1962,
e a ALTACAM ganhou organicidade e foi então, de fato e de direito, apresentada à
sociedade piauiense.
Fonte: Foto de carteira da associação de Campo Maior: ALTACAM
É importante ressaltar que esse fato evidenciou o potencial de subversão
e a força que a Liga Camponesa de Matinhos, isto é, a associação dos lavradores –
a ALTACAM – representara às elites dos detentores latifundiários de terra. Mesmo
tendo sua estimativa numérica, no início, bastante reduzida, ainda assim, a
associação recém-criada se revelou um instrumento de apoio e mediação
fundamental de seus associados e dos trabalhadores campesinos de Campo maior e
de outras regiões.
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Depois de oficialmente criada, a ALTACAM contratou os serviços do
advogado Francisco Bento, que – em sintonia com as demandas dessa associação
– logo passou a atuar de forma efetiva no embate com alguns proprietários em
defesa de companheiros associados ou não. Esses embates deram mais
visibilidade, prestígio e respeito à associação. Tanto que passou a servir de modelo
local a ser seguido junto a outras experiências organizativas de trabalhadores rurais
em importantes cidades do estado, dentre as quais, Parnaíba, Regeneração e
Miguel Alves.
Consequentemente, a liderança de Luiz Edwiges também se consolidou e
ele passou a ser convidado a ajudar na constituição de novos núcleos das ligas nas
circunvizinhanças, o que ocorreu – embora sem a efetiva organicidade jurídica – nos
povoados de Boa Hora e Belo Monte, região das Pubas considerada na
circunvizinhança como um lugar efervescente, de luta, valente. Os núcleos aqui
reportados funcionaram apenas como grupos de lideranças para as interlocuções
locais das ações da Liga de Matinhos. A esses grupos de lideranças, aglutinaram-se
uma boa leva de gente, trabalhadores rurais, assalariados e retirantes. Todos unidos
e mobilizados por interesses e propósitos comuns, inclusive nos momentos também
festivos, como o que ocorreu quando a ALTACAM completou o seu primeiro
aniversário de fundação.
Desde cedo chegaram a Matinhos camponeses de todas as localidades do município e municípios vizinhos, sócios da associação que já abarcava vários municípios da região de Campo Maior. Demonstravam esses camponeses uma alegria vitoriosa pelo aniversário da entidade que consideravam a defensora de seus direitos, de seus interesses (Alegria pela vitória de existir por 1 ano. Jornal O DIA. 1963, p.4).
Para muito além de quaisquer outras possíveis considerações, a Liga
Camponesa de Campo Maior, emergida de Matinhos assim como outras entidades
foram de imediato rotuladas, pela elite ruralista e por setores conservadores da
Igreja e da imprensa piauiense, como grupos revolucionários, qualificados como um
substantivo inimigo do setor rural produtivo. Essa pecha é claramente expressada
em matéria veiculada em um jornal de circulação no estado.
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As instituições tipicamente comunistas e os responsáveis por elas na sua maioria auxiliares diretos ou indiretos do Governo (...). Espera-se do Governo que, na defesa da integridade do Estado, tome providências que o caso requer, esclarecendo inclusive ao povo qual é a posição do governador Chagas Rodrigues, que vem sendo inspirador desse movimento. Com a palavra sua S. Exa. (Jornal do Piauí, Teresina. p.6, 22 /03/1962).
Com isso, não só os proprietários de terra se mobilizaram contra a
ALTACAM, mas também outros segmentos organizados como a Igreja, a imprensa,
os partidos políticos e até mesmo parte do governo. Embora o Piauí apresentasse
elevados índices de analfabetismo, as fontes impressas (jornais) ligadas na sua
maioria aos proprietários de terra, manipulavam os discursos sobre os
acontecimentos cotidianos, convertendo-se em protetora das informações e se
autoconferindo um status de autoridade dona da verdade, principalmente quando
estava em jogo criminalizar organizações de defesa da classe trabalhadora, como as
ligas.
Sem dúvida, essas instituições ou pelo menos alguns de seus principais
nomes no Piauí se apresentaram enfaticamente, cada uma segundo seu interesse
específico, como importantes frentes de oposição às Ligas Camponesas do estado e
em especial à de Matinhos, ALTACAM, em Campo Maior, e à ALTATE – Associação
de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Teresina. Esse fato se deve a uma
orientação pavimentada, de maneira mais ampla, por distintas frações de perfil
conservador, que estariam associadas em combater o comunismo, segundo elas,
expresso nas ligas. Pois a relação comunismo/liga camponesa tornou-se um atributo
recorrente a tais designações, mesmo não havendo, como no caso de Matinhos, um
vínculo político ou partidário propriamente declarado ou identificado nos documentos
analisados.
Em relação à atuação do estado, particularmente a partir da gestão de
Petrônio Portella, percebeu-se um esforço aberto do governo em prevenir e controlar
essas organizações ditas mais autônomas – Ligas –, contra o que chamavam de
infiltrações políticas e ideológicas indevidas, perigosas e nefastas.
Outra instituição que também tinha interesse em combater as ligas, era a
Igreja Católica. Para isso, utilizava, a pretexto de frear o comunismo e outras
denominações religiosas como os protestantes e os espíritas que começam a surgir
no Piauí, um discurso que associava indevidamente, mas bem a propósito, a
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organização dos camponeses de Matinhos e de Teresina aos comunistas. Nesse
propósito - contando inclusive com o apoio da imprensa comercial-empresarial e
católica (Jornal Dominical e Santuário de São Francisco) –, além do combate às
ligas, programara um arrojado esforço de enquadramento, ainda maior e sem riscos,
dos camponeses com vistas a conservá-los na sua base religiosa.
Esse enquadramento se materializaria através de um grande projeto de
evangelização que passava invariavelmente pela alfabetização via rádio, do
agricultor e de toda sua família, essa proposta apoiava-se inclusive no fato de a
maioria da população piauiense ser analfabeta, mas também muito católica.
Em 27 de março de 1962, o arcebispo de Teresina, Dom Avelar Brandão
Villela, manifestou-se sobre as ligas em discurso realizado na Rádio Difusora de
Teresina, onde afirmou: “Condeno as atividades dos que desejam implantar, no
Brasil, regime de força, emanado da ditadura que desconsidera a lei e os princípios
da vida moral privada e pública”.
A posição do religioso se evidencia como a de um guardião do Estado de
Direito e da Democracia. Uma das explicações dessa postura tem por base o fato
de que, mesmo reconhecendo a crise política do país, emergida a partir da renúncia
de Jânio Quadros, o golpe civil-militar era ainda, embora bastante considerada,
apenas uma possibilidade.
Em outra entrevista, concedida na Rádio Pioneira de Teresina, o líder da
Igreja assim se expressou: “Está provado: o objetivo dessas ligas nacionalistas do
Piauí é subverter a ordem, levantando as populações interioranas contra as
autoridades, ou melhor, contra os proprietários de terras”.
A fala do arcebispo de Teresina na Rádio Pioneira foi explorada pelo
jornal Folha da Manhã (Edição de 27.03.1962) como um convite do líder episcopal
para a mobilização de todos no sentido da manutenção da ordem. O tom da fala do
líder religioso, na forma que foi colocado, revela-se nesse momento como mais um
argumento forte contra as Ligas Camponesas, que estariam abrindo caminho para
os comunistas, evangélicos e outros ensinamentos alienígenas, “diferentes e
contrários aos nossos costumes, à nossa educação religiosa, às nossas tradições de
cidadãos pacatos, mansos e até mesmo contra a pessoa humana”.
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Dom Avelar Brandão Vilela (1983, p. 125-126), de modo subliminar,
preceitua que a intenção dos campesinos era criar e dar substância a uma Igreja
popular, contrária à institucionalmente orientada pelo Vaticano:
(...) Esse tipo de Igreja coloca-se contra o que se chamaria de Igreja institucional, aquela que na sua estrutura aceita e valoriza os elementos transcendentais da fé religiosa, a oração pessoal e comunitária, a doutrina social da Igreja, a missão redentora de Jesus Cristo, as legítimas tradições que se deixam iluminar pela Bíblia Sagrada. Estou certo de que no conceito de Igreja popular, há verdades subjacentes ao lado de proposições inaceitáveis.
(...) Se a intenção da Igreja popular é a de separar o povo da hierarquia, já não existe Igreja. Se se perde a ideia do infinito de Deus e da vida eterna, já desapareceu uma dimensão característica da Igreja. Vivendo num mundo, a igreja é um sacramento de salvação, é uma luz que se acende na consciência dos homens.
O religioso se mostra publicamente contrario á igreja popular e forma
fileira ao lado da ala conservadora do clero. A missão redentora de Jesus Cristo, de
acordo com todos os evangelistas, é a libertação.
Para além de qualquer orientação e preceitos cristãos, alguém quando se
dá conta de que vem sendo aviltado, rebaixado na sua condição humana e, mais
ainda, explorado como trabalhador em termos salariais, é natural que busque dar, de
modo consciente, um basta a isso tudo e criar condições dignas de vida.
A tendência desse e todos os indivíduos que pensam o coletivo, uma vez
conscientizado é procurar influenciar os irmãos, familiares, amigos e, principalmente,
agregar-se a outras pessoas também já conscientizadas, a fim de tornar a libertação
do coletivo desse jugo possível e mais fácil.
Não prospera a tese do religioso; direciona-se e descaracteriza a verdade
sobre o movimento dos trabalhadores rurais de Campo Maior e de outras regiões do
Estado para sociedade católica piauiense.
Ele deixa de considerar e, portanto, não anuncia que foi também assim
que se deu com o povo hebreu quando, conduzido por Moisés, decidiu dar um basta
à escravidão egípcia (Êxodo). Isso porque era a necessidade do povo e também a
vontade de Javeh.
Essa premissa de verdades subjacentes, postulada por Vilela, sempre foi
utilizada, historicamente, pelo dominador que, ao longo de vários séculos, buscou
60
fundar, a partir de sua ótica e conveniência, a história do dominado. Inclusive a
própria Igreja que, como bem se sabe desvirtuada de sua essência doutrinária,
recorreu, em que pese os diferentes contextos, a proposições inaceitáveis,
subjacentes – essas, sim – de verdades nutridas pelo erro e pela prepotência de
uma elite que integrava a cúpula da Igreja Católica, por ocasião da Inquisição e em
outros períodos igualmente questionáveis.
Não há um mínimo de razoabilidade imaginar que uma classe de
trabalhadores oprimidos como a dos integrantes da Liga Camponesa de Matinhos –
e ele, Dom Avelar, tinha ciência disso – nutrisse esse intento de separar o povo da
hierarquia da Igreja. Ademais, o religioso em questão sabia – os campesinos, não –
que da noção de reino, inclusive o de Deus, emerge um conceito orgânico, e, como
tal, subjaz sim uma hierarquia, onde há um superior e vários “súditos”, isto é, alguém
que orienta e os que seguem sua orientação.
Os campesinos, explorados, aviltados em sua condição humana e
rebaixados socialmente, pretendiam não mais que a libertação de todo aquele jugo
forçado pelos latifundiários detentores da terra. Desesperados e se vendo perdidos,
porque a orientação daquele superior religioso se contrapunha ao anseio dos
campesinos, na sua quase totalidade católicos e isso aumentava a decepção
daqueles que, por certo, clamavam a Deus – como os hebreus também o fizeram –
a libertação de todo aquele padecimento insuportável à condição humana.
Em momento algum houve da parte de lideranças dessa classe esse
intuito. Ninguém insuflou ninguém nesse sentido. Não houve esse tipo de
enfrentamento. Dom Avelar Brandão Vilela nunca externou publicamente; mas, na
verdade, embora muito comedidamente, talvez por ser um legalista era defensor da
propriedade e por extensão do lado de lá, dos poderes constituídos.
Ele, Dom Avelar, sempre que podia declarava sua oposição ao
movimento das Ligas, comparando de modo, inclusive, deliberado, o movimento de
resistência do Piauí, que ele sabia ser diferente ao de Pernambuco. O exemplo de
tal posicionamento está na própria declaração do religioso em jornal local:
Declaramos, para o conhecimento de todos os piauienses, que a reportagem do Jornal do Brasil: “Ligas no Piauí têm apoio do Governo e da Igreja” não tem fundamento ao que tange à posição da Igreja. Demos apoio ao Congresso Sindical dos Trabalhadores Camponeses do Piauí, jamais às chamadas ligas camponesas de Pernambuco (Jornal do Piauí. Ed. 27.11.1961, p.4).
61
O advogado Jesualdo Cavalcanti (2006. 150), que na época integrava a
Mocidade Petebista, uma das frentes estudantis de apoio aos movimentos sociais e,
em particular, os do campo, em seu relato autobiográfico, menciona o fato de que a
Igreja procurou barrar o crescimento das ligas no estado. As ligas, como se sabe,
por meio de seus vários núcleos espalhados nos povoados pelo interior adentro, já
desfrutavam de grande visibilidade e a Diocese, segundo ele, pensando melhor as
estratégias para contê-las, já havia planejado três frentes de atuação.
A primeira investida foi fomentar a fundação dos sindicatos católicos –
ação inspirada argumentativamente pelo religioso na tendência mais conservadora
da Doutrina Social da Igreja, de então. Dessa manobra, conduzida no estado pelo
advogado Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira, ocorreu a cisão dos trabalhadores
filiados à ALTACAM, da qual resultou um ano depois da fundação desta, em 12 de
junho de 1963, o surgimento de uma nova entidade para organizar os camponeses.
Assim, os dissidentes da ALTACAM criaram, com a orientação do clero e do estado,
o STRCM – Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior – de feição
claramente conservadora e assistencialista que passou a defender, a partir das
bênçãos do Padre Mateus, vigário da cidade, bandeiras mais palatáveis junto à
Delegacia Regional do Trabalho, porém mais distantes daquelas apresentadas pelas
ligas.
Esse movimento de criação do STRCM foi liderado – do lado dos
campesinos – pelo agricultor Antônio Damião de Souza, que teve seu
reconhecimento atestado no Ministério do Trabalho, por meio da Carta Sindical6
n°19.38.16/1963. A carta sindical, entretanto, somente foi liberada (3) três anos
depois. Esse documento era, portanto, a condição determinante para a existência
jurídica e reconhecimento público do sindicato e também o meio pelo qual se
efetivava o intervencionismo estatal nos movimentos sociais.
Outra ação, a segunda, a partir da qual a Igreja passou a trabalhar
efetivamente com o objetivo de fragilizar e desorganizar a liga, foi a realização
institucional – Arquidiocese/Governo do Estado – das Semanas Ruralistas.
_____________________ 6 Carta Sindical- Documento Público expedido pelo Ministério do Trabalho que reconhece e
atesta a existência jurídica conferindo efeito legal para o funcionamento de Sindicado Classista (CS nº 193816/1963 STRCM).
62
Esses eventos, que ocorriam, na verdade, com fins de informação,
doutrinamento e controle – eram uma espécie de encontros municipais com duração
de até cinco dias. Embora fossem públicos, o debate e a efetiva participação
somente eram permitidos aos trabalhadores rurais, pré-selecionados, por meio de
um sistema interno de credenciamento. Estes ficavam “confinados” em espaços
previamente definidos pela Igreja, governo do estado ou prefeitura, conforme
entendimento. Depois dos eventos, os participantes passavam a compor
preferencialmente o público alvo para recebimento de informes e documentos da
Igreja e do governo com a finalidade de um acompanhamento contínuo, permanente
e bem direcionado.
Em entrevista concedida a este pesquisador, o agricultor Raimundo Doca,
81 anos, do povoado Fazendinha, conta como ele mesmo sendo analfabeto e
sabendo apenas “escrivinhar” o nome, vivia recebendo jornais, folhetos e outros
materiais, além de convites para eventos depois que participou da Semana Ruralista
de Campo Maior.
Rapaz era tanto papel, tanta coisa que a gente não dava nem conta de olhar. Sei bem que o meu irmão mais novo, o Pedro, gostava de pegar era o jornal do padre. Esse ele olhava, lia e guardava. Teve uma época que tinha uma ruma de jornal guardado numa petisqueira da mamãe. Depois, foi indo e não vi mais os documentos; isso depois de uns três para quatro anos. Foi muito tempo que esse material veio pr’aqui na Fazendinha.
Em outra entrevista concedida a este pesquisador – em junho de 2016,
dessa vez pelo advogado e ex-deputado estadual do PDC, cassado pelo regime
militar de então, Doutor Celso Barros Coelho, afirma que ministrou pelo menos três
palestras sobre sindicalização, justiça social e reforma agrária. Sobre sua atuação,
ele pondera:
Eu não acreditava nos dois partidos (UDN e PSD) que disputavam o poder no Piauí. Eles não se diferenciavam em sua ideologia, pois ambos representavam os interesses de uma elite política, presa aos mesmos vícios no exercício do poder. Tive que aguardar uma oportunidade para ingressar na política partidária. Essa oportunidade por fim chegou com a fundação do PDC (Partido Democrático Cristão, 1962). Para mim, esse partido representava ideias novas, compatíveis com minhas aspirações de reforma da estrutura política nacional e local. Acredito que foi por isso que Dom Avelar, um
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homem muito inteligente, me convidou para dar umas palestras nos encontros que ele preparava com o governo no interior, para os trabalhadores rurais, ele chamava de Semanas Ruralistas. Eu participei de duas ou três e falei em todas sobre como devia ser a reforma agrária que a Igreja defendia e qual tipo de organização do campo que ele, Dom Avelar, como maior pastor da Igreja, desejava.
A participação do governo do estado se dava através do efetivo
envolvimento de técnicos, agrônomos, veterinários e agentes de financiamento. A
Arquidiocese criou uma Secretaria de Planejamento para cuidar de toda a
infraestrutura necessária a cada evento. A chefia dessa secretaria foi entregue ao
advogado Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira. Este profissional, que era vinculado
ao governo do estado, fora cedido pelo governador de então à Arquidiocese.
Nessas semanas, a programação, incluindo pauta, palestrantes e
condução, tinha origem quase sempre na figura do arcebispo Dom Avelar. Nesses
eventos, eram tratados temas diversos, como a formação de lideranças cristãs,
associativismo, convivência com a seca, queimadas, desmatamento e educação
para o homem do campo, entre outros. Todos em consonância com o projeto
Evangelizar e Humanizar, criado por Dom Avelar para a sua gestão na Arquidiocese.
De igual modo, outra providência, a terceira ação, adotada pelo clero para
ampliar ainda mais seu alcance sobre os trabalhadores e toda sua família, foi
transformar o Rádio, particularmente a Rádio Pioneira de Teresina e o jornal O
Dominical, em importantes instrumentos de comunicação direta com os movimentos
sociais, principalmente os rurais vistos como mais vulneráveis.
Empenhada nesse propósito, a Arquidiocese incluiu na grade da
programação de sua emissora de rádio o programa Desperta Camponês,
apresentado, sempre às 06h30min – nos dias de terça, quinta, sábado e domingo –,
pelo advogado Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira, um técnico do governo
estadual – da Comissão de Desenvolvimento do Estado –, como dito anteriormente
cedido, à Arquidiocese.
(...) após haver sido colocado à disposição da Arquidiocese pelo Governador do Estado, pois era técnico da Comissão de Desenvolvimento do Estado, iniciei um trabalho junto aos lavradores, de todos os municípios ligados à Arquidiocese, chegando à organização de 10 sindicatos de trabalhadores rurais.
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Além de visitas pessoais, valia-me dos rádios cativos do Movimento de Educação de Base para divulgar um programa de rádio, na Rádio Pioneira, pertencente, então, à Arquidiocese, que denominei de “Desperta Camponês”, sempre às terças, quintas, sábados e domingos (OLIVEIRA, 2013, p. 36).
Os dois veículos – emissora de rádio e jornal – empenhavam-se em fazer
uma espécie de catequização do povo, objetivando a construção de um mundo
melhor. Com esses instrumentos, a Igreja, lançando mão das paróquias e capelas e
de um grande número de colaboradores voluntários, acreditava manter o controle e
até aumentar o número de fiéis.
Finalmente, visando barrar e progressivamente acabar com as ligas, Dom
Avelar determinou a proibição dos camponeses de se filiarem a qualquer entidade
associativa que não fosse autorizada, permitida por ele e que não mantivesse uma
relação de muita cordialidade e obediência ao chefe religioso.
Com as paróquias, os sindicatos católicos, as Semanas Ruralistas e a
proibição de filiação em associação sindical, clube ou qualquer entidade contrária ou
desobediente à orientação da doutrina católica estava, assim, montada a estratégia
da Igreja – com o apoio do estado e com respaldo de muitos proprietários rurais,
nem todos – para barrar a atuação das ligas e fortalecer os recém-criados sindicatos
católicos, ditos “menos perigosos”.
Desse modo, acabaram fragilizando e reduzindo significativamente a
força das ligas, especialmente a de Matinhos, como a primeira e mais importante
porta voz das reivindicações dos trabalhadores rurais na região.
Esses aspectos serão tratados, na análise aqui empreendida, em outro
capítulo, em que se discutirá com maior aprofundamento a atuação do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Campo Maior – STRCM, a liderança do agricultor Antônio
Damião de Souza e o significado político das Semanas Ruralistas para a
organização dos camponeses no estado e, ainda, os papéis desempenhados pela
Rádio Pioneira e pelo jornal O Dominical nesse processo de evangelização e
desmonte das Ligas Camponesas no estado.
1.2 O pioneirismo da família Osório Lopes e a Liga Camponesa de Matinhos
Inicialmente, faz-se oportuno e necessário uma explicação para o uso do
nome Matinhos, originário, segundo alguns dos entrevistados, por associação com a
pobreza das terras que formavam no conjunto três propriedades: Matinhos de Cima,
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pertencente a Manoel Pereira de Abreu; Matinhos do Meio, esta pertencente aos
Edwiges; e Matinhos de Baixo, pertencente à família Pacheco e que, sendo muito
pobres, somente produziam em quantidades reduzidas feijão, milho, mandioca e,
nas áreas de alagadiço, arroz.
O agricultor Humberto Pereira, ao falar de Matinhos de Cima, terra de seu
pai, assim se expressa: “As terras eram tão fracas que, às vezes, a gente não tirava
nem o que tinha plantado. O jeito era criar algum bicho e ser morador dos outros”.
O autor da pesquisa aqui empreendida esteve em Campo Maior pela
primeira vez em agosto de 1998. Na ocasião, acompanhava a professora Regina
Souza – hoje constituída e investida na condição de primeira senadora da história
política do Piauí – em uma visita à casa de Luiz Edwiges e de outras lideranças do
movimento sindical rural do estado.
Outra viagem àquele município só aconteceria dez anos depois, quando
foi inaugurada pelo governo do estado uma rodovia de 14 km que liga o município
de Campo Maior à Nossa Senhora de Nazaré, a PI 320, que recebeu o nome de
Rodovia Luiz Edwiges.
Passados quatro anos, uma nova visita ocorreu. O propósito era ir à casa
do lavrador Luiz Edwiges Osório Lopes. O encontro fora previamente acertado com
José Carlos de Sousa Osório Lopes, o Carlão, filho dele.
Era um sábado, este pesquisador e um ex-aluno da Universidade Estadual
do Piauí – UESPI – agora doutorando da Universidade Federal do Paraná – UFPR –,
Francisco Atanásio cedo se deslocaram para lá. Os dois – professor-pesquisador e
aluno – foram de carro e chegaram à localidade Matinhos por volta de 7h30.
O Carlão que já os aguardava, pois tinha ido à casa do pai no dia anterior,
ao avistar o carro, gritou: “Pai, os homens chegaram”. Então o Atanásio desceu do
carro, abriu a primeira cancela, a segunda, orientou o rumo e seguiu a pé. Foi então
que se avistou distante uns 30 a 40 metros, um homem comprido, deitado numa
rede de tucum7 balançando, apoiado por um cacete de jucá próximo a uma mesa e
um tamborete de madeira e couro. Agora mais perto, seguiram-se os cumprimentos.
_____________________ 7 Rede de Tucum- Utensílio doméstico de origem indígena fabricado a partir do cipó extraído
da palha da palmeira do tucum produto muito utilizado para dormir ou descansar.
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Decorridos alguns segundos, ouviu-se o ruído das cordas da rede e o
som do cacete no piso de chão batido provocado pelo esforço de levantar; mais uns
segundos e escutou-se: “Tá bom que ainda tô vivo e contando história”. Com um
sorriso fácil no rosto, aquele homem corcunda recebeu os visitantes já com uma
pergunta e um convite: “Já tomaram café hoje? Vamos tomar?”
O pesquisador que gosta muito de um cafezinho e sabe o quanto um não
pode ser entendido como ofensa que pode até fechar portas, respondeu de pronto:
“Só se for agora” e ainda indagou-lhe “tem pra dois?” Ele respondeu: “Tem prá
mais!” O pesquisador então continuou: “E pra acompanhar, tem alguma coisa? Um
beiju? Um bolo? Qualquer coisa serve”. Ele brincou e perguntou sorrindo: “Até
farinha de puba8?”
Após esse diálogo amistoso e convidativo, o pesquisador e seu discípulo
chegaram bem perto, apertaram a mão daquele agricultor, homem de boas relações
e publicamente envolvido com os movimentos sociais do lugar e muito identificado
com um projeto específico de sociedade, e se apresentaram.
O pesquisador: “O senhor tem um tempo pra conversamos sobre sua
história de vida? Queremos indagar-lhe sobre sua lida, sobre sua luta”. Ele deu as
costas, voltou a deitar na rede de tucum e disse: “Tenho sim, agora só tenho tempo e
umas poucas lembranças, vamos pra esse canto apontando com o cacete de jucá”.
Antes de iniciar a conversa, os dois – o pesquisador Damião Carvalho
Rocha e o assistente Francisco Atanásio –, apresentaram-se com mais detalhes,
falaram da pesquisa e externaram a grata satisfação de estar ali para dialogar com
ele sobre a sua luta e a luta de todos os camponeses do Piauí e do Brasil.
Ele então disse que estava com a “mente fraca”, mas que também estava
feliz em colaborar com os estudos, pois sabia que era uma forma de “mostrar a luta
dele para os mais novos”. Para Bossi (2003, p. 18), cabe-nos interpretar tanto a
lembrança quanto o esquecimento.
Eram oito e meia da manhã de sábado, dia 27/02/2012, quando
finalmente foi iniciada a primeira entrevista com aquele lavrador-vaqueiro de 84 anos
de idade, conhecido em todo estado como “o homem das Ligas Camponesas no
_______________________ 8 Farinha de Puba-, alimento extraído da mandioca fermentada, tem coloração variada,
normalmente amarelada muito utilizada na produção de biscoitos, bolos e muitas outras receitas caseiras. No Piauí é muito consumida com café.
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Piauí”. A primeira pergunta foi: Quem é Luiz Edwiges? Ao que ele prontamente
respondeu:
Eu sou um home, filho de outro homi, chamado João Edwiges Lopes e minha mãe chamava-se Inês Osório Lopes. Eu tenho descendência por parte de pai, e meus avós uma parte são de Pernambuco. Esses Lopes vem de lá. Bom.. minha avó por parte de pai ela era filha de uma escrava né, e essa escrava nasceu de um fazendeiro, de uma família rica. A gente é assim misturado, uns moreno como eu, outros claros. A gente nasceu e se criou aqui nos Matinhos, eu sou de 16 de novembro de 1929. Nós era nove vivos, aí morreu José Ribamar Lopes. Esse, como se diz terminou sendo a chave da família, porque era uma pessoa que estudava, sabia das coisas. Meu pai era vaqueiro e meu tio era vaqueiro, meu avô era vaqueiro. Era dessa família que todos são do campo, da roça. Meu pai era um homi pobre mais criava a gente com muito gosto e trabalho. Ele comprava e vendia gado, cinco boi, oito boi e até que comprou 20 boi: ele era o homi muito correto, comprava e pagava direitim. E assim criou nós tudim, dentro do que era direito, do trabalho, da luta para ganhar as coisas sem deixar que os outros botasse cabresto na gente.
Marx ensina que a elaboração de conceitos e teorias não acontece no
vazio da mente, mas dentro de determinados processos históricos econômicos e em
sintonia com seus protagonistas políticos.
Desse modo, a leitura do mundo torna-se tanto maior quanto mais
os sujeitos analisam as contradições do processo produtivo e mais
próximo estiverem das lutas dos injustiçados e explorados: “É necessário fazer
parte do movimento real que supere o estado de coisas existentes” (Marx 1989, p.
11-32).
Gramsci (1974), certa vez, afirmou que todo homem é um filósofo a partir
do momento em que percebe de maneira reflexiva o jogo de relações sociais e
políticas que se encontram articuladas à sua condição de existir e expressar
determinados questionamentos sobre tal condição.
A premissa ora descrita por Gramsci denota a emergência dessa
percepção. Ela evidencia uma leitura de mundo feita por um determinado sujeito que
se viu como sujeito consciente – alguém realmente comprometido – com a tarefa de
edificar um lugar de direito para si e para seus pares, enquanto categoria social
esculpida na teoria e na prática.
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O sujeito em questão é – como ele próprio, Luiz Edwiges, afirma – um
vaqueiro e lavrador que percebera, diante das contradições do meio social ao
qual pertencia, a necessidade de romper com o quadro de exploração ao qual
estava submetido: seu nome: Luiz Ribamar Osório Lopes, conhecido como
Luiz Edwiges. À sua trajetória, estava agregado um processo de luta pela
melhoria das condições de vida e conquista de direitos pelos trabalhadores rurais
do Piauí. Com isso, a sua história se mistura com as próprias incursões
dos movimentos camponeses no estado. Uma história marcada por confrontos,
tensões e embates, nos quais os trabalhadores da região procuravam
institucionalizar-se enquanto categoria detentora de um espaço reconhecido e
respeitado.
Estabelecidas as condições para o primeiro diálogo, as conversas com o
Senhor Edwiges iniciaram-se e sofreram apenas três interrupções: a primeira
provocada por um galo que insistia em cantar próximo de onde a entrevista estava
sendo gravada; a segunda pelo convite para almoçar da Senhora Santinha, esposa
de Edwiges, e a terceira e última interrupção, pela chegada do quarto irmão de
Edwiges, o Senhor Raimundo José Ribamar Osório Lopes, vulgo Raimundo
Edwiges, nascido em 17 de fevereiro de 1931, que exerceu os cargos de 1° e 2°
tesoureiros da ALTACAM. Um homem de aparência frágil, voz baixa; mas, como ele
próprio afirma: “de saúde de ferro”.
Embora morem próximos, os irmãos não costumam se visitar. Talvez por
isso, o Luis Edwiges, o entrevistado, naquele momento, ao avistar
Raimundo, solicitou que o gravador fosse desligado e, sem esboçar muito esforço
para se levantar da rede, falou dali mesmo com o irmão. Depois de uns quinze ou
vinte minutos, quando já se escutava mais o silêncio do que suas vozes, o
pesquisador indaga: “Senhor Luiz e o seu irmão aí? Ele também pode nos ajudar na
pesquisa?” Ele categoricamente respondeu: “Acho que não; quer dizer, não sei...
queira Deus que sim. Ele também participou da diretoria; mas, era mais afastado...
num sabe?”
Por essas e outras, o pesquisador e assistente perceberam que, após
contar e recontar em diversos novelinhos de vezes a mesma história, o Senhor Luiz
Edwiges se mostrava o próprio protagonista daquela narrativa. E mais, queria ser
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assim percebido e respeitado como o grande mentor e verdadeiro guardião das
memórias das Ligas Camponesas no Piauí.
Essa postura, em relação ao irmão Raimundo Edwiges, fez o pesquisador
planejar outra entrevista, com aquele que ocupou por diversas vezes distintas
funções na diretoria da ALTACAM. Ele foi como dito antes, tesoureiro e membro do
Conselho de Mobilização e Filiação no último mandato que ocupou.
A entrevista continuou pelo resto da manhã. E, à medida que os diálogos
variavam de tempo, lugar, pessoas e temas, perceberam-se lapsos de memória e de
informações, próprios de um narrador octogenário que teve uma profunda e variada
inserção social, política, ideológica. Com certo esforço de memória, selecionando
informações, elencando pessoas, identificando e valorando a si e aos outros, a
narrativa de Edwiges fluiu lentamente em idas e vindas.
Nesse diapasão, o pesquisador e o assistente – ancorados nos
ensinamentos de Maurice Halbwachs (1990, 26), para quem “a memória é individual
e social e está em permanente processo social de partilha” – respeitaram a condição
do entrevistado, deixando-o bem à vontade.
Em certa passagem da entrevista, Edwiges, ao narrar a experiência de ter
frequentado a escola, confirmando a análise de Halbwachs, assim se expressa:
(,,,) quando a gente tinha de 6 para 7 anos, minha mãe entendeu de botar a gente para estudar. A escola era uma casinha bem pobre que ficava na Lagoa dos Corró. Nós tinha medo... medo de frequentar. Foi preciso uma tia levar um cipó pra gente não escapulir. Aí, o Ribamar, meu irmão mais veio, tomou um interesse muito grande, ao ponto de não querer mais lidar com gado. O professor, um senhor chamado Zumba, pai desse Zumba novo, era muito jeitoso e tinha muita paciência. O Ribamar, esse tinha muito interesse eu e o Chico não tinha muito interesse, não. Ainda frequentemos uns três anos; Mas, Ribamar... esse continuou. Foi até se formar doutor, jornalista e um bocado de coisa.
Ao que parece, os irmãos tinham destinos traçados: ao Ribamar, as
letras, a cidade grande, o mundo; aos outros, Chico, Luiz Edwiges e Raimundo, o
trabalho no campo, a pega do gado e a roça. O próprio Luiz Edwiges diz, em certo
momento da entrevista, que recebeu do irmão mais velho, Ribamar Lopes, a missão
de cuidar da família e dos negócios.
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Fonte: José Ribamar Ozório Lopes
Indagado por que não o Chico, o mais velho? Já que na tradição só por
morte ou impedimento do mais velho, o segundo mais velho sucederia os pais na
chefia da família? Ele respondeu dizendo que o Chico era doente, tinha um
problema na cabeça e não poderia cuidar das coisas.
Essa situação parecia apontar para a separação dos irmãos, já que pouco
tempo depois o Ribamar Lopes foi para Campo Maior e, em seguida, para Teresina,
capital, onde morou na Casa do Estudante Pobre e frequentou o Colégio Diocesano,
uma escola confessional dos jesuítas. Por essa época, segundo ele, o pai, João
Edwiges, já havia falecido, vítima de “mancha no pulmão”, nome popular dado à
pneumonia – ou teria sido tuberculose? –, não sabe ao certo. O fato é que morreu
muito novo, com apenas 60 anos de idade.
O sociólogo Antônio José Medeiros, que estudou a sindicalização rural no
Piauí, fez referências à família Osório Lopes, destacando de modo muito particular
José Ribamar Osório Lopes. Este, no seu entender, exerceu um papel primordial
não somente na organização das ligas, mas na luta política de Campo Maior e de
todo o Piauí, como estudante e depois como jornalista e advogado e, também, na
condição de alto funcionário da SUPRA – Superintendência da Reforma Agrária.
Não fez grandes alusões aos demais integrantes da família.
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O sociólogo, entretanto, ressaltou – em entrevista ao pesquisador – a
posição de vanguarda que Ribamar Lopes sempre manifestou e relembra a postura
dele nas eleições municipais de Campo Maior no ano de 1950.
O Ribamar era tão à frente do seu tempo que teve a coragem de apoiar, inicialmente sozinho e depois com outras lideranças, a candidatura a prefeito de Campo Maior, do jovem advogado Raimundo Nonato Santana, que acabou rompendo com as forças poderosas e venceu a eleição pelo PTB, naquele ano. O Ribamar parecia não ter medo das consequências, naquele tempo os proprietários mexiam com toda a família por causa do comportamento dos filhos.
Embora Antônio José Medeiros e outros pesquisadores, como Ramsés
(2015), Reinaldo (2012) Paz (2010) Carvalho (2000), destaquem o ativismo político
do jornalista e advogado Ribamar Lopes na orientação das Ligas Camponesas no
estado, não há como deixar de considerar – memória que foi resgatada por esta
pesquisa – o caminho político pavimentado por seu irmão, Luiz José Ribamar Osório
Lopes, ou simplesmente Luiz Edwiges, como assim é conhecido e como afirmou em
certo momento da primeira entrevista: “Ele tinha a missão de dar voz ao povo e não
aos poderosos”.
Esse personagem, ao lado de outros homens sofridos, como Luís Pedro
da Rocha, Pedro Simplício e Francisco Gomes, tinha a percepção de si e do lugar
que ele e os demais campesinos ocupavam naquela conjuntura. Articulados,
ajudaram a construir – no início, meio anônimos; talvez, por isso, ignorados pelos
documentos oficiais da história – a memória da luta camponesa no Piauí entre os
anos de 1958 a 1968.
Para a construção dessa narrativa, que tem como centralidade a liga de
Matinhos e o protagonismo do lavrador Luiz Edwiges, realizaram-se 53 entrevistas:
três com o próprio Edwiges, sendo uma em fevereiro de 2012, outra em novembro
de 2013 por ocasião de seu aniversário de 83 anos e a última em julho de 2015.
Entrevistou-se também Humberto Pereira de Abreu, de 83 anos de idade dos quais
50 como trabalhador rural, como ele diz “brocando, plantando e sofrendo”, morador
da localidade Buritizinho, próximo à fazenda Matinhos de Cima, pertencente ao seu
avô Manoel Pereira de Abreu, que também participou da Liga de Matinhos. Outra
entrevista foi realizada com Francisca Edwiges de Souza, Dona Santinha, esposa do
Edwiges, com quem teve quatorze filhos.
72
Além dessas, foram realizadas outras mais com os irmãos Francisco e
Raimundo Edwiges. Francisco, o mais velho, pouco participou da vida das ligas;
entretanto, guarda boas lembranças da atuação dessas entidades organizativas. Já
Raimundo Edwiges, o mais novo dos irmãos Osório Lopes, teve participação efetiva
nas ligas, chegando a ocupar funções na diretoria. Prosseguiu-se esta etapa de
entrevistas com o professor Antonio dos Reis (Mestre Zumba), filho de José dos
Reis e Silva, que alfabetizou praticamente todos os agregados das povoações
próximas e também a família Osório Lopes.
Foram ainda, além dessas realizadas outras entrevistas com
agricultores e agricultoras da região. Camponeses como o senhor Antônio
Pereira da Silva, (Antônio Conrado) de 93 anos de idade que exercia a função de
procurador da fazenda “Canto do Periquito”, de propriedade do
desembargador Manoel Castelo Branco e com a senhora Maria de Lourdes Araújo
Silva de 87 anos, esposa de Antônio Conrado, responsável pelas atividades
religiosas da região e também por ser uma das poucas pessoas com estudo e por
isso se ocupava do controle da renda dos mais 150 agregados que moravam na
propriedade.
Outra entrevista foi
realizada com o Cabo armeiro
Loiola, responsável à época
pela prisão do líder camponês
e de outros ativistas que
também militavam em Campo
Maior no período da fundação
e atuação da Liga Camponesa.
Ao falar do cotidiano de seu
pai, que também era professor
e atuou na alfabetização das crianças daquele período, Mestre Zumba, na tentativa
de recuperar aqueles momentos, assim se posiciona:
Nº 2 Cabo armeiro Loyola Fonte: Grupamento Militar responsável pela prisão de membros da liga de Matinhos.
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Meu pai era uma espécie de agregado especial, tá vendo! Ele trabalhava na roça, fazia muita farinha, plantava muito feijão que era o que dava mesmo. Agora ele tinha um negócio com o senhor Gentil Alves, o dono da propriedade São Francisco, onde fica a Lagoa dos Corró. Lá nesse lugar ele morava e tinha na casa dele mesmo a Escola, era particular num sabe? Alguns chamavam Escola da Lagoa dos Corró e outros chamavam Escola do Mestre Zumba. Eu digo que meu pai era um agregado diferente porque tinha autorização do Seu Gentil pra botar morador e depois só informava que tinha recebido renda e botado um agregado novo. Por lá na região tinha meu pai e o Seu Pedro Linoca que podiam botar morador. Esse negócio de ser professor era por temporada, eu não lembro bem, mas sei que passava um tempo sem ninguém, sem aula e depois a casa ficava movimentada com muita gente, esses Duwiges, principalmente o Ribamar e o Luiz, esse da associação, eu era pequeno, mas lembro deles por lá, e foi muitas vezes, ta vendo?
Esse agregado especial do qual o mestre Zumba fala, condição
hierárquica superior no conjunto dos agregados representa em pleno sistema
capitalista uma similitude, embora o Brasil não tenha experimentado tal sistema,
uma herança feudal, pois este dito agregado especial que recebia autorização do
proprietário e poderes para autorizar a entrada de novos moradores e até receber
destes o pagamento da renda, era uma espécie de “vassalo”, figura típica do
Feudalismo com relações econômicas e sociais assemelhadas às praticadas nas
propriedades do Piauí dos anos 60, do século XX.
Esse agregado especial (espécie de vassalo) recebia do proprietário o
benefício de poder autorizar a entrada na fazenda de novos agregados e receber
destes o “eterno agradecimento pela nova morada” e ainda cobrar e receber a renda
dos mesmos. A renda paga era integralmente repassada ao proprietário, o suserano
dos tempos feudais vivenciado por muitos estados europeus.
A presente pesquisa foi fundamentalmente respaldada em
relatos de experiências vividas, produzidas e assistidas por pessoas comuns
como o Mestre Zumba. Isso por se acreditar que eles ajudam na construção da
memória e que as lembranças, embora se realizem de forma diferente para cada
pessoa, são inevitavelmente compartilhadas entre o grupo a que ela pertencia
quando da vivência lembrada. É assim porque as pessoas não vivem isoladas e por
mais que as experiências sejam individuais são também socializadas,
compartilhadas.
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Essa compreensão é respaldada por autores como Alessandro Portelli:
Uma coisa que a história oral pode ver, que todos os arquivos e a história convencional não veem, é precisamente a vida cotidiana. Por exemplo, sobre a história das mulheres, a história da família, a história da casa, do espaço doméstico (...) (2014, p. 203).
O estudo desse campo (ALBERTI, 2006, p. 1), embora tenha sido muito
questionado como fonte para a construção da história, foi superado e tem hoje
importância considerável, ocupando, nos últimos tempos, volumes diversos em
grandes livrarias e centros especializados de todos os lugares do mundo.
Além dos relatos desses personagens, também se buscou respaldo,
apoio, nos trabalhos de outros pesquisadores, como já dito, principalmente
dissertações, monografias e artigos produzidos por alunos do curso de História das
Universidades Federal e Estadual do Piauí / Teresina e Campo Maior e em matérias
publicadas nos jornais locais como O Dia, Folha da Manhã e Estado do Piauí e
jornais de circulação nacional como Jornal do Brasil.
Essa narrativa compreende a história de vida e luta do lavrador Luiz
Edwiges desde a mais tenra idade, quando começou a frequentar a escola,
passando pela juventude, quando publicamente participava de diversas atividades,
como a pega de boi no mato, festas dançantes, partidas de futebol etc. Também
compreende a sua maturidade política, quando começa a se preocupar com as
dificuldades enfrentadas pela povoação onde morava e ainda com as precárias
condições de vida de seus companheiros campesinos.
Essa maturidade ganha força e se consolida com o trabalho de
organização e fundação da ALTACAM, da qual foi seu primeiro presidente; da União
dos Camponeses do Piauí – UNICAMPI, entidade formada a partir de entendimento
entre a liga de Matinhos e a liga de Parnaíba, na qual ocupou o cargo de 1° vice-
presidente e por sua atuação no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo
Maior.
Com a da interdição das ligas e atuação na fundação da Confederação
dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG, no Rio de Janeiro; os tempos de
prisão no 25° Batalhão de Caçadores de Teresina, durante o regime militar;
75
chegando finalmente ao ano de 2015, ano em que foi protocolada a proposição de
Declaração da Condição de Anistiado Político e de Reparação Econômica, junto ao
ministro de Estado da Justiça da República Federativa do Brasil.
1.3 Luiz Edwiges, uma voz contra o latifúndio.
O presidente da ALTACAM,
Luiz José Ribamar Osório Lopes,
conhecido como Luiz Edwiges, foi
preso no dia 25 de junho de 1964, sob
a alegação de crime de subversão
política e social, e por pregar a ideologia
comunista, conforme descreve o
advogado Jesualdo Cavalcante
(2006), que na época integrava uma
das frentes estudantis de apoio às Ligas Camponesas:
(...) a caçada empreendida em Campo Maior rendera resultado: foram presos Raimundo Antunes Ribeiro (Toto), Antonio Luiz Higino, Luiz Ribamar Osório Lopes, José Esperidião e Antonio Damião de Souza, Jesualdo Cavalcanti, Manoel Domingos Cardoso e Martim Pereira de Abreu (BARROS, 2006, p.189).
O líder camponês ficou preso por aproximadamente quatro semanas,
tempo durante o qual sofreu torturas físicas e psicológicas, humilhações e ameaças
de morte, além de ficar exposto às péssimas condições da carceragem. A prisão do
líder camponês ocorreu na frente dos filhos, na ocasião todos menores de idade
com a mãe grávida, vindo inclusive a perder o bebê devido à forma brutal com que
sua prisão foi efetivada.
Sobre os episódios que marcaram a noite em que ocorreu a prisão do
líder camponês Luiz Edwirges e de outras lideranças, o cabo armeiro Loyola oriundo
de Recife pertencente à 7 região e um dos responsáveis à época pela missão em
Campo Maior, faz o seguinte relato:
Fonte: Luiz José Ribamar Osório Lopes (Luiz Edwiges)
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“Por ser armeiro não podia sair, mas fiquei tão empolgado com o convite do sargento comandante da patrulha que deixei outro no meu lugar e fui cumprir a missão, era uma noite e chovia muito em campo maior. Naquela noite ninguém foi preso, mas na manhã seguinte, por volta de 10 horas algumas pessoas foram presas e levadas em cima de um caminhão para o 2 BEC em Teresina. Eu levei o senhor Totó Barbosa, o Luiz Edwiges e uns outros dois ou três que foram como presos políticos. Ninguém foi tratado com grosseria e lá em Teresina foram feitos os procedimentos que eram comuns em relação a qualquer um que fosse preso.”
Nascido em 16 de novembro de 1929 na localidade Matinhos do Meio,
município de Campo Maior (hoje pertencente ao município de Sigefredo Pacheco,
desmembrado de Campo Maior), Luiz Edwiges, mesmo sendo oriundo de um lugar
social pouco abastado, alimentava apurada consciência política em relação à
necessidade de organizar os trabalhadores rurais do município, os quais sofriam
diversas retaliações por parte dos latifundiários locais.
A arrogância e a violência dos proprietários no trato dos moradores
agregados podem ser percebidas na matéria intitulada “Latifundiários alugam
bandidos para atacar camponeses indefesos”, publicada no jornal Hora do Piauí, de
30 de novembro de 1963.
(...) mais recentemente um “coronel” tonitruante, proprietário, chegou a chamar a sua presença um dos seus moradores de suas terras que se havia inscrito na Associação de Lavradores, “sem me haver consultado”. Disse-lhe que ele teria de abandonar imediatamente suas terras, sob pena de ser destruída sua casa. Como o camponês procurasse explicar-se, o arrogante dono das terras ordenou-lhe que calasse, senão vai apanhar.
Ao relembrar a conjuntura e a necessidade de criar uma entidade
representativa que amparasse as demandas e ao mesmo tempo se apresentasse
como interlocutora das questões que afetavam os trabalhadores rurais, Luiz Edwiges
procurou adquirir subsídios documentais para dar feitura a uma organização voltada
aos interesses dos camponeses. Com esse propósito, entrou em contato com um
companheiro – outro ativista idealizador – de uma associação que se iniciava em
Teresina, o agricultor José Esperidião Fernandes.
Os diálogos ocorridos entre Luiz Edwiges e José Esperidião
oportunizaram àquele homem tenaz de Matinhos a possibilidade de conhecer o
estatuto da Liga Camponesa de Pernambuco, liderado por Francisco Julião. Esse
documento, de certo modo, tornou-se um importante referencial para o processo
77
liderado por Edwiges em Campo Maior na fazenda Matinhos. Ele tratou de adquiri-lo,
por meio de José Esperidião Fernandes, para reproduzir uma cópia e, através desta,
orientar os passos, dentro de suas condições locais, para organizar institucionalmente
os trabalhadores. Ao relembrar de outro encontro, o segundo que mantivera com os
companheiros de Teresina, Luiz Edwiges se propõe, em sua narrativa, a reproduzir o
diálogo que teve com o parceiro de causa, nesse empenho ele assim se expressa:
– Esperidião, depois daquele dia que passei o documento e você levou para Ribamar datilografar, fizeram o que depois?
– Edwirges, nós tiremo umas copias, distribuímos e depois fomos estudar pra ver como agente ia fazer o negocio lá, né!
– Esperidião, se você quiser ficar mais tempo com o documento pode.
– Edwirges, tudo bem! Mas não precisa não, já tiremos as copias e o Ribamar ficou de explicar umas coisas lá pra nóis. Umas coisas que não entendemos direito, né!
– Esperidião, e lá tá bom? Aqui os latifundiários tão prometendo até taca em quem se meter com esse negócio de liga.
– Edwirges, Em Campo Maior tem muita gente assombrada, mas vamos continuar nossa luta assim mesmo.
Os primeiros contatos que os irmãos Lopes – organizadores da
ALTACAM – tiveram a respeito das ligas ocorreram por meio de um jornal em
particular – Santuário de São Francisco – distribuído pela Igreja Católica, que de
certa forma, fazia paradoxalmente propaganda contra o comunismo.
Esse fato foi possível em razão de a mãe dos irmãos ser devota fervorosa
de São Francisco e assinante-associada do referido jornal editado em Canindé,
cidade-santuária do vizinho Estado do Ceará. Esse periódico no Piauí era distribuído
a partir do agente Nunes de Souza, que recebia periodicamente os exemplares e se
encarregava de distribuí-los junto aos associados contribuintes.
Minha mãe era sócia do jornalzinho de São Francisco, lá em Canindé, e o jornalzinho vinha todos os meses pro endereço aqui. O jornal era anticomunista, né!? Aí o jornal trazia muita história do comunismo daqueles. Eles faziam um terror danado nas terras, do comunismo, e aí aconselhava as pessoas não querer saber daquilo e tal, mas já falava muito nas Ligas Camponesas de Pernambuco, o jornalzinho.
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Esse jornalzinho – pautado por uma linha editorial bastante reacionária –,
utilizado pela Igreja como um instrumento de aparelhamento ideológico, propunha-se
a alertar a comunidade católica para o perigo comunista. Em matéria publicada na
edição de 15 de abril de 1962 - número 1131- na Doutrina Social da Igreja, ele postula:
[...] a Igreja não se contenta com reprovar a doutrina comunista, mas apresenta também o seu programa construtor. Ensina que a igualdade, tão preconizada pelos comunistas, é uma utopia. A própria razão nos demonstra claramente que é uma quimera. A natureza deu a uns uma inteligência fulgurante, enquanto que outros não têm gosto e aptidão para estudar, outros têm boa saúde enquanto que outros se arrastam a vida toda doentes.
Em outra edição, em matéria sob o título A reforma agrária e os inimigos,
o periódico afirma:
[...] a economia nacional sempre repousou sobre os ombros do agricultor, e é mais do que tempo de redistribuirmos um pouco daquele bem-estar que ele criou para as outras classes da nação. A efetivação da Reforma Agrária é dever de justiça para com a classe rural. Bispos, sacerdotes, governantes [...] gente de todas as classes trabalham e lutam pela reforma rural. Assinalamos aqui alguns dos movimentos ruralistas, criados em benefício do campesinato: Aliança Libertadora da Família. Agrária de Pernambuco, Liga Camponesa Católica das Alagoas, etc. Isso sem esquecermos a importantíssima atividade da Juventude Agrária Católica e o Movimento de Educação de Base. Todas essas associações rurais inspiram-se nos princípios cristãos e democráticos, e tem apoio da Hierarquia Católica. Desejam a Reforma Agrária o mais cedo possível, mas dentro da lei e sem atropelos e violência criminosa. Do outro lado, estão as ligas do Francisco Julião, já denunciadas como instrumento de agitação e de propaganda comunista. Dentro delas existem, com certeza, homens bem intencionados, mas seus dirigentes pregam a violência, já que ousam fazer ameaças até a governos e proprietários. Querem uma Reforma Agrária nos moldes cubanos e marxistas (Santuário de São Francisco – 1 de junho de 1961, Nº 1.089).
Curiosamente, muito para além do propósito da Diocese, o Santuário
oportunizou aos irmãos Ozório Lopes um amadurecimento político. Fortaleceu neles
a necessidade de avançar com o movimento de criar uma entidade de classe para
os campesinos da sua região.
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Também foi, ironicamente, através desse periódico que os irmãos Ozório
Lopes se depararam com as primeiras referências ideológicas das Ligas
Camponesas. Isso porque logo as associaram aos trabalhos por eles desenvolvidos
em Campo Maior. Do mesmo modo, alimentaram um ideal calcado na relação de
solidariedade e equidade de direito para todos e, com isso, também desenvolveram
o que eles autodenominaram de comunismo rústico.
Sobre o processo de apropriação levado a efeito pelo leitor, sabe-se que
se concretiza fora do alcance de quem produz o texto, a matéria ou qualquer notícia
impressa que circule para além de sua origem matricial. Nesse sentido, o
pesquisador se apoiou nos ensinamentos de Chartier, que argumenta: “abordar a
leitura é, portanto, considerar, conjuntamente, a irredutível liberdade dos leitores e
os condicionantes que pretendem refreá-la” (CHARTIER,1990, p. 123).
Uma boa operação para o historiador talvez seja imaginar que uma das
matérias apresentadas pelo jornalzinho tenha sido esta publicada no dia 13 de
setembro de 1961, com o título: Derrota da política agrária comunista.
É vergonhoso e desumano usar o homem como instrumento de lucro e só estimulá-lo na proporção do vigor de seus braços, como faz o comunismo. A Igreja não se contenta em reprovar a doutrina comunista, mas apresenta o seu programa construtor.
As ligas falavam em nome de uma ampla e diversificada categoria de
trabalhadores que incluía foreiros, meeiros, arrendatários e até pequenos
proprietários, como era o caso de Luiz Edwiges, que produziam uma cultura de
subsistência e comercializavam os excedentes produzidos normalmente em terras
alheias. Assim, convém lembrar que a utilização do termo camponês parece ter sido
fator de autoidentificação e de unidade para designar a categoria tão ampla que
lidava no campo em oposição a um adversário comum, politicamente denominado
pelas lideranças como “o latifúndio improdutivo e espoliante”.
A propósito, Martins (1995, p. 22), reportando-se a tal designação, diz que
“a palavra camponês não designa apenas seu nome, mas também o seu lugar
social, não apenas o espaço geográfico, no campo em contraposição à povoação ou
à cidade, mas na estrutura da sociedade”.
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Edwiges concebia a grande propriedade, pertencente ao
latifundiário, como a razão maior da servidão do homem livre do campo. Ele dizia
que a história do homem livre do interior, o campesino agregado do dono da terra,
era a história das pessoas abandonadas – esquecidas pelos poderes constituídos –
e reféns nas mãos dos latifundiários que diariamente eram obrigados a uma lida
terrível.
Ele lembra que viviam sob o “arbítrio dos poderosos” e não tinham “um
pedaço de terra que (...) e pudessem chamar de seu”. Era um problema político e
era também um grave problema social; moravam em casebres, não tinham escola,
alimentação e nem incentivos para o trabalho. Por isso, carregavam, inclusive, a
pecha de indolentes e eram chamados pelos donos da terra, invariavelmente, de
preguiçosos.
Sua luta foi sempre no sentido da justiça social, da redução da situação
de miséria que assolava seus pares. Edwiges acreditava na igualdade e na
legalidade e se protegia utilizando a Constituição como escudo. Assim inspirado,
repetia muito a ideia da igualdade retirada da Carta Magna, e citava o artigo 141,
preconizando o princípio de que “todos somos iguais perante a lei”. E arrematava,
numa clara demonstração de seu papel social de defensor de uma sociedade mais
justa e mais igual. Arguia também o artigo 147 daquele mesmo estatuto jurídico,
onde reza que “o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social.” Ele
sabia que a justiça, com base na observação da lei, podia promover a justa
distribuição da terra, com igual oportunidade para todos.
Luiz Edwirges era um homem de poucas letras o que leva o pesquisador
a acreditar que tamanho conhecimento da constituição e também sobre esses
aspectos que versavam sobre a igualdade de todos perante a lei e da supremacia
do interesse social coletivo sobre o interesse individual, se devia a convivência com
irmão Ribamar Lopes, homem consagrado por todos e particular mente por Luiz
como a “chave” da família e do lugar e também por ser um verdadeiro intelectual
orgânico operando na região de Matinhos.
A propósito, muito esclarecedor sobre a questão dos direitos positivados
nos ordenamentos jurídicos, Vannuchi (2009) assim se posiciona:
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[...] a previsão legal é apenas o reconhecimento dos direitos que são inatos aos seres humanos. A intenção é adequar o ordenamento jurídico nacional para a garantia desses direitos. A incorporação desses direitos no Brasil oriunda do Poder Constituinte visa orientar as ações do Poder Executivo e as interpretações do Poder Judiciário para a efetiva promoção (Vannuchi. p. 2009).
Nesse mesmo sentido, Bobbio (1996) esclarece que a igualdade
somente se constitui como valor quando situada num contexto político. Assim,
pode ser inspiradora de filosofias, ideologias e lutas que se explicam pelo fato
de que nas principais situações em que ela é invocada ou negada, reveste-se de
um conteúdo de valor muito relevante. E ainda ressalta que esse conteúdo
valorativo, essa carga emotiva positiva que se retira do termo, não é,
necessariamente, a igualdade, mas a expressão “de todos”. Esse “todos” transporta
um significado espinhoso e revolucionário, que se contrapõe a uma realidade em
que poucos têm acesso e controle dos bens e dos direitos dos quais a maioria é
privada.
Desse ponto, emergiu a voz consciente do ativista de Matinhos. Edwiges
olhava para seus pares e somente enxergava miséria, doença, desigualdade, tudo
exatamente diferente daquilo que preconizava a Constituição. Na verdade, ele a
conduzia debaixo do braço para todos os lugares onde andava. Nas reuniões, em
suas falas, Edwiges então perguntava:
Foi sempre assim? Até quando? Quem pode mudar isso? Tem jeito? Deus deseja isso para seus filhos? Por que alguns têm tanta terra e outros não possuem terra nenhuma? Por que a minoria da cidade e uns poucos do campo mandam mais que a maioria do campo? Por que a constituição fala em igualdade de direitos? Onde tá essa igualdade?
Edwiges é daquele tipo de homem que acredita ter a missão de apoiar
sempre a causa de seus semelhantes que era também a sua, e isso era muito claro
nele. Entretanto, nem mesmo ele sabe explicar a origem desse comportamento. Em
entrevista concedida a esse pesquisador sobre sua luta, sua participação na liga, no
sindicato e até mesmo nas inúmeras visitas que fizera à Assembléia Legislativa e ao
Palácio do Governo para falar em nome dos agricultores de sua região, ele assim se
explicou:
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Eu nunca gostei de injustiça. Não aguentava ver um homem batendo num animal, num burro pra andar pra frente quando ele empancava; quanto mais assistir um dono de terra igualzim a mim correr com um companheiro, gritar com ele, humilhar. Isso era mesmo que me dar uma facada. Acho que aprendi essas coisas com a mamãe. Ela reclamava até com o papai quando ele puxava a orelha de qualquer um de nois. Também o padre e o professor, mestre Zumba, falavam que nois era tudo irmão e que ninguém era maior ou melhor do que os outros. Agora, o que eu nunca esqueci mesmo foi escutar a mamãe dizendo que nois tinha que tomar as dor de qualquer um que tivesse sendo pisoteado por outro. Ah, isso eu nunca esqueci. Acho que foi assim que eu aprendi a defender os outros, até mais do que a mim mesmo.
Movidos pela dor do sofrimento e pela consciência de justiça, os
integrantes da liga, sobretudo os nominados linha de frente, foram discursivamente
(táticas) campeando, catequizando outros companheiros, trabalhando-os ombro a
ombro, de modo a fazer com que eles entendessem que juntos podiam promover as
mudanças que todos tanto almejavam: transformar gente trabalhadora, explorada,
ignorada e por isso invisível aos olhos das autoridades em cidadãos de fato
detentores de direitos. Direitos como possuir uma gleba de terra para plantar, deixar
de pagar o imposto da renda sobre a terra, de poder frequentar livremente sem
pressão a missa e outros credos, ter um dia de descanso e escola para seus filhos,
dentre outros. Essas eram conquistas comuns a muitos brasileiros, mas que no
Piauí parecia uma realidade ainda distante.
Noções sobre Constituição, direitos, direitos humanos, justiça, igualdade
povoavam há muito o imaginário dos irmãos Ozório Lopes. Talvez a consciência
viesse mesmo da experiência vivida. Experiência cotidiana de pedir e não ganhar,
de reclamar e não ver mudanças concretas, de gritar e ninguém ouvir e,
principalmente, da certeza de que a verdadeira mudança, aquela que traria melhoria
real de vida para toda a classe de campesinos, bem sabiam eles que jamais
chegaria pelas autoridades políticas e menos ainda pelos patrões latifundiários, que
na lembrança de Edwiges, assim se revelavam:
Os donos das terras se mostravam diferentes em três épocas do ano: na Semana Santa, nas eleições e no Natal. Acho que eles ficavam assim porque queriam alguma coisa. De Deus, talvez o perdão dos pecados. E dos homens, de nóis, o voto nas eleição, só podia ser.
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Edwiges sabia que embora o direito à igualdade figurasse na Constituição
como uma garantia, na prática era uma espécie de promessa, pois as leis e o
próprio direito são sempre um campo de disputas e as vantagens auferidas pelas
partes dependem da luta, da correlação de forças e ele compreendia a partir dos
muitos momentos de tensão já vividos a necessidade de lutar, pois como ele próprio
dizia: “ fazer a defesa dos pobres, pois a dos ricos já está feita”. Luiz Edwiges sabia
que a necessidade só é revolucionária quando consegue mobilizar as pessoas.
1.4 Terra: sinal de riqueza e de pobreza contra a renda e a sombra da casa
Esta cova em que estás com palmos medida // É a conta menor Que tiveste em vida. //
É de bom tamanho nem largo nem fundo.// É a parte que te cabe deste latifúndio. //
Não é cova grande, é cova medida, // É a terra que querias ver dividida.
(Funeral de um lavrador, JOÃO CABRAL DE MELO NETO).
A terra pode significar riqueza e pobreza, vida ou morte, poder político,
posição social ou marginalização. Para cada pessoa ou grupo social, ela tem um
valor (GANCHO, 1955 p. 5). A história da luta pela terra, sua organização e os
conflitos dela advindos, na maioria das vezes, não têm sido analisados do ponto de
vista da posse e da efetiva ocupação por parte daqueles que retiram dela o seu
próprio sustento e de toda sua família.
