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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Marília Alves Facco
Atividade docente em uma escola pública paulista de ensino fundamental I:
análise da apropriação e do emprego das propostas do Programa Ler e
Escrever em sala de aula
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Marília Alves Facco
Atividade docente em uma escola pública paulista de ensino fundamental I:
análise da apropriação e do emprego das propostas do Programa Ler e
Escrever em sala de aula
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
título de DOUTORA em Educação:
Psicologia da Educação pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob
a orientação da Profa. Dra. Claudia Leme
Ferreira Davis.
SÃO PAULO
2013
Banca examinadora
______________________
_____________________________
_____________________________
_____________________________
_____________________________
O conhecimento é assim:
ri de si mesmo
e de suas certezas.
É meta da forma
Metamorfose
Movimento
(Mauro Iasi, Aula de voo)
Dedico esta tese aos meus pais... Sem os seus
ricos ensinamentos, meus velhos, eu nada seria!
Dedico, também, ao meu amor e companheiro de
todas as horas... Emer, o seu olhar melhora o
meu!
Agradecimentos
Agradeço a todos os amigos e amigas que, de alguma forma, fizeram parte desta caminhada.
Foram muitas pessoas que contribuíram de formas diferenciadas. Impossível nomeá-las,
então, muito obrigada a todos!
À professora Claudia Davis, por suas inúmeras qualidades intelectuais e pessoais, que me
fizeram crescer não somente como pesquisadora, mas também como pessoa.
À professora Ia, por fazer parte da minha formação. Com presença constante, suas aulas e
seus ensinamentos de vida favoreceram a constituição de uma pessoa mais crítica e uma
pesquisadora mais questionadora.
Aos professores do programa Educação: Psicologia da Educação, por todos os momentos de
reflexão e aprendizagem.
À professora Leda Gomes, que desde a graduação me incentivou a olhar cada vez mais de
perto a Psicologia Escolar. O lápis mágico que você me deu no último dia de aula me ajudou a
escrever esta tese, pode ter certeza!
Ao professor Ricardo Alves de Lima, pelo apoio e incentivo constante tanto na vida
acadêmica quanto na profissional.
Ao professor Dirceu Matheus Júnior, por confiar no meu trabalho, por me ouvir, por acreditar
sempre e, principalmente, por me incentivar a querer mais.
À professora Neiza Fumes, pelos momentos de acolhida em Maceió, pelas diversas conversas
aqui em São Paulo e por fazer parte da banca de qualificação e defesa.
Ao professor Júlio Ribeiro Soares, por aceitar participar da banca, por todos os bons
momentos acadêmicos e sociais compartilhados desde o mestrado.
À professora Ana Bock, por aceitar participar da banca de defesa e pela clareza com que
coloca suas ideias tanto em aula quanto no papel.
À professora Maria Lúcia Zoega, pelo acompanhamento sempre acolhedor e pelas discussões
no decorrer desta pesquisa.
Aos colegas que fizeram parte do Procad, pela acolhida, pelo cuidado e pelas inúmeras
discussões nas reuniões, que me fizeram pensar cada vez mais nos aspectos teóricos e
metodológicos deste trabalho. Fazer parte deste projeto foi uma influência muito positiva na
minha formação acadêmica.
Ao grupo de iniciação científica, Bruna, Diego, Júlia e Luisa, pela oportunidade de
aprendizado e pelos bons momentos. Nossa experiência foi muito enriquecedora. Em vários
dos nossos encontros pude reviver a experiência que tive na graduação.
Aos amigos que fiz durante minha jornada na PUC que, além de ótimos companheiros de
risadas, também deixaram suas marcas em mim: Silvinha, Júlio, Vivi, Virgínia, Elvira,
Vinícius, Solange, Wedja, Karin e Elisandra.
À Janaina Dutra, minha querida amiga, companheira de todas as horas e irmã de coração:
obrigada por me apoiar, me incentivar, estar perto e se orgulhar das minhas conquistas. Nossa
amizade sempre me fortalece e não há distância física que me impeça de estar perto de você
porque o coração sempre fala mais alto...
À Maria Brando, por ter sido não apenas uma parceira de trabalho, mas por ter decidido ficar
em minha vida e ter aberto espaço para que eu pudesse ficar na dela também. Obrigada por
me acolher em todos os momentos, por me ouvir, e, principalmente, por cultivar a nossa
amizade.
À Marcella Olivati, por ter colaborado inúmeras vezes com alguns projetos importantes para
minha formação acadêmica. Pelas discussões sobre alfabetização, pela disposição constante e
pelo brilho que tem no olhar quando o assunto é educação.
Aos amigos professores que sempre frequentam minha casa: obrigada por ampliarem meus
horizontes, pelas ricas discussões e pela possibilidade constante de pensarmos juntos sobre a
educação na atualidade. Agradeço, também, pelos bons momentos de companheirismo e
divertimento.
Aos meus pais que, sempre com muito zelo e dedicação, abriram mão inúmeras vezes de seus
desejos em favor dos meus. Pela dedicação de uma vida toda, expresso aqui o meu profundo
sentimento de gratidão e amor por vocês.
Ao Emerson, amor constante, parceiro, amigo, companheiro de uma vida toda! Obrigada por
me apoiar, por me escutar, por me incentivar, por confiar e por estar sempre ao meu lado.
Você sempre me disse: voe, voe o quanto puder. Se um dia sua asa quebrar ou o vento mudar
de direção, estou aqui para te segurar!
Aos meus pais de coração: Joel e Elza, por tanto carinho e amor nutrido nos últimos 14 anos.
Ao Edson, secretário do Programa Educação: Psicologia da Educação, pelas inúmeras vezes
em que me auxiliou com documentos, processos e assinaturas.
À professora Renata, por aceitar participar da pesquisa, pelo laço que criamos e por toda
disponibilidade em me receber no seu dia a dia – tanto na sala de aula quanto nos momentos
de café e descontração.
A toda a equipe da escola, pelo acolhimento e por terem me recebido tão bem. Realmente me
senti parte do grupo enquanto estive na escola.
À PUC e a CAPES, pela possibilidade de poder me dedicar integralmente aos meus estudos.
Resumo
Este trabalho buscou analisar como se dá a apropriação das diretrizes de um programa
educacional – o Programa Ler e Escrever – (oferecido pela Secretaria de Estado da Educação
de São Paulo), verificando se – e como – esse aprendizado era incorporado à atividade
profissional de uma professora de ensino fundamental I. De igual maneira, buscou-se
apreender os sentidos e significados atribuídos à atividade docente. O referencial teórico
adotado foi o da psicologia sócio-histórica e o da clínica da atividade. A pesquisa foi realizada
em uma escola pública estadual de Ensino Fundamental I, situada no bairro da Brasilândia, na
cidade de São Paulo. Após conversa com as gestoras e com o grupo de professores, uma das
docentes do 1° ano aceitou participar do estudo. Como estratégias para a coleta de
informações, foram utilizadas entrevistas com a professora, observações, videogravações de
suas aulas e autoconfrontações simples. De todas as aulas videogravadas, a professora
escolheu três delas; os materiais foram editados e transformados em episódios de,
aproximadamente, dez minutos, os quais foram vistos e discutidos pela professora e pela
pesquisadora. Na análise dos dados, foi empregada a proposta de núcleos de significação
(AGUIAR; OZELLA, 2006). Foi possível perceber que os sentidos que a professora atribuía à
atividade docente estavam fortemente atrelados ao prazer sentido em lecionar e à segurança
que a profissão lhe proporcionava. Contudo, encontrava dificuldades para articular a teoria
que embasava o Programa com suas práticas cotidianas. Apesar de almejar uma prática
construtivista, suas atividades ainda eram marcadas pela mescla entre ensino tradicional e
construtivista. Esses entraves estavam ligados, também, às dificuldades encontradas pela
docente nos momentos de formação continuada, em razão do despreparo da coordenadora
pedagógica. A autoconfrontação permitiu que a professora, se observasse e discutisse sua
atuação com a pesquisadora, o que resultou num processo reflexivo sobre sua conduta, suas
posturas e suas atitudes frente aos alunos, oportunizando uma ocasião para ressignificar sua
prática, rumo à constituição de novos sentidos para sua atividade profissional.
Palavras-chave: Psicologia Sócio-Histórica, Clínica da Atividade, Atividade docente,
Núcleos de significação, Programa Ler e Escrever.
Abstract
This study aimed to examine the appropriation by a teacher of the guidelines of an educational
program called "Read and Write," offered by the Office of Education of the state of São
Paulo, checking whether – and how – that learning was incorporated into her professional
activity. Similarly, it was tried to grasp the senses and meanings constituted by this teacher to
her teaching profession. The theoretical approach of the sociocultural psychology was used,
as well as that of the French clinical activity. The study was conducted in a public elementary
school, located in the district of Brasilândia, São Paulo, SP, Brazil. After discussing the
investigation with school’s managers and the group of teachers, one of them, who taught at
the 1st grade, agreed to be involved in it. The strategies for collecting information, interviews
with the teacher, classroom’s observations, video recordings of the teacher’s classes and
simple self-confrontation were used. Of all the video recorded classes, the teacher chose three
episodes of approximately 10 minutes each, all of them watched and discussed between her
and researcher. In data analysis, the core meanings of the teacher’s discourse were
constituted, as suggested by Aguiar and Ozella (2006). The results pointed out that the senses
and meanings attributed by the teacher to her teaching activity were strongly linked to the
pleasure of teaching, and to the feelings of security that the profession gave to her. In
addition, it was shown that the teacher found difficulties in articulating the program’s theory
to her daily practices. Although believing that she had a constructivist practice, her activities
were still a blend of traditional and constructivist teaching. These problems were connected to
the difficulties encountered by teachers in continuing education, since the person responsible
for leading it (called in Brazil ‘educational coordinator’) was not adequately trained for this
task. The simple self-confrontation allowed the teacher to observe herself performing her
educational activities and discussing them with the researcher, what permitted her to initiate a
process of evaluation of her own conduct, postures and attitudes in relation to the pupils.
Moreover, the participation in the research provided the teacher an opportunity for creating
new senses and meanings for her Professional activities. As a consequence, she could
transform them in a way more compatible with the ideas of the "Read and Write" Program.
Keywords: Sociocultural Psychology, Clinical Activity, Teachers’ Activities, Sense and
Meanings; "Read and Write" Program.
Sumário
Introdução........................................................................................................... 14
Capítulo 1
Referencial Teórico: Psicologia Sócio-Histórica................................................ 20
1.1 Mediação............................................................................................. 25
1.2 Linguagem: sentidos e significados.................................................... 27
1.3Atividade.............................................................................................. 29
1.4 Yves Clot e as categorias de análise da Clínica da Atividade............ 30
Capítulo 2
Formação de Professores e o Programa Ler e Escrever..................................... 34
2.1 O Programa Ler e Escrever................................................................ 41
2.1.1 A estrutura do Programa Ler e Escrever............................... 47
Capítulo 3
Método................................................................................................................ 51
3.1 Vygotsky e os princípios norteadores do método em Psicologia......... 54
3.2 A Autoconfrontação simples................................................................ 57
3.3 Etapas da pesquisa................................................................................ 58
3.3.1 Escolha da escola e do sujeito participante........................... 58
3.3.2 Material................................................................................. 59
3.3.3 Procedimento de produção e coleta de informações............. 59
3.3.4 Coleta de dados sobre a atividade docente............................ 59
3.3.5 Sistematização e análise dos dados colhidos......................... 60
Capítulo 4
Apresentação e análise de dados......................................................................... 62
4.1 A escola............................................................................................... 62
4.1.1 Apresentando a professora..................................................... 66
4.2 Apresentação dos episódios................................................................ 67
4.2.1 Episódio Rapunzel................................................................. 67
4.2.2 Episódio alfabeto móvel......................................................... 69
4.2.3 Episódio aula de matemática................................................. 71
4.3 Núcleos de significação....................................................................... 72
4.3.1 Núcleo 1 – A escolha do Magistério...................................... 73
4.3.2 Núcleo 2 – Experiências profissionais na área da educação
e os processos formativos: a visão sobre o Ler e Escrever............ 79
4.3.3 Núcleo 3 – Concepção de aluno: suas percepções e seus
sentimentos sobre seus alunos........................................................ 92
4.3.4 Núcleo 4 – Planejando e executando as atividades docentes. 98
4.3.5 Núcleo 5 – A importância da relação com a comunidade
escolar e com a equipe gestora para o adequado desenvolvimento
das atividades docentes................................................................... 121
4.3.6 Núcleo 6 – Os sentimentos de Renata diante da ACS........... 123
4.4 Análise Internúcleos............................................................................ 127
Capítulo 5
Considerações Finais........................................................................................... 132
Referências.......................................................................................................... 137
Anexos
Quadro dos indicadores e pré-indicadores da entrevista e das
autoconfrontações simples................................................................................... 146
Transcrição da entrevista com a professora........................................................ 170
Transcrição da autoconfrontação – Episódio Rapunzel....................................... 187
Transcrição da autoconfrontação – Episódio Alfabeto Móvel............................. 192
Transcrição da autoconfrontação – Episódio Aula de Matemática..................... 195
Transcrição da entrevista com a coordenadora pedagógica................................ 198
Transcrição da entrevista com a diretora............................................................. 223
Transcrição da entrevista com a vice-diretora..................................................... 244
14
Introdução
No decorrer de minha escolarização, a docência sempre despertou meu interesse. A
forma como os professores desenvolviam suas atividades em sala de aula (des)encantava-me,
e muitos deles marcaram minha história. Ainda me lembro de que, quando era questionada
sobre qual profissão seguir, respondia com orgulho e sem hesitar: quero ser professora.
Contudo, como ocorre com a maioria dos jovens brasileiros, o momento da escolha
profissional também foi decisivo para mim: no final do ensino médio, algumas dúvidas me
cercaram. Apesar de meu encanto pela Pedagogia, era visível a crescente desvalorização pela
qual passava a carreira, obrigando muitos jovens a optarem por outras profissões1. Diante de
um cenário atravessado por incertezas, decidi cursar Psicologia, que também me permitiria
refletir sobre aspectos relativos à educação. No entanto, conduzida pelo interesse de toda a
vida, dentre tantas outras disciplinas cursadas no Mackenzie, voltei meu olhar à Psicologia
Escolar.
Além da Psicologia Escolar, outro fator que marcou minha história acadêmica foi o
envolvimento em um projeto de iniciação científica na Universidade de São Paulo (USP).
Ainda buscando conhecer melhor a área à qual queria dedicar-me, integrei-me a uma pesquisa
de Psicologia Comportamental. Com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), pude iniciar minha carreira como pesquisadora2
participando do Projeto Enurese,3 realizado por pesquisadores do Instituto de Psicologia sob a
supervisão da Profa. Dra. Edwiges Ferreira de Mattos Silvares. O objetivo do grupo é
desenvolver trabalhos sobre o tema e atender crianças, adolescentes e adultos que apresentam
quadro de enurese noturna, ou seja, incontinência urinária durante a noite.
Concomitantemente ao envolvimento nesse projeto, eu participava de grupos de estudos
voltados à discussão da Psicologia Escolar e da Psicologia Sócio-Histórica em minha
universidade de origem.
1 Sobre a desvalorização da profissão docente e a escolha dos jovens pelo magistério, Bernadete Gatti (2000, p.
4) destaca o seguinte: “a profissão de professor tem se mostrado cada vez menos atraente para camadas
importantes de nossa juventude, tanto pelas condições de ensino dos cursos em si, como pelas condições em que
seu exercício se dá, passando pelos aspectos salariais e prestígio social”.
2 A participação nesse grupo resultou na elaboração do artigo “Enurese noturna infantil. Tratamento
comportamental com aparelho de alarme e seguimento como controle de recaída: um estudo de caso”, publicado
em 2004 no Jornal Brasileiro de Psiquiatria.
3 Para maiores informações, consultar a página www.projetoenurese.com.br
15
Nos últimos três semestres da graduação, fui fortemente incentivada por uma das
professoras de Psicologia Escolar – que seguia a perspectiva sócio-histórica – a buscar um
curso de pós-graduação stricto sensu, que se figuraria como oportunidade de desenvolvimento
acadêmico-profissional. Movida por esse incentivo, procurei uma formação que me permitisse
aprofundar os conhecimentos voltados à pesquisa científica, à educação e, mais
especificamente, à Psicologia Sócio-Histórica e à formação de professores – assuntos que
aguçavam meu interesse.
Em 2005, iniciei o mestrado no Programa de Estudos Pós-graduados em Educação:
Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
deparando-me com a oportunidade que tanto esperava: estudar a atividade docente e a
formação de professores. Inicialmente, meu objeto de estudo era a atividade na educação
inclusiva à luz da psicologia sócio-histórica, mais especificamente dos pressupostos teórico-
metodológicos propostos por Yves Clot e colaboradores (2001, 2003, 2006, 2010)4. Nessa
oportunidade, a intenção inicial era analisar a atividade de uma professora do ensino
fundamental I (EF I) com relação à inclusão, por meio da autoconfrontação simples e cruzada,
preocupando-me em compreender em que medida o instrumento de coleta e produção de
informações poderia constituir-se em uma ferramenta relevante à formação de professores.
No entanto, os pressupostos metodológicos de Clot foram seguidos, apenas,
parcialmente: entrevistei a professora e os gestores da escola lócus do estudo, fiz observações
em sala de aula e videogravações. Das filmagens, foram extraídos três episódios, considerados
centrais para a análise da atividade de educação inclusiva. Contudo, não foi possível realizar
as sessões de autoconfrontação, dadas a complexidade dos procedimentos de coleta de dados
e a escassez de tempo para desenvolver a proposta inicial. As informações obtidas, analisadas
sob a perspectiva da psicologia sócio-histórica e da proposta de Clot (atividade prescrita,
4 Yves Clot e colaboradores fazem parte do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (CNAM) de Paris.
Balizada tanto pelo materialismo histórico-dialético quanto pelos ditames da ergonomia francesa, a proposta de
Clot consiste em analisar a atividade de trabalhadores para poder empoderá-los diante das situações cotidianas
com as quais se deparam no exercício profissional. O método usado é o da Clínica da Atividade, a qual envolve:
(a) a autoconfrontação simples (na qual o trabalhador assiste aos registros das atividades por ele desenvolvidas,
discutindo-as com o pesquisador); (b) a autoconfrontação cruzada (repetição do processo, mas com uma análise
feita por um parceiro mais experiente, que a conduz e discute na presença do trabalhador e do pesquisador). Ao
ampliar o conceito de atividade adotado pela Psicologia Sócio-Histórica, Clot destaca o real da atividade
(intenções não realizadas pelo trabalhador no decorrer de sua atividade) como material relevante para a criação
de novas possibilidades de ação tanto para o trabalhador como para o coletivo profissional ao qual pertence. Para
tanto, o autor destaca que a imagem é um instrumento valioso, pois o sujeito pode observar-se em atividade e,
com base nas reflexões tecidas no decorrer das sessões de autoconfrontação, modificá-la.
16
realizada e real da atividade)5, mostraram-me a importância da formação inicial e continuada
para o bom desenvolvimento do trabalho docente no tocante à educação inclusiva. A
professora que participou da pesquisa apresentava severas dificuldades para trabalhar com seu
grupo de alunos: sua postura, cristalizada nos processos por ela desenvolvidos ao longo de 28
anos de magistério, não lhe permitia perceber a importância da formação continuada como um
instrumento facilitador de suas atividades, tanto as dirigidas aos alunos de “inclusão” quanto
aos demais.
Após a conclusão do mestrado, em 2007, pude retomar meu antigo desejo – ser
professora: iniciei a carreira docente dedicando-me ao trabalho com alunos de licenciatura em
Psicologia. Nesse percurso profissional, fui encontrando questões relativas à formação de
professores que ainda me inquietavam; desejava, também, continuar desenvolvendo pesquisas
sobre esse tema. Busquei, então, dar continuidade a minha formação acadêmica, propondo um
projeto de pesquisa voltado à compreensão da atividade docente e à formação de professores,
ainda sob a perspectiva da psicologia sócio-histórica e da clínica da atividade. No ano de
2009, o ingresso no doutorado foi de suma importância. Tal oportunidade configurou-se tanto
como espaço de formação continuada para o exercício da docência quanto como possibilidade
de desenvolvimento de meu projeto acadêmico-científico, uma vez que o tempo de que
dispunha me proporcionaria seguir mais fielmente os pressupostos teórico-metodológicos de
Clot e colaboradores.
Na ocasião, a orientadora deste estudo, Profa. Dra. Claudia Leme Ferreira Davis
estava envolvida no projeto “Trabalho docente e subjetividade: aspectos indissociáveis na
formação do professor”, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), na modalidade Programa Nacional de Cooperação Acadêmica
(Procad). De caráter nacional e com duração de quatro anos (2009 a 2012), o projeto reuniu
pesquisadores de três universidades brasileiras: PUC-SP, com o Programa de Estudos Pós-
graduados em Educação: Psicologia da Educação; Universidade Federal de Alagoas (Ufal),
com o Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira; Universidade Estácio de Sá
(Unesa), com o programa de Pós-graduação em Educação, do Rio de Janeiro.
5 Para Clot (2006), a atividade prescrita refere-se àquilo que deve ser realizado, o que é esperado que o
trabalhador faça no decorrer de sua atividade. A atividade realizada é aquela efetivamente desenvolvida pelo
trabalhador. O real da atividade contempla o que foi realizado, bem como aquilo que não o foi, aquilo que
poderia ter sido feito, mas não o foi, aquilo que se fez para não fazer o que deveria ter sido feito.
17
Vislumbrando compreender o trabalho docente e a formação continuada dos
professores, o projeto centrava-se em: a) desenvolver atividades de pesquisa, ensino e
formação de recursos humanos em nível de pós-graduação; b) possibilitar a troca de
experiências entre os programas envolvidos; c) desenvolver estudos sobre a atividade docente
a fim de subsidiar, contribuir e identificar possíveis entraves no avanço da educação
brasileira, bem como refinar o tratamento teórico-metodológico adotado em tais estudos; d)
permitir a interação científico-acadêmica entre grupos de pesquisa de diferentes programas de
pós-graduação; e) ampliar a formação de mestres e doutores e a produção científico-
acadêmica dos programas; g) subsidiar a qualificação de processos de formação de
professores (AGUIAR, 2007).
A possibilidade de desenvolver estudos sobre atividade docente – dirigidos à solução
de problemas presentes no sistema educativo brasileiro motivou –, minha vinculação ao
grupo. As discussões tecidas nos encontros semestrais e as disciplinas cursadas nos dois
primeiros anos do doutorado foram norteando a delimitação do problema de pesquisa e,
consequentemente, dos objetivos do estudo. No entanto, a teoria não era suficiente: a ida a
campo mostrou-se uma rica oportunidade para aprimorar o que fora inicialmente previsto. Ao
conhecer a escola em que realizaria a pesquisa, seus projetos e a professora que seria alvo de
minha atenção, pensei em verificar como se dava o emprego, por parte da docente, das
propostas veiculadas num programa de formação continuada ofertado pelo governo do estado
de São Paulo denominado Ler e Escrever. O referido programa teve início em 2007,
centrando-se basicamente na melhoria da qualidade do ensino em toda a rede do estado de
São Paulo, sobretudo nas competências de leitura e escrita. Como uma política pública
voltada para o ciclo I, contempla um conjunto de ações que visam à:
[...] formação, acompanhamento, elaboração e distribuição de materiais
pedagógicos [...] objetivando a alfabetização plena de todas as crianças com
até 8 anos de idade (2ª série/3º ano), [...] garantindo também recuperação da
aprendizagem de leitura e escrita aos alunos das demais séries/anos do Ciclo
I do Ensino Fundamental (FDE, 2007, s/p.).
Diante do exposto, o objetivo geral deste estudo centrou-se em analisar como uma
professora utiliza o que aprendeu no Programa de formação continuada Ler e Escrever,
ofertado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE), verificando, ainda, se – e
como – esse aprendizado é incorporado a sua atividade profissional. Três questões nodais
embasaram este estudo:
18
1. Quais são os sentidos e os significados que a professora elaborou
sobre esta formação específica – o Programa Ler e Escrever – no
que concerne ao exercício da docência e às atividades
pedagógicas que emprega?
2. A professora utiliza os conhecimentos adquiridos por meio do
Programa Ler e Escrever em suas atividades docentes? Se os usa,
como o faz?
3. Ao observar-se empregando o aprendido no referido programa, a
professora o considera importante para sua formação
profissional? Por quê?
Como objetivos específicos, configuraram-se os seguintes:
1. Analisar e interpretar os sentidos e significados que a professora elabora
sobre esta formação específica – Programa Ler e Escrever –, notadamente
no que diz respeito ao exercício da docência e à prática pedagógica que
emprega.
2. Identificar se – e de que maneira – a professora utiliza os conhecimentos
adquiridos por meio desse programa em suas atividades docentes.
3. Verificar se – e por que – a professora, ao se observar exercendo
atividades docentes nas quais emprega as propostas do referido programa,
acredita que essa formação seja importante para aprimorar sua prática
pedagógica e/ou sua atuação profissional.
4. Analisar se os procedimentos de coleta e produção de informações aqui
delineados podem apresentar-se como um instrumento profícuo para a
transformação da atividade docente.
Considerando os postulados de Clot (2010), é possível perceber que a imagem e as
sessões de autoconfrontação são propostas valiosas para os professores, contribuindo para sua
formação. Ao observar-se no decorrer de sua atividade, o docente pode repensá-la e modificá-
la, isto é, criar outras formas de fazer o que já faz: pode ampliar suas estratégias de ensino-
aprendizagem e, sobretudo, passar da situação de observado para a de observador de si
mesmo no exercício de sua profissão. Essa mudança de condição, esse autoconhecimento são
19
fundamentais na atualidade. Como demonstram muitos estudos (GATTI, 2003; IMBERNÓN,
2009; OLIVEIRA et al., 2009; ANDRÉ, 2010; DAVIS; NUNES; ALMEIDA, 2011), a
docência tornou-se, no decorrer das últimas décadas, cada vez mais complexa e desafiadora
em razão de diversos fatores: precariedade das condições materiais e físicas das escolas,
desvalorização da profissão, ausência de planos de carreira, intensificação da atividade
laboral, mudanças nos parâmetros de avaliação no âmbito estadual e nacional, precariedade de
políticas públicas efetivamente direcionadas às formações docentes inicial e continuada, entre
outros. Tais aspectos estão intrinsecamente ligados às experiências vividas por professores e
alunos no processo de ensino-aprendizagem
Para tanto, objetivando melhor compreender a atividade docente e os aspectos que a
perfazem, o presente estudo organiza-se em cinco capítulos. O primeiro apresenta e discute o
referencial teórico norteador deste trabalho: a Psicologia Sócio-Histórica e os conceitos
propostos por Yves Clot para analisar a atividade humana. O segundo consiste em uma
revisão da literatura que trata da formação continuada de professores e dos parâmetros
fundamentais que regem o Programa Ler e Escrever. O seguinte centra-se no método de
estudo empregado, ao passo que o quarto realiza a análise e a discussão dos dados e o último
traça as considerações finais.
20
1 Referencial teórico: Psicologia Sócio-Histórica
[...] o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando (João Guimarães Rosa).
Na busca de caminhos para a análise do processo de humanização em Psicologia,
Vygotsky sempre demonstrou interesse pelas relações que o homem e o mundo estabelecem
entre si. Para o autor, o homem é um ser em movimento, em constante processo de
transformação, razão pela qual qualquer estudo psicológico deve empenhar-se em
compreender as relações estabelecidas pelo sujeito com sua sociedade, sua cultura e sua
história. Também deve buscar compreender como tais relações – imbricadas em um
movimento dialético – permitem a transformação do sujeito.
Em meados de 1920, na antiga União Soviética, Vygotsky (1996) publica o artigo “O
significado histórico da Psicologia”, no qual destaca aspectos relacionados à crise da
Psicologia, assinalando que as diferentes propostas teóricas dessa área divergiam muito entre
si: “a enorme diversidade na psicologia poderia ser reduzida a uma dicotomia. A psicologia
poderia ser concebida em termos de dois tipos básicos, cada um com sua própria concepção
do que constituía a ciência e com sua própria abordagem metodológica” (VEER;
VALSINIER, 2009, p. 168). Ao analisar as teorias de sua época, Vygotsky aponta a dicotomia
entre a Psicologia objetiva – a ciência “natural” – e a Psicologia subjetiva – a “ciência da
alma”. A primeira era fortemente guiada pela abordagem experimental e, por isso, focava os
processos inferiores. Ao passo que, na tentativa de descrever os processos superiores, a
segunda negava a ciência natural, argumentando que tais “processos só podem ser
compreendidos de maneira empática” (VEER; VALSINIER, 2009, p. 168).
Inspirado por seu contexto e pautado pelos pressupostos filosóficos do materialismo
histórico dialético, Vygotsky não nega a importância das concepções objetivistas nem a das
subjetivistas, mas busca um movimento “de superação do pensamento reflexológico”, que
culmina na elaboração da teoria sócio-histórica com base na priorização do estudo das
funções psicológicas superiores, isto é, na busca da origem e da natureza dos processos
psicológicos (MOLON, 2000, p. 6).
De acordo com o autor, os seres humanos somente se constituem como tais na e pela
relação que estabelecem com outros seres humanos e com o mundo que os cerca. Nessa
perspectiva, o homem não é considerado um ser de capacidades inatas ou externamente
21
determinadas, já que o foco reside em analisar o movimento de constituição do humano, ou
seja, o desenvolvimento do sujeito em sua interação social: como ele se modifica ao modificar
sua realidade. Postula-se, portanto, um processo em que o ser humano transforma/converte o
objetivo em subjetivo e o subjetivo em objetivo, por meio da unidade dialética
subjetivação/objetivação.
Vygotsky (2001) aponta que, para desenvolver o método científico em Psicologia, não
basta descrever puramente o fenômeno sob investigação; é preciso superar o aparente e o
imediato. Inspirado em Marx, entende que o observado nada mais é do que um resultado, um
produto. Se as coisas fossem como se mostram – ou como aparentam ser –, a ciência seria
uma atividade desnecessária. De fato, fosse isso verdade, a compreensão de um fenômeno em
sua totalidade não implicaria a análise dos múltiplos fatores que nele se imbricam. Contudo, a
preocupação de Vygotsky não consiste apenas em elaborar uma teoria sobre psicologia e/ou
desenvolvimento humano. O autor pretende compreender esse processo à luz das condições
sociais, históricas e culturais, além das formas pelas quais os homens produziram e produzem
sua existência. Tais aspectos, uma vez apropriados pelos sujeitos, constituem seu plano
interno – o do psiquismo – e conformam suas formas de ser, agir e pensar.
Dessa maneira, Vygotsky entende haver uma crise na Psicologia, dividida e polarizada
entre correntes subjetivistas e objetivistas, que só poderia ser superada por meio de um
método embasado na história e na materialidade, que entendesse o homem como um ser
social, atuante em seu tempo e espaço, multideterminado pelas redes de mediação presentes
em sua sociedade. Ao analisar sua obra, é possível perceber o caminho trilhado para divergir
das teorias e dos métodos de sua época e entender seus argumentos. Quando apresenta suas
ideias, “revê as principais teorias ligadas à ‘velha psicologia’ mostrando seus pontos positivos
e negativos. [...] Opondo-se aos estudiosos de sua época, ele procura demonstrar os elementos
da crítica e da análise das teorias existentes para construir uma nova psicologia” (TULESKI,
2008, p. 81).
Nessa perspectiva, a compreensão do homem e de seu desenvolvimento não se reduz a
uma determinação simplista da interação que mantém com o meio. As relações de produção,
ou seja, as atividades que o sujeito estabelece para garantir sua sobrevivência e, também, a
sobrevivência da espécie, modificam a natureza. Nesse mesmo movimento, modificam-se os
sujeitos, a sociedade, a cultura e a história. Vygotsky (1995, p. 104) afirma que, para
compreender as interações homem-sociedade, um trabalho científico não deve limitar-se à
descrição pura do fenômeno, àquilo que é manifesto, externo, pois:
22
[...] resulta necessário, à análise científica, o saber descobrir sob o aspecto
externo do processo seu conteúdo interno, sua natureza e sua origem. Toda a
dificuldade da análise científica radica no fato de a essência dos objetos, isto
é, sua autêntica e verdadeira correlação não coincidir diretamente com a
forma de suas manifestações externas e por isso é preciso analisar os
processos; é preciso descobrir por esse meio a verdadeira relação que subjaz
nesses processos por detrás da forma exterior de suas manifestações.
Desvelar essas relações é a missão que há de cumprir a análise. A autêntica
análise científica na psicologia se diferencia radicalmente da análise
subjetiva, introspectiva, que por sua própria natureza não é capaz de superar
os limites da descrição pura. A partir de nosso ponto de vista, somente é
possível a análise de caráter objetivo já que não se trata de revelar o que nos
parece o fenômeno observado, mas sim o que ele é na realidade.
Vygotsky conclui que a análise do humano deve caminhar para além das aparências,
superando os limites da descrição do fenômeno. Cabe, portanto, à Psicologia científica
entender a essência do fenômeno, sendo necessário, para tanto, desvendar o que sua aparência
oculta. 6 O autor considera que a ciência é histórica, ao mesmo tempo produto e produtora da
atividade do homem. De acordo com o materialismo histórico-dialético, a categoria história
pode ser compreendida em dois planos: no mais amplo, o que acontece no real não pode ser
visto como mera sucessão linear de fatos, uma vez que eles são regidos pela dialética geral
das coisas; no plano mais restrito, a história é, também, a história dos homens. Analisando o
trabalho de Vygotski, Pino (2000, p. 49) sintetiza:
[...] dizer que a ciência é histórica, no contexto do materialismo histórico,
equivale a dizer que ela é produto da atividade humana, não um dado puro
da razão, nem a simples expressão da realidade natural das coisas. Como
qualquer produção humana, a ciência está ligada às condições da sua
produção. Em termos gerais, pode-se dizer que a ciência é a natureza
pensada pelo homem que, dessa maneira, passa a integrar a história humana
na forma de ciência da natureza. A natureza, em si mesma, não tem história.
Apesar de enfatizar a história e a importância das interações homem-sociedade-
natureza, Vygotsky não nega a relevância do aparato biológico como constituinte do sujeito.
Ao contrário, ressalta que as funções biológicas fazem parte de um quadro mais amplo, que
diz respeito à pertença do homem à espécie humana. No entanto, tornar-se homem –
humanizar-se – é um processo que só se efetiva na e pela constante apropriação da cultura em
que se vive. Isto é, o ser humano, ao nascer, é dotado de um aparato biológico que lhe permite
humanizar-se, desenvolvendo-se nas e pelas atividades e relações estabelecidas com outros
6 Baptista (2007) destaca que a essência é, para Marx, “a síntese de muitas determinações, isto é, a unidade do
diverso”. Explica que “é a seu tempo o processo de síntese que se manifesta como resultado das relações
humanas e não como seu ponto de partida”. Na base materialista, a essência apresenta-se mais próxima do
concreto pensado – a forma como o objeto é assimilado pelo pensamento. O objeto, além de histórico, é uma
construção humana determinada pelo processo produtivo, o qual precisa ser compreendido em todas as suas
nuanças, nas leis que o regem.
23
sujeitos e com suas produções. Nesse sentido, Leontiev (2001, p. 285) aponta que “cada
indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para
viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do
desenvolvimento histórico da sociedade humana”. Há, então, outros dois conceitos
importantes para a Psicologia Sócio-Histórica: o das funções psicológicas elementares (FPE)
e o das funções psicológicas superiores (FPS).
As FPE têm origem biológica, são involuntárias e imediatas, ou seja, não se encontram
sob o controle do sujeito: a memória mecânica, a atenção involuntária, a imaginação
reprodutora, a percepção e a sensação imediatas. Ao passo que as FPS, por apresentarem um
caráter voluntário e intencional, desenvolvem-se na atividade, por meio da mediação dos
outros e dos objetos. Envolvem, portanto, a memória lógica, a atenção voluntária, o
pensamento por conceitos, que são características essenciais dos processos tipicamente
humanos de planejamento, da ação intencional e da autorregulação da conduta própria e da
dos demais. Deve-se notar, no entanto, que as FPE são essenciais para o desenvolvimento das
FPS: umas não podem ser analisadas de maneira descolada das outras, pois se interpenetram.
Para Vygotsky (1995b), não cabe dissociar entre processos elementares e superiores. Ao
longo da apropriação do real, seguindo a lógica marxista, dá-se um movimento de superação
por incorporação: um domínio das formas superiores sobre as inferiores, em razão das
diferenças qualitativas entre suas estruturas. Assim, no âmbito das funções psíquicas, “as
formas inferiores não se aniquilam, mas incluem-se nas superiores e continuam existindo
nelas como uma instância submetida” (VYGOTSKY, 1995b, p. 129).
As FPS desenvolvem-se por meio da atividade semioticamente mediada, que emprega
instrumentos e signos, os quais possibilitam ao sujeito planejar e transformar qualitativamente
sua realidade externa e interna. Em interação com a sociedade, a criança desenvolve-se e
modifica-se, observando-se, então, “um salto qualitativo interno, provocado pelo meio
externo, que redimensiona totalmente as funções elementares, elevando-as a patamares
superiores, pois o indivíduo, controlado por elas (funções), passa a controlá-las
conscientemente” (TULESKI, 2008 p. 119-120).
As funções psicológicas superiores surgem em dois planos que se interpenetram: o
interpsicológico e o intrapsicológico. A relação, aqui, novamente não é linear, mas sim
dialética: um movimento que parte do social em direção ao individual e, também, do
individual para o social. Seguindo Leontiev (2004), não se pode afirmar que há simplesmente
adaptação do ser humano ao mundo: trata-se de um processo de apropriação desse mundo, ou
24
seja, de constituição tanto do plano subjetivo quanto do objetivo. Leontiev postula, assim, um
processo eminentemente ativo. No plano interpsicológico, em interação com a realidade
concreta e por meio das diversas redes de mediação – como o emprego de signos – que
estabelece com o social, o sujeito apropria-se do conhecimento e da experiência humana
historicamente acumulada. A mediação do social permite ao homem, no plano
intrapsicológico, reconstruir internamente os aspectos de sua cultura, ou seja, convertê-la em
funções psíquicas. Se, como já foi dito, o sujeito é a síntese de múltiplas determinações, ele se
modifica e é dialeticamente modificado por tudo aquilo que, no bojo das relações sociais, o
constitui.
De acordo com o materialismo histórico-dialético, a compreensão das funções
psíquicas requer reconhecer a importância das instâncias filogenéticas, sociogenéticas,
ontogenéticas e microgenéticas no desenvolvimento humano. A primeira refere-se ao
processo de desenvolvimento histórico da espécie humana; a segunda representa a história do
homem na condição de ser social; a terceira, a constituição do ser humano como sujeito único,
vinculado a um determinado tempo, espaço e contexto; a última delas diz respeito à forma de
constituição dos fenômenos humanos, à história de cada um deles. Essas instâncias
encontram-se imbricadas umas nas outras – todas caminham juntas – cada uma com suas
particularidades. Sobre esses quatro planos do desenvolvimento, Pesce, Peña e Allegretti
(2009, s/p) destacam que:
No plano filogenético, relativo às especificidades da espécie, a história da
espécie animal é, em parte, responsável pelos limites e possibilidades do
desenvolvimento psicológico de um dado sujeito social, obviamente que se
levando em conta a plasticidade do cérebro humano. No plano ontogenético,
referente às especificidades do ser, o desenvolvimento de um indivíduo de
uma determinada espécie ainda se imbrica na filogênese. O plano
sociogenético leva em consideração a história da cultura na qual o sujeito
social está inserido, tendo como premissa a ideia de que as formas de
funcionamento da cultura constituem o desenvolvimento humano. No plano
microgenético, cada fenômeno psicológico tem sua própria história. Nesse
último plano, as singularidades de cada sujeito social rompem com o
primado determinista passível de ser interpretado nos três planos anteriores.
A articulação dos quatro planos de desenvolvimento supracitados ergue-se
em meio à mediação simbólica. Isso equivale a dizer que a relação do
homem com o mundo é sempre mediada, concreta (por instrumentos) e
simbolicamente (por signos).
São destacadas, a seguir, algumas categorias de análise teórico-metodológicas da
Psicologia Sócio-Histórica centrais para o desenvolvimento deste trabalho. No decorrer da
disciplina “Contribuições de Vygotsky para a educação”, Aguiar (2011) pontua que as
25
categorias de análise teóricas – linguagem, sentidos e significados, atividade e mediação,
como categorias metodológicas – são constructos teóricos que representam a realidade e que
ajudam a entendê-la, com o objetivo de apreender um fenômeno em sua totalidade, em seus
movimentos, suas contradições e sua história. Funcionam como “recortes do real”, permitindo
aos pesquisadores aproximarem-se dos aspectos que constituem seu objeto de estudo. A título
de esclarecimento, essas categorias, apesar de serem apresentadas separadamente no decorrer
deste capítulo, não podem ser vistas de modo fragmentado, pois se interpenetram. Os recortes
feitos não são entendidos como conceitos fechados, mas vistos à luz da historicidade que
carregam suas múltiplas determinações e contradições, permitindo entender a constituição do
sujeito.
1.1 Mediação
Na perspectiva sócio-histórica, a interação do ser humano com a natureza, com a
realidade social e com os objetos de seu tempo e lugar, ocorre por meio de diversas redes de
mediação, formadas pelos instrumentos físicos e pelos signos. É justamente essa relação de
mediação que permite ao ser humano apropriar-se de seu meio social e de sua cultura,
transformando-os e sendo por eles transformado. Deste ponto de vista, a mediação é uma
categoria objetiva, ontológica, presente em qualquer realidade (LUKÁCS, 1979).
Para a análise da atividade docente, esta categoria é essencial, uma vez que o
conhecimento, como objeto de trabalho do professor, é sempre resultado das relações entre os
sujeitos, e não fruto de um esforço abstrato. A mediação revela-se, então, como base do
trabalho educativo, pois constitui o “ato de produzir, direta ou intencionalmente, em cada
indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos
homens” (SAVIANI, 1997, p. 11). A mediação só se realiza por meio da atividade e da
linguagem; é por seu intermédio que o ser humano transforma a natureza para satisfazer suas
necessidades e é por ela transformado; e, nesse movimento de contato com o mundo, seu
plano interno se modifica7. Para Pontes (2010, p. 78) “as mediações são as expressões
históricas das relações que o homem edificou com a natureza e, consequentemente, das
7 O plano interno é, muitas vezes, denominado consciência – ou conteúdo psicológico –, construída na e pela
atividade. Clot (2003, p. 17), parafraseando Vygotsky, ressalta que “a consciência não é uma imagem
analógica do real, mas uma atividade prática de seleção”. Segundo o autor, pode-se entendê-la também como
uma ilha, com suas dimensões e formas determinadas pelas situações e conflitos decorrentes das experiências
em que o sujeito vive em razão das determinações históricas.
26
relações sociais daí decorrentes, nas várias formações sócio-humanas que a história
registrou”. De acordo com Lane (2002, p. 12), precursora da Psicologia Social no Brasil:
Uma pessoa é a síntese do particular e do universal, ou seja, sua
individualidade se constitui, necessariamente, na relação objetiva com seu
meio físico, geográfico, histórico e social que irão através das suas ações,
desenvolver o psiquismo humano. Estas relações se dão através da mediação
de grupos sociais dos quais um indivíduo participa necessariamente, a fim de
garantir sua sobrevivência. Assim, a aquisição da linguagem produzida por
esta sociedade permite o desenvolvimento do pensamento, dos afetos e dos
sentimentos.
Embora o homem seja singular (indivíduo), com suas formas particulares de ser,
pensar e agir, também faz parte do todo (de sua sociedade) e, nesse sentido, é um sujeito
semelhante aos de sua espécie. Parte e todo, a despeito de serem aspectos distintos,
constituem uma unidade em que um não nega a existência do outro: ambos se interpenetram,
como bem salientam Oliveira, Almeida e Arnoni (2007, p. 107): “o singular nega o geral, mas
está presente nele; por outro lado, a generalidade nega a singularidade, porém só se realiza por
meio dela”. Desse modo, só se pode compreender o movimento de negação quando são
consideradas as contradições, entendidas como possibilidades de superação: é por causa delas
que o sujeito, engajado em sua sobrevivência, tensionado por sua realidade objetiva, vai
superando suas formas de ser, pensar e agir.
Por serem construídas sócio-historicamente, as mediações carregam em si o
conhecimento humano acumulado pelas gerações precedentes. As mediações são promovidas,
portanto, pelos instrumentos e pelos signos: os primeiros são externamente dirigidos (voltados
ao meio físico e material); são ferramentas criadas pelos sujeitos para transformar a natureza.
Representam instrumentos físicos todo e qualquer objeto criado e/ou transformado para
satisfazer uma realidade humanizada, por exemplo, uma colher, uma cadeira, uma vara de
pescar etc. Ao passo que os signos são internamente orientados e, nesse sentido, buscam
transformar o próprio homem ou os outros homens. São ferramentas psicológicas e culturais
socialmente construídas e compartilhadas. As muitas linguagens, entre elas a da arte, por
exemplo, são mediadoras do mundo mental, afetivo e social, bem como da conduta humana e
dos processos de comunicação, estando, assim, profundamente envolvidas na constituição do
humano.
27
1.2 Linguagem: sentidos e significados
Por ser o principal sistema simbólico constituído pela humanidade, a linguagem é o
recurso utilizado pelos sujeitos para se comunicarem e se apropriarem de sua cultura. Na
perspectiva sócio-histórica, a linguagem não é um reflexo objetivo de um pensamento. Ao
contrário, é no movimento de “transformar-se em linguagem, [que] o pensamento se
reestrutura e se modifica” (VYGOTSKY, 2001, p. 412). Aqui, também, está imbricada a
relação dialética de objetivação e subjetivação: a linguagem aparece inicialmente no plano do
social, como um fenômeno interpsicológico; posteriormente, ao ser subjetivada, constitui o
plano do sujeito, convertendo-se em fenômeno intrapsicológico. Se a linguagem atua primeiro
como um instrumento sígnico, passa a ser uma função psicológica superior quando integra o
pensamento verbal. Pensamento e palavra, tendo como matéria-prima os signos, formam uma
unidade de processos interdependentes e dialeticamente constitutivos que, num constante e
recíproco movimento (do pensamento para a palavra e da palavra para o pensamento),
possibilitam o desenvolvimento psicológico do homem. Para Vygotsky (2001, p. 409-410):
[...] a relação entre pensamento e a palavra é, antes de tudo, não uma coisa,
mas um processo: é um movimento do pensamento à palavra e da palavra ao
pensamento. À luz da análise psicológica, essa relação é vista como um
processo em desenvolvimento. [...] todo pensamento procura unificar alguma
coisa, estabelecer uma relação entre coisas. Todo pensamento tem um
movimento, um fluxo, um desdobramento, em suma, o pensamento cumpre
alguma função, executa algum trabalho, resolve alguma tarefa. Esse fluxo de
pensamento se realiza como movimento interno, através de uma série de
planos, como uma transição do pensamento para a palavra e da palavra para
o pensamento.
Ainda para o mesmo autor, pensamento e palavra não se unem por um elo primário;
não existe entre eles uma conexão progressiva, paralela ou linear, mas sim dialética, de mútua
interdependência. A partir do momento em que pensamento e linguagem se entrelaçam, não
se separam mais: o pensamento, sem a fala, não se realiza e a fala sem o pensamento são
apenas palavras vazias. Vale destacar, ainda, que todo pensamento tem uma base afetivo-
volitiva, ou seja, “é gerado pela motivação, isto é, por nossos desejos e necessidades, nossos
interesses e emoções” (VYGOTSKY, 2001, p. 129). O balbucio do bebê não tem significado
para ele; no entanto, os outros, ao ouvi-lo, abrem-lhe possibilidades de significação,
justamente por atribuírem àquele som um dado significado. Ao apreender esse significado
oferecido pelo outro (e, portanto, pelo social), a criança pequena passa, por meio da fala, a
não ser apenas controlada por seu meio: ela pode, agora, também controla-lo, mediante o
processo de significação. Os significados apreendidos pelo bebê não são, de maneira alguma,
28
idênticos ao que o outro lhes atribui; eles são conformados de maneira singular,
idiossincrática, no plano subjetivo, justamente por estarem enraizados em suas experiências
prévias. Diz-se, assim, que o bebê, ao apropriar-se dos significados que o outro atribui a suas
ações, converte-os – assim como aponta Leontiev (2004) – em sentidos pessoais, em algo que
é particular e subjetivo. Para aproximar-se dos aspectos constitutivos do sujeito, faz-se
necessário, portanto, analisar os sentidos e os significados que ele atribui a suas experiências.
A linguagem e, mais especificamente, os signos envolvem ora aspectos mais fluidos e
instáveis (os sentidos pessoais), ora aqueles mais estáveis, justamente por serem
compartilhados (os significados dicionarizados da palavra). Com isso, reconhece-se que a
linguagem é, notadamente, um instrumento essencial de mediação da atividade humana e do
desenvolvimento das funções psíquicas superiores, desempenhando um papel importante na
comunicação, no planejamento da ação e, em especial, na autorregulação de conduta. Para
Leontiev (2004, p. 45), o significado “é um sistema estável de generalizações que se pode
encontrar em cada palavra igualmente para todas as pessoas”. Por ser construído social e
historicamente, o significado permite a comunicação humana, incidindo no nível semântico,
ou seja, no que a palavra quer dizer. No entanto, ele não é unívoco, pois sua interpretação está
condicionada pela cultura e também pela história pessoal de cada sujeito.
Assim, por conter as particularidades de cada ser humano, a palavra gera sentidos
próprios. A palavra “cadeira”, por exemplo, tem um significado comum, compartilhado por
todas as pessoas que falam português, que é relativamente estável na cultura brasileira. Nesse
sentido, essa palavra, por constituir uma generalização, é um conceito e, portanto, um
fenômeno do pensamento. Ao mesmo tempo, essa mesma palavra tem um sentido próprio
para cada pessoa. Sentidos e significados não podem ser entendidos, entretanto, como
aspectos estanques: eles são mutuamente constitutivos, um não existe sem o outro; cada um
carrega, em si, sua particularidade.
Os sentidos são mais amplos do que os significados porque se constituem com base na
experiência pessoal que subverte o significado instituído, compartilhado. São, portanto,
pessoais, apresentando-se como fluidos, idiossincráticos, inesgotáveis. Desenvolvidos no
decorrer da experiência pessoal, “constituem-se a partir do confronto entre os significados
sociais vigentes e a vivência de cada sujeito particular” (AGUIAR, 2001, p. 105). Resultantes
das relações dialéticas estabelecidas com o mundo social e histórico, os sentidos são
construções individuais, que adquirem valor único para o sujeito: são produções pautadas e
articuladas em suas condições de existência, nas experiências vividas, nas posturas adotadas.
29
É por isso que se supõe que os sentidos se aproximam do plano da subjetividade. Se os
significados são mais estáveis e compartilhados, são também mais restritos. Assim,
compreender o sujeito, sua subjetividade e seu processo de desenvolvimento requer
compreender seus sentidos e significados.
1.3 Atividade
O movimento de satisfação das necessidades humanas ocorre por meio da atividade,
categoria fundamental da Psicologia Sócio-Histórica, que se vincula ao processo de
humanização e à constituição da subjetividade:
Pela sua atividade, os homens não fazem, senão, adaptar-se à natureza. Eles
a modificam em função do desenvolvimento das suas necessidades. Criam os
objetos que devem satisfazer às suas necessidades e, igualmente, os meios de
produção desses objetos, dos instrumentos às máquinas mais complexas.
Constroem habitações, produzem as suas roupas e outros bens materiais. Os
progressos realizados na produção de bens materiais são acompanhados pelo
desenvolvimento da cultura dos homens; o seu conhecimento do mundo
circundante e deles mesmos enriquece-se, desenvolvem-se a ciência e a arte
(LEONTIEV, 1978, p. 265).
Assim, ao agir em determinada conjuntura histórica, o homem produz novas
necessidades que, para serem satisfeitas, requerem outras, em um processo dialético que
impulsiona o desenvolvimento do ser humano e de sua cultura. A título de exemplo: os
homens podem ter a mesma atividade concreta, como desenvolver um determinado tipo de
trabalho; mas essa atividade terá, para cada um deles, sentidos e significados distintos,
decorrendo daí que, ao suprir suas necessidades, as modificações objetivas da ação provocam
transformações subjetivas em cada trabalhador:
O homem, ao produzir os meios para satisfação de suas necessidades básicas
de existência, ao produzir uma realidade humanizada pela sua atividade,
humaniza a si próprio, na medida em que a transformação objetiva requer
dele uma transformação subjetiva. Cria, portanto, uma realidade humanizada
tanto objetiva quanto subjetivamente (DUARTE, 2006, p. 118).
Todo trabalho é uma atividade, mas nem toda atividade é um trabalho, pois este último
envolve três esferas distintas: a atividade pessoal do homem, aquilo sobre o qual o homem
trabalha e os meios que utiliza para tanto. Pode-se afirmar, portanto, que o trabalho é um
processo de mediação entre os sujeitos. Fundamentando-se na teoria de Marx, Vygotsky
30
(2001) defende uma estrutura triádica, representada pelo homem, o mundo e o instrumento,
mediante a qual o primeiro age fazendo uso de instrumentos que irão transformar a si mesmo
e ao mundo. No trabalho, a atividade medeia a relação homem-natureza, que não é uma
relação linear, direta, constituindo, antes, uma via de mão dupla, pois:
[...] o sujeito, ao agir diretamente ou indiretamente sobre o meio pela
atividade de trabalho, é, ao mesmo tempo, transformado por ele em função
dos efeitos e resultados de sua ação. Em segundo lugar, esta interação não se
dá a esmo. Ela é guiada por objetivos que o sujeito estabelece vis-à-vis seu
objeto de ação (FERREIRA, 2000, p. 74).
Leontiev (2004), em particular, debruça-se sobre o estudo das categorias atividade e
consciência. Interessa-se pelo processo por meio do qual a atividade leva à construção e ao
desenvolvimento da consciência humana, ou seja, como suas funções psíquicas são
desenvolvidas, investigando seu processo de constituição. Desenvolvendo algumas das ideias
de Vygotsky, Leontiev aponta que, para entender a consciência, é preciso compreender a
atividade; de igual modo, é central apreender os movimentos constitutivos da consciência. De
fato, quando se consideram essas duas instâncias – atividade e consciência –, torna-se possível
perceber as múltiplas determinações do sujeito. Ou seja, a atividade modifica a consciência –
uma unidade dialética, tensionada pela materialidade – e a consciência modifica a atividade.
Assim, a análise da atividade revela-se central, na medida em que aquilo que o sujeito realiza
– ou seja, aquilo que ele faz em determinado momento – constitui a matéria-prima para a
análise do desenvolvimento da consciência.
1.4 Yves Clot e as categorias de análise da clínica da atividade
Apoiando-se nas ideias de Amalberti e Hoc e (1998), Clot (2006, p. 24) define a
atividade como um conjunto de “operações manuais e intelectuais realmente mobilizadas a
cada instante pelo trabalhador para atingir seus objetivos”. Para o autor, é por ela e nela que o
homem atua sobre outros homens e sobre a natureza, transformando-a e sendo por ela
dialeticamente transformado. No processo de humanização, aquilo que se supunha ser a
natureza humana converte-se em condição humana, uma condição que é continuamente
construída e supera as determinações biológicas: a constituição do humano leva à organização
de sociedades ao longo da história, produzindo meios de agir, pensar e sentir, ou seja, sujeitos
que, de igual modo, constroem, para si, uma história.
Inspirado, portanto, pelos pressupostos da Psicologia Sócio-Histórica, da Ergonomia
francesa atual e da Psicopatologia do Trabalho, Clot (2006) e colaboradores tomam como
31
objeto de estudo o trabalho e sua função psicológica e dedicam-se a analisar a atividade,
visando que o trabalhador e seu grupo profissional possam aumentar seu poder de ação por
meio da autoconfrontação, o que, por sua vez, permitiria que suas atividades e eles próprios se
transformassem. Para tanto, Clot (2006) elabora três conceitos que norteiam a análise da
atividade: a) trabalho prescrito ou tarefa; b) atividade realizada; c) real da atividade. O
trabalho prescrito refere-se a tudo aquilo que é esperado que o trabalhador faça, isto é, aquilo
que deve ser feito e para o qual a pessoa é contratada. No entanto, Flottès (2001, p. 60) 8
ressalta que, embora todo trabalho implique uma prescrição, ela nem sempre é seguida, pois
“o trabalho realizado nunca é o trabalho prescrito. Não porque a prescrição não seja adequada,
mas porque ela é geral; o trabalho cotidiano é multiforme, com variáveis que se modificam
constantemente”.
O conceito de atividade realizada refere-se ao que o sujeito realmente faz, ao que pode
ser diretamente observado. Ao passo que o real da atividade caracteriza-se por tudo aquilo que
não se fez, mas que se desejaria ou se poderia ter feito. Nas palavras de Clot (2010, p. 104), o
real da atividade é “o que se tenta fazer sem ser bem-sucedido; é o que se pensa ser capaz de
fazer noutro lugar; o que se faz para evitar fazer o que deve ser feito; o que deve ser refeito e
o que se fez a contragosto”. Nota-se, assim, que o autor amplia a noção de atividade proposta
por Leontiev (2004) e atenta, ao assim agir, para o fato de a atividade não se resumir ao que
foi efetivamente realizado (observado): ela envolve, também, o que não foi realizado e que,
portanto, não pode ser observado. Clot amplia os aspectos constituintes dessa categoria,
tornando mais complexa sua análise, uma vez que aquilo que não foi feito em um dado
momento torna-se também um objeto de estudo.
Ao articular as ideias acerca do campo profissional, o autor postula dois outros
conceitos que podem auxiliar a análise da atividade: o gênero e o estilo. O primeiro refere-se
ao conjunto de atividades vinculadas a uma profissão e que tem, também, sua história; ou
seja, o gênero refere-se aos diversos modos pelos quais a atividade vem sendo realizada ao
longo do tempo. Nesse sentido, o gênero relaciona-se a uma memória impessoal:
8 “le travail qui est réellement fait n’est jamais le travail qui est prescrit. Ne pas parce que la prescription n’est
pas bonne, mais parce qu’elle est général et que le travail quotidien est multiforme, qu’il varie sans cesse”
(tradução nossa).
32
[...] é a história de um grupo e memória impessoal de um local de trabalho.
[...] mas sempre se tratará das atividades ligadas a uma situação, das
maneiras de “apreender” as coisas e as pessoas num determinado meio. A
esse título, como instrumento social da ação, o gênero conserva a história
(CLOT, 2006, p. 38).
Fica claro, dessa maneira, que é por meio do gênero que o profissional sabe o que dele
se espera, implícita e explicitamente, em uma determinada área ou assunto. Darré (1994 apud
CLOT, 2006, p. 47) salienta que “os gêneros assinalam a pertença a um determinado grupo e
orientam a ação, oferecendo uma forma social de (re)apresentá-la”. Como história de um
grupo profissional, o gênero está sempre em construção e, não obstante, destaca-se por ser o
principal norteador da atividade nas situações em que ela é requerida, possibilitando ao
trabalhador “saber o que é possível – ou não – esperar em uma dada situação. É uma memória
que não se refere apenas ao passado, pois serve, também, para prever o futuro, para antecipar
ações, permitindo ao trabalhador evitar possíveis erros no exercício da atividade de trabalho”
(MURTA, 2008, p. 63). Tensionado pelo movimento dialético, o gênero, a despeito de ser
historicamente constituído, modifica-se sem cessar, formando um sistema indeterminado, com
variantes flexíveis. Esse conceito diz respeito, assim, aos modos de ação, considerando os
objetivos propostos. Nesse sentido, o gênero é definido pelo conjunto dos trabalhadores de
uma determinada profissão:
Trata-se de regras de vida e de ofício destinadas a conseguir fazer o que há
de fazer, maneiras de fazer na companhia dos outros, de sentir e de dizer,
gestos possíveis e impossíveis dirigidos tanto aos outros como ao objeto.
Trata-se por fim das ações que um dado meio nos convida a realizar e
aquelas que ele designa como incongruentes ou fora de lugar; o sistema
social das atividades reconhecidas ou interditas num dado meio profissional.
Ele não regula diretamente as relações entre as pessoas, mas antes as
relações entre profissionais, ao fixar o “espírito” dos lugares como
instrumento da ação: diz, sem o dizer, o que deve fazer em tal ou qual
situação, o suposto desconhecido que jamais vamos conhecer. Ele representa
o sistema simbólico com que a ação individual deve relacionar-se (CLOT,
2006, p. 50).
O estilo, por sua vez, diz respeito à possibilidade de o trabalhador libertar-se do gênero
e, consequentemente, poder agir segundo sua própria maneira ao executar uma dada atividade.
Para o autor, o estilo “é o movimento mediante o qual esse sujeito se liberta do curso das
atividades esperadas, não as negando” (CLOT, 2006, p. 50), mas desenvolvendo-as de outra
forma. Esse conceito indica, também, o distanciamento entre o sujeito e seu trabalho, ou seja,
daquilo que havia sido delineado pelo gênero, evidenciando o quanto as ações são flexíveis e
as numerosas possibilidades de realização. Se o estilo é interessante, ou seja, se torna a
33
atividade mais eficaz ou mais rápida ou, ainda, mais agradável de ser cumprida, indica uma
nova qualidade do trabalho. Desse modo, se o estilo é um jeito próprio de fazer o que deve ser
feito, revela os aspectos subjetivos daqueles envolvidos na atividade, justamente por se referir
à maneira pessoal pela qual o sujeito realiza aquilo que é dele esperado com base nas
prescrições do trabalho e nas determinações do gênero. Nessa medida, pode-se dizer que
ambos – gênero e estilo – formam uma unidade, são interdependentes.
Todas essas categorias não podem ser pensadas e analisadas de modo fragmentado.
Elas foram, aqui, separadas intencionalmente, para efeitos de discussão e análise dos
postulados da Psicologia Sócio-Histórica. Desse modo, como foi visto ao longo deste
capítulo, o ser humano desenvolve-se em contato com o mundo, por meio de sua atividade,
fazendo uso da linguagem e das diversas redes de mediação que lhe permitem estabelecer
contato com a realidade objetiva. A atividade, marcada pelo movimento dialético, traz à tona
possibilidades de novos conhecimentos e, portanto, de mudanças, abrindo espaço não só para
a transformação do indivíduo, como também para a do próprio mundo que o cerca.
Considerado esse potencial de mudança da atividade, as categorias aqui descritas serão as
mediadoras do processo construtivo e interpretativo do presente estudo.
34
2 Formação de professores e o Programa Ler e Escrever
Pensar a educação a partir da unidade escolar como uma unidade
sociológica, que tem uma função social a cumprir, é extremamente
importante. Ela congrega as crianças e, por seu intermédio, a família; ela
congrega os docentes que vão ali trabalhar; os especialistas; o diretor. E é
nela que as políticas públicas se concretizam da maneira como
historicamente isso é possível, porque é no fazer cotidiano que nós estamos
agindo, podendo transformar as coisas (GATTI, 2008, s/p.)
Nos últimos 30 anos, mudanças sociais, políticas e econômicas têm exercido forte
influência nas discussões sobre o campo da educação no Brasil, em especial no que tange à
melhoria da qualidade do ensino. No bojo desse debate, está a formação continuada do
professor – como atesta o crescimento “da produção científica sobre o tema, na visibilidade
adquirida pela temática na mídia, pelo recente surgimento de eventos e publicações
especificamente dedicadas às questões” da área (ANDRÉ, 2010, p. 174). A urgência na
melhoria da qualidade do ensino tem como pano de fundo um momento historicamente
determinado, mais especificamente as décadas de 1970/80, quando o direito à educação foi
ampliado a praticamente todos os brasileiros, provocando “um crescimento jamais assistido
da rede pública de ensino.” No entanto, essa ampliação “da estrutura educacional no país se
deu de maneira desordenada e pouco planejada” (OLIVEIRA et al., 2009, p. 2).
Se, por um lado, as políticas públicas estavam cada vez mais focadas em garantir o
acesso à educação; por outro, a elevação dos índices de repetência e evasão escolar não
negavam o descontentamento da sociedade com o trabalho desenvolvido pelas escolas e,
consequentemente, pelos professores, como indicam os Parâmetros curriculares nacionais
(BRASIL, 1997). Todas essas questões exigem uma reflexão sobre o papel da escola, das
metodologias de ensino, do percurso profissional do professor e, mais especificamente, de sua
formação e de suas concepções sobre o processo de ensino-aprendizagem.
Os fatores que afetavam – e ainda afetam – diretamente o trabalho do professor
centram-se: na desvalorização de sua profissão, na quantidade excessiva de alunos por turma,
na falta de condições materiais e físicas de trabalho etc., que, articulados à precariedade da
formação (inicial e continuada) docente, têm “criado grande desânimo no professorado e
insatisfação com os resultados de seu trabalho. Tudo isso acaba por gerar um grande desgaste
nas relações internas da escola, com impacto na escolha pelo magistério por parte dos alunos
que ingressam na universidade” (DAVIS; AGUIAR 2010, p. 234). Nessa perspectiva, a
compreensão da formação docente é permeada, sobretudo, pelo papel da escola na atualidade.
35
Dessa maneira, a prática escolar, considerada um espaço privilegiado de construção crítica de
conhecimentos e socialização:
[...] distingue-se de outras práticas educativas, como as que acontecem na
família, no trabalho, na mídia, no lazer e nas demais formas de convívio
social, por constituir-se uma ação intencional, sistemática, planejada e
continuada para crianças e jovens durante um período contínuo e extenso de
tempo. A escola, ao tomar para si o objetivo de formar cidadãos capazes de
atuar com competência e dignidade na sociedade, buscará eleger, como
objeto de ensino, conteúdos que estejam em consonância com as questões
sociais que marcam cada momento histórico, cuja aprendizagem e
assimilação são as consideradas essenciais para que os alunos possam
exercer seus direitos e deveres. Para tanto ainda é necessário que a
instituição escolar garanta um conjunto de práticas planejadas com o
propósito de contribuir para que os alunos se apropriem dos conteúdos de
maneira crítica e construtiva. A escola, por ser uma instituição social com
propósito explicitamente educativo, tem o compromisso de intervir
efetivamente para promover o desenvolvimento e a socialização de seus
alunos (BRASIL, 1997, p. 34-35).
Para que a escola consiga atingir seu objetivo – formar cidadãos capazes de atuar com
base em conhecimentos, tomar decisões adequadas, agir com dignidade na sociedade –, o
papel do professor na educação formal é central: cabe a ele a mediação entre os
conhecimentos historicamente acumulados em uma determinada sociedade e o aluno em
processo de formação, como bem aponta Basso (1998, p. 22):
A mediação realizada pelo professor entre o aluno e a cultura apresenta
especificidades, ou seja, a educação formal é qualitativamente diferente por
ter como finalidade específica propiciar a apropriação de instrumentos
culturais básicos que permitam elaboração de entendimento da realidade
social e promoção do desenvolvimento intelectual. Assim, a atividade do
professor é um conjunto de ações intencionais, conscientes, dirigidas para
um fim específico.
Com as pesquisas realizadas sobre o trabalho docente, o fracasso escolar e a qualidade
de ensino, muito se têm discutido a importância do papel da formação continuada de
professores e seu impacto no trabalho pedagógico (KRAMER, 1989; NÓVOA, 1996;
PATTO, 1999; GATTI, 2003; ANDRÉ, 2010; DAVIS; AGUIAR, 2010). No entanto, embora
tais estudos salientem o montante de recursos públicos investidos para esse fim e a
importância da formação docente (tanto inicial quanto continuada), notam-se os limites de tais
programas, como bem mostra Gatti (2003, p. 192):
36
As limitações dessa concepção têm sido tratadas pelas pesquisas e literatura
em psicologia social, que chamam a atenção para o fato de que esses
profissionais são pessoas integradas a grupos sociais de referência, nos quais
se gestam concepções de educação, de modos de ser, que se constituem em
representações e valores que filtram os conhecimentos que lhes chegam. Os
conhecimentos adquirem sentido ou não, são aceitos ou não, incorporados ou
não, em função de complexos processos não apenas cognitivos, mas,
socioafetivos e culturais. Essa é uma das razões pelas quais tantos programas
que visam a mudanças cognitivas, de práticas, de posturas, mostram-se
ineficazes.
Para a autora, a eficácia dos cursos de formação continuada vincula-se a propostas que
considerem as condições sociais, históricas, políticas, culturais e pessoais dos professores, o
que, contudo, poderia não garantir um processo de mudança eficaz, uma vez que é necessário
alcançar “uma integração na ambiência de vida e trabalho daqueles que participarão do
processo formativo” (GATTI, 2003, p. 197). Embora os PCN (BRASIL, 1997, p. 25)
delimitem que “a formação não pode ser tratada como um acúmulo de cursos e técnicas, mas,
sim, como um processo reflexivo e crítico a respeito da prática educativa”, as propostas de
formação continuada não suprem por completo as necessidades do professorado, uma vez que
se distanciam da realidade por eles vivida no cotidiano escolar e, por isso, há pouca utilização
dos conhecimentos adquiridos nesses cursos no decorrer de suas atividades docentes
(AZANHA, 1998). Além de considerar os aspectos anteriormente arrolados, cabe, também,
destacar a escola, seus protagonistas, suas possibilidades objetivas (espaço físico,
disponibilidade de materiais, entre outros), bem como as relações interpessoais nela presentes
e a relação mantida com sua comunidade, dado que “investir no desenvolvimento profissional
dos professores é, também, intervir em suas reais condições de trabalho” (BRASIL, 1997, p.
25).
Ao questionarem os entraves encontrados na formação de professores (inicial e
continuada) na atualidade, Davis e Aguiar (2010, p. 234) corroboram com Gatti (2003) ao
afirmarem que, além de melhorias nas condições de trabalho, seria conveniente considerar as
experiências e as histórias profissional e pessoal dos professores. No entanto, alertam que a
desvalorização da profissão docente ocorre porque:
[...] falta entrosamento da teoria com a prática, aspecto que acaba fazendo da
docência uma profissão sem conhecimentos aprofundados, sem método,
voltada para um aluno idealizado. Tudo isso redunda, como seria de se
esperar, na visão de que o magistério é uma profissão de menor categoria e
de que aqueles que a exercem não podem, portanto, ser profissionais
valorizados. Estágios sem planejamento e sem supervisão, pouca clareza
acerca do que vem a ser um trabalho docente eficaz, fronteiras difusas
ocultando as especificidades da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e
37
do Médio só fazem agravar a pouca ou nenhuma ênfase dada à função social
da escolarização: transmitir às novas gerações os conhecimentos socialmente
produzidos e, nesse movimento, consolidar valores e práticas centrais para o
convívio humano respeitoso.
Ao analisar aspectos teóricos e históricos da formação de professores no Brasil,
Saviani (2009, p. 154) ressalta, igualmente, a desvalorização da profissão docente na
atualidade. A defasagem salarial e as más condições de trabalho não tornam o ofício atraente
para jovens que estão buscando uma profissão. Para o autor, a situação poderia ser distinta se
a docência:
[...] fosse transformada numa profissão atraente socialmente, em razão da
sensível melhoria salarial e das boas condições de trabalho, pois para ela
seriam atraídos muitos jovens dispostos a investir seus recursos, tempo e
energias numa alta qualificação, obtida em graduações de longa duração e
em cursos de pós-graduação.
Da mesma forma, Cericato (2010, p. 211), interessada em analisar os sentidos da
profissão docente, evidencia a importância das condições objetivas para o bom
desenvolvimento da atividade docente – salários condignos, jornadas adequadas de trabalho,
profissionalização e a perspectiva de seguir uma carreira atraente. Anuncia, ainda, que as
mudanças nos processos de desenvolvimento profissional decorrem da reconstrução do papel
do professor, apontando que “a profissão docente não se assumiu como profissão”. Ao
discutir a autonomia das instituições de ensino, Gadotti (2000) reafirma serem elas um local
privilegiado de formação – de alunos e professores – bem como de desenvolvimento de novas
concepções e práticas. Ao problematizar a autonomia9 das instituições de ensino, o autor
aponta que muitos são os ganhos quando se consegue desenvolver, na própria unidade escolar,
propostas novas, lúcidas e factíveis. Estratégias inovadoras, registros de observação e
encontros coletivos, sistematização de práticas e experiências adquiridas são elementos
9 A Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996) prevê o exercício da autonomia nas escolas e propõe as seguintes
determinações e princípios:
“Art. 14 - Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação
básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I. Participação dos
profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola. II. Participação das comunidades
escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.
Art. 15 - Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram
progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas de
direito financeiro público.”
Entretanto, no Brasil, não há uma tradição e tampouco um esforço coletivo que vislumbre a importância do
trabalho colaborativo na e para a escola. As reuniões de pais e os momentos de discussão entre os professores,
gestores e a comunidade não se dirigem à busca de soluções e enfretamento dos dilemas da comunidade.
38
mediadores que favorecem a construção do conhecimento do professorado. Nesse sentido, o
docente:
[...] é um mediador do conhecimento, diante do aluno que é o sujeito da sua
própria formação. Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz e,
para isso, também precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e
apontar novos sentidos para o que fazer dos seus alunos. Em geral, temos a
tendência de desvalorizar o que fazemos na escola e de buscar receitas fora
dela quando é ela mesma que deveria governar-se. Inovar é mais importante
do que reproduzir com qualidade o que existe (GADOTTI, 2000, p. 8).
É indispensável, portanto, que os professores exerçam uma constante reflexão crítica
sobre seu papel e seu trabalho. Por meio do questionamento e da busca por novos caminhos, a
prática pode ser paulatinamente transformada, afastando-se de modelos do tipo “receitas
prontas”, ou seja, de práticas anteriores que foram positivas em um dado momento ou
contexto, mas que não funcionam de maneira adequada no momento e contexto atuais. Diante
disso, cabe olhar para a comunidade escolar e para os que nela atuam (gestores e professores),
a fim de identificar o foco mais adequado de um trabalho de formação docente, indagando-se
acerca das idiossincrasias desses agentes e discutindo ideias e práticas coletivas que possam
beneficiar a comunidade em questão.
Como alternativa para escapar de processos formativos que engessam o trabalho do
professor, Kramer (1989) salienta que o conhecimento não é algo que se esgota. Não é,
também, construído linearmente: a troca de ideias e a reavaliação coletiva do trabalho dos
docentes são fundamentais. Assim, segundo a autora:
[...] o conhecimento não é algo estático, acabado e definitivo, sua renovação
deve perpassar a prática e vice-versa, num movimento dialético de
realimentação de ideias pela prática e da prática pelas ideias. Mas, para que
isso ocorra torna-se fundamental a reavaliação crítica conjunta do trabalho
dos professores e da equipe escolar, através de um intercâmbio constante de
conhecimentos e ideias (KRAMER, 1989, p. 198).
Do mesmo modo, ao analisar os programas de formação continuada no Brasil,
Celegatto (2008) sugere novos rumos para a elaboração de propostas que possam aprimorar a
docência. Para tanto, destaca três aspectos igualmente importantes – o lócus da formação, os
saberes docentes e o ciclo de vida dos professores:
O lócus da formação deve ser a própria escola; o processo de formação
continuada tem que ter como referência o saber docente, reconhecendo e
valorizando esse saber; para uma formação continuada adequada devem-se
ter presentes as diferentes etapas do desenvolvimento do magistério, pois
não é possível tratar do mesmo modo o professor em fase inicial do exercício
profissional, aquele com mais experiência e aquele que caminha para a
39
aposentadoria. Tanto os problemas, as necessidades, quanto os desafios são
diferentes em cada etapa, de modo que o programa de formação continuada
não deveria ignorar tais divergências, promovendo situações homogêneas e
padronizadas (CELEGATO, 2008, p. 31-32).
Candau (1996) aponta que sempre se ganha quando a proposta é desenvolvida na
própria instituição à qual o professor se vincula, uma vez que assim se torna possível:
aliar o processo formativo às situações cotidianas da escola, sem o necessário
deslocamento do professor para outros locais;
trocar ideias e refletir com o grupo (direção, coordenação pedagógica e
professores) em momentos de trabalho coletivo, pois isso favorece a análise
das práticas adotadas e dos entraves encontrados pelos docentes no decorrer de
suas atividades;
organizar-se, espacial e temporalmente, para as atividades, seguindo o fluxo
das necessidades do grupo em questão;
favorecer a socialização de práticas que podem ser repensadas, discutidas e
novamente sistematizadas;
possibilitar a reconfiguração do trabalho de supervisão e orientação
educacional.
Efetivamente, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) reafirmam:
[...] a importância de que cada escola formule seu projeto educacional,
compartilhado por toda a equipe, para que a melhoria da qualidade da
educação resulte da corresponsabilidade entre todos os educadores. A forma
mais eficaz de elaboração e desenvolvimento de projetos educacionais
envolve o debate em grupo e no local de trabalho (BRASIL, 1997, p. 40).
No que concerne aos saberes e à formação docentes, Nunes (2001, p. 27) considera
que, no decorrer da vida profissional, o professor “constrói e reconstrói seus conhecimentos
conforme a necessidade de sua utilização, suas experiências, seus percursos formativos e
profissionais”. Aponta, ainda, que os conhecimentos específicos – referentes ao conteúdo a
ser ensinado – vão se constituindo na e pela reflexão sobre a prática, que, aliada às
concepções teóricas, favorece o desenvolvimento de novas estratégias de atuação. Em
especial, aqueles advindos da experiência – ou seja, construídos na e pela prática – são
igualmente importantes, pois orientam o posicionamento do professor e suas decisões
pedagógicas, permitindo-lhe modificar, adaptar e reorganizar sua atividade diante das
situações vividas no dia a dia em sala de aula. Para Tardif, Lessard e Lahaye (1991, p. 234),
os saberes da experiência:
40
[...] surgem como núcleo vital do saber docente, a partir do qual o(a)s
professor(a)s tentam transformar suas relações de exterioridade com os
saberes de interioridade em sua própria prática. Nesse sentido, os saberes da
experiência não são saberes como os demais: eles são, ao contrário,
formados de todos os demais, porém retraduzidos, “polidos” e submetidos às
certezas construídas na prática e no vivido.
Sobre o ciclo de vida profissional dos professores, Huberman (1992) desenvolveu um
amplo estudo na Suíça, que contou com a participação de 160 docentes secundaristas,
escolhidos mediante o critério de tempo de trabalho em sala de aula, o qual variava de cinco a
40 anos. Por meio dessa pesquisa, o autor identificou cinco fases da vida profissional do
professor, a saber: (i) a entrada na profissão; (ii) a estabilização ou o momento marcado pela
segurança; (iii) a diversificação ou experimentação, (iv) a busca pela estabilidade profissional
e, finalmente, (v) a preparação para a aposentadoria. Apesar de ser possível analisar e
identificar essas etapas, o autor alerta não ser esse um processo linear e, notadamente, o fato
de que não se deve considerá-lo uma sucessão de fatos e acontecimentos, uma vez que no
decorrer da história de profissionalização do docente “há oscilações, regressões, becos sem
saída, declives, descontinuidades” (HUBERMAN, 1992, p. 38).
A formação continuada, quando realizada na própria instituição escolar, possibilita aos
professores o processo de ação-reflexão-ação, facilita a tomada de decisões de forma
colaborativa e no próprio fluxo de suas experiências, dado que os saberes docentes (os
específicos e os advindos da prática) são tidos como o eixo norteador do movimento de
construção de novas ideias e práticas. Considerar, portanto, o ciclo de vida profissional dos
professores amplia a possibilidade de propor novas situações que contemplem os diferentes
momentos do desenvolvimento profissional, satisfazendo, na docência, suas necessidades
específicas. Num programa voltado para o desenvolvimento profissional, a preocupação com
os fatores acima descritos estabelece o desafio de romper com modelos padronizados para
criar propostas eficazes, que contemplem as necessidades do professorado. Contudo, Azanha
(2004, p. 365) pondera que:
Nenhuma metodologia, abstratamente formulada e ensinada, dará respostas
aos problemas que o professor vive cotidianamente na sua escola, e nem
adianta reunir algumas dezenas de professores de uma mesma disciplina
como se eles fossem um grupo de pessoas que enfrentam os mesmos
problemas. Cada escola tem características pedagógico-sociais irredutíveis
quando se trata de buscar soluções para os problemas que se vive.
Objetivando desvelar os sentidos atribuídos pelos professores à formação continuada,
Altenfelder (2004) também defende a escola como um espaço privilegiado para processos
41
formativos. Destaca o trabalho coletivo como um dos principais caminhos para lidar com os
desafios que os tempos atuais e a própria escola impõem. Para a autora, “a formação
continuada de professores deve concentrar-se no trabalho docente e nas relações que se
estabelecem na escola, o que resgata o próprio espaço escolar como lócus importante de
formação continuada” (ALTENFELDER, 2004, p. 151). Interessado em analisar as tendências
da formação permanente do professorado nos dias de hoje, Imbernón (2009) salienta a
influência das mudanças sociais, que levam os docentes a sentirem intensa necessidade de
trabalhar em equipe, em um clima de colaboração (gestores-professores-comunidade),
seguindo propostas formativas que considerem seu lado profissional e pessoal. Acrescenta a
necessidade de intercâmbio entre a escola e os demais centros de formação, bem como do
exercício, na escola, de práticas inovadoras, pois é ela o lócus privilegiado para a gestação, o
planejamento e a realização de processos formativos.
Para que melhores resultados sejam alcançados no campo da educação brasileira,
segundo os estudos analisados, faz-se importante, portanto, ponderar os fatores acima
destacados, mais especificamente, a proposição de programas ou projetos de formação
continuada que considerem as diversas facetas que permeiam as atividades docentes e seu
desenvolvimento profissional. Com objetivo de melhor compreender uma das ações atuais da
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo para a reversão do quadro de fracasso escolar
nas séries iniciais do ensino fundamental, serão detalhados a seguir os constituintes do
programa de formação continuada Ler e Escrever.
2.1 O Programa Ler e Escrever
Almejando alcançar a melhoria da qualidade do ensino no Brasil, diversas propostas
que focam o desenvolvimento profissional dos professores têm sido realizadas pelo Ministério
da Educação (MEC) em conjunto com as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação
desde a década de 1990: TV Escola,10
Proinfo,11
Parâmetros em Ação,12
Profa,13
Letra e Vida,
10
A TV Escola é uma ferramenta destinada “aos professores e educadores brasileiros, aos alunos e a todos
interessados em aprender”. Com programação voltada à educação, “a TV Escola é uma política pública em si,
com o objetivo de subsidiar a escola e não substituí-la. E, em hipótese alguma, substitui também o professor.”. O
objetivo principal é oferecer aos docentes oportunidades de complementar sua formação e suas práticas de
ensino: “para todos que não são professores, a TV Escola é um canal para quem se interessa e se preocupa
com a educação ou simplesmente quer aprender.” (MEC, 2013, s/p, grifo nosso).
42
14 Ler e Escrever, entre outros. De fato, os dados advindos do Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica (SAEB, 2005) sobre a alfabetização eram e continuam sendo alarmantes:
em algumas escolas, 30% dos alunos, ao final do terceiro ano, não haviam dominado o
sistema de leitura e escrita. Para reverter esse quadro até o ano de 2010, o governador do
estado de São Paulo anunciou dez metas que se centravam na(o):
1. alfabetização de todos os alunos até o final do segundo ano de
escolaridade;
2. redução em 50% da taxa de reprovação na 8ª série;
3. redução em 50% da taxa de reprovação no ensino médio;
4. implementação de programas de recuperação de aprendizagem nas séries
finais de todos os ciclos;
5. aumento de 10% nos índices de desempenho do ensino fundamental e
médio nas avaliações nacionais e estaduais;
6. atendimento da demanda de jovens e adultos por ensino médio com um
currículo profissionalizante diversificado;
7. implementação do ensino fundamental de nove anos, com prioridade à
municipalização das séries iniciais (1ª à 4ª);
8. oferta de programas de formação continuada e de capacitação das equipes
de ensino;
9. descentralização da merenda escolar nos 30 municípios que ainda não
tinham aderido ao programa;
10. realização de obras de melhorias na infraestrutura nas escolas (PALMA
FILHO, 2010, p. 166).
Para que tais metas pudessem ser alcançadas, diversas e variadas ações começaram a
vigorar na rede estadual paulista, com maior ênfase sendo dada às seguintes:
1. Incentivos, política de bonificação e avaliação de desempenho;
2. Programa Ler e Escrever – Formação Continuada, orientação curricular
(propostas curriculares), professor auxiliar na 1ª série e material de apoio a
alunos e professores – 1ª a 4ª séries do ensino fundamental;
11
O Programa Nacional de Tecnologia Educacional tem como objetivo incentivar e promover o uso da
informática como ferramenta pedagógica na educação básica oferecida nas escolas públicas. Os materiais –
conteúdos educacionais, computadores e recursos digitais – são distribuídos às escolas, mas cabe aos estados e
aos municípios “garantir a estrutura adequada para receber os laboratórios e capacitar os educadores para uso das
máquinas” (MEC, 2013, s/p).
12 Esse programa, como ferramenta que buscava o desenvolvimento profissional de professores, tinha como
premissas subsidiar o debate, a reflexão sobre a escola e o desenvolvimento da atividade docente. Sua finalidade
era oferecer aos professores alternativas para compreender as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil e o Ensino Fundamental e facilitar a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
13 O Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, orientado pelo pressuposto construtivista e pelas
ideias de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, buscava formar o professor para a compreensão dos “processos de
aprendizagem da leitura e da escrita e de como organizar, a partir desse conhecimento, situações didáticas
adequadas às necessidades de aprendizagem dos alunos e pautadas pelo modelo metodológico de resolução de
problemas” (MEC, 2001, p. 6).
14 Esse programa de formação continuada teve como base o ideário construtivista, amparando-se, também, nas
ideias de Ferreiro e Teberosky.
43
3. Programa São Paulo faz Escola – novo currículo e material de apoio a
alunos e professores – 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental e Ensino Médio.
São as propostas curriculares encaminhadas às escolas no início do ano
letivo de 2008;
4. Recuperação da aprendizagem – intensiva nas primeiras seis semanas e
paralela ao longo do ano;
5. Criação de função gratificada para professor coordenador pedagógico;
6. Concurso para supervisores e revisão de suas atribuições;
7. Estágio probatório para os novos ingressantes na carreira;
8. Nova gratificação para diretores, vices e supervisores (PALMA FILHO,
2010, p. 166).
Como política pública, o Programa Ler e Escrever – elaborado pela Secretaria da
Educação (SEE) do Estado de São Paulo – tem o mesmo intuito: modificar os resultados
negativos encontrados no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São
Paulo (Saresp). Voltados ao desenvolvimento profissional do professor alfabetizador, os
pressupostos teórico-metodológicos desse programa sustentam-se nas concepções
construtivistas15
de educação, principalmente os da psicogênese da língua escrita. A utilização
do método construtivista para a alfabetização fundamenta-se nas ideias de Emilia Ferreiro e
Ana Teberosky (1985), mais especificamente em 1980, em um contexto de transição social,
política e econômica marcado, no Brasil, pela ditadura militar e pela implantação da
democracia. De origem piagetiana, seus estudos influenciaram fortemente as concepções de
alfabetização no país.
As principais características dos conceitos propostos por Ferreiro e Teberosky pautam-
se na ideia de que as crianças têm capacidade de desenvolver raciocínios e concepções sobre a
escrita, “utilizando-as para entender o mecanismo de funcionamento da língua escrita no
processo de aprendizagem da leitura e da escrita.” Com a mediação do professor, as crianças
são incentivadas a construir conhecimentos da língua escrita, com base em suas experiências
prévias, “a qual se dá por sucessão de etapas, cada uma delas representando um estágio
importante do processo”. No decorrer dessa aprendizagem, os sujeitos e as informações das
quais dispõem têm papel central uma vez que “a interpretação do processo é explicada do
ponto de vista das crianças que aprendem, levando-se em consideração o conhecimento
específico que possuem antes de iniciar a aprendizagem escolar, a saber: a escrita não
representa apenas um traço ou marca, mas sim um objeto substituto” (MELLO, 2007, p. 90).
15
O movimento construtivista busca quebrar o paradigma da educação bancária e da simples transferência de
conhecimento; objetiva, ainda, acurar o olhar dos professores para os movimentos de aprendizagem de cada
aluno, levando em consideração seus conhecimentos prévios e seu papel ativo no processo de ensino-
aprendizagem.
44
O Programa “Ler e Escrever – Prioridade na Escola Municipal” iniciou no ano de
2006 na rede escolar municipal da cidade de São Paulo. Posteriormente, estendeu-se para todo
o Estado, sempre buscando reverter o quadro de fracasso escolar no âmbito da alfabetização.
Propõe, para tanto, “um conjunto de ações cujo objetivo é fazer avançar a qualidade do ensino
oferecido em cada escola” (WEISZ, 2010, p. 21). O guia para o planejamento do professor
alfabetizador, do projeto “Toda Força ao 1° Ano”, apresenta uma definição clara sobre os
objetivos do Programa Ler e Escrever. Ao destacar a principal tarefa do ensino fundamental,
alerta que:
[...] o desafio colocado por este Programa é grande: a formação de alunos
leitores e escritores. Este não é só um dos grandes objetivos da nossa Rede,
mas também de toda a sociedade. Afinal, aprender a ler e escrever, na escola,
é uma condição indispensável para os alunos prosseguirem com sucesso na
sua formação escolar e no seu desenvolvimento profissional. É condição
essencial para que possam atuar como cidadãos e, assim, ter acesso à cultura
letrada e usufruir plenamente dela nas situações de trabalho, de lazer e na
resolução de questões de seu cotidiano (SME/DOT, 2006, s/p).
Consoante aos objetivos acima destacados, algumas ações e medidas foram adotadas
para o desenvolvimento da proposta, tais como:
um estudante universitário do curso de Pedagogia ou Letras atuaria em
conjunto com o professor regente de classe no 1° ano do ciclo I para auxiliá-lo
no processo de alfabetização do grupo de alunos;
a formação de professores e coordenadores ocorreria nas próprias escolas em
que atuavam;
para os alunos retidos ao final do 4° ano letivo do ciclo I, seriam oferecidas 30
horas de aula semanais, além da grade prevista;
as práticas de leitura e escrita fariam parte do trabalho dos professores de todas
as áreas de conhecimento.
No ano de 2007, a SEE anunciou um plano para a melhoria da qualidade do ensino no
âmbito estadual: “como o Estado de São Paulo venceu o desafio da inclusão, com 98,6% das
crianças de 7 a 14 anos em escola e 90% dos jovens de 15 a 17 anos estudando — o objetivo
agora é melhorar a aprendizagem e, para isso, aprimorar cada vez mais a qualidade do ensino
oferecido” (SEE, 2007, p. 6). A resolução da SEE – 86, de 19/12/2007, publicada no Diário
Oficial do Estado de São Paulo de 21/12/2007, instituiu para o ano de 2008 “o Programa Ler e
Escrever no Ciclo I das Escolas Estaduais de Ensino Fundamental das Diretorias de Ensino da
45
Coordenadoria de Ensino da Região Metropolitana da Grande São Paulo”. Os objetivos gerais
do Programa eram: a) alfabetizar, até 2010, todos os alunos com idades de até oito anos,
matriculados em escolas da rede; e b) recuperar a aprendizagem da leitura e da escrita dos
alunos de todas as séries do ciclo I. A proposta desse Programa para as escolas levou em
conta fatores importantes, tais como a:
urgência em solucionar as dificuldades apresentadas pelos alunos de Ciclo
I em relação às competências leitoras e escritoras, expressas nos resultados
do SARESP 2005;
necessidade de promover a recuperação da aprendizagem de leitura e
escrita dos alunos de todas as séries do Ciclo I;
imprescindibilidade de se investir na efetiva melhoria da qualidade de
ensino nos anos iniciais da escolaridade (SÃO PAULO, 2007).
Por meio da experiência previamente adquirida com o Programa “Letra e Vida” – que
tinha como pressupostos epistemológicos a psicogênese da língua escrita –, o Ler e Escrever
tornou-se prioridade da gestão governamental, passando a vigorar nas escolas estaduais
paulistas. Para que essa proposta pudesse ser levada adiante, um conjunto de ações gerais e
específicas foi proposto pela SEE e, igualmente, publicado em 21/12/2007 no Diário Oficial
do Estado de São Paulo. O objetivo era oferecer: a) formação aos supervisores, diretores e
assistentes técnico-pedagógicos (ATP) – o trio gestor; b) formação do professor coordenador,
responsável pelo ciclo I; c) acompanhamento dos dirigentes de ensino; d) formação do
professor regente; e) publicação e distribuição de materiais de apoio às salas de aula; critérios
diferenciados para regência das turmas que participariam dos projetos. Dessa forma, era
importante que:
a) Os supervisores, diretores e ATPs tivessem um encontro mensal com formadores
do programa para discutir os processos pedagógicos imbricados na alfabetização,
refletindo, também, sobre seu papel e sua participação na aprendizagem dos
educandos. O trio gestor participaria da avaliação bimestral, realizada
processualmente em todas as classes envolvidas no Programa, e a acompanharia.
b) A formação contínua do professor coordenador responsável pelo ciclo I seria
desenvolvida pela Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (Cenp) e
pelas Diretorias de Ensino. Para que os professores do 1° ao 4° ano fossem
capazes de alfabetizar seu grupo de alunos, os professores coordenadores atuariam
46
como formadores durante todo o ano letivo. Essas atividades envolviam momentos
de formação, planejamento, acompanhamento e avaliação.
c) Os dirigentes de ensino seriam os responsáveis pela implementação do programa e
de seu futuro desenvolvimento nas escolas que estavam em sua área de
abrangência.
d) A formação do professor regente seria realizada pelo professor coordenador, na
própria escola em que atuava. Caberia a ele a tarefa de acompanhar cada sala de
aula, objetivando o desenvolvimento de discussões na hora de trabalho pedagógico
coletivo – atual aula de trabalho pedagógico coletiva (ATPC) – acerca das
especificidades de cada ano/série. Para tanto, a carga horária do professor regente
seria ampliada em quatro horas semanais.
e) O Programa Ler e Escrever disponibilizaria as unidades escolares um conjunto de
materiais que considerasse as especificidades de cada projeto. Essas publicações
auxiliariam no planejamento das aulas e balizariam as discussões nos encontros de
formação e na ATPC.
f) Para que cada projeto pudesse frutificar e se adequar às características de cada
proposta, o perfil profissional seria considerado no momento de atribuição das
turmas.
Por meio da formação oferecida aos professores, espera-se que eles consigam
identificar, com base na teoria da psicogênese da língua escrita, as hipóteses formuladas pelos
alunos no decorrer de uma sondagem de sua escrita, denominada avaliação diagnóstica. Para
que possa se apropriar dos pressupostos norteadores do programa, o professor necessita ter
um conhecimento teórico que lhe possibilite analisar e interpretar a produção escrita de seus
alunos. Para que isso ocorra, o papel do coordenador pedagógico de cada unidade escolar é
vital: ao receber a formação na diretoria de ensino de sua região, tem a responsabilidade de
formar os professores na própria unidade escolar em que atua.
Como ferramentas facilitadoras do trabalho do professor, os materiais do Programa
Ler e Escrever são compostos por guias de planejamento e orientações didáticas para o
professor; cadernos de planejamento e avaliação do professor; livro de textos e coletâneas de
atividades para os alunos; folheto informativo; conversas com os pais; guia de orientação e
estudos para a ATPC; globo terrestre; kit de livros paradidáticos com 526 títulos; conjunto de
letras móveis; assinatura de revistas: Recreio, Picolé e almanaques.
47
2.1.1 A estrutura do Programa Ler e Escrever
O Programa Ler e Escrever está dividido, intencionalmente, em projetos que
consideram as especificidades dos grupos de alunos aos quais se destinam. A partir das ações
gerais – que embasam todo o Programa –, nasceram outras, específicas, descritas a seguir.
Ler e Escrever na 1ª Série do Ciclo I
No bojo das ações específicas para o projeto “Ler e Escrever na 1ª Série do Ciclo I”,
foram destacadas algumas estratégias fundamentais para o bom desenvolvimento de sua
proposta, tais como:
a) A escola constituir-se como lócus de formação contínua: a formação dos
professores regentes (PRs) aconteceria em sua unidade escolar, nos momentos de
HTPC. Os professores coordenadores (PCs), além de serem os principais agentes
na formação dos professores regentes, organizariam os horários coletivos de
trabalho de modo a garantir a formação dos professores em questão. O
planejamento, o acompanhamento e as avaliações a respeito do trabalho
desenvolvido em sala de aula teriam como guias o professor coordenador e os
seguintes materiais didáticos: o Guia de Planejamento e as Orientações Didáticas
para o Professor Alfabetizador – 1ª Série – e suas respectivas expectativas de
aprendizagem.
b) Acesso aos materiais didáticos: para que os PCs e os PRs pudessem desenvolver
melhor o projeto, diversos materiais seriam distribuídos na rede estadual de ensino
– Guia de Planejamento e Orientações Didáticas para o Professor Alfabetizador -
1ª série; caderno do Professor Alfabetizador - 1ª série; coletânea de atividades do
aluno - 1ª série; livro de textos do aluno do aluno - 1ª série; acervo de 43 livros de
literatura infantil, por classe; letras móveis e assinatura de revistas para o público
infantil.
c) Bolsa alfabetização: alunos dos cursos de Pedagogia ou Letras atuariam como
assistentes dos Prs das 1ªs séries, no que concerne à alfabetização e, ainda, como
pesquisadores, pois lhes caberia informar à universidade a respeito de questões
48
observadas no dia a dia escolar, ampliando e reforçando a importância do diálogo
universidade-escola.
d) Perfil profissional para a regência nas turmas do Projeto “Ler e Escrever na
1ª Série do Ciclo I”: dava-se especial atenção aos professores com disponibilidade
para participar ativamente do projeto; interagir com o aluno-pesquisador; ter
participado do Programa “Letra e Vida”. Salientava-se ainda que, para fins de
evolução profissional, os professores efetivos na rede receberiam pontuação
diferenciada (desde que se mantivessem na mesma unidade escolar, alcançassem
os objetivos propostos pelo programa, recebendo avaliação satisfatória em relação
às expectativas de aprendizagem dos alunos).
Ler e Escrever na 2ª Série do Ciclo I
Esperava-se que, no decorrer da 2ª série/1º ano, os alunos pudessem demonstrar
autonomia nas competências leitora e escritora. No entanto, para que esse objetivo se
realizasse, era importante que o professor dessa etapa desse continuidade ao trabalho
desenvolvido na série/ano anterior, possibilitando às crianças um uso ampliado da linguagem
escrita, nas situações escolares ou fora delas. Para os alunos que não tivessem alcançado o
esperado no ano anterior, o trabalho continuaria a ser desenvolvido pelo professor da série
atual. As propostas formativas seguiam o mesmo padrão das destacadas no item anterior, à
exceção dos alunos pesquisadores. As ações específicas requeriam que se tivesse ou se
considerasse: a) a escola como lócus de formação continuada; b) o acesso aos materiais
didáticos e pedagógicos; c) o perfil profissional para a regência da faixa etária em questão.
Projeto Intensivo no Ciclo - 3ª Série (PIC 3ª Série)
Tal como os anteriores, esse projeto tinha como prioridade o desenvolvimento das
competências leitora e escritora dos alunos, mediante a adequação do currículo da série/ano às
necessidades de aprendizagem daqueles que não haviam alcançado o que deles se esperava
nos dois primeiros anos da escolarização. De caráter emergencial, esse projeto deveria ser
temporário, tendo em vista que obter as metas dos projetos anteriores poderia, ao longo do
tempo, tornar-se desnecessário. Entretanto, para que a proposta seguisse o curso esperado,
49
além de a formação contínua ocorrer na unidade escolar em que atuavam os PRs, algumas
estratégias específicas precisariam ser contempladas:
a) Organização administrativa e curricular diferenciada para as turmas de 3ª
série do ciclo I-/PIC: as unidades escolares poderiam montar uma turma do PIC 3ª
série por turno com, no máximo, 30 alunos. O trabalho a ser desenvolvido pelo
professor pautava-se no Material do Aluno e no Material do Professor, objetivando
garantir o bom aproveitamento do tempo e das atividades didáticas.
b) Materiais específicos: como este projeto buscava preencher as lacunas de
aprendizagem dos anos anteriores, alguns materiais didáticos seriam distribuídos:
PIC-3ª série: material do professor (com orientações didáticas relacionadas ao
trabalho com os alunos) e material do aluno, abordando conteúdos de Ciências
Sociais, Naturais e Matemática.
Acervo de 40 livros de literatura infantil para cada classe: esperava-se que
o professor utilizasse atividades voltadas à leitura, oportunizando a ampliação
dos conhecimentos acerca da literatura infantil.
c) Critério diferenciado para regência das turmas do PIC: só poderiam assumir
essas turmas os professores que tivessem disponibilidade para as ações formativas,
de planejamento e de avaliação. Além disso, se permanecessem com as turmas
durante todo o período letivo, a pontuação seria diferenciada, para fins de evolução
funcional.
d) Critério para encaminhamento dos alunos ao PIC: aqueles que não tivessem
aprendido a ler e a escrever na 3ª série/4º ano do ciclo I seriam encaminhados para
as turmas de PIC. A seleção dos alunos para tais agrupamentos se basearia nos
resultados do Saresp ou nos resultados advindos de sondagens.
Projeto Intensivo no Ciclo – 4ª Série (PIC 4ª Série)
A especificidade desse projeto residia, principalmente, em tentar reverter o quadro de
fracasso escolar no tocante ao domínio da leitura e da escrita de alunos de séries anteriores. O
objetivo era a chamada “recuperação de ciclo”, ou seja, proporcionar ao aluno condições
básicas de seguir com seu processo de aprendizagem no ciclo II. Parâmetros semelhantes aos
propostos pelo PIC 3ª série balizavam esse projeto. A proposta estava organizada em
materiais didáticos – para professores e alunos – e paradidáticos específicos para cada série.
50
Vale salientar que as ações exclusivas para cada projeto tinham como meta diminuir os
entraves encontrados pelos professores nas escolas públicas paulistas do ciclo I, no tocante a
suas atividades docentes. No entanto, no presente estudo, apenas o projeto “Ler e Escrever no
1° Ano do Ciclo I” será analisado, pois a professora que dele participava atuava como
professora alfabetizadora no ano em questão.
51
3 Método
Qualquer método se opõe ao mero acaso, porque o representa, sobretudo,
uma ordenação, uma sistematização intelectual expressa através de um
conjunto coerente de leis, categorias e conceitos. Um método consiste num
“caminho” que pode levar a outros “caminhos”, alcançando os fins propostos
e, também, vários outros não indicados, certamente inatingíveis por meio do
acaso (VIEIRA, 1992, p. 29).
Neste capítulo, são apresentados os pressupostos metodológicos que orientaram esta
pesquisa, seus procedimentos, bem como o processo de sistematização e análise de dados.
Como “caminho” metodológico para a análise da atividade docente no Ler e Escrever,
elegeram-se a pesquisa qualitativa, a proposta de Clot (2010) – autoconfrontação simples
(ACS) – assim como os núcleos de significação sugeridos por Aguiar e Ozella (2006). O
principal objetivo consistia em analisar como uma professora utilizava o que havia aprendido
no Programa Ler e Escrever, ofertado pela SEE de São Paulo, verificando, também, se – e
como – esse aprendizado era incorporado a sua atividade profissional.
Dentre os objetivos secundários, estavam (i) analisar e interpretar os sentidos e
significados que a professora elaborou sobre essa formação continuada específica,
notadamente no que diz respeito ao exercício da docência e à prática pedagógica que
empregava; (ii) identificar se – e de que maneira – a professora utilizava em suas atividades
docentes os conhecimentos adquiridos no programa; (iii) verificar se – e por que – a
professora, ao se observar exercendo atividades docentes nas quais empregava as propostas do
referido programa, acreditava que isso constituía um procedimento importante para aprimorar
sua prática pedagógica e/ou sua formação profissional.
Na busca de tais objetivos, a abordagem qualitativa apresentou-se como a melhor
opção por seu caráter moderno. De fato, foi somente há pouco mais de um século que essa
abordagem foi ganhando espaço – antes predominava a abordagem quantitativa –, mais
precisamente quando os métodos de raízes positivistas já não se mostravam suficientes para
compreender e explicar certos fenômenos em sua particularidade ou quando o que estava em
questão não era alcançar apenas ou exclusivamente uma explicação causal. Surgia, nesse
período, a dicotomia quantitativo-qualitativo, ampliando, notadamente, as discussões sobre as:
52
[...] questões de natureza filosófica e epistemológica – como o critério de
verdade no trabalho científico, a relevância dos resultados da pesquisa, a
questão do objetivismo X relativismo etc. – que foram, sem dúvida,
importantes para a evolução das pesquisas nas ciências sociais e, em
decorrência, na área da educação (ANDRÉ, 2000, p. 25).
Para André (2000), a perspectiva qualitativa na pesquisa em educação vem ganhando
força no Brasil desde 1980. Ao especificar suas características, a autora destaca que essa
proposta metodológica:
[...] não envolve a manipulação de variáveis e nem de tratamento
experimental; é o estudo do fenômeno em seu acontecer natural; se
contrapõe ao esquema quantitativo de pesquisa (que divide a realidade em
unidades passíveis de mensuração, estudando-as isoladamente); defende uma
visão holística dos fenômenos; leva em conta todos os componentes de uma
situação em suas interações e influências recíprocas (ANDRÉ, 2000, p. 17).
Durante algum tempo, prevaleceu a ideia de que a pesquisa qualitativa era menos
confiável e, portanto, de certa forma inferior às que coletam, por meio de amostras
representativas do universo pesquisado, um grande número de dados, dando-lhes um
tratamento estatístico. Considerava-se, também, que os métodos qualitativos destinavam-se a
apreender a “qualidade” de um dado fenômeno. Nada mais falso. A abordagem qualitativa
busca estudar não o fenômeno em si, mas conhecer seu significado na vida individual ou
social, sempre que em torno dele as pessoas organizarem suas vidas. Denzin e Lincoln (2006)
definem a pesquisa qualitativa como aquela que permite estudar os fenômenos/eventos tal
como ocorrem usualmente, tentando dar-lhes sentidos – interpretá-los – segundo a
significação que lhes é atribuída.
Dessa forma, não é o fenômeno em si que interessa, mas sim a significação que lhe
conferem aqueles que o vivem. Bogdan e Biklen (1994), por sua vez, indicam que a meta da
pesquisa qualitativa é compreender o processo pelo qual as pessoas constroem significados
sobre algo, descrevendo o que esse algo é. Para esses autores, o significado desempenha
também um papel central quando a pretensão é conhecer, compreender e identificar as
vivências de uma ou mais pessoas, ou seja, a forma como representam suas experiências de
vida. Fundamentando-se nos argumentos de Godoy (1985) e Lüdke e André (1986), Martins
(2006) aponta cinco requisitos necessários para a realização de uma pesquisa qualitativa:
1. O ambiente natural como base dos fenômenos investigados: por privilegiar a
interação do pesquisador com o fenômeno estudado, é de grande importância que
o primeiro se aproxime do segundo mediante um contato prolongado. Além das
observações, o pesquisador pode valer-se de “filmagens, fotografias, gravações,
53
documentos históricos, registros escritos com o objetivo de ampliar a
confiabilidade de suas percepções” (2006, p. 5).
2. O caráter descritivo das investigações: cabe ao pesquisador estar atento aos
aspectos constitutivos do campo estudado, buscando compreender como se
manifestam, nele, os fenômenos histórica, holística e processualmente.
3. A procura de compreender os processos: o objetivo da pesquisa é analisar os
fenômenos, assentando-se “nas descrições dos problemas estudados, tais como
manifestos nas atividades, nos procedimentos e nas interações cotidianas”
(Ibidem, p. 5).
4. A centralidade do papel do pesquisador: ao mesmo tempo em que ele é
participante, é também observador, cabendo-lhe captar as interações e as relações
que se estabelecem no decorrer do processo investigativo, sem negligenciar a
apreensão objetiva de seu estudo.
5. A natureza indutiva de investigações dessa natureza: inicialmente, o foco do
processo investigativo é amplo e, paulatinamente, vai se afunilando.
Os que adotam os métodos qualitativos seguem um raciocínio indutivo, na medida em
que se apoiam em dados de campo, no estudo de sujeitos, coletando informações que vão,
pouco a pouco, levando à construção de uma visão organizada e plausível do fenômeno em
estudo. A interpretação é feita, sobretudo, com base na perspectiva dos entrevistados. Para
Cericato (2010, p. 95), a pesquisa qualitativa é incompatível com a “neutralidade científica”,
uma vez que o pesquisador mantém estreita relação com o espaço e a questão estudada. Ainda
para a autora:
[...] os dados quando coletados em uma investigação científica, são
construídos na relação estabelecida entre pesquisador e pesquisado. Trata-se
de uma forma de pesquisa que se propõe a compreender uma realidade
dinâmica, organizada de forma sistêmica e complexa, em que os fenômenos
histórico-culturais apresentam uma importância fundamental na constituição
de tal realidade (CERICATO, 2010, p. 95).
Desprovidos da intenção de confirmar teorias já existentes, os métodos qualitativos
permitem a descoberta de novos e originais conhecimentos, fazendo avançar a ciência.
Minayo e Sanches (1993, p. 245), por meio de uma visão sociológica, retomam a questão do
significado, ao considerarem que os métodos qualitativos são aqueles capazes de “incorporar
a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às
estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua
54
transformação, como construções humanas significativas”. Essencial, nessa escolha, é
considera que, na investigação qualitativa:
[...] a palavra expressa a fala cotidiana em suas diversas relações. Nestes
termos, a fala torna-se reveladora de condições estruturais, de sistemas de
valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles) e, ao mesmo tempo,
possui a magia de transmitir, através de um porta-voz (o entrevistado),
representações de grupos determinados em condições históricas,
socioeconômicas e culturais específicas (MINAYO; SANCHES, 1993, p.
245).
Em síntese, é possível afirmar que, quando se usa a abordagem qualitativa, pretende-se
identificar o significado das coisas (fenômenos, manifestações, ocorrências, fatos, eventos,
vivências, ideias, sentimentos, assuntos), considerando seu papel organizador na vida humana.
Tais significados tendem, por sua vez, a ser compartilhados em uma dada cultura e,
consequentemente, organizar a vida social. O ambiente em que o sujeito vive ou trabalha é,
indubitavelmente, o local a ser observado. Na condição de observador, o pesquisador é
também o principal instrumento de pesquisa: para apreender o significado do objeto de
estudo, tem de recorrer a seus próprios órgãos de sentido a fim não só de representá-la em sua
consciência mas também de ser por ela interpretado.
Em relação aos aspectos de validade e generalização, o método qualitativo tem, quanto
à primeira, bastante rigor, uma vez que, sem uma observação acurada e/ou uma escuta atenta,
não há como se aproximar da essência do problema em estudo. Por outro lado, não se pode
afirmar que há uma generalização de resultados, pois eles não foram retirados de amostras
representativas do universo pesquisado, não se referindo a fatos quantificáveis, a relações de
causa-efeito nem a correlações: a generalização possível dos resultados da pesquisa
qualitativa é a que se faz com base na revisão dos pressupostos iniciais, ou seja, da teoria.
3.1 Vygotsky e os princípios norteadores do método em Psicologia
A proposta metodológica deste estudo encontra-se no bojo da Psicologia Sócio-
Histórica e do materialismo histórico dialético. Nessas perspectivas, “a busca do método se
converte em uma das tarefas de maior importância da pesquisa” (VYGOTSKY, 1995, p. 47).
Um método que permita ao pesquisador aproximar-se das zonas de sentidos16
do sujeito e,
16
“Zonas de sentido” é uma expressão cunhada por González Rey em Epistemología cualitativa y subjetividad
(1997). Referem-se a zonas do real que encontram significado na produção teórico-metodológica, mas que
não se esgotam em nenhum dos momentos em que são tratadas dentro das teorias científicas.
55
consequentemente, dos constituintes de sua subjetividade, tem como premissa não só analisar
sua fala – por revelar o pensamento em movimento – mas também os afetos e as emoções que
permeiam as relações entre homem e mundo. A escolha metodológica “possibilita contemplar
o presente, o passado e o futuro, enquanto movimento do que é, do que foi e do que poderá
vir a ser” (MOLON, 2008, p. 60).
Objetivando sistematizar seus pressupostos teórico-metodológicos, Vygotsky (1995a)
propõe três princípios: a análise dos processos e não dos produtos; a explicação em
detrimento da mera descrição do fenômeno e a compreensão do comportamento fossilizado.
Analisar o movimento de transformação e mudança do sujeito é o centro norteador do
primeiro princípio. O processo constitutivo do homem e de seu desenvolvimento não são
momentos estanques, de modo que a análise pautada no produto desse movimento vai se
revelar apenas uma parte do todo, que é, justamente, o “acabado”. Para os pesquisadores
adeptos da Psicologia Sócio-Histórica, o processo é de fundamental importância, pois é nele
que se encontra a história que enseja tal ou qual movimento: busca-se o “o quê” e o “como”
dos eventos em escrutínio.