Como estratégia para contornar a legalidade da propriedade, os posseiros
introduziram a chamada legalidade alternativa da posse, caminho a partir do qual
meeiros, foreiros e arrendatários, que produziam para a subsistência, justificavam as
ocupações e a luta pela permanência, mesmo que precária, na terra como direito
sagrado de plantar e colher. Estes, em regra, organizavam-se em torno de princípios
que exaltavam sobremaneira a posse e o uso produtivo da terra, com fundamento,
muitas vezes, na história de vida, na qual a terra passava de pai para filho, conforme
se pode depreender da fala do agricultor Pedro Celestino, morador do povoado
Floresta, região de Campo Maior:
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(...) quando eu me entendi por gente minha família toda já morava aqui nesse lugar. Meus tios, meus irmãos, meus parentes tudim. Só depois de grande é que eu vim, a saber, que essas terras era da família dos Gayoso. Mais meu avô morou aqui e meu pai nasceu e morreu aqui e agora eu. Nós fazia roça e criava os animais solto, correndo pra todo lado.
Em outra, na própria Bíblia, que decretava: “A posse da terra tem limites:
Deus é o único dono da terra e as pessoas são simples administradores. (Lev. 25.
23, Apud Santuário de São Francisco Ano 47, 01.06.1961, Ed. 1089)”.
Ou ainda a partir do discurso da Igreja que, por meio de seus clérigos e
agentes pastorais mais progressistas, enxergava no Evangelho um projeto, um
canal, um instrumento revolucionário de transformação das condições sociais
vigentes.
Nessa perspectiva, os movimentos sociais que se constituíram com
fundamento em uma série de reivindicações relativas aos problemas que envolviam
os camponeses, tiveram durante os seus processos de formação e amadurecimento
o apoio efetivo e até patrocínio, quando não da Igreja como instituição, pelo menos
do segmento ligado à chamada esquerda católica ou, em última análise, da ação
isolada de vigários e agentes pastorais que assumiam a causa camponesa por
missão ou por obediência à Doutrina Social da Igreja.
No Piauí, como de resto no país inteiro, a Igreja Católica exerceu no meio
rural, uma atuação difusa. Essa atuação variava desde o apoio aberto aos
trabalhadores, fomentando sua organização e luta, até a formação de aliança com
os latifundiários. Essa posição difusa fica evidente na fala do sociólogo Antônio José
Medeiros, quando em entrevista concedida a este pesquisador, em 20 de março de
2015, afirmou:
(...) aqui, nós encontramos de tudo: em União que é minha terra, o padre Izaque fazia um trabalho. Em Campo Maior o monsenhor Mateus fazia um trabalho, já em Angical e Regeneração o Padre Borges que era um reacionário ficava o tempo todo ao lado dos grandes proprietários. Em Amarante, o padre Davi também mobilizava os agricultores e em Miguel Alves, aqui próximo a União, o padre Josino, por várias vezes, entrou em conflito com o padre Izaque que também andava por aquelas bandas organizando trabalhadores.
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Nessa concepção, percebe-se que as ocupações, bem como a resistência
camponesa em torno da terra no Piauí, possibilitaram não somente as condições
para a formação das ligas, mas ofereceram também a munição necessária para que
essas mesmas entidades dessem visibilidade às injustas e degradantes condições
de vida e trabalho daqueles que tinham a terra como algo sagrado e, talvez para a
maioria deles, o único meio de sobrevivência.
Ao observar por esse prisma, pode-se compreender que a classe, como
postula Thompson (1987, p.10) emerge enquanto categoria histórica permeada em
meio a uma formação social e cultural. Enquanto tal, conforme esse teórico, a classe é
situada como uma unidade coletiva, um sujeito que se constrói no seu fazer-se. Essa
unidade coletiva, ou seja, a classe se insurge das correlações de forças instauradas
entre grupos, normalmente em tensão. Ela se faz presente quando os indivíduos
adquirem proximidades ao se reconhecerem em meio a uma mesma situação de
exploração e expropriação e, numa tentativa de ceifar a malha fina que subjuga e
encobre tal relação, articulam objetivos comuns contra os grupos que impõem certo
exercício repressivo.
No Piauí, as relações entre lavradores e os proprietários geralmente se
faziam por intermédio de contratos verbais de arrendamentos de terra, nos quais
eram pactuados aspectos como duração da permanência, as obrigações do lavrador
para com os proprietários, a possibilidade de criação de algum tipo de animal, entre
outros pontos acordados.
Embora fossem muitos os deveres e poucos os direitos, dois desses
deveres: o pagamento da renda e obrigação de realizar a sombra da casa eram, de
longe, os principais tormentos dos agricultores da região dos carnaubais. Nesses
versos recitados pelo lavrador Raimundo Edwiges, que exerceu cargos na diretoria
da ALTACAM, bem se pode aferir como era grande o sofrimento e a angústia diante
dessas obrigações:
Quem na terra mora // E dela depende, // Pra si não tira nada, // Vive só de pagar renda.// Lutar nós luta muito, // Só não vê o resultado. // O que mais nois quer, // É
morar sem ser agregado. // Tem coisa que vem de Deus, // Outra vem do cão, // Uma é a água fria, // A outra é o cambão. // Tem hora que falta força, // Bate uma
tristeza danada. // Temos que rezar pro santo, // Pra dar força na jornada.
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Além da renda e do cambão9, mencionados nos versos acima, existiam
outras obrigações que agravavam ainda mais a situação de penúria e pobreza
extrema na qual vivia a quase totalidade dos agricultores do estado. Para a maioria
dos agregados o problema da renda estava vinculado aos baixos níveis de colheita,
especialmente em épocas de seca, o que redundava em dívidas ou
comprometimento da produção futura.
O pesquisador do IBGE, Joaquim Luiz Cantuária, em levantamento
realizado no ano de 1958, ano identificado com um dos mais secos da década,
assim caracteriza a situação anteriormente identificada:
(...) eu lembro que visitei a região da caatinga de baixo mais ou menos pelo mês de agosto. Era uma fome de gritar, entrei numa casa que não tinha nada, só o pilão vazio e o fogo apagado. Um sol de rachar e muito sofrimento. Nem uma esperança eu vi nos olhos daquela família.
Outro problema que afetava a vida dos trabalhadores diz respeito à lida
diária com as bagas de coco do babaçu e do tucum. Duas palmeiras nativas
intocáveis, pois era monopólio dos fazendeiros proprietários que obrigavam os
arrendatários a colher – extrair as bagas, partindo os cocos e a vendê-los a preços
irrisórios, geralmente menores do que os praticados em outras fazendas da região,
somente para os donos da terra onde aqueles eram agregados e sem receber
qualquer valor em moeda corrente, apenas produtos. Essa forma de pagamento
limitava ainda mais a liberdade dos agregados e isso os oprimia bastante.
Como se percebe, a rotina do trabalhador rural agregado se realizava
entre a criação de alguns animais, como cabras e galinhas e a obrigação de fazer as
roças, geralmente duas. Ambas na propriedade do fazendeiro que o agregava. Uma
para seu próprio sustento, com o cultivo de feijão, milho, mandioca e arroz; e outra
para o proprietário como forma parcial de pagamento pelo direito de morar e cultivar
a terra resultante de um contrato de arrendamento.
Na lida de suas roças, os lavradores contavam com o apoio de toda
a família, envolvendo mulheres, filhos, irmãos e, uma vez ou outra, com ajuda de
_____________________ 9 Obrigação de trabalhar gratuitamente por dois ou três dias na semana na propriedade do
fazendeiro. Espécie de herança “Feudal”. No Piauí poderia ser realizado pelo agricultor ou dependente.
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outros campesinos, agregados provenientes de outras fazendas, constituindo
mutirões de solidariedade. Para a feitura da roça dos proprietários, os agricultores
normalmente utilizavam os dias em que não estavam realizando alguma atividade,
como broca, capina ou mesmo a colheita em suas próprias lavouras.
Nos dias em que se encontravam desobrigados das lidas de suas roças,
eles estavam cortando, fazendo a broca, a limpeza e o plantio das roças dos
proprietários, o chamado cambão. Além disso, esses agricultores ainda eram
forçados a realizar a sombra da casa, uma espécie de limpeza do pátio da fazenda,
serviço pelo qual não recebiam nenhuma espécie de pagamento, a não ser o
almoço, geralmente cozidão de boi com pirão de farinha.
Apesar de não figurar entre as obrigações mencionadas nos contratos
verbais de arrendamento das terras, o não comparecimento do agricultor ou de um
filho nos dias destinados à tarefa da sombra da casa, podia ensejar a saída dele das
terras do proprietário, além de macular a imagem do camponês como alguém que
fazia corpo mole.
Em conversa com o agricultor Antônio Simplício da localidade Puba, ele,
ao relembrar um dia desses dedicado à sombra da casa, falou que era o dia do
batizado de sua filha mais nova. Na tentativa de reconstituir aquela situação, ele
assim se expressou:
Moço, foi um dia pra mais nunca. Lembro como se fosse hoje. Ia ser o batizado de minha filha, do menino do compadre Manoel e parece que também era o batizado da Francisquinha, filha da comadre Raimunda, lá da Lagoa dos Corró. O leitão já tava preso para ficar limpo, as galinhas também. Naquele dia, o menino do meu vizinho, compadre Pedro, amanheceu lá em casa. Fizemos o fogo para pelar o leitão, a mulher cuidando das galinhas, quando foi lá pelas 6 ou 7 horas o vaqueiro do proprietário chegou num cavalo gritando: – O homi mandou chamar para fazer a sombra da casa. Rapaz... correu uma raiva tão grande! Mais eu pensei e disse: – Posso não. Hoje é o batizado das crianças aqui do lugar e o padre não batiza sem nóis que semos os pais. O encarregado disse: – Pois então manda teu filho mais velho que já tem sustança nos braços.
Diante das agressivas e cada vez mais frequentes investidas dos
latifundiários, constatou-se que a alternativa aparentemente mais plausível a ser
88
adotada pelos camponeses para garantir e conservar o acesso à terra era a
criação da associação que já vinha sendo gestada pelos irmãos Ozório
Lopes, liderados pelo Luiz Edwiges, e recorrer aos mutirões que, embora
paliativamente, funcionavam como verdadeiras redes de proteção em relação aos
proprietários.
A tônica pautada pelo pesquisador foi a de se conduzir de forma atenta e
sempre zelosa para não confundir realidades de lugar e tempo distintos, caindo em
anacronismos e outros equívocos que desvirtuam a experiência de Matinhos.
Desse modo, pode constatar que a formação das ligas, a experiência dos
mutirões e até os pedidos de intervenção junto ao judiciário, na proteção dos
agricultores, funcionavam como estratégias e prestam-se, a partir de um
alargamento do conceito de economia moral pensado por E.P. Thompson e
ampliado pelo antropólogo J. Scott nos anos 70, para explicar essas práticas
desenvolvidas pelos agricultores, agregados e até pequenos sitiantes. Isso porque
impulsionados por referências morais, inclusive com foco no significado histórico da
terra, culturalmente livre, sem cercas e compartilhada, eles reagiam em defesa de
suas vidas como sabiam e podiam.
Pesadas as diferenças, a situação dos agricultores piauienses guardava,
em certos momentos, uma relação comum – identificação de proximidade – em torno
da manutenção da terra para cultivo familiar e para a reprodução da vida,
contrastando naquele contexto com a terra para enriquecimento dos grandes
proprietários que agiam violentamente na exploração daqueles. Muitas vezes, com a
proteção do estado, por intermédio dos delegados de polícia, braço armado sempre
à espreita a serviço dos latifundiários, tornando mais precária e sofrida a vida
daquelas famílias que já não tinham nada.
Com tantas humilhações, provavelmente os lavradores até
questionassem, argumentando que eles tinham um contrato, o qual certamente
assegurava alguns direitos que compreendiam como justos e dos quais não
desejavam abrir mão. Acredita-se que essas situações geravam espaços para
constantes negociações e forjavam um terreno próprio para criação de inúmeros
núcleos das ligas, verdadeiras redes de solidariedade que se efetivavam com
práticas cotidianas, especialmente em tempos de seca.
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Lançando mão das lembranças de Chico Edwiges, irmão de Luiz
Edwiges, identificou-se uma dentre as muitas situações em que a prática do mutirão
funcionava como um momento de celebrar a união, fortalecer a resistência e tornar
menos sofrida a vida daqueles camponeses.
Nós nos ajudava muito. Algumas vezes, eu ia para as roças deles; outras, eles vinham para a minha, e assim todo mundo se ajudava. Nós tinha dia para o trabalho na roça, para a pega do gado e até para as festas, como batizado e festejo do santo. Também nós tirava dia para defender nossos amigos. Teve um dia que fui bater, eu mais o Luiz, na casa de um caboquim que o coisa-ruim do Gentil Alves disse que ia correr das terras, porque tinha vendido umas bagas de coco de babaçu em outra quitanda. Pra quê? Fiquei na casa do omizão o dia todo e defendemo ele, principalmente o Luiz, que tomava frente mesmo.
A essas arbitrariedades que agrediam de morte a cultura e a dignidade
daqueles homens e mulheres de carne, osso e sentimentos, os agricultores
respondiam, às vezes, com ações diretas, como ficou evidente na narrativa acima;
em outras, com ações (táticas) difusas e fragmentárias, como na realização precária
de consertos de cercas das fazendas, na execução da sombra da casa, no
cometimento deliberado de erros na marcação de animais (porcos, bode e boi) e até
na colheita de milho e feijão, furando as filas para reduzir a produção e,
consequentemente, a quantidade a ser paga na forma de renda ou meia.
Esse comportamento dos agricultores aos poucos foi sendo assimilado e
os proprietários também foram criando estratégias para combater aquilo que
chamavam de “sabedoria ou esperteza” dos agregados. Uma das primeiras medidas
adotadas foi criar a figura do apontador, uma espécie de procurador, vigia, olheiro,
que acompanhava tanto a realização dos serviços quanto a colheita e medição da
renda ou da meia, nos dias de pagamento da quantia devida por cada um dos
agregados. Alguns desses procuradores se tornaram figuras tão importantes que
tinham poderes até par aceitar ou rejeitar pedidos de agregação.
Ao que se sabe, não faltaram ocasiões em que a quantia apresentada
pelos moradores não batia com a medida cobrada pelo apontador. Isso ensejava
constantes desentendimentos, algumas deles com desfecho nas delegacias. Uma
dessas situações foi narrada pelo agricultor Luiz Edite que, com riquezas de
detalhes, assim descreveu o episódio:
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Teve um dia, num me lembro bem se foi o cumpade Raimundo ou foi o Zeca lá dos Corró... eu sei que um deles levou os legume e disse lá pro Chicão, que era o apontador, que aquele tanto que ele tava cobrando tava errado; que ele não ia dá todo o legume dele e ficar sem nada. O Chicão disse que tava só fazendo a obrigação dele. Foi um bate boca danado e eles tudim, muié, filho e mais outras pessoas foram até o delegado. Tiveram por lá e foi tempo. Até que o delegado, um homem até jeitoso com agente que era agregado, disse lá um tanto de coisa e a confusão acabou. Isso era rojão que acontecia muito.
Situações, como a narrada acima, eram relativamente comuns revelando
que, apesar de ocuparem praticamente as mesmas terras, proprietários e agregados
viviam, embora não em todos os casos, um clima constante de tensão. Essas
contendas ao tempo em que revelavam uma nova postura politica dos moradores-
agregados em relação aos proprietários, também simbolizavam o desdobramento
de todo esse processo de tensões, a criação e expansão para algumas localidades,
de núcleos das ligas, instrumento que reforçaria a luta diante dos abusos cometidos
pelos apontadores ou encarregados de fiscalizar as roças e cobrar a renda e outras
obrigações. Era a experiência forjada na luta que recriava as táticas e estratégias de
resistência.
Possivelmente, a família Ozório Lopes tivesse a percepção que a luta
contra o latifúndio, a renda e tudo que tivesse ligado a essa “praga”, fosse ao
mesmo tempo a luta em favor da expansão da cidadania, contra a pobreza absoluta
que marcava a cara, a barriga e a cabeça de todos os seus companheiros.
Para Luiz Edwiges, a lei que deveria assegurar a igualdade de todos,
acima do poder dos latifundiários, do poder privado, algo a ser respeitado e
valorizado, apresentava-se apenas como um instrumento que não gerava justiça.
Nessas circunstâncias, cabia a ele, como “representante dos pequenos”, lutar com
todas as armas possíveis contra o latifúndio, inclusive ocupando terras e evitando
que companheiros fossem expulsos de outras. Era ele e toda a força de sua voz
contra o latifúndio e todos os seus efeitos danosos.
Luiz Edwiges se mostrava um homem de fé e muito otimista. Acreditava
que, assim como o governo do Presidente Goulart, havia legalizado os sindicatos,
embora depois de muita luta, também ele e todos os seus companheiros
conseguiriam superar algumas daquelas situações e problemas contra os quais
91
lutavam bravamente. Ver o custo do arrendamento e da parceria baixar, o crédito
chegar para o pequeno agricultor e, finalmente, ter liberdade para organizar os
camponeses e ver o sagrado direito à terra respeitado, representava o cumprimento
de uma missão para aquele homem simples, de fibra, aguerrido e muito
comprometido com sua classe. Acreditar que a necessidade não tem lei, mas que
faz a lei, talvez fosse sua principal inspiração.
1.5 A luta pela terra no Brasil e nos Carnaubais
Em tempos diversos, o homem do campo no mais das vezes procurou
criar uma cultura de resistência e um exercício reivindicatório referente aos seus
direitos em relação à terra, plano no qual sua lida, via de regra, se fez. Nesse
intento, ele se aproxima de seus pares formando corpos coletivos, nos quais irá
experimentar situações cotidianas divididas com eles, compartilhando, assim, sua
gama de vivência e lutas por valores e questões em comum. É essa experiência
coletiva que os sujeitos irão constituir aquilo que E.P. Thompson (1981) postulou
como classe.
O autor de tal postulado defende que a classe, enquanto categoria,
emerge sempre a partir de um contexto histórico. O seu argumento é o de que ela é
permeada em meio a uma formação social e cultural. Por isso, segundo ele, a classe
é situada como uma unidade coletiva, um sujeito que se constrói em um fazer-se.
Um fazer-se que nasce das relações de força instauradas entre grupos em luta.
Para o autor, ela se faz presente quando os indivíduos adquirem
proximidades ao se reconhecerem em meio a uma situação de exploração e
expropriação. Assim, esses indivíduos, numa tentativa de ceifar a malha fina que
subjuga e encobre tal relação, articulam objetivos comuns contra os grupos que lhes
impõem certos exercícios repressivos.
Essa foi a trajetória que se deu com os trabalhadores rurais da fazenda
Matinhos. Foi Luiz Edwiges, com a sua vivacidade e tenaz determinação, quem os
fez próximos, ativos e críticos de si e da situação, possibilitando-os a se
reconhecerem vítimas de uma situação histórica de exploração e expropriação por
parte dos patrões detentores das terras que os agregavam.
92
Entretanto, faz-se oportuno dizer que, estranhamente, há quem não veja
como exitoso o movimento dos camponeses do Brasil. Dentre essas posições, está
a de Caio Prado Júnior. Para ele, o camponês de então era totalmente desprovido
de ação política, principalmente as de natureza transformadoras, as revolucionárias:
Assim como ocorreu com os escravos que, apesar do considerável número, não formavam uma massa coesa e, por isso, representava um papel político insignificante, o mesmo pode ser dito da população livre das camadas inferiores, pois não atuavam sobre elas fatores capazes de lhes dar coesão social e possibilidade de uma eficiente atuação política (PRADO JÚNIOR. 1987, p. 68).
Mais à frente, contrapondo-se a essa posição, o pesquisador –
entendendo-a como contextualizadamente deslocada e signatária de modelos
prontos – fará oportunamente a narrativa, de modo mais detalhado, do processo de
organização exitosa dos trabalhadores rurais, liderados por Luiz Edwiges, que
resultou, como fruto da experiência de luta, na criação da Liga Camponesa de
Matinhos, no interior de Campo Maior, município do Piauí. Isso vem demonstrar que
a visão de Prado Júnior se mostra torta e não traduz a realidade vivida no Piauí.
Embora a relação entre o homem e a terra remonte a tempos longínquos
– a terra sempre se configurou como principal meio de produção de alimentos –, a
origem e a evolução da propriedade é ainda um tema bastante polêmico.
Não há consenso acerca da questão. O que se tem é apenas um conjunto
de teorias, como pode ser entendido das palavras de Clóvis Araújo (2005, p. 43):
(...) não há consenso entre os estudiosos no tocante à existência ou inexistência da propriedade em toda a história da sociedade humana. Discute-se se a propriedade é um direito natural ou um fenômeno humano, tendo sido intenso o debate, principalmente, entre jus-naturalistas e positivistas.
Varella (1998, p. 23) concorda com Clóvis Araújo sobre a inexistência de
consenso em relação à origem da propriedade; entretanto, assume o entendimento
de que a propriedade é um fenômeno social, uma intervenção humana
provavelmente oriunda dos primeiros cercamentos e não um direito natural.
Atribuindo ao debate jurídico um plano secundário, mirando
principalmente no fenômeno histórico dos cercamentos, fica configurado que tal
93
fenômeno gerou uma situação paradoxal, visto que coloca em lados opostos os
detentores, os ditos proprietários, permitindo a eles o uso exclusivo da terra e a
garantia do sustento alimentar e político; e, do outro lado, legava àqueles que teriam
ficado fora do conjunto da relação familiar uma condição de banimento social e
sujeição política.
Ampliando as fronteiras do debate em torno da origem, evolução e função
social da propriedade, o pesquisador segue e amplia o pensamento de Carlos
Frederico Marés (2003, 242-256), para quem a função social não é apenas da
propriedade; mas também da terra:
Na realidade, quem cumpre a função social não é a propriedade, que é um conceito, uma abstração, mas a terra, mesmo quando não alterada antropicamente, e a ação humana ao intervir na terra, independentemente do título de propriedade que o Direito ou Estado lhe outorguem. Por isso, a função social é relativa ao bem e ao seu uso, e não ao direito. A disfunção social ou violação se dá quando não a um uso humano, seja a proprietário legitimado pelo sistema, seja por ocupante não legitimado.
Nesse sentido, pensando a função social da propriedade ou da terra, em
qualquer das situações, essa nova forma de interpretar a propriedade se constitui
numa revolução e num horizonte para as lutas sociais por acesso à terra, pelo direito
de propriedade e por uma reforma agrária ampla, profunda e que transformasse
para melhor a vida das pessoas.
No Brasil, o conflito pela terra é manifesto violento desde que os
invasores portugueses aportaram por aqui. No contexto da dita colonização, já nos
seus primórdios, invasores dominadores e nativos dominados travaram uma
sangrenta luta pela posse, permanência e exploração da terra. Os invasores
europeus autoproclamados “mais civilizados”, pela força de suas armas, saíram
vitoriosos.
A partir desse ponto, os dois lados vão protagonizar uma história de luta
pela terra que se apresentará agressiva e com marcos cronológicos diversos. Baldez
(1997, p. 75) entende que essa luta inicia com os quilombos, pois, a luta dos negros
significou não só o fim de um cruel sistema, mas também “a procura de um espaço
de organização, produção e preservação da identidade cultural do negro”.
94
Ainda conforme esse autor, na luta pela terra, deve-se levar em conta
também que os embates pela reforma agrária sempre se configuraram gênero de
primeira grandeza. Entretanto, eles somente ganharam pujança em termos de força
como proposta possível a partir da década de 50, do século passado, através das
Ligas Camponesas, principalmente no Nordeste, que expressavam intensa
insatisfação com a ordem e com as estruturas vigentes no Brasil. O pico de
intensidade ocorre entre 1955 e 1964, período que corresponde a mais profunda
crise do modelo politico apelidado por certos campos da historiografia como
populismo e às vésperas do golpe civil-militar.
Muito antes dessa fase, ainda nos primórdios da colonização portuguesa,
já se assistiu à preparação da – ainda presente e aviltante – concentração fundiária.
Foi quando o Reino de Portugal iniciou um particular processo de concessão de
extensas faixas de terras a perder de vista. Esse processo de concentração de
terras aprofundou-se ainda na primeira metade do século XVI. A partir de então, até
a primeira metade do século XIX, mais precisamente 1850, o Estado português
desenvolveu, nas terras de sua mais rica e principal colônia, o modelo de
exclusividade sobre a propriedade, ou seja, todas as terras pertenciam à Metrópole.
Todavia, levada pela crescente necessidade de capitais para aplicar e
desenvolver suas atividades econômicas, todas movidas pelo braço escravo, a Corte
passou a adotar o modelo de concessões de uso com direito de transferência de
posse, isto é, apesar dos beneficiados pela Corte terem direito de explorar a terra e
repassar tais direitos a seus herdeiros, não existia a possibilidade de negociar, ou
seja, a terra não era ainda tratada como mercadoria.
A regulação em lei, como se percebe, extingue a posse como forma de
aquisição da terra, tornando válida somente a compra e a venda. Tal medida retirou
do trabalhador, do homem simples, a possibilidade de acesso à terra. Reforça-se,
assim, o poder dos latifundiários ao tornar ilegais as posses dos pequenos
produtores.
Outro momento na transitoriedade entre o trabalho escravo e o trabalho
livre se deu com a chegada em grandes levas de imigrantes, principalmente
europeus, que passaram a trabalhar nas lavouras de café do Rio e de São Paulo no
sistema de parceria, base do colonato brasileiro. Sobre a Lei de Terras e o próprio
Direito Agrário, no tocante ao reconhecimento da posse, Raimundo Faoro assim se
posiciona:
95
[...] daí por diante, em lugar dos favores do poder público, a terra só se adquire por herança, pela doação, pela compra e, sobretudo, pela ocupação – a posse, transmissível por sucessão e inalienável pela compra e venda, isso é uma inovação.” (FAORO, 2000, p. 408).
O que se fez com essa medida, que já conjecturava o processo de
“libertação” dos escravos, foi libertar o escravo para escravizar o acesso à terra,
impossibilitando que a maioria de trabalhadores tivesse possibilidade de algum
benefício ou sobrevivência.
Em 1891, foi instituída a lei que aprovava a emissão de propriedade por parte dos Estados e não mais como função da união. Isso demonstra não só o desinteresse sobre a questão (terra) como também a omissão da Federação em relação à estrutura fundiária da nação (SILVA,1997 p 67/68)
Depois da Primeira Guerra Mundial, o contingente de camponeses pobres
que migravam para o Brasil, desde o fim do tráfico de escravos, foi
progressivamente reduzido até ser interrompido. Assim, nesse contexto, a
combinação de imigrantes empobrecidos e a população de mestiços, formada ao
longo de quatro séculos, após a invasão – “descobrimento” –, e que não se
submeteu ao trabalho escravo nem tinha acesso à propriedade, em razão,
principalmente, da lei de terras, constituirá o campesinato brasileiro.
É importante frisar que a partir de 1930, com a crise do modelo
agroexportador, ascende ao poder Getúlio Vargas, que inicia um novo modelo
econômico. Esse modelo identificado como industrial tardio, apesar de financiado
em grande parte pelo capital internacional, ainda mantinha estreitas relações com a
velha oligarquia rural, da qual, inclusive, emergia parte da nova elite industrial. No
campo político, a composição de Vargas, que permitia a sua governabilidade, não
era das melhores; de tendência fascista, impregnada pelas velhas oligarquias e
fazendo uso da violência como método banal a fim de manter a ordem e o sossego
público, estava aquém do que pode se esperar de um governo para todos.
A partir do final dos anos 50 e, de modo mais consistente e substancial
nos primeiros anos da década 60, mesmo assim, com as raízes fincadas nas bases
liberais que forjaram a Constituição de 1946, o Brasil produziu um intenso debate
sobre Reforma Agrária. Isso foi possibilitado, em parte, por essa mesma
96
Constituição, que consagrou pela primeira vez, de modo mais preciso, a discussão
sobre a função social da propriedade, isso equivale a dizer que, a partir de então, a
propriedade estará tutelada pela Carta Magna e os seus proprietários devem se
resignar com o ônus social de tal direito.
Embora não se possa negar que a invenção inovadora da função social
da propriedade foi, em parte, triunfo das pressões sociais, de articulações do campo
progressista – ligas, sindicatos, partidos políticos e setores da Igreja Católica, é
preciso reconhecer também que esses avanços não impactarão positivamente na
vida dos trabalhadores, pelo menos enquanto o aparato estatal em suas diversas
instâncias ainda se encontra sobre o controle de aliados dos latifundiários. Tal
inovação jurídica acaba se limitando ao simbolismo de sua existência, de legitimador
de um sistema excludente.
A prova dessa situação é que, mesmo com alguns poucos avanços, depois
de meio século de existência da função social da propriedade no ordenamento
jurídico brasileiro, o país continua com inaceitáveis níveis de concentração fundiária.
O Piauí e o Maranhão são exemplos vivos e presentes dessa concentração.
Em matéria publicada no Portal O Dia, de 16/02/2009 sobre a questão
fundiária no Estado, o superintendente estadual do INCRA, assim se manifestou:
“Especialmente na região sul do Piauí, há uma nuvem “preta” pairando sobre os registros e domínios de imóveis. Na sanha por adquirir terras, falsificam-se documentos de propriedade e expulsam antigos moradores”. Ainda na mesma matéria a Comissão Pastoral da Terra apresenta os seguintes dados estatísticos sobre a concentração no Estado. “62,4% da área total dos imóveis rurais do país são improdutivos. No Piauí esse percentual chega a 49,54% de acordo com os dados do INCRA”.
Ainda segundo o jornal:
“No Piauí 310 imóveis rurais estão com o cadastro cancelado por suspeitas de fraudes na cadeia dominial de posse. A área é estimada em mais 4 milhões de hectares. Esse número que não é real, pois certamente existem mais imóveis, representa um crescimento de 142% em relação ao ano de 2000, quando foram identificados 128 imóveis com a mesma suspeita; grilagem”.
Também em relação a esse processo de formação, continuidade e
permanência do latifúndio em nossa desigual e profundamente injusta estrutura
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fundiária, (GALEANO, 1983, MARTINS, 2003, SILVA; MARTINS 2010) assim se
posicionam: “Esses latifúndios, que outrora dependiam da mão de obra indígena e
da importação de negros africanos agora experimenta grande crescimento à custa
de pagamento de baixos salários e péssimas condições de trabalho”.
Assim, como protagonista desse debate, destacou-se a ala progressista
da Igreja, alimentada pelas decisões do Concílio Vaticano II, particularmente pelas
orientações, em 1961, da encíclica Mater Et Magister e Pacem In Terris –, que
deram um vigoroso impulso à linha do compromisso social, fomentando no Brasil o
crescente engajamento da Igreja nas questões referentes à evangelização, à luta
pelo reconhecimento do ser humano como sujeito de direitos e deveres com vida
dígna, à sindicalização rural, à educação de base no campo e, principalmente, à
reforma agrária, atividades que seriam desenvolvidas pela atuação articulada do
MER, MEB, e CEB’s, em parceria sempre que possível com o estado.
Nesse sentido, o Poder Público arrogou para si – temendo ser deslocado
do comando – as diretivas desse processo, já bastante convulsionado com a
atuação política das Ligas Camponesas. Com esse objetivo, criou a SUPRA,
promulgou o Estatuto do Trabalhador Rural, o CONSIR e, finalmente, instituiu o
Estatuto da Terra. Instrumentalizado assim, o estado acreditava ser possível atenuar
os graves problemas do campo e até, progressivamente, solucioná-los.
Para José de Souza Martins (1984), isso efetivamente não ocorreu.
Segundo ele, toda essa legislação priorizou principalmente o uso de tecnologia no
campo, sem atacar o cerne da questão que residia na concentração, no monopólio,
pois era necessário um novo modelo de redistribuição de terras. Além disso, para
ele, essa legislação era profundamente ambígua, visto que permitia, por exemplo,
manter e até modernizar com recursos públicos os antigos latifúndios e, ao mesmo
tempo, incentivar a propriedade familiar, que sempre foi desvalorizada.
A chegada dos militares ao poder em 1964 significou o mascaramento e a
invisibilização do tema da reforma agrária do debate nacional, apesar do Estatuto da
Terra (1964), os militares que se sucederam e sempre contaram com o apoio das
elites proprietárias, jamais tiveram em mente fazer qualquer mudança na estrutura
fundiária brasileira constituída desde os primórdios da colonização. Pelo contrário,
prepararam uma sofisticada legislação para criminalizar todo e qualquer movimento
social que questionasse a “nova ordem” estabelecida.
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Passado mais de 500 anos, a luta pela terra continua. Agora, os
autoproclamados mais civilizados – grandes proprietários – sentem-se agredidos
pelas reivindicações e ocupações e, nesses embates, têm sido vitoriosos, pelo uso da
força de suas armas e de seus propalados direitos respaldados, que ainda são, num
sistema jurídico lento, caro e inacessível à maioria dos vitimados nesses ditos embates.
Fernandes (2000, p. 7) afirma ser de primeira necessidade distinguir a
luta pela terra da luta pela reforma agrária. “Primeiro, porque a luta pela terra
sempre aconteceu, com ou sem projeto de reforma agrária. Segundo, porque a luta
pela terra é feita pelos trabalhadores e na luta pela reforma agrária participam
diferentes instituições”, entre estas, igreja, sindicatos, partidos políticos. Afirma,
ainda, que a luta pela terra é anterior à luta pela reforma agrária; mas ambas
perfilam lado a lado, são interativas. “A luta pela reforma agrária contém a lula pela
terra. A luta pela terra promove a luta pela reforma agrária” (FERNANDES. 2000, p. 7).
No Brasil dos anos 50, especialmente no Nordeste, ganhou notoriedade o
movimento das Ligas Camponesas, e dos anos 80, a luta dos Sem-terra no centro-
oeste e no sul, além da luta dos seringalistas na Amazônia.
Aqui no Piauí, a Balaiada, 1838/1841, a Guerra dos Caceteiros10, 1937, e
as Ligas Camponesas, além de outros, são exemplos desse tipo de enfrentamento.
A Balaiada foi um movimento popular que teve, dentre suas causas, a
reação à ditadura de Manuel de Sousa Martins, Barão da Parnaíba. Essa rebelião,
embora tenha se iniciado no vizinho Estado do Maranhão, alcançou o território
piauiense pela região Norte, abrangendo as cidades de Parnaíba, Piracuruca,
Piripiri, dentre outras, até se estender a Campo Maior.
A Guerra dos Caceteiros foi um movimento decorrente da situação de
descaso, tradicionalmente estudado a partir de um viés religioso que não considera
o contexto histórico e a profunda ligação entre miséria e abandono dos sertanejos.
Cerca de 4 mil famílias pobres que lutavam a partir da liderança do beato José
Senhorinho pela criação de escolas, abertura de estradas, registros de terras e de
pessoas, entre outros direitos reivindicados.
_____________________ 10 Guerra dos Caceteiros ou pau de colher, movimento popular rural que alcançou dimensão
regional (Piauí e Bahia) num raio de 20km. Provocado entre outras razões pela completa ausência do poder público e exploração de homens e mulheres pobres da região com forte espiritualidade católica. Ocorreu no município de Casa Nova na Bahia e se expandiu até os municípios de Dom Inocêncio e São Raimundo Nonato, no Piauí em 1938. Foi liderado por Francisco Antonio da Silva, conhecida com “Bitozo Silva”.
99
Esse movimento – também conhecido como Pau de Colher – teve origem
em território baiano, espalhou-se por Pernambuco e alcançou as terras do Piauí. Em
solo piauiense, ocupou fazendas do sul do estado, particularmente no município de
São Raimundo Nonato. A denominação Pau de Colher se explica, provavelmente,
em razão de, na região de alcance do movimento, existir em abundância uma árvore,
cuja madeira era utilizada para o fabrico artesanal de cacetes e colheres de pau.
Em razão de ser estudado, de modo recorrente, como messiânico, esse
movimento é pouco explorado em seus aspectos históricos, não se fazendo relação
com a miséria, a pobreza e o abandono dos revoltosos com a concentração de terra
nas mãos dos grandes latifundiários da região. Ao se posicionar sobre as lutas que a
historiografia tradicional denomina de fanatismo religioso, Schlling (1979, p. 127) tem
outra análise:
Durante todos esses séculos o interior brasileiro foi cenário de lutas permanentes. Algumas assumiram o caráter definido de rebelião de escravos como a epopeia de Palmares (que revestiu quase um século) e dezenas de outros quilombos. Outras, apesar de serem apresentadas pela historiografia oficial como levantes de fanáticos religiosos, foram autênticas rebeliões camponesas, (Canudos e Contestado).
O autor não faz referência alguma, talvez por desconhecimento, ao
movimento Pau de Colher, que longe de ser levante de fanáticos, como, de modo
tradicional, tem sido pela historiografia interpretado.
Para a pesquisadora Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976. p. 16), estes
movimentos identificados como rústicos são na verdade “uma resposta à situação
histórica de uma classe abandonada, que se mostra capaz, utilizando modelos
tradicionais ou não de passar da servidão à cooperação”.
A consideração de Queiroz se estende quando afirma que se trata de “um
campesinato que progride através da utilização dos movimentos religiosos, que,
para além desse aspecto, deve ser entendido como uma sociedade presente,
reagindo sobre estímulos internos e externos”.
No Piauí, a quase totalidade dos conflitos por terra vem de longas datas;
tem, em última análise, origem no processo de colonização. Esse processo se deu
de forma espontânea e, consequentemente, desordenada. Seus principais
100
protagonistas foram os fazendeiros, ansiosos por expandir suas propriedades, e
também os aventureiros, que não recebiam estímulo e proteção dos poderes públicos.
Sem a intervenção do poder constituído, esse processo foi efetivado à
base da violência contra tudo e todos. Igualmente foi também a exploração das
extraordinárias riquezas das regiões mineradoras, para onde agora se voltavam os
interesses das autoridades do período colonial. No Nordeste, continua a se
desenvolver, embora não mais com a mesma pujança e importância, a agro
exportação do açúcar, principalmente nas regiões litorâneas; e como
desdobramento e suporte desta, a criação de gado bovino, deslocada mais para o
interior. No Piauí, as fazendas criatórias de gado constituem uma atividade
principal.
A implantação das fazendas de gado exigia imensas faixas de terras. Isso
acarretou, já no nascedouro desse processo, a formação embrionária dos
latifúndios, surgindo desde aí os apossados detentores de terra na futura província
do Piauí.
A respeito da origem do latifúndio no Brasil, Vinhas (2011, p. 136) esclarece:
Esta concentração que leva ao latifúndio, base predominante de nossa produção agropecuária, remonta à época colonial do Brasil e conserva até hoje suas principais características. O acentuado grau de concentração da propriedade fundiária que caracteriza a generalidade da estrutura agrária brasileira é reflexo da natureza da nossa economia e resulta da formação do país desde os primórdios da colonização.
A marca da gradual e desorganizada penetração e ocupação do Piauí
evidencia que essas ditas fazendas foram instaladas dentro de um processo de
força, violência e conquista de terras de grandes mananciais, com a sumária
exterminação das nações indígenas que aqui habitavam. Esse processo de matança,
de extermínio dos índios do Piauí, foi, ironicamente, nominado de “guerra justa”.
Para Mott, (1985) o desbravamento e, consequentemente, a ocupação
das terras do Piauí tem início com Mafrense.
O germe do povoamento piauiense, que apresenta na atividade criatória o modelo dominante de ocupação daquele território, tem origem na década de 1670, quando Mafrense instalou nas margens dos rios Canindé e Piauí cerca de 30 fazendas de gado, na maioria, entregues à administração de vaqueiros (MOTT. 1985, p. 98).
101
O caráter particular da colonização foi construído com a falsa ideia de que
as relações sociais constituídas no Piauí haviam sido mais amistosas e que
apresentou reduzidas diferenças sociais. A melhor ilustração disso é a propalada
sociabilidade entre vaqueiro e fazendeiro, chegando o segundo a apadrinhar os
filhos do primeiro. Isso, na verdade, ao juízo mais criterioso, revela uma rotina
submissa tomada de terror.
A solidez das fazendas pecuárias de criações bovina, caprina e plantação
de pequenas roças de subsistências à base de feijão, milho, mandioca, dentre
outras, além do persistente combate ao índio, serviu para mascarar uma realidade
de exploração sistematicamente presente no povoamento das terras do Piauí.
Embora o processo de povoamento do Nordeste esteja vinculado ao
plantio da cana e exportação do açúcar, as terras do Piauí têm seu processo de
ocupação vinculado, como dito antes, à criação de gado e à implantação de
fazendas. Nesse sentido, não só a economia, mas toda a organização socioespacial
da futura província do Piauí será definida em razão da atividade criatória.
Outro traço marcante na formação do território piauiense foi a
manutenção, mesmo com o avanço do povoamento, de uma baixa urbanização, na
qual os núcleos urbanos que se formavam não quebravam barreiras de pequenas
povoações de populações móveis. Essa particularidade é revelada pelo vigário
Antônio Luiz Coutinho, da Vila da Mocha, que assim se expressa:
Acha-se situada essa freguesia de Nossa Senhora da Vitória no sertão do Piauí, não tem outra povoação, vila ou lugar mais que a Vila da Mocha, que consta de 60 moradores, pouco mais ou menos, e pouco ou nenhum permanente, por serem mais deles solteiros, e, se hoje, se acham nela, amanhã fazem viagem e que se avulta são os oficiais de justiça. Tem circunvizinhos alguns moradores na distância de uma légua, que tratam de algumas pequenas roças de mandiocas, milhos e arrozes, que nem a terra admite agricultura abundante (Apud NUNES. 1983, p. 35).
Além dos já citados, aspecto econômico que particulariza ainda mais a
região de Campo Maior, no Piauí, com desdobramento na formação social de sua
população foi o peso que teve a extração da cera de carnaúba, produto que se
constituiu um dos principais itens de exportação do estado no século XIX.
Comercializava-se o pó aromatizado, a cera e a palha. O tucum é outra palmeira que
102
era totalmente aproveitada: da amêndoa, produz-se óleo doméstico de uso culinário;
e da palha, fabricam-se diversos produtos artesanais como cestos, redes e cordas.
Essa paisagem caracterizava praticamente todo o Estado do Piauí, mas era marca
particular da cidade de Campo Maior, município para o qual está voltada a atenção
deste estudo.
A sede desse município foi criada através de Carta Régia em 19 de junho
de 1861, instalada depois já com o nome de Campo Maior, foi elevado à categoria
de cidade em dezembro de 1889. Desde sua fundação como vila, a economia girou
em torno da pecuária, agricultura e extrativismo. Foi na década de 1940, no entanto,
como cidade polo do atual Território dos Carnaubais, que Campo Maior alcançou
seu destaque econômico com elevados dividendos oriundos da cera de carnaúba.
A cidade tem no seu espaço geográfico os rios Jenipapo, (em cujas
margens aconteceu uma das principais batalhas do estado, durante as guerras da
Independência), Longá e o Surubim, todos temporários. De acordo com a
enciclopédia dos municípios piauienses, as principais famílias representantes de
Campo Maior na política e na economia eram, entre outras, Paz, Andrade, Pacheco,
Miranda, Melo, Lustosa, Leite, Ibiapina, Bona e Santos. Curiosamente, algumas
dessas famílias estavam no centro dos conflitos de terras na região que deram
origem as Ligas Camponesas.
O município sofreu profundas transformações ao longo de século XX. O
censo realizado no ano de 1960, período central de nossa pesquisa – informa que
Campo Maior tinha uma população de pouco menos de 60 mil habitantes, sendo que
aproximadamente 14 mil moravam na cidade e o restante, cerca de 40 mil morava
na zona rural. Desse total, apenas cinco mil do total que moravam na cidade sabiam
ler e escrever. Campo Maior tinha aproximadamente 63% da população analfabeta.
Alguns elementos particularizavam
na época Campo Maior: a Igreja Matriz e sua
representativa Praça Bona Primo tinham nas
suas circunvizinhanças os prostíbulos da
Zona do Baixo Meretrício – conhecido como
Zona Planetária em razão de as casas
que albergavam as mulheres terem nomes de
planetas: Mercúrio, Vênus, Marte, Plutão etc. – com grande variedade de atrativos
mundanos para o público masculino. Nesses lugares, a sociedade tradicional da
Fonte: Zona Planetária de Campo Maior.
103
cidade cultivava um imaginário na maioria das vezes invisível, plural, de um espaço
não apropriado para circulação familiar, conforme bem evidencia Olavo Pereira da
Silva Filho:
Na igreja e no cinema não podiam sentar no mesmo banco junto com as senhoras da cidade. Além disso, deveriam ter um vestido descente para sair à rua e até mesmo no mercado público. [...] para a mulher católica, a rua Santo Antônio era um projeto leviano de quem só pensava no dinheiro causando realmente muitos danos para a boa sociedade e a família da época. O comportamento das prostitutas não se adequava ao contexto religioso no qual estavam inseridas. A Igreja Católica mantinha certa discriminação com as mulheres. O padre Mateus chegou a tirar uma da procissão alegando que estava mal vestida e que representava um perigo aos bons costumes (2007, tomo 1, p. 56)
A propósito, por trás da Zona Planetária, frequentada pela elite campo-
maiorense, escondia-se o prostíbulo, destinado aos menos abastados da dona
Izabel, mais conhecido como Zabelão. Porca Ruiva, Foquite e Maria Zangada eram
algumas de suas frequentadoras.
Traço comum na maioria das sociedades é ter seus regramentos
assentados nos valores morais e éticos. Assim, estabelece no decorrer de uma
época, ainda que de modo implícito, o que é permitido, o que é tolerável, o que é
proibido, e o que é perigoso à sua realidade singular. Stephanov postula isso como
controle social:
Entende-se por controle social, o conjunto de meios de intervenção acionados por cada sociedade ou grupo social a fim de induzir seus membros a obedecerem às normas vigentes, desestimular os comportamento contrário e estabelecer condições de conformação. O controle social pode ser exercido de duas formas na busca do consenso através de controles externos (sanções, punições e leis), que se acionam contra indivíduos ou grupos quando estes não obedecem às normas dominantes, e internos, aqueles com os quais a sociedade procura mentalizar os indivíduos sobre suas normas, valores e metas sociais vitais para a ordem social. Ambos limitam o agir individual e coletivo da sociedade (STEPHANOV. 2001, p. 28).
Foi no interior de Campo Maior, precisamente na fazenda Matinhos, que
ocorreu a principal experiência organizativa de resistência camponesa no Estado do
Piauí entre os anos de 1958/1968, objeto central deste estudo. O fato é que no
104
Brasil e muito menos no Piauí nunca se realizou uma reforma agrária, nem nos
moldes clássicos, com caráter de distribuição de terras, como na maioria dos países
capitalistas desenvolvidos. Nunca houve preocupação verdadeira em se aliar o
desenvolvimento econômico com a melhoria de vida da população historicamente
mais pobre e marginalizada.
105
CAPÍTULO II
2 A IGREJA ENTRA EM CAMPO: ENTRE INSTITUIÇÃO CLERICAL E
AGENTE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL; A DIFÍCIL RELAÇÃO A
PARTIR E ALÉM DO CONCÍLIO VATICANO II
2.1 Uma Igreja, vários caminhos e um único fim?
Os anos 50 e 60 do século XX são marcados no Brasil por intensas,
variadas e profundas transformações. Em relação à economia, pode-se afirmar que
o Brasil já não era mais aquele país agrícola de economia claramente
subdesenvolvida. Ao contrário, passou a ser, especialmente, na transição do
governo de Vargas para Juscelino, um país industrializado, em estágio intermediário.
Ocorre, nessa fase, o desenvolvimento e a expansão, para o campo, do chamado
capitalismo moderno.
No tocante às questões sociais, surgem novas classes. Dentre elas, a
classe média que, como se viu, apropriou-se das mais variadas atividades urbanas,
como o pequeno e o médio comércio, a indústria e até das novas funções públicas
que começavam a surgir.
Essa classe média, inclusive a brasileira, em termos conceituais, de
acordo com alguns estudiosos, é um tanto imprecisa e ainda carece de uma melhor
conceituação. A propósito, a pensadora Marilena Chauí, assim, reporta-se: “(...) uma
classe média de difícil definição sociológica, mas caracterizada por uma ideologia e
uma prática heterônomas, oscilando atrelar-se à classe dominante ou vir a reboque
da classe operária” (CHAUÍ. 2001, p. 27).
Também, assiste-se à entrada em cena do camponês, um novo sujeito
social de dentro do capitalismo e não de fora deste, como sustentam alguns.
Rosemeire Aparecida de Almeida sustenta tal premissa. Ela argumenta que “os
camponeses são ao mesmo tempo proprietários de terra e trabalhadores, acrescido
106
o fato que a organização do campesinato se funda numa relação não capitalista”
(ALMEIDA. 2003, p. 82).
No campo dos direitos sociais, efetiva-se, em 1962, durante o governo de
Jango, o regulamento da sindicalização rural; muito embora tal direito já fosse
assegurado pelo Decreto 7.038 sancionado em 10 de novembro de 1944, ainda no
governo ditatorial de Vargas.
No terreno político, é também, nessa conjuntura, que o Brasil vivencia a
pior das experiências administrativas da história republicana mais recente. A jovem
democracia sucumbe, e o país, mais uma vez, amargará nova experiência ditatorial;
agora, uma ditadura civil-militar de 21 anos, na qual direitos e garantias políticas e
sociais foram contidas, o pluripartidarismo foi exterminado, estabeleceu-se a
censura nos meios de comunicação, principalmente nos jornais, e os direitos civis
foram sufocados pelo terror da vontade dos militares apossados do poder.
Nesse cenário de transformações, insere-se também a Igreja. No Brasil,
talvez por ser um país social e culturalmente muito diversificado, também aqui a sua
inserção se dá, embora fracionadamente, no sentido de atuar mais efetivamente
junto às camadas mais pobres: os desassistidos, os mais fragilizados. Isso reflete
por outro lado, as contradições, complexidades e heterogeneidades de seu caráter
institucional. Para Guimarães (1998), esses aspectos estão presentes em toda a sua
trajetória de ser e fazer-se Igreja.
Explicar a presença de grupos e comportamentos diferentes, por vezes
antagônicos, dentro de instituições inclusive seculares, como a Igreja, não é tão
simples. Para Antônio Moser, frei e diretor-presidente da Editora Vozes, “a Igreja é
uma instituição complexa de mais de 2.000 anos, presente em muitos países, claro
que tem várias caras”. Para ele, essas caras dependem do lugar, da ala que está no
comando e da cultura em que está inserida.
Compreender, pois, a atuação da Igreja Católica no Brasil, encravada
numa realidade social, econômica e política muito diferente se pensada a partir das
várias regiões do país ou entre capital e interior, por exemplo, faz-se necessário
dimensionar as distintas concepções, bem como os diferentes papéis que compõem
o seu caráter de ser Igreja instituição clerical e ou agente social. Desse modo,
segundo postula Guimarães (1998), a Igreja aponta para um caráter social, político e
moral que, segundo ele, assim se expressa:
107
De um lado, podemos olhar a Igreja Católica tomando por base o seu caráter institucional. Como tal, situando-a como instituição hierarquicamente organizada, que expressa normas, regulamentos e modos de ser, viver e atuar no mundo terreno que visam à unidade, à universalidade e a coerência de seus propósitos. A Igreja instituição tem na figura do papa a expressão máxima da autoridade e da busca permanente dessa unidade, dessa universalidade e dessa coerência e tem na hierarquia dos seus membros (padres, bispos, arcebispos, diáconos, etc) os executores e guardiães da instituição e de seus valores [...] de outro lado, podemos situar a Igreja como detentora, formadora e precursora de valores, hábitos, costumes e comportamentos que buscam uma sincronia ou não entre o sobrenatural e o transcendente, o racional e o temporal. Nesse aspecto, a Igreja Católica é carregada de sentido, papéis, representações e simbologias. É portadora de dogmas, conceitos e preconceitos em que estão presentes categorias como fé e razão, transcendência e imanência, filosofia e ideologia, matéria e espírito, teologia e política, ética e moral. Com isso, fé e razão misturam-se, entrelaçam-se e/ou assumem polos opostos, divergentes, antagônicos e irreconciliáveis, já que a fé pode adotar e adquirir uma natureza suprarracional ao se proclamar acima de todos os valores [...] e finalmente, podemos entendê-la como instituição integrante da sociedade, estabelecendo relações e vínculos com indivíduos, grupos, classes e movimentos sociais e o estado, dentro desses parâmetros, os movimentos sociais e lutas da sociedade perpassam visceralmente a Igreja Católica. Sociedade e igreja mantêm assim uma relação dinâmica e dialética, influenciando-se, constituindo-se mutuamente (GUIMARÃES, 1998, p. 27).
Estando imbricadas, as concepções de Igreja apresentadas acima não se
encerram em si mesmas, pois alimentam um processo contínuo e dinâmico que se
mostra infindável e que se renova sistematicamente. Entretanto, em todas essas
concepções, existe, clara ou subliminarmente, a propositura de valores cristãos
Guimarães (1998). Nesse sentido, é oportuno, como exemplo dessas concepções, a
inclusão de mecanismos como a Cáritas do Brasil em nível nacional, inclusive e
principalmente no Nordeste e a ASA do Piauí em âmbito local, nesse rol de
concepções enquanto instituições da Igreja Católica, nas suas relações com o
Estado e a sociedade, relativamente ao seu caráter dinâmico, ambíguo e contraditório.
Para Sousa (2002, p. 54), a Igreja Católica é uma instituição
conservadora por excelência. Essa é uma premissa praticamente inquestionável.
Poucos se contrapõem a ela. Assim, não se pode deixar de considerar, entretanto,
que a Igreja Católica, ao longo de toda a sua existência, tem apresentado
posicionamentos ambíguos. As variações vão desde posições revolucionárias a
inserções oportunistas e tradicionais.
108
Embora a presença de correntes ou grupos dentro da Igreja não seja
propriamente uma novidade, visto que existem desde os tempos de Pedro e Paulo,
busca-se, de modo particular, entender a gênese e alguns desdobramentos dessa
divisão, ou desse dito fracionamento, e, por via de consequência, como cada uma
dessas alas – progressista e conservadora – tem orientado suas estratégias de
intervenção nos diferentes problemas que afetam a sociedade.
Nesse sentido, é importante justificar algumas razões que explicam a
identidade de progressistas e conservadores, bem como as diferentes formas de se
entender o mundo e também os diversos posicionamentos políticos assumidos por
essas alas frente à realidade. Conservadores são aqueles que defendem as formas
litúrgicas e disciplinares anteriores ao Concílio Vaticano II, a teologia neotomista, a
ética no seu sentido primordialmente moral, como também a primazia do indivíduo
sobre o coletivo, inclusive na questão da propriedade.
No campo político, são também conservadores. Progressistas,
por outro lado, são aqueles que buscam a harmonia entre a doutrina católica
e a filosofia moderna, e tem a teologia das fontes como leituras particulares e,
com reflexos na liturgia, adotam ferramentas científicas, dialogam com
outras correntes religiosas, defendem a ética social e adotam posicionamentos,
inclusive políticos, consubstanciados nas decisões emanadas do Concílio
Vaticano II.
Compreender, pois, o comportamento da Igreja, essa instituição secular,
assim como os diferentes papéis por ela desempenhados ao longo dos tempos, não
é tarefa, como já posto anteriormente, simples. Exige de quem postule fazê-lo
alguns cuidados.
Quem decidir empenhar-se nesse intento precisa, primeiramente, ter em
mente que a Igreja Católica – nessa sua condição de instituição da sociedade civil –,
para além de suas ações clericais, há muito encena a sua liderança junto aos
movimentos e lutas sociais. Nem sempre, diga-se, em defesa dos oprimidos como
bem seria de se imaginar. Essa sua inserção se efetiva através de seus membros,
quer sejam os intelectuais que ocupam posições de mando, dos leigos, de seus
colegiados e também de organismos; no Brasil, a ACB – Ação Católica Brasileira,
109
fundada em 1935, e a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, fundada
em 1952, são exemplos pontuais.
Outro cuidado a ser também observado é o de compreender que a Igreja
– dotada de uma estrutura hierárquica complexa, espalhada pelo mundo todo –
sempre vivenciou e vivencia as mais variadas situações políticas e sociais.
No Brasil, desde os tempos do Império, por exemplo, a relação que
perpassava entre a Igreja e o Estado – longe de chegar a excessos – sempre se
configurou como conflituosa, desfavorável àquela na maioria das vezes. Isso já
subjaz, por exemplo, na Constituição de 1824, a qual estabelecia, em seu artigo 102,
incisos § 2 e 14, que o direito de conceder, validar ou negar os decretos
eclesiásticos era prerrogativa do imperador.
Essa relação, apesar de conflituosa, foi mantida até o final do Império,
quando definitivamente ocorreu a cisão; oficialmente demarcada no Decreto 119-A
de 07.01.1890. Sua ratificação se deu com a Constituição Republicana de 1891.
Embora existam outros cuidados, o pesquisador se limita a apresentar
apenas mais um, por entender que, somados aos anteriores, é suficiente para se
obter uma leitura satisfatória do papel da Igreja. Assim, é preciso reconhecer a Igreja
Católica como uma instituição civil autônoma, hierárquica, conduzida por intelectuais
heterogêneos – tanto conservadores como progressistas – susceptível e vulnerável,
portanto, às influências do meio social com as suas diferentes relações de forças.
Tal consideração, por certo, iluminará na compreensão da longa e dinâmica
trajetória de atuação da Igreja. Inclusive de sua própria hierarquia.
Estruturada a partir de diferentes estratos, a hierarquia da Igreja
(pt.wilkepedia.org/wiki/hierarquia) pode ser, de modo genérico, assim especificada:
primeiro estrato, o principal, sob o ponto de vista da autoridade, é constituído pela alta
cúpula de homens detentores do poder clerical; são eles, o papa e seus assessores
imediatos, bispos e vigários gerais. O segundo estrato, nominado intermediário,
composto pelos clérigos, que funcionam como elo entre o primeiro e o terceiro
estrato, que vem a ser composto, por sua vez, por homens comuns: leigos
engajados, operários que trabalham a partir de uma orientação doutrinária
verticalizada.
É preciso considerar, dadas as condições políticas e sociais que,
principalmente, esse terceiro estrato nem sempre se pautava por agir de modo
deliberadamente consciente e espontâneo.
110
Mesmo sendo esta a constatação recorrente e comumente aceita,
deve-se reconhecer que não se aplica à totalidade do seu corpo clerical. Corpo este,
dada a sua própria natureza, um tanto heterogêneo. No Brasil, tal premissa pode ser
constatada por meio de suas alas progressistas e conservadoras.
A progressista, ao contrário do que ocorre em outros países latino-
americanos, é a mais bem sedimentada, possuindo em seus quadros cardeais,
bispos, padres, das mais diversas ordens e congregações. Essa sedimentação foi
possível e adquiriu maior higidez com o surgimento da CNBB.
Fundada em 14.10.1952, a CNBB – logo transformada num dos principais
mecanismos de atuação da Igreja, através da sua ala progressista –, sob a
condução de Dom Hélder Câmara, que se manteve no comando durante os seus 12
primeiros anos, tem atuado muito efetivamente para fortalecer a sociedade civil. Sua
participação foi intensa e muito ativa, por exemplo, no amplo processo de
organização do segmento rural, iniciado nos anos 50 e consolidado na década de
60. Ela se dedicou de modo efetivo à elaboração de estudos sobre a realidade social
brasileira, particularmente a do Nordeste.
Essa preocupação com a região fica patente e bastante evidenciada no
documento produzido pela CNBB no final do Segundo Encontro dos Bispos do
Nordeste, realizado em Natal-RN, no período de 24 a 26 de maio de 1959, com o
título Declaração dos Bispos do Nordeste (disponível In Presidência da República,
Serviço de Documentação):
Nós bispos da Santa Igreja temos bem presente a missão que Deus nos confiou, de ordem sobrenatural e de distinção eterna, mas, tendo de agir não junto a puros de espíritos, mas a criaturas humanas, de corpo e alma, e lembrados da repercussão, sobre a alma, de tudo o que atinge o corpo, também afirmamos nosso direto dever de interessar-nos pela situação temporal do povo, sobretudo em área subdesenvolvida como o Nordeste (CNBB. Natal, 1959, p.17).
A ala mais conservadora da Igreja – composta na sua maioria por bispos
e arcebispos das regiões Sul e Sudeste, em princípio, não demonstrou muito
interesse na gestão da CNBB. Isso talvez tenha sido em razão de que, já naquela
época, nas suas regiões, as desigualdades sociais entre as zonas urbana e rural
111
não se apresentavam tão discrepantes como no Nordeste e também porque, para
essa ala da Igreja, a sua atuação deveria ficar circunscrita ao campo religioso. Sobre
essa postura, Bruneau (1974) faz a seguinte análise:
Foi também no Nordeste que a Igreja reagiu primeiro e mais positivamente às ameaças. Os manifestos dos bispos, nesse período, são ilustrativos. Os mais progressistas surgiram no Nordeste (os de Natal) em 1951 e Campina Grande em 1956; e, de novo, em Natal, em 1959. Houve poucos manifestos semelhantes no resto do Brasil, e só muito mais tarde. [...] Assim, enquanto os bispos do Nordeste, sentindo-se ameaçados por toda sorte de inimigos se tornaram conscientes dos problemas sociais e empenharam-se em agir, os bispos da região relativamente pacífica do sul notaram que havia alguns problemas, mas interpretaram o papel da Igreja em termos exclusivamente religiosos: a sua influência não deveria se estender ao social (BRUNEAU, 1974, p. 144).
Mas logo que perceberam a força e a importância da CNBB, eles se
mobilizaram e derrotaram – na sua VI Assembleia Ordinária, de 28 a 29 de setembro
de 1964 – os progressistas, e assumiram o comando da instituição, que assim se
burocratizou internamente de forma conservadora. A evidência dessa premissa ficou
patente quando a mesma apoiou e respaldou o golpe dos militares em 1964 (SILVA
e MARQUES).
A falta de sintonia e descontentamento dos conservadores para com
os progressistas era notória e já vinha de longe. Esse descontentamento se
tornou açodado e chegou a se acirrar a partir do posicionamento destes em
relação às reformas de base, ditas populistas, do já conturbado governo de Jango
Goulart.
A ala progressista, sob o comando e a orientação de Dom
Hélder Câmara, não era um grupo homogêneo, porém disciplinado e
atento às determinações do comando. Era formado por dois subgrupos;
um, de maior peso (Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte) influenciado
por Dom Eugênio Sales e o outro (Ceará e Pernambuco) pelo próprio Dom Helder
Câmara.
A Diocese de Teresina, comandada por Dom Avelar, não estava
inclusa em nenhum dos grupos. A única inferência possível é a de que o
cariz conservador desse religioso o fazia transitar entre os dois grupos sem engajar-
112
se oficial e publicamente a nenhum. Nesse processo, tem-se que Dom Eugênio
Sales tinha uma atuação mais na linha de promoção social com menor furor
ideológico e Dom Helder, por outro lado, mostrava-se publicamente mais
ideologizado.