Aprofundar a análise do fenômeno é o convite que o autor parece fazer com seu
segundo princípio: a pura descrição de um fenômeno e de suas características evidentes não
possibilita ao pesquisador ir além das aparências, ou seja, não lhe permite compreender a
gênese dos processos nem suas múltiplas determinações históricas. Ao passo que o
comportamento fossilizado – o terceiro princípio aqui apresentado – diz respeito a condutas
que o sujeito automatiza ao longo de seu desenvolvimento e que só podem ser devidamente
compreendidas na e pela análise histórica. Comportamentos fossilizados são, pois, aqueles já
cristalizados nas formas de pensar, sentir e agir. Diante disso, cabe ao pesquisador a tarefa de
romper com a automatização das condutas em estudo, para entendê-las, ou seja, para estudar o
fenômeno em seus processos de mudança. Para tanto, é preciso contar com um método que
possibilite o emprego de procedimentos capazes de aproximar o pesquisador de seu objeto de
estudo. Por meio dos diálogos tecidos com o sujeito de pesquisa, aos quais se aliam outros
instrumentos de coleta e produção de dados (observação, conversas informais, videogravação,
análise documental, entre outros), a aproximação do pesquisador com o fenômeno a ser
estudado se faz possível.
Apresentam-se, a seguir, as estratégias da ACS, tal como proposta por Clot (2006) e
colaboradores, por serem aqui consideradas como instrumentos relevantes para a
produção/coleta de informações em pesquisa qualitativa. Amparado na Psicologia Sócio-
Histórica, para a qual a categoria atividade é de suma importância, Clot (2006) destaca que a
56
análise do trabalho pelo próprio trabalhador possibilita um movimento de ressignificação da
atividade realizada: ao repensar e discutir a própria atividade, novos reais são inseridos no que
foi realizado. Desse modo, na e pela reflexão da atividade realizada, reside a possibilidade de
mudança na ação, permitindo o desenvolvimento do trabalhador e de seu coletivo
profissional. Clot (2006) utiliza o instrumento da autoconfrontação para a produção de
informações relacionadas ao objetivo da pesquisa, considerando as transformações, no sujeito
e em seus pares, da atividade que realiza. Tais transformações qualitativas requerem uma
análise dialética, focada nas contradições do sujeito e de seu coletivo profissional, para que
lhes seja possível passar de uma situação de estagnação (ou de dor) a outra mais satisfatória
(ou menos dolorosa). Daí a relevância desse procedimento metodológico para o presente
estudo: propiciar a criação de um espaço para a (trans)formação de professores, por meio da
pesquisa:
[...] agimos para transformar a situação. Mais especificamente, nós
estudamos como a ação se desenvolve, esse é um verdadeiro problema
científico, que nós abordamos por meio da abordagem vygotskiana sobre o
estudo do desenvolvimento; a ação é objeto científico e é a ação que
transforma a situação dos trabalhadores. A pesquisa é, portanto, um meio
para transformar a atividade dos trabalhadores (CLOT, 2006, p. 4-5).
Alinhando-se a Vygotsky (2001), Clot (2006) procura, com esses procedimentos,
analisar processos mais do que produtos, focando a forma como o sujeito realiza suas
atividades de trabalho. A tentativa é a de criar, por meio de uma relação dialógica, cognitiva e
emocional, uma nova zona de desenvolvimento próximo: nas sessões de autoconfrontação, o
sujeito – ao observar o que fez, e refletir sobre sua ação, dialogando sobre a atividade
realizada com o pesquisador e com seus colegas – amplia suas possibilidades de ação diante
das prescrições que regem seu ofício e as tarefas que realiza. Dessa forma, a observação e a
análise da atividade buscam “empoderar” o trabalhador e seu coletivo profissional,
depreendendo-se daí que a intensão é ajustar o trabalho ao homem (e não o homem ao
trabalho), permitindo-lhe transformar sua atividade e, assim, escapar das condições que lhe
causam sofrimento ou frustração.
Segundo Clot (2006), tais procedimentos atuam sobre um determinado campo
profissional para desenvolver a capacidade de agir dos trabalhadores sobre eles mesmos e
sobre seus pares. O objetivo não é apenas transformar o sujeito: trata-se de transformar a
atuação profissional. Espera-se, então, que os trabalhadores possam escrever uma nova parte
de sua história, da qual são produtores e também produtos:
57
Instrumento de conhecimento, instrumento de mediação social, instrumento
de formação e, também, instrumento psicológico para os trabalhadores,
entendemos que a análise do trabalho pode apresentar diferentes olhares,
diferentes perspectivas. [...] o trabalho permite ao homem se distanciar de si
mesmo, possibilita que ele se inscreva em outra história, fornecendo-lhe
meios para se realizar (TOMÁS, 2007, p. 12-13).
Assim, ao analisar tanto as atividades realizadas como as que foram descartadas, a
professora – no caso específico deste estudo – pode ampliar seu poder de agir e, assim,
desenvolver-se, (re)avaliando seus sentimentos e emoções, ressignificando sua atividade, ou
seja, atribuindo novos sentidos ao que faz. A autoconfrontação permite não só a modificação
do próprio atuar como também a elaboração de outras ações, inscrevendo-se, assim, novos
possíveis no real. Em outras palavras, espera-se que, mediada pela videogravação, a reflexão a
respeito das atividades realizadas movimente a aprendizagem e o desenvolvimento do
professor. Nessa perspectiva, a pesquisa pode contribuir para a formação de professores,
estabelecendo um canal de comunicação entre o meio acadêmico e o espaço escolar. De
acordo com Durand, Saury e Veyrumes (2005), é importante pensar novas formas de
relacionamento entre atividades de pesquisa e formação de professores, que permitam
satisfazer não só as exigências de rigor científico como as de adequação profissional.
3.2 A autoconfrontação simples
Após o professor ser filmado em sua atividade profissional, recortes são feitos na
videogravação, buscando episódios que tenham começo, meio e fim e duração aproximada de
dez minutos. Com o vídeo editado, faz-se o convite para que o docente, ator do filme, discuta
com o pesquisador os episódios selecionados a partir de sua atividade, ou seja, a partir da
ACS, que acontece quando o professor comenta os recortes das imagens de seu trabalho com
o pesquisador, referindo-se, portanto, à interação sujeito, imagem, pesquisador. Ao ver-se na
tela, o professor procura explicar o que fez e o que poderia (ou não) ter feito, cumprindo,
assim, uma atividade semelhante à do pesquisador, quem, com o intuito de assegurar-se de ter
compreendido bem, tece conjecturas para dar continuidade ao diálogo. Nesse momento, a
filmagem enquadra tanto um como outro – pesquisador e professor.
Inicialmente, o episódio é apresentado integralmente ao colaborador. Logo, retorna-se
ao início, de modo a permitir que o sujeito de pesquisa possa pausar o vídeo nas partes que
despertem seu interesse. Pretende-se, com isso, analisar como é possível, por meio de detalhes
da observação da atividade realizada, alcançar o real da atividade. Isso feito, o pesquisador
58
procura aprofundar o diálogo para apreender aspectos mais obscuros da atividade docente
realizada. As sessões de ACS são também sempre filmadas.
Ao comentar sua atividade, ao se analisar enquanto assiste à cena selecionada, o
professor pensa, sente e age cognitivamente sobre ela, revelando suas crenças, seus valores e
sua história. Tais revelações pautam o trabalho do pesquisador, que, nesse espaço privilegiado
de diálogo, atua como um “guia” do processo reflexivo. Se mal conduzida, no entanto, – com
perguntas mal formuladas ou pesquisadores pouco treinados –, a autoconfrontação deixa de
ser uma estratégia de produção e coleta de informações, para agir contra o sujeito, que pode se
sentir acuado e desestabilizado. Daí a importância do papel do pesquisador: além de um sério
planejamento, a autoconfrontação exige atenção especial para o modo como se questiona,
bem como para as palavras empregadas e, notadamente, para a organização do diálogo.
Como demonstram as pesquisas realizadas no Procad (BARBOSA, 2011; SOARES,
2011; BRANDO, 2012), cada vez mais se percebe a importância dessas precauções quando se
busca “provocar o desenvolvimento das atividades para transformar as situações de trabalho”
(CLOT, 2006, p. 17). Discutindo a transformação – o movimento do sujeito em sua relação
com a realidade –, Clot (2006) adota a perspectiva de Vygotsky (2001, p. 74), para quem “é
somente em movimento que um corpo mostra o que é”. Dessa maneira, o interesse do
pesquisador centra-se entre a atividade prescrita e a realizada, buscando apreender o real da
atividade, bem como as tensões e contradições entre gênero e estilo.
3.3 Etapas da pesquisa
3.3.1 Escolha da escola e do sujeito participante
Para o desenvolvimento desta pesquisa, foi escolhida uma escola pública estadual
situada na zona noroeste da cidade de São Paulo. Nela, foi selecionada uma docente atuante
no ensino fundamental do ciclo I, atuante no 1° ano. Diante da aceitação da instituição de
ensino, de uma de suas professoras e de seus pares, procedeu-se a uma explicação dos
objetivos do estudo, dos procedimentos que seriam seguidos no decorrer do processo de
pesquisa, dos cuidados éticos e do cronograma da coleta de dados.
59
3.3.2 Material
Os materiais utilizados foram uma câmera digital, que permitiu à pesquisadora
movimentar-se na sala de aula no momento das filmagens; um computador para a edição dos
episódios; um gravador digital para a coleta de dados sobre a história de vida da professora e
registro das entrevistas semiestruturadas realizadas à direção e à coordenação pedagógica da
escola.
3.3.3 Procedimentos de produção e coleta de informações
Como instrumentos de pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, junto à
professora, à direção e à coordenação pedagógica da escola, buscando compreender como era
a dinâmica escolar, a avaliação que se fazia da infraestrutura disponível e, ainda, os projetos
pedagógicos que se desenvolviam no espaço escolar. Também se procedeu ao levantamento
da história de vida da docente, instrumento que permitiu apreender os sentidos e os
significados que a docente atribuía a sua profissão, aos alunos, ao contexto de trabalho etc., de
modo a tomar conhecimento do processo de tornar-se professor e compreender as metas que
norteavam sua atuação profissional no Programa Ler e Escrever.
3.3.4 Coleta de dados sobre a atividade docente
O processo de coleta de dados iniciou-se com a observação, por seis meses, da prática
pedagógica da professora, buscando conhecer a dinâmica da sala de aula, sua interação com
os alunos e também a interação dos estudantes entre si. Também se realizou uma análise do
material do Programa Ler e Escrever utilizado nas aulas da professora a fim de verificar se – e
em que medida – seu modo de agir pautava-se nos enunciados contidos em tal programa de
formação. As atividades da docente foram filmadas, foram selecionados os episódios que
melhor respondiam às questões da pesquisa, o que implicou uma edição do material. Foram
realizadas três sessões de ACS, nas quais a docente observava, a partir do vídeo, os episódios
selecionados e os analisava junto com a pesquisadora. Essa análise deveria permitir que as
hipóteses iniciais (levantadas pela pesquisadora no decorrer das observações em sala de aula e
nas entrevistas feitas) fossem contrastadas com as produzidas no diálogo
professor/pesquisador.
60
3.3.5 Sistematização e análise dos dados colhidos
Para efeitos de análise, os dados advindos de três momentos da pesquisa foram
importantes: (i) os registros de campo, (ii) os fornecidos nas entrevistas; (iii) os produzidos
por meio das sessões de ACS. Todos eles foram analisados de maneira integrada, à luz dos
demais, do referencial teórico adotado e das propostas do Programa Ler e Escrever. A
pretensão era verificar, mediante essa análise, se a professora utilizava o que havia aprendido
no programa de formação continuada e se – e em que medida – esse aprendizado era
incorporado a suas atividades docentes. Cabe, para tanto, precisar o referencial de análise
seguido neste estudo.
Foram centrais os propostos por Aguiar e Ozella (2006), que se referem à construção
de núcleos de significação. Segundo os autores, uma vez transcritas as entrevistas e o relato da
história de vida do participante, esse material deve ser lido várias vezes, de modo a permitir
maior familiarização com seu conteúdo, situação que possibilitará a construção de pré-
indicadores, uma lista dos diferentes assuntos tratados. Identificados os pré-indicadores, eles
devem passar por um processo de aglutinação, que segue alguns critérios: frequência,
semelhança, contiguidade e contradições encontradas entre as falas. Esse processo resulta na
formação de indicadores que, mais uma vez, são agrupados, configurando-se como núcleos
de significação. Neles, por meio do processo analítico-interpretativo do pesquisador, será
possível apreender os sentidos e os significados buscados, centrando o olhar nas
transformações e nas contradições presentes. Para tanto, serão consideradas as condições
subjetivas, sociais e históricas do sujeito.
Com isso, espera-se ultrapassar o nível da aparência para se alcançar o mais próximo
possível da essência, que é o cerne do fenômeno aqui estudado. Finalmente, cada núcleo deve
receber um nome, sempre que possível extraído de uma das expressões do sujeito e que
melhor defina seu conteúdo. A análise dos núcleos de significação envolve dois momentos:
um em que se analisam os diferentes núcleos de significação e outro em que se busca articulá-
los. A fim de identificar as contradições presentes no discurso, responsáveis primeiras pela
movimentação do sujeito, ou seja, por seu deslocamento da situação inicialmente encontrada,
parte-se de uma análise intranúcleo para se chegar a uma análise internúcleos. Por essa razão,
será necessária uma análise interpretativa por parte do pesquisador, que sai do empírico para
construir uma nova ordem, invisível para quem está imerso nas situações em que o fenômeno
estudado ocorre. Finalmente, os núcleos de significação são analisados com base em seu
contexto social e histórico e, sobretudo, com base na teoria.
61
As sessões filmadas de ACS foram igualmente transcritas e submetidas ao mesmo
processo metodológico exposto: organizadas em núcleos de significação, que devem permitir
articular a tarefa, o real da atividade e a atividade real (DAVIS; AGUIAR, 2010), sempre no
mesmo movimento que vai do empírico ao abstrato e novamente volta ao empírico, agora
organizado com base no referencial teórico da Psicologia Sócio-Histórica: “Perceber as coisas
de outro modo é, ao mesmo tempo, adquirir outras possibilidades de agir em relação a tais
coisas [...]. Ao generalizar um processo próprio de minha atividade, eu adquiro a
possibilidade de manter, com ela, outra relação” (CLOT, 2001, p. 23).
62
4 Apresentação e análise dos dados
Este capítulo tem por objetivo apresentar os dados coletados no decorrer do trabalho
de campo e suas respectivas análises. Inicialmente, descrevem-se a escola, o corpo docente e a
comunidade atendida pela instituição; posteriormente, apresentam-se a professora e alguns
dos aspectos que constituem sua história de vida. Também se descrevem os episódios
selecionados. A seguir, mostra-se um quadro dos núcleos de significação e seus respectivos
indicadores advindos da entrevista e das sessões de ACS.
4.1 A escola
A escola na qual a pesquisa foi desenvolvida integra a rede pública estadual de ensino
e localiza-se na zona norte da cidade de São Paulo, mais especificamente na Vila
Brasilândia17. Na época da pesquisa, atendia, em média, 900 alunos do ensino fundamental I
(1º a 5º ano), no período matutino e vespertino. O quadro de funcionários era composto por
duas inspetoras de alunos, duas secretárias, uma diretora, uma vice-diretora, uma
coordenadora pedagógica, 28 professores – majoritariamente mulheres –, além de seis
especialistas – três em Educação Física e três em Artes.
A equipe gestora atuava nessa instituição desde 2005. Elisa, a diretora, acumulava
grande experiência na área da educação: além de professora e supervisora pedagógica, desde
1989 ocupava esse cargo. Aposentou-se em 2003; em 2005, foi aprovada em um concurso
público para direção e, na época da pesquisa, fazia parte da equipe gestora. Elisa sempre se
mostrou muito acolhedora, afetuosa e disposta a trabalhar nessa escola. No decorrer das
observações, foi possível perceber que ela sentia prazer no que fazia, mostrando-se disposta a
ouvir o que os professores, pais e alunos tinham a lhe dizer: negociava com eles, amparava-os
e discutia os problemas do cotidiano escolar com os interessados.
Larissa, a vice-diretora, também contava com grande experiência na área da educação.
Formada no Curso Normal e em Geografia, fez complementação em Administração Escolar.
Atuou como professora da escola investigada entre os anos de 1987 e 1989. De 1990 a 2002,
foi professora do ensino médio em uma escola da região. Nos anos de 2003 a 2004, foi
17
A população é predominantemente de classe média baixa, as casas apresentam construção simples, algumas
partes não estão completamente urbanizadas e podem ser consideradas “favelas”. Logo, as crianças atendidas
por essa escola advêm de famílias que dispõem, em geral, de poucos recursos financeiros e vivem em
condições materiais precárias. Ademais, a região é conhecida por seus altos índices de criminalidade.
63
designada para assumir a direção da escola, assumindo, no ano seguinte, o cargo de vice-
diretora. Larissa aparentava gostar muito do que fazia e trabalhava bem com Elisa,
auxiliando-a no que fosse preciso. A relação entre o trio gestor – diretora, vice-diretora e
coordenadora – parecia ser bastante cooperativa.
Vivian, a coordenadora pedagógica, atuava havia 14 anos em educação. Formada em
Pedagogia e Letras, foi professora do ensino fundamental II; em 2004, assumiu o cargo de
vice-diretora em outra escola da região, começando, em 2005, seu trabalho como
coordenadora pedagógica na escola pesquisada. No decorrer do trabalho de campo, mostrou-
se constantemente disposta a auxiliar a pesquisadora quando solicitada. Muito esperta e
falante, seu sorriso era contagiante! Buscava aproximar-se dos professores, dos pais e dos
alunos. Apesar de ter se assustado com as demandas do cargo ao dar início a seu trabalho
como coordenadora, sentia-se, no momento da coleta de dados, já bem confortável em sua
função, aparentando gostar muito do que fazia. Nessa mesma época, estava participando do
Programa Ler e Escrever, que lhe exigia oito horas semanais dentro da sua carga horária de
trabalho. Sua tarefa consistia em formar os professores que atuavam em sua unidade escolar,
de modo que pudessem trabalhar com as propostas daquele programa. Em função do grande
número de docentes pelos quais era responsável, relatou sentir-se cansada em alguns
momentos, embora salientasse que essa era sua escolha profissional. Segundo seu
depoimento, a coordenação pedagógica trouxe-lhe inúmeros aprendizados desafiadores e
gratificantes.
A instituição escolar estudada situava-se entre duas favelas, com a maioria das casas
ainda sem reboco. A região dispunha de posto de saúde, ônibus, bancos, ruas asfaltadas, mas
as opções de lazer e entretenimento eram mínimas – poucas praças e parques. Na região havia
outras instituições públicas de ensino e as poucas possibilidades de acesso a bens culturais
(teatro, shows e cinema) eram oferecidas em uma das unidades escolares da prefeitura – o
Centro Educacional Unificado (CEU).
Com 35 anos de funcionamento, a escola foi instalada em uma rua com acentuado
declive e, para melhor aproveitamento do terreno, os quatro prédios foram construídos
separadamente. A quadra de esportes fica no alto – com cobertura para a proteção do sol e da
chuva –, rodeada por arquibancadas de cimento com quatro grandes degraus, sem nenhum
tipo de grade de proteção. Ao redor da quadra, há uma pequena área gramada. Foi possível
observar, no decorrer da coleta de dados, que as crianças não tinham livre acesso ao espaço
porque o terreno é bastante acidentado: poderiam se machucar caso caíssem de uma das
64
arquibancadas. O acesso à quadra de esportes tinha de ser sempre monitorado pelos
professores de Educação Física ou pelas inspetoras. Ainda nesse espaço, há um grande portão
de entrada e saída dos alunos, que permanecia fechado no horário de aula.
O primeiro prédio, localizado abaixo da quadra, tem dois andares com pé-direto alto.
O primeiro, ao qual se tem acesso por meio de rampas ou escadas, conta com um refeitório
ocupado por mesas e bancos de cimento, utilizado pelas crianças como pátio nos intervalos
das aulas; quatro banheiros: dois femininos e dois masculinos; uma cozinha para a produção
da merenda servida aos alunos e professores; um pequeno espaço ao lado do refeitório,
destinado à venda de guloseimas, cujo lucro se destina à escola. O segundo andar, com
acessibilidade apenas por meio de escadas, foi dividido em oito amplas salas de aula; um
pequeno depósito de materiais e uma biblioteca usada como sala de aula para um primeiro
ano, mobiliada com carteiras e lousa e três grandes estantes com livros diversos. Há, ainda,
nesse prédio, um elevador inutilizado por falta de manutenção.
No segundo prédio, térreo, está a parte administrativa da escola. Diante dele, há um
pequeno portão com uma área coberta, que permanece sempre fechado. Por meio desse
portão, os pais têm acesso à escola quando precisam resolver alguma questão na secretaria ou
com a equipe gestora. Há uma secretaria, uma sala para a coordenadora pedagógica, outra
compartilhada pela diretora e pela vice-diretora, uma pequena cozinha, uma sala para os
professores e dois banheiros – um feminino e um masculino – para uso dos funcionários.
Seis salas de aula compõem o terceiro e o quarto prédio. No quarto edifício, há, ainda,
uma pequena sala de vídeo com televisão e aparelho de DVD em bom estado de uso. Para
facilitar a acessibilidade aos prédios, existem escadas e rampas de cimento. Ao final do
terreno, localiza-se um pequeno estacionamento utilizado apenas pela equipe gestora e por
alguns professores. Contudo, nem todos os docentes conseguem estacionar seus veículos e os
deixam na rua, em frente à escola.
A falta de espaço físico sempre foi motivo de queixa da equipe gestora e da professora
participante deste estudo. Em razão da demanda por vagas, a biblioteca estava sendo usada
como sala de aula – fato que impedia os demais professores de a utilizarem com seus alunos.
Tampouco existia lugar para que as crianças pudessem brincar e correr; a única opção para a
diversão dos alunos, nos momentos de intervalo das aulas, era o refeitório, pois a quadra de
esportes oferecia risco de alguma criança se machucar. Nos dias de chuva, a entrada e a saída
das crianças eram conturbadas: a cobertura da quadra era muito alta e a chuva invadia parte
dela. Nesses dias, as crianças entravam e iam diretamente para suas respectivas salas de aula.
65
Na hora da saída, as professoras organizavam-se para liberar, por etapas, os alunos. O único
grande lugar coberto, no período de minhas observações, era o espaço que entre o prédio da
secretaria e o estacionamento. Os prédios estavam bem conservados, mas em processo de
restauração, e todas as salas estavam sendo pintadas. As classes não estavam sujas, pois os
professores cuidavam desse espaço e o organizavam: ao final de cada período, eles o
limpavam para o próximo período.
No decorrer da pesquisa, foi possível perceber que o ambiente de trabalho era
amistoso e os funcionários, bastante cooperativos. A equipe gestora sempre demonstrou
bastante energia para administrar a escola e disposição para cooperar com a pesquisa. Dessa
forma, o clima para o desenvolvimento deste estudo foi muito acolhedor. Nessa “imersão” no
campo, por muitas vezes me senti parte da escola. As secretárias cumprimentavam-me,
chamavam-me pelo nome e, logo que me viam, me abriam o portão. Os professores
conversavam entre si, trocavam ideias e mantinham um bom relacionamento. Na medida em
que foram se acostumando com minha presença, foram incluindo-me em seus diálogos,
convidando-me a participar de suas rotinas. Trocávamos experiências e vivências – tanto
sobre a vida acadêmica quanto a cotidiana.
A merenda oferecida pela escola era extremamente saborosa e a maioria dos
professores fazia suas refeições na própria instituição – e eu era sempre convidada a partilhá-
las. O capricho e o cuidado da merendeira sempre foi assunto na sala dos professores. Eu
andava constantemente pelos corredores, ficava na sala dos professores e, no decorrer desse
período, de mais de seis meses no campo, foi visível o bom relacionamento que mantinham
entre si a diretora, a coordenadora pedagógica, a vice-diretora, os docentes e os alunos. A
equipe gestora e a docente pareciam conhecer as histórias de quase todas as famílias:
buscavam constantemente o diálogo da escola com a comunidade. A coordenadora
pedagógica e a vice-diretora esforçavam-se por levar adiante as ideias e as produções da
diretora. Apesar das dificuldades provocadas pela falta de espaço, pela alta demanda de
alunos e pelas particularidades da população atendida na escola, essa instituição surgia como
um espaço muito produtivo e cheio de vida. Era visível o prazer com que muitos professores
trabalhavam, buscando constantemente desenvolver o espírito coletivo.
66
4.1.1 Apresentando a professora
À época da pesquisa, a professora Renata18
tinha 55 anos de idade. Casada, mãe de
dois filhos e avó de dois netos – dos quais muito se orgulhava –, contava com vasta
experiência no campo da educação. Atuava havia 27 anos na área e apresentava um percurso
profissional interessante: assistente técnico-pedagógica, auxiliar na Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais (Apae) e professora de classes de aceleração. Nos últimos 12 anos,
dedicou-se a classes de alfabetização (antiga 1ª série ou atual 1° ano).
As mediações que foram constituindo a vida profissional da docente possibilitaram seu
contato com diversos cursos de formação continuada: Projeto Ipê, Teia do Saber, Letra e
Vida, Programa Ler e Escrever. Como complemento curricular, estava cursando Pedagogia
em uma faculdade particular. De família humilde e numerosa, perdeu o pai aos dois anos de
idade. Depois do falecimento, a mãe e os filhos receberam apoio de familiares próximos por
um período. Diante da falta de emprego e da impossibilidade de dar sequência aos estudos, a
família mudou-se para Lins, no interior de São Paulo, em busca de novas oportunidades.
A ida para outra cidade e as dificuldades enfrentadas pela mãe para cuidar dos filhos
levaram Renata, desde muito pequena, a trabalhar e contribuir para o sustento da casa: “com
11 anos, eu já trabalhava, só que assim: eu era ajudante numa loja de tecidos de uma prima
minha. Mais isso era mais para [me] ocupar, para ter uma rendinha e ajudar minha mãe”.
No decorrer de sua história, já atuando na área administrativa de uma empresa de consórcio,
realizou o curso técnico em Contabilidade.
Ainda morando em Lins, casou-se aos 22 anos, afastando-se de suas atividades na área
administrativa, pois trabalhava aos finais de semana e o marido – cuja situação econômica era
bastante confortável – queria que ela se dedicasse mais à família. Após dois anos devotados
aos cuidados do lar e à criação de seu primeiro filho, na época com apenas um ano de idade,
decidiu voltar a estudar, optando pelo curso Normal para tornar-se professora. Formou-se em
1984 e começou a atuar como docente em 1985. Desde então, dedica-se à carreira, que,
segundo ela, lhe proporciona muito prazer:
18
Nome fictício.
67
[...] quando meu filho mais novo tinha um aninho, eu resolvi voltar. Aí, eu
disse: ah, eu acho que vou fazer Magistério! Aí eu fiz o [curso] Normal, o
Ensino Médio, e foi onde eu me identifiquei. Em 1984, eu me formei; só que
estava grávida! E, aí, nasceu meu segundo filho. Na verdade, eu já estava
atuando, mas eu comecei mesmo em 1985, depois que ele nasceu. E estou
até hoje.
Por decorrência da vida profissional de seu marido e também de seus filhos, mudou de
cidade algumas vezes. Morou em Brasília, onde trabalhou na Apae; voltou para Lins e
assumiu novamente o magistério. Em 2006, instalou-se em São Paulo. Na época da pesquisa,
trabalhava em uma escola pública estadual de ensino fundamental I e havia sido aprovada em
um concurso público para a Prefeitura de São Paulo; porém, não havia sido contratada por
motivos médicos: voz rouca e postura curvada. Para Renata, mesmo em final de carreira, a
aposentadoria na rede municipal era financeiramente mais atraente do que a oferecida pela
rede estadual, ainda que isso a obrigasse a trabalhar por mais alguns anos.
No decorrer das observações na escola, foi possível perceber que a professora
empenhava-se em buscar novas possibilidades para desenvolver suas atividades. Mantinha
bom relacionamento com seus alunos, colegas professores, gestoras e pais de alunos. Em
virtude de sua vasta experiência em aulas de alfabetização, era considerada uma referência
para os colegas, que buscavam seu auxílio quando tinham dúvidas sobre o processo de
alfabetização dos alunos.
4.2 Apresentação dos episódios
A seguir, descrevem-se os episódios utilizados nas sessões de ACS, assim
denominados: Rapunzel, Alfabeto móvel e Aula de Matemática.
4.2.1 Episódio Rapunzel
A aula começa com Renata explicando aos alunos a importância do gênero textual
“conto”. A turma está sentada em fileiras e os alunos formam duplas. Na lousa, está fixado
um cartaz contendo títulos de contos que eles já conhecem: Chapeuzinho Vermelho, Os Três
Porquinhos, Patinho Feio, Bela Adormecida, Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela e a
68
Fera, O Pequeno Polegar, João e Maria, Rapunzel e, finalmente, João e o Pé de Feijão. Ao
ler a lista de contos para a turma, Renata solicita a interação do grupo. Os alunos estão com os
cadernos e o livro de texto do aluno do Programa Ler e Escrever sobre suas carteiras. A
professora solicita que guardem os cadernos, informando que esse material não será utilizado
nessa aula. Todos acatam seu pedido. Ela diz aos alunos que, embora já tenham lido o conto
Rapunzel, essa é a história escolhida para o dia e indica o número da página em que é possível
encontrar o texto e, assim, acompanhar a leitura em conjunto com a docente. Além da
instrução verbal, Renata escreve na lousa o número da página e, enquanto escreve, fala em
voz alta o que está escrevendo. Inicia a leitura do conto em voz alta e circula por toda a sala.
Ao final da leitura, Renata volta-se para a turma e pergunta: “quais são as características de
um conto?”; “como eles começam?”; “como eles terminam?”. Alguns alunos respondem à
primeira pergunta com um “era uma vez” e, à segunda, com “foram felizes para sempre!”.
A professora, então, aproveita a ocasião para reafirmar que a presença desses dois
marcadores caracteriza e define textos do gênero “conto”. Ainda trabalhando com a oralidade
e estimulando a participação do grupo, faz uma pergunta sobre os personagens, que é
prontamente respondida pelos alunos. Ao explorar o texto, Renata escolhe algumas palavras
(“anoitecer” e “espiando”) cujos significados as crianças devem identificar. Todos participam:
“anoitecer é quando está ficando de noite”; “espiar é quando tem alguém te olhando, te
curiando”. Após o trabalho com a oralidade, a professora apresenta à classe uma folha
intitulada “quem foi que disse...”. Esta atividade contém frases retiradas de outros contos –
“Vou soprar, vou soprar e sua casa derrubar”; “Espelho, espelho meu, existe alguém mais
bonita do que eu?”; “Vovozinha, que nariz grande você tem!”. Enquanto Renata lê essas
frases para os alunos, eles respondem apontando, corretamente, o nome dos personagens
enunciadores das frases. Em seguida, ela entrega a folha de atividades e solicita aos alunos
que escrevam no local indicado – uma linha que se encontra embaixo de cada uma delas – o
nome do personagem a quem atribuem o texto. Interessa observar que, enquanto Renata
entrega as folhas para toda a turma, o aluno Vinícius realiza toda a atividade. Assim, sem ter o
que fazer, o menino fica esperando que todos os colegas terminem o proposto pela docente.
Ao circular pela sala observando o desenvolvimento da tarefa solicitada aos alunos, a
professora percebe que a maioria do grupo tem dificuldade para escrever corretamente a
palavra “madrasta”. Ela, então, vai até a lousa e questiona: “como podemos escrever a palavra
‘madrasta’?”. “Quais são as letras que estão entre o “a” e o “t”?”. Repete a palavra
pausadamente: MA-DRAS-TA. Um aluno responde: o “s”. Ela se dirige ao grupo e diz que
69
algumas crianças estão se esquecendo do “s” e também de outras letras. Renata continua
andando pela sala e, após alguns minutos, volta à lousa, onde registra as várias grafias usadas
pelos alunos para escrever a palavra “madrasta”. Dessa maneira, na tentativa de socializar
dúvidas, ela acaba salientando os erros cometidos, dificultando a solidificação da escrita
correta da palavra. A interação dos alunos para realizar a proposta da professora continua e se
esforçam muito para descobrir as letras faltantes. Finalmente, Renata corrige a atividade na
lousa, contando com a atenção do grupo.
A segunda atividade, apresentada em outra folha, requer que os alunos escrevem uma
palavra que comece com as iniciais da palavra Rapunzel (R, A, P, U, N, Z, E, L). Na terceira
atividade, são apresentadas diversas palavras dos contos (Rapunzel, cabelo, madrasta, torre,
vermelho, porquinhos, espelho, entre outras). O objetivo é que os alunos marquem o
quadrinho com a palavra “torre”, que corresponde à pergunta “em qual lugar Rapunzel ficou
presa?”. A quarta e última atividade desse episódio é de associação: os alunos devem ligar as
palavras que se complementam, como “chapeuzinho” e “vermelho” e, assim,
consecutivamente. Após dar as instruções, Renata indica que, no primeiro exercício, as
palavras não podem ser iguais às dos colegas próximos, ignorando que, nesse momento de
construção da escrita, copiar pode ser uma maneira de aprender com o outro. Enquanto os
alunos tentam seguir suas instruções, ela caminha entre o grupo, atende alguns alunos e senta-
se em sua cadeira, esperando que terminem a tarefa. Os alunos com mais dificuldades
procuram a professora, que os atende prontamente. A atividade termina com sua correção na
lousa.
4.2.2 Episódio Alfabeto móvel
A atividade começa com a professora perguntando aos alunos: “Quem aqui já foi em
uma festa de aniversário”? Todos respondem ao mesmo tempo: “Eu, eu, eu”. Os alunos estão
separados em quartetos. A professora então questiona: “O que nós temos em uma festa de
aniversário?” Prontamente, o grupo replica: “bolo, bexiga, brigadeiro, guaraná, beijinho,
convidados, bala de goma...”. A professora permite que todos falem enquanto fixa uma
sequência de folhas na lousa. Dirige-se, então, à turma: “Agora, eu vou lembrar, com vocês,
algumas coisas que vocês disseram: tem bolo”? E a turma responde: “tem”; novamente, ela
questiona: “tem bexiga?”. E os alunos dizem: “sim”. Em seguida, ela lhes entrega o kit com as
70
letras móveis e solicita a cada grupo que organize a escrita das palavras que nomeiam os
doces de festas de aniversário.
Ao circular pela sala, Renata percebe que um aluno está empenhado em escrever a
palavra “cachorro-quente”. Retoma a instrução da atividade em voz alta: “Pessoal, só para
lembrar: vocês têm que escrever sobre as coisas doces que temos em festas de aniversário”.
Os meninos de um grupo estão tentando escrever a palavra “bolo”, que resulta em “bolau”. A
professora lê o que foi escrito em voz alta, pedindo-lhes que procurem a forma correta da
escrita. Um aluno de outro grupo aproxima-se da docente e questiona: “Prô, como se escreve
pirulito?”. Ela responde pronunciando as sílabas pausadamente: “PI-RU-LI-TO, vai para a sua
mesa e escreva como você acha que é. Daqui a pouco, eu passo lá”. Ao observar que os vários
grupos tentam escrever alguma palavra relacionada aos doces de festas de aniversário, orienta
que todos escrevam a palavra “suco”, no que é prontamente atendida. A docente observa que
uma das meninas escreve “sueo”, mas dirige-se à classe e diz, pausadamente, “SU-CO.” Ela
solicita a ajuda de todos, que rapidamente chegam ao resultado esperado. É possível observar
o engajamento na atividade. Em outro grupo, Renata questiona: “Para formar a palavra ‘suco’,
eu preciso de quais letrinhas?”. Um dos alunos responde: “Começa com ‘s’, prô!”, recebendo
incentivo da professora. Quando todos conseguem atingir o objetivo esperado, Renata propõe
a escrita da palavra “aniversário”, repetindo-a pausadamente: “A-NI-VER-SÁ-RIO!”. “Com
qual letra começa essa palavra?”, questiona, e todos respondem: “A”.
Ao perceber que os alunos apresentam dificuldade para escrever a sílaba “ver” (que
tem três letras), Renata questiona: “Gente, como se escreve o ver?”, recebendo a seguinte
resposta: “Precisa do ‘v’ e do ‘e’.” Ela insiste que falta algo, mas, percebendo que as crianças
não sabem o que é, dirige-se até a lousa e diz, com o giz na mão: “Para formar o ‘ar’, o ‘er’, o
‘ir’, o ‘or’, do que eu preciso?”. Os alunos parecem perdidos, mas Renata não desanima.
Escreve a letra “e” no quadro e, prontamente, um dos alunos responde: “Falta o ‘r’, prô.” Ela
escreve “ver” na lousa e repete: “A-NI-VER-SÁ-RIO”. Ao final da atividade, pergunta mais
uma vez: “Quantas letras eu preciso usar para escrever a palavra ‘aniversário’?”. Os alunos
tentam acertar, mas apenas um consegue: “Prô, eu usei 11 letras”. Esse menino é chamado à
frente da sala e solicitado a dizer em voz alta sua resposta, para todos ouvirem. O menino,
quase gritando, diz: “Eu usei 11 letrinhas”. Ela o parabeniza e ele volta a seu lugar. A
atividade termina quando a professora pede que o grupo guarde as letras móveis e se
reorganize em duplas.
71
4.2.3 Episódio Aula de Matemática
A instrução para que essa atividade possa ocorrer a contento é dada por Renata um dia
antes de sua execução. Ela pede aos alunos que levem à sala de aula uma pesquisa de preços
com alguns produtos dos quais gostam: chocolate, bala, sorvete etc. No entanto, são poucos os
que cumprem a tarefa solicitada, o que não impede o início da atividade. A professora entrega
uma folha aos alunos, que estão sentados em duplas. Em seguida, com uma folha em mãos e
no centro da sala, começa a explicar que eles agora vão realizar uma tarefa denominada
“pesquisa de preços”. Renata lê para todos o que deve ser feito: “pesquise o preço de uma
bala, um picolé e um chocolate que você gosta. Depois disso, escreva o nome dessas
guloseimas, seus preços e quantas moedas você utilizaria para pagar pelo produto no
quadrinho abaixo. O primeiro deles é o que pessoal?”. Todos respondem: “chocolate.” A
professora continua: “então, o que vocês vão escrever no primeiro quadradinho?”. Os alunos
respondem: “chocolate”. Na sequência, ela diz: “Quanto vocês vão pagar no chocolate?”. Os
alunos respondem (olhando para a lousa, pois a professora escreve os valores no quadro): “um
real”. Renata complementa sua instrução: “quantas moedas você utilizaria para pagar o
chocolate? Façam isso com a bala e o picolé, também! Lembrem-se: quantas moedas vocês
usariam para pagar o produto?”. Dito isso, faz algumas simulações de valores com o grupo e
solicita que comece a trabalhar no que lhes fora proposto. No decorrer do processo, sugere aos
alunos que façam uma conta de adição: “pessoal, no final da folha sobrou um espaço. Gostaria
que vocês fizessem uma continha: quanto se vai gastar para comprar dois picolés? Depois a
prô corrige com vocês! Podem fazer”. É possível perceber que as crianças que têm dúvidas
procuram constantemente a professora.
Renata percebe que a aluna Raquel está sem sua folha e pergunta duas vezes, em tom
enérgico: “Raquel cadê a sua folha?”. A aluna hesita em responder, mas acaba indicando que
seu material está com Liliane. A professora dirige-se até a carteira dessa menina e, ao
perceber que ela está com as folhas de outros colegas, questiona: “para quem você está
fazendo esse?”. Liliane abaixa a cabeça e não responde. Irritada com a situação, Renata
segura o braço da menina e pede que ela lhe olhe. A aluna não o faz. Novamente, Renata
pergunta: “de quem é essa folha, Liliane?”. A menina continua sem responder. A professora
retira as folhas de Liliane e pede-lhe que faça sua atividade sem copiar de ninguém: “eu quero
ver você fazer sozinha!”. Depois de alguns minutos, Renata percebe que a menina está
chorando e lhe diz, então, que pegue a folha e vá até sua mesa, para que possam fazer a
72
atividade juntas. A menina atende ao pedido da professora. Observando que outros alunos se
aproximam para esclarecer dúvidas, Renata solicita que esperem, explicando que, naquele
momento, estava atendendo apenas Liliane. O grupo aceita o pedido da professora. Renata
chama para perto de si também Arthur, ao perceber que ele está com as mesmas dificuldades
de sua colega. Arthur e Liliane trabalham juntos, com a mediação da professora, e terminam a
tarefa em suas mesas. A atividade finaliza-se com as correções de Renata na lousa.
4.3 Núcleos de significação
O quadro abaixo apresenta os núcleos de significação articulados por meio das falas da
professora, advindas tanto da entrevista (grafadas, no decorrer do texto, em preto) quanto das
três sessões de ACS (registradas nas cores lilás, marrom e magenta).
Quadro 1: Núcleos e indicadores constituídos pela professora Renata
Núcleos Indicadores
1. A escolha do magistério As influências para a escolha da profissão.
O gosto pelo magistério: sabe quando você vem
trabalhar feliz?
A formação inicial no magistério e a comparação com
o curso de Pedagogia.
2. Experiências profissionais na área da
educação e os processos formativos:
a visão sobre o Ler e Escrever
Experiências profissionais na educação e formação
continuada.
O Programa Ler e Escrever e o papel do coordenador
pedagógico nos momentos de formação continuada.
Os materiais do Programa Ler e Escrever: eu gosto
dessa proposta e eu vejo que os alunos gostam
também.
A busca por novas estratégias: eu estou em final de
carreira, mas eu quero mais!
3. Concepção de aluno: suas percepções
e seus sentimentos sobre seus alunos
As mudanças da carga horária do ensino fundamental
I e a influência da formação dos alunos na educação
infantil.
A percepção de Renata sobre sua turma.
Os sentimentos de Renata acerca de suas atitudes com
os alunos: aquela angústia, aquela coisa que eu
quero, que eu quero, que eu quero e aí acaba não
73
acontecendo e é onde me frustra.
4. Planejando e executando as
atividades docentes
As facilidades e os entraves do espaço escolar no uso
dos recursos previstos pelo Ler e Escrever.
As metas para o ano letivo e a avaliação: traço uma
meta para o ano, mas, como eles estão no primeiro
ano, eu avalio mesmo é mais a participação deles nas
atividades em sala.
O planejamento e as aulas.
Teoria e prática: meu conhecimento teórico ajudou
muito, mas a minha prática também.
As formas de trabalho planejadas para alcançar as
metas traçadas no início do ano: eu tenho uma meta
de atender, pelo menos duas vezes por semana, de
modo individual, aí eu planejo outra atividade para
os outros que caminham sozinhos.
A reflexão do aluno sobre a escrita: o uso do alfabeto
móvel e da lista de palavras como estratégias de
ensino-aprendizagem.
Os agrupamentos como estratégia de ensino-
aprendizagem e aprimoramento das relações sociais
dos alunos.
A Matemática e o uso de materiais diversificados: a
descrição da aula de Matemática.
5. A importância da relação com a
comunidade escolar e com a equipe
gestora para o adequado
desenvolvimento das atividades
docentes
A parceria com os pais de alunos
O relacionamento com as gestoras e com o corpo
docente
6. Os sentimentos de Renata diante da
ACS
O impacto das ACS: Eu nunca tinha visto uma aula
minha!
Analisando a atividade realizada na aula de
Matemática: Acho que foi bem produtivo o dia para
eles.
As percepções de Renata sobre as atividades
realizadas: Eu ainda tenho que mudar bastante.
4.3.1 Núcleo 1 – A escolha do magistério
Este núcleo ilustra as influências recebidas por Renata no momento da escolha do
magistério, o prazer que a profissão lhe proporciona e a comparação que faz entre o
74
magistério e a Pedagogia. Nele, estão articulados, apenas, os indicadores oriundos da
entrevista semidirigida.
A trajetória profissional de Renata inicia-se com ocupações no setor do comércio e no
campo administrativo: trabalha desde os 11 anos e, no ensino médio, como seria de se esperar,
opta pelo curso técnico de Contabilidade, pensando em ampliar seus conhecimentos na área
em que atuava. A possibilidade de modificar seu percurso profissional surge após seu
casamento e a escolha do magistério é, marcadamente, influenciada pelo contexto familiar:
A minha opção pelo magistério é porque minha família toda é da
educação, por exemplo, eu tinha um tio lá em Buritama mesmo que era
Diretor de escola. Na época era um status, né? Ah, eu fui aluna da mãe do
Gianechinni [risos], ela era minha professora de História. [...] a minha
família toda era ligada à área da educação, minhas irmãs, eu tive um
irmão que era diretor de escola, duas irmãs que já eram professoras,
minhas primas todas [eram] professoras, e aí eu acho que foi por isso
mesmo [que eu escolhi a profissão].
Fica evidente o papel da família nas escolhas profissionais de Renata: num primeiro
momento, encontra na área administrativa e no curso técnico de Contabilidade um labor que
lhe permite certa estabilidade econômica e, num segundo momento, já em condições
financeiras mais estáveis – após o casamento –, segue no magistério seu itinerário. Vale
destacar que, segundo o referencial teórico deste estudo, as escolhas profissionais de uma
pessoa não se relacionam apenas com as características pessoais, mas vinculam-se a questões
históricas, econômicas, sociais e culturais, como bem ilustra o caso de Renata.
A professora afirma diversas vezes seu sentimento positivo em relação à profissão
escolhida e à mudança empreendida em sua carreira. Apesar da precarização da docência –
mais especificamente em razão dos salários pagos aos professores da rede pública estadual
paulista –, Renata comenta que já pensou em procurar atividades mais bem remuneradas, com
as quais conseguisse modificar sua condição socioeconômica. Entretanto, o gosto pelo
magistério impulsionou-a a permanecer na carreira: “Eu falo assim: ah, eu ganho pouco,
vou procurar outro trabalho... Mas não adianta, é disso que eu gosto mesmo”.
O aumento da jornada de trabalho, o arrocho salarial e a ausência de um plano de
carreira são problemas advindos dos processos de reforma do Estado que têm tornado cada
vez mais agudo o quadro de instabilidade e precariedade do emprego no magistério público.
Embora Renata evidencie seu desapontamento com a questão salarial, também afirma que se
identifica muito com a profissão docente, que nela se sente realizada:
75
E tem mais: eu me encontrei na profissão! Aqui [na educação] é
onde eu me encontrei. Eu sou feliz... Sabe quando você vem
trabalhar feliz? Então, eu gosto daquilo que eu faço, eu sinto
saudade, eu fico triste quando o ano vai terminar... É uma coisa de
paixão mesmo. Eu amo isso tudo que eu faço.
Renata salienta a relação positiva que estabelece com seu trabalho e com seus alunos.
Vislumbra-se, por meio de sua fala, uma trajetória formativa e profissional marcada pelo
prazer; a professora encontra, na relação com seus alunos, motivação para dar continuidade às
tarefas. As mediações constitutivas da docente perpassam as questões afetivas encontradas em
sua profissão: “Gosto, gosto, gosto muito [de dar aula]! Estou muito feliz, principalmente
pelo retorno que a gente tem [dos alunos]”.
Quando questionada se escolheria a profissão novamente, sua resposta é categórica:
“Escolheria sim, com certeza. Não mudaria nada!”. Essa fala reforça o sentimento positivo
de Renata diante de suas escolhas profissionais. Destaca, ainda, ser o prazer encontrado na
profissão um dos elementos que contribuem para a solução das dificuldades encontradas na
docência. Esse elemento, a vontade de resolver problemas relacionados ao trabalho, aparece
também como uma de suas características pessoais: “quando você gosta daquilo que você
faz, não tem entrave. Mas se surge algum tronco no caminho eu pulo, procuro superar
esse obstáculo e vou em frente. E esse é o meu problema”. Por meio desse excerto, em que
destaca qual é “seu problema”, é possível inferir que as inquietações de Renata por vezes
demandam maior gasto de energia, pois evita uma postura de acomodação frente às
adversidades impostas pelo dia a dia da sala de aula. O que ela poderia considerar como uma
característica positiva acaba se constituindo em algo negativo.
Ao falar a respeito de sua formação escolar, Renata indica ter sempre estudado em
escola pública. No momento da pesquisa, cursava Pedagogia em uma faculdade particular:
“Eu sempre estudei em escola pública. Só a minha faculdade é que está sendo
particular”. A modalidade do curso por ela escolhido foi semipresencial – atividades
realizadas a distância e provas realizadas na instituição.
Ao comparar seus processos formativos na área da educação, Renata enfatiza que o
magistério – e não o curso de Pedagogia – lhe forneceu subsídios para suas atividades
docentes em sala de aula: “Eu me formei, em 84, no magistério, no curso normal. Ainda foi
lá no interior... Foi muito benfeito; muito benfeito: me deu uma base muito grande”. Se a
professora elogia a qualidade dos materiais ofertados na Pedagogia, indica, no entanto, que
76
esse curso tem ficado aquém de suas expectativas: “Eu estou fazendo a Pedagogia agora,
embora meu curso não tenha me acrescentado muito não... A faculdade em si, não! O
material é rico, então eu procuro ler em casa, mas eu gosto de buscar”.
Essa crítica, relacionada aos cursos de formação inicial (Normal e Pedagogia),
assemelha-se àquelas feitas por muitos pesquisadores: no curso Normal – centrado no saber
fazer/instrumentalização técnica –, as disciplinas ofertadas não favorecem uma formação
sólida do professorado. Analisando a estrutura do curso Normal, Fusari e Cortese (1989)
indicam a fragilidade de seu currículo, a inexistência de projetos interdisciplinares e a
dificuldade de realizar estágios, entre outros fatores. Em relação à formação inicial, mais
especificamente à Pedagogia, Pimenta (1997, p. 5) aponta questões muito semelhantes,
principalmente no que tange à estrutura curricular desses cursos: o currículo apresenta grande
distância da situação real encontrada nas escolas; a formação centra-se “numa perspectiva
burocrática e cartorial, que não dá conta de captar as contradições presentes na prática social
de educar”.
Objetivando suprir uma lacuna de formação e, ao mesmo tempo, atender uma
demanda do artigo 62 19 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei nº 9.394/1996, os cursos a
distância ou semipresenciais têm sido um dos caminhos encontrados por muitos professores
que precisam complementar sua formação. No entanto, em função da desvalorização da
profissão docente e de sua baixa remuneração, muitos são os que assumem cargas excessivas
de trabalho, desenvolvendo suas atividades em duas ou mais escolas, a fim de garantir uma
renda mensal minimamente satisfatória. Por isso, algumas das características dos cursos a
distância favorecem a formação do professorado. Atualmente, por meio das tecnologias da
informação, é possível organizar o tempo de forma a aproveitar as horas disponíveis para o
estudo. Esse aspecto, por facilitar a adequação da carga horária, impulsiona a procura por essa
modalidade de ensino (GATTI, 2008).
No que concerne aos cursos a distância em Pedagogia, o eixo IV do documento final
da Conferência Nacional da Educação (Conae) 20, elaborado em 2010, aborda aspectos ligados
19
Este artigo rege que a formação de docentes para atuar na educação básica deve dar-se em nível superior, em
curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida,
como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do
ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal.
20 O documento oficial da Conae 2010 não tem força de lei. Apesar da legitimidade, em virtude da ampla
representatividade dos mais diferentes setores da sociedade, o que ele oferece são subsídios para a
formulação de políticas para a educação brasileira (SOMMER, 2010, p. 24).
77
à formação e à valorização dos profissionais de educação. Com o objetivo de oferecer
subsídios para a formulação de políticas educacionais no Brasil, o documento destaca
possíveis soluções para os processos educativos, que não poderiam deixar de abranger,
também, a formação inicial dos professores nos cursos a distância. Buscando “superar as
soluções emergenciais” (CONAE, 2010, p. 80) e a precarização da formação inicial a
distância, sugere-se que:
[...] a formação inicial deverá se dar de forma presencial, inclusive aquelas
destinadas aos/às professores/as leigos/as que atuam nos anos finais do
ensino fundamental e no ensino médio, como aos/às professores/as de
educação infantil e anos iniciais do fundamental em exercício,
possuidores/as de formação em nível médio. Assim, a formação inicial pode,
de forma excepcional, ocorrer na modalidade de EAD para os/as
profissionais da educação em exercício, onde não existam cursos presenciais,
cuja oferta deve ser desenvolvida sob rígida regulamentação,
acompanhamento e avaliação. Quanto aos/às profissionais da educação em
exercício, sua formação continuada pode, de forma excepcional, ocorrer na
modalidade de EAD, nos locais onde não existam cursos presenciais. A
oferta de formação deve ser ampliada e contar com a participação dos
conselhos estaduais e municipais de educação, a fim de garantir as condições
de acompanhamento dessa formação (CONAE, 2010, p. 83).
A fala de Renata reforça a precariedade de seu curso de formação inicial, oferecido na
modalidade de ensino a distância (EAD). Como já dito, se de um lado o “curso não tem
acrescentado muito”, os materiais didáticos oferecidos pela instituição são considerados de
boa qualidade. Vê-se, então, que sua motivação para a leitura dos materiais parte da
necessidade de buscar novos conhecimentos: “O material é rico, então eu procuro ler em
casa; mas eu gosto de buscar”. Pode-se inferir que, se Renata não se interessasse por se
apropriar das leituras do curso, sua insatisfação seria ainda maior e, consequentemente, sua
formação ficaria ainda mais comprometida.
Quando a professora diz que o curso Normal “foi muito bem feito” e que lhe “deu uma
base muito grande”, infere-se que a instrumentalização técnica é constituinte dos sentidos
atribuídos por Renata ao processo de formação inicial. O saber fazer é fortemente enfatizado,
como se a teoria não fosse um aspecto importante para alcançar a necessária articulação
dessas duas instâncias – a teórica e a prática. Aparentemente, Renata não tinha essa
expectativa, quiçá por desconhecimento, quiçá porque o modelo de “receitas prontas” a
ajudava a escapar de situações embaraçosas vivenciadas em sala de aula. O que se evidencia
em sua fala é o fato de não haver cogitado que a formação teórica – proposta pelo curso de
78
Pedagogia –, se aliada aos seus conhecimentos práticos, seria de valor para sua atividade
profissional.
Além dos aspectos acima arrolados, destaca-se outro, que se liga à formação oferecida
pela SEE de São Paulo. Essa secretaria desenvolveu e ofereceu a sua rede de ensino um
programa de educação continuada, cuja frequência asseguraria a formação universitária: o
Programa de Educação Continuada (PEC) – Formação Universitária. De excelente qualidade
e totalmente gratuito, esse programa foi elaborado por três das melhores universidades do
estado de São Paulo: USP, PUC e Unesp. Cabe salientar que atendeu, entre 2001 e 2003, sete
mil professores efetivos da 1ª à 4ª série. Para dar conta dessa grande missão, várias estratégias
de ensino foram adotadas pela SEE: videoconferências, trabalho monitorado, vivências
educadoras e oficinas culturais (DAVIS et al., 2008).
Se vários aspectos que se ligam ao gosto por lecionar – como a busca de novas
estratégias de ensino e, principalmente, seu envolvimento com as propostas formativas –
perpassam o discurso de Renata, algumas questões ficam pendentes: por que ela não teria
aproveitado a oportunidade oferecida pela SEE e cursado o PEC Formação Universitária?
Não seria esse o melhor caminho a ser seguido para aprimorar sua formação profissional? Por
que teria escolhido outra instituição para realizar seu curso de Pedagogia?
Essa contradição – a seleção de um curso pago de pior qualidade por parte de alguém
que se diz entusiasmado e motivado pela docência – começa a ficar mais aparente, sugerindo
que a busca por aprimoramento profissional e o entusiasmo pelo ensino podem estar
amparados na racionalidade técnica e em situações de aprendizagem que dispensam grande
investimento cognitivo. Quisesse Renata realmente ampliar sua formação e se resguardar de
punições advindas do não cumprimento da Lei nº 9.394/1996, art. 62, não teria procurado se
envolver com as propostas do referido programa? No que concerne ao PEC Formação
Universitária, seus resultados mostraram-se muito relevantes: na condição de alunos, os
professores puderam refletir sobre “o exercício dos ofícios discente e docente” e compreender
não só os processos de ensino e aprendizagem como também “suas práticas e representações
enquanto professores, sobretudo no que diz respeito às atitudes em relação ao corpo discente e
a certas atividades propostas em aula” (OLIVEIRA, 2008, p. 1).