Essa ala progressista por defender publicamente reformas diversas,
inclusive a agrária, aprofundava as divergências com os conservadores. Sobre a
questão agrária e outras demandas dela advindas, a Igreja, através da CNBB,
produziu, naquela conjuntura, três documentos expressando seu posicionamento em
torno dos problemas oriundos da terra: A Igreja e a Reforma Agrária (1954); A Igreja
e a Situação do Meio Rural Brasileiro (1961); e Mensagem da Comissão Central da
CNBB (1963). Esse terceiro texto-documento – também apoiando a reforma agrária
– já evidencia uma CNBB mais moderada, talvez pelo agravamento político que
prenunciava rumos um tanto incertos; remetendo ao estado a responsabilidade
maior da questão:
Agimos com absoluta independência apostólica e nossas afirmações não se inspiram em nenhum oportunismo, mas exclusivamente em aguda consciência de nossa responsabilidade pastoral, no momento em que atravessamos [....] Não cabe, entretanto, a nós definir que fórmula poderá melhor responder às condições atuais da realidade brasileira. Lembramos que, na consecução do objetivo visado, é responsabilidade grave da União e dos Estados dar o exemplo, começando, desde já, com a distribuição equitativa de suas terras, quando não constituírem reservas patrimoniais. (Mensagem da Comissão Central da CNBB, p. 99)
Embora a Comissão Central da CNBB tenha produzido e assinado esse
documento, o que se assistiu logo depois – já sob o comando da ala mais
conservadora da Igreja – foi o apoio declarado da Comissão ao golpe civil-militar de
1964. Esse apoio é expresso publicamente nos principais veículos da mídia
impressa brasileira.
Isso se deu ao término de uma reunião da CNBB, ocorrida entre os
dias 27-29 de maio de 1964, quando, por decisão de seus pares – bispos,
arcebispos e cardeais – torna pública uma declaração de apoio aos militares
instalados no poder:
113
Atendendo à geral e angustiante expectativa do povo brasileiro que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo e evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa Terra. Logo após o movimento vitorioso da Revolução, verificou-se uma sensação de alívio e esperança, sobretudo porque em face do clima de insegurança e quase desespero em que se encontravam as diferentes classes ou grupos sociais, a Providência divina se fez sentir de maneira sensível e insofismável (In ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samanta Viz, apud TORRES, Renato Rosa).
Esse apoio da Igreja aos militares, embora oficial declaradamente, não
detinha a unanimidade do conjunto de seu clero. A ala progressista – mesmo já
destituída do comando da CNBB – não comungava com esse apoio e não se
constrangia em escondê-lo. Dom Hélder Câmara, por exemplo, não se intimidou e
continuou a desenvolver as ações de sua Arquidiocese de Olinda, sempre pautadas
pelas concepções mais progressistas da Igreja. De igual modo, assim se conduziram
os demais integrantes da ala progressista nas suas respectivas dioceses.
É nesse contexto que surge o MEB – Movimento de Educação de Base, o
SAR – Serviço de Assistência Rural, o MER – Movimento de Evangelização Rural e
as CEB’s – Comunidades Eclesiais de Base, que se propunham a contribuir com as
necessárias transformações sociais.
É importante ressaltar que a emergência dessas ações foi resultante da
vontade e da determinação da ala progressista da Igreja, que acreditava ser possível
mudar a realidade do país a partir da educação e da cristianização da sociedade,
principalmente a rural, por se apresentar ainda muito carente e abandonada.
Convém, contudo, ressaltar que a eficácia dessas ações estava diretamente
relacionada à orientação de suas respectivas dioceses.
Leitura crítica acerca da presença desses instrumentos nas suas
respectivas áreas de atuação é feita por Safira Ammann (1992), para quem: “as
ações dessas entidades (MER/MEB) pode ter provocado um movimento de
despolitização”. Para ela, tais ações se baseavam no pressuposto filosófico do
chamado otimismo pedagógico, segundo o qual a educação de base seria capaz de
superar os problemas da marginalidade social e do atraso cultural das populações
camponesas brasileiras, mascarando, dessa forma, a questão rural, deslocando-a
para o nível dos indivíduos e da comunidade local, ao invés de contextualizá-la em
114
níveis social e político, onde existem as verdadeiras raízes da problemática
(AMMANN. 1992, p. 49).
Considerando as dimensões totais do homem e utilizando todos os
processos autênticos de conscientização, o MEB, visando alcançar seu objetivo
principal, empenhou-se em contribuir, de modo efetivo, para o desenvolvimento
integral do povo brasileiro, numa perspectiva de autopromoção que levasse a uma
transformação decisiva da mentalidade política e das estruturas socioeconômicas,
transformações que se afiguravam, para os progressistas da Igreja, como imperiosas.
A criação do MER, do SAR e do MEB, naquele contexto, denotava uma
abertura da autoridade hierárquica da Igreja. Sua lógica centrava-se em formar
novas pastorais com vistas a neutralizar e a inviabilizar a propagação da ideologia
comunista e consequentemente suplantar a simpatia pujante das Ligas Camponesas
no meio rural, principalmente nos grotões de pobreza do Nordeste.
Os religiosos empenhados nesse objetivo acreditavam que a Igreja
Católica era uma referência muito forte no campo. Faz sentido, pois bem se sabe
que, apesar do sofrimento ou em razão dele, o homem campesino, assim como toda
sua família, ainda viam na Igreja Católica a sua principal referência espiritual e
ideológica, principalmente diante das agruras, como a seca, a fome, a doença e
particularmente em relação à frieza rústica e ao alheamento dos latifúndios.
Há ainda e convém considerar que Igreja, circunstanciada pelo
desenvolvimento urbano, começava a se dar conta de que o púlpito não se prestava
mais a amplificar o seu discurso e sustentar a sua doutrina. Seu rebanho começa a
sofrer baixas, a urbanização trouxe novas urgências para o homem, para a família.
O comunismo era para a Igreja uma ameaça inadmissível, inaceitável na
medida em que colocava em risco toda a sua doutrina e também todos os valores
morais, éticos e cívicos. Essa preocupação se tornava mais aguda em relação à
população do campo, pois o analfabetismo – que detinha índices alarmantes –
tornava essa população ainda mais vulnerável a influências perigosas, nefastas à
família de Deus, segundo a Igreja. Assim, meio rural, por sua natureza e ótica
religiosa, era o lugar ideal para a Igreja entrar em campo e proteger seu rebanho,
manter e aumentar sua base religiosa.
115
É nesse cenário que o MEB cumprirá uma missão fundamental para o
projeto de evangelização e politização de jovens e adultos preferencialmente no
campo. Estruturado a partir de uma Equipe Técnica Nacional articulada a uma
equipe local formada por coordenadores, supervisores e uma gigantesca rede de
monitores, pessoas da comunidade que atuavam de forma voluntária na instalação
de escolas, matrícula dos alunos, controle de frequência e aplicação de provas, o
MEB será, em colaboração com o Estado, a presença viva da Igreja no meio social,
preferencialmente junto aos pobres explorados e injustiçados.
Cumpre salientar que essa ala da igreja que fez a proclamada opção
preferencial pelos pobres, foi identificada pelos conservadores da própria Igreja, pelo
Estado e principalmente pela imprensa e os setores mais ricos da sociedade civil,
como padres subversivos e comunistas.
Refletindo sobre essa conjuntura e pensando a atuação e importância das
CEB’s, Frei Betto formula a seguinte conclusão:
As Comunidades Eclesiais de Base desenvolveram-se de modo particular nas áreas rurais, por vários motivos, dentre eles: o fato de os campesinos enxergarem na Igreja a principal referência religiosa e também porque na cidade, nas zonas urbanas, principalmente nas áreas mais desenvolvidas, não encontraria esse pilar, que era o homem simples e ainda puro, do meio rural (1981, p. 26).
Particularmente sobre as ações do MEB e ASA no Piauí, novos e mais
profundos elementos serão acostados quando da apresentação do tópico “Piauí, a
última estação”.
O envolvimento da Igreja Católica ou de parte de seus membros, com a
questão da terra no Brasil, remete, como bem se sabe, há tempos mais distantes,
ainda na Primeira República. A maior expressão de resistência dessa natureza, no
Brasil rural do final do século XIX e início do século XX, que envolveu a Igreja Católica,
foi a revolta popular de Canudos – exemplo clássico da luta pela terra – que fez
despontar a figura do beato Antônio Mendes Maciel, o célebre Antônio Conselheiro.
A origem do beato de Canudos é relacionada às atividades do padre José
Maria Ibiapina, que – orientado por um catolicismo rústico, próprio de seu tempo –
buscou melhorar as condições de vida dos campesinos. E nesse intento, tomou a frente
116
e construiu, inclusive, estradas, açudes, escolas e casas de caridade, obras, a priori, de
responsabilidade do poder público. Isso ajudou também a estreitar a comunicação
entre a sua prática religiosa e os seus fiéis assistidos. Tais obras, que oportunizaram
o desenvolvimento, eram administradas por ordens leigas não reconhecidas, mas
toleradas pela ala mais conservadora – no comando de então – da Igreja.
Por outro lado, concomitantemente a esse momento – correspondente
também à fundação da República –, já começavam a ser vislumbrados os impactos
de desenvolvimento da modernização do capitalismo, expandida ao campo inclusive.
Essa expansão, que de certa forma assustava os campesinos, além de
fazer cair o véu que ocultava a miséria e a opressão reinantes no meio rural,
favoreceu e serviu para explicar, em certa medida, o surgimento dos beatos. Esses
líderes espirituais – verdadeiras expressões vivas da religiosidade no sertão
nordestino de então –, que, para além de suas preocupações ordinárias, ligadas ao
ofício religioso, contrapunham-se ao discurso fundante da República. Isso porque
ainda que centrado no otimismo de melhores dias, contribuía para dessacralizar os
valores mais arraigados na sociedade, particularmente na rural.
Foi nessa conjuntura que Igreja Católica, ligada como foi aos grandes
proprietários de terra que sustentavam o Império, viu ocorrer a separação definitiva –
por determinação constitucional – em relação ao Estado. Ressalta-se, entretanto,
que mesmo já separada do Estado, esta continuou apoiando esse segmento rico e
poderoso do Brasil. Azzi, citado por Paiva (1985), assim se refere, quando trata dos
desdobramentos dessa separação:
Esta separação exigiu da Igreja sua articulação com a classe média e com a burguesia emergente – de base agrária ou não – como forma de solucionar os problemas ligados à sobrevivência financeira. Sua ação pastoral concentrou-se, pois, sobre tais setores, desenvolvendo-se fundamentalmente através das paróquias e dos colégios (PAIVA. 1985, p.15).
Na forma de movimentos populares, essas reações foram um protesto
trágico contra a opressão e a miséria, mas sem projetos políticos mais bem definidos
e delineados. Na maioria das vezes, as aspirações dos líderes e de seus seguidores
mesclavam-se, sim, com uma profunda religiosidade e uma aspiração política,
117
embora essa última sem orientação mais precisamente consciente. Isso talvez
explique o seu isolamento e fragilidade e a consequente derrota diante das forças
repressivas dos poderes instituídos de então.
O isolamento trazia, aos seguidores desses beatos, certo favorecimento
em relação ao uso produtivo da terra, o que lhes asseguravam, ainda que
temporariamente, o fim da sujeição aos regramentos e ditames opressivos dos ditos
proprietários. Isso porque estes sempre se mostravam impiedosos e intolerantes
com as ocupações sem as suas devidas anuências, como era bem o caso desses
campesinos.
(...) expulsar o camponês de sua terra, que quase sempre foi de maneira violenta, compromete a sua sobrevivência, porque o priva não só de seu trabalho, mas de seu meio e instrumento de sua dignidade e de sua condição como pessoa. É nesse plano que se dá o encontro moral e, muitas vezes, religioso entre o trabalhador rural e a Igreja. A concepção de pessoa está na doutrina social da Igreja e na sua ideologia camponesa (MARTINS. 1989, p 00).
Em que pese toda a sumarização dos aportes históricos anteriormente
registrados, a ancoragem temporal considerada para a consecução deste estudo
está centralizada nos anos 50 e 60. Período em que, mesmo tendo uma maioria
conservadora, a Igreja defendeu, a partir de algumas lideranças progressistas,
diversas reformas sociais. Tais reformas, porém, ainda não eram tão amplas porque
não contemplavam o anseio social, que já clamava por mudanças mais profundas,
as quais viriam a ocorrer somente tempos depois, particularmente sobre a égide e a
influência do Concílio Vaticano II.
O clero, nessa época, entretanto, já defendia reformas diversas, inclusive
a agrária, e concebia esta como um esforço a ser empreendido a partir de uma ação
articulada entre Estado e sociedade.
A concepção dessa dita reforma agrária era, todavia, moderada,
progressiva e deveria constar de um programa mínimo defendido pela Igreja
Católica, que recomendava aos trabalhadores procurar um sacerdote, a fim
de orientá-los no plano da revisão agrária. Isso evitaria, de acordo com as
estratégias religiosas, que os camponeses interpretassem mal a proposta da Igreja
Católica.
118
Vossa responsabilidade também é muito grave. Procurai, o quanto antes, uma pessoa esclarecida e cristã que vos dê a palavra exata sobre o alcance da revisão agrária, pois seria uma lástima desconhecê-la e seria um perigo entendê-la mal, caso ela vos fosse apresentada de modo tendencioso por agitadores interessados em explorá-los (...) quando o comunismo vos convidar para grupos ou ligas de defesa dos vossos interesses, já deveis estar organizados em núcleos democráticos que desejamos ajudar a criar (REVISTA REB. 1961, p. 136-137).
Recomendação semelhante foi também dirigida aos sacerdotes,
coordenadores de paróquias a fim de procurar os proprietários rurais para explicar
os objetivos da reforma proposta pela Igreja.
Procurai, um a um, os proprietários rurais que têm propriedades em vossas paróquias. Transmiti-lhes o espírito autêntico da Revisão Agrária. Afastai dúvida. Removeis possíveis preconceitos. Conciliai a boa vontade. Não vacileis em afirmar que a Reforma Agrária é inevitável; a escolha é entre uma reforma equilibrada e razoável e a revolução rural que o comunismo ateará explorando a situação precária e, por vezes, explosiva, do meio rural (REVISTA REB. 1961, p. 136-137).
Foi dentro desse espírito que a ala conservadora lançou, em 1954, a obra
Reforma Agrária, uma questão de consciência. Um trabalho coletivo de vários
teóricos do conservadorismo católico. Um dos autores, Plínio Correa de Oliveira, foi
também um dos idealizadores da TFP – Tradição Família e Propriedade, que viria a
surgir em 1960. Essa obra tanto demarcava a posição da ala mais conservadora do
clero, como representava uma espécie de recado para os mais progressistas de
dentro e fora da Igreja.
Essa ala da Igreja, que tinha como lema a ordem, o progresso e a fé,
albergada como foi na TFP, defendia, além da família, valores outros,
tais como: propriedade, nacionalismo, patriotismo e se mostrava intransigente
com tudo que pudesse trazer qualquer ameaça aos dogmas da Igreja e à
soberania nacional. Em razão disso, ao eleger o anticomunismo como a sua
principal bandeira de luta, organizou a Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
que ocorreu praticamente em todos os grandes centros urbanos, inclusive
em Teresina.
119
Fonte: Marcha da Família com Deus pela liberdade em Teresina-PI.
Na segunda metade da década de 50, as transformações que vinham
ocorrendo no cenário brasileiro se acentuaram. Novas demandas surgiram; agora
mais específicas e diretamente afetas ao meio rural. E a Igreja entra em campo
novamente, assumindo, assim, uma nova frente de atuação, um novo protagonismo.
Essa sua nova inserção se propõe a atuar efetivamente junto às camadas mais
pobres, desassistidas, mais fragilizadas socialmente.
Tem-se, assim, um espaço fértil para aprofundar o debate sobre
reforma agrária com vistas a modificar a estrutura da terra, dominada pelo
latifúndio improdutivo, apontado como uma das principais causas da
profunda desigualdade social brasileira. Isso foi possibilitado, em parte,
pela Constituição Liberal de 1946, que consagrou pela primeira vez, de modo
mais preciso, a discussão sobre a função social da terra. No protagonismo
desse debate, destacou-se a ala progressista da Igreja, seguramente
ancorada pelas decisões do Concílio Vaticano II, particularmente pelas
orientações da encíclica Mater Et Magister (1961) – Mãe e Mestra –, Pacem In Terris
(1963) que deram um contundente impulso à linha do compromisso social,
120
fomentando no Brasil o crescente engajamento da Igreja nas questões referentes à
sindicalização rural, à educação de base, à evangelização do campo e,
principalmente, à reforma agrária.
Sobre a circunstancial e conveniente inserção da Igreja no cenário rural,
de modo particular e mais constante junto aos camponeses, no contexto pós-guerra,
o brasilianista Scott (2004, p. 56), assim se reporta:
As mudanças que a Igreja acabou fazendo foram mais em razão da necessidade da instituição manter seus interesses tradicionais, do que propriamente por uma decisão de responder às demandas dos novos tempos.
Ainda para este mesmo autor, “a sociedade tem passado por
transformações, que a igreja não tem acompanhado, não tem feito o mesmo,
inclusive resistindo à secularização, uma das manifestações da crise”.
Paiva (1985), sobre a conduta da Igreja em relação às transformações
que se operam no meio rural brasileiro, dentro desse mesmo contexto, difere do
brasilianista Scott e traz outra compreensão:
(...) a ação da Igreja Católica brasileira no campo e seus pronunciamentos sobre a questão agrária no pós-guerra estiveram marcados por valores e ideais que fazem parte da tradição católica (que se manifestou, por exemplo, na defesa da pequena propriedade rural como base para a estabilidade da família), mas sofreram o impacto da intensificação da urbanização e da industrialização de substituição de importação dos anos 40/50 e viam-se influenciados pelo nacionalismo e pelo desenvolvimentismo que caracterizaram o período... Ela responde especialmente ao surgimento do campesinato como classe social emergente no cenário político, a partir de meados dos anos 50 e à transformação das relações sociais no campo brasileiro desde então – em que pese a heterogeneidade de posições e ações de seus diferentes setores (PAIVA. 1985, p. 14).
As divergências entre progressistas e conservadores são bastante antigas
e têm origem, muito provavelmente, nas diferentes formas de interpretação da fé
religiosa, bem como no fundamento teológico que embasa as muitas formas
possíveis de entender o mundo e, também, os diferentes posicionamentos políticos
assumidos por essas alas da Igreja frente à realidade. Entretanto, para além dessas
divergências, a Igreja, empenhada em atenuar os açodamentos cada vez mais
121
agravados no meio rural, institucionaliza novas frentes de atuação. Assim, justifica-
se e registra-se, por exemplo, a proposição e criação dos sindicatos católicos e das
Semanas Ruralistas.
A ação das ligas mobiliza ainda mais a Igreja no sentido de controlar os
camponeses, de modo especial em relação à expansão do comunismo. Vargas
(1986, p. 19), a respeito dessa compreensão cristã, assim se reporta: “O comunismo
não pode trazer melhoria para o homem do campo porque acaba com a liberdade,
gera ódio e a vingança entre os homens e é contra Deus.”
Dessa forma, a Igreja inicia a formação dos sindicatos católicos para se
contrapor às ações das ligas e do Partido Comunista Brasileiro. No entendimento da
Igreja, sindicato não deveria levar instabilidade ao campo ou exigir reforma agrária
sob a lógica da violência e na ilegalidade, como faziam as ligas.
Para suplantar a ação das ligas, Calazans explica e orienta:
O sindicato deve trabalhar pelo bem comum e nunca pelo bem de uma só pessoa. O sindicato deve trabalhar por uma mudança, pela educação, e nunca pela luta de classe. Trabalhar no sindicato em colaboração e de forma organizada. O sindicato deve orientar reivindicações programadas. Reivindicar quer dizer: procurar a conquista de alguma coisa que pelo direito já deveria ser sua. O sindicato é uma associação profissional e não política. (1961, p.18).
Os sindicatos orientados pela Igreja, emergidos da ação formadora do
MEB, eram disputados pelos partidos políticos com o propósito de se fortalecerem,
terem capital eleitoral nas situações em que as negociações políticas eram a
principal e, às vezes, a única forma de negociação com os comunistas, com as ligas
e com outras forças de esquerda e com o Partido Trabalhista Brasileiro.
Colleti (1998, p. 51), ao analisar o objetivo da Igreja quando da criação
dos sindicatos cristãos, assim se posiciona: “O objetivo principal do sindicalismo
cristão que se encontra em gestão era o combate ao comunismo, o seu princípio
básico era a negação da luta de classe e a defesa da harmonia social”.
Para Dreiffus (1998.p 2003), “Os setores conservadores da Igreja
Católica também se envolviam em suas próprias tentativas de conter a mobilização
no campo e de fazer oposição às atividades das ligas camponesas. Muitas vezes,
esses esforços coincidiam ou eram mesmo coordenados com os do complexo
IPES/IBAD e os sindicatos por ela patrocinados”.
122
Outro fator de aprofundamento das divergências entre conservadores e
progressistas pode ser pontuado nas orientações advindas da Teologia da
Libertação. Iokoi (1996) relaciona, em Igreja e Camponeses, que Gustavo Gutierrez
lançou, em 1964, uma série de conferências contendo as bases teóricas mais
elaboradas dessa Teologia. Nessas conferências, segundo Iokoi, Gutierrez
dimensiona a pastoral em duas frentes dialeticamente recíprocas e inseparáveis: a
realidade em que se deve atuar e as exigências evangélicas.
Para esse teórico, essas exigências evangélicas – por serem históricas –
implicavam necessariamente o conhecimento da realidade temporal para que a
Igreja pudesse entrar em campo com os pés no chão. Agrega-se, aos efeitos da
Teologia da Libertação sobre os progressistas, as orientações advindas da
Conferência de Medellin, realizada na Colômbia entre os meses de agosto e
setembro de 1968. Essa conferência ampliou as perspectivas de comprometimento
da Igreja com as mudanças sociais e políticas já experienciadas pelo clero na
America Latina.
Denunciar as injustiças sociais, a dependência econômica que aniquilava
não somente as economias desses países pobres, mas principalmente o povo
sofrido e humilhado e ainda se converter num espaço permanente para o diálogo no
sentido da paz, da redução das desigualdades e, finalmente, representar o próprio
exemplo de Cristo na luta contra os poderosos, constituíram também bandeiras de
luta dos progressistas que atuavam no interior do país fomentando a sindicalização
rural já em curso.
Para Alves (1989, p. 13), “Comunistas e trabalhistas, por outro lado,
interessavam-se por estes sindicatos para aumentar sua influência sobre uma classe
até então mantida afastada da vida política e para se prepararem para as eleições
presidenciais, previstas para 15 de novembro de 1964”.
Cava (1975, p.73/76...), ao analisar a relação entre a Igreja e o Estado, no
Brasil do século XX, ressalta que a interação do corpo clerical dessa com a
sociedade civil durante o regime militar se essencializa efetivamente a partir da ação
das CEB’s. Para esse autor, as CEB’s se tornaram o “alicerce do processo de
mudança no papel sociopolítico da Igreja”.
De acordo com Mainwaring (2004, p. 72), a primeira Semana Ruralista
aconteceu em 1950, em Minas Gerais, e foi realizada na cidade de Campanha sobre
123
o patrocínio da Diocese desse município. Na oportunidade, o bispo Dom Inocêncio
Engelke escreveu uma Carta Pastoral intitulada Conosco, sem nós ou contra nós se
fará a reforma rural.
Esse documento externava a preocupação da Igreja no sentido de não
perder a influência sobre o trabalhador rural, o que já tinha acontecido em parte com
o trabalhador urbano. Em razão disso, conclamava que a Igreja deveria participar
mais efetivamente, em parceria com o poder público e outros setores da sociedade
organizada, dos grandes temas nacionais, como: a expansão do comunismo, os
efeitos desagregadores da vida nos centros urbanos, agitação política no campo, o
subdesenvolvimento, a miséria no meio rural, a falta de assistência técnica, dentre
outros.
Esses temas integravam alguns dos pontos principais da pauta constante
da Semana Ruralista. Nasceu também nesse evento a proposição de cursos
destinados à formação de líderes rurais católicos. Desse evento, participaram
padres, freiras, fazendeiros, professores, membros do governo, entre outros.
A Igreja acreditava que os camponeses, apoiados nas suas ações –
criação e expansão dos sindicatos católicos; semanas ruralistas e a proibição
associativa a entidades contrárias à orientação ou independentes da doutrina social-
cristã – aprenderiam a se defender das ideias externas ao campo, como o
comunismo, o protestantismo e o espiritismo. E foi assim que a Igreja, ao levar a
experiência da Semana Ruralista de Campanha, em Minas Gerais, para as suas
mais diversas dioceses, principalmente para as do Nordeste – onde elas
aconteceram em praticamente todos os estados –, deu continuidade também à
criação de sindicatos católicos.
Outros eventos, com propósitos semelhantes aos das Semanas
Ruralistas, também aconteceram concomitantemente. Entre os quais, merecem
destaque: a I Conferência de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Estado do
Pará em 1955; a I Conferência de Trabalhadores e Camponeses do Ceará em 1957;
e, em 1958, a II Conferência Agrária do Maranhão.
Ampliando a sua concepção de mundo, sem perder ou se distanciar de
sua ideologia da salvação, a Igreja atribuiu, assim, para si – tomada de temor pelo
avanço do comunismo no mundo – a função de suporte organizativo da sociedade,
principalmente no campo. Essa atuação se deu de modo particular junto aos
124
trabalhadores rurais, fragilizados, em suas múltiplas dimensões, por uma vida
marcada pelo analfabetismo, pela pobreza extrema, pelas doenças e todo tipo de
má sorte.
Essa condição de penúria foi denunciada por Dom Inocêncio Engelke,
bispo da Diocese de Campanha, Minas Gerais, em setembro de 1950. Essa
denúncia, conforme está abaixo transcrita, foi registrada por Mainwaring (2004, p. 73):
A situação do trabalhador rural é, em regra, infra-humana entre nós. Merecem o nome de casa os casebres em que moram? É alimento a comida de que dispõem? Poderá se chamar de roupas os trapos com que se vestem? Pode-se chamar de vida a situação em que vegetam, sem saúde, sem anseios, sem visão, sem ideais? É urgente, pois, estabelecer um programa mínimo de ação social de que venham a beneficiar-se esses trabalhadores. Faz-se mister uma reforma de estrutura de base.
Nos anos 50 e 60, as precárias condições de vida do sertanejo
provocaram reações, convulsões sociais e também a formação de lideranças. Agora,
não mais religiosas; mas, principalmente políticas, como as de João Pedro Teixeira,
na Paraíba; Vicente Pompeu da Silva, ex-presidente da Fetraece – Federação dos
trabalhadores na Agricultura no Estado do Ceará; e Luiz Edwiges Lopes, ex-
presidente da Liga Camponesa de Matinhos, no Piauí; Antônio Damião de Souza,
presidente do STRCM – Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo Maior,
também no Piauí. Todos perseguidos pela ditadura.
Assim, como naquela conjuntura, as alterações provocadas pelo
capitalismo desestabilizaram as formas presentes de dominação e organização
social, também, na segunda metade do século XX, processo semelhante, porém
mais agudo, ocorreu. Mais agudo porque um novo cenário se configurou – intenso
processo de urbanização, formação da classe média, desenvolvimento do setor
público, ampliação e modernização dos polos industriais já existentes etc. – e novos
atores foram inseridos nesse protagonismo das relações sociais: os assalariados de
um modo geral, incluindo os do campo e os operários do setor industrial no Sul e
Sudeste; e no Nordeste, os comerciários e os servidores públicos nos centros
urbanos, e os campesinos no meio rural. Para os trabalhadores rurais –
principalmente no Sul e Sudeste – as transformações se deram de forma mais
significativa.
125
Uma das mais importantes efetivadas, pelo menos nas regiões mais
desenvolvidas do país, onde a produção agrícola se modernizava e ganhava um
importante conjunto de máquinas e implementos de última geração, foi o acelerado
desmantelamento das antigas relações de trabalho. No campo, em particular, o morador
– o agregado ou meeiro – foi sendo substituído pelo trabalhador rural assalariado.
No Nordeste, porém, a vida parecia seguir os mesmos passos lentos de
antes. Os contratos de trabalho permaneciam verbais, sem qualquer segurança para
o lavrador e sua família. A agricultura, principal atividade econômica, e as relações
sociais seguiam fundadas em princípios tradicionais. Continuavam o camponês e
toda sua parentela, como também toda sua vizinhança, na miséria, na ignorância e
dentro do mais completo abandono.
Foram, seguramente, significativas e substanciais as mudanças, também,
operadas no interior da Igreja. Essas ocorreram principalmente a partir de eventos
importantes, como o Concílio Vaticano II, realizado entre 1962/65, por convocação
do papa João XXIII. Momento em que a Igreja buscou uma adequação ao
movimento político. Não querendo perder o controle sobre suas bases, abriu, nesse
evento, espaço para discussões e orientações políticas para o clero como um todo e
até segmentos de fora da Igreja.
O Concílio em questão foi um marco no que tange a mudanças nas
ações operativas da Igreja, que se renovou em termos de doutrina religiosa e
também de posicionamento político. Foi um importante momento, que dele advém
grande parte dos avanços dessa instituição, dentre os quais se encontra a teologia
da libertação. Teologia esta vinculada, como bem se sabe, às lutas sociais. Também
nesse Concílio, a Igreja aprovou a celebração da missa na língua nacional de cada
país.
Em relação a essa importante decisão, um dos principais periódicos em
circulação no estado assim se manifestou:
Acontecimento religioso dos mais expressivos está marcado para o dia 16, domingo, quando a cidade estará completando 112 anos de existência. Trata-se da primeira missa que será celebrada em português, no Piauí. O local escolhido foi o adro da Igreja de São Benedito. A missa foi, portanto, campal, e aconteceu às 17 horas e teve como celebrante o senhor arcebispo de Teresina, Dom Avelar Brandão Vilela. (O DIA. ano XIV, nº 1312, p. 01, 14.08.1964. Teresina-PI).
126
Outro evento de profunda relevância na mudança de orientação da
Igreja foi a Conferência Episcopal Latino-Americana, ocorrida em Medellin,
Colômbia, em 1968, convocada pelo papa Paulo VI, da qual participou Dom Avelar
Brandão Vilela como vice-presidente e, posteriormente, presidente por morte do
titular.
Esses dois eventos internacionais deram, cada um em proporções
diferentes, mas complementares entre si impulso, alento, coragem e legitimidade –
se não para a Igreja como um todo, pelo menos para a sua ala progressista – para
defender a causa dos oprimidos. Embora a Igreja se declarasse mais aberta para o
novo, havia resistência no interior dela em relação às mudanças em curso
orientadas a partir de tais eventos.
Paralelo a esses eventos, também a violência praticada pelos
latifundiários, a possibilidade real de conquista pelos comunistas da massa de
trabalhadores, o avanço do protestantismo e ainda a forte atuação das Ligas
Camponesas exigiram, ao lado de outros inimigos eleitos, – no primeiro momento
apenas de alguns sacerdotes solitários e isoladamente, e, depois, da Igreja como
instituição – um reposicionamento de sua postura e, assim, tomar como sua a causa
dos camponeses.
O papa João XXIII, acerca desse momento de mudanças possibilitadas
pelo Concílio, assim se posiciona: “[...], o Concílio estava a indicar caminhos,
renovar a postura da Igreja diante do mundo e de si mesma”.
Embora os ventos da transformação, da mudança, estivessem arejando a
cabeça e provavelmente boa parte do corpo clerical, também é fato que os setores
mais conservadores estavam se articulando para continuar ocupando posições de
mando e não permitir que os valores mais importantes, sagrados, e intocáveis, pelo
menos do ponto de vista dessa ala da Igreja, não fossem corrompidos.
Assim, aqueles a quem chamavam de “inimigos”, as classe perigosas,
vindas de baixo e que já marcavam presença na vida política, deviam, ao lado do
comunismo e de outros inimigos da tradição, da família, da propriedade, da terra, do
patriotismo e do nacionalismo, ser enfrentados. Uma vez que, sendo inimigos da
ordem, da nação, eram também inimigos do catolicismo.
127
É a partir desse contexto, caracterizado por contradições que se
antagonizam o desenvolvimento e a expansão do capitalismo que chegava, com
toda a sua euforia, ao campo inclusive – com a posse de grandes áreas de terras,
tecnologias, máquinas etc. – e a pobreza predominante dos campesinos, que o
pesquisador vai ambientar as considerações pertinentes a este capítulo. Este terá
como centralidade a atuação da Igreja Católica junto aos camponeses do Piauí, mas
em particular dos que formavam a Liga Camponesa de Matinhos, em Campo Maior.
É, portanto, a partir dessa perspectiva que se pretende analisar a atuação
da Igreja Católica no Piauí, no propósito de entender a sua orientação emanada por
Dom Avelar, no contexto rural, no período compreendido entre 1958/1968,
temporalidade em que se desenvolve este estudo.
2.2 O Trem do Nordeste
As conturbações advindas dos governos (37/45, ditadura; e 51/54,
democrático) de Getúlio Vargas – consolidação da Lei Trabalhista (1943); a
expansão, embora tutelado, do sindicalismo; processo de urbanização, movido pelas
ações desenvolvimentistas desse visionário gaúcho ao incentivar implantação de
polos industriais nas grandes cidades do Sul e Sudeste –, culminadas com o seu
suicídio.
Posteriormente, sugiram outras transformações - emergidas no governo
de Juscelino Kubistchek - que expandiu e modernizou esses polos industriais,
incentivando a instalação das primeiras indústrias (1956-1961). Essa criação acabou
fomentando a atividade de sindicalização, que tanto assustava os detentores do
capital. Assim como a bipolarização imposta pela Guerra Fria, que podia se
converter numa variável em favor de manifestações e protestos, vistos como
caminho principalmente para a expansão do socialismo e comunismo. Entre outras
preocupações políticas, estas eram as que mais traziam medo e abalavam a Igreja,
no Brasil como um todo, e de modo particular no Nordeste. Todas essas evidências
comprometiam a efetividade de sua doutrina social cristã.
No Nordeste, sim, porque, na região, a pobreza era reinante e a
população, notadamente a rural, suscetivelmente vulnerável em sua condição social,
política e cultural. Nesse aspecto, as políticas públicas com o objetivo de, pelo
128
menos, atenuar ou minimizar o quadro de abandono, eram inexistentes. Tanto era
assim que o índice de analfabetismo de então se apresentava muito elevado,
bastante superior aos da média nacional (IBGE, Censo de 1958). Entre os jovens
brasileiros, a partir de 15 anos, o IBGE registrava um índice de 50% de analfabetos.
Os índices relacionados à mortalidade eram também alarmantes.
Como os problemas, em sua maioria, eram comuns, a Igreja buscou
estabelecer uma estreiteza entre as suas dioceses espalhadas pelos estados
integrante da região, de modo a fortalecer as suas ações. Um bom exemplo é a
editoração do jornal O Santuário de São Francisco, semanário oficial da Basílica de
Canindé, no Ceará, que circulava por todas as dioceses do Nordeste, e que
abertamente fazia um enfrentamento ao comunismo.
O mundo, relativamente, a imprensa, pode comparar-se a um vasto campo dividido em dois partidos diametralmente opostos e diversos: a boa imprensa e a má imprensa. A primeira, paladino da verdade e da virtude, baluarte contra as investidas do mal; a segunda entorpece e degrada a razão, materializa e entristece o homem (SANTUÁRIO DE SÃO FRANCISCO. 15 de agosto de 1965, ed. 1181).
O enfrentamento ao inimigo declarado, os comunistas, mostra-se patente
na matéria, assim intitulada: Posição da Igreja é de repúdio ao comunismo.
O comunismo é intrinsicamente perverso; não se pode admitir em nenhum terreno a colaboração com ele de parte de quem queira salvar a civilização cristã. A Igreja de Cristo não cogita abandonar o terreno a seu inimigo declarado, o comunismo ateu. Este combate será continuado até o fim com as armas de Cristo (SANTUÁRIO DE SÃO FRANCISCO. 15.09.1964, p.1).
Assim, progressistas, moderados e conservadores, cada ala à sua
maneira, literalmente, pegou o trem rumo ao campo, objetivando, segundo o seu
posicionamento clerical, ocupar o espaço nos diferentes estratos sociais de
abrangência da Igreja. Essa situação levou a ala mais conservadora da Igreja a
desenvolver ações constantes de retomada da hegemonia numa perspectiva
bastante ampla.
Prova disso, o Serviço de Assistência Rural do Governo do Rio Grande do
Norte, em parceria com a Igreja, de 22 a 27 de janeiro de 1951, realiza a sua
129
primeira Semana Ruralista, que contou com a presença de vários religiosos, leigos,
agrônomos, técnicos agrícolas, representantes do governo do estado e um número
bem expressivo de trabalhadores rurais. Seguindo a mesma orientação dessas
semanas, foram realizadas várias Conferências e Congressos de lavradores e
trabalhadores rurais em vários estados do Norte e Nordeste.
Em 13 de maio de 1955, ocorreu a primeira conferência do Pará, em
agosto de 1958, ocorreu a segunda conferência agrária do Maranhão, em setembro
de 1959 ocorreu o segundo encontro estadual de trabalhadores do Ceará. Todos
esses eventos, que contaram com a efetiva atuação da Igreja Católica, foram
realizados dentro de uma atmosfera de grande articulação política com os estados
da região, de outras regiões e, finalmente, em todo o país.
Esse evento serviu de modelo para outros semelhantes que viriam ocorrer
naquele estado e para todos de igual natureza fora deste. Isso porque esse evento
se expandiu e se proliferou por todo o Nordeste. A primeira Semana Ruralista do
Piauí aconteceu em Teresina, de 06 a 11 de agosto de 1956, já sob o comando do
recém-chegado arcebispo ao Piauí, Dom Avelar Brandão Vilela, que aqui já aportou
trazendo uma vasta experiência de seu bispado, de 45 a 54, em Petrolina-PE.
A propósito, convém ressaltar que essas Semanas Ruralistas objetivavam
fomentar o cooperativismo, introduzir técnicas de plantio e manuseio de animais;
mas também treinar líderes para atuarem junto a sindicatos de orientação católica,
e, fundamentalmente – propósito particular da Igreja – evitar que os trabalhadores
rurais deixassem de seguir a orientação da doutrina social cristã da Igreja. Esta
queria esse seu rebanho pacífico, ordeiro, temente a Deus, e bem longe da sedução
dos comunistas, os quais também estavam atentos e ávidos por ampliar a sua base
de atuação política no campo, o que se dava principalmente através das ligas.
A disseminação desses sindicatos católicos esteve a cargo do Serviço de
Assistência Rural dos governos dos estados em parceria com as dioceses. A
atuação desse serviço é, oportunamente, assim registrado:
Foram criadas equipes de sindicalização no Rio Grande do Norte, Piauí, Paraíba, Sergipe, Maranhão e Alagoas. Essas equipes tinham o propósito de treinar e preparar líderes sindicais cristãos (CRUZ. 1982, p. 45).
130
No Piauí, já havia, no ano de 1960, um pouco menos de 60 associações
rurais congregando especificamente trabalhadores. Representando os proprietários,
fundada em 1951, existia a FAREPI, entidade não sindical estruturada conforme as
normas da legislação federal sob a organização da vida no meio rural. Essa entidade
representava e defendia os interesses dos grandes proprietários e pecuaristas,
particularmente, junto aos órgãos federais desse setor. Esta entidade promovia,
articulada com a Igreja, um trabalho assistencialista. Para tanto, dispunha do seu
específico Serviço Social Rural, que contava já àquela época, com uma equipe
especializada (MEDEIROS. 1996 p. 112).
Importante ressaltar que o número de trabalhadores registrados nas
respectivas entidades associativas crescia ano após ano em todas as regiões do
Brasil, mais de modo particular no nordeste conforme tabela abaixo:
ESTADOS DO
NORDESTE
ASSOCIAÇÕES RURAIS
NÚMERO DE ASSOCIADOS
1959 1960 1961 1962 1963 1964
MARANHÃO 9.564 9.878 11.878 11.872 11.038 11.160
PIAUÍ 3.362 3.597 4.597 4.597 3.932 4.082
CEARÁ 8.547 9.010 12.010 12.012 12.411 12.411
PERNAMBUCO 6.893 6.993 7.993 7.993 9.007 9.063
Fonte: Tabela sistematizada pelo autor a partir dos dados contidos nos anuários estatísticos do Brasil de 1962-1965.
É prudente ressaltar que nem todos as associados estavam vinculadas ao
fenômeno das ligas camponesas. O registro estatístico do segundo exército menciona
que havia no segundo semestre de 1963 duzentas e dezoito ligas espalhadas país a
fora. No Piauí, existiam apenas quatro, ALTATE (Teresina), ALTACAM (Campo
Maior), Associação Profissional dos Camponeses e Lavradores de Parnaíba e uma
última Associação Profissional dos Camponeses e Lavradores de Amarante. Embora
existissem pelo menos mais quatro ligas atuantes no estado, estas não
reconhecidas. Assim se deduz que o número deveria ser bem maior em todo
o país.
131
Fonte: Conselho Fiscal da Associação Profissional dos Camponeses e Lavradores de Parnaíba.
Em Campina Grande, na Paraíba, a Igreja Católica realizou, de 21 a 26
de maio de 1956, um importante encontro – o primeiro – dos bispos do Nordeste.
Esse evento contou com a participação de 19 bispos e foi prestigiado com a
presença do então Presidente da República Juscelino Kubistchek. O segundo
encontro de bispos do Nordeste ocorreu em Natal de 18 a 20 de maio de 1959.
Dentre as reivindicações mais importantes e significativas desse evento, destaca-se
a necessidade de criação de um órgão capaz de cuidar das políticas de governo
voltadas para a região Nordeste. Assim, foi criada em dezembro de 1959 a
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE.
Vale ressaltar que a Igreja, por sua ala dita mais conservadora, já vinha,
assim, atuando há algum tempo de forma mais sistemática desde a criação da ACB
– Ação Católica Brasileira, conforme orientação estatutária. A origem da ACB é
descrita por Bruneau (1974, p.89) e de um modo mais preciso por Romeu Dale.
Considerando que a ação social cristã, ao visar à pacificação e à concórdia das classes, na mútua cooperação – que é fruto não só de justiça, mas de benevolência e caridade cristãs em toda a sua nobre função social –, que contribui muito para o bem-estar da sociedade civil; considerando os motivos sobrenaturais que, pela voz augusta do papa, nos impõe o dever de “preservar os operários das falsas doutrinas e dos perigos do socialismo e do comunismo” [...] (Estatutos da Ação Católica In: DALE. 1985, p. 35-36).
132
Nesse momento, alguns dos principais nomes do pensamento católico
conservador – entre eles, Plínio Correa, Alceu do Amaro Lima, defensor da
intervenção da Igreja sobre a educação formal e simpatizante do Integralismo de
Plínio Salgado, Geraldo Sigaud, arcebispo de Diamantina, em Minas Gerais, um dos
apoiadores do golpe civil-militar de 1964 e Vicente Scherer, arcebispo de Porto
Alegre-RS – mostram-se dispostos a marcar presença mais efetiva na vida política
do país. Para eles, a viabilidade de uma república aberta à possibilidade de ampla
ascensão das camadas mais populares e dispostas ao enfrentamento e à
desestabilização da ordem, da moral, da família, da propriedade era impensável. A
conjuntura política determinava ao clero, portanto, um posicionamento superior,
digno naquele embate de posições irreconciliáveis.
Nasce, nesse contexto, um organismo de assistência clerical nominado
de Cáritas. Uma entidade religiosa que, desde o seu nascedouro, já se apresentava
como responsável pela distribuição assistencial de toda ordem, tais como financeira,
material de construção, medicamentos e até com a formação de mutirões para
ações mais importantes, de envergaduras mais complexas, como construção e
reforma de moradias.
A Cáritas foi implantada em toda a América Latina. No Brasil, em
praticamente todas as dioceses do país. Ela trazia, no bojo de suas preocupações, a
determinação de atuar junto aos mais pobres, diminuindo os efeitos da situação de
mazela presente nas sociedades latino-americanas, colocando-se em oposição aos
movimentos revolucionários que avançavam muito naquele momento.
A ala progressista da Igreja também se movimentava. E nesse embate, a
voz firme e corajosa de Dom Helder dá o tom ao proclamar:
Que humilhação ver a pior das heresias tomar grandes causas cristãs do nosso século! Que cegueira, quando cristãos gastam mais tempo para denunciar o comunismo, do que para denunciar o escândalo; o maior do século – a miséria (WOLF e CASTILHO. 1968, p. 10).
O período central dessa análise corresponde às décadas de 50 e 60,
período em que os trabalhadores rurais no Brasil e também no Nordeste iniciam um
intenso processo de organização, objetivando conquistar direitos, inclusive
previdenciários, como a licença médica e aposentadoria, além de outros já
conferidos, pelo poder público, aos trabalhadores da cidade.
133
Esse dito processo de organização ocorre de modo intenso. Queda (1987,
p. 75) assim o descreve: “Nos primeiros anos da década de 1950, já existiam 511
associações rurais. Em agosto de 1958, estavam regulamentadas, no Serviço de
Economia Rural do Ministério da Agricultura, 1.500 associações rurais”. Tais entidades,
de acordo com o levantamento do próprio Queda (1987, p.75), estavam assim
quantificadas: Minas Gerais, 221; São Paulo,173; Ceará, 105; e Rio Grande do Sul, 100.
Como fica evidenciado pela expressividade dos números acima, pelo
menos em termos de associações, a partir de 1950 ocorre não somente um aumento
quantitativo, mas também qualitativo da participação dos trabalhadores rurais na
vida política brasileira.
Muitos eventos importantes, que bem denotam a capacidade política de
mobilização desse segmento, acontecem de Norte a Sul do país. São exemplos
dignos de registro: a I Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas, envolvendo
lideranças de São Paulo, Ceará e Paraíba (1953); em 1954, ocorre o I Congresso
Nordestino de Trabalhadores Rurais; nesse mesmo ano, realiza-se a II Conferência
Nacional de Trabalhadores Agrícolas, evento que, além de contar com a presença
de mais de 300 integrantes e com a participação de 17 estados, ao final, aprovou a
Carta de Direitos e Reivindicações, documento em que inclusive confirmava a
fundação da ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil,
cuja orientação ficou com o PCB.
Também nesse mesmo contexto, aconteceu em 1961 o I Congresso
Nacional de Trabalhadores Agrícolas do Brasil, em Belo Horizonte, que contou com
um expressivo número de participantes do Nordeste, inclusive do Piauí. No mês de
maio, do mesmo ano, ocorreu o I Congresso de Trabalhadores e Camponeses do Piauí.
Quando chegou ao Piauí em 1956, para assumir
a Arquidiocese de Teresina, Dom Avelar vinha de Petrolina,
onde exerceu – bispado de nove anos – a sua missão
evangelizadora. Fortalecido pela rica experiência à frente
daquela diocese, os primeiros passos do religioso foram no
sentido de dialogar com os poderes constituídos e
apresentar seu projeto de evangelização para o estado,
particularmente para o então governador Chagas
Rodrigues, uma liderança de muita afinidade com os
trabalhadores do campo e da cidade.
Fonte: Arcebispo Dom Avelar B Vilella.
134
Convém ressaltar que Dom Avelar, sendo alagoano e de família ilustre,
conhecia bem a economia do açúcar e seus desdobramentos e, por ter passado em
Petrolina no exato momento da grande transformação do médio São Francisco com
os grandes projetos de irrigação da Codevasf e ter vindo para Teresina, uma cidade
com uma economia altamente paralisada sem qualquer fator de dinamismo, como
era o caso do litoral piauiense e da região do São Francisco, empreendeu com
relativo sucesso reformas, principalmente sociais.
2.3 Piauí, a última estação
No Piauí// de cada 100 crianças que nascem// 78 morrem antes de completar 8 anos de idade// No Piauí// de cada 100 crianças// que nascem// 78 morrem// antes// de
completar// 8 anos de idade// antes de completar 8 anos de idade// antes de completar 8 anos de idade// antes de completar 8 anos de idade// antes de
completar 8 anos de idade. (Poema Brasileiro, Ferreira Gullar, 1962)
O fim da linha é o fim da linha! Agora, o que esperar de uma estação
encravada exatamente no fim da linha? Movimentação? Não! Grande número de
embarcados e desembarcados? Não! Nesse tipo de estação, a leva de embarcados
é composta por aqueles já marcados pela desesperança. Os desembarcados, por
aqueles vindos a trabalho para cumprir uma missão temporária e por alguns
retirantes fugindo da seca. Estes, oriundos de alguns municípios do Piauí e também
de outros estados, aqui em Teresina, estabeleciam-se temporariamente em casas
de parentes ou, se não, já em barracos rústicos erguidos na periferia urbana nas
vizinhanças dos parentes.
Essa comparação metafórica – reportando-se ao Piauí, como uma
estação no fim da linha – quem a fez foi Dom Avelar Brandão Vilela, em 1985,
quando veio, em peregrinação pelas dioceses por onde passou comemorar, junto ao
clero piauiense, seus 50 anos de pregação sacerdotal.
Reinava um estado de desânimo. Ninguém acreditava em ninguém. As coisas começavam, mas não terminavam. O Piauí, eu comparava sempre como uma estação, onde o trem do Nordeste, saindo da Bahia e percorrendo os Estados, quando lá chegava não tinha mais o que deixar. Já tinha ficado no meio do caminho por onde passava os vagões do trem (MAGALHÃES. 1985 p.23).
135
“Eh, Piauí difícil!” Esta expressão – cunhada por Deoclécio Dantas e
muito recorrente em suas falas, inclusive no seu programa noticioso radiofônico
Revista Pioneira, quando, complementando-a, dirigia-se, expressivamente
estupefato, a seu operador de áudio, “(...) É uma lástima, Chico Paulo!” – endossa
de certa forma a metáfora de Dom Avelar.
Na década de 50, a população do Piauí chegava a 1 milhão de
habitantes. Em números mais precisos, a sua população era de 1.045.696 almas.
Desse total, 83,7% viviam na zona rural. Esses dados indicam que de cada seis
habitantes apenas um vivia na zona urbana. As maiores concentrações urbanas
estavam em Teresina, a capital, com 51.418 habitantes; Parnaíba, cidade litorânea,
situada ao Norte, com 30.174 habitantes; e Floriano, cidade do Médio Parnaíba, com
9.100 habitantes. Nesse período, o Piauí apresentava-se como um estado
totalmente dependente da importação de produtos manufaturados. Esses dados
populacionais correspondem à estatística do IBGE referenciada por Agenor de
Sousa Martins Et. al. (1979, p.127).
O cenário econômico do Piauí, portanto, na década de 50, ainda se
mostrava muito acanhado. Assim, 82,2% da população ativa compunham o setor
primário, que, por sua vez, dispunha de mão de obra não qualificada e com baixa
produtividade. Completando esse quadro, 3,7% desse contingente ativo
concentravam-se no setor secundário da economia produtiva do estado e 14,1%
compunham o setor de serviços.
Esse acanhamento perdurou até por volta de 1955, na verdade, revelava
um cenário de crise circunstancial na atividade agroexportadora da carnaúba e do
babaçu. Isso representou, num primeiro momento, a estagnação econômica, uma
vez que o extrativismo representava, à época, o principal setor do estado. Passada
essa primeira fase, a economia volta a dar sinais de recuperação, agora,
capitaneada por uma agricultura de subsistência: arroz, feijão, mandioca e milho. A
comercialização do excedente desses gêneros era destinada ao próprio mercado
nordestino. A chegada e a comercialização desses produtos representaram uma
espécie de concorrência aos produtos industrializados do Centro-Sul do País.
Teresina, nos anos 50, contava com 90.723 habitantes. Destes, 88.764
eram católicos. Esse percentual correspondia, em termos totalizantes, a 98% de
136
todo o universo populacional da capital, de acordo com o Censo de 1950. Ainda de
acordo com esse mesmo Censo, os que se diziam protestantes totalizavam 1.089 e
espíritas somavam 260.
Em 1944, são criadas as Dioceses de Teresina, Oeiras e Parnaíba. Em
09 de agosto de 1952, ainda na gestão de Dom Severino, a de Teresina é elevada à
condição de Arquidiocese. Quatro anos depois, Dom Avelar, após desembarcar na
capital do Piauí, na condição de arcebispo, apresenta às autoridades locais o seu
projeto evangelizador intitulado Evangelizar e Humanizar. Ele próprio em entrevista
ao jornal O Dominical (12 de agosto de 1956, p. 5) o explica:
(...) Dom Avelar Brandão Villela disse que o seu programa arquiepiscopal se resume em duas palavras: humanização e evangelização. Evangelizar é conquistar almas para Deus! Humanizar é dar, no seu corpo, a dignidade a quem tem jus a seu templo natural do espírito. Nessas duas palavras pode resumir a ação da atual igreja.
Dom Avelar foi atento às orientações da sua Igreja. De modo particular,
às emanadas diretamente pelo Vaticano, como, nesse tempo, às definidas na
Encíclica Miranda Prosus, de Pio XII, que dispensava uma atenção especial ao
progresso técnico e a tudo que representasse simbolicamente a modernidade.
Assim, esse religioso desenvolveu, na Arquidiocese de Teresina, a sua ação
evangelizadora de modo obediente e disciplinado aos preceitos postulados por essa
Encíclica.
Os meios de comunicação mereceram uma atenção cuidadosa da dele.
Ele sabia que se prestavam à amplificação dos discursos sociais; em mãos erradas,
seriam danosos, pois podiam prestar um desserviço aos preceitos da moral e da
ética cristãos.
Ao que parece, ao aportar no solo piauiense, seu projeto evangelizador já
estava traçado. Isso porque já no ano em que desembarcou no Piauí, em 1956, a
sua Arquidiocese realizou a primeira Conferência dos Bispos da Província
Eclesiástica do Piauí, tendo como centralidade temática a formação da opinião
pública através dos agentes de publicidade.
Na efetivação do projeto Evangelizar e Humanizar, Dom Avelar se
esmerou em fazer do jornal O Dominical, fundado em 1937 – assegurando a sua
137
periodicidade, que já havia, num certo momento, sido interrompida – um importante
instrumento de sua ação evangelizadora. E isso ele conseguiu, na medida em que o
reestruturou, melhorando inclusive a sua oficina e fortaleceu a marca e a presença
desse semanário no meio social, conforme bem ilustra a matéria intitulada O
Dominical será reestruturado, publicada no jornal O Dominical, (26 de julho, 1964,
página 2).
A equipe redacional desse semanário se mostrava muito atenta às
preocupações e às ações da Arquidiocese. Qualquer evento promovido por esta ou
qualquer outro similar ou fato/acontecimento alheio à Arquidiocese ou qualquer
paroquia, mas que comungasse com os preceitos da orientação católica, era motivo
de pauta. Alguns exemplos são, a seguir, registrados:
Matéria 01: Sobre os auspícios da Seplan, funcionará de 2 a 10 de maio próximo vindouro, um curso para líderes rurais. Será ministrado em regime de internato a 20 elementos da zona rural de Teresina e adjacências. O curso será ministrado pela senhora Julieta Calazans, especialista em sindicalismo e cooperativismo rural (O DOMINICAL. 29 de abril de 1962. p. 2). Matéria 02 A convite especial de. S. Exa. Revma. o Sr. Arcebispo Metropolitano de Teresina, Dom Avelar Brandão Vilela, chegará a Teresina, no próximo dia 6 de maio, a Equipe Nacional do Movimento por um Mundo Melhor, chefiada pelo Pe. José Marins. O curso será destinado a três categorias de pessoas, a saber: a) religiosos; b) estudantes secundaristas; c) adultos, e funcionará em regime de internato para as duas primeiras categorias na seguinte ordem: 1) religiosos: de 6 as 12, no Colégio Sagrado Coração de Jesus; 2) estudantes: de 12 as 15, na Socopo; 3) adultos: diariamente, à noite. Cada grupo constará de, no máximo, 80 cursistas recrutados nas paróquias da Arquidiocese de Teresina (O DOMINICAL. 29 de abril de 1962. p. 3). Matéria 03 Dentro de mais alguns dias estará no ar a Voz da Arquidiocese, a Rádio Pioneira de Teresina. (O Dominical, edição de 20.05.1962).
Também, a equipe editorial do semanário O Dominical se mostrava
vigilante em relação aos inimigos da orientação católica, como bem ilustram as
matérias abaixo:
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Matéria 01 Para vencer a ideologia vermelha, os principais meios são a fé e a oração. Um exército de fé, organizado em todo o mundo, derrotará o comunismo, pois as armas espirituais são mais poderosas do que quaisquer outras. Há outros meios para a salvação do mundo do comunismo? Não. Apenas fé e oração (DOM ARMANDO LOMNARDI In O DOMINICAL, ed. de 06 de novembro de1960). Matéria 02 Considerando que a missão deste juizado (...) declarar o caráter obsceno de revistas ou outros impressos, no sentido de proibir sua exposição e venda (...) considerando que cresce a reação das famílias contra as más revistas (...) fica expressamente proibida na capital, a exposição, venda ou fornecimento das seguintes publicações: Mundo Ilustrado (número 9, de 26.02.1958); Manchete (número 305 de 22.02.1958 e número 306 de 01.03.1958); Revista do Rádio (número 442 de 01.11.1958); Seleções de Idílio (romance); Seleções de Rir Ilustrada (pornografia); TAB; Tentação e VUE (pornografia); Guia Sexual (...) os exemplares encontrados no comércio serão apreendidos (O DOMINICAL. 08.03 de1959, p.03)
Como se pode perceber, o jornal O Dominical (1937-1971) foi um
importante instrumento da ação evangelizadora do clero piauiense. Tanto que se
fazia atento e vigilante a tudo que se apresentava como nocivo a ela, como é bem o
caso da matéria acima relacionada à proibição de revistas e outras publicações por
determinação judicial.
Nesse empenho, o jornal trazia, também, com frequência, matérias e/ou
artigos abordando temas – alguns inclusive de certa complexidade – que
favorecessem uma reflexão capaz de fortalecer o ideário cristão, em conformidade
com os ditames da doutrina social da Igreja. Assim, eram constantes as reflexões e
orientações sobre as normas de conduta do bom cristão. Desse modo, era também
recorrente alertar as famílias e a sociedade sobre os perigos advindos da
modernidade e do avanço do protestantismo, comunismo e do espiritismo, todos
considerados arqui-inimigos do catolicismo.
Outro importante instrumento do qual a Arquidiocese de Teresina também
lançou mão para dar sequência eficaz ao seu projeto evangelizador foi o rádio.
Nesse empenho e muito consciente de sua missão arquidiocesana, fundou, em
08.09.1962, em parceria com empresários da capital, a Rádio Pioneira de Teresina,
integrada à RENEC – Representação Nacional de Emissoras Católicas e sob a
139
responsabilidade da CNBB. Essa emissora, desde o nascedouro do seu projeto, é
parte integrante da Fundação Dom Avelar.
Essa emissora em questão, idealizada por esse arcebispo, constituiu-se
como personalidade jurídica a partir, sim, de um ideário clerical, porém comungado
por um grupo de acionistas da capital. A Arquidiocese tomou à frente do projeto,
como acionista majoritária, seguida pelo empresário Jesus Elias Tajra.
A visão de Dom Avelar tinha um alcance extraordinário. Ele era detentor
de uma incomum capacidade de prospecção. Assim, ele conseguia antever,
inclusive, situações muitos antes de serem enunciadas ou mesmo pensadas pela
maioria dos mortais. O papel e a força do rádio naquele contexto histórico é um bom
exemplo. No caso do Piauí, em particular, que contava com apenas duas emissoras
de rádio pertencentes a dois grupos políticos antagônicos – Clube e Difusora – e
nem sequer ainda dispunha de canais de televisão.
A força do rádio naquele contexto era indiscutível. Pensava assim Pio XII,
que já recomendava o seu uso pelo clero na Encíclica Miranda Prosus (1957).
Considerando (...) atentamente as possibilidades que nos oferece o rádio para o apostolado, e impelidos pelo mandato do Divino Redentor “Indo por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”, rogamo-vos, veneráveis irmãos, que aumenteis e aperfeiçoeis mais ainda, segundo as necessidades e possibilidades de cada lugar, as transmissões religiosas (ENCÍCLICA MIRANDA PROSUS. 1957. Tóp. 49)
A abrangência do rádio, para muito além das considerações geográficas –
no caso do Piauí em particular – alcançava um público grandioso do contingente
populacional, que era predominantemente católico e constituído de um alto índice de
analfabetos.
Uma emissora de rádio católica facilitaria, portanto, como realmente
facilitou e de forma substancial, a ação evangelizadora pensada por Dom Avelar
para a sua Arquidiocese.
A Rádio Pioneira de Teresina logo se integrou ao cotidiano da sociedade
piauiense, com a sua diversificada programação.
Integrava a programação noticiosa a Revista Pioneira – de segunda a
sábado, às 7h, apresentado por Deoclécio Dantas – e o Correspondente Pioneira –
140
de segunda a sexta, às 12h, apresentado por Carlos Augusto de Araújo Lima e
Deoclécio Dantas.
Os programas de cunho religioso eram diluídos na grade da programação
diária da emissora. Dentre estes, Oração Por um Dia Feliz, diário, apresentado por
Dom Avelar, às 6h da manhã e ao meio-dia; Desperta Camponês, levado ao ar por
Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira, terça, quinta, sábado e domingo, sempre às 6h30.
Dos educativos, merece registro o Movimento de Educação de Base.
Tratava-se de um programa decorrente de um entendimento, parceria entre o
Governo Federal, através da Campanha Nacional de Educação Rural do Ministério
da Educação e Cultura, e a CNBB. A sua operacionalidade, no Piauí, ficou a cargo
da Igreja e esta o executava via Rádio Pioneira. O MEB acontecia sempre à noite,
na forma de aulas radiofônicas direcionadas às escolas integrantes do movimento,
principalmente as do interior. Essas aulas, para além dos assuntos conteudísticos
voltados para a alfabetização de adultos, eram utilizadas, também, como meio de
disseminação de valores católicos.
O MEB tinha em sua coordenação pessoas formadas, na sua maioria, em
nível superior, normalmente, jovens dispostos a contribuir a partir de uma forte
preparação levada a efeito por bispos, padres e outros agentes pastorais para a
melhoria das condições de vida da população. Para tanto, foram recrutados
monitores que frequentemente participavam de cursos de formação, de encontros
que trabalhavam estratégias de abordagem dos temas a serem levados a efeito nas
aulas. Esses cursos geralmente aconteciam nos centros urbanos, onde um
verdadeiro arsenal de informações, cuidados, estratégias e saberes eram
repassados; ao mesmo tempo, os cursistas eram convocados a realizar
levantamento dos principais problemas encontrados nas bases onde atuariam.
Na sua relação com a Igreja, o MEB foi definido como um projeto pastoral,
uma ação que colocava esta e sua hierarquia em uma atuação direta com a
comunidade.
A religiosidade é um referencial de lugar de sujeito na sociedade, e, no momento em que a rádio Pioneira coloca-se como emissora católica, e veicula a ideologia cristã, as “orações por dias felizes” produzem processo de identificação imediata com os ouvintes. Como as classes populares também possuem sua religiosidade, desde que tendo acesso ao rádio, é possível de ter na Pioneira um representante de si próprio (SANTIAGO JÚNIOR 2002, p 48-49).