Diante do exposto, pode-se supor que Renata buscou sua formação basicamente para
atender às prescrições da LDB, uma vez que sem formação específica em nível superior, ela
79
poderia perder seu cargo como professora concursada e, consequentemente, não conseguiria
se aposentar após 27 anos de carreira docente.
4.3.2 Núcleo 2 – Experiências profissionais na área da educação e os processos
formativos: a visão sobre o Ler e Escrever
Este núcleo versa, principalmente, sobre as experiências profissionais de Renata e sua
visão sobre o Programa Ler e Escrever. Estão articulados os indicadores da entrevista e de
alguns momentos da ACS que, de forma geral, ilustram algumas das características pessoais
da professora e as influências dos processos formativos: a) as experiências profissionais na
educação e na formação continuada; b) o Programa Ler e Escrever e o papel do coordenador
pedagógico nos momentos de formação continuada; c) os materiais do Programa Ler e
Escrever: “eu gosto dessa proposta e eu vejo que os alunos gostam também”; d) a busca por
novas estratégias: “eu estou em final de carreira, mas quero mais!”.
As experiências profissionais de Renata no campo da educação e, em particular, na
formação continuada, são elementos importantes para o processo constitutivo docente. Renata
comenta seu percurso formativo e suas experiências em sala de aula de maneira ampla: já
trabalhava há 12 anos com alfabetização no 1° ano (ou antiga 1ª série); havia trabalhado na
Apae; fora assistente técnico-pedagógica (ATP) na Diretoria de Ensino, em Lins, na sala de
aceleração. Além disso, havia participado de diversos cursos de formação continuada: Letra e
Vida, Projeto Ipê, Teia do Saber. Desde 2008, estava participando dos processos formativos
do Programa Ler e Escrever.
Contudo, a professora acredita que “só fazer curso não é suficiente não, eu tenho
que aprender mais! Eu tenho muito que melhorar ainda”. Ou seja, Renata atrela a
constituição dos sentidos sobre a atividade docente ao desenvolvimento profissional. De que
forma suas expectativas poderiam ser sanadas? Como aprender mais, se “só fazer curso não é
suficiente”? Os dados colhidos na entrevista fornecem importantes subsídios para responder a
essa pergunta:
Igual, teve um curso de fantoches que eu gostaria de ter ido, só que era
no horário de HTPC e a diretora não liberou... Então fica truncado
porque não tinha outro horário e eu não pude fazer. Isso para mim tinha
que melhorar muito, muito, muito porque eu quero aprender, mas eu
tenho que ter oportunidade.
80
Como se pode depreender dessa fala, Renata gostaria de contar com uma escola mais
flexível, na qual tivesse oportunidade de dar continuidade aos cursos de aprimoramento
profissional. O aprendizado vincula-se, assim, às possibilidades abertas (ou fechadas) que
surgem no decorrer das trajetórias profissionais. Quando diz “eu quero aprender, mas eu
tenho que ter oportunidade”, Renata parece não perceber que as aulas de trabalho
pedagógico coletivo – ATPCs21
– são oportunidades de formação continuada oferecidas na
escola e, em especial, que abrir exceções pode ser um problema para a organização da escola.
Verificam-se, ainda, no discurso da professora, que seu tempo e suas condições
financeiras são fatores impeditivos objetivos para que siga outras atividades: “Eu queria
fazer um curso de contação de história, porque eu quero aprender, mas eu não tenho
tempo e nem dinheiro – é tudo muito caro!”. Aqui se evidencia, além da queixa sobre a
gestão da escola, outra questão que entra em jogo quando se trata de cursos de formação
continuada: as condições econômicas necessárias para a realização de cursos. Um terceiro
aspecto mencionado relaciona-se à precariedade da oferta para quem leciona nos anos iniciais
do ensino fundamental: “para o primeiro ano não tem nada, nada, nada! Já tem uns três
anos que eu não participo de nenhuma capacitação, porque não tem oportunidade. Eles
[SEE] não oferecem nada e quando oferecem...”. A professora aponta, nessa fala, que
considera central o papel da SEE no desenvolvimento profissional dos docentes. Todavia,
parece desconsiderar, assim, os momentos de formação continuada oferecidos na própria
jornada de trabalho pelo Programa “Ler e Escrever”, assim como desconsiderou antes o PEC
Formação Universitária.
Analisando-se mais detidamente o discurso de Renata, observa-se que sua crítica se
pauta, mais especificamente, no ensino da Matemática: “já atuando muitos anos no
primeiro ano, eu gostaria [de fazer mais cursos], porque tem muita coisa que eu já
esqueci. Essa parte de Matemática”. Por meio da entrevista, das conversas casuais ocorridas
no decorrer da pesquisa e das observações em sala, o ensino da Matemática sempre se
apresenta como uma das dificuldades específicas dessa professora: “eu acho que tinha que
ter mais capacitação [em Matemática], mas nós não temos nada”. Vale destacar que até o
primeiro semestre do ano de 2012, a meta do Programa Ler e Escrever consistia em
alfabetizar “todas as crianças com até oito anos de idade – (2ª série/3º ano) –, matriculadas na
21
O termo HTPC – hora de trabalho pedagógico coletivo – foi substituído em 2012 por ATPC – aula de trabalho
pedagógico coletivo – em razão das mudanças na carga horária. Antes, a HTPC tinha duração de 60 minutos e,
atualmente, a ATPC ocupa 50 minutos; daí a mudança do termo “hora” para o termo “aula”.
81
rede estadual de ensino” (FDE, 2010, p. 1). Em 2012, após quatro anos de funcionamento, a
formação específica para a área da Matemática também passou a ser foco desse mesmo
Programa. No decorrer de uma das sessões de ACS (aula de Matemática), Renata aponta com
otimismo a nova proposta da Secretaria da Educação: “as atividades que o Ler propõe são
boas. Agora começou a formação da área de Matemática [Educação Matemática nos Anos
Iniciais – EMAI] e eu acho que, cada vez mais, só tem a melhorar”.
Diversas propostas voltadas à formação continuada de professores na área da
Matemática têm se implementado no Brasil nos últimos anos, em grande parte decorrentes
dos resultados desfavoráveis advindos do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e
do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp). Além das
avaliações governamentais, diversos estudos indicam que os alunos não têm conseguido
desenvolver conceitos e habilidades básicas envolvidas na aprendizagem considerada
desejável para o ensino fundamental I. O quadro agrava-se ainda mais quando se sabe que
também a formação docente está sujeita a deficiências conceituais, em especial no que
concerne ao campo da Matemática (PIROLA, 2000; QUINTILIANO, 2005; VIANA, 2005;
PIROLA; MORAES, 2009).
Os alarmantes resultados advindos das avaliações governamentais e das pesquisas
acadêmicas elucidam a “natureza das dificuldades dos alunos e professores no processo
ensino-aprendizagem da Matemática” (PIROLA; MORAES, 2009, p. 183). A articulação das
discussões teórico-acadêmicas e dos índices das avaliações deveriam subsidiar as propostas
veiculadas nos programas de formação contínua de docentes. Contudo, apesar do quadro
atual, talvez seja muito audacioso pretender uma reversão instantânea tanto dos resultados
obtidos nas avaliações quanto das lacunas da formação inicial e continuada. Conhecer as
expectativas dos docentes, suas atividades educativas e seus conhecimentos prévios,
permitiria não apenas novas reflexões, como também impulsionaria um movimento de
ressignificação do ensino necessário para o ensino fundamental. Assim, o pressuposto
primordial balizador dos processos formativos deveria residir no fato de que:
[...] o conhecimento adquirido na formação inicial se reelabora e se
especifica na atividade profissional para atender à mobilidade, à
complexidade e à diversidade das situações que solicitam intervenções
adequadas. Assim, a Formação Continuada deve desenvolver uma atitude
investigativa e reflexiva, tendo em vista que a atividade profissional é um campo de produção do conhecimento, envolvendo aprendizagens que vão
além da simples aplicação do que foi estudado (MURTA; SILVA;
CORDEIRO, 2007, p. 8).
82
Apesar de a professora salientar a qualidade do Programa Ler e Escrever, é possível
perceber, nesse processo formativo, alguns aspectos que se encontram mal elaborados e que
entram em contradição entre si, principalmente no que diz respeito ao papel da coordenação
pedagógica:
[...] o Ler é assim, mas ele tem que funcionar, né? Este ano ele está meio
assim... Por conta da carga de trabalho do próprio coordenador
pedagógico, não tem sobrado tempo de estudo com a gente... E tem o
nosso lado, que a gente acaba que fica mais no “blábláblá” do que no
estudo mesmo.
De fato, os momentos de formação continuada previstos no Programa Ler e Escrever
devem ser conduzidos pelos coordenadores pedagógicos (CPs) de cada escola. Para que esses
coordenadores tenham condições de formar seus professores, o Programa oferece-lhes oito
horas semanais de formação na diretoria de ensino de sua região (formação em serviço). O
processo de formação continua junto aos professores nas diferentes unidades escolares, em
um período de quatro horas uma vez por semana, constituindo-se, também, em uma formação
em serviço.
Além disso, prioriza-se que a ATPC também seja utilizada pelos CPs para trabalhar as
propostas do Programa com os docentes. Esse modelo de formação foi adotado pela SEE de
São Paulo com o intuito de facilitar e ampliar largamente as possibilidades de formação de
seu professorado, levando-as a efeito nas próprias escolas da rede estadual. No entanto, para
que essa proposta pudesse se viabilizar, seria necessário que todos estivessem engajados em
um trabalho colaborativo voltado à utilização do Programa no decorrer das atividades com os
alunos. É interessante considerar que a professora atribui as falhas no processo formativo não
apenas à coordenadora pedagógica, mas também a si mesma e aos próprios colegas de
trabalho. Dessa forma, ela não parece se isentar de responsabilidade diante dos problemas
identificados nesse processo: todos ficam no “blábláblá” e o processo formativo parece ser
desconsiderado.
Ao discutirem os elementos que constituem a formação continuada de professores,
Franco e Longarezi (2011, p. 574) salientam que o formador exerce a função de mediador, por
ser alguém que conhece aquele grupo ou que dele faz parte. Esse formador – no caso desta
pesquisa, a coordenadora pedagógica – não é apenas “um transmissor de informações,
técnicas e de procedimentos para aqueles que, supostamente, não os tenha.” Deveria existir,
assim, segundo os autores, uma postura epistemológica e filosófica que sustentasse “esta outra
83
forma de processar o conhecimento, de se fazer educação”, que considerasse a formação
contínua como um processo que se constitui “no coletivo de saberes e fazeres, na relação
dialógica e contextualizada”. No entanto, isso parece não acontecer na escola investigada.
Ainda ao trazer à tona sua apreensão acerca da formação oferecida pelo Ler e
Escrever, Renata aponta caminhos para superar a situação atual de sua instituição. Para ela, o
processo formativo poderia ser diferenciado “porque senão fica um repasse de informações
e, às vezes, nesse repasse nem tudo é falado. A gente não ouve da boca do próprio
formador as coisas como a coordenadora pedagógica tem a oportunidade de ouvir”. Por
essa fala, percebe-se a importância do papel do CP nos momentos de formação continuada:
como visto anteriormente, é ele quem media os conhecimentos e as ideias, promove as
discussões, a troca de experiências e direciona os encontros. Apesar de Renata compreender o
esforço da coordenadora pedagógica, ressalta que:
[...] preferiria mil vezes ter essa formação direta, como a coordenadora
tem. Acho que a gente aprenderia muito mais e utilizaria esse mesmo
tempo para a formação em si. Porque eu acho que escaparia desse
negócio de sair, de vez em quando, do foco do estudo, você entendeu?
Renata acredita que os momentos de formação continuada, quando realizados na
diretoria de ensino, são mais eficazes e mais proveitosos, justamente por evitar conversas
paralelas, que não favorecem o aprendizado coletivo e, tampouco, a colaboração entre os
pares. Ou seja, o modelo de “formação em cascata” privilegia os que são capacitados pela
primeira vez: depois, forma-se um telefone sem fio, com perdas substanciais de conteúdo e,
portanto, da significação pretendida. Segundo a docente, o conhecimento é transferido
diretamente da idealizadora da proposta aos coordenadores, como se eles não se apropriassem
de maneiras diferentes dessas informações, atribuindo-lhes sentidos e significados próprios,
particulares, idiossincráticos. Dessa forma, ressente-se da coordenadora pedagógica, por
acreditar que ela deixa de repassar aos docentes partes importantes do conteúdo, gerando,
dessa maneira, lacunas de conhecimento.
Não se pode desconsiderar essa razão alegada por Renata. Sua crítica incide sobre a
coordenadora de sua escola, que deixa de cumprir bem suas funções: organizar, planejar os
momentos formativos – e neles intervir –, para que o grupo possa ter uma formação centrada
nos aspectos e nas diretrizes do referido programa. Foi possível perceber que Vivian, a CP da
escola, relata, no decorrer de sua entrevista, que sua carga de trabalho a impede, de um modo
geral, de preparar a contento as atividades previstas, fato que gera resistências e má vontade
84
nos professores para participarem do Programa. Essa excessiva centralização na figura da
coordenadora – que se vê sobrecarregada, sem condições de atender a suas múltiplas funções
na escola e às resistências dos docentes em participar das ações de formação – pode ser
alcançada, segundo Franco e Longarezi (2011, p. 573), mediante:
[...] a construção de condições objetivas a partir das quais seja possível a
construção de trabalhos que não somente incluam os professores em seus
processos de formação, mas que também possibilitem a constituição de
coletivos que assumam suas necessidades e as transformem em atividades
formativas, potencializadoras do desenvolvimento profissional docente.
Os trechos analisados anteriormente remetem, também, à compreensão do gênero
profissional deste grupo. Para Clot (2006, p. 50), o gênero profissional é a experiência
histórica, coletiva, impessoal, processual, cognitiva e emocional: “uma forma de rascunho
social, que esboça as relações dos homens entre si para agir no mundo”. Por ser um sistema
em constante movimento, engendra normas e padrões que possibilitam saber “fazer o que há
de fazer, maneiras de fazer na companhia dos outros, de sentir e de dizer, gestos possíveis e
impossíveis dirigidos tanto aos outros como ao objeto”. É uma forma de vincular os atores de
uma situação profissional, como pessoas que apreciam, “compreendem e avaliam essa
situação da mesma maneira” (CLOT, 2006, p. 41). Desse modo, o grupo ocupa um papel
central, pois ele “não é uma coleção de indivíduos, mas uma comunidade inacabada, cuja
história define também o funcionamento cognitivo coletivo” (CLOT, 2006, p. 38).
Os movimentos do gênero são engendrados por uma multiplicidade de fatores
imbricados nas normas e nos procedimentos que os profissionais de um determinado coletivo:
[...] conhecem e veem, esperam e reconhecem, apreciam ou temem; é o que
lhes é comum e que os reúne em condições reais de vida; o que eles sabem
que devem fazer graças a uma comunidade de avaliações pressupostas, sem
que seja necessário reespecificar a tarefa cada vez que ela se apresenta. É
como uma “senha” conhecida apenas por aqueles que pertencem ao mesmo
horizonte social e profissional (CLOT, 2010, p. 121-122).
Se o coletivo profissional tem papel central nos movimentos e nas transformações do
gênero, é possível inferir que esse mesmo coletivo, seja pela precária mediação da CP, seja
pelo “comodismo” dos docentes, encontra-se fossilizado, sem conseguir avançar, portanto, em
função dos momentos de formação continuada. As conversas que fogem do foco do Programa
Ler e Escrever acabam sinalizando, implicitamente, as normas que regem o grupo. É assim,
como parte integrante desse coletivo, mas também como sujeito único, que a professora
Renata se apropria das ideias, das propostas e das atividades do referido programa, quase
85
alcançando sua meta: que a maior parte de seus alunos consiga concluir o 1° ano com domínio
da leitura e da escrita. Os que não atingiram essa meta ficaram dela muito próximos. Teria
sido possível obter melhores resultados, ou seja, um no qual a totalidade dos estudantes
tivesse aprendido a ler e escrever? Se sim, como?
Depreende-se, então, que o estilo de Renata é fundamental em sua tarefa de ensino. O
estilo pessoal é movimento, é uma “metamorfose do gênero em curso de ação”; é, também, “a
transformação dos gêneros na história real das atividades, no momento de agir em função das
circunstâncias” (CLOT, 2010, p. 126). Ao enfrentar as diversas variáveis que perfazem a vida
do gênero, Renata liberta-se e afasta-se de seu estilo pessoal no decorrer de suas atividades
docentes. No entanto, as (re)criações estilísticas não negam totalmente o gênero – não são
dois elementos que se opõem, tal como na lógica formal –, mas se interpenetram, num
movimento dialético de oscilação e manutenção. Vale destacar que esse movimento de
“libertação do sujeito para agir” não se volta somente ao coletivo e ao que deve ser feito;
dirige-se, também, à professora em tela, uma vez que:
[...] o estilo é, da mesma forma, a distância que um profissional interpõe
entre sua ação e sua própria história; é quando ele a adapta e a retoca,
colocando-se à margem dela por um movimento por vezes rítmico, que
consiste em se afastar dela, em solidarizar-se e confundir-se com ela, assim
como dela se desembaraçar, segundo as contínuas mudanças de perspectivas,
as quais podem ser, igualmente, consideradas criações estilísticas (CLOT,
2010, p. 128).
Durante a pesquisa, as falas informais da CP evidenciam alguns de seus
questionamentos quanto ao coletivo de professores. Se Renata consegue atingir a meta de
ensinar a maioria de seus alunos a ler e a escrever, por que os demais colegas tinham
dificuldades em fazê-lo, ou seja, em seguir o Programa e suas propostas? Talvez falte à
coordenadora um processo reflexivo e crítico acerca de alguns aspectos, a saber: a) de como
ela se apropria dos conteúdos do Programa Ler e Escrever em seu processo formativo; b) da
forma como conduz as próprias atividades junto ao grupo de professores; c) dos próprios
momentos de formação do Ler e Escrever, que constituem um dos poucos espaços de troca e
colaboração entre os docentes. De certo que a rotina e as atividades sob a tutela de qualquer
CP são inúmeras e exaustivas, mas a veiculação da proposta do programa e o processo
formativo do grupo de professores constituem sua responsabilidade. Desse modo, é
importante valorizar a construção de uma cultura colaborativa na própria unidade escolar,
com grupos de estudos, presença de mentores, trocas de experiências, entre outros, para que
86
cada um seja empoderado como docente, ao ter seu poder de agir aumentado e, também,
compartilhado com seus pares.
Ao comentar os materiais do Programa Ler e Escrever, a professora disse “eu gosto
dessa proposta e eu vejo que os alunos gostam também”. Talvez seja por isso que, ao
relatar sua experiência com o programa, ela tenha afirmado: “Já é o segundo ano que eu
estou trabalhando com um 1° ano seguindo o Ler e Escrever e é muito legal”. Ao
salientar os aspectos positivos dessa proposta, a docente ressalta que:
[...] os materiais são bons e me ajudam muito na minha prática. Igual, às
vezes, eles [os materiais] trazem outras opções para a gente fazer em sala
e, daí, dá para trabalhar com os alunos que já têm facilidade no assunto
e com aqueles que ainda não têm. Me ajudam no planejamento
também... Ajudam a ver outras possibilidades de trabalho.
Pode-se perceber, nesse trecho, a importância do material didático como balizador das
atividades de Renata com seus alunos. Embora seja altamente prescritivo, o material sugere e
possibilita que tanto essa professora quanto os demais professores ampliem suas
possibilidades de trabalho em sala de aula. Quando Renata afirma que “dá para trabalhar
com os alunos que já têm facilidade no assunto e com aqueles que ainda não têm”,
evidencia sua noção de desenvolvimento e aprendizagem, pois privilegia a heterogeneidade
de seu grupo. O fato de o professor reconhecer que os alunos são diferentes aumenta as
chances de equidade no ensino: todos têm oportunidades diversificadas de aprender. Se o
material didático – instrumento norteador e mediador – favorece esse processo, o docente
pode organizar os conteúdos curriculares de forma não mecanicista, ou seja, utilizando
estratégias de ensino e aprendizagem variadas, que possam promover a aprendizagem dos
alunos ou, segundo a ótica da Psicologia Sócio-Histórica, incidir na zona de desenvolvimento
proximal (ZDP) de cada aluno.
Ainda no que se refere aos materiais didáticos oferecidos pelo programa, no momento
da ACS (episódio Rapunzel), Renata reafirma a importância do projeto para suas atividades:
“[...] o Ler é um norte para o meu trabalho. Eu gosto de tentar, sabe? E o Ler me dá essa
oportunidade de experimentar e isso eu gosto muito. Tem dado muito certo”. O
programa, com base na abordagem da Psicologia Sócio-Histórica, fomenta a liberdade de
trabalhar com níveis de aprendizagem diferenciados em sala de aula, incidindo, então, nas
diferentes zonas de desenvolvimento do grupo de alunos. Por meio do excerto acima, é
possível inferir que os sentidos que constituem as atividades de Renata são marcados pela
busca, pela experimentação e pela novidade.
87
Mesmo diante da experiência de 12 anos como professora em salas de alfabetização,
Renata afirma ter aprendido – “não faz muito tempo”, com a formação no Programa “Ler e
Escrever” – que ela “deveria ler todos os dias [para os alunos]: Eu aprendi isso no Ler
mesmo”. Esse trecho ilustra a importância do processo formativo e do Guia de Planejamento
e Orientações Didáticas – Professor Alfabetizador 1° ano22 para as atividades da professora. A
prática como alfabetizadora permite a Renata vivenciar diversas formas de ensinar, porém o
Programa “Ler e Escrever” parece ter ampliado seus conhecimentos. Para ela, os ganhos em
sua aprendizagem são notórios e podem ser observados em sua própria prática: “eu vejo isso
nesse ano, como foi rico e foi uma coisa de louco. Eles aprenderam rápido demais”.
Embora tenha passado por diversos processos formativos e disponha de uma ampla
experiência prática em sala de aula, cabe perguntar por que é somente por meio do Ler e
Escrever que Renata aprende que deveria ler para os seus alunos com frequência. De fato, os
saberes docentes não advêm única e exclusivamente da prática, mas devem estar também
fundamentados na teoria. Contudo, a fala de Renata sobre sua aprendizagem reforça as
características altamente prescritivas do Programa Ler e Escrever, que recomenda ao
professor, no Guia de Planejamento e Orientações Didáticas, uma leitura diária aos alunos. No
entanto, considerando as lacunas apontadas por Renata sobre seu processo formativo, tudo
indica que, ao seguir essa prescrição, a professora tenha notado seus resultados positivos e,
por esse motivo, continua seguindo o modelo, como se fosse uma “receita pronta”. Os
aspectos que parecem prevalecer nas atividades de Renata são aqueles que têm a prática e o
saber fazer como referências centrais, sem a devida reflexão teórica sobre o processo, que
acaba sendo preterido, ganhando mais destaque o produto final. O movimento de ensino-
aprendizagem está, portanto, pautado essencialmente pela prática docente.
Na entrevista, ao falar das percepções da proposta do Programa Ler e Escrever, a
professora identifica mudanças no decorrer de suas atividades docentes e atribui isso tanto a
seu processo formativo quanto a sua prática: “Eu já vi uma diferença [na prática] e eu acho
que eu também já me aprimorei de um ano para o outro. [...] isso tudo recebendo crianças
com cinco anos e tem sido muito legal”.
22
Material elaborado e entregue a todos os professores da rede pública paulista. Nesse guia, os professores
encontram procedimentos e alternativas para estimular a aprendizagem de seus alunos. De caráter altamente
prescritivo, com uma linguagem fácil e acessível, é uma ferramenta que objetiva auxiliar o professor no
decorrer de seu processo de formação continuada e em suas atividades em sala de aula.
88
Outra questão importante é a aceitação da proposta por parte dos docentes. A
professora diz: “gosto dessa proposta e vejo que os alunos gostam também. [...] Funciona,
é rico o programa. [...] o programa é ótimo, é ótimo mesmo!”. Interessada em
compreender a avaliação dos materiais elaborados pela SEE de São Paulo, Rosa (2012, p. 22)
verifica que “as professoras foram praticamente unânimes em relação à sua utilidade para o
trabalho de sala de aula, referindo-se a eles como excelentes, muito bons, fáceis de entender”.
Apesar da aprovação dos professores em relação ao programa, Renata aponta algumas falhas
relativas ao conteúdo dos materiais propostos: “o dia do Índio, o livro propõe algumas
atividades, mas eu acho pouco e eu sempre complemento”. Vale salientar que foi possível
observar que a professora propõe atividades diversificadas e busca complementar a proposta
(embora siga as prescrições dos materiais do programa).
Outro entrave identificado por Renata é a distribuição tardia dos materiais: “o
material de 1° ano começou a vir aqui pra gente só nesse ano [2011], antes não tinha.
Ano passado eu trabalhei com um 1° ano e não teve material. Eu trabalhava com livro
meu mesmo, em cima do meu material”. Cabe aqui uma questão: como a SEE espera que os
professores consigam alfabetizar 100% das crianças com até oitos anos de idade, se uma das
ferramentas primordiais – os livros didáticos – não é distribuída para todas as escolas da rede
pública estadual paulista a tempo?
É interessante salientar que, no ano de 2012, os livros somente chegam à escola no
mês de junho. Para prosseguir com suas atividades, Renata utiliza os de 2011. Em conversas
informais, a professora sempre se queixa da falta do material, salientando o quanto seria
produtivo para os alunos se dispusessem desse suporte. Conversas informais com a CP
revelam que todos na escola questionam essa falta dos livros e que ela se sente pressionada,
sobretudo pelos professores. Em todos os encontros formativos dos quais participa, a falta de
material é sempre discutida com a formadora, porém não lhe cabe a entrega do material. Esses
entraves ilustram a importância do gerenciamento e do planejamento das políticas públicas,
em especial daquelas cujo foco é a melhoria da qualidade de ensino: além da formação dos
professores, é de extrema relevância que os alunos tenham seus materiais didáticos no início
do ano letivo, visto que são ferramentas que facilitam, em muito, o processo de ensino-
aprendizagem.
Apesar dessas adversidades, Renata salienta o prazer que seu grupo de alunos tem em
poder utilizar o material didático: “eles andam com os deles [livros do Programa “Ler e
Escrever”] na bolsa, porque eles adoram ler”. A relação que se estabelece entre o saber e os
89
processos de leitura e escrita (mediados pela professora) favorece a relação dos alunos com o
material didático. Além disso, para Renata, há outros desafios que motivam os alunos: “Têm
umas atividades de adivinhar, o material é muito rico”.
Entretanto, o relato positivo não afasta a visão das grandes contradições entre a meta
proposta pela SEE e os conteúdos presentes nos livros didáticos dos alunos. Ainda na
entrevista, Renata aponta que “o material que vem para o aluno, eu achei pobre, porque
eles [SEE] estão querendo muito mais do que aquilo que o material do aluno está
oferecendo”. Durante a ACS, a professora complementa seu ponto de vista sobre a temática:
“na verdade, o material de 1° ano, eu achei fraco para mim, você entende? Eu achei que
o de 2° ano para minha sala era muito mais interessante”. No decorrer das observações e
do processo de filmagem, foi possível perceber que a professora utiliza com seus alunos de 1º
ano os materiais destinados aos alunos de 2º ano/1ª série (livros de capa laranja). Os motivos
que balizaram essa escolha de Renata aparecem na ACS quando ela confirma que:
[...] usar o livro [de textos] laranja [do Programa “Ler e Escrever”] foi
uma opção minha. [...] Como o desenvolvimento da sala foi muito
rápido, eu percebi que muitas crianças se alfabetizaram num piscar de
olhos e, aí, eu queria mais e mais para eles. Daí, eu fui buscar esse livro.
Não é material de 1° ano... É um material de 2° ano, esse livro de texto. Só que, como tinham alguns na escola, eu busquei fora também e completei
para eles.
Desse trecho, pode-se depreender a atenção, o zelo e, principalmente, o engajamento
de Renata para com sua turma. Como garantir, entretanto, a aprendizagem de todos os alunos
em tão pouco tempo? De fato, a maioria dos docentes tem por meta, como resultado final de
sua atividade, que seus alunos aprendam da melhor maneira possível. Contudo, como é
possível garantir uma aprendizagem tão sólida se a professora se sente compelida a valer-se
de outros tipos de materiais, como os do 2° ano/1ª série?
As atitudes educativas de Renata são endossadas tanto pela equipe gestora quanto
pelos pais dos alunos. Nota-se que os familiares incentivam as condutas da professora:
conversam constantemente com ela sobre o aprendizado dos filhos e a elogiam muito. As
interações sociais com os pais e o retorno que eles oferecem para Renata contribuem,
indubitavelmente, para que a professora se valorize no exercício profissional. Mesmo
seguindo a prescrição do Programa Ler e Escrever, a utilização de um material que aguce a
aprendizagem dos alunos é apoiada pela equipe gestora da escola; ou seja, mostra-se possível
90
romper com o modelo, desde que os alunos demonstrem interesse pelo aprendizado. Assim, a
professora encontra apoio para buscar novas estratégias e materiais.
Quando diz “eu quero aprender para ensinar melhor porque [...] eu ainda tenho
muito que aprender”, os motivos e as necessidades de Renata vão se revelando; ao
considerar que “por trás de cada intencionalidade sempre há, portanto, motivos que
impulsionam/mobilizam/direcionam o sujeito com vistas à satisfação de suas necessidades”
(SOARES, 2011, p. 102). A motivação de Renata está em querer ser uma melhor professora e,
por isso, a necessidade de aprender mais. Embora esteja prestes a se aposentar, a busca por
novas estratégias e alternativas de ensino revela que ela se interessa por seu ofício e que não
está apenas esperando pela aposentadoria. O aprendizado próprio é valorizado: “eu acho que
aquilo que eu não souber fazer, eu não vou saber ensinar”. Demonstra buscar formação
profissional que a auxilie a lecionar sem tantas agruras ou sofrimentos, podendo ver, no
sucesso de seus alunos, o seu mesmo. De fato, conhecer os conteúdos a serem trabalhados,
bem como as práticas de ensino, pode dar mais segurança e confiança para ensinar. Contudo,
esse excerto evidencia a concepção de ensino-aprendizagem da professora, segundo a qual a
noção de transferência de conhecimento dos adultos para as crianças novamente se revela.
A busca, característica marcante no discurso da professora – que diz estar “sempre
buscando e quero mais, você entendeu? Eu estou em final de carreira, mas eu quero
mais!” –, parece partir, também, de uma necessidade de compreender os motivos que causam
fracasso ou sucesso nas situações cotidianas em sala de aula. Apesar de estar bem próxima da
aposentadoria, Renata procura aprender com a experiência, evitando os equívocos de
determinadas situações e fazendo disso um meio de encontrar alternativas para refazer o
processo: “Na verdade, eu sempre fui meio ‘atiradona’, assim. Eu sempre busquei, eu
sempre busquei. Eu nunca fui uma pessoa que fica parada, não. Ah, deu certo? Então
vamos lá! É uma oportunidade... então, vamos tentar”.
Se a necessidade de compreender suas dificuldades está tão presente, levando-a a
desenvolver suas atividades da melhor maneira possível, pode-se indagar em quais fontes
Renata se apoia para superar os problemas que encontra em seu cotidiano escolar. Muito
provavelmente, mais no senso comum do que em especialistas da área. Procura na internet
pistas de como sanar suas dificuldades: “eu busco e eu lanço assim: dificuldade em tal
atividade e vou buscando”. Contudo, na internet, muitas vezes, encontra-se o modelo
“receitas prontas” e tal situação faz com que a professora se afaste do processo reflexivo sobre
sua atividade e recaia, novamente, no empirismo, como amparo aos problemas do ensino.
91
Impossível negar que a rede virtual seja uma ferramenta que facilita e amplia a troca de
informações, constituindo subsídio de pesquisa para muitas pessoas. No entanto, se Renata já
apresenta uma formação precária, por que não busca teóricos que possam norteá-la de forma
mais adequada em suas atividades?
Ao buscar informações, a professora destaca que também procura outras coisas que
lhe despertam interesse, mas não podem ser realizadas: “eu busco na internet, às vezes, um
teatro, mas o custo... Porque o salário não proporciona. Mas eu gosto de teatro, shows, leio
bastante... Eu tenho o hábito de ir só, no banheiro, lendo. E, aí, eu pego um livro e leio
ou a [revista] Nova Escola, e leio. Essa é a minha prática”. Fica claro, nessa fala, que
Renata compreende que não apenas o conhecimento escolar e a prática docente são
importantes: um bom docente precisa conhecer seu mundo e estar nele inserido. Daí sua busca
de enriquecimento cultural, como investimento educativo. Quanto mais a professora tem
acesso a bens culturais (teatro, shows, cinema, entre outros), mais ela pode problematizar
questões advindas do mundo próximo ou distante, referente às crianças ou a si mesma, sobre
questões afeitas à escola ou não.
Além disso, seu próprio conhecimento se amplia e possibilita modificar suas
atividades profissionais ou como cidadã, mãe, mulher, favorecendo uma visão mais crítica e
reflexiva do mundo. Renata culpa a desvalorização salarial pelos muitos impedimentos de seu
enriquecimento cultural; realmente, os salários oferecidos nas escolas públicas atualmente não
são suficientes, embora existam diversas possibilidades de acesso aos bens culturais sem
custos. Além disso, os professores da rede pública de ensino, desde 2001, têm direito a pagar
50% do valor do ingresso em qualquer atividade cultural, de acordo com a Lei n° 10.858.
Uma marca muito forte do discurso de Renata está no aspecto volitivo, no querer,
expresso aqui pelo buscar aprender e ensinar melhor. No entanto, essa melhoria não pode ser
sustentada apenas pelo senso comum. A professora aparentemente não percebe que nem todas
as revistas e os artigos da internet que discutem a educação são bons, assim como o que nela
se divulga nem sempre é suficiente para amparar as atividades docentes. No caso de Renata,
há carência de formação e não apenas de informação. Ao que tudo indica, apesar de suas boas
intenções, ainda há um longo caminho para que ela chegue ao que idealiza.
92
4.3.3 Núcleo 3 – Concepção de aluno: suas percepções e seus sentimentos sobre seus
alunos
As ideias apresentadas neste núcleo buscam elucidar a concepção de aluno sob a ótica
de Renata. Para tanto, suas falas – advindas tanto da entrevista (grafadas em preto) quanto das
ACS (grafadas em marrom – Aula de Matemática; lilás – Alfabeto móvel; e magenta –
Episódio Rapunzel) foram retiradas dos seguintes indicadores: as mudanças da carga horária
do ensino fundamental I e a influência da formação dos alunos na educação infantil; a
percepção de Renata sobre sua turma; os sentimentos de Renata acerca de suas atitudes com
os alunos: “aquela angústia, aquela coisa que eu quero, que eu quero, que eu quero e, aí, acaba
não acontecendo e é onde me frustra”.
Ao comentar as mudanças na carga horária do ensino fundamental I e sua experiência
com classes de alfabetização, a professora diz que “ano passado [2010] foi o primeiro ano
que o 1º ano foi instituído no estado. Então, no ano passado, eu trabalhei com um 1º ano e
neste ano [2011], estou com um 1º ano de novo”. Ao explicitar como via tais modificações no
sistema de ensino, comenta, com certo tom de espanto, a idade das crianças: “Nós estamos
recebendo bebês na escola, gente!”.
A fala de Renata sobre a mudança no ensino fundamental refere-se à Lei Federal nº
11.274, aprovada em fevereiro de 2006, que alterou os artigos 29, 30, 32 e 87 da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/1996). Objetivando incluir uma parcela maior
de crianças no sistema educacional, essa lei estabeleceu novas diretrizes para o ensino
fundamental I e II, cuja duração passou de oito a nove horas. Desse modo, o último ano da
educação infantil é, atualmente, o 1º ano do ensino fundamental I, com matrícula obrigatória a
partir dos seis anos de idade. A lei determinava que as escolas se adequassem à nova
regulamentação até 2010. Na publicação, intitulada “Ensino Fundamental de nove anos –
orientações gerais” do Ministério da Educação, os argumentos para tal mudança são
justificados da seguinte maneira:
Os setores populares deverão ser os mais beneficiados, uma vez
que as crianças de seis anos da classe média e alta já se
encontram majoritariamente incorporadas ao sistema de ensino
– na pré-escola ou na primeira série do Ensino Fundamental. A
opção pela faixa etária dos 6 aos 14 e não dos 7 aos 15 anos
para o Ensino Fundamental de nove anos segue a tendência das
famílias e dos sistemas de ensino de inserir progressivamente as
crianças de 6 anos na rede escolar. A inclusão, mediante a
antecipação do acesso, é uma medida contextualizada nas
93
políticas educacionais focalizadas no Ensino Fundamental.
Assim, elas podem ser implementadas positivamente na medida
em que podem levar a uma escolarização mais construtiva. Isto
porque a adoção de um ensino obrigatório de nove anos
iniciando aos seis anos de idade pode contribuir para uma
mudança na estrutura e na cultura escolar. No entanto, não se
trata de transferir para as crianças de seis anos os conteúdos e
atividades da tradicional primeira série, mas de conceber uma
nova estrutura de organização dos conteúdos em um Ensino
Fundamental de nove anos, considerando o perfil de seus
alunos. (BRASIL, 2004, p. 17).
Por meio de sua experiência, iniciada em 2010 com alunos de 1° ano, as percepções de
Renata e as estratégias que utiliza para lidar com crianças mais novas vão ficando mais
aparentes:
Você exigir que uma criança fique sentada na carteira
cinco horas é demais para o meu gosto, por isso que às
vezes eu deixo... Quer correr, corre. É lógico que eu
não vou deixar [a criança se] machucar, eu dou um
pouco de liberdade, para ela poder extravasar, porque
eu acho o cúmulo isso!
Esse trecho indica que a professora tem certa flexibilidade ao trabalhar com alunos
mais novos. O próprio Ministério da Educação (2004) sugere aos professores do ensino
fundamental I que, ao receberem crianças mais novas, considerem que a prática educativa
requerer prazer e ludicidade, pois as brincadeiras espontâneas possibilitam a ampliação de
conhecimentos e, de acordo com a Psicologia Sócio-Histórica, impulsionam também o
desenvolvimento infantil como consequência. Renata ilustra, então, algumas das brincadeiras
que seus alunos fazem, utilizando, como exemplo, três meninos pertencentes a seu grupo:
“Eles adoram brincar de lutar, o Roberto, o Tadeu e o Hernesto. São os três e é demais!
Mas eu percebo que, se eu deixo um pouquinho, eles acabam voltando para a atividade
menos estressados. Então, eu procuro ficar sempre olhando, para eles não se machucarem”.
A simples escuta do relato pode levar a entender que Renata dá liberdade a seus alunos
ou que, com essa estratégia, que “desestressa os meninos”, a professora despenderia menor
esforço para manter a disciplina e, consequentemente, não teria tanta dificuldade em atender
ao restante do grupo. Contudo, uma análise mais detida permite ver que, na verdade, essa
parece ser uma estratégia para manter a ordem da sala de aula, pois, liberando os três alunos
para brincar, ainda que sob sua supervisão, há menos ruído e também menos movimentação
94
dos alunos pela sala. Mas isso não significa ensinar os meninos mais jovens, mas sim
abandoná-los, pois as aulas correm seu curso sem incluí-los.
Como a experiência embasa essa postura que desconsidera o aporte teórico, tal como
visto no núcleo 2, a professora não percebe que existem outras atividades ou brincadeiras –
que não as de luta – para que seus alunos, mais especificamente esses três, possam liberar
suas energias e, assim, voltar às atividades didáticas com um melhor nível de concentração.
Muito provavelmente, as atividades propostas pela professora desconsideram os
conhecimentos e as experiências prévias dos alunos, bem como suas possibilidades de se
manterem atentos ao que Renata tenta lhes ensinar.
Vale destacar que, no percurso das observações das aulas, os alunos Roberto e
Hernesto são os que mais apresentam dificuldades: eles quase não tomam notas, têm
dificuldades de leitura, são os mais dispersos. Essa dispersão pode atribuir-se à falta de
significado, para as crianças, do que lhes é proposto, pois diversas vezes não fazem o que a
docente lhes sugere. É possível perceber, então, que a “liberdade supervisionada” consiste em
um artifício que facilita a manutenção da ordem da sala, uma vez que, se estão livres
brincando, já não se levantam e não é necessário que Renata os repreenda.
É perceptível que, após as brincadeiras de luta, os alunos voltam para suas carteiras e
lá permanecem “acalmados” por um tempo; contudo, esse tempo não implica envolvimento
nas tarefas propostas, mas apenas atendimento à ordem da professora. Depreende-se, portanto,
que a docente deixa de oferecer atividades diferenciadas para que todos os alunos tenham
oportunidades de aprender, de acordo com seu ritmo e com seus pré-requisitos. De fato, vê-se
um resultado contrário: quanto menos a atividade leva esses aspectos em conta, mais agitadas
ficam as crianças. Ao olhar seus colegas trabalhando e sem compreender o que e como eles
podem fazer sua lição, só lhes restam o passeio pela sala e as furtivas brincadeiras com os que
vivem a mesma situação. A queixa quanto à idade dos alunos permanece constante no
decorrer do discurso de Renata. Ela enaltece, porém, as vantagens da educação infantil pelo
impacto causado nas crianças:
[...] eles estão vindo muito novinhos... No ano passado, eu até falei
para as meninas [outras professoras] – e isso é uma observação minha,
pela minha prática, tá? – as crianças já estão vindo mais maduras,
você entendeu? Então, a gente já vê que é uma mudança lá na
base mesmo, lá na educação infantil. Porque esse ano foi muito
rápido e eles se alfabetizaram muito rápido!
95
Renata reconhece, desse modo, que a passagem pela educação infantil, bem como a
renovação das práticas educativas levadas a efeito junto às crianças de zero a cinco anos
surtem um efeito positivo. Os estudos de Rossetti-Ferreira, Amorim e Oliveira (2009, p. 2)
mostram que Renata está correta. Para as autoras, esse nível escolar vem sofrendo um
processo intenso “de revisão de concepções e de seleção e fortalecimento de práticas
pedagógicas mediadoras da aprendizagem e desenvolvimento das crianças em creches e pré-
escolas”. Possivelmente, a professora, ao tecer tal comentário, estivesse “colhendo os frutos”
dessas novas práticas adotadas na educação infantil. Em uma das ACS, Renata reitera essa
apreensão positiva do trabalho educativo que se realiza nesse nível de ensino, salientando que,
quando bem estruturado, possibilita uma educação de melhor qualidade aos alunos e,
consequentemente, facilita aquele dos docentes de anos seguintes:
[...] eles estão vindo melhores da educação infantil, a base já está mais
estruturada. Eu acho que nós estamos num trabalho de sequência,
porque, às vezes, quando eu vou contar uma história, muitos já
ouviram, né? E ouviram lá na educação infantil... Nós estamos colhendo
os frutos agora. Eu acho que nós estamos no caminho certo. Nós temos
que tentar, arriscar. Nós vamos errar? Vamos sim! Mas temos que
tentar!
Ao exemplificar os benefícios de uma educação infantil de boa qualidade, Renata
recorre à “contação” de histórias. Ora, uma das premissas básicas do Programa Ler e Escrever
é a leitura diária com as crianças. Evidencia-se que, por meio dos conhecimentos adquiridos
nesse programa, a professora passa a seguir essa prescrição: leitura diária com os alunos. Mas
por que motivo ela menciona justamente a “contação” de histórias? Muito provavelmente,
porque ela – apenas após ter participado do Programa Ler e Escrever – adota a prática de ler
todos os dias com o grupo. Inegavelmente, houve investimentos públicos na formação dos
professores que trabalham na educação infantil e tais aspectos devem ter incidido na educação
dada aos alunos. No entanto, é só depois da formação no Programa Ler e Escrever que a
leitura diária se configura, para Renata, como um aspecto central do processo de letramento e
alfabetização nessa fase escolar. Isso explicita que, a despeito de essa ser uma visão que se
revela otimista diante do campo educacional, o que de fato se sobressai são as mudanças
práticas na atividade da professora: se não houvesse se apropriado da prática de leitura diária,
talvez não existissem evidências para ela de melhoria na educação infantil.
No que tange ao comportamento dos alunos, novamente Renata aparenta ter uma visão
otimista: “Eu não tenho problemas sérios com a minha sala, eu não tenho, não”. No
momento da ACS, reitera essa percepção, enaltecendo o comprometimento do grupo: “Estou
96
[satisfeita com a turma] mesmo porque eles foram muito espertinhos. Não teve muito
desgaste, sabe? Até em comportamento... eu não tive muito problema: esse ano, a minha
sala foi bem tranquila, bem comprometida”. Apesar de a professora ressaltar o bom
comportamento dos alunos, o barulho e as conversas paralelas no decorrer das aulas parecem
incomodá-la muito: “a minha sala é barulhenta e eu não consigo fazer eles ficarem
quietinhos! Mas eles participam muito, eles querem, eles gostam e eles se envolveram
comigo! O avanço é notório”. Contudo, o barulho ou a desordem parecem não interferir,
diretamente, em suas atividades docentes: “Tem hora que até eu falo para as meninas [outras
professoras]: ‘eu consigo isolar. Mesmo eles, com todo o barulho, eu consigo isolar isso’”.
Em conversas informais, ao longo da coleta de dados, Renata sempre demonstra
desagrado com o barulho de seu grupo de alunos. Embora afirme que o ruído não lhe parece
completamente negativo, as duas sessões de ACS foram de extrema importância para que a
professora percebesse que o ruído do qual reclamava não era única e exclusivamente de sua
turma. Como as salas de aula foram construídas umas ao lado das outras, o barulho vindo de
fora e de outras salas de aula é maior do que o da sua própria turma. No percurso de duas
sessões de ACS (duas aulas diferentes, filmadas em dias diferentes), a professora foi
convidada a focar seu olhar no comportamento de seus alunos. Com isso, foi possível notar
algumas mudanças em sua visão: “Nossa, eles estão quietinhos mesmo, nem eu, na hora,
tinha percebido isso... Eu acho que eu vou passar esses vídeos para eles, acho que eles
vão gostar de se ver... Nossa, é mesmo: o barulho de fora da sala é maior do que o de
dentro da minha sala”.
Em relação às atitudes tomadas frente aos alunos, a professora diz: “Eu acho que eu
falo muito alto, eu grito... Não é que eu grite, mas meu tom de voz já é alto mesmo, eu
acho que eu teria que trabalhar esse meu lado... E... Eu queria ser melhor!”. Em uma das
sessões de ACS, mesmo antes de o episódio terminar, a professora comenta que se acha
severa com seus alunos. No decorrer do diálogo com a pesquisadora, Renata retoma essa
apreciação: “É, eu achei que eu sou brava [risos]. Ah, tem horas que eu sou chata mesmo,
mas, na verdade, eu quero que eles aprendam e quando algumas crianças perdem o
foco, isso é que me deixa meio brava mesmo!”.
Fica claro, portanto, que, segundo Renata, o comportamento ideal para crianças de seis
anos de idade é o seguinte: todos quietos, focados na atividade, sem interagir uns com os
outros. Daí o fato de ela, em alguns momentos, exaltar-se com a turma. Renata compreende as
mudanças na faixa etária atendida pelo ensino fundamental I na rede pública estadual de
97
ensino e que crianças mais novas, com outras necessidades e possibilidades em termos de
desenvolvimento, estão sendo aí atendidas. Entretanto, recorre, em alguns momentos, a uma
postura autoritária para por fim ao ruído das crianças. Tal incômodo lhe ocasiona o barulho
que nem mesmo percebe que ele não se deve somente a conversas ou movimentações em sala,
mas a interferências externas. Ainda na mesma sessão de ACS, ela se refere às expectativas de
aprendizagem que tinha para sua turma e ao desagrado sentido ao observar a dispersão dos
alunos:
Eu quero conseguir fazer com que eles aprendam e eu acho que às vezes
eles dispersam um pouquinho. Um pouquinho não: bastante, porque eu
acho que tem algumas crianças que dispersam muito. O que eu tento
fazer é arranjar um jeito mais próximo para que todos estejam
envolvidos mesmo.
Se a professora compreende que as crianças atendidas atualmente no 1º ano são mais
novas e que apresentam necessidades diferenciadas, por que a dispersão do grupo tanto a
incomoda? Provavelmente, de acordo com um trecho retirado da entrevista, porque isso a
frustra:
Eu fico angustiada com isso, você entendeu? Eu sei que eu sufoco
eles [os alunos] um pouco, eu sei que cada um tem o seu tempo;
mas, às vezes, eu quero ir no meu tempo e essa ansiedade acaba
prejudicando um pouco. Eu acabo ficando muito em cima de uns
alunos e eu acho que isso acaba prejudicando, você entendeu? Ou
mesmo aquela angústia, aquela coisa que eu quero, que eu quero,
que eu quero e, aí, acaba não acontecendo. É onde me frustra.
Suas expectativas, quando não realizadas, geram um sentimento negativo, como se ela
falhasse no decorrer do processo de ensino-aprendizagem. Embora ela vincule a dispersão à
falta da esperada aprendizagem de seus alunos, é possível perceber que a frustração
desencadeia uma postura autoritária, que se revela por meio da fala em tom enérgico para
colocar ordem e silêncio na sala; impaciência; ameaças, etc. Nesse sentido, o momento da
ACS parece ter constituído uma rica oportunidade de auto-observação e de tomada de
consciência desses aspectos de sua atuação como docente.
Ao final dessa sessão, já com a câmera desligada, Renata salienta que não se sentiria à
vontade para realizar as sessões de ACC. O motivo principal alegado é o sentimento de
desconforto sentido diante das imagens e de não querer provocá-lo em outro colega de
profissão – fosse ele de sua unidade escolar ou um professor convidado de outra instituição. A
professora afirma ter percebido, em alguns momentos, o quanto era ríspida com os alunos e
98
que, por essa razão, não gostaria que ninguém mais a visse naquela situação. A
autoconfrontação pôde, portanto, facilitar o processo reflexivo de Renata sobre seu modo de
atuar como professora e, tendo em vista seu pedido, foram cumpridas apenas as três sessões
de ACS.
4.3.4 Núcleo 4 – Planejando e executando as atividades docentes
Este núcleo tem como eixo as estratégias pedagógicas utilizadas por Renata em suas
atividades de ensino e aprendizagem. Ao tratar dos entraves do espaço escolar e dos recursos
utilizados pela docente, é possível notar, via entrevista, certos aspectos objetivos, próprios da
estrutura da escola em que leciona, que impedem Renata de se valer, por exemplo, do acesso:
à internet, que é um recurso que eu gostaria de estar utilizando
com eles [os alunos] porque têm muitos sites de jogos e daria para
fazer um trabalho bem legal. Mas, muitas vezes, você não pode
usar porque ou não tem, ou não é permitido, ou não está
funcionando. Além disso, [...] aqui na escola, a biblioteca é
ocupada por uma sala de aula. Então, fica difícil [usar a biblioteca]
porque você tem que deslocar a professora e sua turma para outro
lugar.
Esse fragmento é de extrema importância para a compreensão dos entraves
encontrados pela docente no decorrer de suas atividades. Os recursos digitais poderiam,
efetivamente, auxiliá-la no processo de ensino-aprendizagem, mas, por falta de manutenção,
os computadores da escola estão inutilizados, o que dificulta o contato dos alunos com as
tecnologias da informação e, de certa maneira, impede-os de ampliar seus conhecimentos por
meio de outras ferramentas que não aquelas mais conhecidas – lousa, giz e material didático.
Interessa observar, ainda, que a estrutura física da escola não comporta as prescrições do
Programa Ler e Escrever: a biblioteca da escola não pode ser utilizada, pois está sendo
ocupada por uma sala de aula. Se o Programa Ler e Escrever incentiva a apreciação de textos
literários diversificados, como atender a essa recomendação se não se pode ter acesso à
biblioteca – espaço fundamental para o contato com materiais desse tipo?
Como visto no capítulo três deste estudo, o Programa Ler e Escrever fornece acervo
de 43 livros de literatura infantil por classe. Renata utiliza esse material – além do livro de
texto do aluno – para poder responder ao solicitado na formação recebida. Seria interessante a
professora utilizar a biblioteca como espaço para contar histórias, uma vez que isso permitiria
99
a seus alunos ter contato com outros tipos de materiais e com outros gêneros textuais. Além
disso, o uso da biblioteca poderia despertar o interesse dos alunos pelas atividades de leitura,
quando muito por frequentar um espaço com novas possibilidades de aprendizagem. Percebe-
se, então, que a própria estrutura da rede pública de ensino impede o uso de estratégias
diversificadas para incentivar e apoiar o aprender.
Além das atividades que poderiam ser realizadas por meio de recursos digitais e do
uso da biblioteca, a professora destaca a importância da maior oferta de atividades culturais –
passeios e estudos do meio – e de brinquedos para os alunos: “falta [melhorar] essa parte de
passeio, de melhorar a parte de brinquedo”. Essa queixa é legítima e procedente. No
decorrer da coleta de dados, observou-se que não há, no prédio, nenhum tipo de brinquedo, de
modo que a única alternativa de diversão livre para os alunos é a quadra de esportes, só
utilizada sob a supervisão de algum professor. Desse modo, as atividades docentes são
desenvolvidas única e exclusivamente no ambiente de sala de aula, uma limitação séria à
adequada implementação das propostas do Programa Ler e Escrever, que postula a
importância de as crianças explorarem e diversificarem seus ambientes de aprendizagem.
A docente faz referência também a seus anseios: “eu gostaria de ter um apoio de
profissionais especializados, do tipo fonoaudiólogo, porque eu acho que tem criança que
precisa. Eu acho que tinha que ter esse apoio externo, para poder facilitar ainda mais
para a criança, porque acaba sendo para ela um entrave”. Sem negar a importância desses
profissionais, a queixa é vaga, sem explicitar os motivos pelos quais um especialista em
distúrbios da fala deveria compor o quadro dos profissionais da escola, o pedido soa mais
como solicitação de ajuda para cumprir, mais facilmente, as atividades docentes.
Embora já se tenha acesso a inúmeros artigos e livros que abordam o problema da
patologização dos alunos em processo de aprendizagem (PATTO, 1999; MAIA, 2007;
VASCONCELOS, 2010; PROENÇA, 2011), de nada adiantaria retirá-los da sala de aula para
tratamentos fonoaudiológicos, perdendo, com isso, as lições dadas pelos professores. O
próprio relatório do Saresp (2005) aponta que as escolas cujos alunos apresentam os melhores
rendimentos são justamente aquelas nas quais os professores assumem plenamente sua
função, sem delegá-las para outros profissionais, que não são, de modo algum, especialistas
em aprendizagem.
Renata esclarece como traça suas metas e como faz a avaliação do desempenho de
seus alunos: “as minhas metas são traçadas no início do ano e eu espero que eles saiam
todos alfabetizados. Se eu não consigo isso, eu sofro, eu sofro”. A professora relata ter
100
intenso envolvimento afetivo com seu trabalho: o fato de um aluno não atingir as expectativas
da docente – não se alfabetizar – reverbera em seu trabalho, como se ela tivesse falhado no
decorrer de suas atividades. No entanto, segundo Brando (2012, p. 117), espera-se, na cultura
escolar atual, que nem todos os alunos saiam totalmente alfabetizados do 1° ano: “a mesma
cultura prega que cabe à professora do ano seguinte estar preparada para completar esse
processo”. Desse modo, se no núcleo três Renata demonstra uma postura flexível e respeitosa
diante da idade, do conhecimento e da experiência de seus alunos, aqui a professora revela o
desconforto pela eventual falha em suas expectativas sobre o processo de aprendizagem de
seu grupo. Com base nisso, é possível compreender os motivos que a levam a adotar uma
postura mais autoritária quando os alunos estão dispersos ou não se interessam pelas
atividades propostas.
A avaliação é, para Renata, participativa: “Eu faço assim: traço uma meta para o
ano, mas como eles estão no primeiro ano, eu avalio mais a participação deles nas
atividades em sala”. Essa fala aponta que a professora, ao definir os objetivos a serem
alcançados no ano letivo, utiliza um determinado critério, como poderia empregar outro. Não
faz uma avaliação diagnóstica para verificar o nível de conhecimentos prévios, a experiência
anterior das crianças, quais são as eventuais hipóteses levantadas para a escrita. Nesse sentido,
se para ela a avaliação é o crescimento que o aluno mostra no dia a dia, como estabelece seu
patamar de entrada? Como sabe, sem uma avaliação inicial, o que é aquisição nova –
crescimento – em termos de aprendizagem?
Ao articular vários aspectos de sua fala, vão se revelando aspectos de sua
subjetividade: quando os alunos não aprendem, as metas da professora não podem ser
alcançadas e, para que isso não aconteça, é preciso atuar junto a algumas crianças sem
liberalidade alguma, autoritariamente. O suposto barulho, a dispersão e as brincadeiras de luta
aparentemente impossibilitam a aprendizagem, que deve ser obtida mesmo que à custa de
“sufocar” as crianças, como visto no núcleo três. Ao ser questionada sobre o planejamento de
suas aulas, a docente relata:
Eu planejo [as aulas] na minha casa mesmo, de manhã porque eu acordo
muito cedo e é o horário que eu mais [me] concentro mesmo. Às vezes eu
uso o horário do Ler também... Procuro a Coordenadora e as minhas
colegas para ter novas ideias em cima daquilo que eles [Programa “Ler e
Escrever”] estão propondo, seleciono algumas atividades. Mas,
basicamente, eu faço isso na minha casa mesmo.
101
Por meio desse excerto, é possível perceber que as atividades de planejamento são
realizadas em horários não contemplados no Programa Ler e Escrever; no entanto, nas
diretrizes que regem o referido programa, há um período na grade para que os professores
possam planejar suas aulas na escola. A docente não utiliza esse tempo e, ao não fazê-lo,
possivelmente perde diversas oportunidades de troca com seus pares. Isto é, não aproveita ao
máximo a boa relação entre os professores e a coordenadora pedagógica da escola, uma vez
que, quando Renata tem alguma dificuldade, não hesita em pedir ajuda. Além disso, outro
aspecto relevante vincula-se novamente aos sentimentos da docente em relação a sua
atividade e à forma como se reorganiza para dar conta da prescrição das tarefas:
Às vezes eu planejo e chega aqui e não dá certo, mas aí eu faço uma
adaptação e procuro retomar [o conteúdo com os alunos] no outro dia.
Nossa, porque às vezes é complicado, porque você vem cheia de gás e aí
desestrutura tudo. Tem que ter um jogo de cintura para lidar com isso.
Como se pode notar, as dificuldades de Renata no decorrer do planejamento das aulas
e das atividades reaparecem. Todavia, quando uma atividade não sai como previamente
planejada, ela procura outras formas de trabalhar os conteúdos e os retoma com o grupo em
outra ocasião. O “jogo de cintura” é central para a manutenção de sua relação com os alunos,
para seu processo reflexivo acerca de suas práticas e para a reorganização rumo à retomada do
conteúdo proposto.
Quando indagada sobre os aspectos teóricos e práticos que norteiam suas atividades
docentes, Renata afirma que seu “conhecimento teórico ajudou muito, mas a minha prática
também”. É possível perceber a influência dos processos formativos – mesmo que precários e
frágeis – aos quais foi exposta em sua trajetória profissional, e também a relevância de sua
prática como constituinte do seu modo de ser, pensar e agir. Renata expõe claramente que sua
formação teórica a impulsiona a buscar novas possibilidades: “depois que eu comecei a
estudar os autores, eu comecei a pensar diferente”. Ao falar sobre o início de sua formação
teórica, aponta que sua visão era distorcida: “Porque a gente tinha muito uma ideia assim:
‘no papel aceita tudo!’, você entendeu?”. No entanto, diante da vasta exposição a processos
formativos, atualmente ela tem um olhar diferente em relação ao assunto: “porque eu acho
que o autor quer te ensinar, quer te colocar; te dar subsídio para compreender aquilo
que acontece na sua sala de aula”.
Ao comentar as influências de seu processo formativo na sua prática, é possível notar
os movimentos de ressignificação da atividade docente da professora. Infelizmente, ainda é
102
muito difícil para os professores aliarem a teoria e a prática no decorrer de suas atividades:
parece que, idealmente, há um distanciamento entre o proposto pela teoria e o realizado
concretamente em sala de aula. Algo que sugere a ideia de que os teóricos não conhecem o
que se passa no espaço escolar e, por isso, seus discursos se tornam esvaziados de
significados, não favorecendo, consequentemente, a aprendizagem do professorado.
No entanto, muitos deles não levam em consideração a importância da reflexão teórica
como mediadora de sua prática: ao dispor de uma teoria que guia a prática, a atividade
docente pode ser ampliada e o poder de agir do professor, aumentado. A intencionalidade
pedagógica se interpenetra e se revela nas opções teóricas e nas práticas adotadas pelo
docente. No decorrer de suas atividades, Renata vai apresentando as transformações ocorridas
em suas atividades em função dos processos formativos: “Eu aprendi que eu tenho que
refletir sobre a minha prática, eu aprendi isso”. E, ao complementar sua fala, comenta que
sua forma de pensar sobre suas atividades foi se modificando; ou seja, não é apenas a pura
reflexão sobre a prática: “Uma coisa que me chama muito atenção é essa parte da
avaliação que é a ação-reflexão-ação, porque eu só mudei o meu jeito de pensar por
conta do estudo que eu fiz em cima da Jussara Hoffman”.
Aqui, evidencia-se a importância da formação teórica para os movimentos de
ressignificação das atividades docentes de Renata e os postulados epistemológicos que
subsidiaram a formação do professorado no Brasil, especialmente a partir de 1990. Nesse
momento histórico, o papel do professor, sua formação e seus saberes estão no bojo das
propostas de André, Davis, Gatti, Gauthier, Nóvoa, Placco, Schön, Tardif, e Zeichner. Além
de aprimorar a formação dos docentes, esses autores buscavam, também, legitimar a profissão
com reflexões e questionamentos que engendraram o campo da profissionalização do trabalho
do professor. Refletir sobre sua ação, agir em sala de aula e refletir novamente sobre o
realizado (reflexão-ação-reflexão), tal como nos diz Renata, é uma das mediações que
constituíram seu processo formativo e de tantos outros pertencentes à rede pública de ensino.
Os apontamentos da professora convergem com os achados discutidos no capítulo “Formação
de professores” deste estudo.
Vale lembrar que o quadro, no final da década de 1980, era dramático: como a
educação era um direito de todos os cidadãos brasileiros, o crescimento da rede pública de
ensino foi desordenado e pouco planejado; por consequência, os altos índices de repetência e
evasão escolar imprimiram marcas negativas no trabalho do professor (OLIVEIRA et al.,
2009; BRASIL/MEC, 1997). Diante dessa situação, qual caminho seguir? Como melhorar a
103
qualidade da formação rumo à equidade no ensino? Para Nóvoa (1991), existem três aspectos
de suma importância quando se trata de formação de professores: o pessoal, o profissional e o
organizacional. A formação crítico-reflexiva é o motor do desenvolvimento pessoal do
professor – sem reflexão e sem crítica sobre suas atividades, o professor continuaria a
reproduzir propostas elaboradas por outros, sem reconhecer sua autonomia. O
desenvolvimento profissional está atrelado ao processo de repensar o trabalho docente com
base nas regulações burocráticas do Estado que tencionam a atividade docente. Ao passo que
o organizacional está pautado pela transformação da própria organização escolar. Para Nóvoa
(1991, p. 25):
[...] a formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça
aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as
dinâmicas de autoformação participada. Estar em formação implica um
investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os
projetos próprios, com vistas à construção de uma identidade, que é também
uma identidade profissional.
Contudo, não basta apenas ensinar o professor a refletir sobre suas ações, sobre sua
autonomia e sobre seu processo de construção identitária; é preciso, também, levar em
consideração suas opções teóricas no decurso do processo formativo. Ao aliar teoria e prática,
a intencionalidade educativa se revela: a aula passa a ser vista “como um complexo de
múltiplas relações que busca articular, de forma intencional, a teoria e a prática. E por tratar-
se de uma prática pensada, a aula configura-se como uma das modalidades da práxis, a prática
educativa” (OLIVEIRA; ARNONI; ALMEIDA, 2007, p. 120). Ainda sobre a questão da
teoria e da prática, Renata comenta as influências do Programa Ler e Escrever em sua
atividade:
[...] eu gosto muito da nossa proposta [Programa Ler e Escrever], que é
baseada quase que unicamente em cima da Telma Weisz e eu acho que
ela acrescenta muito para o nosso trabalho. [...] a Telma Weisz, a gente
já sabia porque a Emília Ferreiro colocava isso [das hipóteses silábicas]
há quantos anos? Mas a gente não aplicava, você nem compreendia,
você não entendia aquilo e hoje para mim isso tudo é muito rico porque
ela é uma direção para o meu trabalho.
Esse trecho ilustra o movimento de apropriação teórica de Renata e também reforça as
críticas sobre os processos formativos das décadas de 1970 e 1980. A teoria era (im)posta,
sem que se levassem em conta as possibilidades concretas de cada professor em sua unidade
escolar. Logo, a teoria ficava descolada da prática, sendo impossível aliar uma a outra. Desse
modo, é possível perceber o quanto a formação de Renata carrega o movimento histórico
104
tecnicista. Apesar de ela ressaltar que já havia tido contato com a teoria, mas não a aplicava
por falta de conhecimento, revela não apenas as lacunas decorrentes de sua formação como
também exprime o movimento de formação dos professores no Brasil.
Embora destaque sua dificuldade de compreender as ideias de Ferreiro (1985), ou seja,
de aliar teoria e prática, Renata reconhece a relevância do conhecimento teórico. A despeito
de sua formação frágil, é possível perceber que os processos formativos, de certa maneira, a
impulsionam para a reflexão sobre suas atividades docentes. A procura de articulação teoria e
prática encontra-se presente em seu discurso:
[...] o meu conhecimento teórico ajudou muito, mas a minha prática
também [ajudou]. É uma bagagem muito grande, além disso, eu estou
sempre buscando e eu quero entender o porquê. Eu não aceito, tipo
assim: ah, o aluno não aprendeu. Não aprendeu, por quê? Por que um
[aluno] aprende e o outro não? Eu quero sempre uma explicação para
isso.
Essa fala demonstra que a professora busca compreender os movimentos de
aprendizagem de seus alunos e revela, também, seus próprios movimentos, no interior mesmo
de sua atividade docente. Um professor interessado em compreender as dificuldades de seus
alunos pode refletir sobre seu processo de ensino e, com base nele, pensar em novas formas
de ação. Todavia, pensar e refletir não são suficientes: é preciso que o processo reflexivo
engendre uma ação transformadora, que permita ao docente pensar e questionar
constantemente sua própria história, sua tarefa de formar sujeitos sociais e as marcas que quer
deixar em seu espaço de governabilidade. Como sustenta Freire (2001, p. 39), a reflexão deve
ser “um instrumento dinamizador entre teoria e prática”. Porém, tal como parece ser a
atividade de Renata, a reflexão pura sobre suas ações, sem o respaldo teórico, pode
desencadear um fazer tecnicista e acrítico, na medida em que se pensa no produto em lugar de
pensar no processo.
Ao comentar suas opções teóricas em sala de aula, a professora destaca: “Eu uso o
construtivismo mesmo. É lógico que tem hora que eu mesclo, porque dá assim... É... Eu
procuro buscar alguma coisa que dê significado para eles, então eu acabo mesclando
porque eu acho que deu certo e aí eu acabo trazendo para o meu dia a dia”. As
mediações que constituíram e ainda constituem seu processo formativo têm como base as
ideias advindas tanto do ensino tradicional quanto do construtivismo. A formação de Renata é
produto de um momento histórico marcado pela educação bancária, na qual as atividades
pedagógicas supunham transmitir aos alunos os saberes do professor, visto como único
105
detentor de conhecimento. O ensino tradicional, em voga até meados da década de 1980,
parece ter, portanto, deixado marcas fortes em Renata.
Impossível negar, diante do referencial teórico norteador deste estudo – o da
Psicologia Sócio-Histórica –, que suas experiências como aluna não a constituíram como
professora. Apesar de dizer que segue o construtivismo em suas atividades, a própria ação de
mesclar o tradicional e o dito “construtivista” aponta que, para a docente, esta última corrente
pedagógica não consegue abranger tudo que há a ensinar e a aprender. Evidencia-se que sua
atividade docente não pode ser considerada plenamente construtivista, embora existam, nela,
elementos construtivistas. Ou seja, é como se Renata dissesse que os pressupostos teóricos do
construtivismo são válidos, mas não para serem colocados em prática o tempo todo em sala de
aula. Daí a necessidade de mesclar o novo (o construtivismo) com o antigo (a pedagogia
tradicional), ambos sendo propostas construídas historicamente pela humanidade.
Segundo Macedo (1994), o que aflige muitos educadores é não saber diferenciar uma
proposta da outra e nem mesmo integrá-las, quando necessário, “em proveito da educação da
criança”. Diversificar as estratégias de ensino-aprendizagem ao acaso, sem cuidar de seus
fundamentos teóricos metodológicos, ora escolhendo atividade de uma proposta, ora de outra,
ora de uma terceira, foi o caminho encontrado por Renata para superar tanto suas dificuldades
em articular a teoria e a prática quanto para ensinar alunos diversos, com necessidades
também variadas. Não por acaso Renata diz:
O que me chama atenção [no construtivismo] é essa liberdade da criança
colocar aquilo que ela pensa, sabe? A nossa prática antigamente ela era
voltada ao certo, ou seja, só era considerado aquilo que era realmente
certo... E hoje não é assim, você considera o aluno que está avançando,
que está buscando, né? Essa reflexão [que o construtivismo] propõe eu
acho legal. Eu acho que, quando você dá liberdade para a criança
arriscar, você está fazendo ela crescer.
De fato, a concepção construtivista coloca o aluno no centro do processo: ele é
ativamente o construtor de seu próprio conhecimento. Suas interpretações de si e do mundo
não são desconsideradas, uma vez que balizam o processo de ensino-aprendizagem. Essa
concepção respeita os conhecimentos prévios do aluno – os saberes escolares e não escolares
–, valoriza a aprendizagem em grupo e em cooperação com os pares, dá ênfase ao
desenvolvimento do pensar. Por isso, reconhece a necessidade de o aluno expor o que pensa e
conhecer sobre tal ou qual temática. O professor assume, então, o papel de questionar, de
suscitar o desejo de conhecer, de incentivar os discentes a formular hipóteses sobre si e sobre
106
seu entorno (COLL, 1987; MACEDO, 1994). É possível perceber, no discurso de Renata,
aspectos nodais da concepção construtivista de ensino. A possibilidade que o aluno tem de se
expressar, a “liberdade da criança colocar aquilo que ela pensa”, revela o processo de
apropriação e as influências teóricas que atuam sobre a professora. A reflexão e a liberdade de
expressão, como citado acima, são proposições que guiam o professor no desenvolvimento de
uma atividade pedagógica construtivista. Ao complementar seu ponto de vista, Renata salienta
o papel do aluno na ação: “Na minha prática eu acho que é essa liberdade mesmo, essa
liberdade que eu dou para o meu aluno poder se expressar, dele poder agir, e isso eu
acho que é legal”.
No entanto, não é apenas a liberdade de expressão do aluno que orienta as atividades
de Renata. Ou seja, não é apenas deixar o aluno falar o que pensa sobre tal ou qual assunto.
No decorrer do seu discurso, ela fornece pistas de como lida com a “voz” do aluno: “eu
procuro entender, eu busco entender o porquê [a criança está falando aquilo], dar espaço
para a criança se colocar”. Ao se expressarem, espera-se que as crianças digam como
pensam, sentem e agem diante das situações propostas pela professora. Assim, entra em foco
a maneira como Renata lida com os erros cometidos pelos alunos:
O erro? Eu lido como construção. Uma reflexão para minha
prática porque onde meu aluno está errando é porque eu não
ensinei direito [risos]. Eu uso isso para traçar a minha aula, em
cima do erro deles. Em cima do erro deles é que eu vou aprimorar
a minha prática.
Apesar de Renata relatar que sua visão é construtivista, em vez de pensar que o erro do
aluno pode ser um caminho para compreender seu processo cognitivo e utilizá-lo como forma
de ajudá-lo a superar as barreiras cognitivas que está enfrentando (incidindo na ZDP, nos
dizeres da Psicologia Sócio-Histórica), ela segue outro caminho: acredita que os erros revelam
apenas a ineficácia do ensino. Essa visão aponta, novamente, que os preceitos do
construtivismo não foram totalmente apropriados por Renata e ressalta a ideia de que sua
atividade docente apoia-se apenas em alguns aspectos apregoados pelo construtivismo.
Percebe-se, também, que o erro do aluno é utilizado como forma de aprimorar a
atividade docente de Renata. Quando afirma que “onde meu aluno está errando é porque eu
não ensinei direito”, a concepção tradicional de ensino ressurge. Se no construtivismo o erro
é visto como “fonte de tomada de consciência” para o aluno e para o professor, tal como
sugere La Taille (1997, p. 36), por que Renata se responsabiliza pelos erros de suas crianças?
107
Ora, para a concepção construtivista, não existe uma única resposta correta, mas muitas. Se
devidamente analisados à luz da teoria piagetiana e da hierarquia dos conteúdos da disciplina,
os erros fornecem pistas importantes a respeito do raciocínio seguido por quem os cometeu. É
nessa medida que eles se tornam norteadores da atividade docente, pois o professor busca
entendê-los para estar em condição de auxiliar quem precisa superá-los. Nessa medida, as
palavras de Renata são verdadeiras: “em cima do erro deles é que eu vou aprimorar a
minha prática”.
Objetivando avançar na análise dos aspectos que constituem a atividade da professora,
as metas e as estratégias que utiliza para atingir os objetivos foram com ela discutidas. Renata
comenta: “eu tenho uma meta de atender, pelo menos duas vezes por semana, de modo
individual, aí eu planejo outra atividade para os outros que caminham sozinhos”. A
prática da professora está alicerçada, em alguns momentos, no atendimento individualizado
aos alunos com mais dificuldade. Essa maneira de atuar coincide com as propostas veiculadas
no Programa “Ler e Escrever”, que indica ser possível avaliar os avanços de cada aluno em
determinado período: “Conhecer o processo de cada criança ajuda a identificar as crianças que
necessitam de um apoio mais próximo, dá oportunidade para que se realizem intervenções
mais ajustadas para cada aluno e, também, permite que se organizem parcerias produtivas de
trabalho” (FDE, 2010, p. 46-47).
Além disso, o Programa Ler e Escrever – no Guia de Planejamento de Orientações
Didáticas para o Professor Alfabetizador 2° ano – incentiva que o docente:
[...] dedique maior atenção àqueles alunos cujos resultados não
correspondem às expectativas de aprendizagem [...]. Se mostrarem avanços,
mas estes ainda forem pequenos, o que fazer? Vários aspectos merecem ser
considerados, mas um deles é fundamental: essas crianças precisam do seu
acompanhamento diferenciado e próximo. Mesmo que contem com a ajuda
dos colegas nas propostas em duplas, é indispensável a intervenção direta e
constante do professor. Seu apoio será importante, em certos momentos, para
incentivá-las a continuar manifestando suas ideias. A relação que você
estabelece com a criança e com o que ela produz é fundamental para que se
sinta capaz de aprender. Em outros momentos, porém, cabem intervenções
mais explícitas para que fiquem atentas às características do sistema de
escrita; é o caso, por exemplo, de quando você pede para ajudarem a
escrever certas palavras, faz perguntas sobre as letras iniciais ou finais etc.
(FDE, 2010, p. 18).
Ao comentar suas estratégias de trabalho, certos aspectos da atividade docente de
Renata começam a ficar mais aparentes:
108
Eu dou uma lista de palavras e, com essas crianças que têm dificuldades,
eu vou trabalhar em cima da escrita mesmo, da reflexão de como se
escreve. Aqueles que já estão alfabéticos, vão trabalhar com a mesma
lista de palavras, mas com construção de frases e eu vou ampliando o
repertório e peço para eles usarem mais palavras. Eu peço para eles
explicarem o porquê.
Desse fragmento, pode-se depreender que a atividade proposta é igual para todos,
porém adota diferentes níveis de dificuldade, caracterizando-se como um trabalho
diversificado. A estratégia denominada “lista de palavras” é uma das prescrições do Programa
“Ler e Escrever”: sugere ao professor organizar, durante a semana, atividades desse tipo para
os alunos que ainda “não leem e nem escrevem convencionalmente, nos momentos em que a
turma estiver ocupada com questões de ortografia” (FDE, 2010 p. 90). A estratégia de Renata
é, portanto, válida para os preceitos do Programa, uma vez que:
[...] as listas foram construídas, de propósito, de modo a incluir itens que
começam com a mesma letra, com a intenção de favorecer a busca de outros
indícios, além das letras inicial e final. Enquanto circula pelas duplas,
procure questionar os alunos: o que vocês acham que está escrito aqui?
Aponte para um dos itens que marcaram. E, mesmo que respondam
corretamente, pergunte: como vocês sabem que está escrito isso? Se
responderem que descobriram porque começa com determinada letra, mostre
outro item com a mesma letra inicial e pergunte: vocês têm certeza? Esta
palavra também começa com... Espera-se que, assim, os alunos busquem
outros indicadores para justificar sua escolha, explicando, por exemplo:
termina por... ou tem o som da letra... (FDE, 2011, p. 90).
É interessante observar que Renata gosta de executar as atividades previstas na
referida proposta: “o trabalho com lista funciona para caramba!”. No Guia de
Planejamento, essa ideia é complementada, apontando o que se espera quando se propõe um
trabalho com essa atividade. As listas, desse modo:
têm por função organizar dados ou servir de apoio à memória; assim,
procure sempre apresentar aos alunos listas que tenham também um
propósito. Além disso, os elementos de uma lista costumam estar
organizados de acordo com um critério, e esse critério precisa ser conhecido
e compreendido pelos alunos (FDE, 2010, p. 32).
Após orientar o professor quanto aos objetivos do trabalho com listas de palavras, o
Guia de Planejamento propõe alguns exemplos que podem ser apresentados aos alunos: uma
receita, materiais importantes para que se possa construir um brinquedo, animais a serem
estudados num projeto, personagens de histórias entre outros (FDE, 2011).
Renata ao elucidar o que pensa sobre o trabalho individualizado, diz que:
109
Tem um dia que eu dedico para as crianças que estão com mais
dificuldade. É lógico que todos os dias eu trabalho com eles, mas mesmo
assim, se você trabalha... Eu acho que eles têm que se sentir inseridos
dentro da sala, você entendeu? Se todos os dias eu der uma atividade
diferente para eles, eles se sentem diminuídos... Então, eu procuro
equilibrar.
Para ela, é importante que todos os alunos se sintam bem e incluídos na turma. Mesmo
que o aluno apresente mais dificuldades, a atividade proposta é quase sempre a mesma, porém
para os que têm mais facilidade, a complexidade do solicitado é maior, como o pedido de que
escrever frases e rimas. Quando a professora diz que “procura equilibrar”, o zelo e cuidado
para com todos os alunos ficam evidentes. No decorrer de uma das sessões de ACS (Episódio
Rapunzel), a professora é questionada sobre um dos alunos. Por meio do episódio, é possível
perceber que Vinícius – por estar mais adiantando do que alguns de seus colegas de classe –
realiza a atividade rapidamente e a entrega antes mesmo que a professora termine de oferecer
as folhas para toda a sala. Renata explica da seguinte maneira essa situação:
Eu sempre tenho outra atividade para ele [Vinícius], porque, às vezes, eu
preciso de um tempinho a mais para aqueles que ainda estão
caminhando. Então, eu sempre dou outra atividade para ele, até porque
eu tenho que ocupar ele, porque senão ele pega fogo e dispersa os outros.
Ele é uma criança que precisa estar sempre ocupada.
Como visto, essa estratégia busca solucionar dois problemas: levar Vinícius a
caminhar também em seu ritmo, sempre aprendendo e, ainda, controlar seu comportamento,
evitando assim que os demais se dispersem de seus afazeres, caso o garoto fique ocioso. O
foco da estratégia de oferecer à turma a mesma atividade, mas com adequações ao
conhecimento e à experiência de cada aluno, contempla tanto o avanço da aprendizagem
quanto a tentativa de minimizar a indisciplina. Assim como Vinícius, o aluno Luís também
está mais adiantado do que os demais. Os dois sentam-se juntos, em duplas, e têm sempre
grande êxito nas atividades propostas por Renata. Quando a docente não planeja atividades
diversificadas para a dupla, outra estratégia de trabalho entra em cena: ela solicita aos garotos
que auxiliem os colegas que ainda não terminaram a tarefa. No entanto, para Vinícius, essa
não é uma prática bem-vinda, como informa a professora:
Para o Vinícius e o Luís, eu tenho que pedir um tempo mesmo, porque
eles terminam muito rápido. Mas, eu tento ocupar o tempo deles
pedindo para eles ajudarem os outros que estão com mais dificuldade,
embora o temperamento do Vinícius não seja o de ajudar: ele não gosta,
ele não tem paciência, sabe?
110
Vê-se que Renata tem boa percepção de seu grupo de alunos, mas, possivelmente,
existem falhas em seu planejamento. De fato, conhecendo o perfil das crianças (seu nível de
desenvolvimento, seus conhecimentos, seu modo de vida, seus gostos e antipatias), seria mais
prudente e interessante que outras atividades e outras estratégias fossem empregadas junto à
dupla adiantada ou, pelo menos, que aquela que tanto desagradava um dos meninos fosse
utilizada de forma menos recorrente. As dificuldades no planejamento ficam mais aparentes
quando a professora afirma que tem que pedir um tempo para os alunos, pois esse é um tempo
ocioso, em que, para agradar Renata, eles ou observam seus amigos trabalhando ou se
entediam. Em geral, no entanto, a opção é conversar sobre assuntos sem relação com o tema
da aula, algo que sempre causa dispersão de quem precisa estar atento.
Apesar das eventuais falhas no planejamento de suas atividades, a docente segue
escrupulosamente o que sugere o Programa Ler e Escrever. No Guia de Planejamento e
Orientações Didáticas para o Professor Alfabetizador, a instrução para que se formem duplas
de trabalho é apresentada aos professores como especialmente interessante, cabendo-lhes
organizar:
[...] as duplas de modo que os dois parceiros estejam em momentos
razoavelmente próximos em relação às hipóteses de escrita. [...] a função das
duplas não é garantir que todos façam as atividades corretamente, mas
favorecer a mobilização dos conhecimentos de cada um, para que possam
avançar. Lembre-se, também, de que uma boa dupla (a chamada dupla
produtiva) é aquela em que os integrantes fazem uma troca constante de
informações; um ajuda de fato o outro, e ambos aprendem. Preste muita
atenção às interações que ocorrem nas duplas e promova trocas de acordo
com o trabalho a ser desenvolvido (FDE, 2010, p. 19).
No caso dos alunos Vinícius e Luís, se Renata estivesse atenta, poderia empregar cada
um deles como monitor de outros alunos, situação que a liberaria para atuar mais de perto
junto aos que precisam mais de sua atenção, formando outras duplas. Os dois garotos
poderiam atuar como pares mais experientes para os que ainda estavam desenvolvendo a
atividade e, além do mais, fariam essa tarefa de ajudante do professor com prazer. Ela poderia
se valer dessa estratégia para não deixá-los ociosos e ainda diminuir o ruído advindo de
conversas paralelas.
Os diálogos decorrentes das sessões de ACS foram de extrema importância para que
as atividades docentes de Renata pudessem ser mais bem conhecidas. Ao se observar em
atividade, ela pôde falar de suas escolhas didáticas e de como elas se interpenetram nas
propostas veiculadas no Programa Ler e Escrever. Menciona, então, como faz para promover
111
a reflexão dos alunos sobre a escrita, mediante o emprego de alfabeto móvel e listas de
palavras, duas estratégias de ensino-aprendizagem oferecidas aos docentes no Guia de
Planejamento do Professor Alfabetizador.
Em uma das atividades realizadas, a docente emprega o alfabeto móvel, material
ofertado para todas as escolas da rede pública estadual de ensino, com o nome de “letras
móveis”, dado pelo Programa Ler e Escrever (ver capítulo dois deste estudo). Segundo
Renata, o objetivo a ser alcançado é “refletir como escrever as palavras. O alfabeto móvel
fui eu que escolhi para trabalhar com esse tema [festa de aniversário] e dá para perceber
que a riqueza de vocabulário de uns é bem diferente da dos outros”. As escolhas da
docente, portanto, coincidem com o prescrito pelo Programa Ler e Escrever, pois as letras
móveis:
[...] têm se mostrado um excelente recurso didático. Em primeiro lugar,
porque os alunos podem experimentar várias formas de escrever, sem ter de
se preocupar em acertar logo de início – podem fazer diversas tentativas e
refletir sobre aquilo que estão fazendo. A facilidade para fazer trocas e a
legibilidade também são pontos positivos. Há que se considerar que, para as
crianças no início do processo de alfabetização, o esforço para grafar as
letras pode ser quase tão grande quanto o esforço de pensar quais são as
letras que devem ser grafadas! Por isso, ao liberarmos os alunos da tarefa de
escrever de próprio punho, eles podem concentrar toda a atenção na análise
dos sons e na seleção das letras. As letras móveis também permitem que se
organizem intervenções que convidam os alunos a refletir sobre a relação
entre os segmentos da fala e da escrita (FDE, 2008, s/p.).
Além de compreender o objetivo da atividade, a ACS permitiu que a professora
começasse a ter um movimento no sentido de avaliar seus alunos, pois aponta que “dá para
perceber que a riqueza de vocabulário de uns é bem diferente da dos outros”. Ao
comentar a escolha da atividade realizada, Renata complementa: “[trabalhar o tema festa de
aniversário] veio do Ler, porque ele [Ler e Escrever] sugere que o professor trabalhe com
temas do cotidiano da criança e eu sei que esse tema eles gostam muito. E você vê, aí no
vídeo, que eles gostaram muito e que participaram bastante”. Vale salientar que, nessa
atividade – o uso do alfabeto móvel – os alunos são agrupados e Renata sugere que escrevam
algumas palavras utilizando as letras do alfabeto móvel. É perceptível o interesse e o prazer
do grupo em executar a tarefa: estão engajados, consultam-se mutuamente e,
surpreendentemente para Renata, nenhum dos alunos considerados como mais agitados deixa
de fazer a atividade proposta com empenho e dedicação. Até mesmo Vinícius – o que não tem
muita paciência para ajudar os colegas – lida muito bem com o grupo.
112
Ao se observar em atividade, Renata toma ciência de sua postura diante dos alunos e a
comenta: “as interferências, eu acho que dá para fazer na hora que surge a dúvida,
porque quando o aluno só escreve é mecânico, né? E, aí [com o alfabeto móvel], ele
vivencia, é o concreto. E, ainda, tem também a ajuda do grupo”. Essa fala demonstra que
Renata se apropria das propostas veiculadas no Programa Ler e Escrever e as põe em prática,
sobretudo no que concerne ao trabalho em grupo. A professora, durante a aula, problematiza e
socializa as dúvidas, tanto intragrupo quanto intergrupos. Além disso, ao observar que algum
deles está com mais dificuldade, propõe-se a auxiliá-los.
A atividade de Renata com o alfabeto móvel é bem planejada e bem desenvolvida:
quando chega para essa aula, a professora sabe bem quais são os passos a serem seguidos e
com qual forma de agrupamento de alunos. Os grupos são escolhidos intencionalmente, uma
prática importante não apenas para o sucesso dos alunos nas tarefas como para o da docente
em suas metas. Quando há planejamento e intencionalidade pedagógica, a probabilidade de se
obter bons resultados no processo de ensino-aprendizagem é maior; o ruído, tão
contraproducente para tarefas que exigem atenção e concentração, diminui; conversas
paralelas tendem a minguar, pois os alunos não conversam sobre assuntos diferentes dos
propostos e sequer se levantam de suas carteiras: o foco está em concluir a tarefa com
sucesso.
Em outra sessão de ACS – agora sobe o conto Rapunzel –, os aspectos de relevo em
seu planejamento, aqueles que marcam a intencionalidade pedagógica, podem ser percebidos.
Ao descrever o que esperava das duas atividades apresentadas aos alunos, comenta:
Eu montei essas duas folhinhas para eles, porque eu queria que eles
identificassem, na primeira atividade, de que história era a fala do
personagem. E a outra era para eles estarem, dentro dos gêneros que já
tinham sido trabalhados – contos –, listando mesmo os contos.
Ainda sobre essa questão, afirma que o objetivo da atividade “é a reflexão sobre a
escrita mesmo, dentro dos contos. Porque para eles é prazeroso e eles gostam. Eu acho que
quando você trabalha dentro desse gênero, é significativo para eles. Eles gostam
bastante e participam”. Renata esclarece que, nas duas atividades citadas acima, o sugerido
pelo Programa Ler e Escrever é por ela contemplado; é possível encontrar no Guia de
Planejamento uma seção que trata da importância de se empregar algumas atividades como
mediadoras da reflexão sobre o sistema de escrita, uma vez que:
113
[...] para realizar atividades com foco na escrita, o aluno deve pensar nas
propriedades do sistema de escrita, sem se preocupar com a linguagem. Em
geral, atividades desse tipo envolvem estruturas textuais mais simples (tais
como listas, etiquetas ou títulos) ou textos cujo conteúdo foi previamente
memorizado (parlendas, quadrinhas, poemas, legendas etc.), e, por
conseguinte, não exigem que se pense na linguagem (FDE, 2010, p. 30).
Quando o trabalho tem como base um texto já conhecido pelas crianças, o Guia de
Planejamento sugere:
[...] a escrita de cantigas, parlendas, quadrinhas etc., pois, se os alunos já
souberem o texto de memória, poderão dedicar sua atenção às questões da
escrita. Saber um texto de memória não significa saber sua forma escrita
(letra por letra), mas ser capaz de recuperá-lo oralmente. Em suas
brincadeiras, as crianças recitam quadrinhas, poemas, trava-línguas etc., ou
seja, memorizam o texto pelo uso que fazem dele, em situações
significativas (FDE, 2010, p. 30).
Na ACS do episódio do conto Rapunzel, a professora é indagada a respeito da
estratégia utilizada para que as crianças consigam escrever corretamente a palavra
“madrasta”. No decorrer do diálogo, ela esclarece que:
O objetivo era esse mesmo: trabalhar a reflexão sobre o sistema de
escrita. Por exemplo, na palavra “madrasta”, eu sabia que iam ter
dificuldades. E esse meu trabalho, de colocar os jeitos que as crianças
estavam escrevendo “madrasta” na lousa, era para eles perceberem que
letra estava faltando ou que letra estava sobrando. Por exemplo, eu
peguei vários jeitos diferentes que as crianças escreveram madrasta,
para poder compartilhar e corrigir junto com todo mundo. E isso ajuda
muito! Eles olham não apenas para o erro deles, como para os dos
colegas, para poderem pensar como eles estão escrevendo. E você vê que
tem uma parte lá que eles até riram do colega! Mas o meu objetivo não é
apontar o erro e, por isso, que eu não coloco lá na lousa quem foi que
escreveu o quê. Eu busco compartilhar as possibilidades, para que eles
reflitam e consigam construir o novo em cima do erro que fizeram.
No Guia de Planejamento do Professor (FDE, 2010, p. 30), os docentes são
convidados a refletirem sobre como intervir no decorrer de atividades que têm como objetivo
a reflexão sobre o sistema de escrita por parte do aluno. Ao salientar que uma intervenção
“tem como objetivo favorecer avanços, diferenciando-a de uma simples correção”, o quadro
comparativo abaixo é apresentado aos professores.
114
Quadro 2: Diferenças entre o processo de intervenção e o de correção para os
professores.
Intervenções Correções
Ajudam o aluno a avançar, saber mais em
relação àquilo que já sabia.
Têm o intuito de substituir uma produção
errada por outra, considerada certa; em geral
se afastando muito do que o aluno é capaz de
compreender.
Incluem poucas informações de cada vez,
para que o aluno incorpore a novidade àquilo
que já sabe e avance de acordo com suas
possibilidades.
Não dosam a informação; as letras corretas,
por exemplo, são oferecidas todas de uma só
vez.
Orientam a pesquisa, mas sem dar a
informação pronta: o professor questiona, dá
dicas de onde o aluno pode buscar
informações que possam ajudá-lo a escrever,
favorece a autonomia.
Substituem a escrita do aluno por uma cópia
da escrita do professor, fazendo com que a
criança sempre dependa do docente para
saber a forma correta de escrever.
Fonte: Guia de Planejamento do Professor Alfabetizador (FDE, 2010, p. 30).
Mas se o objetivo de Renata é intervir e não corrigir, pode-se indagar se centrar-se na
escrita errada dos alunos é uma boa estratégia. Ao assim agir, ela justamente não chama a
atenção deles para o que deve ser evitado? Não teria sido melhor mostrar a escrita correta –
mesmo apresentando todas as letras juntas – do que bombardeá-los com muitas letras todas
equivocadas? Seria mais conveniente, talvez, pedir que escrevessem frases que empregassem
a palavra MADRASTA de diferentes formas, sedimentando a aprendizagem de sua escrita?
Em todo o processo de observação e coleta de dados, é possível perceber que os alunos
sempre se sentam em duplas; nunca nenhum deles realiza suas atividades sozinho. Quando
questionada sobre a escolha de dispor o grupo dessa forma, Renata justifica:
Eu trabalho diariamente com os agrupamentos, só que é assim: às vezes,
a criança tem dificuldade de aprendizagem e de comportamento, ou
seja, tem dificuldade de se relacionar com os colegas, também. É difícil,
porque, às vezes, você nem consegue um parceiro para aquele [aluno]
ali. Então, é complicado. Mas eu vou experimentando, vou na base da
experimentação, até quando eu consigo uma parceria que dê certo. Mas
é bem complicado, porque aquele [aluno] que é alfabético, não tem
muita paciência, não aceita. Aquele [aluno] que é indisciplinado e tem
dificuldade também, às vezes recusa até a ajuda do outro. É complicado,
mas eu estou tentando.
O trabalho em duplas ou grupos realizado por Renata assemelha-se ao veiculado pelo
Programa Ler e Escrever no Guia de Planejamento do Professor Alfabetizador. O item
115
denominado “intervenções que favorecem avanços” trata não apenas das possibilidades de
sucesso que um professor pode ter ao trabalhar em duplas ou grupos de alunos como também
incentiva esse trabalho nas salas de aula da rede pública estadual paulista, no que tange ao
processo de leitura e escrita. Como pode ser visto, o trabalho em duplas é considerado de
extrema importância, pois, quando um aluno interage com outro “colega que tem
conhecimentos próximos aos seus, embora diferentes” (FDE, 2010, p. 29), as chances de
sucesso no processo ensino-aprendizagem aumentam. Como essa estratégia, o aluno pode
ampliar o(s)/a(s):
- conhecimento sobre as letras;
- conhecimento sobre as possibilidades de analisar uma palavra em partes
menores (por exemplo, um aluno pré-silábico, que considera as palavras
como um todo, amplia seus conhecimentos ao trabalhar com um colega que,
ao escrever, vocaliza cada uma das sílabas e inclui uma letra para cada som
percebido);
- hipótese sobre o número de letras necessárias para representar uma palavra
ou sílaba;
- conhecimento sobre os sons associados às letras;
- recursos que pode utilizar enquanto escreve (por exemplo, um aluno que
ainda não considera o valor sonoro das letras pode aprender com o outro,
quando este lhe diz que CAVALO começa com as mesmas letras de CAIO,
um colega de classe) (FDE, 2010, p. 29).
Segundo o Guia de Planejamento do Professor Alfabetizador, a formação de duplas de
trabalho requer a realização de uma sondagem para identificar o nível de desenvolvimento de
cada criança. Além disso, o docente deve estar atento ao modo como a dupla trabalha em
conjunto, analisando se o par é produtivo. Nesse sentido, conhecer os modos de pensar, sentir
e agir de cada criança auxilia a definição de critérios para a escolha das duplas: “se os dois
forem inquietos, ou ambos muito tímidos, talvez não sejam bons parceiros” (FDE, 2010, p.
29). Há, ainda, uma sugestão para que o professor mantenha a parceria que foi produtiva em
outras atividades sugeridas, só a trocando quando já não funcionar bem. Uma parceria
produtiva, de acordo com o Ler e Escrever, é caracterizada pela:
- troca mútua de informações, isto é, ambos têm contribuições a oferecer
(isso não acontece quando um sabe muito e o outro se limita a copiar);
- atitude conjunta de colaboração, buscando realizar as atividades propostas
da melhor maneira possível;
- aceitação das ideias do colega, quando parecem ser mais acertadas (FDE,
2010, p. 29).
116
Ainda com base na entrevista, percebe-se que Renata se apropria dos postulados do
Programa Ler e Escrever, notadamente no que concerne à formação das duplas. Ela menciona
que os alunos têm se desenvolvido por meio dessa estratégia:
O Breno tem dificuldade de aprendizagem, mas ele é um menino dócil e
se relaciona bem com os outros. Essa parceria deu muito certo, muito
certo mesmo. O Vinícius é mais avançado que o Breno, ainda mais agora,
que o Breno já está silábico com valor e o Vinícius já é alfabético! E,
agora, eu já vejo mais produtividade nesse agrupamento. Mas, antes,
não. Antes, só dava certo por causa do gênio dos dois, dessa
identificação entre eles. Mas, como agrupamento, eu não sei se era
produtivo. Hoje já é [produtivo], porque ele [Breno] está silábico com valor.
Mas, mesmo assim, eu acho que ajudou, porque o Breno avançou
bastante.
Nesse trecho, nota-se que a formação das duplas é intencionalmente pensada por
Renata e que, por causa desse planejamento, os alunos podem avançar em seu processo de
aprendizagem. Inicialmente, Breno e Vinícius são colocados juntos “por causa do gênio dos
dois, dessa identificação entre eles”; no decorrer das aulas, porém, as trocas impulsionam a
aprendizagem e, consequentemente, o desenvolvimento de ambos. Outro exemplo de sucesso
na formação de duplas são as alunas Laura e Samantha: “A Laura, hoje, já está alfabética; a
Samantha veio pré-silábica e foi galgando. Eu percebo que a Laura influencia
positivamente a Samantha, de modo que esse agrupamento deu bastante certo”. Além de
Laura e Samantha, a professora salienta a relação positiva entre as alunas Yakne e Rafaela; no
entanto, percebe que a troca da dupla não é ainda uma ideia bem-vinda para essas alunas:
A Yakne com a Rafaela é outro agrupamento muito bom. A Rafaela tem
um problema de fala, então ela troca muito as letras. A Yakne e a
Rafaela são um grupinho fechado: elas, normalmente, não aceitam gente
de fora, não. Só que a Yakne se predispôs a ajudar a Rafaela, e, como a
Rafaela falta bastante, eu deixei. Só que ela já evoluiu muito, já está
lendo quase tudo e copiando também! Já está melhorando bastante. Eu já
encaminhei para uma fonoaudióloga, mas ela ainda não foi. Fora isso, no
primeiro trimestre, ela era bem fraquinha. Aí, veio aquele programa Visão
do Futuro e a gente descobriu que ela tinha uma deficiência visual que
também a prejudicava no aprendizado.
Em uma das sessões de ACS (Episódio alfabeto móvel), Renata, nomeia seus critérios
para escolher os grupos de trabalho que vão empregar o alfabeto móvel na atividade: “Os
grupos foram separados segundo o nível de dificuldade de cada um”. Complementa,
chamando a atenção da pesquisadora:
117
E você vê [no vídeo] que todos eles estão no mesmo nível de
aprendizagem. Quando eu montei os grupos, eu fiz uma divisão de
silábico com valor, um silábico sem valor, você entendeu? Porque senão
não funciona... Os agrupamentos têm que ser pensados antes mesmo.
Esses trechos mostram a importância do planejamento para a execução das atividades
pedagógicas. Interessa observar que, além de seguir o prescrito pelo Programa “Ler e
Escrever” no que tange às diretrizes para a formação de duplas de trabalho, a atividade
proposta por Renata vai ao encontro dos ensinamentos de Vygotsky (2001). Para esse autor,
as relações estabelecidas com parceiros mais experientes (sejam eles o próprio professor ou os
colegas de classe) são importantes mediadores na constituição de novas significações,
conhecimentos e habilidades, justamente por incidirem na ZDP, promovendo o
desenvolvimento das funções psíquicas superiores, como visto no capítulo teórico deste
trabalho. Quando a criança é colocada para trabalhar com parceiros mais experientes, abre-se
espaço para que ela consiga desenvolver suas atividades muito melhor do que quando está
sozinha (VYGOTSKY, 2001).
Para Gasparin (2009), os trabalhos em duplas, trios ou grupos são de extrema
importância: com parceiros mais experientes, a criança pode construir os conhecimentos
científicos, sem depender tanto da mediação do professor. Os conhecimentos cotidianos,
advindos da experiência pessoal de cada aluno, são aliados importantes na constituição dos
conhecimentos científicos (aqueles construídos na escola, com intenção deliberada de ensinar
algo). Apesar de distintas, as duas modalidades de conhecimento são interdependentes em
uma situação didático-pedagógica:
Os conceitos científicos não passam diretamente aos alunos, nem os
cotidianos são subsumidos, automaticamente, pelos científicos. É na
caminhada dialógico-pedagógica que se dá o encontro das duas ordens de
conceitos: os conceitos cotidianos são incorporados e superados pelos
científicos. Realizam-se, por intermédio do trabalho coletivo e individual, a
interaprendizagem e a intra-aprendizagem. Os conceitos cotidianos ou
espontâneos são expressos pelo senso comum e pelos conhecimentos
empíricos que os alunos adquiriram no seu dia a dia, nas vivências fora da
escola. Os científicos, por sua vez, são adquiridos pela via escolar e já se
incorporaram à vida de cada um deles e, portanto, também fazem parte do
cotidiano (GASPARIN, 2009, p. 115).
Ainda na sessão de ACS da aula com o alfabeto móvel, Renata indica ter conseguido
refletir sobre a atividade gravada no vídeo. Ao observar-se, comenta:
118
Eu acho que eu atendi muito uns grupos e outros não. Não sei se porque
eles não me solicitaram, mas, eu acho que eu deveria circular mais entre
os grupos. Embora eu não tenha deixado nenhum grupo sem fazer, eu não
sei se foi porque eles não me solicitaram. Mas, mesmo assim, eu acho que
eu deveria ter circulado mais. Mas é isso daí, mesmo: a atividade é dentro
de um campo semântico que eles gostam e isso também ajuda muito; e os
agrupamentos ajudam muito.
Esse trecho demonstra a importância da ACS, que impulsiona a professora a refletir
sobre a atividade realizada, percebendo que “deveria circular mais entre os grupos”. Tal
compreensão deve possibilitar novas formas de agir em situações semelhantes, engendrando
uma postura diferente, pois “perceber as coisas de um modo novo significa poder agir de
forma diferente em relação a elas, isto é, quando se generaliza o processo próprio de uma
atividade, é possível adotar uma postura diferente em relação a ela” (GASPARIN, 2009, p.
68).
Nas aulas de Matemática, além do trabalho em duplas ou grupos, Renata utiliza
materiais diversificados. Vale destacar que o ensino dessa disciplina é uma das dificuldades
dessa professora. Ainda na entrevista, tal como visto no núcleo dois, alguns dos conteúdos
trabalhados por ela haviam sido esquecidos, de tal modo que a oferta de formação continuada
era muito almejada pela docente. No entanto, apesar de suas dificuldades, Renata,
curiosamente, escolhe uma aula de Matemática para ser filmada e, posteriormente, discutida
em uma das sessões de ACS, fato que demonstra seu empenho em compreender suas
atividades para melhor desenvolvê-las. Quando questionada sobre a forma como ensina
Matemática e sobre os materiais que utiliza, Renata responde:
Eu trabalho com dados e é uma coisa minha mesmo, que eu acho que
funciona e eles amam! Por exemplo, o dado, eu dou para os alunos que
vão terminando as atividades... Uma vez por semana, para que todos
tenham a mesma oportunidade, porque eles amam o dado de paixão.
No processo de observação das aulas, é possível perceber que a professora oferece
dadinhos aos alunos que realmente já terminaram a atividade proposta. Dessa maneira, eles
não são oferecidos nem ao acaso, nem sem intenção educativa: ao contrário, a professora
instrui os grupos a fazerem contas de adição com base nos resultados advindos das jogadas.
Além disso, é preciso registrar o processo no caderno. Outras formas de trabalhar com essa
estratégia são também observadas: os alunos, após jogarem dois dados, têm de fazer a soma
dos resultados. Novamente, o processo e os resultados são anotados no caderno. Ganha o jogo
quem completa 100 pontos. Ao final, Renata propõe aos alunos perguntas que incidem nas
119
contas de adição ou subtração. Sempre em duplas ou em grupos maiores, essas são estratégias
utilizadas para lidar com os que se encontram mais adiantados que os demais. Essa forma de
trabalhar facilita o processo de ensino-aprendizagem, minimiza a indisciplina e permite que
Renata possa dar mais atenção aos que ainda estão fazendo a tarefa, encontrando nela,
portanto, maior dificuldade.
Essas ações seguem de perto os postulados do Programa Ler e Escrever e,
principalmente, o prescrito no Guia de Planejamento e Orientações Didáticas para o
Professor. O objetivo é possibilitar que os alunos possam “interpretar e resolver situações-
problema envolvendo adição e subtração e calcular a soma de números naturais utilizando
técnica convencional ou não” (FDE, 2010, p. 18). Ao apresentar os dadinhos para os alunos e
orientar o que deve ser feito por eles, Renata considera a atividade denominada “jogo especial
de dados”. Essa situação didático-pedagógica tem como objetivos “escrever números dentro
de um intervalo previamente definido, utilizando os conhecimentos que possuem sobre o
sistema de numeração; estabelecer relações entre os números (maior que, menor que e entre
os próprios números)” (FDE, 2010, p. 165).
Na sessão de ACS sobre o episódio da aula de Matemática, Renata tem a oportunidade
de discutir seu trabalho. Estabelece que o objetivo é “ver se eles chegariam ao resultado,
quais as possibilidades que eles usariam para chegar a um resultado”. Novamente, nota-
se o quão de perto a professora segue as propostas do Programa Ler e Escrever também no
que se refere ao ensino de Matemática: “o Ler propõe isso mesmo: as diversas maneiras
que eles encontram para chegar ao resultado”. A fala da professora aponta que, além de
utilizar o que foi proposto pelo referido programa, reconhece diferentes maneiras de
encaminhar os alunos para a formação dos conceitos científicos. Quando existe diversidade de
informações, existe, também, a possibilidade de os alunos discutirem e dialogarem sobre as
maneiras pelas quais chegaram a um mesmo resultado; consequentemente, as possibilidades
de aprendizagem se ampliam, levando a um pensamento mais bem estruturado, alargando a
possibilidade de novos sentidos e significados serem atribuídos aos conceitos cotidianos, não
apenas em Matemática como também em outras facetas do mundo que cerca os alunos.
Quando questionada sobre o planejamento e a execução da atividade selecionada para
a autoconfrontação, Renata afirma sentir-se amparada pelo Programa Ler e Escrever:
[Essa atividade de Matemática] é do Ler, sim. E está no livro. Um dia
antes, eu tinha pedido para eles fazerem uma pesquisa de preços. Na
verdade, eu ia trazer o folheto do supermercado, mas, aí, eu achei que,
se eles pesquisassem, era uma maneira deles irem buscando alternativas
120
para fazer a tarefa. Eu achei que foram poucos os que não trouxeram e
dos que trouxeram, nós escolhemos os preços. Como tinha muita
diferença de preço, eu questionei a marca, a qualidade, a quantidade.
Aproveitei para discutir que os preços não são os mesmos em todos os
lugares para as mesmas coisas.
A atividade da qual Renata fala está presente no Guia de Planejamento e Orientação
aos Professores e tem como nome “pagamento de compras”. Por meio dessa situação, a
docente pode incentivar os alunos a fazerem contas de adição e subtração, levando-os a
realizar cálculos numéricos. Além disso, os alunos podem entrar em contato com seu
cotidiano, notando “que os números têm um uso social e estão presentes em muitas situações
cotidianas” (FDE, 2010, p. 179). Quando corrige a atividade, a professora novamente discute
e socializa as diversas maneiras de pagar pelos produtos (seja com moedas de um real, notas
de dois ou de cinco reais), mostrando concretamente, na lousa, as diferenças entre elas. Vale
destacar que Renata coloca, para cada item, pelo menos três possibilidades diferentes de
pagamento do produto, trazidas pelos próprios alunos. Além disso, desenha, na lousa, as
moedas para que o processo fique mais concreto para o grupo. Quando a professora aproveita
a situação “para discutir que os preços não são os mesmos em todos os lugares”,
evidencia-se que seu objetivo não é apenas ensinar os conteúdos de sua disciplina, mas sim
possibilitar o desenvolvimento da criticidade e da pesquisa, para se fazer boas compras.
Novamente é possível observar que a atividade educativa não se volta apenas aos conteúdos,
mas também à apreensão do mundo objetivo.
A autoconfrontação parece ter sido para Renata um momento propício para que
pudesse perceber a importância de utilizar essa estratégia, pois: “essa atividade é uma
proposta do Ler, mas a gente não usa tanto. Se a gente usasse mais, você vê que tem
resultado. Porque os que sabem mais ajudam os outros”. Quando ela diz “a gente”,
possivelmente está se referindo a sua categoria profissional, ao conjunto de docentes e, mais
particularmente, a seus colegas, os professores da escola. De fato, esse tipo de atividade é uma
proposta que o Programa “Ler e Escrever” recomenda que seja utilizada ao longo de todo o
semestre.
A análise deste núcleo permitiu que a atividade docente de Renata fosse compreendida
e elucidada. A autoconfrontação mostrou-se um momento importante para que a professora
pudesse se observar ao longo da implementação de suas atividades, iniciando, assim, um
movimento de reflexão sobre elas e de possível ressignificação delas. O trabalho em grupo foi
um dos aspectos pedagógicos mais interessantes encontrados no decorrer das várias atividades
121
observadas, além de ir ao encontro dos postulados do Programa Ler e Escrever, bem como
das teorias de desenvolvimento de natureza interacionista, como as de Piaget e de Vygotsky.
Efetivamente, quando o trabalho pedagógico se organiza em duplas, trios ou grupos, quando é
cuidadosamente planejado com intencionalidade educativa, as chances de sucesso nas
atividades docentes se ampliam.
4.3.5 Núcleo 5 – A importância da relação com a comunidade escolar e com a equipe
gestora para o adequado desenvolvimento das atividades docentes
Este núcleo versa sobre a maneira como Renata se relaciona com a comunidade
atendida pela escola e, também, com seu grupo de colegas. Na entrevista, ao falar sobre o
bom relacionamento que tem com os pais dos alunos, ressalta: “Eu nunca tive problema
com pais, de rejeição ou de críticas. E, com os pais, o relacionamento foi sempre bom e
com os alunos também”. Ao complementar seu discurso, aponta as estratégias que utiliza
para lidar com os problemas do cotidiano das crianças. Nota-se na fala de Renata certo
desconforto quando precisa chamar os pais na escola:
Às vezes, eu sou obrigada a chamar a mãe. Mas eu evito o máximo que
eu posso, porque eu procuro resolver tudo dentro da sala mesmo... Resolver os conflitos que surgem ali dentro... Ontem mesmo teve a questão
do piolho e, se você deixar, o negócio cresce. E se você se envolve muito, a
família também [não gosta], né? Nenhuma mãe gosta de receber um
bilhetinho escrito: olhe a cabeça da sua filha, porque está tudo cheio de
piolho. Então, eu procuro mesmo trabalhar no todo, levar um problema
individual e estruturar para a sala toda.
Apesar de Renata enaltecer o contato com a família e ressaltar que esse encontro é
importante para o desenvolvimento de suas atividades, a fala “e se você se envolve muito, a
família também [não gosta], né?” vai ao encontro dos achados de Szymanski (2009). Para a
autora, é interessante notar que os professores e dirigentes das escolas consideram, muitas
vezes, “a presença das famílias na escola ameaçadora” (p. 10). Esse não parece ser o caso de
Renata: ela gosta – ou, pelo menos, não parece se incomodar – da presença deles, muito
embora tome cuidados ao encontrá-los. A professora enaltece o comprometimento dos pais,
pois diz sentir-se confortável com o apoio que eles lhe dão: “os pais também ajudaram
bastante, nessa parceria com os pais, tudo o que eu propus foi aceito. Então, eu acho que
é um conjunto de ações que ajudam nesse trabalho”. Mas a que se refere ela quando se fala
de um “conjunto de ações”? Certamente, à relação dialógica e respeitosa, estabelecida entre
122
equipe docente e gestora com as famílias dos alunos. De fato, é importante que isso ocorra,
pois:
O encontro pais-escola constitui um ambiente de aprendizagem e ensino e
um contexto de desenvolvimento pessoal para todos os protagonistas,
crianças e adultos, o que é coerente com o que a proposta dialógica também
preconiza. Se educadores e pais puderem compreender a sua relação como
uma oportunidade de desenvolvimento para ambos, o que significa ampliar a
compreensão do contexto das trocas interpessoais numa atitude de abertura
criativa para o outro, tendo como horizonte o investimento na educação de
crianças e jovens, é possível desenvolver uma relação dialógica entre eles
(SZYMANSKI, 2009, p. 10).