141
E a mídia impressa local oportunamente também o endossou.
O rádio indiscutivelmente é uma grande invenção. Como é interessante, do conforto de nosso católico lar, cuidando dos afazeres ou mesmo em repouso – estarmos a par de tudo que se passa no mundo, de minuto a minuto. Anuncia-se um desastre de avião em qualquer parte. Uma conferência entre chefes de Estado. O lançamento de homem ao espaço, numa velocidade extraordinária de mais de 25 mil quilômetros por hora. Inundações e catástrofes nos mais diferentes pontos do globo. Acontecimentos de além-fronteiras, onde as línguas e os costumes se confundem com as religiões. Tudo vem até nós através do rádio (FOLHA DA MANHÃ. 1963, p. 3).
Com o semanário O Dominical reformulado e a sua periodicidade
garantida, a Rádio Pioneira em pleno funcionamento e a realização efetiva das
Semanas Ruralistas, promovidas pelo interior do estado, a Arquidiocese de Teresina
estava, assim, definitivamente instrumentalizada com vistas à implementação do
projeto Evangelizar e Humanizar, elaborado por Dom Avelar.
Em relação às Semanas Ruralistas, a Arquidiocese de Teresina pretendia
tornar possível uma intervenção mais direta no processo social.
A Semana Ruralista, no Piauí, foi instalada – tendo por tema central O
Homem para a Terra e a Terra para o Homem – oficialmente em 6 de agosto de
1956 em Teresina. O evento que contava com as parcerias do Ministério da
Agricultura e do Governo do Estado foi aberto solenemente na manhã desse dia
pelo seu idealizador Dom Avelar, que, após acolher, saudar e agradecer a presença
de todos, falou sobre a importância daquele momento, sumarizando os eixos
temáticos constantes da programação: formação do produtor rural, financiamento
público da agricultura, vantagens de sementes selecionadas, valor econômico da
fruticultura, convivência com a seca, formação de líderes rurais cristãos, aspectos
sociais e econômicos de Teresina, educação de base como fator de progresso de
um povo e de uma região, cooperativismo e associativismo.
Dos temas abordados, Dom Avelar não escondia a sua predileção por
dois em particular: a educação de base e cooperativismo e associativismo. Sobre o
primeiro, seu cuidado era esmerado porque entendia que o camponês alfabetizado a
partir de uma orientação cristã – evangelização – tornar-se-ia mais ciente sobre o
sentido da vida – humanização – e, assim, não mais se descuidaria dos inimigos –
142
comunistas – que ameaçavam a ordem social a partir de um discurso contrário aos
preceitos do verdadeiro catolicismo.
Em relação ao tema que discorria sobre o cooperativismo e o
associativismo, Dom Avelar o via como propício para fundamentar a importância do
estar junto de modo corporativo por identidade. E aí, nesse momento, surgia a
oportunidade de fomentar e subsidiar a criação de sindicatos católicos.
Prestigiaram a solenidade de abertura do evento autoridades dos
executivos estadual, municipal e diversas outras compostas por militares, civis,
eclesiásticas e jurídicas. Dentre as jurídicas, destacou-se a FAREPI – Federação
Ruralista do Piauí.
A Semana Ruralista de Teresina – ocorrida do dia 6 a 11 de agosto de
1956 – de acordo com a mídia local, radiofônica e impressa, foi muito produtiva e
contou com um expressivo número de inscritos participantes, tais como: produtores
rurais, trabalhadores rurais, líderes camponeses, técnicos dos governos federal,
estadual e municipal e professores.
O sucesso da experiência dessa Semana Ruralista superou tanto a
expectativa que Dom Avelar – entendendo estar consolidada como estratégia de
ação do seu projeto Evangelizar e Humanizar – logo cuidou de dar sequência a essa
ação, como pretendia e estava previsto no seu projeto arquidiocesano. Assim,
começou a interiorização da Arquidiocese de Teresina.
Depois de Teresina, o município que primeiro sediou a experiência desse
evento foi Campo Maior. Assim, em 1957, de 18 a 25 de agosto, aconteceu a
Semana Ruralista de Campo Maior.
A Comissão de Propaganda e Publicidade – criada pela Arquidiocese de
Teresina para divulgação das Semanas Ruralistas – reportando-se à de Campo
Maior em particular dias antes do início do evento, assim, manifestou-se:
Trata-se, essa Semana Ruralista, como a primeira de mais uma notável iniciativa de Sua Exa. Sr. Dom Avelar Brandão Villela pelo desenvolvimento social e econômico do nosso estado. Durante essa Semana Ruralista, inúmeros problemas serão debatidos, exposição de produtos agrícolas, de trabalhos manuais, de pecuária, serão feitos cursos de indústria rural caseira e economia doméstica, será ministrado tudo para o progresso piauiense. Esperamos que todos os desejosos de resolução dos nossos problemas mais vitais compareçam à segunda Semana Ruralista do Piauí (O DOMINICAL, 29 de julho de 1957, p. 2).
143
Emissoras de rádio e jornais impressos da época pautaram a Semana
Ruralista de Campo Maior no decorrer de todo o evento, desde a abertura solene,
também a cargo de Dom Avelar, até o encerramento.
O evento em Campo Maior teve uma repercussão muito positiva no meio
social. Tais repercussões se consubstanciaram fundamentalmente no fato de, no
decorrer de alguns eixos temáticos da programação constante da pauta, terem sido
perpassadas algumas precisas orientações técnicas. Todas no sentido de
possibilitar o desenvolvimento econômico da região.
Uma, em particular, mereceu destaque especial e ensejava a orientação
técnica de se incrementar o plantio de algodão, mamona e gergelim.
A esse respeito, por sugestão do deputado estadual Sigefredo Pacheco,
as sementes de mamonas e gergelim ficariam por conta dos próprios interessados.
Em relação às restantes, ou seja, às sementes de algodão, o parlamentar pontuou
que se fizesse um apelo ao Ministério da Agricultura com vistas ao envio de uma
verba extra destinada à aquisição delas.
A terceira Semana Ruralista do Piauí aconteceu na cidade de União de 3
a 8 de novembro de 1959. A programação desse evento não difere muito das duas
Semanas Ruralistas – a de Teresina e a de Campo Maior – anteriores. A abertura
seguiu o mesmo rito sob a responsabilidade de Dom Avelar. Os eixos temáticos
constantes na programação dessa Semana Ruralista também contemplaram, entre
outros temas, a formação do produtor rural, linhas de financiamento da agricultura,
vantagens de sementes selecionadas, valor econômico da fruticultura, convivência
com a seca, formação de líderes rurais cristãos, aspectos sociais e econômicos do
município, educação de base como fator de progresso de um povo e de uma região
e também cooperativismo e associativismo.
Das proposições e sugestões emergidas desse evento, destacam-se a
continuidade e a intensificação de formação de líderes rurais, cooperativismo e
associativismo e a consequente expansão do sindicalismo de orientação cristã a
partir da criação de novos sindicatos, a criação de uma secretaria arquidiocesana
para cuidar administrativamente das Semanas Ruralistas, e a modernização da
agricultura na região, que se encontrava ainda muito rudimentar.
As Semanas Ruralistas da Arquidiocese de Teresina se restringiram a
esses três municípios – Teresina, Campo Maior e União – porque esses municípios na
144
época eram os que mais tensões e conflitos apresentavam e já havia movimentos com
vistas à organização dos trabalhadores rurais. Era um período marcado por conturbações
políticas e os comunistas, mesmo sem registro de suas legendas – cassadas por
Dutra em 1946 – buscavam criar espaços nas zonas rurais no arrepio da lei.
O posicionamento de Dom Avelar era bastante claro em relação aos
movimentos sociais alheios à doutrina cristã. O religioso se contrapunha de modo
transparente a esses movimentos e os combatia de modo estratégico, oportunizando
cursos regulares de lideranças rurais, orientando e subsidiando a criação de
sindicatos católicos.
O movimento social que já estamos empreendendo coloca-se na esfera exclusiva da doutrina social da Igreja. Apresenta-se ao público sem qualquer compromisso, não endossa conceitos alheios, não se confunde com interesses partidários. Precisa da cooperação bem intencionada de todos e a todos lembra a necessidade de sensatez e da ação, em termos de verdade, de justiça e de amor (FOLHA DA MANHÃ. 31 de março de 1962, p.6).
O arcebispo de Teresina acreditava que o enfrentamento aos movimentos
sociais contrários à doutrina da Igreja seria exitoso se pautado em ações específicas
e planejadas, tais como: cursos de lideranças rurais, criação de sindicatos católicos
e, principalmente, a realização das Semanas Ruralistas.
O sistema de relação entre proprietários e “agregados” não funciona em termos de justiça social. Por essa brecha estão entrando as ligas camponesas, levando, por isso mesmo, certo conteúdo social (...) Sim, vínhamos nos preparando desde algum tempo para o lançamento dos sindicatos rurais, quando eclodiu o movimento das ligas. Nosso movimento não sai a campo por causa do outro para combatê-lo sistematicamente. Esperamos organizar os sindicatos de trabalhadores do campo e promover os cursos de lideranças rurais, organizar outras semanas ruralistas que irão garantir o êxito e a orientação das organizações (...) Nós distinguimos certos líderes ou pretensos líderes que atuam no meio da massa trabalhadora que vive desassistida (...) é nosso dever alertar contra as infiltrações comunistas ou para comunistas (DOMINICAL. 1 de abril de 1962, p. 1).
Outros eventos semelhantes às experiências implementadas por Dom
Avelar se registraram em outras Dioceses do Piauí. Assim, foram realizadas
Semanas Ruralistas em Curimatá, de 23 a 25 de setembro de 1959; e em Corrente,
de 5 a 11 de outubro de 1960.
145
Ao decidir entrar em campo, a Igreja muito mais que interiorizar a sua
ação evangelizadora pretendia mesmo era afugentar de perto do seu rebanho de
fiéis – particularmente das ditas ovelhas desgarradas – os comunistas que
buscavam seduzir seu rebanho via criação de Ligas Camponesas. Assustava
também a Igreja a expansão do protestantismo e a doutrina kardexista.
Embora tenha se revelado contrário ao movimento das Ligas
Camponesas no Piauí é importante e necessário considerar que Dom Avelar,
mesmo sendo uma personalidade de comportamentos ambíguos, ora mais
avançado e reformista, ora claramente conservador e legalista, representou um
contraponto, ao poder político, dos latifundiários e do próprio estado até então
absolutos, instalado no Piauí nesses 300 anos.
O Palácio da Graça, a casa do Arcebispo, foi tão ou mais prestigiado do
que o próprio Palácio de Karnak. Dom Avelar foi seguramente um diferencial na
motivação e divulgação do pensamento. A criação da Rádio Pioneira de Teresina e
da Faculdade de Filosofia representa bem essa capacidade fomentadora.
2.4 Sindicato católico: a luta continua, mas com outras táticas
A miséria agravou-se no país na segunda metade do século XX – de
modo bem mais aguçado nos seus derradeiros anos – e isso acarretou graves
problemas à esfera pública. Esse quadro foi bem mais acentuado no Nordeste que,
sempre castigado pela seca, viu ampliar na população a legião de indigentes. Embora
a pobreza e a miséria estejam espalhadas por todo território nacional, sua presença
é seguramente mais forte no meio rural, principalmente no semiárido nordestino.
É praticamente um consenso que essa região passou a ser, vista de cima,
um problema para o país. Mas um problema para quem? Por quê? E mais, era um
problema com ou sem solução plausível? Tendo solução, quem deveria empenhar-
se nessa missão? Albuquerque (1999) ao se reportar ao Nordeste o faz identificando
essa região como sendo: “um espaço de utopias, um lugar de sonhos, o novo
amanhã, com uma identidade espacial construída no preciso momento histórico do
entrecruzamento de práticas e discursos regionalistas”.
Para Callado (1979), nesse cenário de efervescência e construção de
utopias, Pernambuco se distancia das demais unidades da federação, a
compreensão dele é a seguinte:
146
Pernambuco é, nesse momento, o maior laboratório de experiências sociais e o maior produtor de ideias no Brasil. Pernambuco nem se parece com Cuba, nem com a URSS. Por um lado já não se parece mais com o resto do Brasil. Sua pobreza continuava enorme, mas sua atividade revolucionária, sua busca de soluções em todos os terrenos, dá-lhe uma vitalidade maior que a de qualquer Estado (CALLADO. 1979, p. 46).
Sabe-se que, desde a República Velha (1889-1930), o trabalhador, fosse
ele urbano ou rural, era tratado como caso de polícia e não de política. Não era,
portanto, visto como uma questão social. Porque isso acontecia? Em parte, devido à
formação autoritária e patrimonialista da elite brasileira que comandava o estado e,
também, já como desdobramento desse perfil social e político, porque a legislação
populista e fascista do governo Vargas (1937-1945), no que tange à legislação
trabalhista, não contemplava os trabalhadores do meio rural.
A criminalização dos movimentos sociais foi a forma mais desastrada de
administrar a complexidade de expectativas sociais que demandavam o judiciário.
Esta se ampara na normatividade cultural de pertencer a um segmento social e a um
conjunto de crenças. Crenças estas que fazem, por sua vez, ver nos movimentos
sociais um inimigo, outro contra quem cabe defender-se pelos mecanismos
instituídos.
Diante dessa conjuntura desfavorável ao trabalhador, a solução possível
seria a organização em associações civis. Bezerra (1979) ilustra tal contexto ao
afirmar:
[...] nesta época, ou até mesmo antes de 1945, existiram organizações no campo com objetivo reivindicativo. Estas entidades tinham quase sempre nomes de santos, de acordo com a preferência da população e com o objetivo de evitar a reação do governo, do latifúndio e da própria Igreja, como União Camponesa Santa Teresinha, Irmandade Camponesa Santa Madalena, Associação de Trabalhadores e Camponeses de Jesus, dentre outras. (BEZERRA. 1979, p. 225).
Como se sabe, as tentativas de fugir do olhar condenatório da Igreja,
perseguidor dos latifundiários e expositivos da imprensa, não deram muito resultado.
O próprio Julião, líder do movimento social em Pernambuco, ao se referir à
denominação liga assim se reporta:
147
Quem batizou a Sociedade Agrícola com esse nome de “LIGA”, em 1955 foram os jornais de Recife para torná-la ilegal. A liga começou sendo crônica policial. Qualquer coisa relacionada com a liga estava na página policial (JULIÃO.1979, apud SILVA, 2003, p. 3).
No Piauí, um dos aspectos que agudizou a questão e provocou a Igreja
liderada por Dom Avelar com o objetivo de acelerar a criação e difusão dos
sindicatos católicos, principal meio de enfraquecimento das associações ou ligas,
pode ser explicado, principalmente, a partir da percepção pelo clero do importante
papel desenvolvido pela ALTACAM, em Campo Maior e ALTATE em Teresina.
Essas duas entidades fomentavam um importante diálogo de interesse
das classes populares na luta por melhores condições de vida. A emergência dessas
entidades ocorre nas incursões administrativas do governo Chagas Rodrigues –
governador do estado pelo PTB, com forte apelo trabalhista, entre 1959-1962.
A gestão de Chagas Rodrigues foi marcada por uma postura desviante,
em certa medida, do perfil adotado pelos governadores que o antecederam como
também por seu sucessor, Petrônio Portela. Exemplo dessa postura desviante pode
ser percebido na criação da Casa dos Sindicatos e de um programa radiofônico na
Rádio Clube de Teresina de propriedade do jornalista Walter Alencar. O programa
intitulava-se Falando ao Povo.
Essa postura do governador desagradara a muitos; inclusive e
principalmente aos latifundiários e à Igreja. A questão se apresentava como bastante
delicada para Chagas Rodrigues na medida em que ele se esforçava para evitar
qualquer tipo de animosidade com instituições populares, de peso e importância,
como era na época a Igreja Católica.
Empenhada em cumprir sua missão e, ao mesmo tempo, combater os
inimigos já eleitos e declarados, por sua hierarquia e doutrina, a Igreja Católica
ancorada na argumentação de que precisava defender seu rebanho desses ditos
inimigos comunistas e anticristãos, mobiliza-se e entra em campo. Sua presença,
nesse ambiente de miséria e injustiça, dá-se a partir instrumentos como o MEB, os
sindicatos católicos e outros mecanismos, como a ASA – Ação Social
Arquidiocesana, e, mais tarde, a CÁRITAS do Piauí.
A atuação mais efetiva da Igreja Católica, no Piauí, dá-se a partir de
1956, ano em que chega a Teresina Dom Avelar. A partir de então, a população
pobre da cidade começa a conviver com os trabalhos e ações de voluntários. Sobre
148
o trabalho e atuação da ASA, entidade que coordenava esse serviço voluntário, a
partir e somente sobre a orientação do novo bispo, Setubal faz a seguinte ponderação:
Em 1960 foi criada oficialmente a ASA, com várias obras sociais, como os centros sociais de Nossa Senhora de Fátima, Leão XII e Cristo Rei, onde funcionavam as oficinas de serraria, carpintaria, sapataria [...] e eram distribuídos donativos (inicialmente a todos as pessoas necessitadas que procuravam os centros) depois apenas às pessoas dos bairros onde as mesmas estavam localizadas (SETÚBAL. 1983, p. 130).
Embora Teresina fosse uma capital pobre, necessitasse muito e
absorvesse sozinha essa ação da Igreja, sabe-se que as atividades da ASA não
ficaram circunscritas à sede e progressivamente se expandiram sob a forma de
projetos, programas sociais e instituições que foram, em parceria ou
individualmente, sendo criadas num esforço de atenuar e até solucionar as
crescentes demandas da população.
No intento de frear o crescimento das Ligas Camponesas - já
estabelecidas em Teresina, Campo Maior, Parnaíba, Regeneração e Amarante e
em outras cidades de menor importância política e econômica -, fortalecer sua
atuação evangelizadora e consolidar sua hegemonia e poder junto ao camponês e
toda sua família, Dom Avelar traça um audacioso plano de sindicalização para o
interior do estado.
O plano seria levado a efeito em cada cidade pelo padre responsável pela
paróquia com apoio e respaldo do MEB e ainda o assessoramente da Secretaria de
Planejamento do Estado. Sobre esse plano, nas palavras de Nascimento (2004,
p85) o líder religioso faz a seguinte ponderação: “a Igreja partirá, oficialmente a partir
de 1962, para o trabalho de sindicalização. Essa iniciativa é orientada por um roteiro.
Mas esse processo tem como norte a esfera exclusiva da doutrina social da igreja”.
Nos quadros da Igreja, alguns bispos levaram muito a termo a tarefa de
fundar sindicatos que pudessem, dentro da orientação mais moderada da sua
doutrina social, dividir, fragilizar e até mesmo transformar, a partir dos necessários
expurgos de certas lideranças, as ligas em sindicatos cristãos. Dom Avelar no Piauí,
Dom José Terceiro na Diocese de Penedo, em Alagoas, e Dom José Távora em
Aracaju, figuram como nomes mais destacados.
149
Foi no esforço de concretizar seus objetivos que Dom Avelar orientou a
criação em Teresina no ano de 1962, do primeiro sindicato do Estado: o Sindicato de
Trabalhadores Rurais de Teresina, cujo primeiro presidente foi o agricultor Joaquim
Campelo da Silva, que participaria, com financiamento da Arquidiocese de Teresina,
em julho de 1963, em Natal, da I Convenção Brasileira de Sindicatos Rurais. Esse
evento contou com a participação de 18 estados brasileiros.
Em entrevista concedida a este pesquisador, um dos principais líderes
dos trabalhadores rurais de Campo Maior e primeiro presidente do STRCM, o
agricultor Antonio Damião de Sousa, ao falar das motivações e estratégias para
criação do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo Maior, faz a seguinte
declaração:
No começo eu e meus companheiros o Luis Pedro da Rocha, o Pedro Simplício e mais outros, tava tudo junto com os Eduwiges. E fiquemo quase uns sete mês, um ano, mas além da gente não concordar com as maneiras deles levarem o movimento, nois também não tinha muita importância. Tudo, tudo era o Luiz que tocava, que botava pra frente e tudo da maneira dele. Um dia eu procurei ele e perguntei: Luis tu não quer dividir esse trabalho de organizar os agricultores com outros companheiros, não? Tu já reparou que se tu não marcar uma conversa, uma reunião fica tudo na mesma, parado? Ele respondeu meio esquentado, e o que é que tu quer que eu faça?
O agricultor Antônio Damião conta que já não estava muito interessado e
que por isso nunca havia feito a carteira de sócio da ALTACAM. Depois daquela
conversa, ele estava disposto não somente em se afastar, mas principalmente
catequizar alguns amigos para fundar o sindicato. O líder camponês também afirma
que já tinha conversado sobre o assunto com o padre Mateus, responsável pela
paróquia de Santo Antônio e homem autorizado por Dom Avelar para criar na cidade
de Campo Maior um sindicato com a orientação da Igreja.
Para dar andamento à ideia, o líder campesino conta que a primeira
providência foi participar de um curso que iria acontecer em Fortaleza-CE. Esse
curso seria patrocinado pela própria Igreja em parceria com o governo do Ceará. O
agricultor afirma ainda que lá encontrou gente de Campo Maior, Piripiri e Teresina.
Quanto aos temas, ele relembra que as palestras foram sobre legislação sindical,
liderança no meio rural, participação política, associativismo e outros assuntos.
150
Para Ramsés Sousa, a Igreja Católica tinha, na pessoa de Dom Avelar,
muito mais do que um plano de evangelização para o campo. Outras preocupações
povoavam e inquietavam o clero. Ele, ao descrever a atuação do líder religioso no
Piauí, usa o seguinte argumento: “A celeridade com a qual a Igreja Católica pôs em
prática seu planejamento em relação à sindicalização rural, dificilmente poderá ser
separada da sua pretensão de evitar as infiltrações no campo” (SOUZA. 2015, p.
58).
A criação logo em seguida dos sindicatos católicos em Campo Maior,
Regeneração, Amarante, Angical, Monsenhor Gil, União e Miguel Alves revela a
disposição do líder religioso, não somente em minar a atuação das associações /
ligas, vistas por ele como entidades inferiores se comparadas aos seus sindicatos,
mas também de consolidar por meio dessas organizações laicas como os ditos
sindicatos e o MEB, o seu projeto evangelizador. Registra-se que a fundação da
quase totalidade desses sindicatos se deu em cidades onde as associações eram
bem atuantes.
A Igreja tinha profundo conhecimento da realidade brasileira,
especialmente no campo onde ela atuava mais efetivamente na última década
correspondente ao recorte temporal desta pesquisa. O padre Tiago G. Cloin (1962),
ao tentar explicar a grande mobilização que acontecia no meio rural, especialmente
no Nordeste, assim se posiciona: “a zona rural constitui a zona mais explosiva do
país, mais explosiva até que a urbana. O comunismo tramita-se e agita-se, tentando
conquistá-la pela sindicalização das ligas camponesas”. Sobre a situação
educacional do país, a Igreja mostrava-se muito preocupada com o elevado número
de analfabetos; grupo este mais vulnerável aos apelos das ligas e outras entidades
não recomendadas por ela.
Para Fernando Novaes (1997), “Julião foi reconhecido pelos camponeses
como profeta que trazia pessoalmente a nova era”. Dentre as propostas das ligas,
figurava uma em especial, a escolarização via alfabetização de jovens e adultos.
Esta muito preocupava a Igreja, pois sabia, por exemplo, que, dos 70 milhões de
habitantes que o país tinha na década de 50 para 60, somente 15 milhões podiam
votar e, mais, sabia também que o voto para os analfabetos era uma das bandeiras
de lutas defendidas por Julião e as ligas.
151
Nesse sentido, e principalmente preocupada em não sofrer mais esse
golpe na disputa com as ligas ou associações inimigas, a Igreja implementou em
toda região as Escolas Radiofônicas. Através dessas escolas, o MEB deu
organicidade e legalidade a centenas de sindicatos. A educação sindical passou a
ser a principal estratégia para se chegar ao homem do campo, livrá-lo das ligas e de
qualquer ideologia anticristã. O MEB foi, portanto, o maior programa de educação
pelo rádio, com apoio do governo e de outras organizações que tinham interesse na
questão.
Para Ramsés Sousa (2015), o MEB realmente transformou o meio rural
piauiense. Para este pesquisador:
[...] é impossível não imaginar o enorme alargamento das possibilidades de acesso à educação que os camponeses tiveram após a criação do MEB. Tendo em vista que a Arquidiocese concedia os pequenos aparelhos de rádio e pilha para os camponeses, as aulas transmitidas pela Rádio Pioneira de Teresina deveriam ser bastante aguardadas pelos lavradores. Em um período em que mais de 2/3 da população piauiense não tinha acesso à educação formal. Os camponeses certamente encararam os programas radiofônicos do MEB como uma possibilidade de emancipação através da educação (SOUSA. 2015, p. 307).
O agricultor e líder do Sindicato Rural (católico) de Campo Maior, Antonio
Damião, ao descrever os encontros na sede da entidade para assistir às aulas,
ilustra bem essa situação:
Você acredita que a maior satisfação nossa era encontrar o pessoal na porta do sindicato esperando dona Jesus, esposa do Deusdete, lá do Recreio, para abrir as portas, e nois assistir as prosa. Era bom demais! A gente se animava, aprendia e ainda tomava café com bolo. Isso mesmo, toda aula a gente combinava quem ia trazer a merenda.
A professora Maria do Amparo Carvalho (2006), sobre a atuação da
Igreja, através do MEB – mesmo sem se reportar especificamente a ele na citação a
ser exposta com a propriedade e a profundidade norteada na sua dissertação de
Mestrado – a orientação de filiação sindical e a própria atuação de Dom Avelar no
estado, faz a seguinte ponderação:
152
[...] de um modo ou de outro, a sindicalização proposta por Dom Avelar desencadeou um processo de organização na zona rural, e, por outro lado, causou uma série de dificuldades e mal entendidos entre as lideranças eclesiásticas e os proprietários de terras (CARVALHO. 2006, p. 52).
Embora as bandeiras defendidas pelo sindicato fossem claramente mais
moderadas não somente no conteúdo, mas também nas estratégias de lutas, o que
se percebeu foi um rápido crescimento do sindicato católico de Campo Maior. Muitos
de seus novos integrantes vinham da ALTACAM. Gente como o agricultor
Pedro Soares de Brito, da localidade “ Corredores”, que entrou no sindicato no início
de sua fundação, no final do ano de 1963, também participou da liga. Ao explicar por
que se afastou da ALTACAM e se filiou ao sindicato católico, o lavrador faz uma
verdadeira declaração de reconhecimento ao trabalho da Liga de Matinhos quando
afirma:
Na verdade eu e alguns outros acreditava que a liga era mais verdadeira na hora de defender a gente. O seu Luiz era homi que enfrentava as coisas de perto. Agora, também, as coisas era tudo na mão dele. Ninguém mais fazia coisa de nada se ele não tivesse por perto. No sindicato, nois via que tinha mais gente para resolver as coisas. Lá, tinha até aquele bicho que arranca dente, como é? O doutor que arranca dente! Um dentista. Também, tinha gente que ajeitava nosso aposento. Lá, eu vi que nossas coisas iam dar certo também. Tinha outra coisa... o padre Mateus tava sempre junto de nois, porcurando saber se tava tudo indo bem.
Como se pode depreender da fala do agricultor, o sindicato atuava
principalmente nas demandas previdenciárias e assistencialistas. Não fazia o
enfrentamento direto com os latifundiários; e quando fazia era sempre com a
mediação pacífica das Juntas de Conciliação e Julgamento, isto é, na esfera dos
tribunais no âmbito da legalidade do estado e da orientação do clero campo-
maiorense.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, fundado em 12
de junho de 1963, teve sua primeira diretoria eleita por aclamação. Antonio Damião
de Sousa, Raimundo Alves da Silva e Luis Gonzaga Alves Pereira foram seus
respectivos presidente, secretário e tesoureiro, os dois últimos já falecidos.
153
Entre suas principais bandeiras
de reivindicações, destacam-se: a
presença de médicos para assistência à
saúde dos campesinos, a criação de uma
política de assentamento ou qualquer
alternativa para fixar o homem no campo,
aposentadoria para os trabalhadores rurais,
indenização das benfeitorias feitas pelos
campesinos agregados nas propriedades,
liberdade para comercializar seus excedentes para os outros donos de terras, além
do proprietário agregante, instalação de mais escolas radiofônicas na região,
levantamento de terras devolutas e de particulares não produtivas para reforma agrária.
A presença de médicos clínicos era crucial, pois as localidades ficavam
todas distantes da sede do município e, em razão disso, os campesinos ficavam
desassistidos no que tange à saúde; principalmente, as mulheres que, por falta de
um pré-natal, detinham um obituário altíssimo.
A indenização pelas benfeitorias tornou-se uma reivindicação de primeira
ordem porque constituía um anseio generalizado de há muito e vinha pôr fim a
fragilidade dos campesinos quando o proprietário decidia mandá-los embora. Além
do mais, prestava-se a corrigir uma distorção social e, consequentemente, a fazer
justiça. Aposentadoria para os trabalhadores rurais, bandeira também de primeira
ordem abraçada pelo sindicato era um sonho acalentado por todos. De igual modo, a
grande – talvez a mais significativa de todas – reivindicação encampada pelo sindicato
estava centrada no levantamento de terras ociosas e devolutas; todos almejavam
um cantinho de terra e só a reforma agrária poderia tornar isso possível. Muito a
propósito, todas as reivindicações encampadas e tornadas bandeiras de primeira
ordem por esse sindicato contavam com o respaldo dos padres Mateus e Moreira.
A atuação da Igreja Católica na política de sindicalização rural trouxe
algumas conquistas para essa classe sofrida, porém trouxe também – e mais ainda
– a divisão, o fracionamento e a consequente desmobilização da classe no seu todo,
particularmente em relação às ligas. João Paulo Silva (2010) demonstra ter uma
compreensão muito ponderada sobre a questão, quando, ao sumarizar o que
ocorreu logo que os militares se apossaram do poder, afirma:
Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior
154
[...] foi uma violenta repressão sobre os sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos, bem como, em particular, sobre as ligas camponesas, que sofreram perseguições; fecharam-se várias organizações sindicais e muitas perdem seus direitos de representação (SILVA. 2010 p. 85).
Pela atuação em Campo Maior, os líderes da ALTACAM e, mesmo sendo
claramente menos ofensivos, também foram presos lideranças do STRCM. Sobre
essas prisões todas justificadas, por serem acusados ou suspeitos pela prática de
crimes contra a ordem, os quais foram genericamente denominados como “crimes
políticos”.
Em nova entrevista a esse pesquisador, o líder rural e presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, fez a seguinte declaração:
Fui preso dentro do sindicato; não me deixaram nem fechar as portas. Me lembro que pedi pra deixar eu guardar uns papelos de carteira para uns integrantes que queriam se associar e nem isso deixaram. Sei também que tocaram fogo nuns papelos e nos jornais que tinha lá dentro, destruíram quase tudo. Foi um crime muito bárbaro. Eu então perguntei por que eu estava sendo preso. Eles ficaram calados; um deles disse apenas que eles estavam cumprindo uma ordem e que eu não devia ser solto logo.
A repressão se instalou com força sobre e contra as ligas, sindicatos e
outros grupos minoritários, como a Ação Popular, que defendiam causas iguais e ou
semelhantes, como a reforma agrária. Organização laica de origem singular, a Ação
Popular teve seu tronco principal nos setores leigos da Juventude Católica que
representou uma ruptura dos católicos progressistas com a estrutura da Igreja.
A partir da dura repressão instituída, abriu-se, paradoxalmente, uma
perigosa brecha política dentro do aparato opressor do estado, razão pela qual o
movimento camponês não foi totalmente aniquilado. Em razão disso, sobreviveu
através de alguns sindicatos persistentes de trabalhadores rurais. Estes foram
enquadrados pelos militares apossados do poder como um mal necessário.
Para o estado, as questões conflituosas emergidas desse contexto
seriam solucionadas por canais institucionais nas negociações, tais como as Juntas
de Conciliação e Delegacias de Trabalho.
Nesse contexto, a não revogação do Estatuto do Trabalhador Rural pelos
militares representou muito mais uma solução, na lógica do novo governo de
155
compromissos entre classes do que um instituto de proteção e valorização do
trabalhador, pois serviu principalmente como estatuto legal que mediasse dentro da
legalidade do estado as demandas trabalhistas rurais.
2.5 Antônio Damião de Sousa: O dono da voz contra a voz do dono
Lavrador, filho de camponês, líder e primeiro
presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo
Maior, no Território dos carnaubais, Piauí. Conhecido como
Damião do Sindicato. Antonia Helena dos Santos e José
Damião de Sousa eram seus pais e avós de três netos,
filhos de Antônio Damião. O líder sindical foi preso por duas
vezes, sendo que a primeira vez na sede do próprio
sindicato, uma casa simples situada no local denominado
“Prato dos Pobres”, em alusão ao salão paroquial que oferecia
comida aos populares reconhecidamente sem posses e que perambulavam nas
ruas pedindo comida e outros donativos.
A segunda vez foi preso em sua própria casa, diante dos filhos,
acusado novamente de prejudicar a ordem social e de ser comunista. Em relação à
prisão desse e de outros líderes considerados pelos militares apossados do
poder como “elementos ligados à ideologia comunista e ao crime de subversão da
Ordem Política e Social”, o jornal Estado do Piauí, de 25 de junho de 1964, faz
registro de tais fatos com destaque na matéria intitulada “Resumo dos
acontecimentos”, na Guarnição Federal de Teresina, com início 31 de março
de 1964:
[...] Esclareceu o Maj. Costa que entrando em ação a Guarnição Federal de Teresina, com a participação do 25º BC, Secretaria de Polícia e Polícia Militar, foram efetuadas muitas prisões. Em consequência, foi instaurado um Inquérito Policial Militar para a necessária apuração dos fatos e de responsabilidade dos elementos ligados à ideologia comunista e ao crime de subversão da ordem política e social. Foi encarregado do IPM o Maj. Idalécio Nogueira Diógenes, pertencente a 10ª RM. Seguem a relação nominal das pessoas que foram presas para prestarem depoimentos no 25º BC, junto ao encarregado do inquérito.
Fonte: Antônio Damião, Sindicato dos Trab. Rurais de C. Maior
156
Na relação dos presos constantes na matéria acima do jornal Estado do
Piauí, figuram os nomes de Jesualdo Cavalcante Barros, Luiz José Ribamar Osório
Lopes (o Luiz Edwiges), Antônio Damião de Sousa, Manoel Emílio Burlamaqui de
Oliveira e José Ribamar Osório Lopes.
Durante os exatos trinta e três dias em que ficou preso e incomunicável, o
presidente do Sindicato afirma ter sofrido torturas físicas e psicológicas. Ao relembrar
uma dessas passagens de sua vida, o lavrador enche os olhos d’água e declara:
Eu nunca vou esquecer aquele dia 16 de junho de 1964. Os militares chegaram onde eu tava, isso era meia noite e disseram que iam me levar para um passeio na beira do rio Poti. Chegaram lá, botaram um saco plástico preto na minha cabeça, me amarraram e me jogaram dentro do rio, que por sinal estava muito cheio, uma largura maior do mundo. Me jogaram e achando que eu tava morto saíram e foram embora. Graças a Deus tinha umas moitas de canarana e uns pescadores perto que ouviram minhas batidas n’água e me socorreram, nunca mais esqueci aquelas horas sufocantes.
Depois que foi socorrido, ele se apresentou “espontaneamente”. Dessa
vez, no 2º BEC e não mais para o 25º BC, considerado por ele e por todos os outros
entrevistados como “lugar de gente muito violenta”. Embora “estivesse solto, o líder
sindical considerava-se preso, pois tinha por obrigação informar todo mês onde
estava e se manter longe de confusões sob pena de voltar para a cadeia”.
As prisões, conforme seu relato ocorreram por conta de ele, na condição
de trabalhador e líder sindical, questionar e lutar contra as péssimas condições de
vida do homem do campo. Embora a luta fosse a mesma, as estratégias e as
práticas diferiam e até divergiam das levadas a efeito pela ALTACAM, que tinha à
frente Luiz Edwiges. Assim, Antônio Damião empenhou-se em buscar – com o
assessoramento da Igreja – junto ao poder público, os direitos civis, políticos, sociais
e econômicos, assegurados, mas não tão respeitados, aos trabalhadores.
Fundado oficialmente em 12 de junho de 1963, o Sindicato de
Trabalhadores Rurais de Campo Maior teve seu reconhecimento junto ao Ministério
do Trabalho, através da Carta Sindical nº 193816/1963. Registra-se que a fundação
desse e de outros sindicatos no interior do estado já estava programada pela Igreja
quando selecionou, diga-se, “escolheu” privativamente, segundo seus interesses,
157
trabalhadores rurais de Teresina, Campo Maior, Amarante, Piripiri e Parnaíba para
fazerem o curso Por um Mundo Melhor em Fortaleza no final do ano de 1962.
Destaca-se que esse curso teve duração de trinta dias, foi custeado pelas
dioceses de Teresina e Fortaleza e integralmente conduzido por padres, educadores
e técnicos, todos alinhados com as recomendações da Hierarquia da Igreja, que
estava decidida e instrumentalizada para iniciar e consolidar num curto espaço de
tempo a sindicalização no campo. O tema, segundo o agricultor Antônio Damião,
único participante do curso da Cidade de Campo Maior versava sobre muitos temas,
todos, porém, com centralidade na Formação Integral do Homem. Sobre o curso e
sua dinâmica pedagógica de aplicação, Damião afirma:
O curso era de manhã e tarde. Muito cedo uma campainha acordava a gente... tinha um café muito farto e, depois das orações, a gente ia para um salão grande e bem alto. Tinha dia que começava com palestra em outro começava com os agricultores em grupo dizendo o que tinha entendido, era muito bom e animado. Todo dia tinha canto e reza. Em outras vezes, a gente conversava com companheiros de outras cidades. Eu mesmo fiquei, na primeira semana, com um companheiro do Maranhão; e nas outras, era um do Ceará e parece que um do... não lembro... sei que era de outro lugar. Depois de muito tempo, foi que um padre explicou porque a gente mudava de companheiro nos alojamento. Nesse curso tinha até filme, eu lembro de um chamado de Onças e Gatos. Os gato queria virar onça para comandar os outro. Era uma história bonita... no fim os gato se juntou e venceu a onça.
Embora empolgado com as dinâmicas adotadas com cânticos, orações e
apresentações culturais, o que marcou muito o agricultor foi o filme do qual ele
lembra com muita satisfação. Damião cita outros temas como legislação sindical,
direitos trabalhistas, aposentadoria (previdência), práticas de negociação,
comunismo, convivência com a seca, o papel do sindicato cristão e reforma agrária.
Convém ressaltar que ordem temática aqui apresentada segue e respeita
rigorosamente a lembrança do líder sindical centro dessa narrativa.
A luta continuava com o sindicato, apenas com outras frentes e táticas:
No campo, visitava os companheiros de propriedade em propriedade, naquelas que
não podia entrar voltava no outro dia, no começo ou na boca da noite, até falar o que
desejava. Ainda no campo, organizava mutirões e palestras para fortalecer o
sindicato criado recentemente. Na cidade, sempre lembrado como o homem do
158
sindicato dos padres, Damião levava sempre as reivindicações para a Assembleia
Legislativa e para a Junta do Trabalho, onde apresentava as denúncias de
exploração de seus representados.
Em menos de um ano, o sindicato já se mostrava numericamente mais
representativo do que a Liga de Matinhos. Para o agricultor Luiz Pedro da Rocha,
em entrevista concedida a este pesquisador (meses antes de falecer), a explicação
para essa situação era a seguinte:
O Seu Luiz da liga era um omi muito sério e duro; o cabra mole não falava nem com ele. Agora era muito correto e lutador. Também a gente notava que o sindicato, que tinha o apoio dos padre, era mais respeitado. As muié dos cumpanheiro aconselhava mais o sindicato... lá em casa mesmo, era assim. Quando chegava uma pessoa da liga já sabia que a mué ia recramar, dizendo: tu já tá na liga de novo? Eu mesmo achava que nois devia andar junto, liga e sindicato, mas isso nunca aconteceu, pelo contrário andaram se estranhando umas poucas de vez. O Antônio, aqui do sindicato, era danado, também um cabra muito jeitoso. Eu acredito que essas coisas e mais as histórias que a liga era muito briguenta fortaleceram o Damião e o sindicato, enquanto a liga foi ficando mais cansada.
Conscientes que as dificuldades e a exploração dos trabalhadores de
Campo Maior eram as mesmas enfrentadas pelos agricultores e pequenos
proprietários em todo o Estado do Piauí, os líderes sindicais decidiram dar
organicidade a uma entidade que além de representar, também fortaleceria a classe
junto aos poderes públicos e privados dentro e fora do estado. Nesse propósito,
fundaram, em 14 de dezembro de 1963, na Casa dos Sindicatos, na rua
Desembargador Freitas,1808 em Teresina, com a participação de 17 sindicatos, a
Confederação dos Trabalhadores Autônomos e Pequenos Proprietários do Piauí,
que teve na pessoa do lavrador Antonio Damião de Sousa um de seus principais
idealizadores e entusiastas.
Na condição de idealizador da nova entidade, o líder do sindicato católico
Antônio Damião de Sousa foi convidado por muitos dos presentes naquele encontro
para assumir a presidência da Confederação. Entretanto, o agricultor e presidente
do STRCM, ainda que tentado a assumir mais aquela representação de classe,
optou por conveniência apoiar o nome de outra liderança: o agricultor Gonçalo
Oliveira Cardoso, um dos seus mais fiéis aliados. O nome do abdicante, após
159
entendimento firmado entre os presentes foi indicado como delegado junto à
Federação. Esse significativo acontecimento para os trabalhadores do estado foi
registrado pelo jornal Folha da Manhã de 17 de dezembro de 1963, com o título
Eleita a Diretoria da Confederação dos Trabalhadores Autônomos:
Em reunião de Assembleia Geral Extraordinária realizada na tarde de ontem, na sede do Movimento de Educação de Base, MEB, procedeu-se a eleição da Confederação dos Trabalhadores Autônomos e Pequenos Proprietários Rurais do Piauí, ficando a diretoria eleita constituída dos seguintes representantes sindicais: Presidente, Gonçalo Oliveira Cardoso; Secretário, Mariano Francisco de Sousa; Tesoureiro, Aderbal Gomes Martins; Conselho Fiscal, Raimundo Nonato Dutra de Araújo, Antônio Mendes Benigno e Evaristo Oliveira N. Neto. Representantes à Confederação: Antônio Damião de Sousa, Raimundo Nonato de Carvalho e Francisco Ferreira Cardoso. Participaram da Assembleia de eleição delegados dos sindicatos dos seguintes municípios: União, Miguel Alves, Altos, Campo Maior, Capitão de Campos, Piripiri, Alto Longá, São Pedro, Agricolândia, Barro Duro, Angical do Piauí, Regeneração, Pedro II, Barras e Palmeirais.
Com a nova entidade, os trabalhadores rurais de todo o estado passaram
a contar, além dos sindicatos já então organizados em cada município, com a
Confederação para defendê-los, inclusive, juridicamente dos abusos e ameaças
constantes a que eram submetidos pelos latifundiários em todo o Piauí. Essa nova
entidade conferia à luta dos agricultores um caráter estadual e, ao mesmo tempo,
representava uma nova ferramenta de defesa dos campesinos e pequenos
produtores em nível nacional.
Passados alguns anos e principalmente depois da prisão dos líderes,
tanto da Liga de Matinhos em Campo Maior quanto dos vários sindicatos já
existentes no Piauí, a partir da instalação dos militares no poder, a
organização camponesa desse município, como de resto todo tipo de
organização de trabalhadores, foi desmontada no estado e em todo o país.
Entretanto, em 1967 o sindicato de Campo Maior voltaria a funcionar; desta feita,
porém, com uma diretoria sem qualquer expressão e ainda tutelada pela Delegacia
de Trabalho.
Antônio Damião de Sousa, depois de se ver livre das prisões (duas) em
Teresina levada a cabo pelos militares, foi agraciado – dado ao bom relacionamento
160
que mantinha com a Igreja – com uma viagem, custeada pelo clero piauiense, aos
Estados Unidos da América. Sua estadia naquele país prestava a lhe assegurar um
refúgio momentâneo à perseguição dos militares; mas também lhe possibilitou fazer
– sob a orientação da Igreja – o curso de Capacitação de Recursos Humanos para o
Desenvolvimento do Brasil, ministrado pela Universidade de Loyola em Nova
Orleans. Sua permanência nos EUA foi curta, pouco menos de três meses. Logos
após sua chegada ao Brasil, Antônio Damião foi novamente preso pelo delegado de
Campo Maior. Em todos esses seus reveses, ele sempre contou com a compaixão,
a solidariedade e a ajuda, inclusive jurídica, da Igreja.
Em 2008, Antônio Damião requereu, com o respaldo da Igreja e a
orientação de uma equipe de advogados da cidade de Campo Maior - Processo Nº
01.62266/2008 – junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, reparação
econômica. O processo em questão, depois de transitado, foi pautado, julgado e
deferido favorável ao pleiteante na 3ª Sessão de Julgamento de Turma da Caravana
da Anistia, realizada em 30.03.2012, às 9 h, no Salão Nobre da Câmara Municipal
de Teresina.
A reparação econômica – cem salários mínimos – foi paga então, em
parcela única, a Antônio Damião de Sousa, conforme determinação do juiz Paulo
Abrão Pires Júnior, que presidiu aquela sessão.
A reparação política e civil de Antonio Damião foi uma consequência
incontinenti do processo anteriormente transitado e julgado. Assim recebeu, na
mesma data em que seu processo foi julgado, a sua Declaração de Anistiado
Político.
A propósito, convém registrar que o local inicialmente pensado e
solicitado para a realização em 30.03.2012, da 3ª Sessão de Julgamento da Turma
da Caravana da Anistia, fora a Assembleia Legislativa Estadual. A solicitação foi
formalmente encaminhada àquela casa; porém o seu presidente, Themistócles
Sampaio Filho, negou, não permitiu a realização do referido julgamento. A conduta
dele evidencia bem o ranço arcaico, direitista e conservador do parlamento estadual,
que teima ainda em albergar os remanescentes atávicos da antiga e tardia tradição
coronelística político piauiense, comandado por mais 15 anos por esse mesmo
presidente.
161
O mais paradoxal é saber que essa realidade perdura e ainda vai
perdurar por muito e muito tempo mais; ele permanece lá sempre (re) conduzido, e
sempre soberbo, e sempre impávido, e sempre soberano. Fazer o quê?... É uma
lástima – como bem diria o saudoso jornalista piauiense Deoclécio Dantas –, Chico
Paulo!
Em julho de 2016, precisamente no dia 09 às 20h, no Salão Nobre da
Câmara Municipal de Campo Maior, Antônio Damião de Sousa externou, talvez, sua
última palavra de ordem em defesa dos camponeses ao lançar o livro O homem e a
terra: ditadura militar e latifúndio contra os camponeses.
Na ocasião, o líder camponês mobilizou agricultores do passado e do
presente, estudantes, pesquisadores, autoridades estaduais e municipais além de
familiares para dizer que acreditava que sua luta e de muitos companheiros não
tinha sido em vão, nem se perdido, e que embora a maioria dos presentes não
soubesse, o Brasil e o Piauí passaram por uma “ditadura cruel e sangrenta”, que
praticou o pior dos crimes. Crimes que segundo ele:
[...] calou ou pelo menos tentou calar a voz de quem só tinha mesmo a voz para lutar contra todos aqueles que, além da voz, queriam e se achavam donos de tudo, inclusive da voz, dos direitos e dos sonhos daqueles agricultores [...]
Na prática, de todos os que se contrapunham ao regime de exceção
instalado no país a partir do golpe civil-militar de 1964, com efeitos perversos e
duradouros que marcariam a vida de gerações inteiras, talvez somente aqueles
agricultores – como os companheiros de Antônio Damião e outras lideranças
campesinas de então – fossem ainda capazes de acreditar ser possível reescrever,
a partir deles, do jeito deles, a história da qual os trabalhadores do campo e da
cidade acreditavam ser, ainda que silenciados, quase sem memorias, os sujeitos
principais daquele processo ainda em curso e sem previsão para o fim, pelo menos
em suas lembranças.
Como movimento social, a formação e emergência das ligas
(ALTACAM/ALTATE) e dos Sindicatos (STRCM/STRT) representaram uma resposta
concreta à exploração a que estavam submetidos os trabalhadores rurais piauienses
162
na década de 60. Essa dita resposta se materializa na medida em que aquelas
entidades fomentavam com suas existências e atuação a passagem da dispersão e
impotência dos campesinos para um estágio de mobilização e luta, revelando, dessa
maneira, que existiam, sim, como força social independente, que sabiam o que
queriam o que aspiravam e, principalmente, que tinham consciência de sua
personalidade e da oposição dos seus interesses aos dos proprietários de terra.
Assim, em que pese a luta declarada contra o latifúndio, inimigo comum,
havia outra luta surda, tornada aparentemente invisível pelos líderes das entidades
representativas dos camponeses no município. Era a luta pela legitimidade do direito
de representar os campesinos da Terra dos Carnaubais. Essa luta foi protagonizada
pela ALTACAM e o STRCM. Tanto foi assim que ficou registrado que essas duas
entidades, cada uma a sua maneira, ressignificaram a resistência e a luta dos
trabalhadores rurais na região e também no estado.
Liga e sindicato, talvez por se perceberem defensores da mesma causa,
salvaguardaram a fé e a esperança como meios de evitar os ímpetos da impaciência
e da cegueira que os levariam, por certo, a perder tudo; inclusive a solidariedade
relativa aos interesses de classe e à consequente essencialização do sentimento de
pertença, reduzindo a alienação de modo a evitar que a luta por representatividade
entre as lideranças sindicais não fosse suficientemente forte para pôr em oposição
entidades que juntas deveriam, mesmo que por caminhos distintos, defender os
campesinos de um inimigo comum, declarado e poderoso: o latifúndio improdutivo.
163
CAPÍTULO III
3 UM PE LÁ E OUTRO CÁ: DO IDEÁRIO MODERNIZADOR À
PRÁTICA ASSISTENCIALISTA DE CHAGAS RODRIGUES AO
CONSERVADORISMO REFORMISTA DO ESQUEMA PORTELLA
3.1 Ecos do trágico acidente da Cruz do Cassaco
Marx postulou, de
forma enfática, que toda
relação é uma relação de
força marcada por uma
disputa de poder. Em razão
disso, observando-se o
percurso histórico do
processo civilizatório, nos
seus mais diversos momentos
e períodos, bem se pode
inferir o quanto a disputa de poder pautou a trajetória do ser humano. Não é sem
lógica, portanto, afirmar-se que nada traduz melhor a cobiça do homem que o poder.
Essa disputa fascina, seduz; mas, também, forjam conflitos, crises e, por vezes, até
litígios intermináveis.
A disputa de poder tem protagonismo em todos os campos; notadamente,
no político. Um campo, talvez por isso, que sempre se mostrou muito fértil para
estudos e pesquisas acadêmicas. E principalmente por se saber – porque assim se
mostra e se evidencia – que na disputa do poder nesse campo vale tudo. Para
Arendt (1981, p.212), o poder é “momento fugaz” que, por si só, não garante a
durabilidade da comunidade política. Nada pode, portanto, ser desconsiderado.
Assim, não existe o imponderável. Tudo é sempre uma possibilidade não
Fonte: acidente da Cruz do Cassaco
164
descartável. Em razão disso, há espaços para ocorrências de situações inéditas e
totalmente estranhas. Tais ocorrências quando se materializam se tornam fatos,
alimenta a imprensa, a comunicação e, por vezes, ganham registros nas narrativas
históricas.
Não é sem razão que a política é costumeiramente definida como a arte
do entendimento ou da busca. O desentendimento traz a mesma lógica de todas as
coisas; não é eterno. E, assim, se decompõe na lei maior de Lavoisier: tudo se
transforma. O entendimento soma esforços e interesses, favorece ganhos. Políticos
albergados em partidos extremistas – tanto de esquerda como de direita, que jamais
se aliam – não têm possibilidade de alçar voos mais altos.
Nesses termos, a tradição brasileira da política partidária tem mostrado
que o caminho mais viável é o do entendimento. Candidatos majoritários que contam
com o maior número de partidos aliados têm, na maioria das vezes, mais chances
de vitória. A própria legislação eleitoral favorece a possibilidade de alianças
partidárias.
Essa prática se mostra presente a partir do Segundo Império do Brasil
(1840-1889) quando liberais e conservadores, orientados pelo imperador,
estabeleceram um entendimento e consolidaram o direcionamento político daquele
momento. Também, agora mais proximamente na chamada República Liberal, entre
1946 e 1964, fase politicamente marcada – embora tardiamente, se comparada a
outros países da America Latina – por ampla participação de vários setores da
sociedade. Setores que historicamente sempre ficaram fora de qualquer
possibilidade de participação, por mais modesta que fosse. Tal fato, inédito até
então, teve uma enorme repercussão. Como novidade ganhou destaque nos
principais veículos de comunicação da época.
Ainda em relação às novidades dessa fase, cita-se a formação de
partidos nacionais, a possibilidade de um mesmo candidato disputar mais de uma
vaga (Governo e Câmara Federal) e ainda a condição danosa para o processo de
estabilidade política, de se eleger para o Poder Executivo – nacional ou estadual –
candidatos concorrentes de chapas opostas, às vagas de presidente e vice da
República ou governador e vice do estado.
Exemplo clássico de estratégia política no sentido da conciliação foi
levado a efeito pelo imperador Pedro II, na transição da primeira para a segunda
165
metade do século XIX , quando, sentindo instável sua governança, o mesmo
efetivou a partir de um modelo político, que ficou conhecido como Parlamentarismo
às Avessas, a conciliação entre liberais e conservadores. A efetividade dessa
manobra casuística se deu a partir de um rodízio no cargo de chefe político
(primeiro-ministro) de governo de representantes dos dois partidos, o chamado
Ministério da Conciliação. Assim um ministério composto, ao mesmo tempo por
políticos liberais e conservadores, daria a estabilidade político-administrativa
desejada pelo imperador Pedro II, para dar prosseguimento ao seu reinado.
Sobre essa manobra do imperador Pedro II, Capistrano de Abreu (1969,
p. 74) faz a seguinte ponderação:
Gabinete da Conciliação. Termo honesto e decente para qualificar a prostituição política de uma época [...], a política da conciliação era o imperialismo que se organizava em regra para o poder absoluto, formando-se com elementos de todos os partidos, que o executivo podia absorver pela intimidação ou corrupção, desculpando, por interesse próprio, todas deserções, conduzindo ao triunfo todas as traições, mercadejando e procurando tarifar todas as consciências.
Esse era o Parlamentarismo à moda brasileira, que constituiu 36 gabinetes
com duração de aproximadamente 5 décadas, dos quais os conservadores dominaram
por mais de 29 anos, revelando que com suas propostas de centralização estavam
mais próximos do imperador ou o imperador mais próximo deles.
Para Soares (2008, p. 123), “os dois partidos (Liberal e Conservador) não
apresentavam diferenças ideológicas marcantes, aceitando cada um deles a filosofia
liberal clássica, de pouca intervenção do Estado no domínio econômico e outras
características próprias do liberalismo do século XX”. Ainda em relação à atuação
desses dois partidos, Soares citando as professoras Maria Freire e Marlene
Ordonez, faz a seguinte ponderação:
Na prática, esses dois partidos funcionavam independentemente de sua ideologia e não eram orientados pelos seus princípios. Lutavam apenas pela posse do poder. Havia elementos do Partido Liberal, bastante conservadores em suas ideias e Conservadores que apresentavam projetos de reformas progressistas. Tudo dependia da conveniência.
Ao explicar o porquê dessas condutas, as pesquisadoras lançam mão de
um célebre provérbio cunhado durante o Segundo Reinado, atribuído a Holanda
166
Cavalcanti, que expressa bem o perfil desses partidos: “Não há nada mais parecido
com um Saquarema(conservador) do que um Luzia(liberal) no poder”. Para o
professor Ilmar Matos (2004, p. 115), essa conduta também se explicava, porque “os
dois partidos eram formados por elementos da aristocracia. Portanto eram os
mesmos interesses que defendiam”.
Durante a República Velha o interesse pela questão política continuou
restrito, assim como no Império, aos membros das elites e aos partidos políticos,
agora estadualizados, também não atuavam de modo diferente, se comparados aos
liberais e conservadores, da fase imperial.
Silva, ao se reportar às candidaturas, aos partidos políticos e ao processo
eleitoral faz a seguinte afirmação:
A gênese da candidatura do último presidente constitucional da republica Velha foi repetição dos conciliábulos de que falavam mal os políticos, quando não se beneficiavam deles. Não havia partidos políticos, mas simples rótulos vistosos, atrás dos quais os políticos se agrupavam, de acordo com suas conveniências. Não havia voto livre, mas fraude generalizada, oficializada, praticada pelo Governo e pela oposição, porque não existia sequer outra forma de eleição (SILVA. 1998, p. 76)
O processo político ganhou ares de maior organicidade e legalidade com
a promulgação da Constituição de 1934. O texto constitucional permitia a pluralidade
sindical. Entretanto, mantinha-se a exigência do reconhecimento dos sindicatos pelo
Ministério do Trabalho. O trabalho da mulher e da criança passou a ter
regulamentação especial. Boris Fausto (2006, p. 64), ao analisar a vida partidária e o
processo político regulamentado por esta constituição, assim se posiciona: “As
eleições marcaram um florescimento partidário como nunca existira no país, ainda
que a grande maioria das organizações partidárias tivesse cunho regional”.
Agora mais recentemente, na propalada República Liberal (1946-1964),
com a existência de muitos novos partidos políticos, assistiu-se, depois da eleição
de Dutra, embora tenha sido somente no início do governo, uma inclinação liberal
que logo em seguida deu lugar a um posicionamento político reacionário,
antissoviético e que culminou com o Partido Comunista, principal força política de
esquerda, empurrado para a ilegalidade pelo presidente da República. Ocorreram
167
também nessa fase maior abertura e possibilidades efetivas de participação dos
partidos políticos e da sociedade civil. Em relação aos partidos, essa participação
podia se efetivar de modo isolado ou através de composições e alianças.
Quanto à sociedade civil, especialmente os segmentos representados
pelos operários e as classes médias urbanas, esta inserção na cena política
brasileira fez-se através de sindicatos, associações, irmandades e de outras formas
autônomas de mobilização. Também o direito de votar ampliava o exercício da
cidadania e impunha certo limite ao domínio oligárquico.
É importante realçar, porém, que essas alianças políticas eram
celebradas, assim como se deu no Império, principalmente no sentido de ganhar ou
manter o poder uma vez conquistado, ficando para um plano secundário ou até
mesmo esquecido os programas políticos e as aparentes convicções ideológicas.
Isso talvez explique, pelo menos nas últimas décadas, o reduzido tempo de duração
dessas alianças.
Nesse cenário, os partidos majoritários (PSD e UDN), sem bases
populares no Brasil e no Piauí, por exemplo, tinham dificuldades em organizar
coligações fortes para concorrer ao próximo pleito marcado para outubro de 1950.
Isso se dava principalmente, no caso de os estados, em razão de a articulação
nacional dos partidos, entrarem em rota de confronto com as conjunturas estaduais
das mesmas oligarquias em esfera federal.
O PTB, partido criado por Vargas nas entranhas da máquina autoritária do
Estado Novo, iniciou minúsculo com posicionamento político um tanto conservador.
Sua finalidade principal – orientação do próprio Getúlio Vargas, seu idealizador – era
a de atuar junto às questões trabalhistas, com vistas a reduzir e até neutralizar a
influência comunista de então.
Ocorre, entretanto, que gradativamente esta legenda cresceu e se viu
obrigada assumir uma postura mais progressista e, às vezes, até radical. Mas, nem
por isso deixou de se constituir, nas mais diversas oportunidades, no sempre
oportuno, conveniente e fiel aliado político do PSD ou – em situações mais incomuns
e não tão incursas – da UDN, principal partido de oposição ao trabalhismo em esfera
nacional. Ainda assim, conforme o momento e as especificidades locais algumas
alianças foram possíveis.
168
O PSD também nascido da inventividade varguista tinha nos seus
quadros representantes dos latifundiários, da classe média alta e dos setores
empresariais. Este partido tinha sua inclinação voltada para a esfera administrativa e
foi o maior vencedor de eleições durante a república populista.
Em relação às eleições seguintes (1950), a análise feita pelos principais
líderes desses partidos apontava para uma vitória das forças getulistas que
grassava o país com um discurso nacionalista popular. A análise se confirmou e
sufragou em 03 de outubro de 1950 a vitória do candidato do PTB, Getúlio Vargas,
com 48,70% dos votos.
No Piauí, o PSD era constituído a partir de grupos familiares poderosos
ligados ao latifúndio. Em razão disso, congregava a grande maioria dos coronéis
municipais em torno das lideranças estaduais. Também mobilizava setores do
comércio exportador e tinha um perfil local muito afinado com o nacional.
No que diz respeito à UDN estadual, de seus quadros participavam
profissionais liberais, servidores públicos e parte da burguesia comercial. Com seu
discurso liberal moralizante, esse partido conseguiu grande penetração na capital
Teresina, elegendo, ao lado do PSD, uma grande base parlamentar numa sequência
de pleitos entre os anos de 1945 a 1964, ganhando cada uma das siglas duas
eleições e o PTB apenas uma.
Em relação ao PTB, sabe-se que esta agremiação partidária passou a ser
considerada, por muitos estudiosos, pesquisadores e profissionais da mídia de então
– jornal impresso e rádio – o fiel da balança a partir de 1950. Principalmente após
contar com a adesão de um dos mais fortes e influentes grupos políticos do Estado
liderado por Matias Olímpio, considerado, até então, o maior nome da UDN. Nas
palavras de Wilson Brandão (2015, p. 59), o “PTB torna-se um partido representativo
e decisivo nas eleições estaduais no Piauí. Uma espécie de fiel da balança”. A partir
de então, essa legenda passou a ser muito cortejada por suas perspectivas de
crescimento. Ressalta-se, porém, que em todas as eleições, especialmente nas
disputas para o executivo estadual, a montagem dos esquemas políticos era mais
decisiva para a vitória eleitoral do que propriamente o nome do candidato com suas
propostas. Isso se confirmava, por exemplo, na eleição de candidatos que, mesmo
vivendo fora do Estado, sagravam-se vitoriosos apenas pela força dos esquemas
políticos aos quais pertenciam.
169
O quadro político piauiense colocava o PSD como partido
consolidado e, não havendo situação nova, imponderável, deveria vencer as
eleições subsequentes, uma vez que o mesmo se mostrava – no campo e na
cidade – bastante estruturado. Essa condição ficou evidenciada nas eleições
de 1954 quando o PSD elegeu o governador, um senador e a maior bancada
federal.
Após assumir o comando da nação, Vargas encaminhou ao Congresso
Nacional um programa de governo objetivando a expansão da indústria nacional.