Para Renata, o relacionamento com as gestoras da escola – diretora, coordenadora
pedagógica e vice-diretora – é, igualmente, muito positivo: “eu me relaciono bem com as
gestoras, eu não tenho problema, não!”. Seu discurso evidencia a dinâmica das relações
interpessoais na escola e como as decisões são aí tomadas:
Tudo o que a gestão vai fazer, ela participa com os professores. Tudo é
resolvido junto, em conjunto mesmo e isso me dá uma certa autonomia,
embora uma autonomia entre aspas, né? Porque nem sempre a equipe
gestora pensa igual a você. Aqui, quando dá para ceder, a gente sempre
busca ver os dois lados – cede de um lado, aí o outro cede de outro e a
gente procura sempre um acordo. Nem sempre a gente é atendida, mas é
feito um acordo.
É perceptível o equilíbrio na tomada de decisões na escola. O diálogo e a forma como
a gestão insere os professores no processo decisório permitem que todos possam se sentir
autores do que ficou acordado, fato que facilita bastante as relações entre os pares. Embora as
demandas da professora não sejam sempre atendidas, a busca por resolver a situação é
civilizada e respeitosa. Isso se manifesta também na entrevista, quando Renata comenta:
Eu aprendo muito, aprendo bastante mesmo com eles [com os outros
professores]. E assim... Eu não aceito o “eu não sei”. Eu quero uma solução
para o meu problema. Por exemplo, caiu numa questão do concurso: para
que a gente ensinava sequência numérica? E a gente não tinha a resposta e
eu não aceito, eu fico atrás até descobrir. E, aí, hoje, nós descobrimos juntos.
Eu acho isso legal.
A relação positiva entre os docentes da escola contribui para um clima agradável na
instituição. De fato, a boas relações são fatores relevantes para a construção de novos
conhecimentos por parte do grupo de professores. Quando existe bom relacionamento, novas
possibilidades de aprendizagem surgem e o grupo tenta, em conjunto, sanar as dúvidas e/ou
lacunas de conceitos, entendimento ou experiência profissional sobre tudo o que diz respeito
123
ao trabalho do professor. O coletivo se fortalece quando existem relações saudáveis entre os
professores, havendo confiança para, juntos, descobrirem as respostas que buscam. Vale
destacar que Renata é sempre procurada por seus colegas, quando eles têm dúvidas sobre as
sondagens e/ou atividades que realizam com seus alunos. Por ser considerada uma professora
bem-sucedida junto a seu grupo de alunos, ela é uma das que mais gostam de discutir no
coletivo e de propor atividades diferentes para serem realizadas em sala de aula:
Nós trocamos muito. Por conta de eu estar sempre buscando,
mesmo, e da minha prática, acaba que eu auxilio os meus colegas. Por exemplo, a gente busca alguma coisa na internet, mas eu não vou
chegar lá [na sala de aula] e dar isso para os meus alunos, sem analisar
determinada atividade. Então, coisa pronta eu não gosto; eu gosto da
construção, mesmo. Eu acho que é por conta [dos colegas
professores] de verem que está dando certo, que eles acabam me
procurando.
Esse reconhecimento por parte dos colegas de profissão parece fazer bem a Renata,
que se sente, aparentemente, gratificada por conseguir resolver suas dúvidas. Essa sensação
gratificante está, ao que tudo indica, presente tanto em seu trabalho com os alunos quanto com
o corpo docente a que pertence. Além disso, quando há oportunidade de discutir – ou de
construir uma atividade – mesmo que o grupo se engaje, a presença de Renata tem um papel e
um peso determinantes. Novamente, fica claro que a professora se interessa por um trabalho
coletivo, que tenha como base a construção e/ou análise de propostas pedagógicas inovadoras,
que possam melhorar o processo de ensino-aprendizagem.
Em suma, este núcleo traz subsídios importantes ao revelar quão importantes são as
relações positivas que se estabelecem tanto com a comunidade quanto com os professores,
gestores, funcionários e alunos da escola. Efetivamente, quando o professor se sente apoiado
pelos pais e encontra um grupo de professores e gestores abertos à troca de experiências, esses
fatores favorecem notadamente e, ainda, impulsionam a realização das atividades docentes.
4.3.6 Núcleo 6 – Os sentimentos de Renata diante da autoconfrontação simples
Este núcleo auxilia a compreensão da autoconfrontação como mediadora do
movimento reflexivo de Renata. Quando questionada sobre o processo de planejamento de
sua aula denominada “conto da Rapunzel”, foi possível perceber que a aula não havia sido
devidamente planejada: “eu não me preparei para dar essa aula, você entendeu? E eu
124
achei muito legal”. Mesmo com falhas no planejamento, a professora, contrariamente ao
esperado, faz uma avaliação positiva de sua atividade. A despeito de sua análise ter sido
positiva, Renata encaminha sua reflexão sobre o real da atividade (intenções não realizadas, o
que poderia ter sido feito, o que tinha desejado fazer etc.), dizendo que, para ela:
[A atividade] estava sim [de acordo com o desenvolvimento dos alunos].
Para os alfabéticos, eu achei que foi fácil demais, porque quando eu
terminei de entregar as folhas para a turma do fundo, alguns, daqui da
frente, já tinham terminado. De repente, eu poderia ter dado uma
reescrita, ou uma produção coletiva.
Muito provavelmente, as brincadeiras de luta e as conversas paralelas que dispersam
os alunos acontecem em função da falta de planejamento das atividades docentes, tal como
visto no núcleo 3. Além disso, apesar de dizer que a atividade está de acordo com o
desenvolvimento de seu grupo, Renata poderia, sem dúvida, ter pensado em outras estratégias
para ensinar os alunos mais adiantados, mantendo-os interessados na tarefa e, portanto,
ocupados. De fato, sem planejamento, não se pode usar estratégias diferenciadas, daí sua
importância para o bom desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.
Na atividade sobre o alfabeto móvel, a professora percebe a importância de trabalhar
com muitos e variados materiais pedagógicos. O envolvimento do grupo chama muito a
atenção, pois todos os alunos participam, com afinco, do que lhes é proposto. Ao se observar
e ao discutir com a pesquisadora, Renata aponta: “o que eu percebi é que eu preciso
trabalhar mais o alfabeto móvel com eles, porque eu vi o envolvimento deles”. Com base
na ACS, ela salienta: “eu acho que é uma atividade trabalhosa para mim, mas eu acho
que depois de ver o vídeo, eu tenho que fazer mais, porque é uma coisa que ajuda muito
no processo educativo deles”.
Esses trechos apontam para a importância do vídeo como elemento mediador para a
reflexão sobre a atividade realizada. Ao se observar atuando, Renata analisa sua forma de
trabalhar e pode pensar em outras formas de realizá-la, de ampliar e aprimorar o que foi feito.
Apesar de ser uma atividade trabalhosa, notar o grupo de alunos envolvido na tarefa e
conseguindo realizá-la com sucesso, parece ter sido um fator determinante para incentivar a
realização de atividades semelhantes, mas com objetivos distintos, em outras situações de
aprendizagem dos alunos. Vale destacar que a atividade com o alfabeto móvel foi
exaustivamente planejada pela docente e, portanto, o sucesso obtido decorreu, em particular,
desse empenho de Renata.
125
No que concerne à aula de Matemática (episódio 3), a professora comenta: “eu fiquei
feliz com a atividade e acho que foi bem produtivo o dia para eles”. Ao falar sobre o real
da atividade, a professora diz: “eu acho que o folheto do supermercado, se todos tivessem
trazido, ajudaria bastante, não sei se a ida a um mercadinho poderia ter motivado mais.
Mas, eu acho que o objetivo [testar as diversas maneiras de chegar a um resultado] eu
consegui!”. Ao complementar seu discurso, Renata destaca seu sentimento positivo diante do
resultado observado no vídeo:
Eu acho que eu consegui atingir o meu objetivo, porque eu tive várias
crianças que usaram várias possibilidades diferentes. E, o que eu mais
gostei, foi que eu mostrei para eles que não existe um único jeito de fazer
a conta de adição e que, na Matemática, eles podem usar muitas outras
maneiras de somar.
Essas falas de Renata indicam que ela está ciente de que é possível, por meio de
diversas estratégias, chegar ao mesmo fim. Em outras palavras, uma mesma atividade pode
ser realizada a contento de diferentes maneiras. De fato, o Guia de Planejamento do Professor
sugere, na atividade seguida em Matemática, que os alunos pesquisem os preços e utilizem,
para tanto, distintos materiais – folhetos de lojas/mercados, jornais, revistas –, pois eles
costumam indicar os valores dos produtos discutidos na aula de Matemática. Renata sugere
que os alunos tragam para a aula essa pesquisa, mas poucos cumprem a tarefa solicitada.
Diante disso, a professora utiliza as que têm em mãos, socializando seus dados com o restante
do grupo. Apesar de a instrução da atividade não ter sido seguida por todos, Renata não
parece ter considerado esse um fato relevante, em função do sucesso alcançado nas adições e
na apreensão dos discentes de que, variando os meios, se chega a um mesmo fim. Inquirida
acerca da utilidade do procedimento de autoconfrontação (aula de Matemática), a professora
afirma que, em seu entender, caberia, algumas vezes, modificar sua atividade:
Eu acho que a gente tem que estar aprendendo mesmo. Isso daqui, para
mim, é um aprendizado, porque me leva a mudar a minha prática em
muitos aspectos que eu vi, como por exemplo, esse da minha voz ser
muito alta e rouca; de atitude diante dos alunos, de postura do meu
corpo. (Até isso eu preciso mudar, a minha postura mesmo: acho que eu
estou muito curvada), de buscar caminhos para atingir todos os alunos,
fazer eles aprenderem.
Os aspectos levantados por Renata enaltecem a importância da estratégia de
autoconfrontação como uma boa mediadora no processo de refletir sobre suas atividades: ao
se observar e discutir as aulas planejadas com a pesquisadora, ela pode elencar suas
126
prioridades, caso decida modificá-las. O que mais chama a atenção, nessa fala, é o quanto ela
enfatiza as mudanças no tom de voz e na postura, pontos delicados para a docente, pois foram
os que a barraram no concurso de ingresso na prefeitura municipal de São Paulo (tal como
visto anteriormente). A autoconfrontação parece ter levado Renata a se deparar com aspectos
de sua docência que precisam ser modificados:
Ah, eu achei legal [a autoconfrontação]. Eu acho que eu vi que tenho que
mudar bastante, que eu preciso estudar muito ainda, que eu não estou
tão longe, mas preciso chegar mais perto do que eu quero: fazer tudo
para que todos consigam aprender. Isso daí [autoconfrontação] vai
abrindo o olhar da gente, para que se possa buscar e se olhar atuando
mesmo.
Ao falar a respeito de como foi compreendendo o processo da pesquisa e,
principalmente, o da autoconfrontação, a docente faz um apontamento importante sobre sua
apreensão e sua ajuda na ressignificação de sua atividade:
Tudo depende do seu olhar. Porque eu não vejo isso como crítica: eu vejo
como espaço de construção mesmo, para melhorar a minha prática. Mas
tem gente que não aceita isso, né? Tem gente que tem dificuldade para
enfrentar o novo e isso pode acabar sendo um problema para muita gente.
Na primeira filmagem, eu não sabia direito o que ia acontecer; mas,
hoje, eu uso sempre isso [vídeos, com os episódios analisados, entregues à
docente, ao final do trabalho de campo] para refletir e rever a minha
prática mesmo. Mas, para quem acha que isso pode ser uma avaliação, é
mais difícil. Eu acho que tudo o que a gente tiver para chegar mais perto
do nosso objetivo, que é a ensinagem, é bom.
Fica claro, desse modo que houve, no caso dessa professora, impacto da
autoconfrontação em sua apreensão de si mesma e de seu trabalho docente. Assim, ao que
tudo indica, esse é um procedimento importante para promover o desenvolvimento
profissional de professores. A indicação que Renata faz de que a autoconfrontação não pode
ser confundida com a avaliação constitui uma importante pista para futuras pesquisas: quanto
mais informações os professores tiverem sobre os procedimentos utilizados no processo da
pesquisa, menor a possibilidade de que se sintam avaliados ou julgados. Desse modo, a
transparência ganha, nessa modalidade de estudo, centralidade. De destaque, também, é que
se o caminho só se faz ao caminhar, Renata precisou passar pela experiência da primeira
autoconfrontação para entender o que com ela se pretendia.
A relação de confiança estabelecida precisa ser também devidamente analisada: a
professora não colocou nenhum impedimento às ACS, que contavam com a presença apenas
da pesquisadora, recusando-se, entretanto, a participar das sessões de ACC, na qual um
professor da rede estadual a observaria em ação. Evidencia-se, assim, que, sem haver certeza
127
de que alguém está colocando seu conhecimento e experiência a serviço dos docentes, eles
tentam, a todo modo, preservar sua face, não expondo indevidamente suas fragilidades a
estranhos. Para empoderar o professor, aumentando seu poder de agir, a autoconfrontação
parece ser muito eficaz, possibilitando movimentos reflexivos que oportunizam, na e pela
mediação do parceiro mais experiente, novas e mais eficazes possibilidades de atuação
profissional.
4.4 Análise internúcleos
A análise internúcleos é um momento de produção de informações qualitativamente
diferente do anterior, pois nele se tenta articular a interpretação dos diferentes núcleos de
significação entre si. Os temas que vieram à tona no decorrer do processo de análise
intranúcleos foram detalhadamente descritos, pois por meio deles é que seria possível
aproximar-se dos movimentos de constituição de sentidos e significados da professora Renata
sobre o Programa Ler e Escrever, no que diz respeito ao exercício da docência e às atividades
que emprega ao realizar sua função. A essa primeira etapa, segue-se a análise internúcleos,
que consiste em um esforço analítico-interpretativo do pesquisador para compreender e
explicitar aspectos contraditórios ou semelhantes que se fazem presentes e interpenetram-se
na constituição dos sentidos do sujeito.
O objetivo dessa seção é, portanto, compreender os aspectos pertinentes à forma de
ser, pensar e agir da professora. Ao discutir o processo de análise internúcleos, Soares (2011,
p. 274) salienta que “o movimento de constituição de sentidos não se reduz apenas às
experiências atuais do sujeito”, mas também está formado por vivências historicamente
acumuladas por ele “em espaços sociais diversos”. Tais experiências modificam seu modo de
ser, pensar e agir e, consequentemente, sua subjetividade.
Os núcleos 1, 2 e 4 são passíveis de articulação: neles estão presentes aspectos
relacionados ao modo de ser, pensar e agir da professora que, aparentemente, engendram
movimentos de (re)significação das atividades cumpridas. No núcleo 1 – que tratou da
escolha do magistério –, a professora demonstra ter grande prazer na profissão docente e se
diz muito feliz com o trabalho que realiza, indicando sentidos marcados por sentimentos de
segurança e, também, de inquietação, pois nota-se uma busca constante de novas estratégias
de ensino-aprendizagem. Tais sentimentos movimentam as atitudes da docente, que, mesmo
estando prestes a se aposentar, após 27 anos de trabalho, desenvolve suas atividades tentando
128
incluir e contemplar todos os alunos. Não por acaso a análise do núcleo 2 – que versa sobre a
formação, as experiências profissionais e a visão de Renata sobre o Ler e Escrever – aponta
uma atuação pautada pelo senso comum, pelo acúmulo de informações (modelo “receitas
prontas”), pela racionalidade técnica (saber-fazer) e, principalmente, pela experiência prática
adquirida ao longo de seus anos de profissão. Renata segue bem de perto as propostas do
programa, pois encontra no Guia de planejamento do Professor um instrumento que alimenta
uma prática repetitiva, altamente prescritiva, mas interessante para ser trabalhada com seu
grupo de alunos e, sobretudo, que dá bom resultado.
Algumas questões importantes no processo de formação continuada do referido
programa na escola pesquisada surgiram: os encontros são pouco planejados pela
coordenadora pedagógica e os professores parecem não se sentir motivados a discutir suas
propostas. Na visão de Renata, o trabalho da coordenadora deixa a desejar e, diante disso,
segundo ela, só resta aos professores se valerem dos materiais como suporte para as
atividades, ou seja, como ingredientes imprescindíveis da receita a ser aplicada em sala de
aula. Nessas condições, é de pouca valia o eventual aprendizado que se pode alcançar nos
momentos de formação entre pares.
A análise do núcleo 4, articulada aos núcleos 1 e 2, salienta a problemática da
formação continuada na escola pesquisada e revela alguns movimentos da professora na
tentativa de articular teoria e prática. Renata diz que, no decorrer de sua carreira e com a
mediação de outros processos formativos, optou pelo construtivismo como pressuposto
epistemológico norteador de seu trabalho. No entanto, observando mais de perto sua
atividade, percebem-se nela aspectos contraditórios entre o que diz fazer e o que realmente
faz. É possível, ainda, notar em sua atividade fortes marcas do ensino tradicional, com mescla
de aspectos construtivistas: Renata parece ter se apropriado das propostas teóricas dessa
corrente pedagógica, embora ainda encontre certa dificuldade de colocá-las em prática. Isso
decorre tanto dos entraves dos momentos de formação continuada do Ler e Escrever quanto
do fato de ela ignorar e/ou desconsiderar a importância de momentos destinados ao
planejamento das atividades na carga horária de trabalho. Perde, com isso, a oportunidade
talvez rica de discutir e partilhar com seus colegas dúvidas que poderiam ou não ser comuns.
Depreende-se, então, que um dos pressupostos do construtivismo – aprender com os
pares – só vale para a sala de aula, quando em atividade com os alunos. Como visto no núcleo
1, a formação dessa docente ainda é frágil e, por isso, articular teoria e prática (núcleo 4), tal
como apregoa o modelo construtivista, permanece um desafio a ser por ela enfrentado. Para
sanar as lacunas de sua formação e dar conta de sua atividade principal – alfabetizar todos os
129
seus alunos –, a professora não busca na teoria um alicerce, mas lança mão de sua experiência
prática: ampara-se em fontes de informação pouco rigorosas (internet e revistas de educação),
que, ao oferecem atividades mais estruturadas e informações de fácil acesso, dão ênfase ao
fazer. Daí, contraditoriamente com a proposta construtivista de ensino, o olhar de Renata recai
no produto, ao invés de se centrar no processo.
A necessidade de atingir a meta proposta pela SEE – alfabetizar todos os alunos –
também dirige a atividade de Renata, que, aparentemente, sabe que cada criança tem um
tempo diferente da outra e reconhece que as dificuldades decorrentes do fato de elas estarem
entrando mais novas no 1° ano (tal como visto no núcleo 3) acabam imprimindo,
autoritariamente, um ritmo de trabalho pesado ao grupo. Evidencia-se, aqui, uma clara
contradição, pois o cenário ideal de Renata, para sua sala de aula, parece ser aquele próprio do
ensino tradicional: todos quietos e focados na atividade.
Assim, apesar de os relatos constantes de que o barulho de seus alunos a incomoda, é
somente na primeira sessão de autoconfrontação (núcleo 6) que a professora pode começar a
refletir sobre as vinculações entre planejamento das atividades e ruídos desnecessários. Ela
ainda não havia percebido que o barulho do qual tanto reclamava nem sempre vinha de sua
sala de aula. Com a mediação do vídeo, percebe que, por vezes, seu grupo está focado na
atividade, de modo que sua queixa, em alguns momentos, é infundada.
Como não considera no planejamento diário as diferenças de conhecimentos e
experiências presentes entre os alunos (que, na Psicologia Sócio-Histórica é denominado nível
de desenvolvimento real), Renata propõe atividades muito fáceis para uns e muito difíceis
para outros. Quando os alunos não compreendem o que lhes é pedido ou realizam a atividade
rapidamente ou não a realizam, acabam entretendo-se com conversas que aumentam a
intensidade do ruído na sala de aula. Como o objetivo da professora é alcançar o produto
final, não se dá conta de que pode minimizar o ruído dos alunos se as atividades forem mais
bem planejadas, ou seja, se levarem em consideração os conhecimentos prévios das crianças,
desenvolvendo para elas atividades diversificadas, de forma que cada uma tenha seu saber e
sua experiência contemplados e todas contem, então, com a possibilidade real de aprender.
Ainda na autoconfrontação, ao se observar em duas aulas diferentes (a do alfabeto
móvel e a de Matemática), Renata percebe que, ao propor e executar atividades bem
planejadas, o ruído de seus alunos diminui: todos se sentem motivados e interessados, de sorte
que o objetivo da atividade é alcançado sem a necessidade de posturas que a ela mesma não
agradavam. Essa descoberta é fundamental, pois constitui uma maneira eficaz de colocar em
prática os postulados construtivistas e de levar todos os alunos a aprender de acordo com suas
130
possibilidades, sem ter de criar um clima tenso em sala de aula. Portanto, o impacto da
autoconfrontação é grande para a professora. O fato de ela não ter aceitado participar das
autoconfrontações cruzadas fica, então, nesse contexto, iluminado: ao criticar sua própria
atividade docente e sua conduta junto aos alunos, por que iria ela se expor aos olhos de um
colega?
A professora reconhece, ainda, a importância da proposta (psicogênese da língua
escrita), das estratégias (trabalho em dupla/grupo, listas, contos, leitura diária) e dos materiais
(letras móveis, dados, livros, revistas e almanaques) empregados no Programa Ler e Escrever,
razão pela qual os utiliza, diariamente, em seu trabalho. Outro fator parece contribuir para
isso: a linguagem acessível, que permite a Renata entender e empregar as propostas desse
material como modelo a ser seguido. Apesar de suas dificuldades de planejar a adoção das
propostas veiculadas no Programa, a professora trabalha muito bem com agrupamentos.
Observa seus alunos, propõe mudanças quando elas se fazem necessárias e compreende a
importância do trabalho conjunto não apenas para a aprendizagem dos conteúdos curriculares,
como também para o desenvolvimento da autonomia e do respeito ao próximo. Mas como
alcançar tais metas se os materiais demoraram quase seis meses para chegarem à escola? A
logística de todo o programa requer, ela também, planejamento rigoroso, sob pena de boas
iniciativas acabarem se perdendo por falta de organização.
Fica claro que as propostas do Programa Ler e Escrever levaram Renata a ressignificar
suas atividades docentes, possibilitando-lhe alterá-las de forma a melhor atender a seus
alunos. Por exemplo, ao instalar, como rotina, a leitura diária para os alunos (tal como visto
no núcleo 4), é possível à professora perceber que há, com isso, ganhos em termos de
aprendizagem no grupo-classe; atribuiu novos sentidos à educação oferecida às crianças na
educação infantil, justamente por reconhecer que elas têm chegado ao 1° ano com mais
conhecimentos, sobretudo sobre histórias e contos, a estrutura da narrativa e sua organização.
Se Renata não tivesse seguido a prescrição de ler diariamente para a classe, muito
provavelmente não teria essa visão tão favorável sobre a educação infantil.
Os núcleos 4, 5 (a importância da relação com a equipe gestora e comunidade) e 1,
quando articulados entre si, auxiliam também a melhor compreender como os sentidos
constituídos por Renata sobre o programa Ler e Escrever mudaram drasticamente sua forma
de ver a escola e seu papel. A estrutura física da escola mostrou-se, então, ser um forte
impeditivo para a boa docência: a biblioteca, por exemplo, é mostrada no Programa como um
espaço interessante para que as crianças tenham contato com diversos gêneros textuais,
desenvolvam o gosto pela leitura e, ainda, como um local de aprendizado distinto e
131
complementar ao da sala de aula. Em sua escola, no entanto, esse espaço nunca é utilizado
com seu fim específico, pois tinha se convertido, por força de necessidade, em sala de aula.
As contradições entre o proposto pelo Programa Ler e Escrever e as condições reais em que o
processo de ensino e aprendizagem se dá – a precariedade da estrutura física e sua
superlotação, a ausência de todo e qualquer tipo de brinquedo e a pouca oferta de atividades
extracurriculares – levam a professora a repensar a educação, notadamente a paulista, que
adota uma abordagem pedagógica, o construtivismo, sem lhe oferecer o contexto necessário
para seu adequado emprego e sucesso.
Ter compreendido isso foi importante para Renata, que deixou de culpar os pais ou a
gestão da escola pelas dificuldades que enfrenta (rompendo o discurso estereotipado dos
docentes vinculados à rede pública de ensino) e, sobretudo, por acolher e sentir-se acolhida
pelas famílias e pela equipe gestora. A professora pode, então, envolver-se com suas
atividades, entendendo que faz o melhor possível; é esse envolvimento que faz dela uma
figura de apoio e de referência para todos os docentes dessa escola. Sentir-se valorizada pelos
que a cercam promove, consequentemente, um maior prazer e um maior empenho no
cumprimento de suas atividades. O reconhecimento por parte dos pais de seus alunos e da
gestão da escola é, portanto, um aspecto mediador dos sentimentos positivos de Renata pelo
programa, pela profissão escolhida e pelos que, como ela, atuam na mesma escola.
Por meio das análises aqui apresentadas (intranúcleo e internúcleos), é possível
perceber que as sessões de autoconfrontação engendraram em Renata movimentos reflexivos
sobre suas práticas (todas orientadas pelo Programa Ler e Escrever), sua escola, a educação.
As imagens e o diálogo (pesquisadora-professora) impulsionaram-na a fazer isso, pois havia
que justificar sua conduta profissional, bem como suas posturas e atitudes diante de seus
alunos. Além disso – e ao que tudo indica – ao compreender o processo de autoconfrontação,
a docente parece ter buscado dedicar-se com mais afinco ao planejamento das atividades,
compreendendo a importância desse processo para o sucesso das aprendizagens infantis. Ao
ver seu grupo de alunos participando, com empenho e dedicação, foi-lhe possível constatar a
centralidade do planejamento dentre as atividades docentes, situação que, como não poderia
deixar de ser, constitui novos sentidos acerca da profissão do magistério.
132
5 Considerações finais
Este trabalho teve por objetivo dar resposta a três questões centrais, ora retomadas
para verificar se o estudo cumpriu seu propósito inicial:
1. Quais são os sentidos e significados que a professora elaborou
sobre a formação específica recebida no Programa “Ler e
Escrever”, no que concerne ao exercício da docência e à prática
pedagógica que emprega?
Os achados específicos deste estudo corroboram o que muito se tem
veiculado nas discussões promovidas por entidades interessadas em compreender o
trabalho do professor e sua formação, como a Associação Nacional pela Formação
dos Profissionais da Educação (Anfope), a Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (Anped), que vêm, já há muitos anos, ressaltando a
importância do aporte teórico e do prático nos cursos de formação inicial/continuada,
de modo que se possa falar de uma práxis docente. O histórico de Renata se enquadra
nas discussões tecidas no capítulo sobre formação de professores, no qual se viu que,
se é importante ensinar o professor a refletir sobre sua prática, mais ainda seria criar
um espaço colaborativo de troca entre os pares, no qual a teoria se aliasse à prática,
convertendo-se em práxis23.
A proposta formativa do Ler e Escrever, tal como visto no núcleo 2, obedece
ao modelo “em cascata”, que se mostrou, neste estudo, não ser uma alternativa
interessante, pois privilegia aqueles que são capacitados pela primeira vez, caso dos
coordenadores pedagógicos (CPs), a quem compete repassar os conteúdos aos
demais docentes em suas unidades escolares. Como bem revela Renata, os
professores que recebem a formação por vias indiretas sentem que o conteúdo
original não lhes chega por completo, o que gera um desconforto quanto ao domínio
da proposta. Explica-se facilmente, portanto, a sensação de incompetência, sobretudo
à luz dos pífios resultados do Saresp, que ocasiona sérios prejuízos para a
23
A práxis é, na verdade, uma atividade teórico-prática; isto é, tem um lado ideal, teórico, e um lado material,
propriamente prático, com a particularidade de que só artificialmente, por um processo de abstração, podemos
separar, isolar, um do outro (VÁSQUEZ, 2007, p. 262).
133
autoimagem profissional, para a conduta em sala de aula e, sobretudo, para os
aprendizes que lhes são encarregados.
2. A professora utiliza os conhecimentos adquiridos por meio do
Programa Ler e Escrever em suas atividades docentes? Se os usa,
como o faz?
A análise empreendida permitiu compreender que, apesar de Renata
apresentar em seu discurso aspectos que se referem ao “ensino construtivista”,
muitas de suas práticas ainda contradizem os preceitos dessa corrente teórica.
Embora aparente afinidade com o pressuposto epistemológico em questão, a
formação frágil e precária faz a professora pensar que a abordagem construtivista não
lhe fornece subsídios suficientes para colocar em prática o tempo todo, em sala de
aula, o conhecimento teórico. Nota-se que Renata, embora não o perceba, ainda tem
muita dificuldade para articular teoria e prática, pois sua experiência em sala de aula
e sua motivação para desenvolver bem seu trabalho, de certo modo, a resguardam das
dificuldades encontradas no cotidiano escolar. Esse aspecto não difere dos
encontrados em algumas pesquisas do Procad (tanto as de São Paulo quanto as de
Maceió e Rio de Janeiro). Os resultados de algumas delas apontam que os
professores ainda utilizam muito de sua experiência prática e, de certo modo,
desconsideram a teoria como central.
Renata estabelece, portanto, uma relação instrumental com o programa,
buscando “receitas prontas” que lhe permitam chegar a seu objetivo principal:
ensinar todos os alunos. Interessa observar que, contrariamente à proposta
construtivista de ensino, essa relação instrumental é, de certa maneira, engendrada
pelos próprios materiais veiculados pelo programa, pois suas características
prescritivas possibilitam aos professores seguirem de perto o Guia de Planejamento
de Professores, inclusive nas formas de questionar o aluno e nas de intervir para
impulsionar a aprendizagem. Se assim é, o que justifica a presença de momentos de
formação continuada? A que eles se destinam? Ao que tudo indica, a essência do
Programa tem, ainda, como pano de fundo a racionalidade técnica, pois “esse modelo
investe todas as suas energias na ‘capacitação’ e no monitoramento das práticas dos
profissionais da educação em busca de ‘indicadores de qualidade’” (ROSA, 2010, p.
8).
134
Contudo, os materiais são aportes importantes para as atividades docentes da
professora: ao seguir estritamente algumas de suas propostas (trabalho em
duplas/grupos, dados, leitura diária, listas e alfabeto móvel), ressignificou sua
atividade, uma vez que com o apoio desses instrumentos – aliados à melhor
formação dos alunos obtida na educação infantil –, sua mediação em sala de aula
levou os alunos a se desenvolveram mais rapidamente quando comparados aos que
Renata atendia antes do contato com o Programa Ler e Escrever. Dessa forma, os
sentidos constituídos pela professora a respeito do Ler e Escrever passaram a ser
vistos como positivos, tornando-se ferramentas diferenciadas para ensinar os alunos
e alcançar um ensino mais igualitário.
Se antes do Ler e Escrever a professora pautava-se pelo modelo da
racionalidade técnica (saber fazer), os materiais novos lhe permitem construir
atividades estruturadas, que lhe asseguram um relativo manejo de classe. Nesse
sentido, pode-se dizer que o programa aqui analisado não ampliou os horizontes
teóricos da professora, mas deu-lhe condições de desenvolver uma prática mais bem-
sucedida, mesmo que ao preço de ser mera executora de saberes alheios, vinculados e
legitimados na rede paulista de ensino. Não é de se estranhar, portanto, que a
professora tenha constituído um sentido bastante positivo para as propostas
veiculadas no Programa Ler e Escrever.
No entanto, vale mencionar que, ao garantir um conteúdo mínimo a ser
ministrado por todos os professores da rede pública de ensino, homogeneizando seus
discursos e suas práticas, cria-se uma contradição ainda não resolvida com os
próprios princípios que regem a concepção construtivista de ensino. A autonomia
pedagógica e didática dos professores é negligenciada, pois o programa desconsidera
suas concepções, seus estilos pessoais e suas experiências prévias (HYPÓLITO;
VIEIRA; PIZZI; 2009) e, sobretudo, a subjetividade docente. Mas, como
evidenciado, Renata percebe isso. Vê progressos em seus alunos e, por isso, gosta do
Ler e Escrever. Depreende-se, então, que os sentidos constituídos por Renata sobre
sua atividade são, notadamente, os de prazer, satisfação, motivação, felicidade e
certeza na escolha de sua profissão.
Em síntese: o discurso que permeia todo o programa sugere que os
docentes possam refletir sobre sua prática e que tenham, nos momentos de formação
135
continuada, espaço para desenvolver seu aporte teórico, à luz do que se passa em sua
unidade escolar e em sua realidade concreta. Mas, como visto, esses pressupostos se
perdem no meio do caminho, de modo que central mesmo é a apropriação de uma
prática sistemática (o que pode ser bom, por estruturar a prática docente quando falta
tal habilidade ao professor), incidindo mais no saber fazer. Esse aspecto, ao invés de
romper com as críticas sobre o modelo da racionalidade técnica na formação dos
professores, perpetua-o, pois o “como fazer para que os alunos aprendam” é algo
constante em todo o material destinado aos professores, que passam assim a ser
meros executores de uma dada proposta sem a devida apropriação da teoria que lhe
dá sustentação.
3. Ao observar-se empregando o aprendido no referido programa, a
professora o considera importante para sua formação
profissional? Por quê?
Além de compreender os sentidos que a professora atribui ao Programa
Ler e Escrever e a sua atividade docente, este estudo também objetivou verificar o
impacto da autoconfrontação nas atividades de Renata. Como se pôde observar, esse
procedimento foi bastante profícuo e deve ser empregado na formação inicial e
continuada de professores, pois permite aos futuros ou atuais docentes passarem da
condição de protagonistas da ação para a de observadores de si mesmos. No caso
específico de Renata, a autoconfrontação possibilitou que ela refletisse sobre sua
postura e suas atitudes com os alunos, a ponto de sentir-se constrangida ao saber que
outro colega de profissão poderia vê-la naquela situação.
Em especial, a professora parece ter-se dado conta da contradição entre seu
discurso e o que foi observado por ela, pois percebeu sua rispidez e sua postura
rígida diante de uma aluna e, no mesmo movimento, que era mais exigente com seu
grupo do que imaginava ser, uma situação que não favorece o aprendizado dos
alunos. Depreende-se, então, que o sentimento de desconforto diante das imagens
engendrou uma reflexão a respeito de sua turma e uma nova maneira de agir com os
alunos. Muitas vezes, depois disso, ela pôde ser observada incentivando a
participação dos alunos nas atividades, ouvindo-os, socializando suas dúvidas. De
igual modo, continuou apresentando problemas em sua docência, mas se a
136
autoconfrontação fosse um instrumento corriqueiro na escola, a própria observação
compartilhada com outros poderia fazer muita diferença.
Diante disso, é preciso maior investimento e mudanças de postura e práticas,
tanto na formação inicial quanto na continuada. Na inicial, os processos formativos
precisam possibilitar ao futuro professor a reflexão sobre as teorias sociológicas,
pedagógicas, didáticas e psicológicas aliadas à realidade concreta das escolas, pois
de nada adianta contarem com diversos conhecimentos teóricos se não os empregam
em suas atividades rotineiras. Na formação continuada, é necessário compreender as
experiências prévias dos professores, o momento em que se encontram em seu ciclo
de vida profissional e os recursos que utilizam para lidar com o cotidiano escolar. De
igual modo, seria interessante que os professores pudessem confiar uns nos outros,
pois todos conhecem como é precária a formação que receberam no magistério.
Aprender com os pares e construir comunidades colaborativas de aprendizagem
parece ser a melhor saída para formar bem os professores em exercício. Criando
espaços de discussão nas próprias escolas, que levem em consideração sua realidade
e o que é possível nela realizar, os professores podem encontrar caminhos para,
coletivamente, superar suas dificuldades. Tais questões incidem diretamente no
empoderamento do professor, que, assim, se sentiria capaz de aliar teoria e prática,
algo que renovaria seus discursos, seus conhecimentos e sua atuação profissional.
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146
Anexos
Quadro dos indicadores e pré-indicadores da entrevista e das
autoconfrontações
Indicadores Pré-indicadores
As influências para a escolha da profissão A minha opção pelo magistério é porque
minha família toda é da educação, por
exemplo, eu tinha um tio lá em Buritama
mesmo que era Diretor de escola. Na época
era um status, né? Ah, eu fui aluna da mãe
do Gianechinni [risos], ela era minha
professora de História. [...] a minha família
toda era ligada à área da educação, minhas
irmãs, eu tive um irmão que era diretor de
escola, duas irmãs que já eram
professoras, minhas primas todas [eram]
professoras, e aí eu acho que foi por isso
mesmo [que eu escolhi a profissão].
O gosto pelo Magistério: “sabe quando
você vem trabalhar feliz?”
Eu falo assim: ah, eu ganho pouco, vou
procurar outro trabalho... Mas não
adianta, é disso que eu gosto mesmo.
E tem mais: eu me encontrei na profissão!
Aqui [na educação] é onde eu me encontrei.
Eu sou feliz... Sabe quando você vem
trabalhar feliz? Então, eu gosto daquilo
que eu faço, eu sinto saudade, eu fico triste
quando o ano vai terminar... É uma coisa
de paixão mesmo. Eu amo isso tudo que eu
faço.
Gosto, gosto, gosto muito [de dar aula]!
Estou muito feliz, principalmente pelo
retorno que a gente tem [dos alunos].
Escolheria sim [a profissão novamente], com
certeza. Não mudaria nada!
[...] quando você gosta daquilo que você
faz, não tem entrave. Mas se surge algum
147
tronco no caminho eu pulo, procuro
superar esse obstáculo e vou em frente. E
esse é o meu problema.
A formação inicial no magistério e a
comparação com o curso de Pedagogia
Eu sempre estudei em escola pública. Só a
minha faculdade é que está sendo
particular.
Eu me formei em 1984 no Magistério, no
curso normal. Ainda foi lá no interior. Foi
muito benfeito, muito benfeito, me deu
uma base muito grande.
Eu estou fazendo a Pedagogia agora,
embora meu curso não tenha me
acrescentado muito não. A faculdade em si,
não! O material é rico então eu procuro ler
em casa, mas eu gosto de buscar.
Experiências profissionais na educação e
na formação continuada
Só fazer curso não é suficiente não, eu
tenho que aprender mais! Eu tenho muito
que melhorar ainda...
Igual, teve um curso de fantoches que eu
gostaria de ter ido, só que era no horário
de HTPC e a diretora não liberou. Então
fica truncado porque não tinha outro horário e
eu não pude fazer. Isso para mim tinha que
melhorar muito, muito, muito porque eu
quero aprender, mas eu tenho que ter
oportunidade.
Eu queria fazer um curso de contação de
história porque eu quero aprender, mas eu
não tenho tempo e nem dinheiro – é tudo
muito caro!
[...] para o primeiro ano não tem nada,
nada, nada! Já tem uns três anos que eu
não participo de nenhuma capacitação
porque não tem oportunidade. Eles [SEE]
não oferecem nada e quando oferecem...
[...] já atuando muitos anos no primeiro ano,
eu gostaria [de fazer mais cursos] porque
tem muita coisa que eu já esqueci. Essa
148
parte de Matemática... Eu acho que tinha
que ter mais capacitação [em Matemática],
mas nós não temos nada.
As atividades que o Ler propõe são boas.
Agora começou a formação da área de
Matemática (Educação Matemática nos
Anos Iniciais – EMAI) e eu acho que cada
vez mais só tem a melhorar.
O Programa Ler e Escrever e o papel do
coordenador pedagógico nos momentos de
formação continuada
[...] o Ler é assim, mas ele tem que
funcionar, né? Esse ano ele está meio
assim... Por conta da carga de trabalho do
próprio coordenador pedagógico, não tem
sobrado tempo de estudo com a gente e
tem o nosso lado que a gente acaba que
fica mais no “blábláblá” do que no estudo
mesmo.
[...] porque senão fica um repasse de
informações e às vezes nesse repasse nem
tudo é falado. A gente não ouve da boca do
próprio formador as coisas como a
coordenadora pedagógica tem a
oportunidade de ouvir.
Eu preferiria mil vezes ter essa formação
direta como a coordenadora tem. Acho que
a gente aprenderia muito mais e utilizaria
esse mesmo tempo para a formação em si.
Porque eu acho que escaparia desse
negócio de sair do foco do estudo de vez em
quando, você entendeu?
Os materiais do Programa Ler e Escrever:
“eu gosto dessa proposta e eu vejo que os
alunos gostam também.”
Já é o segundo ano que eu estou
trabalhando com um 1° ano seguindo o Ler
e Escrever e é muito legal.
Os materiais são bons e me ajudam muito
na minha prática. Igual, às vezes eles [os
materiais] trazem outras opções para a
gente fazer em sala e daí dá para trabalhar
com os alunos que já têm facilidade no
assunto e com aqueles que ainda não têm.
Me ajudam no planejamento também...
149
Ajudam a ver outras possibilidades de
trabalho.
O Ler é um norte para o meu trabalho. Eu
gosto de tentar, sabe? E o Ler me dá essa
oportunidade de experimentar e isso eu
gosto muito. Tem dado muito certo.
Na verdade, eu aprendi e não faz muito
tempo que eu deveria ler todos os dias. Eu
aprendi isso no Ler mesmo.
E eu vejo isso nesse ano, como foi rico e foi
uma coisa de louco. Eles aprenderam rápido
demais.
Eu já vi uma diferença [na prática] e eu
acho que eu também já me aprimorei de
um ano para o outro... E isso tudo
recebendo crianças com cinco anos e tem
sido muito legal.
Eu gosto dessa proposta e vejo que os
alunos gostam também.
Funciona, é rico o programa. [...] o
programa é ótimo, é ótimo mesmo!
[...] o dia do Índio o livro propõe algumas
atividades, mas eu acho pouco e eu sempre
complemento.
[...] o material de 1° ano começou a vir
aqui pra gente só nesse ano [2011], antes
não tinha. Ano passado eu trabalhei com
um 1° ano e não teve material. Eu
trabalhava com livro meu mesmo, em cima
do meu material.
Eles andam com os deles [livros do
Programa Ler e Escrever] na bolsa porque
eles adoram ler.
Têm umas atividades de adivinhar, o
material é muito rico.
O material que vem para o aluno eu achei
150
pobre, porque eles [SEE] estão querendo
muito mais do que aquilo que o material
do aluno está oferecendo.
[...] na verdade, o material de 1° ano, eu
achei fraco para mim, você entende? Eu
achei que o de 2° ano para minha sala era
muito mais interessante.
[...] usar o livro [de textos] laranja [do
Programa Ler e Escrever] foi uma opção
minha. [...] Como o desenvolvimento da
sala foi muito rápido, eu percebi que
muitas crianças se alfabetizaram num
piscar de olhos e, aí, eu queria mais e mais
para eles. Daí, eu fui buscar esse livro. Não
é material de 1° ano... É um material de 2°
ano, esse livro de texto. Só que, como
tinham alguns na escola, eu busquei fora
também e completei para eles.
A busca por novas estratégias: “eu estou
em final de carreira, mas eu quero mais!”
[...] Eu quero aprender para ensinar
melhor porque [...] eu ainda tenho muito
que aprender.
Eu acho que aquilo que eu não souber
fazer, eu não vou saber ensinar.
Sempre buscando e quero mais, você
entendeu? Eu estou em final de carreira,
mas eu quero mais!
Na verdade, eu sempre fui meio
“atiradona” assim. Eu sempre busquei, eu
sempre busquei. Eu nunca fui uma pessoa
que fica parada, não. Ah, deu certo? Então
vamos lá! É uma oportunidade... então,
vamos tentar.
Na internet, eu busco e eu lanço assim:
dificuldade em tal atividade e vou
buscando.
[...] eu busco na internet, às vezes um teatro,
mas o custo... Por que o salário não
proporciona, né? Mas eu gosto de teatro,
151
shows, leio bastante... Eu tenho o hábito de
ir só, no banheiro, lendo e aí eu pego um
livro e leio ou a [revista] Nova Escola e leio.
Essa é a minha prática.
As mudanças da carga horária do ensino
fundamental I e a influência da formação
dos alunos na educação infantil
Ano passado [2010] foi o primeiro ano que
o 1° ano foi instituído no Estado. Então no
ano passado, eu trabalhei com um 1° ano e
neste ano [2011] estou com um 1° ano de
novo.
Nós estamos recebendo bebês na escola,
gente!
Você exigir que uma criança fique cinco
horas sentada na carteira é demais para o
meu gosto, por isso que às vezes eu deixo...
Quer corre, corre. É lógico que eu não vou
deixar [a criança se] machucar, eu dou um
pouco de liberdade para poder extravasar,
porque eu acho o cúmulo isso!
Eles adoram brincar de lutar, o Roberto, o
Tadeu e o Hernesto. São os três e é demais!
Mas eu percebo que, se eu deixo um
pouquinho, eles acabam voltando para a
atividade menos estressados.
Eles estão vindo muito novinhos... No ano
passado, eu até falei para as meninas [outras
professoras] – e isso é uma observação
minha, pela minha prática, tá? – as crianças
já estão vindo mais maduras, você
entendeu? Então, a gente já vê que é uma
mudança lá na base mesmo, lá na educação
infantil. Porque esse ano foi muito rápido e
152
eles se alfabetizaram muito rápido!
[...] eles estão vindo melhores da educação
infantil, a base já está mais estruturada.
Eu acho que nós estamos num trabalho de
sequência, porque, às vezes, quando eu vou
contar uma história, muitos já ouviram,
né? E ouviram lá na educação infantil...
Nós estamos colhendo os frutos agora. Eu
acho que nós estamos no caminho certo.
Nós temos que tentar, arriscar. Nós vamos
errar? Vamos sim! Mas temos que tentar!
A percepção de Renata sobre sua turma
Eu não tenho problemas sérios com a
minha sala, eu não tenho, não.
Estou [satisfeita com a turma] mesmo
porque eles foram muito espertinhos. Não
teve muito desgaste, sabe? Até em
comportamento, eu não tive muito
problema: esse ano, a minha sala foi bem
tranquila, bem comprometida.
A minha sala é barulhenta e eu não consigo
fazer eles ficarem quietinhos! Mas eles
participam muito, eles querem, eles gostam
e eles se envolveram comigo! O avanço é
notório.
Tem hora que até eu falo para as meninas
[outras professoras]: “eu consigo isolar.
Mesmo eles, com todo o barulho, eu
153
consigo isolar isso”.
Nossa, eles estão quietinhos mesmo, nem
eu, na hora, tinha percebido isso. Eu acho
que eu vou passar esses vídeos para eles,
acho que eles vão gostar de se ver.
Nossa, é mesmo: o barulho de fora da sala
é maior do que o de dentro da minha sala.
Os sentimentos de Renata acerca de suas
atitudes com os alunos: “aquela angústia,
aquela coisa que eu quero, que eu quero, que
eu quero e aí acaba não acontecendo e é onde
me frustra.”
Eu acho que eu falo muito alto, eu grito.
Não é que eu grite, mas meu tom de voz já
é alto mesmo, eu acho que eu teria que
trabalhar esse meu lado. E... Eu queria ser
melhor!
É, eu achei que eu sou brava [risos]. Ah,
tem horas que eu sou chata mesmo, mas,
na verdade, eu quero que eles aprendam e,
quando algumas crianças perdem o foco,
isso é que me deixa meio brava mesmo!
Eu quero conseguir fazer com que eles
aprendam e eu acho que às vezes eles
dispersam um pouquinho. Um pouquinho
não: bastante, porque eu acho que tem
algumas crianças que dispersam muito. O
que eu tento fazer é arranjar um jeito mais
próximo para que todos estejam
envolvidos mesmo.
Eu fico angustiada com isso, você
154
entendeu? Eu sei que eu sufoco eles [os
alunos] um pouco, eu sei que cada um tem o
seu tempo; mas, às vezes, eu quero ir no
meu tempo e essa ansiedade acaba
prejudicando um pouco. Eu acabo ficando
muito em cima de uns alunos e eu acho que
isso acaba prejudicando, você entendeu? Ou
mesmo aquela angústia, aquela coisa que
eu quero, que eu quero, que eu quero e, aí,
acaba não acontecendo. É onde me frustra.
As facilidades e os entraves do espaço
escolar no uso dos recursos previstos pelo
Ler e Escrever
A internet, que é um recurso que eu
gostaria de estar utilizando com eles [os
alunos] porque tem muitos sites de jogos e
daria para fazer um trabalho bem legal.
Mas, muitas vezes, você não pode usar
porque ou não tem, ou não é permitido, ou
não está funcionando. Além disso, [...],
aqui na escola, a biblioteca é ocupada por
uma sala de aula. Então, fica difícil [usar a
biblioteca] porque você tem que deslocar a
professora e sua turma para outro lugar.
Falta [melhorar] essa parte de passeio, de
melhorar a parte de brinquedo.
Eu gostaria de ter um apoio de
profissionais especializados, do tipo
fonoaudiólogo, porque eu acho que tem
criança que precisa. Eu acho que tinha que
ter esse apoio externo, para poder facilitar
ainda mais para a criança, porque acaba
155
sendo para ela um entrave.
As metas para o ano letivo e a avaliação:
“traço uma meta para o ano, mas como eles
estão no primeiro ano eu avalio mesmo é
mais a participação deles nas atividades em
sala.”
As minhas metas são traçadas no início do
ano e eu espero que eles saiam todos
alfabetizados. Se eu não consigo isso, eu
sofro, eu sofro.
Eu faço assim: traço uma meta para o ano,
mas, como eles estão no primeiro ano, eu
avalio mesmo é mais a participação deles
nas atividades em sala.
O planejamento e as aulas
Eu planejo [as aulas] na minha casa mesmo,
de manhã porque eu acordo muito cedo e é o
horário que eu mais [me] concentro mesmo.
Às vezes eu uso o horário do Ler também.
Procuro a coordenadora e as minhas
colegas para ter novas ideias em cima
daquilo que eles [Programa Ler e Escrever]
estão propondo, seleciono algumas
atividades. Mas, basicamente, eu faço isso na
minha casa mesmo.
Às vezes, eu planejo e chega aqui e não dá
certo, mas aí eu faço uma adaptação e
procuro retomar [o conteúdo com os
alunos] no outro dia. Nossa, porque às
vezes é complicado, porque você vem cheia
de gás e aí desestrutura tudo. Tem que ter
um jogo de cintura para lidar com isso.
Teoria e prática: “o meu conhecimento
teórico ajudou muito, mas a minha prática Depois que eu comecei a estudar os
156
também [ajudou].”
autores, eu comecei a pensar diferente.
Porque a gente tinha muito uma ideia
assim: “no papel aceita tudo!”, você
entendeu?
Porque eu acho que o autor quer te
ensinar, quer te colocar; te dar subsídio
para compreender aquilo que acontece na
sua sala de aula.
Eu aprendi que eu tenho que refletir sobre
a minha prática, eu aprendi isso.
Uma coisa que me chama muito a atenção
é essa parte da avaliação que é a ação-
reflexão-ação, porque eu só mudei o meu
jeito de pensar por conta do estudo que eu
fiz em cima da Jussara Hoffman.
Eu gosto muito da nossa proposta
[Programa Ler e Escrever], que é baseada
quase que unicamente em cima da Telma
Weisz e eu acho que ela acrescenta muito
para o nosso trabalho.
A Telma Weisz, a gente já sabia porque a
Emília Ferreiro colocava isso [das hipóteses
silábicas] há quantos anos? Mas a gente
não aplicava, você nem compreendia, você
não entendia aquilo e hoje para mim isso
tudo é muito rico porque ela é uma direção
157
para o meu trabalho.
O meu conhecimento teórico ajudou muito,
mas a minha prática também [ajudou]. É
uma bagagem muito grande, além disso, eu
estou sempre buscando e eu quero
entender o “porquê”. Eu não aceito, tipo
assim: ah, o aluno não aprendeu. Não
aprendeu, por quê? Por que um [aluno]
aprende e o outro não? Eu quero sempre
uma explicação para isso.
Eu uso o construtivismo mesmo. É lógico
que tem hora que eu mesclo, porque dá
assim. É... Eu procuro buscar alguma coisa
que dê significado para eles, então eu
acabo mesclando porque eu acho que deu
certo e aí eu acabo trazendo para o meu
dia a dia.
O que me chama atenção [no
construtivismo] é essa liberdade da criança
colocar aquilo que ela pensa, sabe? A nossa
prática antigamente ela era voltada ao
certo, ou seja, só era considerado aquilo que
era realmente certo... E hoje não é assim,
você considera o aluno que está
avançando, que está buscando, né? Essa
reflexão [que o construtivismo] propõe eu
acho legal. Eu acho que, quando você dá
158
liberdade para a criança arriscar, você
está fazendo ela crescer.
Na minha prática, eu acho que é essa
liberdade mesmo, essa liberdade que eu
dou para o meu aluno poder se expressar,
dele poder agir, e isso eu acho que é legal.
Eu procuro entender, eu busco entender o
porquê [a criança está falando aquilo], dar
espaço para a criança se colocar.
O erro? Eu lido como construção. Uma
reflexão para minha prática porque onde
meu aluno está errando é porque eu não
ensinei direito [risos]. Eu uso isso para
traçar a minha aula, em cima do erro
deles. Em cima do erro deles é que eu vou
aprimorar a minha prática.
As formas de trabalho para alcançar as
metas traçadas no início do ano: “eu tenho
uma meta de atender, pelo menos duas vezes
por semana, de modo individual, aí eu
planejo uma outra atividade para os outros
que caminham sozinhos.”
Eu dou uma lista de palavras e com essas
crianças que têm dificuldades eu vou
trabalhar em cima da escrita mesmo, da
reflexão de como se escreve. Aqueles que já
estão alfabéticos, vão trabalhar com a
mesma lista de palavras, mas com
construção de frases e eu vou ampliando o
repertório e peço para eles usarem mais
palavras. Eu peço para eles explicarem o
porquê.
O trabalho com lista funciona pra
159
caramba!
Tem um dia que eu dedico para as crianças
que estão com mais dificuldade. É lógico
que todos os dias eu trabalho com eles, mas
mesmo assim, se você trabalha... Eu acho
que eles têm que se sentir inseridos dentro
da sala, você entendeu? Se todos os dias eu
der uma atividade diferente para eles, eles
se sentem diminuídos. Então, eu procuro
equilibrar.
Eu sempre tenho outra atividade para ele
[Vinícius], porque, às vezes, eu preciso de
um tempinho a mais para aqueles que
ainda estão caminhando. Então, eu sempre
dou outra atividade para ele, até porque eu
tenho que ocupar ele, porque senão ele
pega fogo e dispersa os outros. Ele é uma
criança que precisa estar sempre ocupada.
Para o Vinícius e o Luís, eu tenho que
pedir um tempo mesmo, porque eles
terminam muito rápido. Mas eu tento
ocupar o tempo deles pedindo para eles
ajudarem os outros que estão com mais
dificuldade, embora o temperamento do
Vinícius não seja o de ajudar: ele não
gosta, ele não tem paciência, sabe?
A reflexão do aluno sobre a escrita: o uso
do alfabeto móvel e da lista de palavras [O objetivo da atividade] era refletir como
escrever as palavras. O alfabeto móvel fui eu
160
como estratégias de ensino-aprendizagem
que escolhi para trabalhar com esse tema
[festa de aniversário] e dá para perceber
que a riqueza de vocabulário de uns é bem
diferente da dos outros.
[Trabalhar o tema festa de aniversário]
veio do Ler, porque ele [Ler e Escrever]
sugere que o professor trabalhe com temas
do cotidiano da criança e eu sei que esse
tema eles gostam muito. E você vê, aí no
vídeo, que eles gostaram muito e que
participaram bastante.
As interferências, eu acho que dá para
fazer na hora que surge a dúvida, porque
quando o aluno só escreve é mecânico, né?
E, aí [com o alfabeto móvel], ele vivencia, é
o concreto. E, ainda, tem também a ajuda
do grupo.
Eu montei essas duas folhinhas para eles,
porque eu queria que eles identificassem,
na primeira atividade, que história era a fala
do personagem. E a outra era para eles
estarem dentro dos gêneros que já tinham
sido trabalhados – contos –, listando
mesmo os contos.
[O objetivo da atividade] é a reflexão sobre
a escrita mesmo, dentro dos contos. Porque
para eles é prazeroso e eles gostam. Eu
acho que, quando você trabalha dentro
desse gênero, é significativo para eles. Eles
161
gostam bastante e participam.
O objetivo era esse mesmo: trabalhar a
reflexão sobre o sistema de escrita. Por
exemplo, na palavra “madrasta”, eu sabia
que iam ter dificuldades. E esse meu
trabalho, de colocar os jeitos que as
crianças estavam escrevendo “madrasta”
na lousa, era para eles perceberem que
letra estava faltando ou que letra estava
sobrando. Por exemplo, eu peguei vários
jeitos diferentes que as crianças
escreveram “madrasta” para poder
compartilhar e corrigir junto com todo
mundo. E isso ajuda muito! Eles olham
não apenas para o erro deles, como para os
dos colegas, para poderem pensar como
eles estão escrevendo. E você vê que tem
uma parte lá que eles até riram do colega!
Mas o meu objetivo não é apontar o erro e,
por isso, que eu não coloco lá na lousa
quem foi que escreveu o quê. Eu busco
compartilhar as possibilidades, para que
eles reflitam e consigam construir o novo
em cima do erro que fizeram.
Os agrupamentos como estratégia de
ensino-aprendizagem e aprimoramento
das relações sociais dos alunos
Eu trabalho diariamente com os
agrupamentos, só que é assim: às vezes, a
criança tem dificuldade de aprendizagem e
de comportamento, ou seja, tem
dificuldade de se relacionar com os
colegas, também. É difícil, porque, às
vezes, você nem consegue um parceiro
para aquele [aluno] ali. Então, é complicado.
Mas eu vou experimentando, vou na base
162
da experimentação, até quando eu consigo
uma parceria que dê certo. Mas é bem
complicado, porque aquele [aluno] que é
alfabético, não tem muita paciência, não
aceita. Aquele [aluno] que é indisciplinado e
tem dificuldade também, às vezes recusa até a
ajuda do outro. É complicado, mas eu estou
tentando.
O Breno tem dificuldade de aprendizagem,
mas ele é um menino dócil e se relaciona
bem com os outros. Essa parceria deu
muito certo, muito certo mesmo. O Vinícius
é mais avançado que o Breno, ainda mais
agora, que o Breno já está silábico com
valor e o Vinícius já é alfabético! E, agora,
eu já vejo mais produtividade nesse
agrupamento. Mas, antes, não. Antes, só
dava certo por causa do gênio dos dois,
dessa identificação entre eles. Mas, como
agrupamento, eu não sei se era produtivo.
Hoje já é [produtivo], porque ele [Breno] está
silábico com valor. Mas, mesmo assim, eu
acho que ajudou, porque o Breno avançou
bastante.
A Laura, hoje, já está alfabética; a
Samantha veio pré-silábica e foi galgando.
Eu percebo que a Laura influencia
positivamente a Samantha, de modo que
esse agrupamento deu bastante certo.
A Yakne com a Rafaela é outro
agrupamento muito bom. A Rafaela tem
um problema de fala, então ela troca muito
163
as letras. A Yakne e a Rafaela são um
grupinho fechado: elas, normalmente, não
aceitam gente de fora, não. Só que a Yakne
se predispôs a ajudar a Rafaela, e, como a
Rafaela falta bastante, eu deixei. Só que ela
já evoluiu muito, já está lendo quase tudo e
copiando também! Já está melhorando
bastante. Eu já encaminhei para uma
fonoaudióloga, mas ela ainda não foi. Fora
isso, no primeiro trimestre, ela era bem
fraquinha. Aí, veio aquele programa Visão do
Futuro e a gente descobriu que ela tinha uma
deficiência visual que também a prejudicava
no aprendizado.
Os grupos foram separados segundo o
nível de dificuldade de cada um.
E você vê [no vídeo] que todos eles estão no
mesmo nível de aprendizagem. Quando eu
montei os grupos, eu fiz uma divisão de
silábico com valor, um silábico sem valor,
você entendeu? Porque senão não
funciona... Os agrupamentos têm que ser
pensados antes mesmo.
Eu acho que eu atendi muito uns grupos e
outros não. Não sei se porque eles não me
solicitaram, mas eu acho que eu deveria
circular mais entre os grupos. Embora eu
não tenha deixado nenhum grupo sem fazer,
eu não sei se foi porque eles não me
solicitaram... Mas, mesmo assim, eu acho
que eu deveria ter circulado mais. Mas é
isso daí, mesmo: a atividade é dentro de um
164
campo semântico que eles gostam e isso
também ajuda muito; e os agrupamentos
ajudam muito.
A Matemática e o uso de materiais
diversificados
Eu trabalho com dados e é uma coisa
minha mesmo, que eu acho que funciona e
eles amam! Por exemplo, o dado, eu dou
para os alunos que vão terminando as
atividades. Uma vez por semana, para que
todos tenham a mesma oportunidade,
porque eles amam o dado de paixão.
Era ver se eles chegariam ao resultado, quais
as possibilidades que eles usariam para
chegar a um resultado.
O Ler propõe isso mesmo: as diversas
maneiras que eles encontram para chegar
ao resultado.
[Essa atividade de Matemática] é do Ler,
sim. E está no livro. Um dia antes, eu tinha
pedido para eles fazerem uma pesquisa de
preços. Na verdade, eu ia trazer o folheto
do supermercado, mas, aí, eu achei que, se
eles pesquisassem, era uma maneira deles
irem buscando alternativas para fazer a
tarefa. Eu achei que foram poucos os que
não trouxeram e, dos que trouxeram, nós
escolhemos os preços. Como tinha muita
diferença de preço, eu questionei a marca,
a qualidade, a quantidade. Aproveitei para
discutir que os preços não são os mesmos
em todos os lugares para as mesmas coisas.
165
Essa atividade é uma proposta do Ler, mas
a gente não usa tanto. Se a gente usasse
mais, você vê que tem resultado. Porque os
que sabem mais ajudam os outros.
A parceria com os pais de alunos
Eu nunca tive problema com pais, de
rejeição ou de críticas. E, com os pais, o
relacionamento foi sempre bom e com os
alunos também.
Às vezes, eu sou obrigada a chamar a mãe.
Mas eu evito o máximo que eu posso,
porque eu procuro resolver tudo dentro da
sala mesmo... Resolver os conflitos que
surgem ali dentro... Ontem mesmo teve a
questão do piolho e, se você deixar, o negócio
cresce. E se você se envolve muito, a família
também [não gosta], né? Nenhuma mãe
gosta de receber um bilhetinho escrito:
olhe a cabeça da sua filha, porque está
tudo cheio de piolho. Então, eu procuro
mesmo trabalhar no todo, levar um
problema individual e estruturar para a
sala toda.
Os pais também ajudaram bastante, nessa
parceria com os pais, tudo o que eu propus
foi aceito. Então, eu acho que é um
conjunto de ações que ajudam nesse
trabalho.
A relação com as gestoras e com o corpo
docente
Tudo o que a gestão vai fazer, ela participa
com os professores. Tudo é resolvido junto,
em conjunto mesmo e isso me dá uma certa
autonomia, embora uma autonomia entre
aspas, né? Porque nem sempre a equipe
166
gestora pensa igual a você. Aqui, quando
dá para ceder, a gente sempre busca ver os
dois lados – cede de um lado, aí o outro cede
de outro e a gente procura sempre um acordo.
Nem sempre a gente é atendido, mas é feito
um acordo.
Eu aprendo muito, aprendo bastante
mesmo com eles [com os outros professores].
E assim... Eu não aceito o “eu não sei”. Eu
quero uma solução para o meu problema...
Por exemplo, caiu numa questão do concurso:
para que a gente ensinava sequência
numérica? E a gente não tinha a resposta e eu
não aceito, eu fico atrás até descobrir. E, aí,
hoje, nós descobrimos juntos. Eu acho isso
legal.
Nós trocamos muito. Por conta de eu estar
sempre buscando, mesmo, e da minha
prática, acaba que eu auxilio os meus
colegas. Por exemplo, a gente busca alguma
coisa na internet, mas eu não vou chegar lá
[na sala de aula] e dar isso para os meus
alunos, sem analisar determinada atividade.
Então, coisa pronta eu não gosto; eu gosto da
construção, mesmo. Eu acho que é por
conta [dos colegas professores] de verem
que está dando certo, que eles acabam me
procurando.
O impacto da ACS: “eu nunca tinha visto
uma aula minha!”
Eu não me preparei para dar essa aula,
você entendeu? E eu achei muito legal.
[A atividade] estava sim [de acordo com o
desenvolvimento dos alunos]. Para os
167
alfabéticos, eu achei que foi fácil demais,
porque, quando eu terminei de entregar as
folhas para a turma do fundo, alguns,
daqui da frente, já tinham terminado. De
repente, eu poderia ter dado uma reescrita
ou uma produção coletiva.
O que eu percebi é que eu preciso
trabalhar mais o alfabeto móvel com eles,
porque eu vi o envolvimento deles.
Eu acho que é uma atividade trabalhosa
para mim, mas eu acho que, depois de ver
o vídeo, eu tenho que fazer mais, porque é
uma coisa que ajuda muito no processo
educativo deles.
Analisando a atividade realizada na aula
de matemática: “acho que foi bem produtivo
o dia para eles.”
Eu fiquei feliz com a atividade e acho que
foi bem produtivo o dia para eles.
Eu acho que o folheto do supermercado, se
todos tivessem trazido, ajudaria bastante,
não sei se a ida a um mercadinho poderia ter
motivado mais. Mas eu acho que o objetivo
[testar as diversas maneiras de chegar a um
resultado] eu consegui!
Eu acho que eu consegui atingir o meu
objetivo, porque eu tive várias crianças
que usaram várias possibilidades
diferentes. E, o que eu mais gostei, foi que
eu mostrei para eles que não existe um
único jeito de fazer a conta de adição e
que, na Matemática, eles podem usar
muitas outras maneiras de somar.
As percepções de Renata sobre as Eu acho que a gente tem que estar
168
atividades realizadas: “eu ainda tenho que
mudar bastante”
aprendendo mesmo. Isso daqui, para mim,
é um aprendizado, porque me leva a
mudar a minha prática em muitos aspectos
que eu vi, como por exemplo, esse da
minha voz ser muito alta e rouca; de
atitude diante dos alunos, de postura do
meu corpo (até isso eu preciso mudar, a
minha postura mesmo: acho que eu estou
muito curvada), de buscar caminhos para
atingir todos os alunos, fazer eles
aprenderem.
Ah, eu achei legal [a autoconfrontação]. Eu
acho que eu vi que tenho que mudar
bastante, que eu preciso estudar muito
ainda, que eu não estou tão longe, mas
preciso chegar mais perto do que eu quero:
fazer tudo para que todos consigam
aprender. Isso daí [autoconfrontação] vai
abrindo o olhar da gente, para que se possa
buscar e se olhar atuando mesmo.
Tudo depende do seu olhar... Porque eu não
vejo isso como crítica: eu vejo como espaço
de construção mesmo, para melhorar a
minha prática. Mas tem gente que não aceita
isso, né? Tem gente que tem dificuldade para
enfrentar o novo e isso pode acabar sendo um
problema para muita gente. Na primeira
filmagem, eu não sabia direito o que ia
acontecer; mas, hoje, eu uso sempre isso
[vídeos, com os episódios analisados,
entregues à docente, ao final do trabalho de
campo] para refletir e rever a minha
prática mesmo. Mas, para quem acha que
169
isso pode ser uma avaliação, é mais difícil.
Eu acho que tudo o que a gente tiver para
chegar mais perto do nosso objetivo, que é
a ensinagem, é bom.
170
Transcrição da entrevista – Professora Renata
Pesquisadora: Estamos aqui com a professora Renata para o desenvolvimento desta entrevista.
Eu gostaria de saber, antes de qualquer coisa, a sua trajetória de vida pessoal.
Renata: Eu era de uma cidade muito pequenininha do interior, Buritama. A minha mãe ficou
viúva com oito filhos e, por consequência disso, a cidade era muito pequenininha, não tinha
emprego. Aí nós procuramos um centro maior [uma cidade maior], onde a gente pudesse
estudar e trabalhar. Como eu tinha um irmão que trabalhava e era solteiro, trabalhava num
banco, no banco Itaú, ele foi transferido para Lins e todos nós optamos ir para Lins também.
A minha irmã foi fazer Serviço Social e eu fiz [curso] técnico em Contabilidade porque eu
trabalhava numa empresa de consórcio.
Pesquisadora: Você começou a trabalhar muito cedo?
Renata: Ah sim! Com 11 anos eu já trabalhava, só que assim, eu era ajudante numa loja de
tecidos de uma prima minha. Mais isso era mais para [me] ocupar, para ter uma rendinha e
ajudar minha mãe, você entendeu?
Pesquisadora: Seu pai morreu muito cedo?
Renata: Muito cedo, eu tinha dois anos quando meu pai morreu e a minha irmã mais nova
tinha quatro meses. A nossa cidade, para você ter uma ideia, era muito pequena e a cidade
maior que era mais próxima era Birigui. Só que para você atravessar de Buritama para Birigui
era só de balsa. Às vezes a balsa estava para o lado de lá e você tinha que ficar esperando.
Meu pai tinha uma beneficiadora de arroz e era manual. Acho que conforme ele fez a força
pra tocar o motor, a apêndice dele “suporou”, estourou. Aí até que a balsa chegou não deu
tempo. A balsa estava do lado de lá. Aí minha mãe ficou com os oito filhos, o mais velho
tinha 14 anos e a mais nova quatro meses. Teve o apoio da família, até uma certa idade...
Nessa época foi em 77, que nós mudamos pra Lins. A minha opção pelo magistério é porque
minha família toda é da educação, por exemplo, eu tinha um tio lá em Buritama mesmo que
era Diretor de escola. Na época era um status, né? Ah, eu fui aluna da mãe do Gianechinni
(risos), ela era minha professora de História.
Pesquisadora: Mas, você me disse que fez o curso de Contabilidade primeiro, é isso?
171
Renata: Isso, eu fiz Contabilidade porque eu trabalhava na área administrativa. Aí, quando eu
conheci meu marido, me casei... Aí ele achou que eu não deveria trabalhar mais porque era
para eu cuidar do filho, né? Porque logo veio o primeiro filho, né?
Pesquisadora: Você se casou com quantos anos?
Renata: Me casei com 22. Na verdade era assim, quando eu me casei ele [o marido] não quis
mais [que Renata trabalhasse]. Quando eu trabalhava na loja, na parte administrativa,
funcionava de sábado... No interior tem muito disso, né? Aqui também [se referindo a São
Paulo]. Eu trabalhava aos finais de semana e ele [o marido] queria mais exclusividade. Como
na época dava a gente conversou e eu optei por ficar em casa mesmo, só que quando você está
acostumada a trabalhar, né? Aí quando meu filho mais novo tinha 1 aninho, eu resolvi voltar.
Aí eu disse: ah, eu acho que vou fazer Magistério! Aí eu fiz o [curso] Normal, o Ensino
Médio e foi aonde eu me identifiquei. Em 1984 eu me formei, só que eu estava grávida e aí
nasceu meu segundo filho. Na verdade, eu já estava atuando, mas eu comecei mesmo em
1985 depois que ele nasceu e eu estou até hoje. Em 1986, não foi em 1988, meu marido foi
transferido para Brasília e aí eu fui também. Não tinha como eu ficar e nem dava para ficar eu
pra cá e ele pra lá. Quando eu fui para Brasília eu me afastei do Estado, mas trabalhei lá na
área da saúde e tal. Quando eu voltei para Lins assumi de novo o Magistério. Aí, meus filhos
foram crescendo e o mais velho arrumou um estágio aqui [em São Paulo] e veio para cá. Com
o negócio de municipalização lá no interior e tudo mais, eu acabei vindo pra cá também.
Pesquisadora: Faz quanto tempo isso mesmo?
Professora: Foi em 2006... O meu [filho] mais novo trabalhava numa empresa, em um
frigorífico e foi transferido pra cá também. Meu marido ainda ficou em Lins e era aquela
coisa ele lá e eu cá. Aí, meu marido viu que não dava... Aí ficamos 1 ano assim: um final de
semana eu ia, no outro ele vinha. Ele achou melhor vir também e foi a melhor coisa que nós
fizemos, porque depois vieram os netos, que são a alegria da minha vida...
Pesquisadora: Quantos netos?
Renata: Dois, um casal. Os dois são do meu [filho] mais velho. O meu [filho] mais novo é
solteiro, mora comigo. Agora, meu primeiro neto veio [nasceu] com uma síndrome de
hipoplasia do ventrículo esquerdo, ele tem metadinha do coração, mas não tem o lado
esquerdo do coração. Ele nasceu em 2008 e foi uma fase bem, bem difícil, mas é uma benção
de Deus. Ele já passou por quatro cirurgias, mas está firme forte aqui com a gente.
172
Pesquisadora: Nossa, que bom! Mas, voltando ao assunto, alguém te influenciou na escolha
pelo magistério?
Renata: Como eu disse, a minha família toda era ligada à área da educação, minhas irmãs, eu
tive um irmão que era diretor de escola, duas irmãs que já eram professoras, minhas primas
todas [eram] professoras, e aí eu acho que foi por isso mesmo. E tem mais: eu me encontrei na
profissão, esse que é o problema.
Pesquisadora: Ou a solução, né? (risos)
Renata: Eu falo assim: ah, eu ganho pouco, vou procurar outro trabalho... Mas não adianta, é
disso que eu gosto mesmo. Eu já fui ATP (Assistente Técnico Pedagógico) na Diretoria de
Ensino lá em Lins na sala de aceleração, já trabalhei na APAE um tempo... Na verdade, eu
gosto mesmo (ênfase especial na expressão “gosto mesmo”). E tem mais, eu gosto de
desafios... Às vezes eu falo: ah, não vou mais pegar 1° ano porque dá muito trabalho, mas
depois eu acabo pegando o 1° ano, não tem jeito! (risos)
Pesquisadora: Você tem muita experiência no 1° ano?
Renata: É, eu já tenho 12 anos [que atuo] no 1° ano. Tem uma coisa que é legal nisso tudo: o
meu conhecimento teórico ajudou muito, mas a minha prática também [ajudou]. É uma
bagagem muito grande, além disso, eu estou sempre buscando e eu quero entender o
“porque”. Eu não aceito, tipo assim: ah, o aluno não aprendeu. Não aprendeu, por quê? Por
que um [aluno] aprende e o outro não? Eu quero sempre uma explicação para isso. Mas, eu
estou meio angustiada com isso, você entendeu? Eu sei que eu sufoco eles [os alunos] um
pouco, eu sei que cada um tem o seu tempo, mas às vezes eu quero ir no meu tempo e essa
ansiedade acaba prejudicando um pouco.
Pesquisadora: Mas, como você acha que sufoca os alunos?
Renata: Ah, eu acabo ficando muito em cima daquele aluno e eu acho que isso acaba
prejudicando, você entendeu? Ou mesmo aquela angústia, aquela coisa que eu quero, que eu
quero, que eu quero e aí acaba não acontecendo e é aonde me frustra.
Pesquisadora: E, como você lida com isso? Com essa frustração?
Renata: É... é difícil (risos). As minhas metas são traçadas no início do ano e eu espero que
eles saiam todos alfabetizados e se eu não consigo isso, eu sofro, eu sofro. Mas assim, eu
173
tinha vontade de acompanhar, mas nunca aconteceu, acompanhar eles no próximo ano. Eu
queria isso porque eu acho que eu já conheço as dificuldades e eu queria ver se dá certo. Mas,
às vezes, não depende só da gente, depende de questões administrativas, né?
Pesquisadora: Você me disse que uma das suas metas é que todos os seus alunos saiam
alfabetizados, certo? Para isso, quais são as estratégias que você utiliza?
Renata:Olha, eu procuro tudo, eu busco recurso em tudo, com as próprias colegas que tem um
trabalho diferente, eu procuro diversificar, eu procuro dar um atendimento individual... Não
vou dizer que todos os dias eu faço isso porque não dá tempo mesmo, mas eu tenho uma meta
de atender, pelo menos duas vezes por semana, de modo individual, aí eu planejo uma outra
atividade para os outros que caminham sozinhos. Mas, eu acho que eu ainda tenho muito que
aprender... (risos)
Pesquisadora: Você poderia me dar um exemplo das atividades diversificadas que você usa no
seu dia a dia?
Renata: Ah, por exemplo, o alfabeto móvel. Para os alunos alfabéticos eu até dou a letrinha,
mas como passatempo mesmo. Os agrupamentos, eu trabalho diariamente com os
agrupamentos, só que é assim: às vezes a criança tem dificuldade de aprendizagem e de
comportamento, ou seja, tem dificuldade de se relacionar também. É difícil porque às vezes
você nem consegue um parceiro para aquele [aluno] ali. Então, é complicado. Mas, eu vou
experimentando, vou na base da experimentação até quando eu consigo uma parceria que dê
certo. Mas, é bem complicado porque aquele [aluno] que é alfabético não tem muita
paciência, não aceita. Aquele [aluno] que é indisciplinado e tem dificuldade também às vezes
recusa até a ajuda do outro. É complicado, mas eu estou tentando.
Pesquisadora: Então é por isso que algumas crianças mudam de lugar e ficam cada dia com
um outro aluno?
Renata: Isso mesmo. E, eu percebo que o aluno que tem dificuldade de aprendizagem e
disciplina... Na minha sala eu tenho 3 crianças assim, com esses dois problemas e além disso
eles [alunos] têm muita dificuldade de se relacionar.
Pesquisadora: Quem são eles mesmo?
Renata: O Roberto, O Tadeu e o Hernesto. São esses três, porque o Breno tem dificuldade de
aprendizagem, mas ele é um menino dócil e se relaciona bem com os outros.
174
Pesquisadora: É, eu percebi que ele fica ali perto do Vinícius.
Renata: É, porque ele aceita... Hum, essa parceria deu muito certo, muito certo mesmo. O
Vinícius é mais avançado que o Breno, ainda mais agora que o Breno já está silábico com
valor e o Vinícius já é alfabético, e agora eu já vejo mais produtividade nesse agrupamento.
Mas, antes não. Antes, só dava certo por causa do gênio dos dois, dessa identificação entre
eles. Mas, a nível de agrupamento não sei se era produtivo. Hoje já é porque ele [Breno] já
está silábico com valor, mas mesmo assim eu acho que ajudou porque o Breno já avançou
bastante.
Pesquisadora: Tem outro agrupamento que te chama atenção?
Renata: Ah, tem sim a Laura com a Samantha. A Laura, hoje, já está alfabética e a Samantha
veio pré-silábica e foi galgando. E eu percebo que a Laura influencia positivamente a
Samantha e esse agrupamento deu bastante certo. A Yakne com a Rafaela é um outro
agrupamento muito bom.
Pesquisadora: A Yakne está mais na frente do que a Rafaela.
Renata: isso mesmo. A Rafaela tem um problema de fala, então ela troca muito as letras. Eu já
encaminhei para uma fonoaudióloga, mas ela ainda não foi. Fora isso, no primeiro trimestre
ela era bem fraquinha, aí veio aquele programa Visão do Futuro e aí a gente descobriu que
ela tinha uma deficiência visual e essa deficiência visual também a prejudicava no
aprendizado.
Pesquisadora: Ah, então ela não usava óculos antes?
Renata: Isso ela não usava e começou a usar agora, depois desse projeto. Ah, outra dupla legal
é a Karine, apesar dela faltar bastante, quando junta com a Valéria também ajuda bastante.
Pesquisadora: E o Gustavo?
Renta: ah, o Gustavo é fraquinho. Só que é assim, o Gustavo já consegue se relacionar com a
turma, mas o problema dele é que ele falta muuuuuuito, muito, muito, muito. Nós [a
professora e a coordenação] já chamamos os pais só que nada foi feito, ele continua faltando.
Então, ele não avançou muito. Mas, eu percebo que o social dele já está ótimo. Ele era
apático, uma criança isolada e agora já está muito melhor. A Saula já melhorou muito no
social também e hoje eu já posso colocar [agrupar] ela com todos os colegas que ela já
175
consegue se sentar. Porque antes não, ela só ficava perto de mim e chorando o tempo todo da
aula, as 5 horas de aula. Isso foi no começo do ano e, aos poucos, foi melhorando essa parte
social. Ela também tem dificuldade de aprendizagem, mas já avançou bastante mesmo, já está
silábico com valor.
Pesquisadora: E para você, o que é uma dificuldade de aprendizagem? Você tem um nome
específico para isso?
Renata: Por exemplo, a Saula, eu acho que em casa eles superprotegem ela, ela tem um irmão
mais velho e depois veio ela e os pais paparicam, deixam ela fazer tudo o que ela quer. Ela é
daquele jeitinho dela, pacata e se você não chamar, não buscar ela, ela fica as 5 horas lá
sentadinha. Ela não mostra dificuldade em nada e se você deixar ela lá, ela vai ser copista. Por
exemplo, a Yakne e a Rafaela são um grupinho fechado, elas normalmente não aceitam gente
de fora, não. Só que a Yakne se predipôs a ajudar a Rafaela e como a Rafaela falta bastante eu
deixei. Só que ela já evoluiu muito, já está lendo quase tudo e copiando também, já está
melhorando bastante.
Pesquisadora: Como você lida com as dificuldades do dia a dia em sala de aula: indisciplina,
relação com as famílias?
Renata: Ah, eu procuro entender, eu busco entender o porquê, dá espaço para a criança se
colocar... Mas, às vezes eu sou obrigada a chamar a mãe, mas eu evito o máximo que eu posso
porque eu procuro resolver tudo dentro da sala mesmo... Resolver os conflitos que surgem ali
dentro... Ontem mesmo teve a questão do piolho e se você deixar o negócio cresce. E se você
envolve muito a família também, né? Nenhuma mãe gosta de receber um bilhetinho escrito:
olhe a cabeça da sua filha porque está tudo cheio de piolho. Então eu procuro mesmo
trabalhar no todo, levar um problema individual e estruturar para a sala toda... Eu nunca tive
problema com pais, de rejeição ou de críticas e com os pais o relacionamento foi sempre bom,
e com os alunos também. Tem hora que até eu falo para as meninas [outras professoras]: “eu
consigo isolar”. Mesmo eles com todo o barulho eu consigo isolar isso. Lógico que eu procuro
dar um pouco de liberdade... Eles adoram brincar de lutar, o Roberto, o Tadeu e o Hernesto.
São os 3 e é demais, mas eu percebo que se eu deixo um pouquinho eles acabam voltando
para a atividade menos estressados. Então eu procuro deixar sempre olhando para eles não se
machucarem. Mas é assim... Eu não tenho problemas sérios com a minha sala, eu não tenho
não.
176
Pesquisadora: E sempre foi assim? Ou você já teve alguma experiência que não foi legal?
Renata: Eu já trabalhei com sala de aceleração, mas assim... Eu sempre dominei, eu sempre...
É meu jeito assim sabe? Eu amo isso tudo que eu faço (risos).
Pesquisadora: Você faz uso de algum recurso que a escola te oferece? Por exemplo:
biblioteca, quadra de esportes, sala de vídeo?
Renata: Eu trabalho com a leitura diária, todos os dias eu faço uma leitura com eles. Aqui na
escola a biblioteca é ocupada por uma sala de aula. Então fica difícil [de usar a biblioteca]
porque você tem que deslocar a professora. O que eu faço às vezes é levar [os alunos] nessas
escadas que tem aí ou lá perto da quadra mesmo e aí eu faço a minha leitura lá com eles. E
assim, como a minha sala está bem avançada e a maioria é alfabético, eles gostam de ler.
Então eu oportunizo isso para eles, porque eles falam assim: “ai prô, deixa eu ler hoje? “ É
uma briga para ver quem vai ler. Mesmo se o aluno não lê fluentemente, depois eu retomo a
leitura, mas eu sempre dou essa oportunidade para eles. A sala de vídeo eu uso como recurso,
uso jogos também... A matemática eu trabalho com dados e é uma coisa minha mesmo que eu
acho que funciona e eles amam. Por exemplo, o dado eu dou para os alunos que vão
terminando as atividades... Uma vez por semana, para que todos tenham a mesma
oportunidade, porque eles amam de paixão, eu inicio a minha aula que é na Sexta-Feira, a
primeira aula eu dou o dado para todo mundo para que todos tenham essa oportunidade e
também na última aula na Sexta-Feira eu deixo trazer brinquedo. Na Sexta-Feira minha sala é
lotada, não falta ninguém. Embora ela esteja sempre lotada. O problema de falta mesmo é o
Gustavo e a Rafaela porque eles têm problema de saúde. O Caio também falta, principalmente
de Segunda-Feira. A mãe dele também é professora... Eu não sei se de Domingo ele fica com
o pai, eu não sei se os pais são separados ou se ele chega tarde, então ele tem sempre um
probleminha de Segunda. Mas ele não falta muito não.
Pesquisadora: Como você faz a avaliação dos seus alunos? O que é avaliação para você?
Renata: Eu faço assim: traço uma meta para o ano, mas como eles estão no primeiro ano eu
avalio mesmo é mais a participação deles nas atividades em sala. Principalmente com as
crianças que tem mais dificuldade: é muito gratificante você ver o crescimento deles, por
mínimo que seja, mas você consegue perceber. Então isso para mim é avaliação: o
crescimento que ele mostra no dia a dia, sabe? Eu às vezes até fico com dor na consciência
porque às vezes eu acho que... Igual o Hernesto mesmo, ele me surpreendeu nessa minha
177
sondagem porque ele é um aluno que não registra nada, ele tem a maior dificuldade para
registrar. Só que quando eu fiz a sondagem eu percebi que ele está silábico com valor e para
quem era pré-silábico, para mim foi muito bom. E ele é um aluno ouvinte porque... O Roberto
tem dificuldade para registrar também, mas na oralidade ele participa da aula todinha. Então é
essa participação que é a minha avaliação mesmo, principalmente no primeiro ano.
Pesquisadora: E com qual frequência você faz isso?
Renata: eu, eu, eu, faço isso diariamente, porque a criança por algum problema não vem e não
participa, mas aí no outro dia participa, você entendeu?
Pesquisadora: E como funciona a questão de recuperação ou reforço aqui na escola?
Renata: Aqui na escola tem sim. A recuperação paralela... A contínua é dentro da sala de aula
e a paralela é oferecida fora do horário de aula. Mas, o primeiro ano... Tem um dia que eu
dedico para as crianças que estão com mais dificuldade. É lógico que todos os dias eu trabalho
com eles, mas mesmo assim, se você trabalha... Eu acho que eles têm que se sentir inseridos
dentro da sala, você entendeu? Se todos os dias eu der uma atividade diferente para eles, eles
se sentem diminuídos... Então eu procuro equilibrar. Vamos supor: eu dou uma lista de
palavras e com essas crianças que tem dificuldades eu vou trabalhar em cima da escrita
mesmo, da reflexão de como se escreve. Aqueles que já estão alfabéticos eles vão trabalhar
com a mesma lista de palavras, mas com construção de frases e eu vou ampliando o repertório
e peço para eles usarem mais palavras... Eu peço para eles explicarem o porque...
Pesquisadora: Então os seus alunos não frequentam a sala de reforço?
Renata: O reforço paralelo não. E nem tem espaço, a escola não tem espaço... Nós
trabalhamos com reforço para as crianças de 4° ano que vão ser promovidos e ainda
apresentavam dificuldades. Inclusive eu trabalhei com uma turma, tive bastante sucesso
também... Mas o primeiro ano não, principalmente o primeiro ano. A proposta do governo
para o primeiro ano não... Porque eles estão vindo muito novinhos... No ano passado eu até
falei para as meninas [outras professoras] isso, é uma observação minha, pela minha prática,
tá? As crianças já estão vindo mais maduras, você entendeu? Então a gente já vê que é uma
mudança lá na base mesmo, lá na Educação Infantil. Por que esse ano foi muito rápido, eles se
alfabetizaram muito rápido.
178
Pesquisadora: Mas isso tem a ver com sua prática também, não é? Quais são os teóricos que
você utiliza para guiar sua prática?
Renata: Eu uso o construtivismo mesmo. É lógico que tem hora que eu mesclo, porque dá
assim... é... Eu procuro buscar alguma coisa que dê significado para eles, então eu acabo
mesclando porque eu acho que deu certo e aí eu acabo trazendo para o meu dia a dia. Mas, eu
procuro trabalhar dentro do programa Ler e Escrever mesmo... O trabalho com lista funciona
para caramba, o programa é ótimo, é ótimo mesmo. Já é o segundo ano que eu estou
trabalhando com um primeiro ano dentro do Ler e Escrever e é muito legal. Eu já vi uma
diferença e eu acho que eu também já me aprimorei de um ano para o outro... Porque ano
passado foi o primeiro ano que o primeiro ano foi instituído no Estado, né? Então no ano
passado eu trabalhei com um primeiro ano e nesse ano com um primeiro ano de novo. E isso
tudo recebendo crianças com 5 anos e tem sido muito legal. Funciona, é rico o programa.
Agora, assim, o material que vem para o aluno eu achei pobre, porque eles estão querendo
muito mais do que aquilo que o material do aluno está oferecendo, você entendeu? Então é
aonde eu o que tem dado certo...
Pesquisadora: E onde e como você aprendeu o construtivismo?
Renata: Eu já fui ATP de aceleração e participei de muitos cursos: eu fiz o programa de
formação que a Secretaria da educação ofereceu que é o Letra e Vida que aonde assim... Na
verdade eu sempre fui meio atiradona assim. Eu sempre busquei, eu sempre busquei. Eu
nunca fui uma pessoa que fiquei parada não. Ah, deu certo? Então vamos lá! É uma
oportunidade, então vamos tentar. Porque eu acho que aquilo que eu não souber fazer eu não
vou saber ensinar. É lógico que eu tive coisas que eu tive entrave... Eu procuro aprender
primeiro, eu não vou chegar lá na sala sem ter visto como aplicar, entendeu? Então eu sou
assim... Mesmo na internet eu busco lá: eu lanço assim: dificuldade em tal atividade e vou
buscando. Eu estou fazendo a Pedagogia agora, embora meu curso não tem me acrescentado
muito não... A faculdade em si, não! O material é rico então eu procuro ler em casa, mas eu
gosto de buscar. Eu quero aprender para ensinar melhor.
Pesquisadora: E o que te chama atenção no construtivismo?
Renata: O que me chama atenção é essa liberdade da criança colocar aquilo que ela pensa,
sabe? A nossa prática antigamente ela era voltada ao certo, ou seja, só era considerado aquilo
que era realmente certo... E hoje não é assim, você considera o aluno que está avançando, que
179
está buscando, né? Essa reflexão [que o construtivismo] propõe eu acho legal. Eu acho que
quando você dá liberdade para a criança arriscar você está fazendo ele crescer.
Pesquisadora: E como você lida com o erro?
Renata: Ai... o erro? Eu lido como construção. Uma reflexão para minha prática porque onde
meu aluno está errando é porque eu não ensinei direito (risos). Eu uso isso para traçar a minha
aula, em cima do erro deles. Em cima do erro deles é que eu vou aprimorar a minha prática.
Pesquisadora: para que eu possa me organizar melhor, você se formou quando?
Renata: Eu me formei em 84 no magistério, no curso normal. Ainda foi lá no interior... Foi
muito bem feito, muito bem feito, me deu uma base muito grande... Eu fiz projeto Ipê, fiz
Teia do Saber... É aquilo que eu falei: eu estou sempre buscando e quero mais, você
entendeu? Eu estou em final de carreira, mas eu quero mais!
Pesquisadora: A escola era pública ou particular?
Renata: O magistério foi em escola pública. Eu sempre estudei em escola pública. Só a minha
faculdade é que está sendo particular.
Pesquisadora: E qual é o tempo profissional como um todo no Magistério?
Renata: 18 anos. Com 25 você se aposenta.
Pesquisadora: E nessa escola aqui?
Renata: Nessa escola eu estou há 2 anos.
Pesquisadora: E é gratificante? Você gosta de trabalhar com educação aqui?
Renata: Gosto, gosto, gosto muito! Estou muito feliz, principalmente pelo retorno que a gente
tem.
Pesquisadora: Você já deu aula em escola particular?
Renata: Já dei sim, mas eu acho assim... Tradicional, muito tradicional... Curso apostilado,
não gostei, não gostei. Foi um ano só e era concomitante com a escola pública. Aí depois
desse um ano eu optei por ficar só no Estado e aí veio essa oportunidade de ser ATP, que me
afastou da sala de aula e foi uma experiência que eu também não gostei, porque na verdade
180
esse “blábláblá”de papelada não é comigo, meu negócio é ali na sala de aula mesmo, em lócu
ali... Isso é o que eu gosto.
Pesquisadora: Qual é a sua caraga horária de trabalho hoje?
Renata: A minha são 170 horas mensal, no período da tarde.
Pesquisadora: E como você usa o seu tempo livre?
Renata: Nesse momento aqui eu estou meio estressada porque eu me mudei [de casa], estou
em fase de adaptação, estou com um quintal enorme que está me dando muito trabalho. Mas é
aquilo que eu falei: eu estou com dois netos, um casalsinho de netos, gosto muito de ficar com
eles (risos). Mas eu busco internet, às vezes um teatro, mas o custo... Porque o salário não
proporciona, né? Mas eu gosto de teatro, shows, leio bastante... Eu tenho o hábito de ir só no
banheiro lendo e aí eu peho um livro e leio, a [revista] Nova Escola e leio. Essa é a minha
prática.
Pesquisadora: E se você tivesse que escolher novamente ser professora, você escolheria essa
profissão?
Renata: Escolheria sim, com certeza. Não mudaria nada! (risos)
Pesquisadora: E você troca experiência com seus colegas professores?
Renata: Sim, nós trocamos muito. Por conta de eu estar sempre buscando mesmo e a minha
prática, acaba que eu auxilio os meus colegas. Por exemplo, a gente busca alguma coisa na
internet, mas eu não vou chegar lá [na sala de aula] e dar isso para o meu aluno sem analisar
determinada atividade. Então, coisa pronta eu não gosto, eu gosto da construção mesmo. Eu
acho que é por conta [dos colegas professores] verem que está dando certo eles acabam me
procurando.
Pesquisadora: A sua troca com eles é positiva?
Renata: Ah é, é sim! Eu aprendo muito, aprendo bastante mesmo com eles. E assim... Eu não
aceito o “eu não sei”. Eu quero uma solução para o meu problema... Por exemplo, caiu numa
questão do concurso: para que que a gente ensinava sequência numérica? E a gente não tinha
a resposta e eu não aceito, eu fico atrás até descobrir e aí hoje nós descobrimos juntos. Eu
acho isso legal.
181
Pesquisadora: O relacionamento entre o grupo de professores aqui na escola é bom?
Renata: É bom, todo mundo se dá bem e isso é muito produtivo.
Pesquisadora: E isso é diferente do interior?
Renata: No interior é melhor ainda. No interior, além do trabalho você tem o relacionamento
familiar porque às vezes você vai nas mesmas festas, você vai nos mesmos lugares, as
famílias se conhecem. Aqui [em São Paulo] é mais frio essa parte, você conhece o professor
na escola e só. Agora com esse Facebook aí, o Orkut, até que a gente está se falando mais.
Mas mesmo assim eu ainda acho meio frio.
Pesquisadora: No seu dia a dia em sala de aula, como você utiliza a teoria para ajudar na sua
prática?
Renata: Eu aprendi que eu tenho que refletir sobre a minha prática, eu aprendi isso... Porque
assim, depois que eu comecei a estudar os autores, eu comecei a pensar diferente. Porque a
gente tinha muito uma ideia assim: “no papel aceita tudo!”, você entendeu? Hoje eu tenho um
olhar diferente para isso porque eu acho que o autor quer te ensinar, quer te colocar... Te dar
subsídio para compreender aquilo que acontece na sua sala de aula. Uma coisa que me chama
muito atenção é essa parte da avaliação que é a ação-reflexão-ação, porque eu só mudei o meu
jeito de pensar por conta do estudo que eu fiz em cima da Sara Holfman e esse povo aí. Eu
acho que a gente tem que buscar compreender mesmo, você entendeu? A própria política do
governo, quando ela vem imposta de cima para baixo, ela é mau vista. Então, se você não
aceita, como você pode aplicar? Mas eu acho que isso é uma mudança de postura mesmo, mas
até hoje você se depara com colega que não aceita mudança, que nada está bom, nada está
bom... Então eu acho que é essa a maneira de olhar diferente mesmo. E a partir do momento
que você busca compreender, que você busca entender... Igual a Telma Weizs, a gente já
sabia porque a Emília Ferrero colocava isso [das hipóteses silábicas] há quantos anos? Mas a
gente não aplicava, você nem compreendia, você não entendia aquilo e hoje para mim isso
tudo é muito rico porque ela é uma direção para o meu trabalho.
Pesquisadora: Então hoje você utiliza a Emília Ferrero?
Renata: É Emília Ferrero e eu gosto muito da nossa proposta que é baseada quase que
unicamente em cima da Telma Weisz e eu acho que ela acrescenta muito para o nosso
trabalho. Eu acho também que todos os meios de avaliação externa têm auxiliado e mostrado
182
e feito com que a gente se abrisse para o novo, você entendeu? Porque não adianta eu
trabalhar dentro de um tradicionalzão se uma avaliação externa não vai pedir isso.
Pesquisadora: Então você acha que essas avaliações externas são boas?
Renata: Eu acho sim, eu gosto.
Pesquisadora: Mesmo você tendo que atingir algumas metas para essas avaliações?
Renata: Na verdade, eu não concordo com os critérios da avaliação porque eu acho que eu
tenho que ser avaliada pelo meu trabalho e não pelo todo, isso eu não concordo.
Pesquisadora: E quais são suas condições de trabalho aqui? Existe algum obstáculo para a
realização da sua atividade?
Renata: Ai meu Deus, é complicado! Porque é assim: quando você gosta daquilo que você faz
não tem entrave. Mas se surge algum tronco no caminho eu pulo, procuro superar esse
obstáculo e vou em frente. E esse é o meu problema (risos). Mas, eu gostaria de ter um apoio
de profissionais especializados, do tipo fonoaudiólogo porque eu acho que tem criança que
precisa... Eu acho que tinha que ter esse apoio externo para poder facilitar ainda mais para a
criança, porque acaba sendo para ele [criança] um entrave.
Pesquisadora: E como que é a gestão da escola?
Renata: Eu me relaciono bem com as gestoras, eu não tenho problema não! O que eu acho que
falha é a estrutura. Por exemplo, tem um programa da Secretária da Educação que se chama
cultura e currículo e nunca o primeiro ano foi, você entendeu? Ele leva para museu, para
lugares interessantes... E isso eu acho falho porque eles oferecem para outros anos e para o
primeiro ano nunca. Então, falta essa parte de passeio, de melhorar a parte de brinquedo...
Porque nós estamos recebendo bebês na escola gente! E nós não temos nada. Você exigir que
uma criança fique cinco horas sentada na carteira é demais para o meu gosto, por isso que às
vezes eu deixo... Quer corre, corre. É lógico que eu não vou deixar machucar, eu dou um
pouco de liberdade para poder extravasar, porque eu acho o cúmulo isso. Então eu acho que
essa parte é falha, você entendeu?
Pesquisadora: Tem alguma atividade que você gostaria de fazer aqui na escola, mas você não
consegue ou não pode?
183
Renata: Ah, tem muitas! O acesso a internet é um recurso que eu gostaria de estar utilizando
com eles porque tem muitos sites de jogos e daria para fazer um trabalho bem legal. Mas,
muitas vezes você não pode usar porque não tem, ou não é permitido, ou não está
funcionando, né?
Pesquisadora: Na sua prática, o que você considera como um ponto positivo? O que dá
certo?
Renata: Eu hein? (risos). Acho difícil eu falar de mim... Na minha prática eu acho que é essa
liberdade mesmo, essa liberdade que eu dou para o meu aluno poder se expressar, dele poder
agir, e isso eu acho que é legal.
Pesquisadora: E o que você faria de diferente?
Renata: Ah, muita coisa. Eu acho que eu falo muito alto, eu grito... Não é que eu grite, mas
meu tom de voz já é alto mesmo, eu acho que eu teria que trabalhar esse meu lado... E... Eu
queria ser melhor! (risos).
Pesquisadora: você me disse que já fez vários cursos, que você está sempre buscando... Você
acha que isso é suficiente para o desenvolvimento de suas atividades?
Renata: Só fazer curso não é suficiente não, eu tenho que aprender mais! Eu tenho muito que
melhorar ainda...
Pesquisadora: E por quê?
Renata: Porque eu quero ser melhor do que eu sou... Não! Eu quero ser melhor porque eu
acho que eu não sei tudo, aliás, eu não sei nada!
Pesquisadora: Você me disse que seu Magistério foi super bem feito e que você gostou muito.
E sobre os outros cursos de formação continuada, o que você achou?
Renata: Eu achei todos eles muito bons. Isso eu acho que falta na Secretaria da Educação,
você entendeu? Eu mesma, já atuando muitos anos no primeiro ano, eu gostaria [de fazer mais
cursos] porque tem muita coisa que eu já esqueci. Essa parte de Matemática... Eu acho que
tinha que ter mais capacitação, mas nós não temos nada. Eu queria fazer um curso de
contação de história porque eu quero aprender, mas eu não tenho tempo e nem dinheiro – é
tudo muito caro! Porque se nós estamos recebendo essa crianças tão cheias de vontade de
aprender, eu tenho que oferecer um bom trabalho. Nós tivemos um encontro com o Secretário
184
da Educação mas as coisas não chegam, você entendeu? Assim, de que adianta eu ir numa
orientação técnica aonde eu só vou ver as coisas prontas? Eu tenho que ir lá para aprender. E
tem mais, para o primeiro ano não tem nada, nada, nada! Já tem uns 3 anos que eu não
participo de nenhuma capacitação porque não tem oportunidade. Eles [secretaria da educação]
não oferece nada e quando oferece... Igual, teve um curso de fantoches que eu gostaria de ter
ido, só que era no horário de HTPC e a diretora não liberou... Então fica truncado porque não
tinha outro horário e eu não pude fazer. Isso para mim tinha que melhorar muito, muito, muito
porque eu quero aprender, mas eu tenho que ter oportunidade.
Pesquisadora: E como é o HTPC aqui na escola?
Renata: O HTPC acaba sendo só uma resolução de conflitos. Porque são tantos os problemas
que tem para serem resolvidos e o horário é curto. Momentos de estudo mesmo é só quando a
agente necessita de alguma orientação e fica assim...
Pesquisadora: E o Programa Ler e Escrever tem uma formação, né? Tem alguns dias da
semana que vocês ficam aqui na escola para isso, não é?
Renata: É, o Ler é assim, mas ele tem que funcionar, né? Esse ano ele está meio assim. Por
conta da carga de trabalho do próprio coordenador pedagógico não tem sobrado tempo de
estudo com a gente e tem o nosso lado que a gente acaba que fica mais no “blábláblá” do que
no estudo mesmo.
Pesquisadora: Eu me lembro que você me disse um dia, numa conversa informal, que você
preferiria que professor fosse até a Secretaria da Educação ou na Diretoria de Ensino da
Região para que ele próprio tivesse a formação do Ler e que não fosse dessa forma como é
hoje. Ou seja, da Coordenadora Pedagógica fazer a formação na Diretoria e depois fazer essa
mesma formação com vocês aqui na escola né?
Renata: Isso mesmo, porque senão fica um repasse de informações e às vezes nesse repasse
nem tudo é falado. A gente não ouve da boca do próprio formador as coisas como a
Coordenadora Pedagógica tem a oportunidade de ouvir. Tudo bem que ela se esforça, vai lá e
faz o curso, mas eu preferiria mil vezes ter essa formação direta como a Coordenadora tem.
Acho que a gente aprenderia muito mais e utilizaria esse tempo mesmo para a formação em si.
Porque eu acho que escaparia desse negócio de sair do foco do estudo de vez em quando,
você entendeu? Mas eu acho o programa muito bom! Os materiais são bons e me ajudam
muito na minha prática. Igual, às vezes eles [os materiais] trazem outras opções para a gente
185
fazer em sala e daí dá para trabalhar com os alunos que já tem facilidade no assunto como
aqueles que ainda não tem. Me ajuda no planejamento também... Me ajuda a ver outras
possibilidades de trabalho. Eu gosto dessa proposta e eu vejo que os alunos gostam também.
Pesquisadora: E você conhece o Projeto Político Pedagógico da escola? Você participou da
elaboração?
Renata: Conheço sim, participei da elaboração...
Pesquisadora: E como foi essa experiência?
Renata: Boa, porque tudo o que a Gestão vai fazer ela participa com os professores. Tudo é
resolvido junto, em conjunto mesmo e isso me dá uma certa autonomia, embora é uma
autonomia entre aspas, né? Porque nem sempre a equipe gestora pensa igual a você. Aqui
quando dá para ceder a gente sempre busca ver os dois lados – cede de um lado, aí o outro
cede de outro e a gente procura sempre um acordo. Nem sempre a gente é atendido, mas é
feito um acordo.
Pesquisadora: Como você planeja suas aulas? Quais dias e horários você reserva para isso?
Renata: Eu planejo na minha casa mesmo, de manhã porque eu acordo muito cedo e é o
horário que eu mais concentro mesmo. E até assim, para não fazer barulho para quem está
dormindo. É na minha casa e de manhã. Às vezes eu planejo e chega aqui e não dá certo, mas
aí eu faço uma adaptação e procuro retomar [o conteúdo com os alunos] no outro dia. Nossa,
porque às vezes é complicado, porque você vem cheia de gás e aí desestrutura tudo. Tem que
ter um jogo de cintura para lidar com isso. Às vezes eu uso o horário do Ler também...
Procuro a Coordenadora e as minhas colegas para ter novas ideias em cima daquilo que eles
[Programa Ler e Escrever] estão propondo, seleciono algumas atividades... Mas, basicamente
eu faço isso na minha casa mesmo.
Pesquisadora: Que nota você atribuiria para essa escola?
Renata: Para minha escola? Hum... Aí é complicado também porque eu gosto daqui! Dez não
é... Eu dou oito.
Pesquisadora: E para você?
Renata: Piorou (risos). Eu me dou sete.
186
Pesquisadora: Por quê?
Renata: Porquê eu quero ser melhor (risos).
Pesquisadora: Qual foi a sua maior realização como professora?
Renata: De verdade mesmo? (risos). Aqui [na educação] é aonde eu me encontrei. Eu sou
feliz... Sabe quando você vem trabalhar feliz? Então, eu gosto daquilo que eu faço, eu sinto
saudade, eu fico triste quando o ano vai terminar... É uma coisa de paixão mesmo.
Pesquisadora: Só ficou uma pergunta chata para fazer?
Renata: Ichi...
Pesquisadora: Quantos anos você tem?
Renata: (risos) 55 anos.
187
Transcrição Autoconfrontação Simples – Episódio Rapunzel
Pesquisadora: Eu vou passar o vídeo para você e nós vamos assistir juntas. Se você quiser
voltar em algumas partes para comentar, fique à vontade. Como eu fiz um recorte da sua aula,
vamos assistir ele inteiro ok?
Renata: Sim, sim.
Pesquisadora e Professora assistem ao vídeo juntas.
Pesquisadora: Em primeiro lugar, o que você achou de ver e se observar?
Renata: Na verdade? Eu estou gordona (risos). Eu nunca tinha visto uma aula minha né?
Quando eu vejo nas capacitações alguma filmagem às vezes eu achava: “ah, não é assim que
acontece, isso tudo é montagem!” E agora para mim parece mais real porque é aquilo que eu
faço no dia a dia. Eu não me preparei para dar essa aula, você entendeu? E eu achei muito
legal. Às vezes quando eu vejo nas capacitações eu acho que é montagem e não é.
Pesquisadora: Nas capacitações eles usam trechos de aula também?
Renata: Isso mesmo, eles mostram salas de aula então parece que está tudo muito
arrumadinho, certinho... A impressão que eu tinha era que era montagem e agora eu vendo
aqui eu penso que não é montagem aquilo que aparece lá também porque pelo que eu estou
vendo aqui é uma coisa normal, é igual.
Pesquisadora: Nossa, que bacana! E qual foi o objetivo dessa atividade?
Renata: Na verdade é a reflexão sobre a escrita mesmo, dentro dos contos. Porque para eles é
prazeroso e eles gostam. Eu acho que quando você trabalha dentro desse gênero é
significativo para eles. Eles gostam bastante e participam.
Pesquisadora: Mesmo sendo uma história repetida?
Renata: Você pode contar quantas vezes forem que eles gostam, eles gostam mesmo.
Pesquisadora: E eu percebi que você deu duas folhinhas para eles, como foi a escolha das
tarefas que tinham na folha?
Renata: Eu montei essas duas folhinhas para eles porque eu queria que eles identificassem, na
primeira atividade, qual era o personagem daquela história que eu contei. Aliás, era o
188
contrário, de que história era aquela fala do personagem. E a outra era para eles estarem,
dentro do gêneros que já tinham sido trabalhados – dos contos, para eles estarem trabalhando
a lista mesmo de contos.
Pesquisadora: tem uma coisa que a gente percebeu e até conversou no final dessa aula que
assim que você terminava de entregar a folha lá no final da sala os que estavam aqui na frente
já tinham terminado a tarefa. Como é isso para você? Parece que alguns alunos são mais
rápidos que outros. E tem ainda um outro grupo que nem conseguiu chegar na segunda
folhinha por conta das dificuldades. Como você lida com isso?
Renata: Não sei se você percebeu aí no vídeo, mas a Yakne auxiliou uns alunos, às vezes eu
peço para que um ajude o outro... O Vinícius é um aluno que termina tudo muito rápido, mas
ele ainda não tem paciência de ajudar o outro, então nem adianta eu pedir que não vai dar
certo. O Luís é um outro aluno que termina tudo rápido, mas ele ainda não tem aquela
autonomia porque ele não é seguro. Ele até auxilia sim se eu pedir, mas ainda não é uma
criança que eu posso colocar com uma outra para auxiliar. É lógico que ele tenta, mas ele
ainda não consegue. Mas eu tento trabalhar assim... Para o Vinícius e o Luís eu tenho que
pedir um tempo mesmo porque eles terminam muito rápido. Mas, eu tento ocupar o tempo
deles pedindo para eles ajudarem os outros que estão com mais dificuldade... Embora o
temperamento do Vinícius não seja o de ajudar: ele não gosta, ele não tem paciência, sabe?
Pesquisadora: Mas o e o Luís sempre foram mais rápidos que os demais?
Renata: Não! O Vinicius aprendeu muito rápido, aprendeu rápido demais. Ele já chegou pré-
silábico na minha primeira sondagem. Eu sempre tenho uma outra atividade para ele porque
às vezes eu preciso de um tempinho a mais para aqueles que ainda estão caminhando, então
eu sempre dou uma outra atividade para ele. Até porque eu tenho que ocupar porque senão ele
pega fogo e dispersa os outros e ele é uma criança que precisa estar sempre ocupado.
Pesquisadora: E quando você disse que o objetivo da atividade era trabalhar o gênero conto e
a reflexão sobre o sistema de escrita, o que você esperava dos alunos?
Renata: O objetivo era esse mesmo: trabalhar a reflexão sobre o sistema de escrita. Por
exemplo, na palavra “madrasta”eu sabia que ia ter dificuldade. E esse meu trabalho de colocar
os jeitos que as crianças estavam escrevendo “madrasta” na lousa era para eles perceberem
que letra estava faltando ou que letra estava sobrando. Por exemplo, eu peguei vários jeitos
diferentes que as crianças escreveram madrasta para poder compartilhar e corrigir junto com
189
todo mundo. E isso ajuda muito! Eles olham não apenas para o erro deles como para os dos
colegas para poderem pensar como eles estão escrevendo. E você vê que tem uma parte lá que
eles até riram do colega e o meu objetivo não é apontar o erro e por isso que eu não coloco lá
na lousa quem foi que escreveu o que. Eu busco compartilhar as possibilidades para que eles
reflitam e consigam construir o novo em cima do erro.
Pesquisadora: Os materiais são entregues para eles no começo do ano e eu percebi que uma
parte da sala estava com o livro e a outra não. Por que isso aconteceu?
Renata: Usar o livro laranja foi uma opção minha. Na verdade é assim: como o
desenvolvimento da sala foi muito rápido, eu percebi que muitas crianças de alfabetizaram
num piscar de olhos e aí eu queria mais e mais para eles. Daí eu fui buscar esse livro. Não é
material de 1° ano... É um material de 2° ano esse livro de texto. Só que como tinham alguns
na escola, eu busquei fora também e completei para eles.
Pesquisadora: Eles trazem o material deles também?