Neste, ele propunha o fomento para o setor produtivo. A prioridade era a empresa,
notadamente a pública, em termos a financiamento de investimentos industriais. O
plano de Vargas era fortalecer o capital nacional, ainda muito frágil. Para tanto,
fazia-se necessária a criação de uma instituição bancária voltada essencialmente
para a linha de investimento. Assim, surgiu o BNDE – Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico.
Nesse conjunto de medidas, visando ao crescimento da economia
brasileira, veio também a Eletrobrás e a Petrobrás, o que facilitou a consolidação
das prioridades político-administrativas de Vargas. No primeiro discurso enviado por
ele ao Congresso Nacional, o presidente expressa bem a filosofia da política
econômica que pretendia implementar:
[...] A elevação dos níveis de vida, num país como o Brasil, depende, assim, muito menos da justa distribuição da riqueza e do produto nacional, do que do desenvolvimento econômico. A grande verdade é que temos pouco que dividir. Devemos, portanto, por um lado, atender ao problema de justiça, corrigindo os abusos e a ostentação de uma minoria, e ainda elevar a produtividade através de melhores níveis de consumo, mas por outro lado, não devemos permitir que uma distribuição insensata venha prejudicar o potencial de capitalização necessário ao desenvolvimento econômico geral, e assim, à criação de maiores e mais amplas oportunidades de emprego e de salários. [...] O progresso nacional se vinculará solidamente ao desenvolvimento econômico. O governo não poupará esforços para favorecer a acumulação de recursos públicos e privados, que se destinem a ampliar a produção nacional e, assim, melhorar, pelo emprego e pela abundancia, as condições de vida do nosso povo [...] (Câmara dos Deputados. Mensagens presidenciais – 1947-1964. Brasília 1978.)
A orientação da prática populista de matiz trabalhista era a tônica de
Vargas. Ele a deixou mais evidente quando nomeou João Goulart para o cargo de
170
Ministro do Trabalho mesmo sabendo que o seu nomeado não era bem visto pelos
militares pela oposição e até mesmo pela ala mais conservadora de seus aliados.
Essa desconfiança que recaia, à época, sobre Goulart era decorrente da estreita
ligação do ministro recém-nomeado com os sindicatos urbanos e rurais, muitos dos
quais ajudou a fundar, já preparando a intervenção do Estado por meio dessas
entidades.
Outro acontecimento que fragilizou perante a elite ainda mais a imagem
de Jango e, por extensão, a de Getúlio e de seu governo, junto ao empresariado, à
classe política conservadora, e a imprensa, foi o aumento do salário mínimo em
100% em 1954. Embora esses fatos digam respeito a Jango, eles afetam
principalmente o presidente Getúlio Vargas, real mentor dessas medidas.
Todos esses fatos revelaram-se mais gravosos e prejudiciais ao projeto
nacional-populista de Vargas quando a eles foram acrescidos o crime da rua
Toneleros e a frequente pressão da UDN, principalmente através dos agressivos
ataques – nos jornais e, no Parlamento – de Carlos Lacerda. Tais acontecimentos,
juntos, deixaram a situação política do presidente Getúlio Vargas insustentável,
levando-o, depois de constatada a impossibilidade de contornar a situação pela via
do diálogo, do entendimento ou pelo resultado positivo de medidas populistas
adotadas como o controle dos preços de gêneros básicos e aumento do salário
mínimo, a cometer suicídio em agosto de 1954.
A morte do presidente Getúlio nas condições em que ocorreu provocou
comoção jamais vivida pelo povo brasileiro, que logo passou a responsabilizar a
UDN e o governo americano pela tragédia nacional. Este fato abriu uma enorme
crise política que perduraria até a eleição e posse na Presidência da República
(1956-1961) de Juscelino Kubitschek (PSD), conhecido popularmente como JK, e de
seu vice João Goulart (PTB), também conhecido pelo nome de Jango.
Nesse meio tempo que antecedeu a eleição e posse da coligação PSD-
PTB – encabeçada por Juscelino e Jango –, o país vivenciou meses de
instabilidades. Todas pautadas por tentativas de golpe, ataques populares nos
grandes centros do país e até rompimento de coligação e consequente apoio
político. Este protagonizado por Café Filho, vice-presidente que rompeu com
Vargas, nos últimos momentos de seu governo. E uma vez rompido com Vargas,
171
Café Filho se empenhou em comandar uma reorientação na política nacional,
culminando inclusive com esforços no sentido de impedir a posse de Juscelino.
É importante ressaltar que para alguns estudiosos – Ferreira 2001, Günter
Axt, 2009 e Lira Neto 2012 –, o suicídio de Getúlio Vargas representou um
contragolpe do líder populista nas forças conservadoras; inclusive, e principalmente,
entre militares que já vinham planejando a tomada do poder.
Ainda em relação ao líder populista Getúlio Vargas, o historiador Günter,
faz a seguinte ponderação: “Mesmo sendo oriundo de um universo político
tradicional – baseado na honra e em costumes machistas e conservadores – o ex-
presidente foi sempre um político moderno para seu tempo”.
Outro importante personagem da vida política brasileira que analisou o
papel e a importância de Getulio Vargas foi Osvaldo Aranha. Ao falar sobre sua
morte e seu legado para o Brasil, o mesmo fez por ocasião do sepultamento, em
profundo estado de emoção, a seguinte ponderação:
Quando, há tantos anos, assumistes o governo deste país, o Brasil era terra parada, onde tudo era natural e simples; não conhecia nem o progresso, com as leis de solidariedade entre as classes, não conhecia as grandes iniciativas, não se conhecia o Brasil. Tu entreabriste para o Brasil a consciência das coisas, a realidade dos problemas, a perspectiva dos nossos destinos.
Para Ferreira (2001.p,110,111), a morte de Getúlio Vargas manteve
acesa a chama do trabalhismo e do PTB, adiou o golpe civil-militar e de “quebra” se
revelou o principal ingrediente da campanha vitoriosa de Juscelino Kubistchek para
o período 1956/1961.
Em 1958, apenas em 11 dos 21 Estados brasileiros aconteceriam
eleições para os governos estaduais; e destes, em 10 a UDN fez coligações, das
quais, quatro foram com o PTB.
O cientista social e professor da UFPI – Universidade Federal do Piauí –
Antônio José Medeiros (1996, p. 65), ao analisar a questão das alianças políticas no
estado do Piauí, faz a seguinte ponderação:
[...] a UDN piauiense se aliava justamente nessa postura mais pragmática do partido que tinha o deputado Cândido Ferraz, visto como representante do ‘grupo chapa branca’, sempre aberto a acordos e concessões em troca de favores políticos.
172
Ainda na visão deste pesquisador, o Piauí, mesmo sendo um estado de
economia predominantemente agrícola sofreu, à sua maneira, influência direta do
trabalhismo varguista. Este trabalhismo populista foi expresso, neste Estado, pela
figura midiatizada do governador Francisco das Chagas Caldas Rodrigues – oriundo
de Parnaíba, cidade litorânea situada ao Norte do Piauí –, eleito numa inusitada,
inesperada e ousada aliança política com a UDN.
Esse também é o sentimento do economista Felipe Mendes. Em
entrevista concedida a este pesquisador (2016), fez esta pertinente observação:
Dessas ideologias; comunismo, socialismo e trabalhismo a que realmente teve penetração mais forte no Piauí foi a última. O comunismo esse ideário, na minha opinião, só alcançou aquele pessoal mais letrado, tipo jornalista, estudante universitário e um ou outro gato pingado sem uma rígida formação familiar. Agora, o trabalhismo, sim, tomou de conta, dominou a cabeça de muita gente do campo e da cidade. Sabe por quê? Porque o governador Chagas Rodrigues era um homem de palanque, falava como poucos e fez do discurso populista e trabalhista uma de suas principais bandeiras. O pai dele era uma mistura de industrial e comerciante e talvez fosse dono da principal fortuna do Norte.
O nosso Estado, como todos sabemos, era dominado por uma agricultura de roça, de subsistência. Faltava quase tudo ao Piauí, Suas cidades, inclusive a capital Teresina, não dispunham nem mesmo de vigor urbano. Luta de classes, sindicato, luta sindical envolvendo patrão e empregado; as poucas que tomei conhecimento ocorreram mais em Parnaíba e Floriano do que aqui em Teresina. Se teve um líder trabalhista no Piauí daqueles tempos, esse líder foi o governador Chagas. Desse modo só posso atribuir a ele o crescimento das idéias de um trabalhismo social e ao favorecimento do movimento das ligas camponesas por aqui. Agora dizer que o Chagas era comunista!?... Isso era jogo baixo das elites que sabiam que a Igreja, o povo e os latifundiários, todos, temiam essa ideologia. E,
assim, associando o Chagas ao comunismo todos ficariam contra ele.
Ainda segundo Medeiros, o campo político do estado de então
oportunizava um bom mote – “demolição da inepta e nefasta oligarquia instalada no
poder” – para o discurso oposicionista que viria a se mostrar decisivo para a vitória
eleitoral da aliança PTB/UDN. O Piauí apresentava, à época, segundo o sociólogo,
uma situação oligárquica típica. Tal situação, o mesmo assim a ilustra:
Coronel Pedro Freitas governara o estado de 1950 a 1954; foi eleito como seu sucessor, em 1954, o seu cunhado general Gayoso e Almendra; agora José Gayoso Freitas, -- filho do primeiro e sobrinho do segundo – era o candidato a governador (MEDEIROS, 1996, p. 64).
173
Na mesma linha de Medeiros, o Wilson Nunes Brandão, na obra Mitos e
Legendas da Política Piauiense (2015, p. 59), afirma que a conjuntura política levou
o PSD à derrota. Ao analisar aquela conjuntura, ele assegura que sobravam
interesses familiares e faltavam interesses coletivos do povo e da sociedade civil
como um todo. Conforme ainda a sua análise, havia também as disputas internas,
as ambições pessoais e familiares, a incompetência administrativa, a confiança
demasiada, e a perda do principal aliado político, o PTB. Para, além disso, o
imediato uso político da mídia em torno da trágica ocorrência da Cruz do Cassaco,
que suscitou uma grande comoção no imaginário coletivo, e a célere apresentação
de uma chapa com nomes à altura para substituir a anteriormente formada por
Demerval Lobão para o Governo e Marcos Santos Parente para o Senado,
asseguraram a vitória da oposição e a consequente primeira grande derrocada da
oligarquia.
Em relação ao trágico acidente, o jornal Folha da Manhã do dia 10 de
setembro de 1958, na sua primeira página, apresenta a seguinte matéria intitulada
Os dois mártires do Piauí:
Na manhã do dia 4 de setembro o destino implacável tragou essas duas vidas que simbolizavam, no presente, a bandeira de redenção do Piauí, Demerval vitorioso candidato ao Governo do Estado e, Marcos, já consagrado Senador da Republica, imolados em pleno ardor da lua para reconduzir o nosso Estado às condições essenciais de honradez e dignidade, ficarão perpetuados no civismo dos nossos corações agradecidos. Paz às duas almas bem-aventuradas!
Ainda sobre essa fatídica ocorrência e seu rápido e competente uso
político, José Lopes dos Santos (1988) faz a seguinte afirmação:
[...] O sucessor de Pedro Freitas, general Gayoso e Almendra, eleito por aliança entre o PSD e o PTB – então sob a presidência do senador Matias Olimpio de Melo, que havia rompido com a UDN – não foi vitorioso nas eleições de 1958 além de todas as dificuldades que já enfrentava naturalmente, e também por forças do rompimento do PTB com o PSD, de que resultou a candidatura que se prenunciava vitoriosa ao Governo do Estado, do advogado Demerval Lobão Veras, de quem Marcos Parente Veras era companheiro de chapa como candidato ao Senado – ocorreu fato doloroso, que o Piauí ainda hoje recorda e lamenta o desastre da Cruz Do Cassaco no qual, entre outros, Demerval Lobão e Marcos Parente perderam a vida, em plena campanha.
174
Apressadamente, a menos de um mês da data marcada para a eleição, os dois candidatos foram substituídos por Chagas Rodrigues (PTB) e Joaquim Parente, (UDN) inclusive pelo impacto emocional da tragédia que enlutou o Piauí inteiro. Na mesma eleição Tibério Nunes e Petrônio Portela, ambos da UDN, foram guindados aos cargos de vice-governador e prefeito de Teresina, respectivamente pelo que passaram a comandar postos-chave de influência decisiva nas eleições de 1962. O desastre foi o principal fator da vitória (SANTOS,1988, p. 18).
Para Alfredo Nunes, deputado estadual e líder da oposição
durante o governo de Chagas Rodrigues, àquela situação absolutamente inesperada
da morte dos principais nomes das Oposições Coligadas, deve-se acrescentar a
situação de total penúria financeira da maioria dos candidatos que já tinham gasto
seus recursos e a menos de um mês do pleito não possuíam qualquer recurso para
novas empreitadas. Tal consideração ele a fez em entrevista concedida a este
pesquisador em 10.06.2016. E em razão dessa dita consideração, assevera:
[...] foi nesse momento que – apesar das dificuldades para se encontrar candidatos à altura para substituir os vitimados – as duas famílias, a do Chagas e a da esposa, senhora Maria do Carmo, mulher mais rica do que ele, não pensaram duas vezes e financiaram a campanha do Chagas para governador.
Faz sentido, sim, a ponderação de Alfredo Nunes. É incontestável, bem
se poderia dizer. Realmente, o fato de o povo todo se encontrar em comoção pela
tragédia, a boa higidez financeira das famílias disponibilizada às candidaturas de
Chagas Rodrigues (PTB) e Tibério Nunes (UDN), garantiram a vitória das oposições.
Para Alfredo, “sem comoção, muito dinheiro e a aliança com a UDN, as oposições
não teriam vencido”.
Em relação à dificuldade para encontrar substitutos, o jornal O Dia, na
matéria Novos Candidatos, traz a seguinte declaração:
Com o desaparecimento repentino dos dois candidatos a governador e senador, a política piauiense tomará novos rumos e grandes transformações. O partido trabalhista está encontrando grandes dificuldades em apresentar um nome que preencha as qualidades e simpatias de que gozava o candidato falecido. A UDN, hoje propriedade exclusiva do Sr Cândido Ferraz, também está lutando com as mesmas dificuldades, pois os homens de maior projeção não desejam ser derrotados. Surgem vários boatos (O DIA.
07.09.1958, p.2)
175
Embora a classe política, especialmente aquela ligada à situação,
identificasse, na movimentação do PTB e da UDN, dificuldades para lançar nomes
competitivos para concorrer ao pleito que se avizinhava, por estratégia ou
desconforto, a mesma não perdia tempo e lançava sistematicamente criticas ao
comportamento de seus líderes, acusando-os de exploração política do acidente do
dia 4 de setembro. Em nota publicada no jornal O Dia datado de 28 de setembro de
1958, página 5, intitulada Exploração demagógica, se referindo ao comportamento
de integrantes da UDN, faz o seguinte comentário:
Discurso extemporâneo do sinistro Sr. Petrônio Portela, que feriu substancialmente a boa ética parlamentar, com a manifestação de seu primarismo político, é o sintoma de que a oposição levará para os comícios a tragédia da Cruz do Cassaco, explorando demagogicamente os cadáveres de seus ex-candidatos ao Governo e ao Senado federal, sacrificados na horrível catástrofe, com o fim de emocionar o povo, tocar-lhe a sensibilidade, arrancando-lhe lágrimas.
Assim as coligações governista, liderada pela família Freitas denominada
Coligação Democrática Piauiense – formada pelo PSD/PR/PSP/PRP e dissidentes
do PTB e UDN – e oposicionista denominada Oposições Coligadas – formadas pelo
PTB e UDN – lançaram-se em defesa de suas plataformas.
Diante da nova conjuntura e respaldada pelo lema: Crescer para vencer,
do senador Juracy Magalhães – um autodeclarado defensor das composições
políticas locais com o argumento de que as mesmas representavam o caminho
seguro para evitar humilhantes derrotas – a aliança PTB-UDN, para além do coro
dos descontentes, se formalizou no estado. Assim a UDN, do então senador,
conhecido por suas posições objetivas – diga-se por demais pragmáticas – passou a
ser criticada no seu interior por setores que se mostravam intransigentes. Àquela
coligação, esses a sentenciaram de destruição dos padrões éticos, por visarem tão
somente ao êxito eleitoral; a qualquer preço e a qualquer custo, distanciando-os e
todos os demais udenistas do fim programático do partido. Essas posições,
entretanto, não conseguiram evitar o entendimento já em curso no Piauí, com vistas
à aliança que consagraria Francisco das Chagas Caldas Rodrigues (PTB) para
governador e Tibério Nunes (UDN), como vice para o período 1958/1962.
176
Em que pese às particularidades e proporções de cada caso, este
pesquisador entende, e nesse intento não figura solitário, que, assim como a morte
do presidente Vargas provocou incalculável prejuízo político para a UDN de Carlos
Lacerda, garantindo a eleição de Juscelino Kubistchek no pleito seguinte, também
no Piauí a tragédia da Cruz do Cassaco, teve peso decisivo na eleição do trabalhista
Francisco das Chagas Rodrigues para governador em 1958, quebrando a
hegemonia política do PSD. Conforme declarações apresentadas na mídia
impressa.
A melancolia invadiu a alma da cidade consternada, dando-lhe um aspecto sombrio, retratando o sofrimento dos que choraram num pranto amargurado e triste, em hora dolorosa a perda de vidas tão preciosas. Demerval Lobão Veras morreu tragicamente no cumprimento de um dever cívico, na missão que lhe impôs o idealismo democrático. Era um homem de valor, reconhecidamente honesto, de comprovada capacidade de ação de esclarecido espírito de luta (JORNAL DA MANHÃ. 10.09.1958, p. 05)
Com a tragédia da Cruz do Cassaco, que vitimou os candidatos das
Oposições Coligadas, as executivas partidárias rapidamente indicaram, embora com
dificuldades, novos nomes para o preenchimento das vagas abertas. O historiador
Wilson Brandão (2015, p. 62), assim, analisa:
O clima, além de tenso, era de forte apelo emocional. O povo, sentindo o drama e a tragédia dos envolvidos no episodio, tomou também para si o sentimento de dor e de perda, o que, decisivamente, influenciou no resultado do pleito. No pleito de 3 de outubro, aconteceu o que já era esperado. O eleitorado piauiense sacramentou maciçamente nas urnas os nomes de Francisco das Chagas Rodrigues (PTB) para governador; Tibério Nunes (UDN) para vice Governador e Joaquim Parente, irmão de Marcos Parente para o Senado. Foi uma vitoria retumbante.
Embora o trágico acidente tenha pesado de forma substancial
para a vitória das Oposições Coligadas, é preciso – por dever de ofício e
compromisso de analista político – reconhecer que outros fatores foram
importantes, não somente para consolidar a vitória eleitoral, mas também
para permitir ao governador eleito, pelo menos no inicio de sua gestão certa
estabilidade política.
177
Dentre estes fatores, pode-se inferir: o rompimento do senador Matias
Olímpio de Melo com a UDN e a sua imediata adesão ao PTB, levando consigo o
então deputado federal Francisco das Chagas Rodrigues, representante, por
relações familiares, das duas mais ricas, poderosas e tradicionais famílias da
Parnaíba – Poncion Rodrigues, de seu pai Poncion Rodrigues; e Moraes Correia, de
seu sogro Zeca Correia –, que já detinha uma destacada posição política adquirida
como parlamentar na Câmara Federal, onde se firmou com defensor dos direitos
humanos, da democracia, da justiça social e da reforma agrária.
Para muito, além disso, há ainda a considerar a pública, acirrada e
incontrolável disputa interna entre os principais nomes do PSD. Nas palavras do
líder político da região valenciana Djalma Veloso, “Chagas representava,
paradoxalmente, a possibilidade de alinhamento ou realinhamento de forças porque
tinha o apoio dos ricos e o respaldo dos pobres”.
3.2 Governo Chagas Rodrigues: nada do que foi será!
Com a promessa de
modernização do estado e o
compromisso de realizar uma marcada
gestão de rupturas, o governador
Chagas Rodrigues iniciou seu primeiro
e único governo com um perigoso
equilíbrio numérico entre as bancada
governista e de oposição na
Assembléia Legislativa, onde inclusive
tinha minoria de um parlamentar naquela legislatura. Mesmo nessas condições
afirmou: “Estado de economia feudal, de verdadeira colônia, o Piauí vai passar à
vanguarda do desenvolvimento nordestino” (O DIA. 07.12.1958, p. 08). Embora em
nível estadual o chefe do executivo não contasse com números muito favoráveis, o
que trazia certo desconforto naquele cenário político que exigia dos governadores,
assim como agora no presente, a construção de maioria para aprovar seus projetos
Fonte: Governador Chagas assinando termo de posse
178
e governar com certa estabilidade, Chagas Rodrigues, mesmo nessas condições,
iniciou sua caminhada rumo à modernização e transformação do Piauí.
O mesmo quadro político, entretanto, não se podia dizer, em relação à
esfera federal onde Chagas Rodrigues contava com a maioria dos senadores, da
bancada federal e ainda com apoio considerável do Presidente da República, com
quem compartilhava a promessa de desenvolvimento econômico integrado no qual o
Nordeste e sua gente, especialmente o camponês sofrido e castigado pelas
sucessivas secas, seriam tratados com dignidade. Nesse sentido, a modernização
da máquina pública seria indispensável, pois somente assim enfrentaria tamanho
desafio. Sobre as precárias condições de sobrevivência do camponês e os efeitos
da seca no Nordeste, o presidente fez a seguinte reflexão:
“Repetia-se no Nordeste o fenômeno cíclico de uma grande seca. Durante algum tempo, a população nordestina, percebendo a ausência de qualquer chuva, estivera olhando o céu, num misto de terror e perplexidade. Não se viam nuvens, e o sol, como um braseiro errante, realizava seu curso, atravessando o firmamento de ponta a ponta. O camponês, ilhado na sua casa, assistia ao dramático espetáculo, sem nada poder fazer. O gado morria. As plantações secavam. O paiol ficava vazio. Para tornar ainda mais cruel aquela agonia, o fenômeno não era repentino. Tratava-se de uma desgraça, que era um suplício chinês. Insinuava-se de mansinho, aumentando aos poucos a poeira nas estradas, reduzindo a água das cisternas e emagrecendo aos poucos o gado [...] O que ocorria no Ceará se reproduzia no Rio Grande do Norte, na Paraíba, no Piauí e em Pernambuco. Havia fome e desespero por todo lado”.
O quadro pintado por Juscelino Kubitschek já era por demais conhecido e
de todos os lados emergiam reivindicações ao governo da união que solucionasse
ou pelo menos socorresse com mais recurso a região, considerada por muitos como
“um problema”. Para Araújo (2000, p. 143), “O Nordeste com sua economia
estagnada figurava entre as regiões mais pobres do mundo”.
De acordo com Cano (1998, p. 61), os problemas regionais brasileiros,
como se sabe, só afloram mais intensamente ao debate político no final da década
de 50 por duas razões principais: “O flagelo das secas em 1958 e 1959 e pela
elevada concentração de investimentos produtivos industriais no sudeste,
especialmente em São Paulo, notadamente no governo JK (1956-1961) via Plano de
Metas. Essa situação se agravou com a construção de Brasília e o progressivo
endividamento do Estado brasileiro, o rebaixamento do valor dos salários provocado
179
pela inflação e outros problemas decorrentes da politica econômica do governo
Juscelino”.
A bem da verdade a situação descrita acima revela o quanto promessa
de desenvolvimento e integração do Brasil, com a redução progressiva das
distancias entre as áreas consideradas mais ricas em relação às mais pobres,
ficou no campo da promessa, pois o que se assistiu foi, apesar dos esforços de
muitos, o aprofundamento das desigualdades, ficando as regiões mais
desenvolvidas com a maior parte dos recursos, pois não havia estímulo, muito
menos interesses em se realizar investimos em regiões pobres com baixo nível de
retorno dos capitais aplicados.
Ainda assim, embalados por uma conjuntura que só na aparência parecia
favorável e por uma parceria político-administrativa promissora, presidente e
governador prometiam, ancorados em nível nacional no Plano de Metas de JK e no
plano estadual no trabalhismo social de Chagas Rodrigues, transformarem o Brasil e
o Piauí, eliminando definitivamente a estatística estigmatizante, pelo menos em
relação ao estado, de ser a unidade mais pobre da federação. Era chegada a hora
de promover o encontro do Piauí com o seu futuro eliminando ou pelo menos
reduzindo os entraves de infraestrutura indispensáveis à tarefa de modernização,
ainda que, pelas reais condições, em moldes conservadores do estado. Mas que
futuro? Quem desse processo participaria? Os mesmos de sempre ou teria naquela
nova conjuntura, espaço para novos personagens?
Com a pressa e a motivação de quem não tinha tempo a perder, Chagas
Rodrigues fez da sua primeira mensagem como governador, enviada ao Legislativo
piauiense, em janeiro de 1959, uma espécie de declaração de intenções e projetos
para retirar o Piauí daquela situação de penúria, de abandono e de atraso em
relação às demais unidades da Federação. Situação que de há muito já vinha sendo
denunciada, conforme se pode depreender da matéria publicada pelo Jornal do
Piauí (17.01.1957, p. 5):
O Piauí possui a mais baixa renda do país [...] Sabe-se, por outro lado que devido à concentração da propriedade territorial nas zonas produtivas de cera, em mãos de poucas famílias detentoras das terras mais ricas a distribuição dessa renda insignificante espelha quadro essencialmente perigoso para o desenvolvimento piauiense. A reduzida capacidade de compra da população explica o fenômeno que ocorre, por exemplo, em Campo Maior, onde os níveis de consumo são extraordinariamente baixos.
180
Embora o governador e seus auxiliares mais próximos, denunciassem a
ausência de sinais, ainda que modesto daquilo que modernamente se chama de
máquina pública, era preciso considerar, contudo, que seu antecessor, Gayoso e
Almendra, havia legado à população do estado um conjunto de ações, projetos e
obras – e isso Chagas não menciona e nem faz referência na sua já aludida primeira
mensagem ao Legislativo – que representavam um embrião do processo instituidor
da máquina física do estado, demarcando o Piauí dos Começos, propalado pelos
defensores do governo Gayoso.
Nesse sentido, há que se considerar – pela natureza fomentadora à
arrancada desenvolvimentista do Piauí – a criação em 1956 da CODESE –
Comissão de Desenvolvimento Econômico do Estado; em 1957, do FRIPISA –
Frigorífico do Piauí S.A; também, no mesmo ano, a instituição do GEB – Grupo de
Estudo do Babaçu; em 1958, a instalação e inauguração do BEP – Banco do Estado
do Piauí, e também, da criação do IAEE – Instituto de Águas e Esgotos. Todos
esses órgãos foram implantados com a finalidade de dotar o estado de infraestrutura
capaz de sustentar o desenvolvimento esperado e que permitisse ao estado o
recebimento de investimentos tanto público quanto privado.
Para além da incumbência primeira de identificar as fragilidades da
economia piauiense, a CODESE foi pensada e criada para ser um centro de
estudos, elaboração e execução de ações e projetos de desenvolvimento a partir da
captação de recursos. Tanto foi assim que, a partir dos primeiros estudos, já
observou e apontou como pontos restritivos ao desenvolvimento do estado, dentre
outros: a pequena dimensão do mercado urbano; o baixo poder aquisitivo da
população do estado; a existência de uma legislação estadual pouco estimulante ao
setor industrial – impondo taxações exorbitantes sobre este, frangilizando-lhe,
inclusive, o capital ou forçando o seu deslocamento; a queda na cotação dos
produtos piauienses de exportação; a escassez de crédito e de energia.
O Piauí, como se percebe a partir das informações constantes do relatório
da CODESE, sem vigor infraestruturante, mostrava-se bastante vulnerável em
termos econômicos e, por via de consequência, limitado ao surgimento de indústrias.
Era um estado profundamente dependente de recursos federais, repassados à
181
época em cota única; com o campo permanentemente em crise e, por essa e outras
razões, com um setor industrial praticamente inexistente. Detinha, talvez por isso,
um elevado grau de dependência externa, especialmente com relação a
manufaturados.
Esses fatos apontavam claramente que a expansão de um setor industrial
atrofiado – praticamente restringido e dependente do extrativismo do babaçu,
carnaúba e outras palmáceas, com importância econômica bastante reduzida – era
muito mais que uma vontade política; era um desafio de gestão.
Essa situação somada a uma população muito pobre favoreceu sim, o
surgimento de estabelecimentos artesanais de base familiar. O produto interno bruto
se mostrava inexpressivo, o que também se caracterizava como problema para o
desenvolvimento.
“Não pode haver consumo de massas semelhantes ao das economias
desenvolvidas onde a grande massa não ultrapassa os níveis de subsistência”
(PINTO. 1976, p. 76). E esta era, à época, a realidade do estado. Esse foi o Piauí
que Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, o governador eleito – pautado por um
discurso populista de matriz trabalhista – recebeu na sua posse ocorrida em 1º de
janeiro de 1959. A situação ainda se via agravada pelos terríveis desdobramentos
econômicos e sociais advindos da seca de 1958.
A difícil situação do Piauí, o governador veio a denunciar na mensagem
enviada à Assembleia em 1960. Nela, reportando-se ao ano de 1959, registrou que
“as despesas realizadas com pessoal chegava a 76,6% contra 4,5% das despesas
com material e 18% em gastos diversos”.
Chagas, como governador, tentou implantar uma gestão diferenciada
dos demais governadores que lhe antecederam. Isso fica patente quando evidencia
uma postura “desviante”, em certa medida, do perfil adotado pelos chefes do
executivo estadual de até então. Nesse intento, desde sua chegada ao cargo mais
alto do estado, almejou desenvolver uma política mais próxima dos grupos tidos
como espoliados. Sua prática pretendeu uma gestão em sintonia com os anseios e
as reivindicações das classes ditas populares aviltadas e marginalizadas.
Tal postura, o governador do estado evidenciava em seus discursos
políticos e em suas práticas administrativas, sempre transparentes desde a
182
campanha eleitoral. E depois de iniciado o seu governo, esse discurso se amplificou
através de um programa de rádio levado ao povo sempre nas quartas-feiras pelas
ondas da Rádio Clube de Teresina.
Essa retórica empolgante e com tons claramente emotivos e
“populistas” pode ser aferida, por exemplo, na mensagem enviada, em janeiro
de1961 à Assembleia Legislativa, quando o governador assim se expressou:
É o Piauí a área mais atrasada, habitada por um povo cujas condições de vida são as mais deploráveis. Não se tem notícia de outra área no país ou no continente, com renda global inferior e de renda per-capita tão baixa. Nossas populações, mormente as do sul do Piauí, vivem tal estado de penúria e pauperismo, que seria difícil descrevê-lo. Em meio às grandes propriedades latifundiárias, dormentes na improdutividade, vagueiam essas populações, subnutridas e andrajosas, sem trabalho certo, doentes, sem assistência médica e hospitalar, sem escolas e sem terras [...] Observando-se o nosso Estado no quadro geral da Federação Brasileira, a situação que se nos depara é constrangedora e revoltante. O Piauí é o único Estado marítimo que a não dispõe, sequer, de um ancoradouro; nossa Capital (Teresina) é a única que não possui aeroporto com pista pavimentada; dois terços do Estado carecem de rodovias; Teresina ainda não está ligada por estrada pavimentada à principal cidade, situada na faixa litorânea, que é Parnaíba; e é a única, em todo o país, que não dispõe de serviço de esgoto [...]
Outro momento que pode servir de termômetro para aferir a grande
audiência do governador pelas ondas da Radio Clube através do programa Falando
ao Povo, foi registrado pelo jornal Folha da Manhã, nº 1179, p. 6, 09.04 de 1961, que
em tom crítico disparou:
Na noite de ontem, o governador Chagas Rodrigues mais uma vez ocupou o microfone da gigantesca cadeia de emissoras piauienses, paga com dinheiro do povo. Muita gente deixou de ir ao espetáculo do Circo norte-africano, ora nesta cidade, para preferir permanecer em suas residências, com receptores ligados [...]
Como era de se esperar até pelas circunstâncias da escolha de seu nome
e posterior eleição, os discursos com conteúdo mudancista, o perfil elegante,
midiático e popular adotado por Rodrigues contrastavam, em certos aspectos, com
suas origens e ao mesmo tempo desagradou desde a primeira hora os grupos
oligárquicos, as tradicionais elites agrárias locais alojadas na sua maioria no PSD,
183
assim como alimentou também o sentimento de repúdio por parte de seus
adversários políticos. As memórias de um dos seus principais adversários na época,
José Gayoso Freitas, demonstram como seu perfil era caracterizado em meio aos
opositores.
Chagas Rodrigues não trazia experiência administrativa. Seus aspectos mais fortes eram, a nosso ver, a boa comunicabilidade, a oratória populista e certa influência econômica nos últimos momentos da campanha. Usando aquela linguagem populista, enfatizou temas que estavam sensibilizando áreas nordestinas, como a reforma agrária. Procurou difundir uma imagem renovadora e fez apelos aos sentimentos emocionais do povo (GAYOSO, 1958, p. 43).
Por outro lado, as
características que incomodavam os
adversários políticos e as tradicionais
elites locais forjaram as condições
necessárias para a estruturação e
fortalecimento de muitos movimentos
sociais urbanos e rurais, a exemplo
da Liga Feminina Trabalhista e das
Ligas Camponesas. Estes e outros
movimentos tinham considerável espaço no governo de Chagas Rodrigues, que por
muitas vezes participou de eventos organizados por suas lideranças no interior e na
capital do estado, como na abertura do 1º Congresso Piauiense de Camponeses.
Defensor público do ideal de reforma agrária no estado, Chagas
Rodrigues viu com bons olhos a formação da ALTATE em Teresina e da ALTACAM
em Matinhos, Campo Maior, chegando a prestar apoio aberto a toda e qualquer
entidade representativa da classe trabalhadora. Esse apoio se deu, por exemplo, na
via direta, tanto com o recebimento por diversas vezes de militantes e ativistas
sociais, do campo e da cidade, no Palácio de Karnak, sede do governo do estado,
como também com a criação da Casa dos Sindicatos, espaço destinado, segundo o
governador, para que os “trabalhadores pudessem exercer com maior liberdade sua
cidadania política”.
184
Para além dessas mencionadas demonstrações, o apoio de Chagas
Rodrigues também se traduzia e efetivava através de seus aliados na Assembleia
Legislativa, como se pode perceber no pronunciamento do deputado do PTB,
Deusdeth Ribeiro, registrado no dia 15 de novembro no jornal Folha da Manhã:
Os lavradores de Teresina haviam fundado recentemente a “Associação dos Lavradores de Teresina” com grande sacrifício para ver hoje tocado fogo pelos latifundiários e reacionários [...] que agora começaram pelas sedes das associações para amanhã, talvez, tocarem fogo nas próprias residências dos camponeses.
Atitudes dessa natureza geravam um olhar atravessado tanto em relação
à sua pessoa, quanto ao seu grupo político, direcionado pela imprensa, latifundiários
e toda sorte de opositores.
Muitas das críticas sobre a postura política de Chagas Rodrigues e sua
aproximação com as Ligas Camponesas eram feitas em determinados jornais, os
quais detinham nitidamente orientação política partidária de oposição. O fragmento
abaixo, por exemplo, foi extraído do Jornal do Piauí. Ele expressa abertamente o
sentimento de insatisfação no que diz respeito ao governador Chagas Rodrigues que,
além de apoiar declaradamente essas entidades, ainda participava de seus eventos.
Um congresso sindical de trabalhadores e camponeses realizado em fins de abril deste ano, no Piauí, constitui, no Estado, as Ligas Camponesas, que já estão confortavelmente instaladas no Palácio do Governo. O Senhor Chagas Rodrigues é o patrocinador das Ligas Piauienses que, por causa disso, estão em melhores condições de que as ramificações da instituição espalhada no Nordeste, embora não contem com a popularidade das Ligas de Pernambuco (JORNAL DO PIAUÍ, 1961, p. 6).
Na sua posse, ocorrida em 1º de janeiro de 1959, foram registradas
presenças de diversas entidades de classes de trabalhadores urbanos e rurais. Em
decorrência dessa proximidade, Chagas Rodrigues – e ele bem a estimulava –,
ganhou dos grupos políticos mais reacionários que lhe eram contrários a alcunha de
Governador Comunista. Esse fato denotava uma posição acentuadamente aversiva
às Ligas Camponesas, que sequer – aqui no Piauí – alinhavam-se aos ideais de
orientação político-partidária.
185
Os trabalhadores rurais, notadamente os de Campo Maior, mesmo os
integrantes da Liga Camponesa de Matinhos, informados à época por encontros
políticos, jornais e pela própria luta, talvez não tivessem compreensão mais clara do
que era comunismo. Mesmo assim foram estigmatizados de comunistas pela ala
mais conservadora da Igreja Católica, pelos latifundiários e pelos políticos
oligárquicos. Luiz Edwiges e seus companheiros campesinos, em momento algum –
de sua a trajetória inicial de luta da Liga de Matinhos – hastearam bandeiras de
qualquer legenda partidária. Essa postura porem mudou tempos depois quando se
tornou um dos primeiros fundadores do Partido dos Trabalhadores.
O estigma, assim forjado, trouxe aborrecimentos, incômodos, perdas e
danos, individuais e familiares. Alguns foram presos, inclusive! Os militares lhes
tiraram o sossego, arrefeceram-lhes o ânimo, sim; mas não lhes tiraram o humor e a
ironia. Edwiges, assim, rebatia tal rotulação de forma seca e direta: “Somos adeptos
praticantes de um comunismo rústico”.
As críticas direcionadas ao governador pela oposição e que associavam sua imagem aos comunistas campesinos e até aos anarquistas urbanos, apesar de, às vezes, o incomodar não preocupavam tanto a ponto de lhes tirarem o sono. Entretanto, o achincalhamento, a desqualificação política e administrativa que atribuíam ao governador uma identidade amadora, oportunista e, principalmente de aproveitador, afirmando que o então deputado federal e sucessor de Demerval Lobão já tramava nos bastidores sua caminhada rumo ao Palácio de Karnak, o agredia profundamente. Tais situações podem ser identificadas nos trechos retirados do Jornal O Dia 28.09.1958, pág. 3. [...] acusado como promovente e recebedor de verbas federais para instituições fantasmas, o deputado Chagas Rodrigues conseguiu proteção e nunca apresentou defesa, sob a máscara de ser trabalhista. Fez força para queimar a candidatura de Demerval Lobão Veras e contribuiu para enfraquecer a indicação de Matias Olimpio ao Ministério do Trabalho, enfraqueceu a votação daquele piauiense, no último pleito e tomou ares de dono do PTB [...]
E a matéria segue afirmando:
[...] Por motivo de causar desconfianças aos seus competidores, nas próximas eleições, diante da fortuna recebida com lucros fantásticos, viu seu nome registrado ao cargo de governador do Estado, mas conservou a posição de candidato a deputado federal. O mandato majoritário não lhe oferece qualquer possibilidade de vitória. Políticos
186
de responsabilidade, conscientes de seus deveres, conhecedores das exigências que se recomendam para a escolha de nomes, aos postos eletivos, não indicariam elemento como Chagas Rodrigues ao sufrágio popular. O sentimento de honestidade, o respeito ao povo e outros fatores evitariam apresentação desse quilate. Somente a cegueira partidária e o desapreço aos brios dos piauienses aproveitariam aquele “artista” como substituto de Demerval Lobão Veras.
Em outras ocasiões, as críticas e acusações descambavam para o
deboche e comparações pejorativas e bizarras, como a que veiculada no jornal O
Dia de 3 de agosto de 1958, que compara o governador Chagas Rodrigues, depois
de tê-lo apelidado de Chaguinha, Chagão, Chico e Chiquinho e o associado ao
barbeiro causador da temível Doença de Chagas:
Sanear a política e higienizar os costumes. E necessário premunir o povo contra as endemias de todos os gêneros, notadamente, defendê-lo da perigosa “Doença de Chagas”, aquela que ataca a tireoide, faz chupanças. Defendamos a nossa saúde contra os insetos criminosos que nos ameaçam com a moléstia de Chagas (O DIA. 23.08.1958. p. 01).
Em entrevista concedida a este pesquisador, o advogado Reginaldo
Furtado, que na época exercia a função de secretário particular do governador
Chagas Rodrigues, ao falar da disposição do governador em trabalhar pelo Piauí,
fez a seguinte afirmação:
O Chagas era tão dinâmico e trabalhador que ele inventou umas audiências populares aos sábados. Falava com povo através de um programa de rádio que ele criou na Rádio Clube. O Programa chamava-se Falando ao Povo, lá nesse programa ele parecia uma criança. Ele era um ótimo orador e quando alguém fazia uma pergunta daquelas que gostava, aí que ele se soltava e falava sem parar.O governador Chagas era o Homem que o Piauí precisava para transformar o velho e sofrido estado em coisa nova. Ele, o Chagas, era um homem da mídia; acredito que ele foi o maior em termos de comunicação direta com o povo. Ele era realmente brilhante, acho que foi esta a razão dele apoiar a instalação da Rádio Clube de Teresina.
O advogado Reginaldo Furtado, um reverenciado conhecedor do
comportamento político de Chagas Rodrigues, afirma que a administração do então
governador teve claramente duas fases.
187
A primeira compreende os dois primeiros anos de governo (1959/1960),
no qual o governador ponderava muito sobre as decisões, principalmente as
políticas, porque tudo provocava melindro e desconforto nos integrantes da UDN,
partido de natureza mais conservadora, mas que em tempos de eleição se
apresentava como legítimo herdeiro das últimas reservas morais existentes,
defendendo-as com discursos sentimentais e reformistas.
A segunda fase – a mais importante para o estado, na opinião de
Reginaldo Furtado – foi administrativamente mais significativa. Nessa fase, Chagas
Rodrigues voltou-se, de modo mais decidido, para o cumprimento de suas
promessas de campanha e passou a tomar as principais medidas para o
desenvolvimento do Piauí. Sobre essas medidas, ele faz a seguinte ponderação:
O governador Chagas se preocupava com muitos setores. Agora, o principal setor – aquele que tirava o sono dele – era o povo, a miséria do povo. Ele me disse e me mandou por duas vezes a outros Estados da região Nordeste ver se existia e, existindo observar como funcionava o Serviço Social do Estado. Ele pretendia montar um serviço no Piauí voltado a prestar assistência médica, alimentar e que diminuísse o sofrimento do povo pobre. Ele revelava um carinho especial com as mulheres e as crianças. Ele, uma vez me confidenciou que antes mesmo de enviar a mensagem criando o SERSE, já tinha conversado várias vezes com a dona Maria do Carmo Rodrigues, sua esposa sobre um órgão desses no estado. Ela também era uma mulher de luta, guerreira, carismática e muito elegante, apesar desses atributos refinados, nunca disse um não para alguém do povo. Tenho muitas lembranças dela; agora, guardo duas em especial. Uma, a primeira foi no dia em que fomos entregar centenas de foices, enxadas e facões para mais de mil trabalhadores e trabalhadoras que estavam sem ferramentas para trabalhar, foi lindo, inesquecível. Naquele dia ouvi muitos trabalhadores chamarem dona Maria do Carmo de Mãe da Pobreza. A outra foi um evento no Karnak, era muita gente com faixa de agradecimento, saudações por tudo que ela fazia pelos mais pobres do campo e da cidade.
Chagas Rodrigues fazia questão de reafirmar, em todas as ocasiões, que
seu compromisso com o povo era uma espécie de missão dada por Deus e que lhe
fora confirmada quando os piauienses o escolheram para governar o Piauí. Seus
adversários e até alguns políticos (UDN) a ele coligados não gostaram nada disso.
Chagas parecia não dar a menor importância ao fato. E isso ele demonstrou a partir
de sua posse, pois chegou a ser cáustico ao atribuir às elites conservadoras a culpa
pelo fato de o Piauí ser a unidade federativa mais pobre do Brasil. Para muitos, tal
afirmação era grotesca e hilária.
188
De fato Chagas Rodrigues, inegavelmente, fazia parte desse segmento
social que agora, ascendido ao cargo de governador, escarniava-o; ele nasceu,
cresceu e sempre viveu nesse meio. Ele descendia de uma das famílias mais ricas
de Parnaíba, principal cidade do norte do estado, a qual lhe assegurou uma
expressiva votação e o elegeu deputado federal pela UDN. O seu ingresso no PTB
se deu somente em 1954.
A retirada do Piauí dessa situação de extrema penúria e dificuldade de
trilhar o caminho do desenvolvimento exigiria um esforço incomum. Esforço que ele
próprio demonstrava, de modo convicto e altruístico, estar disposto a capitaneá-lo.
Lastro moral e principalmente político que ele, Chagas Rodrigues, tinha de sobra.
Superar aquela situação histórica de atraso lhe era imperiosa. A arrancada para tal
condição o governador a prenunciou na mensagem enviada à Assembleia
Legislativa em 1960:
É necessário que o povo piauiense compreenda – e isto já começa a verificar-se – que precisa confiar em homens de luta e coragem moral e cívica, para com eles à frente, de outro modo, acordar todas suas extraordinárias energias e, unido num trabalho de fé e patriotismo, superar-se a si mesmo, forjando seu glorioso destino. O pauperismo e o subdesenvolvimento piauienses estavam a exigir uma análise profunda, da qual se partisse para a programação administrativa, econômica e social [...] Os aspectos geopolíticos, geoeconômicos, demográficos de comunicações, transportes, energia, combustíveis, produção, comércio, educação, saúde e saneamento, financeiros, sociais e administrativos, foram cuidadosamente examinados, ponderados e estabelecidos em termos exequíveis para uma política de recuperação.
Como se percebe, a fala e as práticas do governador são emolduradas
dos principais ingredientes presentes nas ideias do populismo e do trabalhismo.
Mas, afinal, o que se pode entender desses dois conceitos? Como e a partir de
quais elementos o pesquisador identifica, dentre os variados tipos existentes na
Europa e América, os estilos de populismo mais adotado na cena política brasileira
e piauiense em particular? Qual o trabalhismo expresso na retórica do petebista
piauiense? Chagas era realmente um trabalhista? Que tipo de trabalhismo era
possível desenvolver numa região de economia estagnada e predominantemente
agrária como a do Piauí?
189
Longe de aceitar a ideia de conceitos como realidades dadas, modelos
prontos e discursos tradicionais reproduzidos pela imprensa, partidos políticos e pela
própria historiografia, sobre os governos de Vargas, Juscelino e principalmente
sobre João Goulart, enquadrando-os simplesmente como governos populistas, o
autor entende que a queda e o consequente desmonte do projeto nacional-popular
que seria levado a efeito por Jango e o PTB, foi resultado não de uma “crise de
modelo”, mas da ação de forças politicas conservadoras de direita que se
mobilizaram contra e desferiram um golpe não apenas no governo, mas na
democracia brasileira.
D’Araújo (1996) afirma que, ao ponderar em relação ao partido político ou
mesmo sindicato, a dupla Jânio e Jango faz a seguinte ponderação:
[...] o partido, além de se apoiar na estrutura corporativa, deveria ser um agente de mobilização popular. Partidos e Sindicatos deveriam atuar simultaneamente junto aos trabalhadores, visando ao crescimento eleitoral e à formação de ampla base de apoio para programas reformistas e nacionalistas.
Para a autora, o PTB nasce e se mantém ao longo dos anos como partido
fortemente centralizado, autoritário e com evidentes contornos carismáticos, girando
até 1954, em torno de Vargas. Segundo D’Araújo, essa situação foi modificada com
a morte de Vargas e o consequente controle do Partido por outras lideranças como
Brizola e Jango.
Desde a era Vargas, a colonização e a reforma agrária eram interpretadas
como fatores essenciais à modernização da agricultura, à formação de um mercado
interno consumidor e à efetiva industrialização do país. Tal debate e perspectiva
ganharam vitalidade entre nacionalistas e trabalhistas dos anos 50 e principalmente
os membros do PTB, Partido Trabalhista Brasileiro, destacaram-se na luta política
pela reforma agrária. Exemplo de luta pela reforma agrária o deputado Josué de
Castro (PTB/PE) defendia a seguinte posição:
[...] é hoje de consenso de todas as nações que a estrutura agrária brasileira, arcaica, está superada, e não satisfaz às necessidades da nossa expansão econômica. Todos nós que nos batemos pela emancipação econômica brasileira, estamos certos de que só podemos alcançar nosso objetivo através da industrialização intensiva. Temos consciência de que não se atingirá esse estágio sem uma agricultura suficientemente forte, estruturada em bases racionais, de modo que forneça as matérias-primas indispensáveis à industrialização e os bens de subsistência necessários à alimentação das massas que se deslocarão do campo para a indústria.
190
Enquanto Josué de Castro reivindicava a necessidade de um setor agro-
pastoril moderno e racional, que sustentasse o processo industrial, e via na reforma
agrária um meio de atingir tal objetivo, outras figuras de relevo no partido como o
próprio governador Chagas Rodrigues e o deputado Osvaldo Filho (PTB/PE) eram
mais radicais e criticavam, abertamente, por exemplo o dispositivo constitucional da
Carta de 1946, que estabelecia a “prévia” e “justa” indenização em dinheiro aos
proprietários que tivessem terras desapropriadas. Para o deputado:
[...] se tornou verdadeiramente impossível a realização da reforma agrária ao se estabelecer que a desapropriação se faria apenas mediante a prévia indenização em dinheiro, [...] Na verdade, devemos ter a coragem de afirmá-lo: aquilo de que padece este país é possuir vinte milhões de semiescravos. A abolição da escravatura ainda não se realizou no Brasil integralmente [...] O trabalhador rural neste país não tem direitos. A ele não se estende a legislação trabalhista; ele trabalha de sol a sol, acorda de madrugada e entra pela noite: não tem direito a férias, a salário mínimo a nenhum benefício que a legislação já assegurava a todos os trabalhadores das nações civilizadas.
Para o deputado que tinha uma visão mais severa de reforma agrária,
indenizar os proprietários não era fazer reforma e transformação pela base do país,
era dar prêmios a quem já tinha expulsado de forma violenta os camponeses por
meio de cercamentos e grilagem. Além dessas, existiam outras divergências entre
os integrantes do PTB em relação à ideia de reforma agrária, o próprio
governador Chagas que defendia em discurso uma reforma agrária mais
profunda, na prática desenvolveu um processo mais moderado que deveria,
segundo suas próprias palavras, partir inicialmente de um planejado e
cauteloso programa de distribuição das terras públicas aos trabalhadores e suas
respectivas famílias. Igualmente defendia empréstimos de terra sem cobrança de
pagamento, a desapropriação com a devida indenização em moeda
corrente e, somente em último caso, com pagamento com títulos da dívida
do tesouro. (mensagem do governador de 31 de janeiro 1961, p. 25/26,
mensagem n 98.)
O modelo político-administrativo levado a efeito pelo governador Chagas
Rodrigues tem sido analisado de diversas maneiras, (Medeiros, 1996, p. 69) diz que:
191
“a administração estadual consegue capitalizar e encarnar com grande força as ideias reformistas: populismo, desenvolvimentismo – industrialismo, nacionalismo. O jornalista A. Tito Filho em resumo feito ao jornal O Dia (05.06.60 p 3) afirma que o governador depois de desiludido com as perspectivas de atuação da SUDENE no Piauí assume um discurso mais radical. Nas comemorações de 1º de maio de 1960, o governador se posiciona com veemência. [...] deve ser construído um mundo novo sobre o mundo velho do atraso e do pauperismo, [...] o homem não será mais explorado pelo próprio homem,[...] tudo farei contra o latifúndio para desapropriar terras e entregá-las aos trabalhadores e suas famílias.
Os grandes proprietários de terras, por sua vez, atribuíam ao governador
uma identidade comunista, oportunista e demagógica. Em matéria veiculada no
jornal Folha do Nordeste de 09/03/62 p. 2, denominada O Arlequim, Simplício
Mendes assevera:
“Há também o Arlequim político, isto é, o homem sem ideias próprias, sem firmeza de princípios, personificação do oportunismo, da demagogia que falseia que ilude, que aparenta moral, mas verbalista e arrojado falador, anda a cata de êxito, a qualquer preço, sempre encobrindo a verdade, as realidades evidentes, com as máscaras diversas e bem confeccionadas da mentira, elevadas à altura de um programa. É o ridículo, o mistificador, é o intrigante e o aventureiro, afivelador de todas as máscaras em perene carnaval.
Em outra matéria, desta feita veiculada pelo jornal Folha da Manhã em
06/04/1961 p. 01, o alvo é o governador e suas práticas assistencialistas. O autor
assim se refere:
“ilude-se o homem do trabalho com uma falsa assistência social,
distribuída pelos Institutos de Previdência que nada mais são do que meio de uma
propaganda individualista, representada nos páreos benefícios de ordem puramente
demagógica.”
Como se percebe são muitas as críticas feitas ao governador e ao seu
modo de fazer política. Embora o ideário defendido pelo PTB, isto é, o trabalhismo,
fosse constituído de valores e princípios que já povoavam a cabeça de alguns
segmentos da sociedade antes mesmo da criação do partido, convém ressaltar que
tais ideais tinham sentido e impactos diferentes em cada região do país. Por que
isso acontecia? Evidente que sendo a sociedade brasileira caracterizada por
importantes clivagens – regionais, econômicas, culturais e políticas – e que somente
192
conviveu com a obrigatoriedade de partidos organizados nacionalmente no pós
Estado Novo, é recomendável observar-se que o grau de representatividade e a
força política dos partidos estavam diretamente relacionados ao poder do grupo que
os comandava em cada região e estado do país.
Essa era uma situação que podia facilmente ser percebida no Piauí, onde
o PTB somente se tornou um partido importante com alguma representatividade,
depois da chegada de nomes já consolidados na política como do senador Matias
Olímpio, deputado federal Chagas Rodrigues e outros nomes como Ribamar de
Castro Lima e Alberto Bessa Luz. Antes, sob o comando do jornalista João Emílio
Falcão, a legenda além de não ter qualquer expressão eleitoral no estado ainda
deixava de receber recursos e apoios por meio de obras. Também pouco participava
da grata distribuição de cargos federais aos correligionários no estado.
Essa condição de partido nanico foi alterada e o PTB passou, depois da
chegada dessas personalidades, a disputar em condições mais igualitárias os pleitos
municipais e estaduais, chegando finalmente à vitória com Chagas Rodrigues em
58. No poder o movimento do governador Chagas, no sentido do apadrinhamento
dos sindicatos aos órgãos da administração, como o Ministério do Trabalho, foi
bastante intenso, tanto assim que no caso do Piauí, esses sindicatos cresciam sem
influência de outro grupo mais à esquerda como o Partido Comunista. Isso porque a
única força que realmente disputava com o PTB, era a Igreja por meio da ação de
Dom Avelar, ainda assim, os resultados eleitorais desse não foram expressivos junto
a esse segmento social.
O governador Francisco das Chagas tinha conhecimento das muitas
tendências ideológicas que se alojavam no interior de seu partido. Tendências que
variavam desde os nacionalistas, passando por reformistas até o grupo defensor do
chamado pragmatismo e idealismo político. Chagas sabia também que a
musculatura que seu partido possuía em esfera nacional e que permitia a João
Goulart, a partir de um variado leque de forças trabalhistas e de esquerda como o
próprio Partido Comunista, levantar bandeiras mais profundas e até radicais. A força
politica do PTB em nível nacional não se verificava no Estado onde a sigla foi
sempre uma força coadjuvante, mesmo durante seu governo.
Nesse sentido Chagas Rodrigues que fazia parte do grupo identificado
como Pragmático, defendia o uso da máquina partidária como instrumento de
193
prestação de serviço de assistência ao povo, com o firme propósito de “conquistar
as massas trabalhadoras”. O governador também sabia que essa posição tinha
cheiro e sabor assistencialista e clientelista, já que estimulava e esperava das
classes trabalhadoras laços de fidelidade e gratidão ao sindicato, partido e governo,
principalmente em momentos eleitorais.
Por todas essas razões, Chagas temia que sua obra trabalhista no Piauí
entrasse para a vida da classe trabalhadora e para a história social do estado como
uma obra inacabada, pois em um único governo não teria condições de consolidar
seu projeto e mais, ele temia que seu sucessor operasse no sentido contrário ao seu
projeto, desmobilizando os trabalhadores do campo e da cidade, dificultando ainda
mais a libertação de homens e mulheres que representavam, no seu entendimento,
a maior riqueza do Piauí.
Embora as preocupações do governador fossem legitimas é preciso
reconhecer que sua gestão fora marcada por uma politica claramente voltada para o
atendimento das muitas demandas oriundas das classes trabalhadoras,
especialmente dos camponeses. Chagas Rodrigues não apenas orientou sua
administração no sentido de atender reivindicações e demandas, mas também no
sentido de organizar e fortalecer as entidades representativas desses trabalhadores
fossem sindicatos, associações e as próprias ligas camponesas.
3.3 Entre a realidade e o sonho: a promessa de (re) fundação do Piauí pela via
da modernização conservadora.
Ainda durante a campanha eleitoral para o governo do estado, muito
possivelmente movidos pelo combustível da emoção, da dor pela perda dos
membros inicialmente indicados para compor a “chapa das oposições coligadas”, e,
pelo compromisso de transformação, especialmente para e em benefício dos mais
necessitados, Chagas e seus correligionários correram o Piauí de Norte (Parnaíba) a
Sul (São Raimundo Nonato) levando a promessa de (re) fundação agora, pela via da
modernização, ainda que conservadora, do Piauí. O então candidato sabia por certo
que esta era uma tarefa difícil, cara e lenta, porém, politicamente possível, bastava
para isso alguém destemido para iniciar. Nesse intento buscou primeiramente forjar
194
um conjunto de alianças, em nível local, regional e até nacional, depois estruturar
uma competente e comprometida equipe de trabalho, para tornar possível seu
projeto transformador pela via da modernização do Piauí.
Para Chagas, a dívida política e social da União para com o Estado era
muito mais fruto da inércia da classe política local do que pela falta de sensibilidade
e disposição do governo federal.
No entendimento das “oposições coligadas”, havia chegado o momento
da histórica coincidência da necessidade com a oportunidade, pois a instalação em
esfera nacional de uma proposta de modernização que incluía a ampliação e
modificação da produção industrial brasileira, até então totalmente tutelada
pelo estado, por uma, que mantivesse a linha desenvolvimentista liberal, adotasse
outras estratégias de inclusão ampliando ainda mais os investimentos para o
Nordeste.
Nessa perspectiva, que promovesse a integração do interior com o
litoral, o que se daria por intermédio do fortalecimento da malha rodoviária,
uma das prioridades do governo. Também fomentasse o desenvolvimento da
região através da criação de agentes financeiros como o Banco do Nordeste
e da SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, sendo
esta última criada com a incumbência de aprofundar estudos sobre a
situação socioeconômica da região e encontrar soluções imediatas para os
mais graves problemas. Foi criado ainda o Departamento Nacional de Obras
contra a Seca – DNOCS. Todos esses investimentos levaram o Estado
e os piauienses a acreditarem que agora, finalmente, havia chegado a vez do
Piauí.
Ressalta-se, porém, que a questão da reforma agrária, principal
reivindicação dos trabalhadores e outras demandas de interesse do Piauí foram
deixadas de lado, pois a SUDENE tinha seus interesses voltados quase que
exclusivamente para o Ceará, Bahia e Pernambuco, ficando o Piauí fora dos
interesses dessa superintendência. Fato ilustrativo desse comportamento pode ser
identificado nas orientações dadas por esta superintendência na solução de dois dos
principais problemas do Piauí. Sobre essas orientações, Felipe Mendes assim se
expressa:
195
“Pelas orientações do Celso Furtado, o problema de energia do Piauí, por exemplo, deveria ser resolvido com a ampliação da usina termo elétrica de Teresina e de Parnaíba, assim somente essas duas cidades teriam energia permanente por 24 horas, e as demais cidades? Na questão dos transportes, ele mandou desativar, por exemplo, a construção de várias linhas de trem, exceção feita à linha Parnaíba - Teresina e Teresina – Fortaleza, as demais por exemplo, Teresina -- Paulistana, que poderia ser hoje a ligação com o nosso semi-árido transportando nosso minério e também o porto de Luís Correia, pois as prioridades eram os portos de Recife, Fortaleza e Salvador.[...] A SUDENE não considerou o Piauí como área de atuação para o desenvolvimento.
Evidentemente que Chagas Rodrigues e seus apoiadores sabiam que nada
“cairia do céu” gratuitamente e continuou acreditando muito nas ações da SUDENE,
por isso todos precisavam de muita mobilização para conquistar o que lhe era devido,
nesse sentido continuou sua luta, acreditando nas ações que a superintendência
poderia fazer pelo Piauí, conforme se pode perceber de suas palavras:
“Acreditamos na SUDENE, que talvez seja a última esperança de solução dos problemas nordestinos. Se falhar, na SUDENE que é sistematização, coordenação, planejamento, teremos então, realmente, uma situação crítica no Nordeste. Temos que resolver os problemas do Nordeste encarando-o como um todo e à base de estudos, à base de análise, à base de planejamento. (O Dia, n 985, p. 1 de 31 de maio de 1962)
A cobrança da dívida da União para com o Piauí era recorrente e já havia
sido lembrada em discurso pelo ex-interventor durante o Estado Novo, Leônidas
Melo; -- “ser o Piauí o estado mais pobre, mais esquecido, mais abandonado, mais
desprezado pelo Governo Federal todos sabemos” [...] e segue dizendo: “se o Piauí
fosse reivindicar tudo o de que necessita não sobraria vez para mais nenhum outro
Estado, pois ele não tem nada e desse nada, o governo lhe toma para beneficiar as
regiões do sul do país”(Folha da Manhã,1959, p. 4).
Também respaldava o candidato a governador na perspectiva de
viabilizar suas promessas de campanha à compreensão que ele tinha do novo papel
e responsabilidade que o poder público (Estado) havia assumido a partir década de 50,
especialmente em relação aos mais pobres da cidade e do campo. Nesse intento, a
fim de amenizar e até mesmo eliminar conflitos sociais que podem aflorar quando a
população tem seu nível de subsistência comprometido, o Estado passou a adotar,
196
particularmente em período de seca e ou de cheias, as chamadas frentes de
emergência que trabalhavam nos serviços de construção de açudes, rodagens e
aberturas de estradas e nas chamadas “operações tapa buracos”, dentre outras frentes.
Essa situação foi narrada pelo senhor Francisco Alves de Macedo
Sobrinho, servidor do DNOCS, à época, alistado como diarista na rodovia Castelo –
Campo Maior onde trabalhou nos anos 1958 e 1959, sendo depois servidor
nomeado em 1964, no qual atuou na construção do açude de Pio lX e em outras
áreas até 2001 e depois finalmente se aposentou por invalidez. Sobre as frentes de
serviço, ele conta que:
“Era muita gente trabalhando nessas frentes. Formava turma de 300,400 e chegava a 500 homens trabalhando, era tudo dividido. Uns ficava cavando a piçarra, outros carregava nos carros de mão e os outros ficavam espalhando o material que vinha nos carros. Serviço muito pesado de sol-a-sol, o dia todo a semana inteira. Era assim numa semana, na outra trocava tudo. Quem tava no carro de mão ia espalhar a piçarra, quem tava espalhando ia cavar e assim todo mundo passava por todas as tarefas. Tinha também o apontador, era uma pessoa que sabia anotar, conferir e botar para assinar a folha. Quando o cabra era duro e interessado ia mudando de trecho e rodava o Estado todo nas frentes de serviço. Quase todo mundo vinha da roça e virava cassaco.
Assim, a política de assistência aos camponeses – retirantes ou
flagelados, foi além da abertura de vagas nas frentes de trabalho, como descrita
acima para ocupar mão de obra ociosa, em período de escassez; o governo
interferiu ainda através de entidades como o SERSE e outras, também no mercado
de alimentos, regulando os preços e o abastecimento. Além dessas ações,
distribuíam medicamentos, cobertores, redes, cestas de alimentos, dentre outras de
caráter puramente assistencialista, mas que se mostravam oportunas e essenciais
naquele mar de miséria e sofrimento. Contudo, embora essas ações e outros
programas fossem efetivamente desenvolvidos, ressalta-se que, muito mais que aos
camponeses pobres, tais práticas fortaleciam os coronéis e o poder público, cada
vez mais importante na vida daqueles homens e mulheres abandonados pelo
estado.
Movido pelo ideal de transformação da realidade social e econômica a
partir da base e, progressivamente reduzir o poder privado dos latifundiários sobre a
197
classe trabalhadora, especialmente dos trabalhadores agregados e dos que viviam
vendendo sua força de trabalho por falta de terra, iniciou seu próprio projeto de
Reforma Agrária em etapas.
Nesse intento, primeiramente autorizou a concessão de lotes de terra
para trabalhadores rurais na região de São Vicente, Fazenda Soares, Lagoa do Sítio
para fins de Reforma Agrária. Em seguida, no dia 28 de novembro de 1959 enviou
para aprovação pela Assembleia Legislativa a Lei Complementar 1.908, que
autorizava a locação de áreas territoriais do patrimônio do estado, de até 20
hectares, para famílias pobres com a determinação de que se fixassem no território
locado. (Mensagem do governador 1961.p 44)
Com essa medida, o governador efetivamente retirava do papel e dos
sonhos, dele e de muitos piauienses, colocando em prática seu projeto de Reforma
Agrária e aumentava, em paralelo, a resistência dos latifundiários na sua maioria
alojados no PSD. Também fornecia munição para a imprensa e outros setores mais
conservadores contra ele, Chagas pessoalmente e contra seu governo como um todo.
A conjuntura econômica e política do Piauí dos anos 50 e 60 parecia ser a
mesma dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, quando da implantação da
chamada “Política dos Estados”, pelo então presidente Campos Sales ainda na
transição do século XIX para o XX (1898 e 1902).
Para Sales, “era dos Estados que se governava a República”, e continua
“A política dos Estados [...] é a política nacional”. Contudo, enquanto no sudeste se
assistia à decadência econômica dos fazendeiros e o consequente enfraquecimento
do poder político dos coronéis em face de seus dependentes e rivais, no Piauí, essa
situação mostrava-se inalterada com os coronéis dominando a cena econômica e
política e exercendo ainda grande poder sobre os governadores, influindo
decisivamente em suas eleições e governabilidade.
Evidencia da situação posta, foi o resultado eleitoral nas eleições de
1958, não em relação ao cargo de governador propriamente, mas naquilo que se
referia a influencia dos coronéis no sentido de orientação a votação nos candidatos
por eles apoiados. Prova cabal dessa força eleitoral se percebia na transferência de
votos para os cargos executivos municipais e legislativos estaduais. Essa influência era
ainda maior nas povoações onde inexistia qualquer foco de urbanização e mobilização
de trabalhador, nesses lugares o peso eleitoral do chefe local era quase ilimitado.
198
Em regiões nas quais os trabalhadores recebiam orientações como as
que advinham da Igreja, inicialmente através de programas de formação comunitária
e tempos depois por meio das aulas do MEB que as desenvolvia a partir de uma
perspectiva de conscientização, trabalhando temas que levavam os trabalhadores e
suas famílias a compreenderem mais e melhor a dinâmica da sociedade, faziam
muita diferença. Nesses ambientes, o resultado eleitoral, embora ainda dominado
pelos tradicionais grupos, já revelavam mudanças importantes nos números e às
vezes no próprio resultado.
As Oposições Coligadas, a exemplo do que se afirmou acima, “venceram
o pleito para as vagas de governador e senador, com a coligação PTB-UDN,
alçando resultados superiores a 30% nas cidades Teresina, a Capital e nas três
outras maiores cidades do Estado – Parnaíba - terra do candidato a Governador,
Floriano e Picos, essas duas últimas na região sul do estado. Esse mesmo
desempenho não foi atingido em nenhuma das cidades menores onde o poder do
chefe político local era notório e se refletia em votos a favor do candidato que este
apoiasse. Exemplo dessa presença pode ser constatado no resultado eleitoral da
cidade de José de Freitas, que mesmo sendo uma extensão de Teresina, o
candidato governista teve 1.835 votos contra o candidato da oposição, que obteve
apenas 130”. (CASTRO 1958, p.37).
Para Oliveira Viana (1949), a manutenção e perpetuação da estrutura
clânica que se espalhava Brasil afora e que se sobrepunha às exigências eleitorais
deu origem a vários clãs eleitorais dominados por ricas e poderosas famílias que
comandavam o poder no interior do país. Ainda segundo Viana, a origem do poder
político desses grupos familiares se deve a uma base econômica essencialmente
associada à posse da terra.
Nessa mesma perspectiva, Martins (1981 p 28) postula que:
“na cultura popular camponesa, as relações ‘de favor’ aparecem como uma obrigação inerente ao direito de propriedade do fazendeiro. Sendo assim, a terra é uma concessão que exige uma contrapartida. Apenas a quebra desse pacto – o alijamento brusco de suas condições objetivas de sobrevivência – golpeou o/a trabalhador (a) e pode, em alguns casos, servir como fator ‘libertador das consciências’, possibilitando ações associativas horizontais.
Nesse mesmo sentido, Leal (1949) afirma ser o coronelismo:
199
“um sistema político nacional, baseado em barganhas entre o governo e os coronéis. O governo estadual garante, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores dão seu apoio ao presidente da República em troca de reconhecimento por parte deste de seu domínio no Estado.
No Piauí, a trilogia grande propriedade, família e poder, apesar de
caracterizar o país inteiro, parecia mais recrudescida e, ainda que remetesse a
tempos mais longínquos, ganhou maior dimensão e clareza na formação de
agrupamentos estaduais com lideranças fortemente personalizadas, como
Eurípedes de Aguiar, governador de 1916 a 1920, Matias Olímpio, governador
de 1924 a 1928, além de outras como os FREITAS, ALMENDRA ,GAYOSO,
PACHECO e PORTELA.
Era contra o poder dessas oligarquias que transformavam o estado numa
“fazenda familiar” que se transferia indefinidamente pelas gerações, passando de pai
para filhos e netos, e onde a ausência de identidade ideológica, política ou mesmo
programática dos Partidos Políticos forçavam principalmente, a partir da
cooperação familiar e econômica, a supremacia dos interesses familiares em
relação aos interesses da sociedade, que o governador afirmava se insurgir. Foi
exatamente essa situação que fez com que Chagas Rodrigues acreditasse
que aparelhar o estado, fortalecer a classe dos trabalhadores bem como suas
entidades representativas e desenvolver a economia, principalmente a partir do
comércio, indústria e serviços, gerando maior distribuição de riqueza, fossem para
ele as únicas armas possíveis de libertação do Piauí.
3.4 O assistencialismo como capital político: o papel do Serviço Social do
Estado – SERSE; e da primeira dama, Maria do Carmo, a mãe dos pobres.
Enquanto ele empreendia//Trabalho excepcional//Sua esposa – todos sabem//Dava-lhe força total//O Serviço Social//Aos pobres, aos desvalidos//Esta senhora olhava//Com sua equipe atuante// Pra eles nada faltava//Dava-lhes roupa e
comida//Tudo o que necessitava//Seu nome ficou na história//Do Piauí agradecido// Dona Maria do Carmo//É sempre um nome querido//O povo não a esquece//Pelo
seu dever cumprido [...]
200
Para Orlandi (2007, p),para se compreender como a linguagem produz
sentido, é preciso relacioná-la à sua exterioridade, ou seja, trabalhar com a relação
entre a língua, o discurso e a ideologia. Isso equivale considerar o sujeito como
sendo interpelado pela ideologia, já que é através das marcas ideológicas que a
língua faz sentido e é através dessa que ele produz sentido.
O uso do cordel nesse caso retratando a atuação do SERSE e da esposa
do governador, Maria do Carmo, identificada como “a mãe dos pobres”, tem por
objetivo servir como um espaço de resgate da memória e de História que subjazem
ao texto e que são revelados por meio de discurso. Também justificam seu uso o
fato de servir como registro da memória de um povo que se utiliza dos relatos que
são parte de sua cultura, de seu folclore, exercendo, dentre várias funções, a de
guardar essa memória coletiva por meio de um registro escrito, por intermédio da
memória individual que seria do sujeito cordelista, como a narração daquilo que ele
presenciou, os fatos.
O sujeito – cordelista, portanto, faz o papel de cronista do seu tempo, do
sujeito e historiador, que é testemunha e, portanto, faz história – testemunho
observando, criticando, registrando os fatos e acontecimentos da vida social, política
e econômica que ficam em sua memória. Ele convoca o leitor a acreditar em sua
narrativa como verdadeira.
Acreditar ou não em sua versão dos fatos exige por parte do leitor um
exercício interpretativo do discurso. Diante disso, fica evidente a relação entre o
discurso, que é veiculado em um determinado gênero discursivo e sua função
histórica – social, a qual é influenciada por uma memória discursiva social e coletiva,
ou mesmo individual, portadora de informações que edificam verdades que
possibilitam o exercício do poder.
Nas estrofes, o sujeito cordelista se prontifica a fazer uma narrativa
verdadeira baseada no que ficou na história. Conta como a primeira dama, a quem o
Piauí era grato, tornou-se braço direito do governador, limitando-se ao texto, a narrar
os fatos, as boas ações em favor dos pobres. A bondade e a capacidade de assistir,
ajudar dando comida e roupas aos pobres e humildes são virtudes exaltadas na
pessoa da primeira dama e no próprio serviço social.
O que se percebe nesse discurso é um reforço da versão oficial da
história, cuja imagem do governador e da primeira dama é construída como de
201
pessoas voltadas para o trabalho e assistência aos mais pobres e que cumpriram o
dever. Esse cumprimento de dever é confirmado com a gratidão do povo que não
esquece. Essa imagem que o governador e também a primeira dama se esforçaram
para construir junto ao povo começou a ser produzida muito antes de ocupar o
Palácio de Karnak.
A experiência de dona Maria do Carmo remetia aos trabalhos de
assistencialismo que ela já desenvolvia nas empresas da família ainda na cidade de
Parnaíba e ele, agora governador, iniciou tal trabalho nos tempos de advogado
militante no SESI, Serviço Social da Indústria no Rio Janeiro. O uso pelo governador
e também pela primeira dama da prática do assistencialismo como importante
instrumento político, será objeto de análise nas páginas que se seguem.
Quando assumiu o governo do estado, em janeiro de 1959, o governador
Francisco das Chagas Caldas Rodrigues encarnava não somente a esperança dos
mais de 100 mil eleitores que esperavam dele o cumprimento das promessas feitas
durante a diminutíssima campanha rumo ao Palácio de Karnak. Ele – na condição
de protagonista do maior, ainda que incipiente discurso trabalhista – para além da
esperança de eleitores, correligionários e apoiadores do PTB e também da UDN,
personificava a promessa de uma administração que rompesse com os padrões
oligárquicos dominantes até então. Em razão disso, esperava-se que ele
transformasse a vida política e econômica do estado; e que, preferencialmente,
nesse bojo atendesse aos anseios de milhares de homens e mulheres
desamparados da cidade e do campo que acreditavam em sua promessa de “mudar
o Piauí”.(O DIA.07.12.1958, p.8)
Solucionar ou minimamente reduzir tais anseios, intensamente vividos
pela população pobre e de há muito reclamados, somente seria possível – e Chagas
realizou isso, com assistência médico-hospitalar; com escolas, praticamente
inexistentes no interior do estado; com distribuição de sementes para possibilitar o
plantio das roças, principal e muitas vezes a única fonte de alimentos das famílias no
campo; com perfuração de poços, para a distribuição de água canalizada, pois as
principais fontes (rios, lagoas, poços e até cacimbas) ou secaram ou eram muito
distantes, impondo dor, sofrimento e humilhação principalmente às crianças e
idosos, segmentos sociais mais vulneráveis e, portanto, carentes de uma ação bem
mais efetiva e imediata do governo.
202
Uma alternativa a partir da qual se dava a intervenção do estado era
através das frentes de serviço, assegurando mesmo que precariamente a dignidade
do trabalho e da renda para milhares de agricultores chefes de famílias espalhados
pelo interior do estado. Ressalta-se, porém, que a transformação dos camponeses
em ‘operários’, ‘cassacos’ representava outro golpe naqueles agricultores de origem,
que, não tendo alternativa, foram destituídos de suas identidades para dessa
maneira continuarem mantendo a vida de suas famílias, ainda que para isso
perdessem as suas.
No intuito de prontamente iniciar sua obra transformadora – mesmo
lançando mão de medidas assistencialistas –, Chagas Rodrigues enviou mensagem
à Assembleia Legislativa determinando a imediata abertura de frentes de serviço,
distribuição de sementes e cestas básicas, além do cadastramento das famílias mais
castigadas pela seca, que seriam alvo de outras futuras ações. Para fazer frente
àquela situação de total calamidade, o governador esperava contar também com
indispensável contribuição do DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a
Seca – que naquele ano (1959) foi obrigado a dar início a novas frentes de serviço,
mesmo não tendo recursos planejados, conforme se depreende do relatório:
Embora com o programa de construções de rodovias limitado, inclusive por orçamento, a conclusão de obras que faziam parte do plano do Departamento de Secas, a crise climática, obrigou o inicio de novos serviços para permitirem socorro a maior número de operários (DENOCS. 1989, p.04).
Também, ainda na mensagem enviada à Assembleia, por ocasião da
abertura do ano legislativo, Chagas Rodrigues evidenciou a sua preocupação e o
seu compromisso, na condição de governador, com o estado e com a sua gente.
Uma reafirmação de promessa de campanha, agora em tom proclamativo:
[...] lutar, tenazmente, em todas as frentes, contra o atraso, o pauperismo e a miséria, ou seja, contra o secular subdesenvolvimento piauiense, para o que necessariamente, se fazia e se faz um clima de ordem e tranquilidade, compreensão e tolerância (MENSAGEM LEGISLATIVA. 1960, p. 14,livro ll)
Conhecedor dos principais problemas do estado e consciente de que
algumas soluções se dariam somente no longo prazo, o governador criou, a partir do
203
Decreto 292 de 31 de janeiro de 1960, o SERSE – Serviço Social do Estado, para
fazer frente aos problemas de pequena monta cujas soluções não demandavam
muitos recursos; suas execuções não demandavam licitações, eram relativamente
baratas e seus resultados se davam de forma imediata.
Assim, sob a responsabilidade de sua esposa, Maria do Carmo Correia
de Caldas Rodrigues, o SERSE iniciou o seu roteiro de ações efetivadas através de
uma grande peregrinação, de modo a levar às áreas mais pobres da capital, assim
como do interior, obras físicas como os abrigos Santa Teresinha e São Vicente em
Teresina, e o abrigo São José, em Parnaíba, que atendia 40 idosos. Outra ação criada e
levada a efeito por aquele novo órgão foi a instalação de cinco postos de alimentação
diária para a população carente, que ficou conhecida como a Sopa dos Pobres.
O SERSE continuou, ainda durante todo o governo de Chagas, a fazer
também distribuição semanal de pequenos auxílios financeiros a famílias
cadastradas e reconhecidamente pobres. Também fazia parte das atividades
assistenciais desenvolvidas pela presidente do SERSE, conhecida publicamente
como a Mãe dos Pobres, a realização de uma grandiosa festa de final de ano –
confraternização natalina – para encerrar as suas atividades do exercício findo, que
ficou conhecida como o Natal dos Pobres.
Na programação, constavam, além de um farto lanche, vários momentos,
todos voltados para crianças, idosos, gestantes e mendigos, que se viam
contemplados durante o grande sorteio de brindes que variavam de kits com
cobertores, mudas de roupas, maquinas de costura, brinquedos para as crianças e,
também, de cestas básicas de alimentos; estas distribuídas para todos os presentes.
Como era de se esperar as ações desenvolvidas pelo SERSE se
expandiram por todo o Estado do Piauí, provocando, principalmente em razão dos
custos para aquele momento e pelos resultados eleitorais previstos, duras críticas da
oposição que logo passou a denunciar as ações desenvolvidas pelo SERSE como
meramente assistencialistas e eleitoreiras.
Os números realmente eram grandiosos e assustavam principalmente
por se converter numa novidade política, tendo em vista que era a primeira vez que
uma primeira dama se colocava à frente de toda e qualquer atividade do governo,
204
não importando se na capital ou no interior, se na poeira ou na lama como se pode
depreender dos dois depoimentos que se seguem.
Dona Maria do Carmo era uma mulher destemida, dura. Ela andava só ou com o governador. Todas as vezes que um pobre dava de frente com ela e conseguia dizer alguma coisa ela ajudava; e quando não dava certo, ela pelo menos tratava bem todo mundo. Dona Maria do Carmo foi sempre uma mulher muito fina, educada e todo mundo admirava ela. Eu mesmo ganhei dela uma muda de roupa, certo que não deu para os meninos lá de casa, mas eu dei para os filhos de uma vizinha que era até mais necessitada do que nós lá em casa. Ela ajudou muito o governador Chagas. Ela trabalhava muito, todo dia (MANOEL MESSIAS, 84 anos, alfaiate e morador do bairro Primavera, em Teresina, à época).
Eu lembro que pra onde a comitiva do governador viajava Dona Maria do Carmo ia junto; Entregar mantimentos, medicamentos, inauguração de obras, especialmente obras de caridade, tipo abrigo ou mesmo quando descia para o interior entregar instrumentos de trabalho como foice, enxada, facão, essas ferramentas que o agricultor precisa para realizar suas atividades diárias. Me arrisco a dizer que Dona Maria do Carmo foi a maior primeira dama que vi trabalhar sem granfinagem. Ela enfrentava tudo para ajudar o marido e cumprir a missão dela. Para se ter uma ideia do trabalho realizado, em 1959, foram atendidas, aproximadamente, 2.300 pessoas; em 1960, 3.700 pessoas; em 1961, 4.500 pessoas, e a tendência era aumentar porque vinha gente de todo lugar (REGINALDO FURTADO, advogado, secretário particular, à época, do governador Chagas Rodrigues).
As ações administrativas do
governador Chagas Rodrigues iam muito
além das práticas assistencialistas
descritas acima, pois sendo um social-
trabalhista, tinha a convicção de que a
sua gestão deveria ser acentuadamente
marcada por mudanças efetivas na vida
dos piauienses, especialmente daqueles
que mais necessitavam de trabalho e renda. Assim procurou dar prosseguimento e
aprimorar o sistema estadual de planejamento, expandir a rede estadual de ensino,
criando escolas públicas para a formação e contratação de professores em Floriano,
Parnaíba e Oeiras, que representavam ao lado da Capital as principais cidades do
estado. Também procurou desenvolver uma política de valorização do servidor
Fonte: SERSE / Natal dos pobres.
205
público sendo o primeiro governador a pagar o salário mínimo; decisão somente
possível depois de sanear e equilibrar as finanças do estado.
Outra importante medida tomada pelo governador foi a instituição da
Assistência Judiciária do Estado, uma espécie de embrião daquilo que
viria ser a Defensoria Pública. Tal criação foi respaldada pela Lei Estadual
2.239 de dezembro de 1961. Além dessas medidas, o governador
procurou consolidar sua posição de gestor popular. Assim pautando-se, abriu as
portas do Karnak para receber comitivas de trabalhadores, da cidade e do
campo; participou e financiou eventos de classes trabalhistas, como o
Primeiro Congresso Piauiense de Operários e Camponeses, realizado em 1º de
maio de 1961; hipotecou apoio direto e irrestrito aos trabalhadores. Isso ficou
evidenciado quando custodiou pecuniariamente a criação da Casa dos Sindicatos
em 1959.
Ainda no ano de 59, o governador enviou à Assembleia Legislativa a Lei
Complementar 1.908 editada de 28.11, artigo 9º, aprovada naquela casa
pelos parlamentares – permitindo a locação de áreas territoriais do patrimônio
do estado, até 20 hectares, a pessoas pobres que não possuíssem nenhum
imóvel e dispusessem a se fixar no terreno locado. Também enviou
decreto determinando a desapropriação de terras não produtivas e as
disponibilizando à venda para os trabalhadores rurais pela metade do preço
em até 30 anos, implementando, assim, de modo pioneiro, a reforma agrária
no Estado do Piauí. Nesse seu vanguardismo, merece registro a criação dos
postos de serviço denominados de Comandos Rurais, objetivando a assistência
técnica ao homem do campo, distribuição de lotes de terra na capital e interior e,
também, a entrega de equipamentos de uso cotidiano como force e facão através do
SERSE para os trabalhadores rurais e suas respectivas famílias, conforme
ilustração.
Sabendo existir esse tipo de abertura e disposição de o governador abrir
as portas de seu gabinete no Karnak a todos que o procurassem indistintamente, o
líder camponês Luiz Edwiges assevera:
206
Fonte: Governador Chagas entregando ferramentas para trabalhadores rurais.
Umas poucas de vezes nós marquemos de falar com o governador lá no palácio, até que deu certo. Era uma equipe grande, mas ele só mandou entrar cinco. Eu, o Raimundo Galdino, o Gregório e o menino do Sindicato da Construção Civil, que não lembro o nome dele agora. Nós falamos muito dos problemas do homem do campo foi quando ele chamou o secretário dele para ver o que os camponeses mais precisavam naquele momento. E mandou que fornecessem foice, machado, enxada, facão, ciscador, essas coisas que o homem do campo precisava para fazer a roça. Ele disse que fazia questão de entregar. E, no dia marcado, foi mesmo. Foi uma festa bonita (entrevista realizada em 03.05.2015).
A mídia de então, notadamente a Rádio Difusora, pertencente ao
conglomerado dos Diários Associados; e O Dia, jornal diário pertencente à família
Miranda, opunham-se ao governador Chagas Rodrigues e o atacavam de forma
sistemática. Em razão disso, fundou junto com o amigo Walter Alencar, jornalista,
advogado e professor da Faculdade de Direito, a Rádio Clube de Teresina. O
propósito era fazer frente e também dispor de microfones para contrapor-se às
açodadas críticas de seus opositores veiculadas naquela emissora associada, e,
assim, servir de canal necessário ao esclarecimento junto à opinião pública.
207
3.5 Estrangeiro na terra pátria
Inicia-se este tópico, que encerra o terceiro capítulo relativo aos governos
de Chagas Rodrigues e Petrônio Portella, com uma pergunta pertinente e necessária
e recomendada em estudos com intenção – por menor que seja – de se converter
em pesquisa acadêmica, com rigor metodológico e científico necessários a qualquer
estudo que se proponha sério e com propósitos “utilitários” e práticos como é caso.
Tal questionamento deve aqui ser encarado como uma via, um caminho
no sentido de auxiliar no entendimento das várias interpretações possíveis acerca da
real importância para o Piauí e para os piauienses a passagem de Francisco das
Chagas Caldas Rodrigues pelo comando do estado. Assim, pergunta-se: por que
Chagas Rodrigues fez um mandato considerado por muitos como popular, voltado
para os mais pobres da cidade e do campo, especialmente se comparado aos três
últimos governadores que o antecederam com ações administrativas marcadas em
sua maioria por um viés trabalhista e mesmo assim não obteve correspondência
eleitoral no pleito de outubro de 1962?
Para o advogado, escritor e ex-deputado estadual Celso Barros Coelho,
do PDC, cassado durante o regime militar, Chagas Rodrigues foi vítima de pelo
menos três circunstâncias que comprometeram, momentaneamente, sua vida
política durante e logo após seu mandato de governador. Sobre essas
circunstâncias, ele faz a seguinte ponderação:
O Chagas era um homem habilidoso e paciente, mas também gostava de dizer o que pensava mesmo não devendo ou não podendo. Ele padeceu pelo fato de não ser um ruralista, já que era vinculado ao setor do comércio e da indústria, tanto pela família dele quanto da esposa, por isso falava tanto em reforma agrária, mesmo não tendo base política para realizá-la. Também foi muito castigado pela imprensa local, especialmente a Rádio Difusora e Jornal Folha da Manhã, na maioria pertencente aos grandes proprietários, que associavam a imagem dele aos comunistas ainda que de comunista ele não tivesse nada, pois era um burguês acostumado a iguarias, luxo e bons ambientes desde a tenra infância até os tempos de acadêmico de Direito no Rio de Janeiro. Finalmente, a meu ver Chagas sofreu forte oposição da UDN que era muito poderosa na capital e influenciava as maiores cidades do interior, particularmente depois que o governador Tibério assumiu e exonerou um verdadeiro exército de servidores e comissionados que passaram a exigir do ex-governador que tomasse uma posição e revertesse aquela situação. Isso efetivamente não aconteceu, o que prejudicou muito a imagem do então governador. Assim, sem o governo, na oposição e com imprensa toda contra ele não tinha muito o que fazer e só não perdeu pra deputado porque andou muito, tinha um certo prestígio e dinheiro para fazer a campanha.
208
Essa habilidade do governador também foi reconhecida e tornada pública
no artigo intitulado A Fleuma do Governador, de autoria do jornalista Cunha e
Silva:
Apesar de moço, o governador Chagas Rodrigues é um político sagaz e matreiro. Com calma e a algidez do britânico, não se apressa na solução de casos encrencados da política estadual. Homem de partido e conhecedor já das manhas dos políticos, deixa que o fator tempo resolva as pendências entre os grupos políticos em que se dividem os partidos que o apoiam [...] Os velhos chefes do PTB já perceberam que Chagas tem aspirações políticas mais altas [...] Seu governo lucrar muito com Jânio Quadros no Palácio da Alvorada. Jânio não é Juscelino que prometeu muito para o Piauí e nada fez por ele. (O DIA. 25.09.1960, p. 04).
O artigo 139, lV, da Constituição Federal de 1946 determinava que o
candidato no exercício de um mandato no executivo estadual para disputar no
mesmo pleito eleitoral outra vaga no legislativo federal – Senado ou Câmara – teria
que se desincompatibilizar enviando uma carta de renúncia à Assembleia Legislativa
com anterioridade de seis meses. O pleiteante só podia disputar outra eleição fora
do cargo. Ressalta-se que, pela primeira vez no Piauí, desde a República dos
Coronéis (1989-1930), um governador renunciava para disputar outro cargo eletivo.
Eleito para o mandato de deputado na Câmara Federal pelo PTB, para o
quadriênio (1963-1967) e reeleito agora pelo MDB para o período (1967/71), Chagas
Rodrigues teve seu mandato cassado em 29 de abril de 1969, com os direitos
políticos suspensos por dez anos, com base no (AI-5) Ato Institucional nº 5 que,
além de suspender os direitos dos eleitos, também impedia a convocação dos
suplentes.
No exercício do mandato que assumiu em fevereiro de 63, tornou-se vice-
líder da maioria e do PTB na Câmara, função que acumulou com a da vice-
presidência do PTB nacional. Continuando sua carreira de líder oposicionista,
assume em setembro de 1964, depois da destituição de Jango pelo golpe civil-
militar, a condição de vice-líder da minoria oposicionista o que lhe rendeu a missão
de combater o governo do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. No final
desse mesmo ano, assume a presidência nacional do PTB. Esse papel de
combatente do governo Castelo teria sido uma das causas de sua cassação mais
tarde, segundo alguns críticos.
209
Castelo Branco, líder do “grupo da Sorbonne”, ligado à chamada Escola
Superior de Guerra (ESG), ao assumir a Presidência da República, fê-lo – segundo
ele próprio assim afirmou – com o compromisso de instalar no país uma “democracia
restringida”, para o presidente e também para o bloco civil-militar que lhe dava
sustentação. O argumento foi o de que este era o caminho seguro para o estado
“reformular a economia e combater o comunismo promovendo simultaneamente a
consolidação do regime democrático ora correndo riscos”. Com poderes
gigantescos, o governo civil-militar de Castelo Branco promoveu prisões arbitrárias,
torturou opositores, aposentou, de forma compulsória, civis e militares, e muitas
lideranças do campo e da cidade foram mortas e outras desapareceram.
Para além dessas arbitrariedades, governadores e deputados eleitos e
muitas outras personalidades do mundo político, como João Goulart, Miguel Arraes,
Leonel Brizola e Carlos Prestes, somadas a outras importantes figuras do meio
artístico, perderam seus mandatos e outras foram expulsas do país. Outro duro
golpe na já combalida democracia foi a extinção dos partidos até então existentes e
a imposição do bipartidarismo; gestado pela cúpula militar com vistas a conter o
crescimento das oposições que, nas eleições de 1966, venceram as disputas dos
governos de Minas Gerais e da Guanabara, dois dos mais importantes estados do
país.
Em todos os estados brasileiros foram registradas arbitrariedades e toda
sorte de violência. E no Piauí não foi diferente; logo se fizeram sentir em todos os
níveis da sociedade, inclusive e principalmente nos setores que revelassem
qualquer arremedo de organização e contrariedade com o novo regime. No estado,
de pronto, foram cassados vários mandatos de deputados estaduais, efetivadas
prisões de lideranças estudantis e sindicais além de integrantes das ligas
camponesas. Na Casa do Estudante Pobre, houve um verdadeiro arrastão de jovens
que se contrapunham ao regime militar.
Petrônio Portella potencial candidato a governador do Piauí, para o
quadriênio de 1963 a 1967, representava o “fim de um caso” PTB/UDN, o retorno ao
centralismo administrativo e principalmente o retrocesso em relação às politicas
publicas voltadas para a classe trabalhadora e particularmente para o campo e,
antes mesmo da convenção para confirmar seu nome e aliança partidária, deu
210
indícios de que o direcionamento de sua administração teria um único comando, que
seria o seu, ou seja, o da legenda por ele comandada de forma soberana, a UDN.
Isso trouxe naturalmente mal-estar e descontentamento às lideranças que já lhe
acenavam apoio e aliança. Tanto que, ainda não sendo do conhecimento público;
mas, na realidade dos bastidores, já se comentava que o ele havia rompido
politicamente com Chagas Rodrigues.
As lideranças do PSD também viam na reaproximação com Petrônio,
assim como o próprio, o caminho mais seguro para chegar ao Palácio de Karnak e
de "quebra” derrotar a candidatura de Chagas ao Senado, implacando os nomes de
Sigefredo Pacheco e José Cândido Ferraz para as duas vagas em disputa. Vitorioso o
esquema Portella, como veremos mais adiante, começava a se consolidar no estado.
A condição de líder da oposição e de fervoroso combatente do
“castelismo” instalado a partir do golpe civil-militar de 1964 teria rendido aos
apossados do poder argumentação suficiente para cassar o mandato de alguns
parlamentares, dentre estes o de Chagas Rodrigues em 29 de abril de 1969. Sobre
tal acontecimento, o escritor Kenard Kruel tem a seguinte explicação:
“No dia 15 de abril de 1964, o marechal Castelo Branco, num processo conduzido pelo general Costa e Silva, que se designou ministro da Guerra, foi submetido aos votos do Congresso Nacional, como forma de legitimá-lo. Chagas Rodrigues foi um dos poucos parlamentares a não votar em Castelo Branco. Desde, então, passou a ter os passos vigiados pelos militares.]”( Kruel 2015,p 324)
Posição divergente e tão importante difundida quanto a anterior e
igualmente considerável, tem o jornalista, ex-deputado, vice–prefeito de Teresina (
1999-9999) e integrante da Academia Piauiense de Letras, Deoclécio Dantas, para
quem:
“No ano de 1962, quatro dias antes de renunciar ao cargo de governador para disputar vaga ao Senado Federal e à Câmara Federal, o governador Chagas Rodrigues contrariando os interesses dos 32 parlamentares estaduais e de dezenas de suplentes, vetou o projeto de Lei que elevava para 42 o número de deputados à Assembleia Legislativa do Piauí.” (DANTAS, 2008)
Para o jornalista, grande conhecedor dos “bastidores da política” local,
seus adversários de então com grande influência no comando da ditadura teriam
solicitado com muita obstinação a cassação de seu mandato.
211
Sem mandato parlamentar, com os diretos políticos suspensos e
impossibilitado de voltar à terra natal, permaneceu na capital federal onde exerceu,
além da advocacia, o magistério superior que ministrava no Centro Unificado de
Ensino de Brasília (CEUB) a disciplina de Direito Comercial. Ainda como
desdobramento de sua cassação, ficou impedido de comparecer ao sepultamento do
pai e de visitar a mãe, gravemente enferma. Essas e outras penalidades impostas
ao ex-governador fizeram com que se sentisse exilado na própria terra pátria.
Além desse sofrimento, num esforço da apagar seu nome da memória
dos piauienses, a própria imprensa local dominada ainda pelos adversários não
pronunciava intencionalmente seu nome, identificando-o quando necessário apenas
pela alcunha de ex-governador Caldas ou Rodrigues, nomes completamente
desconhecidos do grande público, da massa, do povo. Esse comportamento agredia
profundamente Chagas Rodrigues.
Espirituoso não se abate e escreve sob a inspiração de novos ventos, - o
poema “Estrangeiro na própria pátria” - que o trariam, com de fato aconteceu, de
volta à terra mãe, pela vontade popular, conquistando, agora pelo PMDB,
retumbante vitória política na eleição de 1982, a vaga de senador da República com
mais de 217 mil votos.
“Ouve, amiga, deve ser triste viver em terra alheia. Longe da pátria, longe da família, longe dos amigos. Porém, ainda mais triste é viver como estrangeiro na própria pátria, Com o mandato eletivo cassado, com direitos políticos suspensos, E proibido de rever a cidade natal, o estado querido e o povo amado.” Brasília, novembro de 1976.
Entre o contexto e o
pretexto: trajetória e representações
de Petrônio Portela no Piauí dos
anos 60.
Fonte: Govenador Petrônio Portella
212
3.6 A travessia de Petrônio pelo conveniente caminho do meio.
Muito já foi dito sobre Petrônio Portela. Sua notável e brevíssima vida
pública foi e tem sido objeto de acalorados debates dentro e fora da arena política.
“O Brasil não vai esquecer a contribuição desse grande homem para nossa história.
Eu o estimava muito” (D. Paulo Evaristo Arns); “Era uma figura excepcional de
homem público” (Teotônio Vilela); “Petrônio Portela era um homem talhado para o
desempenho político, acessível, de diálogo fácil, de espírito público, de grande
vocação política” (Tancredo Neves); “Tal foi sua proeminência na transição que seu
trabalho se confundiu com seu próprio nome. A expressão ‘Missão Portella’ virou
sinônimo de abertura política, de redemocratização”. (Marco Maciel)
Algumas dessas frases, todas proferidas por importantes nomes da
cena política, social e religiosa brasileira, foram cunhadas pelo jornalista, escritor e
membro da Academia Piauiense de Letras, Zózimo Tavares, e perfila a mais recente
obra do autor lançada em 2012, intitulada Petrônio Portella: uma biografia.
Nessa obra, são trazidos ao contexto, com inclinação e leveza sutis,
importante ressaltar, momentos da atuação pública desse valenciano que ocupou os
mais variados postos da vida política brasileira e piauiense em particular. Ele que
faleceu aos 54 anos de idade, no dia 6 de janeiro do ano 1980.
Ainda muito novo com apenas vinte e poucos anos exerceu, embora não
tenha sido eleito, pois ficou na suplência, a primeira experiência parlamentar, como
deputado estadual pela UDN. Depois, agora eleito, exerceu o cargo de prefeito de
Teresina, em seguida de governador de estado e senador da república por duas
vezes. Também foi presidente do Senado e Ministro da Justiça.
Para (Tavares, 2012, p. 15), Petrônio Portela teve uma vida pública “tão
curta e tão prodigiosamente densa em experiência humana e vivência dos
problemas essenciais, com as graves aflições da condição humana” que muito bem
lhe caíra a representação “o gênio da raça”. Tal juízo parece também ter sido
recepcionado por outras figuras proeminentes da “república de botas”. Tanto assim,
que o presidente João Figueiredo afirmou: “foi meu ministro da Justiça e tinha
chances de ser candidato à Presidência da República”.
Petrônio que ocupa a centralidade deste tópico é protagonista de alguns
eventos e situações no mínimo inusitadas. Também, embora em menor proporção
213
se comparado ao governador Chagas Rodrigues, tem sido objeto de variadas
análises e pesquisas.
Situação que tem merecido destaque entre as muitas nas quais teria se
envolvido, e que ganhou destaque nas rodas de conversas, nas ruas e até nos
noticiários de rádio e jornal do Piauí, foi, para muitos, a astúcia de ser um
“combatente deputado estadual durante o dia, proferindo duras e pesadas críticas ao
governador de quem era opositor e à noite, despido do uniforme político partidário,
da condição de parlamentar adentrar a casa do governador e cortejar sua filha,
Iracema de Almendra Freitas, com que mais tarde se casaria”.
Para o amigo e confidente Alfredo Nunes, Petrônio teria dito: “faço
oposição ao governo de Pedro Freitas (1951-1955) e não ao pai da mulher que
cortejo e que será a mãe de meus filhos”.
Embora não pareça algo pomposo, digno de ser relembrado aos olhos
dos menos atentos, outra peripécia de Petrônio, muito difundida no meio político, foi
juntar, embora com baixas, a sua UDN ao adversário mais ferrenho, o PSD, para as
eleições de 1963.
Outra atitude representativa de ousadia e habilidade política, postura
incomum para os padrões da época e que naquela conjuntura revelaria, segundo
Tavares, uma faceta humana do agora prefeito da capital, foi a decisão, ao assumir
a prefeitura contrariando todas as orientações dos que o cercavam, de autorizar a
construção de um ginásio-modelo em um bairro popular da capital densamente
povoado e sem escola, o Marquês, na zona Norte.
A ousadia está em eleger um bairro onde tivera baixa votação para
Prefeito, comportamento incomum nos gestores de então. Esta obra representava
desenvolvimento para a região e revelava um gestor moderno, sem rancor e
consciente de que deveria governar para toda a cidade, independente de sua
aprovação eleitoral.
Essa determinação e prática administrativas não costumeiras como
resposta política em relação ao eleitorado revelava, segundo Tavares, a vontade de
enfrentar o desafio da realidade educacional do estado, problema grave, mas
desconsiderado por muitos até ali e empreender, a partir de então uma nova política
no estado.
214
Como se sabe, Petrônio Portela é ainda uma figura sobre a qual muito se
fala e pouco se sabe. Principal articulador do processo de abertura para muitos e
grande apoiador e executor de missões militares que exterminavam a liberdade e a
própria democracia. Assim, sem qualquer consenso, a história desse piauiense
ilustre tem nessa pesquisa mais um capítulo que, sem qualquer pré-julgamento
apenas pretende ser mais uma fonte de informações e debates que possa na
medida do possível iluminar ainda mais essa triste página da história do Brasil e do
Piauí, em particular.
A alternativa mais plausível pensada pelo pesquisador para desenvolver
esse tópico que focaliza a postura hibrida de Petrônio Portella quando se colocou
contra o Golpe civil-militar de 1964 e, logo depois, além de apoiar, tornar-se seu
maior representante no Estado, foi lançar mão de alguns questionamentos? A busca
é entender a partir dos acontecimentos que envolveram a efetiva participação de
Portella como governador, senador e depois ministro da justiça, nos processos de
“combate”, adesão e atuação, agora na condição de mentor ideológico e articulador
político nos diferentes momentos de instalação, consolidação e abertura da ditadura
civil-militar que se abateu sobre o Brasil.
Com isso, entender como o curto período de vivência democrática
iniciado em 1946, aliado à própria fragilidade da democracia e as recorrentes
tentativas golpistas com instituições de regimes políticos ditatoriais por meio práticas
e estratégias de mudar para que tudo permaneça igual, contou com a habilidosa
participação desse piauiense do “século”, a partir de sua adesão e logo depois
apoio declarado ao novo regime.
Alguns questionamentos: Qual teria sido a principal motivação do
governador Petrônio Portela, um udenista convicto, para manifestar “apoio” ainda
que por pouquíssimas horas e, apenas com retórica intrapalaciana para deleite de
meia dúzia de entusiasmados apoiadores, à tese da legalidade, que manteria o
então Presidente João Goulart no poder? Porque o governador, mesmo sabendo da
irreversibilidade do Golpe, mobilizou alguns apoiadores e escreveu uma mensagem
especial ao Governador de Pernambuco Miguel Arraes, manifestando solidariedade
e apoio ao presidente, afirmando que não iria permitir que as forças reacionárias
assumissem o governo do país? O que explicaria a imediata mudança de posição de
215
Petrônio Portela que, depois de haver acertado com o deputado Celso Barros e a
professora Iracema do Santo Rocha de ocuparem uma radio local e falar aos
piauienses do golpe, o mesmo não compareceu e, ao contrario, declarou apoio aos
militares? Como explicar por que outros governadores, inclusive da própria UDN e
políticos de menor expressão, como deputados estaduais, perderam seus mandatos
e o mesmo não acontecendo com Petrônio Portela ? Além dessas, outras voltadas
especialmente para o entendimento da postura conservadora de Petrônio em
relação ao campo e as entidades organizativas dos trabalhadores, serão formuladas
ao longo desse estudo.
Segundo Tavares (2012): “guardadas as proporções, Petrônio Portela
optou por viver como Aquiles, filho da deusa Tétis, da mitologia grega. ‘Pouco,
intensa e perigosamente’ [...] Desde a infância pobre, no interior do Piauí, sua vida é
uma história de riscos, lutas e superações”.
Assim, também como o escritor citado anteriormente, guardadas devida e
respeitosamente as proporções, o autor se apropria de uma opinião apaixonada de
Jean Jacques Rousseau, sobre Maquiavel, numa passagem e nota do cap. VI do
livro lll d’ O Contrato Social, onde proclama: “[o] Príncipe de Maquiavel é o livro dos
republicanos”, pois “fingindo dar lições aos reis, ele as deu aos montes ao povo”,
posição justificada da maneira que se vê: “Maquiavel era um homem honesto e um
bom cidadão; porém, estando ligado à casa dos Médices, era obrigado, em meio à
opressão de sua pátria, a disfarçar seu amor pela liberdade. Só a escolha de
execrável herói é suficiente para mostrar sua intenção secreta; e a oposição das
máximas de seu livro sobre o Príncipe àqueles de seus discursos sobre Tito Lívio e
de sua História de Florença demonstra que este profundo político só teve até aqui
leitores superficiais ou corrompidos.”
Evidentemente que outras interpretações poderiam se citar, mas
optou-se por não fazê-las, pois seriam desnecessárias e por demais custosas; é
provável, pois que, assim como existam sobre Maquiavel tantas interpretações
quanto se ocupem a escrever sobre aquele florentino sobre o qual escreveu
Rousseau, também haja calculada a importância de um para com o outro, se
considerada a história universal e piauiense em particular, muitas interpretações
sobre Portella.
216
Também sobre Petrônio, como dito, coexistem múltiplas leituras
envolvendo sua atuação, de modo particular em relação ao golpe, seu governo e
sobre a trajetória política desse valenciano, que muito serviu ao regime de então.
Para o ex-deputado do PDC, Celso Barros Coelho (2014, p. 86), cassado
pelo golpe civil-militar de 1964, Petrônio agiu com profundo “discernimento e
oportunismo de ocasião”, mirando todo tempo seu futuro político, com mais
possibilidades de sucesso junto aos militares que viam na UDN, da qual ele Petrônio
era o principal nome no estado, uma base civil do golpe.
Para Jesualdo Cavalcanti (2006, p. 184), Petrônio já conhecedor das
prisões de Miguel Arraes, de Pernambuco, e Seixas Dória, de Sergipe, entendia ser
a hora de cuidar de “resgatar o incômodo manifesto e editar nova manifestação de
solidariedade, desta feita em favor dos novos donos do poder, em nome dos
interesses maiores do Piauí”, segundo afirmaria mais tarde o senador Helvídio Nunes.
Posição divergente adota o jornalista Zózimo Tavares (2012, p. 205)
quando afirma em relação ao posicionamento do então governador Petrônio Portela,
diante da crise política instalada no país, que: “relutava em adotar uma postura
pusilânime diante de fatos políticos e institucionais tão graves. [...] Tratou, então, de
se manifestar logo, comprometendo, inclusive, o próprio futuro e o da família. Sua
formação jurídica e sua consciência falavam mais alto.”
O jornalista atribui a um “golpe de sorte” a salvação de seu mandato,
sorte essa não facultada aos governadores Miguel Arraes e Seixas Dória (PR) e
outras personalidades políticas com as quais, horas antes, o Governador Petrônio
gravara um pronunciamento afirmando: “não quero saber qual é a posição dos
senhores, quero dar a minha: de defesa da legalidade, e ela só se faz íntegra
mantendo o mandato do Presidente da República (palmas!)... De maneira que julgo
injuriosa a pergunta dos senhores porque nunca fui homem de oportunismo. [...] A
minha ideia hoje expressada é a ideia de hoje, e será a de sempre na defesa
intransigente do povo, contra privilégios abusivos e caducos e que hão definitivamente
de ser destruídos pela vontade soberana do povo brasileiro (palmas!)”
Como se percebe a retórica legalista do então governador que arrancou
aplausos e palmas de seus correligionários e, quase que ato contínuo, mudou de
217
posição, passando não somente a defender, mas principalmente a pensar, articular
e executar missões dentro da nova ordem civil-militar imposta evidencia bem seu
perfil de contínua metamorfose.
Para Tavares, sobreviver a isso tudo, foi um golpe de sorte. Sorte
proveniente da “virtu”, aqui entendida como extraordinária capacidade de entender o
tempo e saber para onde o vento sopra em termos de política, antes da maioria dos
não virtuosos e afortunados.
Posição frontalmente oposta apresenta o jornalista Deoclécio Dantas,
certamente por ser um profundo conhecedor da política local e do próprio Petrônio
Portella. Também pode justificar sua análise o fato de ser jornalista e crítico
dedicado à causa. Certamente também pesou nessa análise a leitura, antes da
maioria, da obra de autoria do general Justino Alves Bastos, intitulada Encontro com
o Tempo, e isso foi dito a este pesquisador pelo próprio Deoclécio Dantas. Essa
primeira edição data de setembro de 1965, na qual o autor afirma:
“Na 10 Região: Maranhão, Ceará e Piauí, achava-se em comando o Cel. Aluizio Brígido Borba, visto como o Gen. Almério de Castro Neves estava em férias, no Rio de Janeiro, os Governadores do primeiro e terceiro destes Estados estavam franca e declaradamente com o comando militar. Quanto ao do Ceará, o ilustre Gen. R1 Virgilio Távora, também o estava, como depois se viu. Manteve algumas horas de expectativa, porém, na dependência de contatos políticos que achou indispensáveis a sua decisão.”(BASTOS, 1965, p, 355)
Como se configura, o autor faz referência ao primeiro e terceiro estados.
O terceiro estado é o Piauí, governado pela UDN de Petrônio, a UDN que em plano
nacional foi um dos principais partidos que planejou, articulou e auxiliou na execução
do golpe.
Importante ressaltar que, embora os partidos tivessem um caráter
nacional, a efetividade de sua força e atuação política estava diretamente ligada à
capacidade e ao peso do grupo político local que estivesse no comando, tanto assim
que a própria UDN agora no poder teve no pleito de 1958 sua sobrevivência política
atrelada ao PTB, partido que agora era seu principal oponente.
Petrônio, portanto, já tinha conhecimento do golpe em curso e se
comportara como adversário apenas e tão somente em retórica intramuros do
218
palácio, porque até mesmo o suposto manifesto de apoio a João Goulart nunca
chegou ao seu “imaginário” destino. Por isso e por outras razões afirma-se que o
governador Petrônio, em verdade, já estava do lado contrarrevolucionário e a
declaração de apoio ao presidente João Goulart tinha mais a função de fortalecer
sua imagem de legalista e utilizar a nova situação a seu favor, tendo em vista que,
para a quase totalidade de seus apoiadores, resistir era um ato de loucura.
Para (Coelho, 2014) e (Cavalcanti, 2006), o que Petrônio fez e com muita
maestria foi “jogo de cena” para se colocar em “compasso de espera”, pois como
integrante da UDN e conhecedor dos bastidores do processo, acreditava que o
caminho mais conveniente, para fazer a travessia, era o do meio, numa
metamorfose comportamental, e com isso, salvar o seu mandato e carreira politica.
Essa posição dúbia foi, por alguns, identificada como uma espécie de
“quarentena politica” necessária, para com isso salvar seu mandato de governador e
defender os interesses maiores do Piauí naquela conjuntura de “desordem,
incertezas e crise política instalada”. Crise essa institucionalizada desde a renúncia
de Jânio Quadros, posse de João Goulart, adoção do Parlamentarismo, votação do
plebiscito que lhe restituiu poderes de presidente e o lançamento das Reformas de
Base.
Por confiar na capacidade dos novos dirigentes de reestabelecerem a
ordem e o desenvolvimento do país, Petrônio, acreditava ser sua postura politica, a
mais acertada, pois somente num ambiente de estabilidade, o Brasil e o Piauí
voltariam a se crescer.
Para Portella, a criação daquele ambiente de ordem era tarefa de todos e,
ele considerava estar fazendo a sua parte, quando assumiu aquela posição, para
alguns, dúbia, porem necessária, oportuna e conveniente, naquela situação de
profunda instabilidade. Dessa forma, era sim o caminho do meio o mais
recomendado e profícuo para o Brasil.
Petrônio tinha convicção que a sua ausência no Comício das Reformas,
realizado na Praça Central do Brasil, em 13 de março de 1964, certamente atenuaria
sua situação junto aos militares e reforçaria sua posição em relação aos que não
desejavam sua participação naquele evento político. Para Petrônio, a “Revolução”
era inevitável.
219
Outro fato que favoreceu o governador Petrônio Portela foi a decisão
“calculada” de colocar seu cargo, mesmo tendo sido eleito, à disposição do
presidente, pois, segundo ele, “sentia que o Piauí estava sofrendo retaliações,
inclusive com corte de verbas” e obras e, se o estado tivesse que ser discriminado
por sua presença no governo, era preferível que ele se afastasse do comando.
Assim, o fato de não ter comparecido ao Comício das Reformas, a
disposição destemida de renunciar o cargo de governador, revelando grandeza em
defesa dos interesses do Piauí e ainda a ótima relação que tinha desde os tempos
escolares com o presidente Castelo, ter-lhes-iam poupado o mandato de governador
e aberto caminho para a rápida ascensão politica nos governos militares que se
seguiriam.
3.7 Um Governo conservador e reformista, mas nem tanto!
A transição da administração trabalhista de Chagas para o governo
conservador reformista de Petrônio Portela (UDN) teve início mesmo antes do final
do governo de Chagas marcado para 31 de janeiro de 1963 quando findaria sua
administração. Ocorre que Chagas Rodrigues pretendia disputar uma vaga para o
Senado Federal ou Câmara dos Deputados e por força da legislação eleitoral
vigente tinha que renunciar ao mandato de governador. Em razão disso, tornou-se o
primeiro governador do Estado desde a República Velha a renunciar ao governo e a
se candidatar simultaneamente às duas vagas.
Em cumprimento à legislação, Chagas Rodrigues entregou uma carta
com pedido de renúncia à Assembleia Legislativa e transferiu administração ao vice-
governador Tibério Nunes da UDN, partido já rompido com o ex-governador e em
franca campanha para eleger o principal nome do partido, Petrônio Portela, lançado
também de última hora na disputa, a prefeito de Teresina naquele momento
exercendo o mandato de deputado estadual.
A aliança política estruturada entre Chagas Rodrigues, ex-deputado
Federal pela UDN, agora candidato a governador pelo PTB, e Petrônio Portela,
principal nome da UDN e candidato a prefeito da capital, com vistas a vencer as
eleições no pleito de 1958 foi vitoriosa, entretanto, logo se revelou circunstancial e
chegou ao fim muito precocemente.
220
Nas palavras do advogado e ex-deputado estadual pelo PDC cassado em
1964, Celso Barros Coelho, quando infere que o governo de Petrônio Portela teve
início antes do fim da gestão de Chagas Rodrigues, pode parecer aos olhos de um
leitor menos atento que o ex-deputado estaria se reportando à redução por alguns
meses do mandato do agora ex-governador que havia renunciado para disputar
simultaneamente uma vaga no Senado e na Câmara Federal.
Na verdade, também foi essa a impressão primeira que o advogado
militante Celso Barros deixou passar quando dos momentos iniciais da primeira
entrevista de uma série de duas que possibilitou realizar. Qual nada, com o
andamento dos diálogos o experiente advogado afirma que:
“Chagas nos últimos meses de sua gestão, principalmente depois que voltou de Cuba, somente contava com o apoio de admiradores e alguns poucos aliados fiéis, aqueles já marcados pela imagem do governador que dificilmente largariam a trincheira, como era o caso do Deusdeth, do Honorato e outros poucos “gatos pingados” de fim de mandato.”
Leitura semelhante fez o Wilson Nunes Brandão, na obra Mitos e
Legenda da Política Piauiense (2015, p. 69) quando infere que:
“O objetivo a ser alcançado era a organização do “Esquema Petrônio.” Inteligente e sagaz com carreira meteórica na política piauiense, esse valenciano, de inigualável capacidade de articulação, vislumbrara que o momento seria ideal para sua candidatura ao governo do estado. O esquema vitorioso de 1958, que elegeu Chagas Rodrigues governador estava completamente dividido e arruinado. Petrônio, da UDN, e prefeito de Teresina, já havia rompido com Chagas a algum tempo. Somente lhe restava uma saída – unir os partidos tradicionalmente antagônicos”. No entanto, Petrônio buscou outros aliados e dissidentes para concorrer nas próximas eleições, pois queria se acercar do máximo de apoios para vencer o pleito que se avizinhava. Para o jornalista Zózimo Tavares (2012, p189/93), “a maior proeza de Petrônio na política piauiense ainda estava por vir. [...] Já rompido com Chagas, só restava a Petrônio, como líder da UDN, tentar unir os partidos tradicionalmente antagônicos, buscando apoio no maior e mais ferrenho adversário, o PSD, para formar um bloco que viabilizasse a sua candidatura ao governo”.
Para o jornalista, Petrônio deveria juntar “água e óleo”, porque esses dois
partidos eram representativos de setores e interesses totalmente opostos, sendo a
221
UDN mais presente nos espaços urbanos, principalmente em Teresina, a capital e o
PSD, um partido de maior atuação junto ao setor rural, defensor dos grandes
proprietários de terra.
Esses pontos de divergências, entretanto, eram menores do que a
necessidade de voltar ao comando do estado. Os principais nomes do PSD e da
UDN sabiam que Petrônio era o caminho mais curto e mais seguro para pavimentar
o retorno ao Palácio de Karnak.
Ainda em relação ao enfraquecimento e isolamento de Chagas
Rodrigues, atribuídos pelo autor à sua inabilidade política, Wilson Brandão (2015,
p.71) postula que:
“Foi um administrador que procurou inovar, mas, politicamente, encerrou seu mandato de governador praticamente isolado, pois conseguiu indispor-se com grande parte daqueles que lhe deram apoio na eleição de 1958.”
Outra ilustre personalidade da cultura piauiense, o professor Manoel
Paulo Nunes, em entrevista concedida a este pesquisador (maio 2015), afirma que o
governador Petrônio Portela possuía um excepcional “senso de oportunidade”. O
escritor, imortal da Academia Piauiense de Letras, utiliza dessa expressão para
explicar a mudança repentina de posição quando em pouco tempo passou de
legalista defensor da manutenção do presidente João Goulart no poder para artífice
do governo civil-militar que se apossou do comando do país com um golpe em 31 de
março de 1964.
Tal ambiguidade pode ser percebida nos trechos que se seguem e que
simbolizam o comportamento do então governador Petrônio:
No momento em que a Nação se encontra a braços com ameaças de sedição; no instante em do sul do País chegam notícias inquietantes, demonstrativas da possibilidade de vir nosso País a ser engolfado pela subversão ameaçadora das instituições democráticas. Cumpro o inarredável dever de levar ao conhecimento dos piauienses que o governo do Piauí permanece hoje, como ontem, no firme propósito de defender, sem medir sacrifícios e indo às últimas consequências, a ordem democrática, os poderes constituídos, em suma, o império da Constituição. Confio em que o povo colaborará com o Poder Público na preservação da ordem constitucional.
Teresina-PI, 31/04/1964, Petrônio Portela, Governador do Estado.
222
Para o advogado Celso Barros Coelho, a posição adotada pelo
governador Petrônio Portela pode ser vista como um misto de oportunismo e
discernimento. Em relação ao momento em que ele, Celso Barros, na companhia de
outras personalidades, estavam se preparando para ir a uma rádio local falar do
episódio do golpe, oportunidade em que o governador Petrônio, de modo planejado,
não compareceu, Coelho (Política, Tempo e Memória 2014, p 83/84) faz a seguinte
ponderação:
Ocorreu, porém, que Petrônio, de volta ao Karnak, à frente do governo se bandeara para o lado vencedor, dando apoio imediato à Revolução. Abandonara aqueles que se colocaram ao seu lado e ao lado de João Goulart. Ficara assentado, num primeiro momento, quando se tratou da redação do manifesto, no Palácio do Governo, naquela manhã, que, às cinco horas da tarde, Petrônio, a professora Iracema dos Santos Rocha da Silva e eu ocuparíamos a rádio local, para falarmos aos piauienses sobre o episódio. À hora marcada, eu e Iracema comparecemos, na suposição de que o movimento não vingaria. Petrônio já estava dando apoio ao regime instalado e, por isso, não compareceu.
Para o deputado estadual do PSD, Afrânio Nunes, a postura de Petrônio
Portela era esperada pelo menos para quem verdadeiramente o conhecia. Para
Alfredo Nunes (março de 2015), Petrônio se mostrava da seguinte maneira:
Ele, o Petrônio, era o animal político mais inteligente que já conheci na minha vida. Ele escutava e já calculava o que ia dizer sobre o que ouvia, era um gênio político, não tomava decisão de modo abufelado. Tinha uma carreia política toda pela frente, era muito bem informado, já tinha ideia clara que o Goulart não duraria, fez um jogo de cena forjando apoio ao presidente porque era um advogado notável, tinha muitas facetas e utilizava a mais apropriada. Naquele momento em que a constituição estava sendo rasgada, ele falou com jurista defensor da ordem legal e quando notou que o fato político da Revolução era consumado se comportou como político.
O deputado Alfredo Nunes, mesmo tendo sido cassado pelo Golpe
tempos depois, e não sentindo nenhum esforço do governador de quem foi líder
para defendê-lo da cassação, continua a reafirmar a conduta, para ele oportuna,
sábia e correta do governador Petrônio ao dizer:
223
“O Petrônio já era governador, tinha sido prefeito sonhava em ser senador, como é que ele iria se colocar contra a Revolução que já era vitoriosa em todo o País? O que ele fez qualquer homem inteligente e com futuro político faria. O ex-presidente Juscelino que, agora a algum tempo foi escolhido o homem do século também não apoiou o golpe? Isso é conversa, o que o Petrônio fez foi pensar no Piauí e fez certíssimo!”.
Para Cavalcanti (2006, p.184):
“O cerco se fechava. As pessoas mudavam de posição e tomavam outro rumo ao sabor dos últimos acontecimentos. [...] àquela altura, tanto Arraes quanto Seixas Dória já havia sido depostos e recolhidos à prisão no arquipélago de Fernando de Noronha. Agora era cuidar de resgatar o incômodo manifesto e editar nova manifestação de solidariedade, desta feita em favor dos novos donos do poder, ‘em nome dos interesses do Piauí’ segundo sustentaria mais tarde o senador Helvídio Nunes de Barros”.
Embora esse acontecimento tenha entrado para a história com um dos
mais inusitados e discutidos quando o assunto é o governo, a figura de Petrônio ou
mesmo as repercussões do golpe no estado, pauta-se agora por cautela, pois o
período que compreende o governo de Petrônio Portela Nunes (1963/1967) foi
marcado em esfera nacional e estadual por muita efervescência, particularmente na
esfera política.
Dessa forma, reservaria ainda muitos outros importantes acontecimentos
com reflexo direto nas unidades da federação, inclusive no Piauí, os quais se
passam a narrar mais detidamente a partir de agora.
Para o jornalista Carlos Castelo Branco, Petrônio era ligado à corrente
udenista conhecida como “bossa nova” e antilacerdista por tradição, estava entre os
governadores reformistas eleitos em fins de 1962, representava uma linha dissidente
do udenismo tradicional e do populismo de Vargas e, no caso do Piauí, de Chagas
Rodrigues fiel representante, guardadas as proporções, da ideologia varguista.
Convém ressaltar, porém, que a verdadeira “bossa” de Petrônio, foi
saber ser um renovado antigo político da UDN que, com muita inteligência, enorme
capacidade de articulação e muita habilidade para negociar, soube manter a ordem,
modificar sem alterar, usar o poder sem lançar mão da violência mais comum aos
olhos da maioria e, dessa forma, capitalizar simpatizantes.
224
A retórica reformista e de vanguarda do governador Petrônio segue a
lógica juscelinista, que se propunha “mudar dentro da ordem para garantir a ordem”,
de certa forma corrobora com o pensamento de Carlo Castelo Branco, e, pode ser
percebida quando, depois de empossado governador, ele assim se expressa:
“A palavra do Governador do Estado ontem empossado nesta Casa do Povo corresponde aos objetivos que temos em vista. Haveremos de ser vigilantes no cumprimento das promessas corajosas que fez na visualização de problemas piauienses e das suas necessidades mais urgentes. Esses problemas são inúmeros, bem o sabemos, e é bem difícil remover os alicerces da pesada estrutura em que estamos vivendo, retrógada nos seus métodos, reacionária nas suas ideias e impotente para a empresa renovadora que desejamos ver iniciada.” (BARROS, 2014, p. 75).
A bem da verdade, a crise política brasileira que já se arrastava por algum
tempo, com reflexos diretos no Piauí, agravou-se profundamente em nível nacional
em 1961, quando João Goulart assumiu a presidência do país com a renúncia de
Jânio Quadros. Este que havia tomado posse em janeiro daquele mesmo ano e
herdou de Juscelino altíssimas taxas de inflação, dívida externa crescente,
concentração de renda e uma organização administrativa marcada pela corrupção e,
em esfera estadual, quando Chagas Rodrigues aprofundou suas ações no sentido
de governar mais proximamente ao povo, única saída política possível, pois já havia
perdido o apoio da UDN.
Com um mandato de apenas sete meses, seu governo foi o mais curto de
nossa história recente. Psicodélico, populista e demagogo, Jânio era um político
teatral que marcou sua administração por posições ambíguas, contraditórias e
autoritárias, desconsiderou a orientação ideológica dos países com os quais
mantinha relações comerciais. Isso acarretou ampliar por um lado o número de
parceiros comerciais e por outro a criação de sérios embaraços diplomáticos,
naquela conjuntura de Guerra Fria.
Condecorar o líder revolucionário cubano Ernesto Che Guevara, com a
medalha da Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, reatar relações
diplomáticas com a União Soviética e combater o colonialismo português na África e
Ásia, revelando com isso, independência em relação aos Estados Unidos. Estas são
225
algumas das principais posições as quais figuram como decisões políticas que
minaram e comprometeram a governabilidade, enfraquecendo-o politicamente,
precipitando sua renúncia e aprofundando a crise política já instalada no país.
Fazendo coro, mas indo além do entendimento de Carlos Castelo Branco,
para quem Petrônio era um “homem zeloso com a coisa pública”,(Tavares,
2012),que o nominou de “gênio da raça”, (Brandão 2015),que o distinguiu como
homem de “sabedoria e habilidade” (Coelho, 2014),para quem Portella agia com
“discernimento e oportunismo” e, (Cavalcanti 2006),que o identificou com o homem
“dos manifestos” e outros mais que, por curiosidade, simpatia ou qualquer outra
motivação, detiveram-se sobre sua obra administrativa atravessada por importantes
postos e sua meteórica carreira politica, onde foi de deputado estadual a presidente
do senado.
Para além desses aspectos, esta pesquisa buscou investigar outras
nuances de Petrônio Portela, justamente aquelas que revelam e se coadunam bem
com um Petrônio que sabia, na exata medida, o que pretendia para si naquele
momento em que era governador e calculava o que seria para sua carreira política,
mais acertado e profícuo, se ficar a favor ou contra a “Revolução”. Esta pesquisa
está à procura do Petrônio que afirmou certa vez que “só não muda quem se demite
do direito de pensar”, e não do Petrônio que salvou seu mandato e sua vida politica
por um “golpe de sorte”.
O talento e a capacidade incomuns de Petrônio, esse valenciano que
iniciou sou vida profissional e obteve notoriedade como advogado quando se
habilitou no processo de acusação contra o fazendeiro José de Arêa Leão, vulgo
Zezé Leão, da família Arêa Leão, região de São Pedro, um dos principais e mais
temidos coronéis do estado. Zezé Leão que ficou conhecido pela prática corriqueira
de atos de violência contra pobres e ricos do Piauí, daqueles tempos quando a
disputa entre famílias latifundiárias era a regra básica de convivência, marca o ponto
de partida para a tessitura desse tópico nominado A Politica como meio desde o
começo até o fim.
O envolvimento do “latifundiário - cangaceiro”, como era conhecido Zezé
Leão, numa contenda em um bar da capital, onde assassinou o capitão da Polícia
Militar Wanderley, oficial que já havia detido o valente Zezé Leão por haver
226
assassinado um soldado da polícia, acabou por projetar o jovem advogado Petrônio
Portela para todo o Piauí. Naquela época, o julgamento foi transmitido por uma
emissora de rádio local e logo depois ganhou as páginas dos principais jornais do
estado, ajudando a promover ainda mais o nome de Petrônio.
Com um discurso bem elaborado e marcado por muita objetividade,
resultado de sua larga experiência nos tribunais e principalmente devido aos
incontáveis pronunciamentos na Assembleia Legislativa, Petrônio Portela lançou-se
candidato e venceu depois de exercer um mandato de Deputado Estadual a eleição
para a Prefeitura de Teresina. Era mais um passo na trajetória daquele que ocuparia
as mais variadas e importantes funções e cargos políticos, especialmente como
ideólogo, articulador e, finalmente, como condutor de importantes processos
políticos na vigência da ditadura civil-militar instalada em 1964.
Como prefeito, Petrônio fez uma administração reconhecida por muitos
como sensível e eficiente, justamente por focar em muitas áreas, até então
esquecidas pelas gestões anteriores. O professor Alcides Nascimento (2007), no
artigo, faz a seguinte ponderação sobre a cidade que Portela governaria a partir do
final dos anos 50:
“Até o final da década de 50, a cidade se expandiu para o norte e para o sul, mas eis que atravessou o rio Poti, com a construção do primeiro vão da ponte de concreto armado entre a principal avenida da cidade, a Frei Serafim, e a BR-343, rodovia que liga Teresina a Parnaíba. Antes disso, aquela área ocupada principalmente por chácaras, utilizadas por seus proprietários nos finais de semana”. (2007 e 02)
Esta foi, pois a cidade que o ex-deputado estadual pela UDN, agora eleito
prefeito Petrônio Portela, passou a administrar a partir de 1959. Com uma
administração fundada no planejamento, o novo gestor logo se revelou preocupado
com a falta de urbanização, com a grande quantidade de ruas esburacadas e sem
cobertura de esgoto, além da completa ausência de iluminação na maior parte da
cidade, requisitos mínimos para uma capital daqueles tempos.
Essas características somadas à grande desigualdade entre as famílias, a
maioria inclusive habitando em casas com cobertura de palha, sem qualquer higiene
e segurança, localizada na periferia onde o que mais se desenvolvia era a
227
prostituição, incomodava a administração que logo procurou solucionar essa
questão social.
Para enfrentar a falta e a precariedade das moradias, a prefeitura adquiriu
junto à Policia Militar uma grande área, onde construiu casas, escolas e iniciou um
considerável programa de pavimentação, levando água e energia para muitas outras
partes da cidade, garantindo àquela parcela da população, até então desassistida,
um mínimo de dignidade.
A marca de um gestor que combinava planejamento, ousadia, austeridade
administrativa e forte crença no potencial da cidade fizeram a UDN e o próprio
prefeito, já rompidos com o governador Chagas Rodrigues, acreditarem que era
possível conquistar o poder no estado e implementar seu projeto de governo que
entre outros interesses visava conter e redimensionar as politicas para o campo.
Outra variável que concorreu para estimular Petrônio Portela a postular no
próximo pleito a eleição para governador foi a condição de coordenador da
campanha presidencial em 1960, do então candidato pela UDN, Jânio Quadros.
Essa missão, além de levá-lo a todo interior do Piauí, capacitou-o ainda mais como
negociador político, credenciando-o, em razão principalmente dos inúmeros
“acordos” para ser o próximo governador do estado. Tal possibilidade já havia caído
no domínio público e os jornais estampavam em suas primeiras páginas o que os
partidos insistiam em negar.
Jornal do Comércio de 07/05/1961 anuncia: “A sucessão está na rua”,
lançamento da candidatura udenista de Petrônio e Josípio. Em outra matéria, o
mesmo periódico, com circulação de 30/05/1961, proclama: “Rompimento Tácito”.
Uma terceira matéria, no dia seguinte, afirma “Petrônio define posição”. Finalmente
uma quarta que circula em outro periódico, datado de 01/06/1961, pergunta:
Romperia a UDN com o PTB?
Assim, entre uma matéria e outra, os mais diferentes periódicos, cada um
defendendo suas causas, tratam de informar, influenciar e, principalmente, defender
seus interesses e projetos por intermédio de uma ou outra candidatura, conforme
melhor atendesse à conveniência do momento.
Embora as condições políticas estivessem lançadas, Petrônio, um novato
na política, já se apresentava talhado para os embates que deveria travar em esfera
estadual e até nacional. Sabia como observador atento aos ventos da política que as
228
causas de uma mudança social nem sempre dependiam diretamente do poder
político instalado.
Como reformista ancorado na ideia de progresso, de mudança positiva,
acreditava, em primeiro lugar, na mudança de costumes produzida pelo impulso das
condições econômicas, de regras de comportamento social e moral e, em segundo
lugar, naquelas oriundas do progresso técnico.
Petrônio era conservador, moralista e também reformista, principalmente,
naquela conjuntura populista em que o desenvolvimentismo de Juscelino com sua
política industrializante favorecia a produção de bens de consumo duráveis
destinados a uma camada restrita da população. Essa politica contribuía para o
aprofundamento das desigualdades sociais e regionais que caracterizava o país.
O Piauí por obra e graça da natureza havia sofrido em 1958 e 1959 com
duas secas terríveis, cujos desdobramentos o estado pobre e genuinamente agrícola
ainda padecia com os resultados.
Outro problema silencioso que aos poucos se apresentava era o aumento
progressivo de retirantes que saiam de todas as cidades afetadas pela seca e pela
falte de perspectivas, cujas famílias não conseguiam trabalho, nas frentes de serviço
abertas pela SUDENE ou DNCS, vinham para Teresina. Cidade esta ainda sem
energia elétrica, com um sistema de transporte precário e sem qualquer
infraestrutura, mesmo depois dos muitos esforços de seu governo.
Toda essa conjuntura associada à crença que Petrônio e a UDN tinham
da incapacidade de Chagas, de seu candidato Constantino e do próprio PTB de
continuarem à frente do estado reforçavam sua disposição no sentido de
empreender uma política reformista. A campanha, como se esperava, foi marcada
pela polarização ideológica. Polarização que contou com o apoio declarado da
imprensa.
“Petrônio oferece cultural e socialmente maior índice de valor que seu adversário; Constantino é homem do interior sem luzes... fantasiado de esquerdista e pregador de reformas, tenta enganar, como é de seu feitio, os trabalhadores rurais com um apoio falso às ligas camponesas”, afirma o (JCO: 07.01.62.p03). “Não dei cargos para parentes, não fui testa de ferro, não subverti consciências, não faltei com a palavra dada”. Quero julgamento do povo! – declara Petrônio (FMA: 31.01.62p04) e continua em tom salvacionista “Ainda este mês daremos início à luta cívica que resultará na salvação moral e administrativa do Piauí.”
229
Ressalta-se, porém, que o projeto reformista da UDN e do próprio
Petrônio apontava no sentido de antecipar e até evitar qualquer processo
revolucionário. Sobre os diferentes tipos de reformismo, Bobbio, no artigo (1986),
afirma: “Há reformismos e reformismos. Onde todos são reformistas, ninguém é
reformista. E então o problema se coloca para uma pergunta verdadeiramente
crucial: Que reformas? Estamos certos de saber as reformas que queremos e quais
as que não queremos. [...] Estamos certos de saber exatamente o que se entende
por reformas? [...] E, dado que existem reformas e reformas, estamos certos de
possuir um critério que nos oriente na diferenciação de uma reforma de “esquerda”
ou de “direita”? Partindo da realidade político-partidária brasileira e piauiense em
particular, quais eram os defensores da mudança? Que partido melhor incorporava o
projeto mudancista?
3.8 Pelo Piauí, com a “Revolução” até o fim
Segundo o amigo, admirador e líder político do governo Petrônio, também
cassado, durante sua gestão (1963-66), Alfredo Nunes repete o que afirma serem
palavras de Petrônio quando falava sem reservas das diferentes posições tomadas
diante do golpe de 1964. Segundo ele, “O que sou devo ao Piauí, o que faço é pelo
Piauí e a vida que tenho, essa é para o Piauí”.
No Brasil nunca houve, de fato, uma revolução, e, no entanto, a propósito
de quase tudo se fala dela, como se a simples invocação viesse a emprestar
animação a processos que, de modo corriqueiro, seriam mais bem designados por
outras formas semânticas. A propósito, o escritor Laurentino Gomes (26/03/2014)
afirma que: “A maneira como nós olhamos o passado depende de valores,
convicções e necessidades do presente, o que se reflete na forma semântica com
que batizamos os eventos históricos”.
Para os militares, em 1964 ocorreu uma “Revolução” no Brasil, cujos
principais objetivos seriam restaurar a ordem, recuperar a economia afundada na
inflação, controlar a indisciplina nos quartéis e impedir a tomada do poder pelos
comunistas.
Por esse viés, tratou-se, portanto, mais de uma “contra revolução”.
Construção profundamente oposta pode ser observada atualmente em muitos livros
230
didáticos, textos jornalísticos, redes sociais, nos discursos civis que em geral
identificam 1964 como um “golpe civil-militar”, que implantou uma “ditadura” também
civil-militar no Brasil.
Para o historiador Gáspari (2002, p 129):
“Foram duas décadas de avanços e recuos, ou ,como se dizia na época, aberturas e endurecimentos. De 1964 a 1967 o presidente Castelo Branco procurou exercer uma ditadura temporária. De 1967 a 1968 o Marechal Costa e Silva tentou governar dentro de um Sistema Constitucional, e de 1968 a 1974 o país esteve sob um regime escandalosamente ditatorial [...]. Em todas essas fases o melhor termômetro da situação do país foi a medida das torturas praticadas pelo Estado.Como no primeiro dia da criação,quando se tratava de separar a luz das trevas, podia-se aferir a profundidade da ditadura pela sistemática com que torturava seus dissidentes.”
Governador do Piauí até o ano de 1966, Portella chegou ao Senado pela
ARENA, herdeira direta da UDN partido pelo qual Petrônio foi eleito deputado
estadual e prefeito de Teresina. Passado pelo crivo das principais experienciais
estaduais o jovem senador tinha em mente que o novo palco, “Senado Federal” lhe
reservaria as mais relevantes missões que somente seriam possíveis naquele
ambiente onde a politica serve como alimento e pano de fundo para se pensar o
país em todas as suas dimensões.
Sendo um politico conservador e antirrevolucionário, Portela sabia que
ainda pairavam sobre ele algumas desconfianças em relação a vestir totalmente a
camisa do novo time pelo qual ele agora jogava. No empenho de desconstruir
aquela imagem e forjar uma nova, de alguém inteiramente aliado com a
“Revolução”, ele assumiu com entusiasmo a tarefa de presidir e transformar a
ARENA no Estado. Tarefa cumprida em todos os sentidos, pois já no primeiro pleito
a proporção de deputados eleitos pela ARENA e MDB, que fora grande em boa
parte do país no Piauí, foi ainda mais significativa.
Estava assim superada a desconfiança dos militares com Petrônio que a
partir de então aumentou seu capital politico junto ao comando militar que soube, na
exata medida de seus interesses, prestigiar o senador piauiense e alimentar seus
sonhos projetando-o nacionalmente.
231
3.9 Vitória da derrota: O autoritarismo como método.
“Do mal será queimada a semente” (Nelson Cavaquinho)
Pela coligação UDN/PSD, o candidato a senador José Candido Ferraz
apresenta o discurso mais lúcido e faz inclusive um apelo no sentido da união pelo
Piauí. Entre suas preocupações, figuram o Porto de Luis Correia, a navegabilidade
do rio Parnaíba e o apoio à classe dos latifundiários pecuaristas, representados pela
FAREPI.
A inovação fica por conta da questão camponesa que agora parece
preocupar os candidatos das duas coligações, embora, por razões diferentes. Sobre
essa questão, o candidato declara: “Apoio o sindicalismo rural promovido por Dom
Avelar; os mais esclarecidos proprietários de terra devem colaborar” (FMA: 08.04.62
p. 05) e diz mais:
“Dentro do Nordeste subdesenvolvido, somos uma espécie de sub-
nordeste marginalizado pela penúria... Não se estuda nem se enceta um plano
capaz de alterar o regime de terra, esterilizada pelo latifúndio... Não se cuida da
sindicalização dos trabalhadores dispersos e esquecidos no seu labor humilde e
pertinaz” (FMA:19.05.62 p.03).
Nesse tom, a campanha se desenvolveu e como era de se esperar, a
chapa udenista liderada por Petrônio venceu e quase alijou, embora,
momentaneamente, o ex-governador Chagas que somente conquistou e, a duras
penas, a vaga para Câmara Federal. Petrônio eleito com a maioria de votos toma
posse e, no governo, terá desde cedo que mostrar sua tão propalada habilidade
politica, vez que o cenário nacional é muito instável e complexo.
Apesar de nas primeiras horas, após o Golpe Militar, o jovem governador
Petrônio Portela ter se pronunciado claramente em favor da legalidade democrática
e por via de consequência da manutenção no cargo do presidente do João Goulart,
o que assistiu logo depois, foi uma notável aproximação e aproveitamento de
Petrônio Portela em relação à nova velha ordem implantada, na qual muito
sabiamente ocupou importantes e variados campos do poder.
Pode-se dizer também que o regime, como organismo vivo e muito
atento, buscou da mesma forma apropriar-se da sua condição civil e de sua
232
considerável capacidade de articular, conciliar e negociar, assim como de muitos
outros igualmente dispostos, para chegar ao seio da grande sociedade sem grandes
perturbações.
Tais competências foram desde muito cedo colocadas à prova, conforme
se pode depreender das palavras do deputado Alfredo Nunes, do PSD e líder do
governo Petrônio Portela na Assembleia e principal confidente nas dificuldades,
principalmente as financeiras do governo.
Sobre a falta de recursos para financiar a estrutura operacional do estado
que não dispunha de veículos para o deslocamento do governador e de outros
auxiliares diretos da administração, como secretários, diretores e chefias
departamentais, o governador teria dito:
“Alfredo, não sei exatamente como você vai fazer, sei que terás que fazer. Convoque todos os secretários e diga-lhes que precisamos disciplinar o uso dos carros do governo. Como vamos pagar o combustível dos carros a serviço da administração pública tão deficitária. Diga-lhes logo que o governador vai andar no seu próprio automóvel, pagando o seu combustível e que deseja saber se alguém tem sugestão melhor. Caso alguém tenha que a apresente por escrito e assinada.”
Para o deputado, o governador estaria testando o espírito de homens
públicos de seu secretariado. Ele afirma ainda que na reunião o próprio governador
disse que a medida deveria durar inicialmente 90 dias, tempo segundo ele suficiente
para conhecer a realidade financeira do Estado do Piauí, mas que cada secretário
tinha autonomia para aumentar o prazo se julgasse conveniente.
Com essa medida, o governador estaria enviando a todos os demais
setores da administração pública, alguns com salários atrasados, um recado: que o
esforço primeiro do governo seria reduzir o máximo de despesas, atualizar os
salários, para somente depois de equilibrar as contas, tratar sobre aumento dos
vencimentos dos servidores públicos e de todas as demais categorias, iniciando
pelas que ganhavam menos.
No entendimento do líder do governo, Petrônio também deseja fazer
chegar à imprensa bem como a toda sociedade suas intenções e assim reduzir a
233
força dos boatos que já circulavam sobre os graves problemas financeiros do
governo.
Embora o foco principal seja descrever alguns dos principais fatos
que marcaram o governo de Petrônio Portela à frente da administração do estado,
notadamente naquilo que se refere às politicas para o campo, o autor retoma o
episódio do golpe e da destituição de João Goulart para evidenciar como o então
governador se comportou logo na formação dos rumores sobre a ação militar.
Confirmada a derrubada de Jango e de seu projeto popular pela via das armas e da
mais sórdida trama envolvendo militares, civis e o capital internacional, o golpe e a
consequente instalação do novo regime político de governo, Petrônio Portella declarou:
Querem ensanguentar a Nação. Esta é a minha palavra. Não é a palavra que, perante os senhores, já foi a palavra solenemente empenhada perante o Chefe da Guarnição Federal, a quem as 3 horas da madrugada de hoje me dirigia no seguinte teor: “Não quero saber qual é a posição dos senhores, quero dar a minha: de defesa da legalidade, e ela só se faz íntegra mantendo o mandato do Presidente da República (palmas)... De maneira que julgo injuriosa a pergunta dos senhores porque nunca fui homem de oportunismo”. [...] Quero, nesta oportunidade, então, pedir-lhes que me façam encaminhar ainda agora para que eu transmita ao Governador Miguel Arraes a mensagem dos trabalhadores do Piauí, e através dele o Senhor Presidente da República (palmas)... (Jornal o Estado do Piauí, 16.06.64 p?)
Em entrevista concedida a este pesquisador, mas também constante na
obra Política –Tempo e Memória, (Coelho 2014 p 82/83) afirma que:
“Saí às pressas, para localizar os Deputados do PTB, aliados de João Goulart. Foi fácil localizar o Deusdeth Mendes Ribeiro e, em companhia ainda de José de Araújo Mesquita, Secretário Geral da Assembleia, nos dirigimos à Casa do Trabalhador, onde estavam outros companheiros. Aí começamos a redigir o manifesto. Pouco mais de meia hora, dirigimo-nos ao Karnak e ao chegarmos, com o texto manifesto do apoio, Petrônio foi logo dizendo, com certa irritação: “Meu manifesto enviei agora mesmo ao mensageiro que o aguardava. Vão imediatamente ao aeroporto entregar o de vocês”. Para lá me dirigi com dois outros companheiros de cujos os nomes não me lembro.[...] O avião já tomava a direção da pista para nova decolagem quando percebemos, à distância, um jeep que vinha em desabalada carreira, dirigindo-se ao local onde estávamos e de onde se afastara o avião. Era Petrônio, com um dos seus auxiliares mais diretos, que, esbaforido, nos dizia: João Goulart foi deposto e os militares tomaram conta do poder. E acenava para o avião, que começa o seu voo de volta, para receber o manifesto. Não foi possível detê-lo.”
234
Esse auxiliar mais direto de quem o advogado Celso Barros fala na sua
obra era exatamente, embora só se confirmasse isso tempos depois, o deputado
Alfredo Nunes, que numa das entrevistas que concedeu a este pesquisador, ao falar
do episódio, assim se expressou:
“Existia uma dúvida se o Presidente tinha caído ou não. Pouco tempo depois foi confirmada a tomada do governo e então o Petrônio que já tinha enviado a carta dele pelo Celso confiou a mim a missão de recuperar a tal carta manifesto, mas disse que iria me acompanhar até o aeroporto para se certificar que ninguém mais além de nós tinha conhecimento da carta. Não fiquei sabendo que fim exatamente levou, pois não deu tempo de recuperar a bendita carta pois o avião tava saindo quando chegamos no aeroporto. Soube que ela caiu nas mãos do general Justino Alves Bastos e que por causa disso o Petrônio respondeu um inquérito que ele mesmo, como brilhante advogado que era, fez questão de defender. Digo isso porque vez por outra chegava alguém por lá com uns documentos que ele assinava e depois devolvia.”
O jornalista Zózimo Tavares afirma em entrevista a este pesquisador
(abril 2016) que o governador Petrônio Portela era uma figura
realmente diferenciada e que respondia às demandas que lhe caíam sobre os
ombros, combinando legalidade, fruto da formação jurídica, com oportunidade,
resultante da enorme capacidade de interpretar os movimentos da política local e
nacional. Foi assim quando resolveu acusar nas barras do Tribunal o “valente
Zezé Leão”; promovendo-se muito a partir de então. Depois também numa
situação inesperada tornou-se candidato a prefeito de Teresina, vencendo a
disputa.
Outra oportunidade veio com a missão de coordenar a campanha
presidencial no estado de Jânio Quadros e, finalmente, sabia que seu futuro político
estava em bem aproveitar mais aquela situação, não desejada, mas efetivamente
inevitável, e assim o fez. Apoiou a revolução, do começo até o fim, segundo ele “em
nome do Piauí”.
Depois de haver apoiado a “revolução” e desejoso de marcar seu governo
à frente do estado como austero, transparente e fiel aos militares agora no
comando, Petrônio Portela passou progressivamente de “opositor” da nova ordem
estabelecida a uma espécie de porta-voz, a responsável pelas demandas do regime
no território piauiense.
235
Já identificado com o regime, Petrônio retomou sua rotina administrativa e
de início teve que enfrentar o levante da Policia Militar, que, como de hábito
reivindicava reposição salarial por intermédio de meio formal: um memorial
contendo todas as reivindicações. Embora a pauta apresentasse outros pontos de
reivindicação, a principal luta se dava mesmo em torno de reajuste salarial
conforme se pode depreender da nota enviada pelos oficias. Nota esta registrada
pelo jornal O Dia de 15 /agosto/1963 com o título “Militares irredutíveis”, a nota
dizia que:
“Os oficiais, subtenentes, sargentos, cabos e soldados da Polícia Militar do Estado, reunidos em Assembleia Geral das suas entidades de classe: Clube dos Oficiais, Clube Tiradentes – dos sub tenentes e sargentos, Clube Conselheiro Saraiva – dos inativos e Centro Social dos Cabos e Soldados, resolvemos, através do presente, reiterar a V Exa. A reivindicação feita em 29 de junho próximo findo no sentido de serem reajustados os nossos vencimentos de há muito deficitários”.
A nota segue justificando a cobrança principalmente pelo fato de os lares
dos policiais se encontrarem vazios, sem alimentos com alguns passando fome. Em
outro trecho os oficias sugerem ao governador que:
“Deliberamos, como base de nossa reivindicação, propor a fixação de uma nova tabela de vencimentos equivalente à do pessoal da Polícia Militar do Ceará, excetuando-se as consideráveis vantagens aos mesmos atribuídas, tendo-se em vista ser este o mínimo indispensável à nossa manutenção.”
Sabedor de que a sublevação dos Oficiais da Polícia Militar poderia trazer
grandes prejuízos políticos e administrativos, tratou de colocar a questão para a
opinião pública. Em nota Oficial datada de 17 de agosto de 1963, o governador
afirma que:
“Cumpre o dever de levar ao conhecimento da população civil que, parte da Polícia Militar, após reuniões sucessivas e em termos passionais e desrespeitosos à autoridade constituída, pretendeu impor ao Governo aumento de vencimento da corporação”.
236
A nota segue o governador
informando que a reivindicação é justa, mas
que naquele momento os cofres do Estado
não suportam conceder o aumento e que tão
logo seja possível, depois de atualizar os
vencimentos atrasados concederá não
somente para a Polícia, mas para todas as
categorias civis.
Com esse posicionamento, o
governador almejou tornar o movimento
como sendo apenas de uma parte da
corporação e não de sua totalidade, que a
paralisação deixaria a população mais
insegura e, com isso, colocar a sociedade
contra a sublevação dos oficiais.
Com o apoio de parte da
sociedade civil, especialmente da classe
media e alta da cidade, Petrônio solicitou reforço externo, no que foi prontamente
atendido. O general Humberto de Alencar Castelo Branco, então comandante do IV
Exército, enviou-lhe soldados e armas da 10a Região Militar para contornar o
conflito, prender as lideranças e estabelecer a ordem na corporação e na cidade.
O comando da operação foi entregue ao oficial Francisco Batista Torres
de Melo. Poucas horas depois, o Quartel da Polícia Militar foi tomado dos
amotinados, alguns homens transferidos para municípios distantes, outros presos,
entre eles o tenente Geraldo Câncio e o capitão Elesbão Soares, e as chaves do
prédio-sede foram entregues ao governador que as repassou a um oficial de sua
confiança. Estava a situação resolvida e o governador manteve sua posição de
comandante maior do estado, inclusive da Polícia Militar.
Petrônio, em início de mandato e tendo ainda principalmente por parte da
sociedade teresinense, certa desconfiança em razão da postura “vacilante” de apoiar
Jango e logo em seguida se aliar à “revolução”, sabia que tinha de tomar uma
Fonte: Militares em protesto por aumento de salário.
237
posição firme que o reposicionasse diante da população e em particular da classe
política, que como afirmou Celso Barros “não sabia em qual dos Petrônios confiaria”.
Assim, o governador manteve-se firme, não autorizou o aumento,
aumentou a simpatia de parcela da sociedade civil, especialmente a classe média
conservadora e partiu para a execução de seu planejamento governamental, que
incluía entre outras metas, desorganizar o movimento camponês e fragilizar suas
respectivas entidades representativas e por fim retroceder o projeto de reforma
agraria iniciado por Chagas Rodrigues.
Importante ressaltar que a maneira exagerada e truculenta com que o
governador tratou o movimento militar provocou graves tensões com a Igreja
orientada por Dom Avelar que fez severas críticas pelas ondas da Rádio Pioneira ao
governador. Em razão disso, o governador Petrônio chegou a enviar uma carta a
Dom Avelar, na qual se queixava da posição do religioso. Na carta, Petrônio dizia:
“Devo declarar que a palavra mágoa fielmente expressa o sentimento intimo que guardo da atuação de V.Excia nos episódios em que se envolveram oficiais e praças da Polícia Militar do Estado [...] Quando intervém V.Excia. já os fatos ganhavam feição de indisfarçável gravidade [...] O governo não esperava de V.Excia. um ato de hostilidade, nem eu, pessoalmente, [...] quando transformaram o quartel em albergue, com senhoras e crianças, abastecendo-se com ração fornecida por políticos de oposição e por um caminhão de víveres mandados oferecer pelo Sr. Arcebispo, confesso, Dom Avelar que esse gesto de V.Excia. me causou choque bem maior do que tudo quanto pude sentir ao longo dos lamentáveis acontecimentos [...] Não era um movimento popular investido contra estruturas iníquas sustentadas por forças anacrônicas. Era uma sedição em marcha.[...]Surpreende que a Rádio da Arquidiocese se pusesse no ar para a convocação de sindicatos rurais, concitando-os a uma tomada de posição que poderia resultar, e resultou, em aliança com a sedição insólita [...] Suas atitudes impuseram-me a crença de ter ficado V.Excia. ao lado de meus inimigos, dando-lhes o estímulo de um apoio expresso”(Portela:1963).
No mesmo dia, Dom Avelar respondeu ao governador. O chefe religioso
reafirmou seu compromisso com os valores cristãos e disse não ter ficado, como
afirmou o governador, ao lado dos inimigos, mas que apenas agiu como pastor ao
lado dos humilhados e, em relação à atuação da Rádio Pioneira, ela, como um
instrumento de justiça, lutava pela paz.
238
Como se percebe, a postura extremada do governador não somente
durante o movimento, mas também depois numa verdadeira caçada aos revoltosos,
ainda provocaria conflito entre as duas autoridades.
Diga-se de antemão que Petrônio Portela arquitetou um ousado programa
de descentralização, levando a administração do estado para os municípios numa
aproximação clara com as bases políticas do interior do Piauí, onde ele precisava
consolidar seu nome e enfrentar “in loco” possíveis reações sociais ao seu governo.
Com essa estratégia, Petrônio tanto fortaleceu seu nome, como a própria
UDN, seu partido no qual pretendia fazer carreira política.
Assim como tratou com dureza a sublevação da Policia Militar, Petrônio
Portela foi aos poucos reduzindo o espaço de atuação dos movimentos sociais. A
casa dos sindicatos que recebia uma espécie de “ajuda financeira” para fazer frente
à realização de atividades políticas, a exemplo de curso de formação de lideranças,
ou mesmo curso de “manejo agrícola”, de convivência com a seca, foi
progressivamente esvaziada e perdendo força junto aos trabalhadores que
sistematicamente visitavam a casa.
Para o agricultor Antonio Damião, do Sindicato de Campo Maior, a casa:
“representava um espaço de sociabilidade política, lá se ficava sabendo de tudo que
acontecia nas cidades do interior e da vida dos sindicatos. Lá se sabia das
novidades, dos cursos, agente pegava jornal para se informar. Tudo isso foi aos
poucos minguando, minguando.”
Também o movimento estudantil, especialmente aquele do qual
participavam estudantes que moravam na casa do estudante pobre de Teresina,
sofreu reversos na gestão do governador Petrônio.
Para os advogados, e à época líderes estudantis Átila Lira, Carlos Lobo e
José Luiz Martins Maia, era muito difícil fazer movimento na prática e muitos deles
passavam, principalmente, na gestão do Petrônio, o tempo entre ações mais
pontuais nas suas entidades (Grêmios estudantis) e debatendo assuntos nacionais
que interessavam diretamente ao Piauí.
Para o advogado, jornalista e professor Carlos Lobo, estudante do Liceu
Piauiense em 1958, aquela foi uma época muito propícia ao debate sobre os
grandes temas nacionais. Ao falar sobre sua atuação como líder estudantil, ele
assim se posiciona:
239
“Eu graças a Deus convivi com uma fornada muito boa de estudantes. Fazia parte da minha turma no Liceu o Jesualdo Cavalcanti, Camilo Filho, Wall, Átila e muitos outros. As reuniões para transformar o Brasil eram feitas no arquivo público. Nós criamos o Centro de Estudos da Mocidade Idealista do Piauí (CEMIPI). A nossa meta era ler de dois a três livros e debater. Era uma espécie de ISEB local. Todo o sábado a gente discutia os problemas do Piauí. O CEMIPI (Centro de Estudos da Juventude Idealista Piauiense.) foi acusado de ser um centro formador de comunista. Isso porque a gente recebia aquele jornal Novos Rumos e o Semanário. Nós éramos muito mais ligados ao trabalhismo por causa do governador Chagas do que a qualquer outro ideário. Depois já mais adultos tivemos problemas com o Petrônio e os militares que não queria nem saber de rodas de debate, de estudos conspiratórios.”
Para o historiador Wilson Carvalho Gonçalves, a gestão de Petrônio Portela
foi marcada por traços inovadores, mas também por certo reformismo conservador
principalmente se comparado ao modelo de gestão operacionalizado anteriormente
pelo governador Chagas. Sobre o aspecto da gestão, ele postula que:
“A elaboração do l Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Piauí, que estruturou e planejou toda a ação governamental, com técnicas modernas e racionais, colocando a gestão administrativa mais eficaz e contributiva para o desenvolvimento do Piauí. Deslocou a sede do governo para os municípios do interior, cuja descentralização visava sentir, “in loco”, os problemas das comunidades. Promoveu esforços e estudos que deram origem à criação da Universidade Federal do Piauí. Imprimiu, com muita austeridade, a aplicação dos dinheiros públicos. Ampliou as redes de ensino e saúde.” (GONÇALVES 1996, p. 181)
E segue dizendo:
“Já em relação ao contato direto com o povo e outras lideranças políticas o que se assistiu foi uma mudança brusca, enquanto Chagas falava ao povo e ainda recebia populares aos sábados no Palácio de Karnak, Petrônio somente atendia aos chefes políticos e ainda assim acompanhado dos grandes nomes da política de cada município”.
Sobre uma dessas visitas ao Karnak, o senhor Gentil Alves, um dos
maiores proprietários da região de Campo Maior, assim se expressa:
240
“Estive uma vez no palácio para falar com o governador. Cheguei umas 9 horas conforme ele mesmo tinha marcado. Deu 10 horas e nada, então chamei uma dona que tava numa mesa e perguntei: O governador Petrônio já tá ai falando com alguém? Ela respondeu: Já o senhor tem hora marcada? Eu disse, tenho e foi ele mesmo que marcou. A senhora faça o obséquio de dizer pra ele que o velho Gentil de Campo Maior tá aqui e se ele ainda quiser meu apoio que me atenda logo.”
Como se percebe, o governador inaugurou um novo estilo de fazer
política. Trocou o contato direto com o povo pela representatividade dos grandes
chefes políticos, encurtando o espaço dos setores populares.
Outra mudança brusca percebida foi a ausência do governador nas
Rádios da Capital. Petrônio não fazia tanto uso do Rádio como fazia seu antecessor,
embora tivesse todos os dias manchetes e matérias assinadas por outros em defesa
dele e do próprio governo. O próprio jornal O Dia, que até então adotava uma
postura não tão partidarizada, agora passou a desenvolver intensa campanha contra
o comunismo.
O governo de Petrônio foi totalmente atravessado pela instabilidade
política reinante nos primeiros anos de chumbo. Ainda assim, e contando com o
apoio, mesmo que moderado do alto comando, posto que ainda restavam
desconfianças sobre sua real adesão ao regime, o governador
empreendeu importantes ações administrativas. Dentre essas ações, realizou a
primeira ampliação do Hospital Getúlio Vargas, no qual foi instalado o Centro
Cirúrgico com a aquisição de outros importantes aparelhos e equipamentos para
atender a situações de emergência oriundas do interior do Piauí e do vizinho Estado
do Maranhão.
Em relação à educação, o quadro também não era nada animador.
Quando assumiu o governo, a taxa de analfabetismo era de quase 50%. Seu
planejamento previa uma redução para 20%. Hoje, 50 anos depois, essa meta ainda
não foi alcançada, mesmo com muitos esforços.
241
Fonte: Governador Petrônio Portella na Companhia do Presidente Castelo Branco
Para cumprir a meta planejada, o governador e sua equipe estabeleceram
um cronograma que, ao final do ano de 1965, teriam alocados nas áreas urbanas,
municípios do interior e aglomerados com mais de 500 habitantes, pelo menos 1000
novas salas de aula.
A gestão de Petrônio foi se desenvolvendo na perspectiva de dotar o
estado de infraestrutura que causasse a impressão de progresso material e, no
campo político, reduzisse progressivamente os espaços de liberdade com o
fortalecimento do executivo estadual. Isso se daria mesmo numa conjuntura
nacional adversa ao poder dos governos estaduais que sofriam com o fortalecimento
do executivo federal a partir da Constituição de 1967. Essa constituição limitou ainda
mais a autonomia dos estados - com a concentração do poder de decisão na mão
do governador, que também controlava toda a Assembleia Legislativa.
Além disso, em esfera nacional, foram promulgadas novas leis
e assinados novos decretos executivos, dentre eles, um que submetia o
Executivo a um planejamento de feitio militar. Por fim, foram uma severa Lei
de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional destinada a facilitar a atuação
242
dos órgãos de Segurança do Estado contra os denominados “inimigos interno do
novo regime”. O terror do estado se prestava a manter siliente e obediente a
sociedade.
Nessa nova ordem é que se realizaram as eleições de 1966. As primeiras
submetidas ao bipartidarismo formado pela ARENA e MDB, esses dois partidos
substituíam a UDN, PSD, PTB, PR, PDC e outros partidos ainda vivos e bem
presentes na cabeça e até no coração de muitos brasileiros e piauienses, de modo
particular.
Na realidade, os “novos” partidos eram os mesmos, pois as pessoas em
sua maioria, pelo menos no Piauí, identificavam os Partidos pelos seus representantes.
Comum aqui era se dizer “a UDN do doutor Petrônio ou o PTB do doutor Chagas”.
Agora o que se esperava ouvir ou se dizer era “a ARENA do doutor Petrônio, mais
poderoso do que nunca e o MDB, do doutor Chagas mais fraco do que antes”.
Outra importante ação administrativa foi a criação do primeiro plano de
habitação popular, autorizado pela Lei Estadual no 2.545 de 9 de dezembro de 1963,
a ser executado pelo próprio governo do estado através de recém-criada HABIPOPI
– com recursos do próprio tesouro. A meta era construir 2.500 moradias urbanas,
sendo 1000 no primeiro ano e o restante 1.500 no ano seguinte, segundo semestre
de 1965.
Embora o nome de Petrônio
esteja ligado às duas principais obras
estruturantes do estado como a Usina de
Boa Esperança e a Universidade Federal
do Piauí, pois foi durante sua gestão que
estes equipamentos públicos efetivamente
entraram em funcionamento, é necessário
e oportuno reconhecer que essas duas
importantes conquistas remetem a
decisões do governador Chagas
Rodrigues, que ainda na Conferência
dos Governadores realizada em São Luís,
solicitou e obteve do então presidente
Jânio Quadros autorização para
realização do empreendimento.
Fonte: Conferência de São Luiz / liberação de recurso.
243
Os professores Manuel Paulo Nunes e Celso Barros Coelho afirmam que
Petrônio jamais seria figura central do regime, como se tornaria mais tarde, se
continuasse como governador. Isso porque o Piauí era um estado sem expressão,
longe de tudo, até dele mesmo.
Nesse sentido e muito consciente dessa realidade, Petrônio planejou desde
cedo sua ida para o Senado da República, onde se elegeria pela ARENA, partido
criado a partir da implantação do sistema bipartidário, instituído pelo Ato Institucional
nº II. Surgiam, assim, a Aliança Nacional Renovadora (ARENA) e o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB), a oposição liberada, como se dizia na ocasião.
No estado, Petrônio tomou posse da ARENA, condição “Sine qua non”
para chegar ao sonhado e planejado centro do poder. Assim comandando o maior
partido do Piauí, passou o governo para o deputado e vice-presidente da
Assembleia Legislativa, em exercício, Doutor José Odon Maia Alencar.
A Arena, partido do Regime Militar, dominou totalmente a cena política
brasileira, pelo menos nos primeiros anos. Tancredo Neves, na oportunidade pelo
MDB mineiro, afirmava “a Revolução era a ditadura da UDN”, pois conquistou
naquele pleito 90% das vagas nas Assembleias e nos governos dos estados.
No Piauí, essa situação se revelou ainda mais favorável à ARENA, pois
das 8 vagas na Câmara Federal, a “oposição”, o MDB, só elegeu uma, ficando a
ARENA com as 7 restantes. Elegeu ainda 34 deputados estaduais contra 8 do MDB.
Finalmente, elegeu o governador e o senador. Petrônio venceu a disputa com quase
65% dos votos. Estava consolidada sua carreira política e preparada sua chegada
ao “centro” do poder central.
Como se percebe, a instabilidade nacional tão evidente e principal fator
de prisões, torturas e paralisia da governança nos estados, no Piauí, carecem
melhor ser “apurada”. Apurada no sentido de se purificar, de separar a aparência da
essência. Muito desse processo ainda se encontra em estado de latência,
adormecido e precisa ser mais bem iluminado.
3.10 Petrônio, o hidridismo em movimento
“Onde há vida há inacabamento” (Paulo Freire)
Eleito em 1966 para a única vaga de senador em disputa com quase o
dobro de votos de seu principal adversário, Petrônio Portela se empenhou para
244
realizar o que ele acreditava ser o seu destino: um nome de expressão nacional na
política. Em fevereiro de 1967, assumiu o mandato de senador e logo conquistou a
presidência da Comissão de Legislação Social.
Já como um arenista declarado, Petrônio tratou de se aproximar do
General Costa e Silva, que recebeu em março o governo das mãos de Humberto de
Alencar Castelo, de quem Petrônio já se tornara próximo e recebera sua maior obra
de infraestrutura: a usina hidrelétrica de Boa Esperança, no município de
Guadalupe.
Com trânsito em todos os poderes e profundo estudioso dos temas
jurídicos voltados à legalidade ou ilegalidade, Petrônio participava de muitas reuniões
e assim foi aos poucos conquistando cada vez mais espaço, no partido e no próprio
governo militar. Ressalta-se que Costa e Silva (1967-69) integrava a chamada Linha
Dura e seu governo foi marcado por fortes reações da sociedade civil.
Os operários de Contagem (MG) e Osasco (SP) fizeram greves. Também
os estudantes protestaram nas ruas de todo o país, inclusive em Teresina e
Parnaíba, as duas principais cidades do Estado, exigindo o retorno da democracia
plena, a criação de mais vagas nas universidades e repudiando o acordo MEC-
Usaid, que representava uma tentativa de introduzir o pagamento de mensalidades
nas universidades públicas.
O ano de 1968 marcou também a morte, em março, do estudante
secundarista Edson Luís Souto, abatido pela polícia no Rio de Janeiro. Em junho de
1968, foi organizada contra o regime a Passeata dos Cem Mil. No mês de agosto,
ocorreu a invasão da Universidade de Brasília por policiais. Em relação à morte do
estudante Edson, o escritor piauiense Francisco Alves Catarino, aposentado da
antiga Varig, lançou, em 2007, uma obra de memórias, sob o título “Em busca da
felicidade”. Colega que foi do estudante assassinado, na busca de recuperar aquele
violento episódio, assim se expressa:
“Nesse dia eu vinha correndo do trabalho para jantar e logo em seguida assistir aula, pois não estava disposto a fazer qualquer contestação. Só que antes de entrar na área do restaurante, um amigo meu, de nome José Arteiro, me chamou para me mostrar onde ele estava trabalhando. Mesmo sem querer, aceitei o convite e fui. Nesse exato momento, eu já devia estar chegando na sala de aula. Esse convite a que eu resisti a princípio e reclamei foi o suficiente para evitar que chegasse antes da polícia. (CATARINO, 2007, p.114)
245
Nesse momento, Petrônio era vice-líder do governo e da Arena, e proferiu
na tribuna do senado um emocionado discurso em que condenou os excessos da
polícia e afirmou que os implicados seriam punidos com o rigor da lei. Em dezembro
desse mesmo ano, justificado pelo o cenário de tensão e muita agitação, o governo
militar editou a maior arbitrariedade do regime: o Ato Institucional n 5.
Vale acrescentar que, no Piauí em sintonia com o Ato Institucional nº 5 foi
editada a resolução nº 64/64 que determinava a realização num único dia de três
sessões para cassação de mandatos, tiveram suas funções parlamentares retiradas
os deputados Celso Barros Coelho (PDC), Severo Maria Eulálio (PTB), Solon
Correia de Araújo (PTB), dentre outros.
Agora em razão do famigerado Ato
número 5º, foram determinadas novas
cassações, entre elas: Alfredo Leal
Nunes (ARENA) por ter sido presidente da
SUPRA e ser pelos militares identificado
como subversivo. Também perdeu o mandato
de deputado federal Chagas Caldas
Rodrigues, ex-governador.
Para muitos políticos, especialmente os do sudeste o governo que tinha
um nordestino e especialmente um piauiense como protagonista, não poderia se
apresentar bem. Contrário a essa análise, Elio Gáspari, em sua obra A Ditadura
Encurralada (2004), ao se reportar ao bom capital relacional de Petrônio Portela,
assim se posiciona:
Tinha uma ampla rede de contatos dentro e fora do governo, dentro e fora do Congresso e segue [...] Tinha boas relações na oposição e um amigo no secretário Geraldo MDB, deputado Thales Ramalho. [...] Eram antigos conhecidos, do tempo em que, no Rio de Janeiro, militavam no movimento estudantil. Na noite da edição do AI5, Petrônio o procurara em casa, certo de que seria cassado. (GÁSPARI, 2004, p. 314).
Fonte: Revista Veja.
246
Contrário ao movimento que pretendia impedir a posse do Presidente
Juscelino Kubistchek em 1956, Petrônio, agora em 1964, coloca-se novamente em
defesa do Estado Democrático de Direito, postulando pela legalidade e manutenção
do mandato do Presidente João Goulart e, finalmente, em 1968, depois de defender
na tribuna do senado punição aos militares que invadiram a Universidade de
Brasília, quase se tornou um dos cassados pelos terríveis alcances do Ato
Institucional número 5º.
Entre as especuladas, previstas e até desejadas mortes políticas, o que
se assistiu foram sucessivos renascimentos. Dai surgia sempre um novo e
revigorado politico que se forjou um Petrônio que entre mortos e feridos, salvou-se
ileso e que fizera da luta pela revogação do AI5, a chamada Missão Portela, mais
uma etapa do seu processo de metamorfose. Fato é que Petrônio Portella deixou
como legado, dentre muitos, o resfriamento profundo da participação dos
trabalhadores, especialmente os do campo, na cena politica piauiense.
247
CAPÍTULO IV
4 O FAZER-SE DA NARRATIVA ACADEMICA LOCAL SOBRE AS
LIGAS NO PIAUI, uma crítica epistemológica ao discurso
colonizado que nega a experiência peculiar de Matinhos.
Basilar para a produção textual deste quarto e último capítulo, que se
ocupa em identificar, conhecer e analisar a produção historiográfica local em torno
do movimento social das Ligas Camponesas, – a partir da memória de alguns de
seus principais ativistas, mas principalmente do que se achou produzido no âmbito
da academia ( UFPI e UESPI) – com foco no processo de constituição da Liga de
Matinhos no Território dos Carnaubais, Campo Maior e outras experiências
organizativas constituídas no estado – foram as recomendações deixadas pelo prof.
Antônio Torres Montenegro. Tais recomendações se encontram na conclusão do
artigo “Travessia e desafios” (2012,p.61). Nesse escrito, o autor desenvolve uma
série de reflexões historiográficas revelando seus próprios impasses na vida
acadêmica desde o mestrado até aqueles dias.
Soma-se de modo bem apropriado a essas recomendações e
ensinamentos o alerta de Thompson (2001, p. 156) quando afirma que: “É um perigo
examinar a história apenas por certos fenômenos, pelas conformidades, ao passo
que é possível que fontes descartadas escondam novos significados”. Igualmente
importante foi a recomendação proposta por Certeau (2000, p. 67) quando se
referindo a processos de análise, afirma que: “toda interpretação histórica depende
de sistema de referências [...] que se infiltrando no trabalho de análise, organizando-
o à sua revelia, remete à ‘subjetividade’ do autor".
Outra importante contribuição vem de Cardoso (1979. p ) quando se
referindo ao método comparativo na história, alternativa que ele reconhece não se
tratar de um caminho fácil, comum e nem muito usual nesse campo, aduz que:
“comparar significa fazer uma escolha em meios sociais diferentes, de dois ou mais
248
fenômenos que apresentam, à primeira vista, certas analogias. Possibilitando, logo
depois, constatar e explicar as semelhanças e diferenças”.
Contribuição adicional vem de José Murilo de Carvalho que acredita ser
de “importância crucial o estudo comparado, pois só por meio dele é possível criar
teoria. Só desenvolveremos teoria própria quando saímos do paroquialismo e
começamos a estudar os outros. Não existe teoria de um só caso.” (CARVALHO,
1989. p. 14).
Também na perspectiva de um viés comparativo, Hobsbawn (1978, p.
20) reafirma a importância de “demarcar a existência de diferenças básicas entre um
movimento social revolucionário e um reformista. Estes últimos aceitariam a
estrutura geral de uma instituição ou de um sistema social, já os primeiros insistiriam
que a estrutura social deve ser transformada fundamentalmente ou, então,
substituída”.
Como bem se sabe, na América Latina e no Brasil, de modo particular,
ainda persiste uma dura realidade econômica e social, onde o problema de ordem
material e a luta pela democracia política estão longe de serem superados. Essa
conjuntura favorece a formação de uma diversidade de movimentos sociais, com
hegemonia de movimentos populares por terra, casa, comida, equipamentos
coletivos básicos, como também a questão de direitos humanos, demandas já
superadas, pelo menos, relativamente na Europa e Estados Unidos. Mas afinal, o
que a historiografia tem entendido por movimento social? Como a historiografia tem
interpretado esses movimentos? Com quais perspectivas? Quais suas primeiras
referências? Como eles se organizam? Quais suas variações? Por que efetivamente
eles ocorrem?
Sabe-se que as classes trabalhadoras da cidade e do campo vivenciam a
exploração capitalista de forma diferenciada e também possuem expectativas e
aspirações próprias e, por isso, distintas. Sendo assim, suas experiências de vida,
suas práticas, suas formas de resistência e suas aspirações, por consequência, são
particulares. Portanto, no caso dos trabalhadores rurais, por exemplo, trata-se de
uma cultura específica. A cultura camponesa.
Por que, então, a quase totalidade das pesquisas a que se teve acesso,
com raras exceções, quando tratam das Ligas Camponesas, enveredam pelo
caminho da uniformização, do discurso colonizado, tanto das causas, contexto,
249
demandas, processos de mobilização, organização e táticas de resistência,
conferindo aos movimentos de Pernambuco (Galileia), Paraíba (Sappe), Piauí
(Matinhos), aspectos de homogeneidade, numa leitura opaca que nega aspectos
particulares e específicos, que seriam realçados a partir de uma leitura minimamente
crítica e atenta sobre esses movimentos? Porque não reconhecem as experiências?
Em sua importante obra “Rebeldes e Primitivos”, publicada originalmente
no ano de 1959, o historiador Eric Hobsbawn defende que os movimentos sociais
podem ser vistos como iniciativas levadas a efeito por trabalhadores industriais
urbanos, assim como as diferentes formas de protesto da “vontade popular”, em
diferentes momentos e por diversos grupos socioprofissionais, cuja importância tinha
origem no seu caráter radical de massa. Também se enquadram nessa
caracterização eventos marcados pela presença da multidão nas ruas não
importando se eram de “esquerda” ou de “direita”.
Em outra publicação datada de 1972, intitulada “Da história social à
historia da sociedade”, Hobsbawn lança mão de movimentos sociais como sinônimo
de estudo dos conflitos sociais, dos tumultos e das revoluções – numa volta ao
marxismo da primeira metade do século XX – como representação de uma
transformação radical e profunda da sociedade. O pesquisador aponta ainda como
inconveniente a apropriação das revoluções como acontecimentos isolados dos
contextos em que aconteciam.
Ainda nessa perspectiva da imprecisão e da dificuldade para a história lhe
dar com esse conceito mais comum nas Ciências Sociais, Hobsbawn postula que os
maiores desafios para o historiador continuam sendo o estudo dos comportamentos
de classe e, sobretudo, as manifestações da consciência de classe. Esse era,
segundo seu entendimento, um terreno em que todos se viam tentados a analisar
pelo teor ideológico dos movimentos sociais.
Tal inclinação trazia riscos para quem empreendesse tal leitura. Isolar
certos fenômenos de seus contextos mais amplos, priorizar eventos que só
aconteciam em momentos de transformação revolucionária e ignorar movimentos
cujos integrantes não se manifestem na linguagem dos documentos escritos, dentre
outros, são alguns dos riscos apontados pelo pesquisador.
250
Tratando especificamente sobre movimentos sociais rurais no Brasil,
Clifford Welch (2006, p. 61) afirma “ser necessário examinar melhor como o
movimento camponês avançou em todas as regiões do país para bem compreender
o potencial, as particularidades e os problemas do movimento”.
Sabe-se que, a partir de 1950, as pesquisas em todo país e Piauí seguiu
essa tendência, focaram especialmente a participação popular. O foco no social
exalta a experiência das pessoas comuns, dos silenciados, invisíveis e anônimos da
História. Essa preocupação com o pobre, com as pessoas comuns de há muito já
povoava o imaginário e as preocupações de Monsenhor Chaves. Inquietação
equivalente aparece com bastante evidência no tópico “Vaqueiros e Roceiros”, Obra
Completa (2013, p. 634), quando o autor assim se expressa:
“precisamos reescrever a história do Piauí a partir do povo, a partir
do pobre. A que temos é a história do dominante, a classe que
produz os documentos e organiza os arquivos. Dela são os heróis, os
grandes, os libertadores, que de fato a ninguém libertaram, mas
mantiveram o povo na sujeição aos seus ‘modelos’ que garantem a
perpetuidade de seu status. Chama-se isto, erroneamente história.
De fato não é história, é tradição”.
Atento ao convite para examinar como a história do Piauí tem sido
contada e reforçar a tendência revisionista que deixa de lado a ideia de uma história
linear, que glorifica ou contesta os protagonistas históricos, valorizam os grandes
acontecimentos e, principalmente que se apoia em modelos que priorizam a
estrutura, o pesquisador toma por empréstimo a noção de experiência proposta por
Thompson, que traz a noção de sujeito e de processo. Também lança mão de
recomendações propostas pelo professor Montenegro quando chama atenção para
alguns cuidados e comportamentos que devem ter aqueles que se lançam ao ofício
de pesquisar. São eles:
1- “Para alguém se constituir um historiador profissional, deve entre
outras práticas, desfazer ou desconstruir o historiador natural que traz e que foi se
tornando, muitas vezes involuntariamente, ao longo da vida. Ele é desenvolvido em
nós desde [...], por meio de discursos e práticas aprendidas na família, nas religiões
e nas mais diversas redes sociais. Afinal é próprio da cultura, do senso comum,
251
estabelecer uma relação processual entre o passado, o presente e o futuro. Esta
relação apreendida acerca de diversas temporalidades e acontecimentos se
apresenta bastante casual, determinista, cronológica, maniqueísta, entre outras
marcas que se poderia apontar.”
2- O alerta feito quando afirma a partir da frase de René Magri utilizada
por Michel Foucault: “Isto não é um cachimbo”. Montenegro (2011) postula quando
diz: “somos nós, por meio de nossas redes sociais que construímos e significamos o
mundo [...] vivemos nos discursos que construímos e acreditamos, ou aprendemos a
acreditar como verdades por meio de nossas redes sociais e culturais. O real é o
como aprendemos a significar o mundo ao nosso redor, deve-se atentar para a
pluralidade de saberes e, a partir de então esmerar-se no sentido de não reforçar
posicionamentos preconceituosos, generalizantes ou reducionistas que, na sua
cegueira, não destacam a riqueza e o pluralismo, únicos em cada experiência social
vivida”.
Para (Prudêncio, 2000), fator importante no fortalecimento e na
compreensão dos movimentos sociais da América latina foi a presença da Igreja
Católica, por meio da ala progressista engajada na Teologia da Libertação que
mobilizou através das Comunidades Eclesiais de Base e das pastorais, até o início
do processo de abertura política, as camadas pobres da população em favor da
justiça social, baseada no princípio de solidariedade e esperança. Esse setor da
Igreja literalmente “entrou em campo” e engajou muito de sua militância na redução
das contradições sociais.
Na análise de Rubem César Fernandes (1994, p. 49), os novos
movimentos sociais suspenderam promessas e expectativas globais para afirmar-se
no plano local, o que provocou mudanças na forma das ações coletivas e nos
discursos dos atores. Assim, o “povo” dá lugar ao “popular”, para dar conta de uma
multiplicidade de sujeitos sociais singulares em luta pela afirmação de seus
significados. “A afirmação de uma identidade ‘contrastiva’ acarreta o reconhecimento
de uma experiência singular [...] cujo sentido não é apreensível no formalismo
abstrato e genérico das leis e dos estudos.”
E, portanto, alicerçado em todas essas recomendações e orientações que
se pretende lançar luz sobre algumas pesquisas realizadas no âmbito acadêmico
252
local, produzidas por estudantes das universidades estadual e federal do Piauí,
aferindo “encontros e desencontros” a respeito das experiências organizativas das
ligas camponesas no estado, pretende-se, dessa forma, fazer a crítica
epistemológica necessária e levantar conclusões sobre o posicionamento dos
autores que se dedicaram a escrever sobre essa importante experiência organizativa
no contexto social da federação.
Estado caracterizadamente provinciano, mas em vias de transformação, o
Piauí que se afigura, também, como espaço de acontecimentos direta ou
indiretamente relacionados com a dinâmica nacional.
Ressalta-se que esta preocupação, embora já existisse, somente ganhou
corpo e dimensão inquietante, a partir da pesquisa empreendida sobre a Liga de
Matinhos, em Campo Maior – Piauí, pois foi somente a partir desse estudo que o
autor pôde constatar o quanto a produção historiográfica local é atravessada e
emoldurada por análises cristalizadas e canonizadas que reforçam os modelos
prontos e negam as experiências. Tais análises conferem a esse movimento uma
visão uniformizante que denota um viés preconceituoso com inclinação generalista
ou reducionista, revelando um esforço de acomodar a realidade específica local ao
quadro explicativo teórico.
Foi, portanto, a partir dessa percepção, que o pesquisador submergiu-se
em reflexões, problematizando a questão camponesa, não acreditando no óbvio, na
aparente igualdade e no silêncio sobre o tema. A partir de então, procedeu-se a uma
(re) leitura dos marcos explicativos do fenômeno social das Ligas Camponesas,
nessa perspectiva valiosa também foi a orientação dada por Boris Fausto, para
quem “situar-se no terreno da história [...] significa apoiar-se nas fontes” (FAUSTO,
2009, p. 9).
Partiu-se ainda da elementar constatação que a classe trabalhadora rural
brasileira tem suas especificidades, modificando-se de acordo com cada contexto,
constituído de processos históricos próprios, portanto, não pode ser homogênea,
embora possa ter aqui e ali algumas semelhanças pontuais em todos os tempos e
espaços onde quer que se organize.
A tese que se defende neste estudo é a de que a movimentação com
diferentes estratégias e táticas, da classe trabalhadora do pré e pós 64, possibilitou
um real crescimento da consciência política de classe que se constituía no fazer-se
253
e enquanto se fazia se transformava em sujeito ativo e não apenas em simples
massa de mobilização orientada por objetivos alienígenas à sua perspectiva de
classe ou de movimento social reivindicativo – no caso de Matinhos – como
defendem algumas vertentes teóricas.
Percebeu-se, portanto, na problematização que se faz sobre o período,
tema, fontes e objeto em questão, principalmente nas leituras produzidas no pós 64
– uma visão a partir da qual o golpe civil-militar teria apenas reforçado, ao fim de um
cabo, a derrota total e inexorável de um processo fomentador de distintas
experiências de resistência camponesa no Brasil. Isso porque, no entender dessas
correntes, as experiências em cursos já apresentavam evidentes sinais de
contradições internas, fragilidades, dependência exterior e debilidades que
comprometiam, ainda nas origens, seu sucesso enquanto movimento social.
Um dos aspectos específicos do qual se discorda no tocante a essas
análises, além dos anteriores já elencados, como se verá logo a seguir – postulado
particularmente por certas vertentes da historiografia sobre as ligas – é a defesa,
que o perfil político revolucionário marcante, deve necessariamente figurar, nessas
lutas de resistência camponesa organizadas, especialmente no Nordeste, como
elementos imprescindíveis para caracterizar o fenômeno das ligas.
Na análise procedida por essas correntes, a luta por reconhecimento
político, contra o rebaixamento social e a proeminência de um perfil reivindicativo
presentes em outros movimentos, como de Matinhos no Piauí, descaracterizam o
movimento social das Ligas Camponesas e, ainda que representem uma ação
coletiva, uma luta organizada, são incapazes de formar uma nova identidade, como
as ligas de Pernambuco, por exemplo, conseguiram. Isso porque a grande maioria
desses estudos sobre os trabalhadores rurais como dito, apenas os focalizam como
figurantes, sendo subordinados à determinação estrutural das condições de
desenvolvimento da economia e da dinâmica vida política. Nessas análises a
realidade casa perfeitamente dentro dos modelos teóricos preconizados.
Finalmente, concordando com De Decca (1992) que, por sua vez,
corrobora com Hobsbawn, poucos temas historiográficos são tão controversos e
sujeitos à debate quanto o dos movimentos sociais.
Habermas (1981), Marson (1992), Touraine (2003), Melucci (1988) e
Luhmann (1996) são também autores que, embora com o olhar da sociologia,
254
confirmam a dificuldade que é traçar uma definição l suficiente e plausível para
“movimentos sociais”, que dê conta das múltiplas variações e amplitude de critérios
suficientes para abarcar essas experiências tão únicas e particulares.
Todavia, embora tenham todos eles teorias particulares sobre a questão
dos movimentos sociais, confluem para o mesmo postulado central nas distinções
entre o público e o privado, na afirmação da ideia de identidade, na politização da
vida privada e na luta por direitos, na medida em que, para esses estudiosos, os
movimentos sociais são a própria sociedade civil, que se coloca como agente de
pressão lutando dentro da legalidade de estado.
O levantamento das pesquisas existentes no estado permitiu constatar, a
partir de leituras mais aprofundadas, que mesmo em se tratando de estudos que se
ocupam da mesma temática e objeto, existem elementos suficientes que
particularizam e diferenciam essas pesquisas entre si. Tais especificidades
permitiram, ao autor da pesquisa em curso, proceder tanto uma critica ideológica
quanto epistemológica dos trabalhos produzidos bem como agrupá-los em três eixos
distintos.
O primeiro eixo contempla os estudos que caracterizam as ligas como
sendo resultado exclusivo do protagonismo dos camponeses, os únicos
responsáveis pela luta dos trabalhadores, que nessa visão é uma experiência
vitoriosa, mas sem qualquer poder de transformação politica e social.
Para este grupo de pesquisas, embora os camponeses sejam, conforme
aponta Moura (1986, p. 10) “sempre o polo mais oprimido da sociedade”, ainda
assim, são desprovidos de consciência política capaz de estabelecer uma relação de
nexo entre a miséria e o sofrimento por eles vividos com a estrutura de concentração
de terras dominante no Brasil e no Piauí de modo particular.
A atuação das ligas tem importância no sentido de solucionar algumas
demandas que surgem no cotidiano. Demandas, às vezes, mais complexas e outras
nem tanto. Também, na interpretação dessas pesquisas, os camponeses não são
auxiliados por nenhuma força política externa na organização de suas entidades e
se limitam a analisar o movimento em Campo Maior, não fazendo referência mais
profunda a nenhuma outra experiência ocorrida no estado.
255
Nesse grupo, enquadram-se as pesquisas: 1- “Ligas Camponesas no
Piauí: Município de Campo Maior. Uma História de Vida.” (1991), de Libonato de
Carvalho Rocha, Lurdes Carvalho e Joaquim Ângelo; 2- “Ligas Camponesas no
Piauí”. (2002) de Ana Cristina F. Muniz e Antônio Soares Farias; 3 – “Mobilizações
Camponesas: ruralização e enfrentamento na prática das primeiras organizações
sindicais agrárias campo-maiorenses (1950-1964)”, (2010), de Rômulo Oliveira Paz.
Para esses pesquisadores, a experiência camponesa de Matinhos, apesar do
desfecho final, é vitoriosa.
O segundo eixo de análise contempla um conjunto de duas pesquisas. A
mais substancial delas vem do campo da sociologia, trata-se de uma pesquisa de
mestrado. 1- “Sindicalização rural e mobilização camponesa na crise do populismo:
o caso do Piauí” (1994), de autoria de Antônio José Medeiros; 2- “Uma Liga
Camponesa na região dos Carnaubais: momentos emblemáticos na formação da
liga de Campo Maior (1950-1980)”, (2011) de Ricardo Reinaldo da Silva Calaça.
Nessa linha de análise, os camponeses são considerados incapazes de
arregimentarem, por si só, forças para fazer frente à exploração dos latifundiários,
necessitando de agentes mobilizadores externos, como a Igreja Católica e o Partido
Comunista.
Para uma dessas pesquisas, a primeira de autoria do sociólogo, o
movimento camponês nem mesmo deve ser configurado como Liga Camponesa e,
para ambas, trata-se de uma experiência derrotada. Esses pesquisadores também
defendem a ideia de que a Igreja Católica, sobre o argumento de “proteger o povo
de Deus”, empreendeu grande esforço no sentido de apoiar o sindicalismo rural
numa clara oposição ao movimento das ligas, considerado ponto de instabilidade no
meio rural piauiense. Ainda em relação à pesquisa de Antônio Medeiros, ressalta-se
a importância dada à prática populista pelos governos de então, entendidos pelo
autor como um dos elos explicativos para a mobilização camponesa.
Constituindo o terceiro eixo, estão as pesquisas que tributam ao
movimento social das Ligas no Piauí uma visão de luta vencedora. Nesse grupo, as
pesquisas já se apresentam emolduradas por uma leitura interpretativa que combina
e articula traços de uma tendência revisionista, na qual o foco principal não se
localiza na existência dos agentes mobilizadores externos, mesmo sendo
256
reconhecida sua presença, mas na ação organizada e articulada dos camponeses a
outras forças, a exemplo de algumas organizações partidárias.
Nessas pesquisas, as ligas são uma experiência vitoriosa, mas foram
articuladas a partir de investimentos dos comunistas e da influência do julianismo
dominante em Pernambuco e do trabalhismo incipiente que nascia no Piauí.
O principal trabalho nesse grupo é intitulado “Tempo de Esperança:
camponês e comunista na constituição das ligas camponesa no Piauí nas décadas
de 1950-1960”. (2015), de autoria de Ramsés de Sousa.
O segundo estudo que compõe esse grupo é intitulado: “Da Exploração à
Militância: entre memória e páginas; a liga camponesa em Campo Maior (1962-
1964)”. (2015). Trata-se de outra pesquisa que também tributa à luta camponesa no
estado um viés de resistência vitoriosa, mas que não reconhece em suas lideranças
suficiente capacidade política de agir, sem a influência de agentes mobilizadores
externos e nisso adota a mesma linha argumentativa já consagrada pela
historiografia dominante.
Nessa pesquisa, a liga de Matinhos em Campo Maior nasce da
tenacidade dos irmãos Lopes contra a exploração levada a efeitos pelos
latifundiários. Esse estudo também discute a cisão entre os camponeses que são
representados tanto pela liga quanto pelo sindicato que atua a partir da orientação
da Igreja Católica local. Trata-se de uma monografia de conclusão de curso de
autoria do historiador Ramiro Ibiapina.
A terceira pesquisa que compõe esse grupo é intitulada: “Na lei ou na
marra: contexto, trajetória e repressão no caso das ligas camponesas nordestinas
(1955-1964)”, de Gilmar Ferreira Viegas Júnior. Trata-se também de uma
monografia de conclusão de curso e, assim como a pesquisa de Ramiro Ibiapina,
explica a luta em Campo Maior a partir do avanço do capitalismo, da influência direta
do Partido Comunista e tem relação de causa com a miséria provocada
pelos desdobramentos de duas grandes secas no período. Nessa pesquisa, o
autor interpreta o fenômeno das ligas como sendo provocado principalmente pela
política de expulsão dos camponeses, levada a efeito pelos latifundiários em todo o
país.
Os primeiros estudos “LIGAS CAMPONESAS NO PIAUÍ: Município de
Campo Maior. Uma História de Vida” e “Ligas Camponesas no Piauí” foram
257
produzidos respectivamente em 1991 e 2002. Trata-se de dois artigos, sendo o
primeiro resultante de um trabalho apresentado em seminário de conclusão da
disciplina de História do Brasil, do Curso de Licenciatura em História (UFPI) e o
segundo apresentado no primeiro Encontro de Geografia Urbana do Piauí. São,
portanto, pesquisas produzidas por duas áreas diferentes, mais afins.
No artigo produzido por Libonato Rocha, Lurdes Carvalho e Joaquim
Ângelo, os autores não realizam um estudo aprofundado sobre o fenômeno das
Ligas Camponesas, pelo contrário, durante quase toda extensão da pesquisa,
limitam-se a narrar fatos e acontecimentos em torno das condições que deram
origem e permitiram a atuação da liga de Matinhos.
No trecho que se segue, é possível dimensionar as motivações e os
objetivos dos camponeses quando decidiram criar a Associação, sobre essa tomada
de decisão os autores assim se expressam:
“Foi aí que na localidade Matinhos, distante 18 km da sede do município de Campo Maior, área onde predominava um grande número de trabalhadores rurais sem terra e pequenos proprietários, que cultivavam lavouras de subsistência – arroz, milho, feijão e mandioca – e criavam pequenos animais, como: porco, cabra e ovelhas, lideradas pelo agricultor e vaqueiro Luiz Edwiges, sentiram a necessidade de serem reconhecidos como uma categoria profissional, como as demais já existentes na época [...]. Surgindo assim a Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Campo Maior - ALTACAM” (ROCHA, CARVALHO e ANGELO, 1991, p .209)
Como se percebe, a liga passou a ser uma espécie de porta-voz dos
agricultores, especialmente os que a ela recorriam. O objetivo dos autores fixou-se
em “resgatar a história das Ligas Camponesas no Piauí”. O texto se mostra
claramente descritivo, apresentando baixo caráter analítico sobre o tema.
Para os autores, as ligas camponesas surgiram na região como uma
reação às precárias condições de vida nas quais viviam os trabalhadores. A
Associação nesse sentido é resultado da própria atuação dos lavradores, cuja
liderança coube à família Osório Lopes, especialmente dos irmãos José Ribamar e
Luiz Edwiges.
258
Os autores aludem, ainda, em certa altura do artigo, que a liga passou a interferir diretamente na vida dos agricultores prestando assistência. Nesse esforço, afirmam que: “A liga se preocupou também em resolver os problemas mais imediatos dos seus associados que por ventura viessem a se encontrar em dificuldades, como a preocupação de encontrar áreas de terra para implantação de lavouras, onde mesmo havendo resistência por parte dos proprietários, assessorados e apoiados pela diretoria da liga, faziam suas roças e pagavam a renda estabelecida em acordo” (ROCHA, CARVALHO e ANGELO, p. 218).
Outros fatos são narrados pelos autores, reforçando o caráter descritivo
do artigo. Ao analisar o conjunto de atividades desenvolvidas pela liga de Matinhos
em parceria com trabalhadores da Construção Civil, forjando, no entender dos
autores, uma aliança entre camponeses e operários, campo e cidade, na região de
Campo Maior, os autores afirmam que:
“A partir dessa unidade, com a participação do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Campo Maior, trabalhadores rurais e urbanos passaram a desenvolver atividades conjuntas, tendo como finalidade denunciar para toda a sociedade o nível de exploração da burguesia sobre a classe trabalhadora, surgindo daí a ideia de desenvolver concentrações populares nos centros urbanos. [...] Foi grande o Ato Público realizado em 1de maio de 1963.”
O artigo segue narrando os principais passos desenvolvidos pela liga,
bem como do conflito com a Igreja, das divergências com o sindicato de orientação
católica e se encerra com o desmonte da liga a partir da prisão dos líderes pelos
militares que tomam o poder em 1964.
Este trabalho tem o mérito de ser a primeira pesquisa realizada no estado
sobre as ligas. Entretanto, ao se desenvolver essencialmente a partir de depoimento
dos líderes, silencia a participação dos camponeses como classe social em
processo de organização.
Passados dez anos, outra pesquisa, agora emergida dos estímulos
advindos do debate em torno das abordagens teóricas sobre o mundo rural-urbano
produzido nos anos 2000, pela Geografia, os autores Ana C. F. Muniz e Antônio S.
Farias, concordando, assim afirmam na introdução de seu estudo, com os
postulados de Marques (2000), para quem:
259
“a forte presença dos movimentos sociais no campo tem tornado cada vez mais evidente a necessidade de elaborar uma estratégia de desenvolvimento para o campo que priorize as oportunidades de desenvolvimento social e não se restrinja a uma perspectiva estritamente econômica”.
Também os autores se beneficiam da argumentação de Carlos (2002),
quando afirma que:
“a reorganização do processo produtivo aponta para novas estratégias de sobrevivência no campo e na cidade, bem como para a presença dos movimentos sociais, os quais questionam a existência da propriedade que marca e delimita as possibilidades de apropriação e domínio tanto no campo quanto na cidade”.
O artigo dos autores fornece pistas consistentes sobre suas preferências
no sentido de explicar em território piauiense a presença do movimento social das
ligas camponesas. Para Muniz e Farias (2002, p. 05), não existem dúvidas quanto
ao principal fator que justifique a criação das ligas. Sobre elas, aduzem que:
“o processo de formação das ligas camponesas tem que ser entendido como uma manifestação de um estado de tensão e injustiças a que eram submetidos os trabalhadores rurais e as profundas desigualdades nas condições gerais de desenvolvimento capitalista no país. Esse processo foi marcado por duas grandes tendências, de acordo com as características das várias áreas do Nordeste. Portanto, onde havia predominância da monocultura, principalmente a canavieira, desenvolveu-se uma intensa política de expropriação dos camponeses, numa tentativa de transformá-los em assalariados, onde não permaneceram pagando o cambão e outros impostos.”
Para os pesquisadores, a justificativa para o surgimento desse tipo de
movimento está ancorada essencialmente na expansão do capitalismo para o
campo. A luta pelo lucro desmedido dos capitalistas, a condição de estado mais
pobre e os piores índices de qualidade de vida faziam com que essa expansão
capitalista, comum a todo Brasil, encontrasse aqui na região Nordeste e de modo
muito particular no Piauí as condições ideais para a ocorrência desses movimentos,
vistos pelos autores como políticos.
260
Embora essa pesquisa tenha centralidade no movimento social das ligas
camponesas, percebe-se sem muita dificuldade o viés explicativo do campo da
Geografia. O texto é muito atravessado por informações sobre meio, população,
vegetação, seca, etc.
Faz sentido, então, pelo menos sob a perspectiva da Geografia praticada
à época da elaboração do estudo sobre as ligas em Campo Maior, seu caráter
descritivo.
Essa marca, entretanto, não desqualifica a pesquisa e, em que pese ser
produzida, segundo um dos autores, para atender principalmente a demanda de um
Encontro de Geografia Urbana, configura-se como um importante estudo sobre uma
das principais formas de resistência do camponês piauiense aos avanços do
capitalismo selvagem.
Depois de praticamente duas décadas, surge nova pesquisa.
Trata-se de uma monografia de conclusão de curso. Intitulada “MOBILIZAÇÕES
CAMPONESAS: ruralização e enfrentamento na prática das primeiras
organizações sindicais agrárias campo-maiorenses” (1950-1964), de autoria do
historiador Rômulo Oliveira Paz. O autor apresenta sua pesquisa aos leitores da
seguinte maneira:
“As ligas camponesas foram associações de trabalhadores rurais criadas inicialmente no Estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no Estado do Rio de Janeiro, Goiás e em outras regiões do Brasil.[...] Foi um dos movimentos mais expressivos contra as relações de trabalho no campo e de luta pela reforma agrária. [...] no Nordeste brasileiro, onde as condições de vida da população camponesa eram de extrema pobreza e o avanço da monocultura da cana-de-açúcar e outras imposições capitalistas provocavam a expulsão do homem do campo.” (p. 9).
A maneira com o autor introduz sua pesquisa já fornece pistas da
orientação teórica que deverá perseguir no desenvolvimento de seu estudo. Ao
“uniformizar,” numa perspectiva de contextualização as ligas em Pernambuco, Goiás
e Piauí, por exemplo, o autor deixa transparecer que todos esses movimentos são
iguais em causa de existir, objetivos a alcançar e, em determinado momento, até na
composição social.
261
Com o desenvolvimento da pesquisa, porém, o autor anuncia que “o fato
de nossa historiografia tratar de forma tímida o assunto falou mais alto e por isso ele
se dispôs a pesquisar” (p. 10). Dito isso, o autor então apresenta a pesquisa, que é
constituída de três capítulos. O primeiro descreve o “surgimento e a trajetória das
ligas no Brasil”; o segundo intitulado “fragmentos da mobilização camponesa em
solo piauiense” trata da ocorrência das ligas no estado e o terceiro e último é
nomeado “as ligas camponesas em Campo Maior e seus desdobramentos na visão
de Luiz Edwirges”.
O desenvolvimento da pesquisa se faz a parir de um rápido debate teórico
sobre a origem e definição do termo “camponês”. Nesse empenho, o autor lança
mão de dois estudiosos da matéria. Primeiramente se apoia na definição
apresentada por SILVEIRA (2007) para quem:
“O termo ‘campesinato’ é de origem recente em português, e vem sendo
empregado principalmente no domínio das Ciências Sociais para significar o
conjunto de camponeses; é um substantivo coletivo [...].Deriva do adjetivo
“campesino”, que é sinônimo de campestre, de rústico. Os substantivos correlatos
são: camponês e campônio, isto é, habitante do campo, aldeão, indivíduo rústico”
(QUEIROZ, 1973, apud, SILVEIRA, 2007, p. 15).
Em outro momento da pesquisa, o autor faz uma crítica ao que ele
nomeia de “modernidade capitalista”. Nessa perspectiva: “a identidade social
camponesa tem se tornado ‘inoperante’, em face desse agente social transformado
agricultores no caldo da modernidade capitalista.[...], então o que estamos assistindo
é a morte do camponês, enquanto identidade social com poder explicativo no
universo agrário.” (p.15).
Dessa forma, busca identificar o camponês com alguém em extinção ou,
conforme o próprio autor afirma em certa altura do estudo, em “transformação”,
sendo caracterizado como agricultor familiar, assentado, lavrador ou simplesmente
trabalhador rural.
Sem apresentar muito nexo entre o debate teórico sobre o termo
camponês e a formação do movimento social das ligas, o autor quase que
instantaneamente adentra no período do governo Vargas, em que cita a criação do
262
Ministério do Trabalho e sua política de sindicalização rural. Nesse sentido, o autor
se apropria de análise proposta pelo historiador Marcos Villar (2006), para quem:
“em matéria de legislação trabalhista a fase da redemocratização representou duas importantes vitórias: a) em primeiro lugar, foram ampliados – através de um quadro de normas programáticas – outros direitos como o reconhecimento do direito de greve, repouso remunerado. [...] direito à indenização por antiguidade e à estabilidade do trabalhador rural; b) em segundo lugar, inclui a Justiça do Trabalho entre os órgãos do Poder Judiciário.”
Fazendo uma espécie de síntese do processo político brasileiro, o autor
tencionando estabelecer uma ponte entre a criação de vários partidos na fase da
redemocratização e o fenômeno das ligas camponesas, especialmente em
Pernambuco, onde foi, segundo ele, o nascedouro do primeiro núcleo das ligas
camponesas no país - símbolo da reforma agrária que os camponeses almejavam.
Ainda sobre a criação do primeiro núcleo e o acelerado processo de expansão das
ligas o autor assevera:
“A partir de 1959, as Ligas Camponesas se expandiram também rapidamente em outros estados, como a Paraíba, Rio de Janeiro (Campos) e Paraná, aumentando o impacto político do movimento. [...] Entre 1960-1961, as Ligas organizaram comitês regionais em cerca de dez estados da Federação. Em 1962 criou o Jornal A Liga, porta-voz do movimento em nível nacional.” (p. 24).
Para o autor, as Ligas constituíam-se num movimento único, porém com
variações e ligações orgânicas nos limites do Estado de Pernambuco, considerado o
berço do movimento na sua modalidade revolucionária.
Embora o autor considere que a experiência das ligas foi vitoriosa em
Pernambuco, onde se consolidou como força política, auxiliando inclusive
eleitoralmente os candidatos do PSB, admite também que a forte concorrência da
Igreja Católica através de um intenso movimento de criação de Sindicatos Cristãos
foi decisiva para enfraquecimento das ligas, que, embora vitoriosas, foram também
efêmeras.
No segundo capítulo, quando discute a ação das Ligas em solo piauiense,
o autor inicia fazendo uma breve biografia do líder camponês Luiz José de Ribamar
Osório Lopes, “Luiz Edwirges”. Nesse empenho, reporta-se a origem humilde de
263
filho de lavrador, pertencente a uma família de nove irmãos e um homem de poucas
letras.
A narrativa segue tratando de sua entrega em favor das causas sócias de
sua gente. Finalmente apresenta o Edwirges, líder camponês que, “sendo homem
de muita sensibilidade”, defende os trabalhadores e por isso se torna aos olhos dos
latifundiários da região e logo depois de atuar como presidente da liga de Matinhos,
entidade por ele criada para defender o camponês, torna-se também subversivo
para as autoridades governamentais de então.
Ao tratar de modo particular sobre a fundação da Liga de Matinhos –
ALTACAM - como ficou conhecida a entidade, o autor introduz o leitor da seguinte
forma:
“Depois da divulgação do edital de convocação, como era obrigado se fazer, todos ficaram sabendo do que iria acontecer, inclusive os proprietários de terra. [...]. Começou então verdadeira propaganda de ameaça aos trabalhadores agregados nas terras dos latifundiários. [...] Ameaçados de expulsão e de prisão pela polícia, o número esperado de 3000 mil trabalhadores, somente 620 aproximadamente compareceram”. (p. 35)
A partir do ato de fundação da liga, o texto segue narrando outros eventos
desenvolvidos pela liga. O mais importante teria sido realizado em 12 de maio de
1963. Sobre o episódio, o autor assim se posiciona:
“Diferente dos outros, que eram comemorados com festas, missas e solenidades cívicas, esse Ato Público foi iniciado com uma passeata saindo da localidade Riacho das Pintadas em direção a Campo Maior e fizeram várias concentrações. Uma parada foi feita em frente à Igreja Matriz e as outras duas em frente ao Mercado Público e a cadeia, respectivamente.” (p. 36).
Assim a trama que fundamenta a pesquisa é essencialmente
desenvolvida a partir de relatos do líder camponês Luiz Edwirges. Quase nenhum
debate teórico que complemente a fundamentação da pesquisa é apresentado.
Finalizando o estudo, o autor aduz que a Liga de Matinhos foi influenciada pela ação
política democrática do governador Chagas Rodrigues, que inclusive tinha por
conduta “abrir o palácio para o povo”. Desse modo, o autor conclui dizendo:
264
“a história das Ligas Camponesas de Campo Maior se confunde com a própria história das ligas no Piauí, assim também como foi a liga do Engenho Galileia, em Pernambuco, na sua relação com outras no interior daquele Estado”. (p. 39).
Como se percebe, a pesquisa que atribui a organização dos camponeses
de Campo Maior em particular, e do Piauí como um todo, inicia-se afirmando que as
ligas são um fenômeno social nacional com maior incidência no Nordeste, de onde
teria se espalhado pelos vários estados da região.
Outro aspecto revelador de certa fragilidade da pesquisa, em que pese se
tratar de um estudo introdutório e, talvez por isso superficial, é o fato de o autor
silenciar profundamente sobre a atuação dos trabalhadores rurais de Campo Maior e
das demais regiões vizinhas, onde a ALTACAM teria atuado em defesa dos
trabalhadores, defendendo-os dos latifundiários e, ao mesmo tempo, integrando-os à
sociedade, promovendo justiça social e democracia política, conforme afirma o autor
em sua conclusão.
Essa pesquisa, como já se afirmou, apesar de considerar a luta
camponesa vitoriosa, atribuindo aos agricultores o protagonismo exclusivo da luta,
pauta-se, ao final, pelo mesmo viés explicativo já canonizado na maioria das
interpretações. Nesse caso, os camponeses do Piauí não tinham consciência de seu
papel político e nem se percebiam como atores capazes de transformar de modo
consciente e determinado suas histórias, sendo a luta e as principais conquista
resultantes da atuação destemida e consciente dos irmãos Lopes, figura sem a qual
as ligas não teriam prosperado.
Nesse intuito, silenciam, assim como outros estudos da mesma
magnitude, a luta camponesa como um todo. Também para o autor deste estudo
uma das fragilidades da Liga de Matinhos foi não ter se consolidado e se convertido
num movimento revolucionário como ocorreu em Pernambuco
No conjunto de pesquisas que compõem a segunda linha de análise se
agrupam os estudos de Antônio José Medeiros e Ricardo Reinaldo da S. Calaça.
O primeiro trabalho tem suas origens emergidas das preocupações do
autor que, como sociólogo, ocupa-se principalmente em conduzir sua interpretação
da sociedade por meio de cortes conjunturais, bem como por tentar definir teorias
explicativas dos fenômenos sociais sem se preocupar profundamente com a
265
historicidade dos fenômenos sociais e suas respectivas causas de fundo,
interpretando-as a partir dos variados contextos sociais.
A pesquisa de Medeiros aborda o tema a partir da mobilização
camponesa como parte do processo de mobilização social, política e ideológica que
caracterizou a crise do populismo. O autor desenvolve toda sua argumentação a
partir de uma perspectiva que concebe a priori o papel, o lugar e a importância de
alguns sujeitos sociais, como por exemplo, do camponês. Para Medeiros vivia-se
“um momento quente” da história brasileira.
A tese do sociólogo se desenvolve a partir da compreensão de que a
Revolução/Golpe de 1930 resultou no deslocamento da tradicional oligarquia
paulista do centro do poder. A partir de então nenhum dos setores sociais a ele
articulados e vitoriosos teve condições, isoladamente, de legitimar o novo regime ou
oferecer uma solução para a crise econômica instalada. Essa conjuntura gerou na
interpretação do sociólogo um vazio de poder que forjou um “Estado de
Compromisso”. Estado este que inicialmente suportou as demandas e pressões,
mas que no extremo da tensão social, exigiria transformações mais profundas,
estruturais inclusive, que o levaria ao seu desmonte.
No arcabouço teórico montado pelo pesquisador, o conceito de populismo
e o processo de sindicalização rural são tomados como base para explicar todo o
processo de “incorporação das massas rurais”, que acabaram por criar um ambiente
formalmente democrático, o que pressionou ainda mais as elites e os militares
ensejando as condições para o golpe civil-militar instituído em 1964.
Embora o período de 1946-1964 tenha sido marcado pela ampliação da
participação de membros do mundo do trabalho na política institucional, por meio da
extensão dos direitos políticos às mulheres, por exemplo, tal “avanço” é
‘compensado’ de diversas formas. Destaca-se a conservação da exclusão dos
analfabetos do processo político formal, o controle das entidades sindicais e sua
redução à condição de células do estado e a política ideológica de massas,
amplamente viabilizada por meio dos novos e disseminados veículos de
comunicação de massa.
A tese defendida pelo sociólogo é estruturada a partir do binômio agente
mobilizador de um lado e massa rural mobilizada do outro. Em sua argumentação,
266
fica evidente a capacidade política, a consciência social e ideológica do agente
mobilizador e a completa ausência desses atributos aos trabalhadores rurais.
Nessa perspectiva, os agentes mobilizadores são principalmente o
Estado, o Partido Comunista, a Igreja Católica e, em menor grau de importância, o
Partido Trabalhista Brasileiro. Os trabalhadores são nessa lógica explicativa
destituídos de sua condição histórica de sujeito pensante. São meramente uma
“massa rural sem percepção de si, sem consciência social e política”. O sociólogo
tem para essa leitura a seguinte explicação:
“O processo de constituição dos camponeses em sujeitos sociais e políticos era embrionário no pré-64. As condições de dominação social e marginalização cultural em que representavam obstáculos a esta constituição. A sua situação de ‘comunidade tutelada’ favorecia o localismo e outros tipos de lealdade que a de classe. Por isso considerado da perspectiva do dinamismo político-nacional, a multiplicidade de comunidades ganhava o caráter de massa rural. Talvez por isso, a transformação das massas rurais em sujeitos ganhava a forma de mobilização (parceiros fantasmas de que fala Weffort) mais do que de movimentos sociais (parceiros efetivos).”
As organizações sociais instituídas no estado, como a Associação dos
Trabalhadores de Campo Maior-ALTACAM, a Associação de Trabalhadores de
Teresina- ALTATE e os vários sindicatos fundados no mesmo período são
compreendidos pelo sociólogo como resultante de forças mobilizadoras externas e
jamais seriam, na visão do sociólogo, resultante originalmente da maturidade social
e organicidade política dos trabalhadores. Todas elas, no seu entendimento, foram
resultantes de um longo e bem elaborado processo de atuação de setores da Igreja
Católica e relação a alguns sindicatos, posto que em muitos outros casos o estímulo
veio do governo através da Superintendência da Reforma Agrária - SUPRA e do
Conselho Nacional de Sindicalização - CONSIR.
Em relação às associações, tem-se que algumas lideranças ligadas ao
Partido Comunista tiveram reconhecida participação na organização e atuação da
entidade que representava os trabalhadores de Teresina – ALTATE. Essa
participação, no entanto, não se deu em relação à associação de Campo Maior -
ALTACAM, - liga Camponesa de maior expressão no Piauí e nem em outras que se
formaram, por exemplo, em Parnaíba e Regeneração.
267
Conforme dito, o autor fundamenta seu discurso argumentativo a partir do
conceito de populismo que se converte, então, em uma das chaves explicativas para
caracterizar a política, mostrando sua interação crescente com a conjuntura
nacional. O populismo nesse sentido se apresenta como “Estado de compromisso”
que, com a urbanização e democratização, torna-se um “Estado de Massa”. E,
portanto, “o apelo às massas que se torna fonte de legitimação do novo poder
político” (Weffort:1978, p. 70).
Ainda em relação ao populismo, o autor se apoiando no mais das vezes
em Weffort apresenta sua interpretação sobre essa política aferindo, inclusive sua
etapa, que culmina com o reformismo nacionalista de João Goulart. Para o
sociólogo, tomando por empréstimo os dizeres de Weffort (1978, p. 37) para quem o
reformismo assistencialista-nacionalista pagou seu tributo à época, pois “entre o
populismo dos demagogos e o reformismo nacionalista de 1964 sempre existiram
afinidades profundas de conteúdo”.
A outra ferramenta explicativa utilizada pelo autor para consolidar sua
tese que imputa aos trabalhadores do estado “incapacidade política” para agir sem a
efetiva presença dos agentes mobilizadores é a política de mobilização. Assim, a
experiência organizativa dos trabalhadores, principalmente rurais, no Piauí, que é
descrita como derrota, somente foi possível pela conjugação desses dois fatores.
A pesquisa levada a efeito pelo sociólogo se constitui, a despeito da
leitura preconceituosa e reducionista que apresenta sobre o papel da classe
trabalhadora, no mais substancioso estudo sobre o tema, campo e objeto,
sindicalização rural. O autor inclusive não adota a nomenclatura Liga Camponesa,
que no seu entender não se aplica à experiência desenvolvida no estado.
Consolidando o grupo de pesquisas que compõe a segunda linha de
análise – que tributa aos camponeses “incapacidade política” de agir e por isso
necessitam de agentes mobilizadores externos e ainda se apresenta como uma
“experiência derrotada” tem-se o estudo de autoria do historiador Ricardo Reinaldo
“Um LIGA CAMPONESA NA REGIÃO DOS CARNAUBAIS: momentos
emblemáticos na formação da liga de Campo Maior (1950-1980)”. Trata-se de um
trabalho apresentado como requisito para conclusão da graduação em História da
Universidade Estadual do Piauí, campus Heróis do Jenipapo em Campo Maior, PI.
268
Composto por dois capítulos, a análise se propõe a estudar a “Formação
da liga de Matinhos” a partir do contexto histórico local e nacional, que permitiu a
organização dessas experiências organizativas, passando pelas primeiras
conquistas e principais dilemas. No segundo capítulo, o autor postula discutir “O
modo de atuação da Igreja Católica” no meio rural em oposição às ligas, criando
para isso o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo Maior, identificado como
sindicato católico.
Logo na introdução de sua pesquisa, o autor revela sua linha de análise
quando afirma que:
“em alguns momentos do corpo do trabalho se perceberá a relação entre a Liga de Matinhos e do engenho Galileia, no município de Vitória do Santo Antão, fundada em 1º de janeiro de 1955, denominada (SAPPP) – Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco [...] daí surgiram outras ligas em diversos municípios e outros Estados” (CALAÇA, 2011).
Para o autor, a experiência organizativa no Território dos Carnaubais não
teve, apesar de apontar alguns pontos de convergência e particularidades, as
mesmas causas de fundo que fizeram emergir as ligas na Paraíba, Pernambuco e
em outros estados. Nesse empenho, aduz que: “O movimento camponês dos
‘Matinhos’ em Campo Maior tem algumas particularidades que a liga de Galileia não
tem; a ausência da penetração capitalista no campo e a falta de apoio político”.Para
o autor, esses dois aspectos são suficientes para conferir ao movimento emergido
de Matinhos um perfil que o torna diferente das demais experiências ocorridas
dentro e fora do estado.
Embora se trate de um estudo que não exige muito aprofundamento, até
pelo fato de se tratar de trabalho em nível de graduação, cujo objeto central são as
ligas, recomenda-se maior cuidado no processo de apresentação dos argumentos
que servem de sustentáculo à pesquisa.
Nessa perspectiva, a partir de uma leitura mais atenta, identificaram-se
algumas contradições que sugerem algumas reflexões; se não vejamos: O que o
pesquisador estaria aludindo em relação à “ausência de penetração do capitalismo
no campo? Ou ainda à falta de apoio político. O seria para o autor “apoio politico”?.
269
Ao desenvolver sua pesquisa que é ambientada principalmente no
período de administração do então governador Chagas Rodrigues, o autor afirma
que: “Chagas Rodrigues, governador do Estado nesse período, por se envolver com
a questão da reforma agrária e ter apoiado a instalação das ligas no Piauí, não foi
poupado da acusação de ser comunista”. (CALAÇA, p. 5).
Observa-se que o pesquisador infere que a acusação de ser comunista,
que foi imputada ao governador Chagas pelos latifundiários e também pela imprensa
local, tem origem no seu apoio à questão da reforma agrária e no apoio às ligas.
Ocorre que na introdução de seu estudo, o autor afirma que um dos
traços que distingue a liga de Campo Maior das demais, inclusive em relação à de
Pernambuco, foi o fato de não ter a Liga de Matinhos recebido apoio político externo.
Percebe-se nesse postulado uma contrariedade.
Em outro momento de seu trabalho, o autor aduz que os partidos políticos
nunca tomaram os problemas sociais que afetavam os trabalhadores rurais como
bandeira de luta porque possuíam em seus quadros latifundiários ou eram esses
partidos controlados por setores ligados ao campo e pela classe dominante. Essa
condição provocaria um fosso entre esses partidos e classe camponesa.
Novamente o autor se posiciona de modo dúbio em relação ao apoio
político que as ligas não teriam recebido, segundo ele, de nenhum partido político.
Essa contradição fica patente quanto afirma que:
“O Partido Comunista Brasileiro (PBC) se tornou o único partido político a dar apoio aos problemas dos camponeses, colocando em seus manifestos ser necessário um movimento operário-camponês, mas caberia ao operariado urbano o comando da revolução comunista ficando o camponês em segundo plano.” (CALAÇA, p.7).
Esse é seguramente mais um aspecto a ser problematizado na pesquisa,
isso porque o autor não deixa claro em sua argumentação quando se refere ao
apoio político dos comunistas aos movimentos sociais, se se reporta ao apoio dos
comunistas à experiência das ligas no Piauí ou em outras unidades federativas.
Por analogia, postula-se que o autor está se referindo ao apoio dos
comunistas na Paraíba ou em Pernambuco, posto que no Piauí o autor sugere não
ter havido apoio externo de nenhuma força política. A pesquisa segue indicando a
270
presença de outras forças políticas, como o PDC, que teria apoiado em todo o país o
processo de legalização de muitas entidades junto ao Ministério do Trabalho,
especialmente durante o governo de João Goulart.
No segundo capítulo da pesquisa, o autor aborda a atuação da Igreja
Católica no sentido de fazer frente à Liga de Matinhos, que no entendimento da
instituição recebia orientação de forças políticas subversivas. Nesse empenho, o
autor cita a utilização do semanário “O Dominical”, mais importante instrumento da
Igreja que, associado a outras práticas, ajudava a enfraquecer a força política da
Liga de Matinhos no meio rural de Campo Maior, assim como de outras entidades no
interior do estado.
Em outro momento da pesquisa, o autor aduz que as lideranças de
Matinhos, Luiz José Osório Lopes, conhecido com Luiz Edwiges, e seu irmão José
Ribamar na época estudante de Direito no Ceará, mantinham contatos com outros
estudantes na capital Teresina para solicitar orientação jurídica para melhor se
defenderem contra as investidas dos latifundiários e da própria Igreja que já se
movimentava para criar um sindicato católico. Sobre o posicionamento da Igreja, o
autor assim se posiciona:
“A Igreja almejando barrar a atuação do movimento camponês a partir das ligas cria o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, sendo este reconhecido pelo Ministério do Trabalho, através de Carta Sindical número 193816/93 de 1963”. (CALAÇA, p. 13).
Ao tratar das lutas e conquistas levadas a efeito pela Liga de Matinhos, o
autor, embora tribute ao movimento uma leitura derrotista, assevera que antes de
sofrer o golpe final desferido pela ditadura civil-militar instituída em 1964, os
trabalhadores tiveram algumas conquistas, ainda que parcial e somente em algumas
regiões do estado. Remetendo a tais conquistas, o autor postula que:
“As primeiras vitórias de Matinhos foram sobre essas duas formas de renda. A renda do trabalho é extinta do meio rural campo-maiorense e a renda em produto não poderia ser superior a uma quarta (35 kg) por linha cultivada e segue sustentando a ideia de derrota porque como os acordos eram na maioria verbais os proprietários nem sempre cumpriam“. (CALAÇA, p. 18)
271
Na conclusão da pesquisa, o autor afirma que a luta dos camponeses foi
importante no sentido de conquistar direitos, mas foi mais importante ainda na
perspectiva de organizar a classe trabalhadora e promover maior nível de
conscientização e respeito por parte dos principais oponentes das ligas. Ainda nessa
perspectiva o autor infere que:
“Assim, fica evidente que se não fosse a atuação dos jovens advogados no serviço de orientação das demandas junto aos poderes constituídos, como a Assembleia e os Tribunais, o papel político jogado por alguns partidos políticos e a atuação destemida da família Osório Lopes, a derrota da liga seria ainda humilhante”( p. 36).
Levantados todos esses aspectos da pesquisa, fica patente no entender
deste pesquisador que o estudo aqui examinado apresenta outras limitações.
Apesar de autoproclamar um trabalhado inovador baseado em fontes orais e na
história vista de baixo, o autor somente faz referência a dois estudiosos dessa
corrente de pesquisa e três depoimentos.
O baixo teor analítico com predomínio de aspectos descritivos também
revela outra fragilidade da pesquisa. Entretanto, em que pese essas observações, o
trabalho tem o mérito de tentar se converter em um estudo que cumpra, dentre
outras a função de colaborar com o fortalecimento dos movimentos sociais hoje.
Os dois últimos estudos levantados por esta análise sobre as Ligas
Camponesas representam também as mais novas pesquisas produzidas no estado.
Ambos são produzidos por historiadores que militam em movimentos sociais, sendo
um deles advogado militante do Partido Comunista e assume publicamente sua
posição ideológica quando da produção do trabalho agora em análise.
Trata-se de uma dissertação de mestrado, muito bem fundamentada, cujo
título é: “Tempo de Esperança: Camponeses e Comunistas na constituição das ligas
no Piauí”, de autoria de Ramsés Pinheiro. A segunda pesquisa é uma monografia de
conclusão de curso, intitulada “da Exploração à Militância: entre memórias e
páginas”, de autoria do historiador Ramiro Ibiapina.
Ambas são pesquisas que se fundamentam principalmente na história
vista de baixo e na metodologia da história oral. Também dialogam com outras
disciplinas e representam estudos numa linha da história social.
272
Esses estudos atribuem à luta dos camponeses um viés de experiência
vitoriosa e tentam explicar a articulação entre os camponeses e outras forças
políticas como comunistas e trabalhistas numa perspectiva de troca de experiências,
sem atribuir a nenhum dos lados maior ou menor valoração ou importância política
no processo. A primeira obra, em que pese sua defesa afirmativa acerca da
presença de lideranças comunistas na organização da Liga de Matinhos, é
seguramente o estudo mais substancioso sobre o objeto ligas camponesas no
estado.
O pesquisador introduz sua pesquisa reconhecendo que o tema das Ligas
Camponesas ainda é pouco estudado no estado. Em seguida, formula sua hipótese,
segundo a qual “a formação das ligas camponesas ocorreu a partir da confluência
de empreendimentos cotidianos de comunistas e camponeses piauienses” (SOUSA,
2015, p. 16).
A pesquisa é dividida em seis capítulos, nos quais o autor afirma a partir
da leitura de autores internacionais (E. P Thompson, E. Hobsbawn e Raymond
Williams,) entre outros autores nacionais (José de S. Martins, Sidney Shalhoub,
Socorro Rangel, etc) e autores locais (Antônio J. Medeiros, Damião Rocha,), que
não partirá de uma ideia fechada sobre o conceito de ligas camponesas e, muito
menos, sobre o perfil de cada movimento organizativo ocorrido no interior do Brasil e
principalmente no Nordeste.
Com essa promessa, o autor desenvolve sua argumentação
demonstrando muita leveza e sabedoria na feitura de cada um dos capítulos que
compõe sua pesquisa. No primeiro capítulo, o pesquisador cita a pesquisa da
professora Socorro Rangel para, concordando com sua tese, criticar as leituras de
caráter sociológico produzidas na década de 80 que interpretam a experiência das
ligas como “experiência derrotada”.
Ainda no primeiro capítulo, o autor se apropriando da obra de Raymond
Williams – “O Campo e a Cidade na História e na Literatura”, para criticar a partir da
percepção desse autor as visões distorcidas e preconceituosas que a cidade elabora
sobre o campo. Para o autor é preciso fazer um exercício de desconstrução desse
caminho e reconstruir outros, a partir das próprias impressões.
273
Nessa perspectiva, o autor infere a partir da leitura de Hobsbawn e
Thompson a necessidade que tem o pesquisador de formular novos
questionamentos e eleger novos objetos e fontes para fugir dos modelos
estereotipados que circulam e podem conduzir o pesquisador menos atento a
deslizes que retiram do objeto e da pesquisa a transparência necessária para uma
análise coerente, lúcida e minimamente eivada de vícios e preconceitos
interpretativos.
Em relação ao conjunto de fontes e metodologias utilizadas para conferir
a este estudo um grau satisfatório e seguro no sentido dos resultados propostos, o
autor afirma que:
“este trabalho é atravessado pelas contribuições do campo de estudos conhecidos como “História vista de baixo”. [...] ao assumir essa perspectiva, ressalta não apenas a importância que atribui às pessoas comuns, principalmente aos camponeses piauienses, mas também a sua preocupação com algumas questões norteadoras elaboradas nesse campo de estudos, sobretudo no tocante à abordagem do social como processo forjado a partir das contradições e da luta de classe.”(SOUSA, 2015, p. 25).
Na produção do segundo capítulo, centrado principalmente no processo
eleitoral que elegeu o governador Chagas Rodrigues, o autor pondera sobre a
utilização de jornais locais, tanto os comerciais quanto os de temática específica.
Nesse empenho, assim se posiciona:
“as escolhas metodológicas utilizadas, a exemplo da minha abordagem sobre a História Oral e História Política ou sobre a metodologia empregada na análise de determinadas fontes, como as impressas – jornais, processos judiciais, ou orais, como depoimentos, serão melhor discutidos ao longo de cada capitulo.” (2015, p. 27).
Assim o autor desenvolve toda sua pesquisa estabelecendo um diálogo
entre as fontes e os referenciais teóricos selecionados sempre com vistas a revelar a
“multiplicidade de experiências” e “a pretensão de manter e ampliar os valores de
solidariedade, resistência e esperança, cada vez mais necessários em nosso
presente onde a concentração da propriedade ainda alcança níveis exorbitantes”.
(2015, p. 75).
274
O terceiro e o quarto capítulos são destinados principalmente para a
análise de eventos desenvolvidos pelos camponeses. Dentre os quais, I Congresso
Sindical de Trabalhadores e Camponeses do Piauí e a participação de lideranças
comunistas nesses e noutros acontecimentos que mostram a organização e a troca
de investimentos, na visão do autor, fundamentais para o desenvolvimento das ligas
no Piauí. Neste capítulo ainda, o autor faz referencia às experiências de Teresina,
Parnaíba e Campo Maior.
Os dois últimos capítulos, em especial o quinto, no qual o autor faz um
estudo mais detalhado da experiência organizativa desenvolvida nos carnaubais e
reconstitui a saga da família Osório Lopes na luta por acesso à terra, revelam-se
fundamentais para a análise em curso.
Na visão desse autor, foram determinantes para a construção de um
importante capítulo na história politica do Piauí: a atuação da Arquidiocese de
Teresina, especialmente por meio de Dom Avelar e suas múltiplas investidas no
sentido de combater as ligas, o governo populista de Chagas Rodrigues e seu apoio
declarado aos camponeses, o ativismo das oposições e a capacidade política dos
camponeses de arregimentarem forças a partir da aliança com os comunistas.
Finalizando, projeta um elenco de considerações sobre o lugar dos
camponeses e das ligas nesse processo de luta pela terra. Também convoca o leitor
para, em julgando pertinente refletir com ele sobre o papel do golpe militar e dos
fatos que marcaram a vida da sociedade brasileira nos anos que se seguiram sob o
tacão da ditadura.
A última pesquisa dentro dessa abordagem que analisa a luta camponesa
sobre o símbolo de uma caminhada vitoriosa, e que também considera esse
segmento social como capaz de entender a conjuntura política e de construir seus
próprios projetos, é de autoria de Ramiro Ibiapina. Trata-se de um estudo que
também se declara tributário de uma visão considerada dentro da História Social.
Estruturada em dois capítulos, é também uma pesquisa produzida dentro
da perspectiva da chamada história vista de baixo com adoção principalmente de
fontes orais. Focada essencialmente na Liga de Matinhos em Campo Maior, esse
estudo, segundo o próprio autor, visa principalmente: “entender que a experiência
275
das ligas no Piauí não pode ser atribuída às influências da Liga Camponesa de
Pernambuco” (IBIAPINA, 2014, p.12).
No primeiro capítulo, o autor discute a origem das ligas e, nesse
empenho, apoia-se nas análises já consagradas nacionalmente. Entretanto, ao
desenvolver sua argumentação, busca elementos próprios e, a partir das muitas
matérias jornalísticas, das referências teóricas e das fontes, construir sua versão
sobre o processo de formação e atuação das ligas no Piauí.
A hipótese do autor é que a Liga de Matinhos foi uma experiência
vitoriosa, que recebeu investimentos de atores políticos externos à realidade dos
camponeses, mas que tais investimentos somente aconteceram porque os
camponeses já eram percebidos, graças ao ambiente político criado pelo governo de
Chagas Rodrigues, como uma importante no sentido de acelerar o processo de
reforma agrária defendido pelas forças progressistas do Estado e do Brasil como um
todo.
A pesquisa também é atravessada por um forte viés descritivo. A narrativa
de fatos como a fundação da entidade, a comemoração do primeiro aniversário, a
fundação de alguns núcleos nos arredores de Campo Maior e a grande passeata
comemorativa do primeiro de maio de 1962, data comemorada pela primeira vez
com os trabalhadores, discutindo politicamente sua exploração e as possíveis
estratégias de luta para superação daquelas precárias condições de vida.
Também tem o mérito de fugir, pelo menos parcialmente, das visões
generalizantes e que tributam à experiência das ligas uma visão uniformizante,
sempre ligada ao Partido Comunista, sendo ainda os estados de Pernambuco e
Paraíba os ambientes históricos, na visão do autor, ideais para forjar esse tipo
resistência política e de classe. Ainda no seu entendimento, as ligas originárias do
Piauí, Ceará e Maranhão têm outros traços igualmente marcantes e particulares,
conferindo as mesmas singularidades e originalidade.
Subjacente à analise que se procurou desenvolver sobre as ligas a partir
das pesquisas selecionadas, está colocada a questão do desenvolvimento do
sistema capitalista no campo, desenvolvimento esse que, no Brasil e de modo muito
particular no Nordeste, tem se processado sem qualquer arranhão na estrutura
agrária.
276
Esse processo foi historicamente possível em razão, principalmente, da
aliança dos muitos interesses dominantes, fossem eles agrários ou não. Interesses
esses que têm se expressado politicamente através de grupos industriais
,agropecuários ou simplesmente de latifundiários.
Nesse processo de desenvolvimento, um dos marcos principal é a
progressiva subordinação da terra ao capital, o que estimula diversos fenômenos
sociais, que são ao mesmo tempo representativos de um mesmo processo. São
exemplos: expulsão dos agregados, cujas terras deverão ser ocupadas com outros
fins, submissão da produção do pequeno agricultor, destituição do “morador” das
condições que lhe permite a produção de seus meios de sobrevivência,
rebaixamento social do agricultor e de toda sua família, etc.
É nesse contexto que surgem as diferentes experiências das ligas
camponesas, que como movimento social rural, expressam as contradições de
classe e do desenvolvimento do capitalismo no campo seguindo condições e
circunstâncias próprias que levaram a um fazer-se particular, não alcançado pelas
leituras generalistas que buscam iluminar a experiência de Matinhos e muitas outras
a partir da experiência de Pernambuco, forçando uma padronização impossível.
Buscou-se, portanto, uma análise tanto do fazer-se da narrativa
acadêmica local, quanto do modo como essas narrativas tem apresentado na quase
totalidade dos estudos selecionados. Constatou-se a partir da crítica empreendida,
que as pesquisas não contemplam a particularidade da experiência local, pelo
contrário, negam enquanto conceituação, o fazer-se da experiência organizativa de
Matinhos que é, à sua maneira, distinto e particular dentro das condições
circunstanciais e específicas do território dos carnaubais.
277
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Aumenta o número de assentamentos em Sigefredo
Pacheco” (Portal 180graus, 09/02/2012).
“Será inaugurado brevemente o Assentamento São Raimundo. O
assentamento abriga 29 famílias. Este assentamento é o décimo sexto em Sigefredo
Pacheco, município que tem o segundo maior assentamento do Piauí. “Santo
Antônio dos Campos Verdes”, que tem 357 famílias com capacidade para pelo
menos mais 200. Com uma área de 10 mil hectares a fazenda que pertencia ao
deputado Januário Feitosa foi considerada improdutiva e desde então vem sendo
objeto de luta. Em 1995 lideranças do movimento sindical rural de Campo Maior e
Sigefredo Pacheco iniciaram a luta pela desapropriação da fazenda. Finalmente em
1996 o INCRA sancionou o decreto de desapropriação”
O leitor pode estar se perguntando, Porque inferir nas considerações
finais uma noticia sobre o aumento no numero de assentamentos no Piauí? Primeiro
para consolidar o ponto de partida do autor quando iniciou este estudo evidenciando
a posição da Liga de Matinhos que lutava pela conquista e manutenção de terra;
segundo porque o aumento no numero de assentamentos na cidade de Sigefredo é
bastante emblemático e significativo, já que foi justamente nessa região que surgiu a
principal experiência organizativa de trabalhadores rurais no Estado.
Finalmente, por que sendo o Piauí um dos Estados onde a concentração
fundiária é ainda muito intensa e exclui, por isso mesmo, do direito de exercer sua
cidadania o camponês e suas organizações, sujeitos principais dessa pesquisa, é
profundamente animador e alimenta de esperança a todos quantos possam se
envolver nessa causa, noticias como esta, que no limite revelam, ainda que em grau
de insuficiência, que propriedades estão sendo repartidas, distribuídas e mais gente
está conquistando não só o direito de ter um pedaço de terra, tá obtendo vida e
dignidade.
E, portanto, por acreditar que essa luta é de todos e que ela é constante
que se aceitou o apelo desafiador de Monsenhor Chaves para reescrever, a história
do Piauí conforme ele conclama:
278
“Compreender a nossa história a partir do povo, a partir do pobre, é dar um instrumento de interpretação às forças de libertação e conscientização atualmente vivas no Brasil, e ao povo uma consciência histórica. A tarefa é complexa, difícil, mas não impossível.”( Autor)
Foi, então, a partir de muitos questionamentos, problematizações sobre
os consensos, não acreditando no óbvio e no silêncio sobre o tema que se andou
muito no fio da navalha, tentando elaborar uma pesquisa de fôlego que se colocasse
de modo decidido e em certa medida radical na contramão da historiografia, que
concebe a experiência das Ligas Camponesas como um processo pré-determinado,
aprofundando o acirramento político que conduziu ao golpe de 1964.
Procurou-se, portanto, abordar neste estudo que, naquele contexto de
lutas, tensões e também de vitórias e derrotas, as possibilidades vivenciadas pelos
camponeses no Piauí eram ilimitadas. Talvez por isso existam diferentes leituras
sobre o que foram como se estruturaram e evoluíram as diferentes experiências
organizativas das Ligas Camponesas no Piauí.
Como esse movimento social se relacionou com o Estado, especialmente
na gestão dos então governadores Chagas Rodrigues e Petrônio Portella e, a partir
desse relacionamento, quais as respostas que as instituições vinculadas ao aparelho
estatal deram às reivindicações levadas a efeito por esses movimentos sociais. Isso
porque seu desenvolvimento é muito condicionado pela forma como o estado
responde, atendendo ou não às suas primeiras reivindicações.
O que se fez neste estudo foi pesquisar em detalhes as condições de vida
das diversas formações sociais, particularmente as de Campo Maior, postulando
alargar os horizontes conceituais e as possibilidades de pesquisa – movimentos
específicos, processos de trabalho, a vida no campo – evidenciando que os
camponeses não precisavam de uma vanguarda revolucionária para percorrer seu
próprio caminho como atestam muitas pesquisas já superadas pelo seu caráter
abstrato e ausência de engajamento empírico.
Partiu-se da premissa que o movimento poderia começar com uma
configuração meramente reivindicativa e imediata e, dependendo da maneira como
o estado respondesse às suas demandas, ele poderia parar, refrear, caso fossem
positivas as respostas às suas demandas ou evoluir e se transformar, se
279
reconfigurar, caso a resposta do estado fosse negativa. Nesse caso, os movimentos
podem se transformar em políticos ou de classe e, assim, construir sua fortuna
política.
Dentre as conclusões possíveis deste estudo sobre as Ligas Camponesas
no Território dos Carnaubais, cita-se que os camponeses organizaram-se da forma
que podiam e sabiam pela defesa da posse e manutenção das terras, assim como
pelo reconhecimento político contra o poderio e as constantes e cada vez mais
violentas investidas dos latifundiários. Também se percebeu que os trabalhadores
rurais do Piauí conseguiram forjar formas de organização e resistência capazes de
se contrapor aos ditames unilaterais dos latifundiários e do estado, como agentes
históricos protagonistas de experiências únicas
Em termos culturais, no caso dos sertões de dentro, não é recomendável
pensar em um campesinato que conserve traços feudais sem vínculos com a
exploração capitalista. As relações que os camponeses de Campo Maior tinham com
o estado são muito evidentes: rádio, associações, sindicatos, partidos, relações
econômicas (mercado) e políticas (eleitorais) entre outros elementos “modernos” e
de consumo estão presentes cotidianamente em suas vidas.
As ações e resistências dos camponeses foram inventadas por ocasião
da luta, e não remetiam às estratégias e táticas utilizadas pelos antepassados. Por
fim, os resultados históricos foram distintos porque, efetivamente, os camponeses do
Piauí de modo geral desenvolveram uma experiência exitosa e bastante particular,
distinguindo-se das muitas outras levadas a efeito interior do Brasil.
Nossos sujeitos históricos são os camponeses que, por conta da miséria,
do sofrimento, da humilhação que lhes eram impostos, lutaram por uma vida digna,
numa experiência única. A classe a que pertence esses trabalhadores tem suas
especificidades de acordo com cada contexto, constituído de processo histórico
próprio, logo não pode ser homogênea nos variados tempos e espaços. Em cada
recanto do país, tem-se um camponês de carne, osso e dente, um camponês
diferente.
Este estudo revela, portanto, que não podemos ignorar o
desenvolvimento sócio-político do interior e mais ainda, que as ligas falaram em
280
nome de um amplo e diversificado conjunto de trabalhadores que iam desde
pequenos proprietários, arrendatários, foreiros, meeiros, todos associados à
produção de subsistência e para o próprio mercado interno local.
Outra conclusão possível levantada por esta pesquisa é que a politização
dos trabalhadores rurais se transformou em algo de muito valor para todas as forças
políticas, dos comunistas, passando pela Igreja até os coronéis. A sindicalização, a
reforma agrária e outras iniciativas entraram a contrapelo na agenda nacional,
criando uma dinâmica sócio-política que trouxe novas oportunidades para os
trabalhadores rurais.
Entre os “amigos” da sindicalização, a luta foi duríssima e rendeu frutos. A
Igreja, o Estado, as Ligas e os Partidos Populistas se colocaram como
representantes “legítimos” dos trabalhadores rurais. Nesse empenho, teve-se uma
variação muito grande de entidades e organizações, que em razão da crise política,
econômica e social instalada, abraçaram a causa como se dela fossem “donos”. O
peso do estado como ator político no campo, nesse contexto, cresceu muito.
Em 1962, foi criada a Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA) e,
em 1963, o estado aprovou a criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura (CONTAG), que passa a agrupar camponeses e assalariados do
campo em sindicatos de base municipal reunidos em Federação em nível estadual,
com o objetivo de manter o movimento sindical sob sua tutela.
Nessa nova conjuntura criada pelo golpe, o sindicalismo se reestruturou
sob o planejamento da CONTAG. O clima de medo, insegurança e repressão
reinante somado à desmobilização do período levou essa entidade a optar pela luta
no sentido do cumprimento dos direitos já assegurados na legislação.
A lei e o direito foram reconfigurados em uma arena de disputa obrigando
os sindicatos a montarem assessorias jurídicas, ficando aquelas entidades, que não
conseguiram se estruturar, fora dessa luta e com isso definharam e algumas até
acabaram.
Ainda que com o golpe civil-militar, os movimentos sociais, especialmente
os populares em geral, tenham sofrido mais perseguições e também maior
repressão do Estado, o que foi agravado no campo pelo aumento da truculência
praticada pelos latifundiários, recusou-se nesta pesquisa a aceitar o golpe e seus
281
muitos desdobramentos, como o fim da linha dessa história de luta e ao mesmo
tempo reafirmar que “NAS FRANJAS DA HISTÓRIA” é possível dizer o indizível e
enxergar o invisível. Essa pesquisa é mais uma porta aberta que permite outra
leitura acerca da experiência camponesa fora dos eixos, centros e narrativas já
consagradas.
Nesse sentido, reitera-se aqui a certeza de que os avanços verificados
nesses movimentos sociais deixam sinais na memória dos seus participantes e que
isso, futuramente, alimentará novas mobilizações, pois o camponês brasileiro é um
migrante e sua expropriação não tem representado uma ruptura total de seus
vínculos com a terra.
A maioria tem preservado algum vínculo com a terra, seja ela mais
próxima ou mais distante – relação direta de trabalho, vínculos familiares, relações
de origem, etc. O que explica, em parte, a permanência entre eles de um conjunto
de símbolos e valores que remetem a uma ordem moral ou lógica tradicional.
É por isso que o acesso à terra se apresenta como alternativa para
assegurar a pobres e desempregados do campo e da cidade que buscam garantir a
sua sobrevivência mantendo a dignidade de trabalhador. Porém, o problema da
“recampezinação” que se verifica a partir do retorno à terra é marcado por conflitos e
contradições, que traduzem a difícil passagem do discurso ideológico à vida
prática.
Finalmente, postula-se com esta pesquisa – “NAS FRANJAS DA
HISTÓRIA: Singularidade e Distinção na Constituição da Liga Camponesa de
Matinhos no Território dos Carnaubais” - que os debates em torno da organização
camponesa respeitem, entre outras coisas, o caráter horizontal do movimento social
das ligas, aspecto que lhe confere uma pluralidade de manifestações, estratégias,
táticas, razões, ideias e manifestações.
Todos esses reafirmam a flexibilidade de recepcionar uma diversidade de
sujeitos, projetos, sonhos e formas sociais baseadas na relação de trabalho familiar
a partir das distintas formas de acesso à terra. Pois como afirma Paul Auster (1992)
“nada é possível dizer sem ressalvas”. Nada, sabe-se, é completo em si mesmo.
Cabe dizer, por fim, que é imperativo para o desenvolvimento do Brasil e
para a democracia que o campo tenha suas relações redemocratizadas e esta
282
pesquisa se propõe a romper, na medida em que ilumina um pouco do que foi a
repressão política sobre o piauiense, com as formas de esquecimento, seja pelo
silêncio ou pela invisibilidade de homens e mulheres que deram suas vidas na
perspectiva de realizar sonhos e projetos coletivos.
Homens como Luiz Ribamar Osório Lopes ou simplesmente Luiz
Edwirges, que deu a vida pelos camponeses do Piauí na luta por reconhecimento
político, contra a experiência do rebaixamento social e pelo direito de continuar
lutando por direitos, colocando sempre o coletivo acima dos interesses próprios e
individuais.
283
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Áudio-visual
30 ANOS de Anistia. Direção:Ângela Serrano: Brasília: Ministério da Justiça, 2009. Documentário (17min).
Filme
Cabra Marcado para Morrer. Longa-metragem (1962), ambientado em Sapê, na Paraíba. sobre a reforma agrária, dirigido por Eduardo Coutinho.
Depoimentos orais
Alfredo Leal Nunes – delegado da SUPRA até 1964, deputado estadual (PSD) cassado em 1969.
Antônio Damião de Souza – presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, Piauí.
Antônio de Souza Rodrigues – o Mestre Zumba, professor leigo
Antônio José Medeiros – professor aposentado da Universidade Federal do Piauí, sociólogo, pesquisador e ativista social.
Antônio Pereira da Silva – Agricultor, Vaqueiro e Procurador da Fazenda Periquito
Celso Barros Nogueira – advogado e deputado estadual (PDC) cassado em 1964.
Deoclécio Dantas – funcionário público estadual, jornalista e radialista; falecido em 2015.
Felipe Mendes de Oliveira -- Economista, professor da UFPI, Ex--Deputado Federal e ex- presidente da Codevasf.
290
Francisca Edwiges de Souza – Dona Santinha, esposa de Luiz Edwirges.
Francisco Edwirges – líder sindical. Irmão de Luiz Edwirges, tesoureiro da ALTACAM.
Humberto Pereira de Abreu – agricultor da Fazenda Matinhos.
Jesualdo Cavalcante de Barros – líder estudantil, vereador (PTB), cassado em 1964, deputado estadual (PFL) na década de 80 e conselheiro aposentado TCE – PI.
Joaquim Luiz Cantuária – professor de história aposentado, técnico prestador de serviço do IBGE.
José Luiz Martins Maia – Líder Estudantil Advogado, Militante do PTB em 1963 , Ex- Dep. Federal.
Jose Reis Pereira – líder estudantil , professor da Universidade Federal do Piauí e Ex- Dep. Estadual.
Luiz Ozório Lopes – Luiz Edwirges, líder sindical e presidente da Liga Camponesa de Matinhos, em Campo Maior – Piauí.
Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira – advogado, coordenador da equipe de sindicalização da Arquidiocese de Teresina.
Manoel Paulo Nunes – Escritor e membro da Academia Piauiense de Letras,
Maria de Lurdes Araújo Silva – professora aposentada e responsável pelas atividades religiosas na comunidade de Matinhos.
Maria Regina Sousa – Professora, Presidente Estadual do PT-Pi e Senadora da Republica.
Pe Tony Batista – Vigário Geral da Arquidiocese e Pároco da Paroquia de Nossa Senhora de Fatima.
Raimundo Edwiges – irmão de Luiz Edwirges, agricultor de Matinhos.
Reginaldo Furtado – Advogado e secretario particular do gov. Chagas Rodrigues.
Wilson Nunes Brandão – escritor e deputado estadual.
Zózimo Tavares – Jornalista e membro da Academia Piauiense de Letras.
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O Território Carnaubais - PI abrange uma área de 19.636,40 Km² e é composto por 16
municípios: Assunção do Piauí, Novo Santo Antônio, São João da Serra, São Miguel do
Tapuio, Sigefredo Pacheco, Boa Hora, Boqueirão do Piauí, Buriti dos Montes, Cabeceiras do
Piauí, Campo Maior, Capitão de Campos, Castelo do Piauí, Cocal de Telha, Jatobá do Piauí,
Juazeiro do Piauí e Nossa Senhora de Nazaré.
A população total do território é de 168.037 habitantes, dos quais 84.421 vivem na área rural,
o que corresponde a 50,24% do total. Possui 17.313 agricultores familiares, 2.684 famílias
assentadas e 2 comunidades quilombolas. Seu IDH médio é 0,60.
Comemoração do dia do trabalhador 1º de maio de 1963 (ALTACAM)
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Sede da Fazenda Matinhos
Exemplar do Jornal Santuário de São Francisco (Ano 50 – 15 de Janeiro de 1965)
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