Renata: Eles andam com os dele na bolsa porque eles adoram ler. Tem umas atividades de
adivinhar, o material é muito rico. Na verdade, o material de 1° ano eu achei fraco, para mim,
você entende? Eu achei que o de2° ano para minha sala era muito mais interessante.
Pesquisadora: E você já trabalha com esse material faz tempo?
Renata: faz 4 anos que eu trabalho com o Ler e Escrever, desde 2008.
Pesquisadora: E todos os anos foram assim? Você precisa usar outros livros?
Renata: Na verdade, o material de 1° ano começou a vir aqui pra gente só nesse ano, antes não
tinha. Ano passado eu trabalhei com um 1° ano e não teve material.
Pesquisadora: E como você fez?
Renata: Eu trabalhava com livro meu mesmo, em cima do meu material.
Pesquisadora: E você se assistindo no vídeo, tem alguma coisa que você faria de diferente?
Renata: Ah, acho que sim. Teria sim. Nossa! Muita coisa... Eu acho que vendo o vídeo eu
percebi que algumas crianças não participaram da aula e ficaram mais preocupadas com
outras coisas. Não passou despercebido, mas olhando agora eu acho que eu tinha que ter
voltado essas crianças para o assunto. Agora, quanto a minha prática, eu acho que era isso
190
mesmo. De repente eu poderia ter... hum... Eu acho que era isso mesmo que eu falei: que eu
deveria ter vindo nessas crianças que eu to percebendo agora que não participaram da aula e
ter dado mais atenção. Isso para mim passou despercebido e agora eu estou vendo. Por
exemplo, às vezes eles até vem pedir ajuda, mas agora eu estou vendo que a Samantha não
veio, esse menino novo daqui [apontando para o vídeo] não veio e foi mais a Yakne que
ajudou ele.
Pesquisadora: E como você avalia essa aula? Ela cumpriu o seu objetivo? As atividades
estavam de acordo para o nível de desenvolvimento deles?
Renata: Eu achei que estava sim. Até para os alfabéticos eu achei que foi fácil demais, porque
quando eu terminei de entregar as folhas para a turma do fundo alguns daqui da frente já
tinham terminado. De repente eu poderia ter dado uma reesccrita, ou uma produção coletiva.
Pesquisadora: E você sempre trabalha assim? Um texto do livro e uma atividade que você
elabora?
Renata: Não, quando eu trabalho o Ler mesmo, por exemplo, o dia do Índio o livro propõe
algumas atividades, mas eu acho pouco e eu sempre complemento.
Pesquisadora: E agora, você se vendo no vídeo, como foi essa experiência?
Renata: Ah, isso vai ajudar na minha prática para o próximo ano. Eu acho que eu fiquei muito
na frente e eu acho que eu deveria ter circulado mais...
Pesquisadora: Não, você circulou bastante, mas como eu tinha que editar o vídeo acabei
pegando algumas partes da sua interação com as crianças.
Renata: Ah tá, porque quando eu olhei logo pensei: nossa, eu só fico na frente!
Pesquisadora: A gente estava conversando antes de começarmos a gravar hoje e você me
disse que está muito satisfeita com o seu trabalho.
Renata: Isso mesmo, estou mesmo porque eles foram muito espertinhos. Não teve muito
desgaste, sabe? Até em comportamento... Eu não tive muito problema, esse ano a minha sala
foi bem tranquila, comprometidos... Os pais também ajudaram bastante, essa parceria com os
pais, tudo o que eu propus foi aceito. Então eu acho que é um conjunto de ações que ajudaram
nesse trabalho.
191
Pesquisadora: E o que o Ler ajuda na sua formação?
Renata: O Ler é um norte para o meu trabalho. Eu gosto de tentar, sabe? E o Ler me dá essa
oportunidade de experimentar e isso eu gosto muito. Tem dado muito certo. Na verdade eu
aprendi e não faz muito tempo que eu deveria ler todos os dias. Eu aprendi isso no Ler
mesmo. E eu vejo isso nesse ano, como foi rico e foi uma coisa de louco. Eles aprenderam
rápido demais. Tem mais, eles estão vindo melhores da Educação Infantil, a base já está mais
estruturada. Eu acho que nós estamos num trabalho de sequência porque às vezes quando eu
vou contar uma história muitos já ouviram, né? E ouviram lá na Educação Infantil e nós
estamos colhendo os frutos agora. Eu acho que nós estamos no caminho certo. Nós temos que
tentar, arriscar. Nós vamos errar? Vamos sim, mas temos que tentar.
Pesquisadora: E qual é a sua expectativa para o próximo ano?
Renata: Eu queria eles de novo (risos). Eu queria essa sala de novo para poder dar uma
continuidade, mas pelo jeito não vai ser possível. Seria ótimo se eu pudesse continuar de onde
eu parei. A esperança é a última que morre.
Pesquisadora: Você gostaria de voltar em alguma parte do vídeo para falar mais alguma
coisa?
Renata: eu me propus para essa pesquisa e tem algumas coisas aí que eu acho que eu tenho
que mudar. Até a minha postura mesmo, acho que eu estou muito curvada (risos).
Pesquisadora: E o que você achou que ia acontecer? Mesmo eu tendo explicado, como foi
para você ser filmada e depois se ver em atividade?
Pesquisadora: Ah, eu fiquei com um pouco de medo né? Eu falei “vixe, o que vai acontecer?”
(risos). Mas não foi assim, eu achei legal. Eu imagino que eu estou sendo um instrumento
para um estudo, não a minha pessoa, mas o meu lado profissional. E eu acho isso importante
porque eu ainda tenho que aprender muito, muito, muito. O nosso objetivo é mudar e se tiver
alguma coisa que esteja errada a gente precisa mesmo é mudar.
Pesquisadora: e agora, depois de ver todo o processo, sua percepção sobre a pesquisa mudou?
Renata: Bom, para mim é uma coisa nova e que eu nunca tinha visto e eu achei legal. Até
aquela ideia de que eu tinha de que era uma coisa montada mudou. Quando eu for para o
curso vou ver com outros olhos.
192
Transcrição Autoconfrontação simples – Alfabeto Móvel
No decorrer da passagem do episódio – no momento em que um dos alunos olha para ela feliz
por ter conseguido montar a palavra aniversário – a professora comenta: “e você vê como dá
certo, né? E você vê que todos eles estão no mesmo nível de aprendizagem. Quando eu
montei os grupos eu fiz uma divisão de silábico com valor, um silábico sem valor, você
entendeu? Porque senão não funciona... Os agrupamentos tem que ser pensados mesmo.
Pesquisadora: E aí o que você achou?
Renata: Olhando assim minha voz é muito grave mesmo. E assim o que eu percebi é que eu
preciso trabalhar mais o alfabeto móvel com eles porque eu vi o envolvimento deles.
Pesquisadora: E na hora da aula você não tinha conseguido perceber isso?
Renata: Eu tinha até percebido, mas eu já tinha esquecido muitas coisas que eles tinham feito.
As interferências eu acho que dá para fazer na hora que surge a dúvida porque quando o aluno
só escreve é mecânico, né? E aí [com o alfabeto móvel] ele vivencia, é o concreto. E tem a
ajuda do grupo também.
Pesquisadora: E quando você escolheu essa atividade qual era o objetivo?
Renata: Era refletir como escrever as palavras. E os grupos foram separados com o nível de
dificuldade de cada um.
Pesquisadora: E olhando o vídeo, o que você faria de diferente se você fosse dar essa aula de
novo?
Renata: Ah, sei lá... Eu acho que eu atendi muito uns grupos e outros não. Não sei se porque
eles não me solicitaram, mas eu acho que eu deveria circular mais entre os grupos. Embora eu
não tenha deixado grupo sem fazer, mas eu não sei se foi porque eles não me solicitaram...
Mas mesmo assim eu acho que eu deveria ter circulado mais. Mas é isso daí mesmo, a
atividade é dentro de um campo semântico que eles gostam, que também ajuda muito, e os
agrupamentos ajudaram muito.
Pesquisadora: E como foi o planejamento dessa atividade? Porque antes dessa atividade você
fez a leitura da formiguinha que é um dos objetivos do Ler, que é a leitura diária. No entanto,
o texto da Formiguinha não estava no livro do Ler.
193
Professora: um dos objetivos do Ler é a leitura diária e os textos não necessariamente
precisam estar no livro texto do Ler. Eu escolhi a formiguinha porque é uma leitura que eu fiz
logo no começo do ano e que eles gostam de ouvir e eu também tenho facilidade para contar
ela e eu usei ela por isso.
Pesquisadora: E a ideia de trabalhar com o tema “festa de aniversário” veio do Ler ou você
que pensou essa atividade?
Professora: Veio do Ler, porque ele [Ler e Escrever] sugere que o professor trabalhe com
temas que venham do cotidiano da criança e eu sei que esse tema eles gostam muito. E você
vê aí no vídeo que eles gostam muito e que participaram bastante. O alfabeto móvel foi eu
quem escolhi para trabalhar com esse tema e dá para perceber que a riqueza de vocabulário de
uns é bem diferente de outros.
Pesquisadora: E o tempo para o desenvolvimento da atividade foi suficiente?
Renata: Foi sim e eu acho que ela não pode ser uma atividade muito longa porque senão eles
perdem o foco. Mas dentro do que estava proposto para essa atividade eu acho que foi
suficiente. E depois dessa atividade eu deixei eles em grupo e coloquei a lista para eles
escreverem. Porque com o alfabeto móvel eles tiveram a oportunidade de trocar e chegar na
escrita correta. Depois quando eles foram para a lista eles já tinham passado pela experiência
do alfabeto móvel.
Pesquisadora: E quando o aluno Eduardo conseguiu escrever a palavra aniversário e você
pediu para que eles falasse quantas letras tinham na palavra, será que todos os alunos
conseguiram ver como se escreve “aniversário”, pois as letrinhas ficaram na carteira dele.
Renata: Acho que nem todos conseguiram mas eu acho que todos conseguiram no final com a
minha interferência.
Pesquisadora: Uma ideia que eu te daria para uma próxima vez seria a de escrever a palavra
na lousa junto com eles.
Renata: Eu não me lembro se nesse dia eu fiz, acho que não. Mas eu faço sempre isso sim,
escrevo junto com eles na lousa. Na outra aula que você filmou eu escrevi a palavra
“madrasta”. Primeiro eu deixo sempre eles arriscarem e depois nós vamos construindo juntos
a escrita correta.
194
Pesquisadora: O objetivo da atividade foi alcançado?
Renata: Foi sim. Eu percebo que muitas crianças estão avançando muito, muito e eu acho que
foi bem produtivo. E você vê a carinha deles de felicidade quando alcançam o objetivo. Eles
gostam muito... Eu acho que é uma atividade trabalhosa para mim, mas eu acho que depois de
ver o vídeo eu tenho que fazer mais porque eu acho que é uma coisa que ajuda muito no
processo educativo deles.
Pesquisadora: Tem mais alguma coisa que você gostaria de comentar?
Renata: Eu gostei muito dessa atividade e eles também, mas eu acho que eu ainda tenho que
mudar bastante. Algumas coisas eu preciso rever na minha interferência. Porque mesmo eles
estando na mesma mesa, com dificuldades próximas, ainda tem criança que não aceita a ajuda
do outro, sabe? Então eles preferem fazer sozinhos e eu acho que eles vão ter que aprender
ainda a interagir com os colegas sim.
Pesquisadora: Tem uma coisa que eu percebi que eu gostaria de dividir com você: você
percebeu que muitas vezes a gente ouve mais o barulho de fora da sua sala do que o dos seus
alunos?
Renata: Nossa, é mesmo.
Pesquisadora: Quando você problematiza, quando você está apresentando alguma atividade
que é do interesse deles, muitas vezes o barulho de fora da sua sala é bem maior do que o da
sua própria sala.
Renata: Na verdade, a minha sala é barulhenta e eu não consigo fazer eles ficarem quietinhos,
mas eles participam muito, eles querem, eles gostam e eles se envolveram comigo e o avanço
é notório.
195
Transcrição da Autoconfrontação simples – Aula de matemática
A professora teceu alguns comentários antes de acabar a exibição do vídeo.
Renata: Nossa, eles estão quietinhos mesmo, nem eu na hora tinha percebido isso... Eu acho
que eu vou passar esses vídeos para eles, acho que eles vão gostar de se ver...
Pesquisadora: Qual foi o objetivo dessa atividade?
Renata: O objetivo era ver como eles chegariam ao resultado, quais as possibilidades que eles
usariam para chegar a um resultado. E eu acho que eu consegui porque eu tive várias crianças
que usaram várias possibilidades diferentes. E o que eu mais gostei foi que eu mostrei para
eles que não existe um único jeito de fazer e que na matemática eles podem usar outras
maneiras de fazer. O meu objetivo foi esse e eu acho que eu consegui porque eles usaram
várias estratégias para chegar ao resultado.
Pesquisadora: Eu percebi que tem aluno que é mais avançado em matemática do que em
Língua Portuguesa.
Renata: é sim, e tem mais, o dinheiro para eles é fácil e como a quantia era pequena é aquilo
que eles usam no dia a dia.
Pesquisadora: E essa atividade é do Ler?
Renata: É do Ler sim e está no livro. Um dia antes eu tinha pedido para eles fazerem uma
pesquisa de preços. Na verdade, eu ia trazer o folheto do supermercado mas aí eu achei que se
eles pesquisassem era uma maneira deles irem buscar. Eu achei que foram poucas que não
trouxeram e das que trouxeram nós escolhemos os preços. Como tinha muita diferença de
preço eu questionei a marca, qualidade... Aproveitei para discutir que os preços não são os
mesmos em todos os lugares. Pra mim, eu fiquei feliz com a atividade e acho que foi bem
produtivo o dia para eles.
Pesquisadora: No decorrer do vídeo você me falou que você achou que é brava com eles...
Renata: É, eu achei que eu sou brava (risos). Ah, tem horas que eu sou chata mesmo mas na
verdade eu quero que eles aprendam e quando algumas crianças perdem o foco isso é que me
deixa meio brava mesmo. Mas assim, se você perceber no geral, eles participaram, tiveram
interesse, fizeram o que foi proposto.
196
Pesquisadora: O que o Ler propõe quando você trabalha com essa atividade?
Renata: O Ler propõe isso mesmo: as diversas maneiras que eles encontram para chegar ao
resultado.
Pesquisadora: Na entrevista você me relatou que sua grande dificuldade está nas aulas de
Matemática. E agora ao se ver, o que você achou?
Renata: (risos) Eu quero conseguir fazer com que eles aprendam e eu acho que às vezes eles
dispersam um pouquinho. Um pouquinho não, bastante porque eu acho que tem algumas
crianças que dispersam muito. O que eu tento fazer é arranjar um jeito mais próximo para que
todos estejam envolvidos mesmo. E as atividades que o Ler propõe são boas. Agora começou
a formação da área de matemática (EMAE) e eu acho que cada vez mais só tem a melhorar.
Pesquisadora: E aquela continha na qual você apresentou Unidade, dezena e centena, eles
estavam preparados para trabalhar com isso?
Renata: Na verdade, eu não cobro isso não. Eu cito e apresento para eles estarem se
familiarizando mesmo. O que eu uso é mais por estimativa mesmo, porque eu tenho criança
que já conhece e já faz a continha de cabeça mesmo.
Pesquisadora: É objetivo desse ano que você leciona que eles aprendam unidade, dezena e
centena?
Renata: Não. Eu coloquei aquela conta na hora de corrigir porque eu fiquei pensando como
eles iriam chegar no valor de R$ 3,80. Mas isso eu não vou cobrar, é uma situação inicial para
eles irem se familiarizando. Eu costumo trabalhar assim com o material dourado e com os
números naturais, não com dinheiro. Com esse material eu faço as fichinhas e eles vão
trocando.
Pesquisadora: Olhando para a sua aula, o que você faria de diferente?
Renata: Eu acho que o folheto do supermercado ajudaria bastante, não sei se a ida a um
mercadinho poderia ter motivado mais. Mas eu acho que o objetivo que era deles testarem as
diversas maneiras de chegar a um resultado eu consegui.
Pesquisadora: E depois de passar por essa experiência, como foi se ver em atividade?
197
Renata: Ah, eu achei legal... Eu acho que eu tenho que mudar bastante, que eu preciso estudar
muito ainda, que eu quero chegar mais perto e o que eu puder fazer para que todos consigam
aprender eu vou fazer. Isso daí só vai abrindo meu olhar para que eu possa buscar e me olhar
mesmo. Igual, essa atividade é uma proposta do Ler mas a gente não usa tanto. Se a gente
usasse mais você vê que tem resultado. Porque os que sabem mais ajudam o outro.
Pesquisadora: E tem mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar?
Renata: Eu acho que a gente tem que estar aprendendo mesmo. Isso daqui para mim é um
aprendizado porque me leva a mudar a minha prática em muitos aspectos que eu vi, por
exemplo, esse da voz, de atitude, de postura, buscar caminhos para atingir todos os alunos.
Pesquisadora: E você acha que outros professores gostariam de se ver em atividade?
Renata: Eu acho que sim, mas tudo depende do seu olhar porque eu não vejo isso como
crítica, eu vejo como espaço de construção mesmo para melhorar a minha prática. Mas tem
gente que não aceita isso, né? Tem gente que tem dificuldade para enfrentar o novo e isso
pode acabar sendo um problema para muita gente. Na primeira filmagem eu não sabia direito
o que ia acontecer, mas hoje eu uso isso para refletir e rever a minha prática mesmo. Mas para
quem acha que isso pode ser uma avaliação é mais difícil. Eu acho que tudo o que a gente
tiver para chegar mais perto do nosso objetivo que é o de ensinagem é bom.
198
Transcrição Entrevista – Coordenadora Pedagógica
Pesquisadora: Eu queria começar, a gente estava falando um pouquinho aqui rapidamente
aqui do seu trabalho, mas até para te conhecer melhor, enfim, conhecer a sua trajetória, eu
queria que você falasse para a gente, assim, um pouquinho, sobre a sua história de vida.
Coordenadora: Então vamos lá. Desde criança, assim, que eu me lembre, sete, oito anos..., eu
tenho uma irmã gêmea...
Pesquisadora: Ah, é mesmo? Legal!
Coordenadora: ...é nós brincávamos, as companheiras, uma brincava com a outra. Eu nunca
fui de brincar na rua, minha mãe não deixava, enfim, e aí nós brincávamos de professora.
Uma vez eu escrevia na lousa e ela era a aluna e vice versa. Então, isso foi muito marcado,
porque, embora eu comecei a trabalhar, acho que..., eu acho hoje que eu comecei a trabalhar
tarde, com dezoito anos, mas eu comecei a trabalhar em empresa privada, quatro anos e
depois eu fui para a área educacional.
Pesquisadora: Então, inicialmente, originalmente, você não tinha intenção de trabalhar na
educação?
Coordenadora: Não, eu sempre tive.
Pesquisadora: Ah tá.
Coordenadora: Sempre tive, mas eu não tinha formação para isso ainda. Então, eu entrei na
faculdade com dezoito anos. O meu período de faculdade eu trabalhei numa empresa privada.
Assim que eu me formei, coincididamente, ou não, eu fui demitida. Em março, eu lembro
perfeitamente, em março de 1994 e em maio de 1994 eu fui chamada para trabalhar em escola
e não parei mais. São treze anos, vai fazer catorze agora e me identifico muito com isso,
porque eu acredito que a base de qualquer ser humano é a educação. Eu acredito nisso. E aí
isso me frustra um pouco quando a gente vai para a prática, porque a parte teórica é muito
bonita, filósofos, historiadores e pensadores, tal, mas quando eu me deparei com a prática eu
falei: - Meu Deus! É totalmente diferente, é uma outra realidade e eu ouvi da diretora, é:
Nossa, você é tão novinha - vinte e um anos na época - será que você vai dar conta? Isso
marcou para mim. E eu insisti. Com quatro dias que eu – eu trabalhei quatro anos no R. e
estou há seis anos aqui. Eu não gosto muito de ficar trocando, não. Eu acho que a gente tem
199
que tentar desenvolver, começar um trabalho e tentar desenvolver ele e dar continuidade,
porque você começa aqui, começa lá e não termina. Essa é a minha filosofia. E essa diretora
hoje, ela já aposentou e tudo, nós temos contato ainda, e ela é super parceira agora. Quer
dizer, eu venci, não é que eu venci, eu mostrei até para mim mesma que eu estava naquela
transição, se eu ia dar conta ou não. Entrei de cabeça, com tudo.
Pesquisadora: E sua formação em nível superior foi...
Coordenadora: Eu fiz pedagogia primeiro, terminei em 97, em 2001 eu fui fazer letras. Achei
necessidade, precisava estudar... (Pausa. Alguém bateu à porta.). E, eu sei dividir bem. Tem
gente que não. Chega carrancudo e eu não posso fazer isso, porque eu tenho que tentar, é,
entusiasmar, não posso destruir, eu tenho que construir. Isso é continuamente (risos). Eu tenho
uma força de vontade, hoje eu vi uma cena que me deixou bem, é, assim, emotiva, nós não
conseguimos atingir o índice e aí está aquele clima tão pesado, que o pessoal estava
esperando.
Pesquisadora: Esse índice se refere a quê?
Coordenadora: Ao IDESP – Índice de Desenvolvimento do Estado de São Paulo.
Pesquisadora: Vocês fazem uma prova?
Coordenadora: Nós temos uma meta anual e fazemos uma prova do SARESP, que os alunos
tem que atingir essa meta. Alunos, professores, isso são todos, né?! Isso é o global. E a nossa
meta era três e cinquenta e oito e nós conseguimos três e cinquenta.
Pesquisadora; Mas foi por pouco.
Coordenadora: E aí o pessoal começou assim: Não, eu não acredito nisso, qual foi o critério?
Eu falei: Gente, o critério só o governo sabe, nós não podemos nem discutir isso. É que nós
não chegamos lá ainda e ponto final, gente. Tem que trabalhar isso mais.
Pesquisadora: Isso é transparente para vocês, essa coisa do critério?
Coordenadora: Não. Nada é transparente. Eles colocam a meta e depois dão o resultado.
Pesquisadora: Eles mesmos estabelecem as metas?
Coordenadora: Isso. E eles não dão nem o retorno, o feedback, para nós sabermos o que
erramos. Isso é muito ruim. Isso, eu sinto, assim, a angústia dos professores. E todo mundo
200
naquele clima... Ficamos sabendo sexta-feira e aí foi um final de semana horrível, chegou
ontem e alguns professores comentaram também, hoje eu já ouvi, mas aí eu vim pensando,
não hoje especialmente, mas assim, não conseguimos, vamos tentar trabalhar de uma outra
forma, vamos ver em conjunto o que a gente pode melhorar. E hoje eu tomei o ônibus ali na
P. P., em frente ao hospital P. subiu no ônibus a mãe e o cadeirante, um menino aparentando
uns nove anos, é, também aparentando paralisia cerebral, porque não mexia braço, perna,
nada, só olhava para cima. Quando ele entrou, aí eu fiquei pensando assim: Meu Deus!
Primeiro eu agradeci, pelas minhas pernas, pelos meus braços (professora se emocionou),
depois pela minha sabedoria, porque, olha uma criança daquela, quem que vai estar por ele, se
a mãe dele falece quem vai estar por ele na vida?
Pesquisadora: É verdade.
Coordenadora: E aí você se depara assim, vem para cá e professor reclamando: Ai que saco,
tenho que vir enfrentar essa sala, é, tô cansado. Quer dizer, reclama por pouco. Tem
sabedoria, tem formação, tem trabalho e aí reclama demais. E aí isso me emocionou e
comecei até a chorar dentro do ônibus (coordenadora se emocionou novamente). Depois
segurei e tudo, mas é porque eu estou assim mesmo. Aí, vim pensando nisso. Nós reclamamos
muito, muito e aí: obrigada pelo meu trabalho, assim, por tudo. Enfim, estou desabafando
isso, porque...
Pesquisadora: Não, imagina, eu entendo.
Coordenadora: E vou colocar isso no HTP hoje. Eu falei: eu preciso falar isso com eles,
preciso fazer eles refletirem na importância do trabalho deles. Obrigada pela vida, porque eu
tenho sabedoria para chegar até aqui, tenho trabalho, né? E eu vou colocar. Se tiver uma
oportunidade eu vou colocar, mas para eles refletirem, para eles pararem de reclamar um
pouco. Eu também reclamo, mas eu...
Pesquisadora: É do ser humano, a gente tem momentos que...
Coordenadora: Mas a gente tem que segurar, a gente tem que ser mais firmes e pensar que,
olhar para trás e, tem muitas coisas piores, muitas por aí. E isso acho que foi para mim, para
que eu possa passar para eles e aconteceu isso hoje, dentro do ônibus. Acredito nisso.
Pesquisadora: Olha, você estava falando dessa coisa de vocês terem meta, aí vocês, acho que
fica uma chateação, um clima, enfim, desagradável.
201
Coordenadora: É como se você não tivesse trabalhado o ano inteiro, para não conseguir
atingir aquela meta, sabe?
Pesquisadora: E isso é uma coisa que, assim, vamos dizer, é meio contagiante. Fica todo
mundo...
Coordenadora: Ah sim, e no ano passado nós já não recebemos também, porque a meta era
4,60 e aí nós não conseguimos, essa meta abaixou para 3,58 e esse ano nesse ano nós
conseguimos 3,50. Então, está todo mundo assim, muito, talvez vocês vão sentir isso um
pouco no HTP. Então, até para se preparar e tudo, porque eu tenho que me preparar
psicologicamente para falar isso também, mas para deixar isso claro que a gente está aí e tem
o trabalho e vamos trabalhar.
Pesquisadora: Vocês agora fazem uma retomada disso?
Coordenadora: Sim, no mês de julho, que é o nosso replanejamento, é..., vêm os dados já
formalmente, porque agora nós temos via terminal só e não temos os dados corretos assim.
Corretos que eu digo, parte de língua portuguesa, matemática, vem uma porcentagem de
quanto vem abaixo do básico, quanto vem no básico, o que nós temos que melhorar.
Pesquisadora: Agora é uma informação mais geral?
Coordenadora: Isso, mas não vem específico o que a nossa escola errou nessa prova, o que os
alunos pecaram e o foco onde a gente tem que trabalhar melhor, isso não vem. Nós é que
temos que reformular isso e trabalhar isso em meio às atividades, mas isso só em julho.
Pesquisadora: E aí vocês ficam só meio ano trabalhando com a meta?
Coordenadora: Não, não. Isso é anual. Agora o erro ninguém sabe até agora onde foi
Pesquisadora: Então, por exemplo, vocês receberam a meta de que a escola deveria pontuar
3,58 em que época do ano passado? No começo do ano passado?
Coordenadora: No começo do ano passado. Era mais ou menos agosto. Agosto, setembro. Aí
nós tivemos final do ano, o SARESP é feito em novembro e aí é computadorizado todos os
dados, tudo sai agora em março o resultado. Então, nós ficamos ansiosos o mês de dezembro,
janeiro, fevereiro e março.
Pesquisadora: Entendi. Então você trabalha o ano todo independente de meta?
202
Coordenadora: Independente de meta, claro.
Pesquisadora: Mas a meta só vai vir mais para o final do ano, vamos dizer assim, lá para
agosto que é um período próximo a avaliação.
Coordenadora: Isso.
Pesquisadora: Ah, agora eu entendi.
Coordenadora: É anual, o nosso trabalho é anual, porém esse retorno do que foi, do que não
conseguiu atingir são só números para eles e para nós não, nós queremos ver aonde nós
erramos e isso não vem para nós.
Pesquisadora: E quando que você como coordenadora vai ter então esse resultado: olha nossa
fragilidade foi maior aqui ou ali. Quando que você vai saber disso para fazer um trabalho mais
voltado, mais específico?
Coordenadora: Então, em julho nós temos o replanejamento. É aí que vêm os dados concretos,
vem as porcentagens do nível básico, abaixo do básico, adequado e avançado. São o quatro
níveis. Em cima dessas porcentagens: Olha aqui nossa porcentagem de avançado, olha aqui
nossa porcentagem do básico, então, precisa aumentar esse básico pra chegar lá no bom.
Pesquisadora: Então, tecnicamente, vocês só trabalham meio ano em cima desses dados.
Coordenadora: Isso. Agora, anualmente o conteúdo, desde fevereiro trabalhamos o conteúdo,
existe né, as expectativas de aprendizagem dentro do “Ler e Escrever”. É trabalhado anual.
Agora, em nível de números eu só posso dizer para eles que pecou um pouco em julho, no
replanejamento, mas o que a gente quer mais é aonde esse avançado ou básico errou. Existe
uma prova, existe uma tabulação, quer dizer, onde erramos mais? Isso não vem para nós. Nós
temos que trabalhar e esperar que em novembro venha o próximo SARESP e nós podemos
tentar melhorar.
Pesquisadora: Vocês só suspeitam qual é a maior fragilidade. Vocês supõem: olha, nossa
maior fragilidade é essa aqui e vamos trabalhar com isso. É isso que vocês fazem na primeira
metade do ano?
Coordenadora: É.
Pesquisadora: É só para eu entender.
203
Coordenadora: Tudo dentro do currículo, né?
Pesquisadora: Só para eu entender como funciona a lógica dessa avaliação.
Coordenadora: Então é um critério muito jogado do Estado, é, você não tem, você não sabe se
você pecou, por exemplo, aqui nós temos uma escola totalmente periférica e onde
semanalmente nós corremos, entre aspas, atrás dos alunos, porque, se ele falta três, quatro
dias, nós temos que ir atrás para saber o que que está acontecendo e aí não conseguimos entrar
em contato, porque o telefone não existe mais e porque troca o chip do celular cada uma
semana e aí você fica com esse ponto de interrogação e não sabemos se isso também
prejudica a escola em nível de evasão, porque a gente tenta, é, de uma forma, assim, bem
concreta não deixar essa parte evasiva dos alunos, a gente tenta resgatar isso. Uns, por
exemplo, param agora de vir em abril, só vão retornar em junho e a gente não sabe o que foi
que aconteceu.
Pesquisadora: Mas aí como é que fica?
Coordenadora: Não pede a transferência, não vem dar satisfação na secretaria. Então, também
nós sabemos se esse índice, que é um índice, a meta que nós temos que atingir fica
prejudicado devido essas particularidades de alunos e frequência.
Pesquisadora: E quando se faz essa avaliação não se leva em consideração dados que a escola
fornece como esses, por exemplo. É só o desempenho do aluno?
Coordenadora: Isso. Para você ter uma ideia uma escola centralizada ele é nivelada por uma
escola periférica, onde a clientela é totalmente diferente. Então, é claro que aquela escola
centralizada vai ter um maior controle, ela vai conseguir, porque existe uma frequência,
porque existe a participação dos pais. E uma escola periférica, onde o pai deixa a criança aqui
às sete horas da manhã e só chega às onze da noite. Então, é muito discrepante e eu acho que
a revolta toda também é essa, nivelar no mesmo patamar uma escola que tem tantos
problemas, que encontra esses problemas, muitas vezes não consegue resolvê-los, porque não
tem dados, e a outra, que é centralizada, que chega até o pai e consegue ter um
acompanhamento e essa consegue e essa (C.) não consegue devido essa discrepância. Então, é
difícil entender isso e aí você trabalha do mesmo jeito, você tenta trabalhar, você desenvolve
o currículo, mas não é suficiente para o que eles querem, né?! O que nós queremos é que eles
saibam o currículo e o que o governo na verdade quer é só números, eles querem dados
positivos.
204
Pesquisadora: E aí, diante disso que você está me dizendo, como é que você faz então para
pensar na formação dos professores, porque o espaço que vocês têm semanal do HTPC é um
espaço de formação?
Coordenadora: Isso, e é muito pouco para mim, é pouco.
Pesquisadora: Pouco.
Coordenadora: Então, eu vou assim, na formação do Ler e Escrever que eu tenho
semanalmente as informações, o material eu adequo a nossa necessidade.
Pesquisadora: Essa formação do HTPC é separada da do Ler ou é o mesmo espaço?
Coordenadora: Não, é separada.
Pesquisadora: Então, além do HTPC, que vocês têm semanalmente, ainda tem outro espaço de
formação que é o espaço do Ler? É isso?
Coordenadora: Não. É assim. O ano passado era assim. O professor que fazia o Ler e Escrever
tinha quatro horas a mais que essas duas horas de HTPC. Então, ele tinha quatro horas para
estudo, preparação de atividades e esclarecimento de dúvidas.
Pesquisadora: E nesse período de quatro horas semanais ele ficava na escola?
Coordenadora: Na escola. Fora do período dele.
Pesquisadora: Entendi.
Coordenadora: E era eu que formava.
Pesquisadora: E era opcional para o professor?
Coordenadora: Opcional para o professor. Infelizmente eu digo até, porque esse ano tiraram
essas quatro horas. Um espaço rico de estudos, um espaço aonde os professores trocavam com
maior intensidade problemas e atividades direcionadas àqueles alunos com dificuldades e eles
esse ano tiraram. Então, eu coordenadora, só tenho duas horas – nem hora é mais, são
cinquenta minutos cada uma - eu só tenho dois dias de cinquenta minutos para formar esse
professor. Então, se torna uma coisa mais difícil para mim, porque eu recebo a formação lá
semanalmente, oito horas, eu fico a sexta-feira inteira lá na diretoria ou numa outra escola,
onde eles queiram se reunir, recebo essas informações e cobranças, muitas cobranças e aí eu
205
tenho que adequar ao meu professor nesses dois dias devido, de acordo a necessidade. É
muito difícil isso, se tornou mais difícil, já era e se tornou mais. Então, eu venho trazendo
para eles assim muitos estudo de leitura primeiro e em cima dessa leitura uma reflexão na
prática deles, a importância do ato de ler, principalmente. Se nós queremos formar um aluno
leitor, nós temos que ter um professor leitor e o professor, eu também sou professora, fala que
não tem o hábito de ler, ele não estuda antes. Essas quatro horinhas que teríamos aí, como
tínhamos no ano passado e poderia ter esse ano, justamente era para isso, é para ele ter um
tempinho a mais para ele estudar, vai falar que ele vai estudar em casa, ele não vai estudar em
casa, gente. Ele dobra período, ele tem os seus afazeres, ele tem a sua família, ele não vai
parar uma hora, duas horas do seu dia para ler, ele não vai fazer isso e é isso que eu tenho a
maior dificuldade de trazer para nós, para o grupo, é, a importância da leitura, do preparo,
para depois a aplicação.
Pesquisadora: E você sente que quando você consegue fazer esse trabalho ele faz diferença na
prática?
Coordenadora: É, já começou, já começou esse mês de março. Primeiro eu recolhi os
materiais e me adequei a necessidade do professor. Então, eu fiz assim, primeiro que mostrar
para eles, nós temos que estudar a importância do ato de ler. Então, eu trouxe um capítulo de
um livro que é do Paulo Freire, “a importância do ato de ler”. Fizemos uma leitura
compartilhada e trouxemos isso para a nossa realidade. Isso eu fiz, consegui fazer isso em
dois dias, um nós lemos e no outro nós discutimos. É... desde a sua infância qual seu contato
com a leitura? Vem resgatando isso. Um trabalho de formiguinha, né? Qual seu contato com a
leitura? Como que era sua leitura?
Pesquisadora: Você conhece um livro que se chama “Como um romance”, de Daniel Penac?
Coordenadora: Não.
Pesquisadora: Vou depois dar os dados para você. Ele é bem interessante, ele fala que toda
criança, toda pessoa gosta de ler e que, quem mata esse desejo natural nosso de ler é a escola e
a família. Aí ele vai dizer porque, vai dizer a gente impõe a leitura como castigo, etc e tal. É
bem interessante.
Coordenadora: E eu, de uma certa forma, não que esteja, você falou de castigo agora e eu até
pensei, não é que eu esteja castigando o professor.
206
Pesquisadora: Sim, sim. É diferente.
Coordenadora: Minha obrigação é de formar, então, eu tenho que mostrar pra eles, de uma
forma é, lúdica, sincera, que eles precisam ler, precisam estudar. Eles têm que organizar um
pouco mais o tempo deles para isso. Tanto que, nos meus HTPC’s, às vezes as pessoas que
fazem dois no mesmo dia eu preciso da rotina deles. É aí o momento onde eles se agrupam
por ano/série e que montam a rotina semanal, que todos, dentro de uma forma unificada
dentro da sua realidade, vão trabalhar as atividades para atingir quem? Os alunos com maior
dificuldade. Então, eu dou dois espaços para eles. Eu cobro primeiro a leitura, o estudo e
depois eu dou esse espaço para que eles tenham essa troca. Professor precisa ter essa troca.
Pesquisadora: E você sente que o resultado disso é positivo?
Coordenadora: Ele é satisfatório, ele é satisfatório, porém ele é pouco, muito pouco para a
nossa necessidade.
Pesquisadora: Certamente.
Coordenadora: Então, duas horinhas duas vezes por semana é pouco para aquele professor se
dedicar na rotina. E, olha, todos os terceiros anos vão seguir essa rotina. É impossível. É um
exemplo, só. Cada terceiro ano tem a sua dificuldade, a sua rotina em sala de aula, mas o
professor se adequa a isso. De repente, aquilo que deu certo para o terceiro A, não está dando
certo para o terceiro B, mas o que o terceiro A pode ajudar o professor do terceiro B a tentar
chegar só a cinquenta por cento daquele ideal? Pra isso o HTPC, eu acredito. “Hora de
Trabalho Pedagógico Coletivo”. Eu preciso cobrar sim porque eu sou cobrada, eu preciso
mostrar pra eles a importância, sim, eles chegam no HTP (dizendo): “Ai, que saco!”, “Ai, tem
que fazer HTP”. Tem, tem que fazer. Isso está na sua carga horária, isso está no seu currículo
e aí, toda semana eu tenho que me motivar, eu também tenho que estudar, não tenho tempo
para estudar, eu passo nove horas aqui dentro, levo trabalho para a minha casa. Não tenho
filhos, porque eu acho que se eu tivesse..., não problema, mas, menos uma possibilidade para
estudar. Esse texto eu vou dar sequência, então, esse texto eu vou chegar lá amanhã e vou tirar
a cópia para eles, porque eu vou estudar com eles no HTP. Mas ainda é muito pouco e com
essas quatro horas que existia eu tinha o meu espaço também para estudar junto com eles e
hoje eu não tenho mais.
Pesquisadora: É, porque esse espaço agora se incorpora a sua rotina aqui na escola e você
acaba fazendo outras coisas. Não para fazer a formação, então faz outras coisas.
207
Coordenadora: Então, eu não posso fechar a porta. Você acha que eu posso fechar a porta
assim para estudar?
Pesquisadora: Imagino que não.
Coordenadora: O quê? Aqui eu não consigo.
Pesquisadora: V., nós estávamos antes falando um pouco da sua formação, eu queria retomar
isso com você. Você estava me falando que fez pedagogia e depois letras.
Coordenadora: E depois eu vi a necessidade e fiz letras, que eu gosto muito e atuo na área de
português e inglês, como PEB II, que é Fundamental II e Médio.
Pesquisadora: Então, você, além da coordenação, ainda dá aula?
Coordenadora: Não. Dentro da carga horária eu sou professora de PEB II e sou designada ã
coordenação de PEB I.
Pesquisadora: Entendi.
Coordenadora: E gosto muito. Vim pra cá, trabalhei oito anos no R., como PEB II e vim pra
cá, passei por uma entrevista, fiz uma dinâmica com os professores, me apresentei, porque
naquela época era voto. Não sei nem se é bem essa palavra, mas eu gostei mais da proposta
dela, então vamos votar. E aí passei aqui, conheci a E. a L., o A. na época, que era o outro
vice-diretor e apresentei a minha proposta e nunca, nunca não, eu havia trabalhado com PEB I
seis meses e depois eu fui para PEB II. Então, eu não tinha muito essa realidade. Quando eu
cheguei aqui é que eu percebi a dificuldade, primeiro do aluno de primeira à quarta e como
ele chega na quinta série em diante. Então, antigamente eu tinha uma realidade de quinta série
e falava: - Puxa, por que o aluno não aprendeu nada em quatro anos? Por que ele chegou aqui
e não conseguiu e não consegue desenvolver? E hoje eu penso totalmente diferente. Ele já
chega com defasagem no primeiro aninho e se não for trabalhado bem nesse primeiro aninho,
ele carrega isso para a vida escolar dele inteira. E aí, foi em cima disso que eu comecei a
trabalhar. Fui atrás, busquei, eu costumo dizer que eu vim de peito aberto mesmo, porque eu
nunca tinha assumido nada. Eu tinha sido vice-diretora um ano lá no R., mas vice-direção é
totalmente diferente. Embora você esteja envolvida, mas você não está direto com o
professor. E aí eu vim para cá e de peito aberto encarei essa missão e acredito que seja uma
missão mesmo, porque não é fácil você dividir. Eu tenho trinta e sete professores, cada um de
um jeito, cada um fala o que quer e ouve o que ele quer também. Então, eu tenho que saber
208
conversar com cada um, saber cobrar de cada um. Vem um e diz aqui: “Olha, eu não posso
ficar hoje no HTP, porque eu tenho consulta médica, porque eu tenho..., né?” “Professor, mas
o senhor sabe que tem que ser feito aquilo, aquilo.
Pesquisadora: Existe um controle, um registro, do professor que faz o HTPC?
Coordenadora: Eu que registro tudo. Eu ainda não consegui passar isso para eles. Olha, hoje
vocês vão registrar.
Pesquisadora: Mas eu digo até, assim, registro de presença.
Coordenadora: Do professor? Tem, tem. Eu tenho que colocar falta. É aula para ele. Ele está
ganhando por isso.
Pesquisadora: Entendi.
Coordenadora: Então, ele vem aqui e fala. Você viu a professora que veio aqui? “Olha, eu
preciso ir ao banco”. É, mas ela está com tantos problemas, já. “Preciso ir ao banco, me
cobraram indevidamente.” Prô, eu precisava muito que você participasse hoje do HTP, mas...
se você não consegue...”. Ela vai perder e é uma professora que precisa ouvir. Ela está com
muito problema, ela está trazendo isso para o aluno, ela é professora de educação física, uma
matéria que eles gostam tanto, eles amam e esperam a semana inteira pelas duas aulinhas de
educação física e eu tenho observado que ela está mais agressiva com os alunos, ela está sem
paciência. É uma professora que necessitava de estar ouvindo tudo isso que vocês vão estar
falando ou alguma dinâmica. Precisa pensar. Parar e pensar. Você viu o que eu falei? “Tudo
bem, prô. O que eu vou fazer? Gostaria muito”. E eu sou obrigada a colocar a falta para ela,
porque ela não está presente. E aí isso gera... “Pô, vai colocar falta para mim, mas eu te dei
satisfação, meu motivo é justo.” “Você me deu satisfação, mas acontece com todo mundo”. O
que que eu vou fazer? Claro que existem suas, suas idas e retornos, né?! Por quê? Professor
que a gente percebe que está... Eu não posso fazer diferença com nenhum deles. É falta para
um é falta para todos. Mas, o modo que vem a abordagem para a gente, a satisfação é
diferente. “Olha, eu estou assumindo hoje a minha falta, por isso, por isso e por isso, porque
eu não estarei aqui, porque eu não vou ficar.” Agora, não chegar assim e, ou alguém que nem
me dá satisfação, sem falar nada, como é que eu vou saber? Eu tenho que fazer a minha parte
e o HTP é pouco, é pouco tempo de formação. O professor necessita estudar, parar, ler. Nosso
planejamento foram três dias, certo?! Sete, oito e nove de março. Eu fiz leitura os três dias
209
com eles. Leitura, discussão, prática. Uns: “De novo, isso?”(risos) “De novo, isso?” “De
novo, isso!”
Pesquisadora: E eles propõem alguma coisa diferente?
Coordenadora: Não, não. Eles só dizem assim: “Nós temos que ver a nossa realidade, a
realidade é outra” “Professor, pensa naquilo que você está lendo, naquilo que você está
estudando pra sua realidade”.
Pesquisadora: Com isso ele está querendo dizer... (coordenadora interrompe)
Coordenadora: Ele quer fórmula.
Pesquisadora: Você acha que ele está querendo dizer que o que se estuda, que se lê é muito
distante do que ele vivencia na sala de aula?
Coordenadora: Não, eu acredito que ele quer fórmula pronta e isso não existe. Porque se eu
tivesse, eu chegaria aqui hoje, colocaria uma varinha assim, ó, e estaria tudo prontinho. Então,
eu cheguei aqui hoje, como eu disse para você, com toda a expectativa, minha rotina, meu
cronograma e a rotina me engoliu. Aí eu tenho que me adequar a isso para uma realidade que
eu tenho daqui a pouco com trinta e oito professores e eles acham: “De novo, isso? Nós
vamos ler de novo isso?” “Tem, tem que ler”. O professor tem que entender que ele tem que
ler, que ele tem que estudar. Trazer isso para a prática.
Pesquisadora: E você acredita que, digamos, a médio, a longo prazo, isso tem um efeito?
Coordenadora: Tem, tem.
Pesquisadora: Sua experiência tem mostrado isso.
Coordenadora: Eu acho que todo, é, eu acho que tudo mesmo é, vamos dizer, insistência.
Você vai insistindo de acordo com a necessidade. Você vai e pega daqui, pega um pouquinho
ali. Você puxa, no bom sentido, a orelha de um aqui, o outro já sente lá.
Pesquisadora: Essa necessidade (de formação) você que faz um levantamento dela ou sempre
o HTPC é o que você recebe da Diretoria de Ensino e passa para os professores?
Coordenadora: Foi isso que eu disse. Eu recebo a formação e dentro dessa formação eu me
adequo a necessidade aqui dentro. Então, eu vejo, eu percebo o professor me traz isso, eu olho
as salas, eu pesquiso cadernos, porque que aquele aluno não está aprendendo. Então, em cima
210
disso desse dado, é que eu tenho que adequar aquilo que eu ouço lá, pra vir pra cá, pra trazer
isso para eles.
Pesquisadora: E você faz o filtro?
Coordenadora Isso! Era o que eu ia falar agora. Nem tudo que eu ouço lá eu posso dizer aqui.
Porque eu ouço lá muita parte teórica, totalmente diferente da nossa realidade e então eu
tenho que me adequar a isso. Não posso jogar isso para eles: “Se virem”. Não é assim. Eu
tenho que dar respaldo. Eu tenho que cobrar, mas eu tenho que dar respaldo. Então, nunca um
professor chegou aqui na porta, bateu ou entrou e eu falei: “Da licença, professor, agora, não.”
Eu nunca fiz isso. Isso eu estou falando com a maior sinceridade. Olha, eu já ouvi um grito lá,
do professor (risos). É, porque o professor necessita disso, ele precisa falar. Então, às vezes
ele senta aí ou me chama na sala é pra falar, falar, falar, desabafar, desabafar e dentro daquela
realidade eu tento pensar como é que posso ajudar aquele professor. Isso de uma forma
individual e até coletiva, porque tem o professor que caminha muito bem. Ele sabe a proposta,
ele sabe o currículo, ele consegue dominar a sala, ele consegue atingir os alunos e tem um
resultado bom. E tem o professor que ele precisa de orientação, ele precisa de uma ajuda
psicológica (risos) não sou psicóloga, mas..., acabo me colocando no lugar. Ele precisa ser
ouvido, ele precisa de um respaldo. Às vezes ele está muito, assim, tá fora. “Você pode ficar
aqui um pouco? Eu preciso sair, respirar.” Fico lá com os alunos. E aí, tudo para ter um bom
resultado. Então, eu tenho os extremos, assim. Aquele que precisa mais, eu tô acolhendo mais.
Aquele que eu vejo que pode caminhar, claro, de uma certa forma. “Você precisa de alguma
coisa?” ”Precisa de uma certa..., precisa de alguma coisa?”, eu também não posso deixar ele
só, porque ele caminha bem, eu não posso deixar ele, então, eu tenho que ouvir. Nunca
ninguém entrou aqui e eu falei não. Às vezes ele vem chorar aqui. Chorou, chorou e eu aqui,
firme (risos).
Pesquisadora: Então, além de ser uma referência, do ponto de vista pedagógico, acaba sendo
um pouco conselheira, um pouco o ombro amigo.
Coordenadora: Precisa, senão não ele não trabalha bem. Ele está angustiado, ele está
mordendo lá por dentro e como é que ele vai passar algo bom para quarenta que estão dentro
da sala? Então, a gente precisa ter muita, muita, paciência e eu sempre falo: “Puxa, eu ouço
um, ouço o outro, mãe veio aqui já querendo desabafar, sentou aqui, falou que tinha uma
doença, que queria falar comigo. Quando ela falou isso pra mim. “Eu saí da minha casa, eu
não tenho ninguém, não tenho vizinho.” Ela chegou aqui e começou a falar: “estou com uma
211
anemia profunda, não sei como é que eu vou, não estou conseguindo acompanhar os meus
filhos, estou preocupada com os meus filhos.” Desde isso até um professor que chega aqui e
fala: “Eu hoje, minha manhã foi tão complicada, aí, nossa, eu estou tão cansado.” Tem uma
que chega aqui: “Ai, eu não estou aguentando aqueles alunos da prefeitura.” Eu fico lá, ouço:
“Prô, tenta se concentrar agora no seu trabalho, esquece o que passou, eles estão aí, eles não ,
eles não bateram lá na sua porta “professora, vai dar aula pra mim” foi você quem escolheu
eles. Então, eles estão aqui esperando tudo de bom de você.” Aí a professora acalma e tenta
renovar de novo. Aí eu falo: “Puxa, eu ouço um, falo com outro, ouço e é lamentação. Hoje,
você que me ouviu. Por que quem é que vai me ouvir?
Pesquisadora: É verdade, foi o que eu pensei agora.
Coordenadora: Quem é que vai me ouvir. Pai vem aqui, mãe vem aqui, criança. Você viu a
criança? Só precisei conversar, bater um papo, sai da sala e bate um papo com ele. A
inspetora fica lá, mas olha, bate um papo assim: “Eu sou sua professora, eu quero te respeitar,
me respeita e eu te respeito também.” Você tem que resgatar isso.
Pesquisadora: E você falando disso me fez pensar em uma coisa. Pode ser que muito do que
chega aqui para você como, por exemplo, o caso dessa criança que você acabou de citar, que
nós vimos, poderia ter sido resolvido lá e, talvez, não ter chegado aqui na coordenação.
Coordenadora: Poderia. Poderia. Não que eu sou salva-vidas. Eu me considero uma pessoa
cheia de defeitos, cheia de atribulações que eu não consigo, às vezes eu me sinto uma inútil,
estou sendo muito franca, que eu passo as nove horas aqui, vou para a minha casa e penso: eu
não fiz nada do que eu tinha que fazer hoje. Já chorei muito, já desabafei com o meu esposo,
ele pergunta: “como foi hoje lá?” “Ah, você quer saber? Senta aí que você vai saber.” Ai
desabafo, desabafo. Aí parei e pensei, ele também me disse isso: “V., você não é sozinha,
você depende de uma equipe e quando a equipe não está junto, você não consegue abraçar
tudo sozinha”. Aí foi amadurecendo isso, porque é real. Eu não consigo abordar mil e cem
alunos. Eu não consigo entrar lá no íntimo de trinta e sete professores, eu não consigo
sozinha. Eu preciso de uma equipe, eu preciso de uma colaboração, uma visão diferente, uma,
de professor mesmo. Eu acho que todo mundo, todo professor, tem que passar pela
coordenação, pela vice-direção e pela direção. Todos. Pelo menos trinta dias. Para sentir.
Pesquisadora: Depois de ter passado pela sala de aula.
212
Coordenadora: Sentir o que eu estou sentindo, que quando eu estava dentro da sala de aula eu
perguntava: “- Nossa, mas por que esse aluno chegou na quinta série e não consegue aprender
a ler e nem escrever?”. Aí eu vim para uma realidade e vi e percebi que a situação é outra.
Todo professor tem de passar pela coordenação, pela vice-direção e pela direção, porque é
muito fácil você criticar o trabalho do outro, desde quando você não vivencia aquilo e a maior
dificuldade do ser humano é se colocar no lugar do outro. Essa é a maior dificuldade. Todo
mundo pensa só no seu problema, no seu umbigo e esquece do umbigo dos outros (risos).
Pesquisadora: Então, você está há quanto tempo como coordenadora?
Coordenadora: Seis anos.
Pesquisadora: Seis anos como coordenadora. E nessa escola há seis anos também?
Coordenadora: Seis anos. É. Isso.
Pesquisadora: Qual sua experiência anterior com esse tipo de trabalho de coordenação? De
coordenação, não, né? Sua experiência anterior...
Coordenadora: Eu assumi aqui, faz seis anos de coordenação e nunca havia, na coordenação,
não. Eu fiquei um ano na vice-direção lá do R. e em sala de aula
Pesquisadora: Tá. Então você tinha uma experiência de oito anos em outra escola que foi em
sala de aula.
Coordenadora: Em sala de aula.
Pesquisadora: No Fundamental II.
Coordenadora: Isso.
Pesquisadora: E você veio pra cá já para ser coordenadora.
Coordenadora: Isso.
Pesquisadora: Então, assim, essa experiência de sala de aula sua foi fundamental para você
compreender toda essa... é por isso que você está dizendo que é importante o professor passar
pela coordenação.
Coordenadora: Só para a gente sintetizar isso. Lá no R., mesmo em sala de aula eu tinha essa,
esse, essa vontade de ajudar o coordenador. Era o Seu A., eu lembro bem dele, professor de
213
história e eu ajudava ele a preparar o HTPC. Ajudava assim: “O senhor quer que eu ajude em
alguma coisa de texto, o senhor quer que eu tire xerox, quer que eu leia?”. E ele me pegou
para isso. Então, foi uma experiência boa. Eu comecei assim a perceber que eu tinha o dom,
não sei, para aquilo. Então, de abordar, de preparar a sala, esse ambiente. Ele falava: “Não,
deixo com você.” Era um senhor de idade já e tudo. Então, eu tinha essa iniciativa.
Pesquisadora: Além dele alguém mais foi marcante para você nessa sua experiência
profissional anterior?
Coordenadora: Então, foi essa diretora que um dia me falou: “Será que você vai dar conta?” E
aí ela me foi jogando desafios, desafios. Não é que eu coordenei, eu organizei. Não sei se
você já ouviu falar a “Caminhada da Paz” que a dona E., que já foi dirigente da Norte I, ela
organiza uma caminhada da paz aonde montou um livro, eu trouxe até esse livro para mostrar
para os professores. Ela montou um livro sobre a paz. Será que está aqui? E ela me ajudou
nesse sentido, assim, onde os alunos da escola como eu era, era não, sou professora de letras,
então eles formavam e elaboravam versos, estrofes, poesias e nós montamos, do R., um livro
sobre a paz, os alunos.
Pesquisadora: Que interessante.
Coordenadora: E quando ela foi para a diretoria, ela montou esse de todas as escolas.
Pesquisadora: Que legal!
Coordenadora: Então tem todos os alunos, parte deles, uns já se formaram. Está aqui no livro
a poesia deles e tudo. E eu ajudei ela a desenvolver esse trabalho lá no R. Isso foi oito anos de
trabalho dentro da sala de aula, fazendo projeto. E aí, depois eu vim pra cá.
Pesquisadora: Então você trabalhou nessas duas escolas. Essa de agora e na anterior.
Coordenadora: E o que me marcou foi isso, foi ela me apresentando desafios e eu fui atrás e
fui buscando. O vice-diretor disse que eu tinha perfil. Depois de uns cinco anos que eu estava
lá ele disse para mim: “Você tem todo o perfil de direção, de coordenação. Você não quer
montar a proposta?” Eu falei: “Nossa, mas será que eu...” A princípio eu fiquei até meio
assustada. Ele falou assim: “Tem o C., tem outras escolas. Você monta a proposta.” E eu:
“Mas em cima de quê, de primeira a quarta, que eu não vivencio isso, né?!” E ele falou assim:
“Não, é para ajuda dos professores”.
214
Pesquisadora: Porque você não fez magistério no ensino médio, né?!
Coordenadora: Não, não. Eu fiz normal, né, e parti para a faculdade.
Pesquisadora: Tá.
Coordenadora: E aí eu fiz a proposta, pensando na alfabetização, pensando nos alunos,
pensando em ajudar os professores. E assim eu fui votada, de uma certa forma, para a
coordenação.
Pesquisadora: E aí eu até aproveito para te perguntar como você descreve essa sua função de
coordenação. É claro que, anteriormente, você já falou uma série de coisas para mim, mas
quem sabe você retomaria isso agora, sintetizaria, enfim, como você descreveria sua função
de coordenadora?
Coordenadora: Olha, eu tenho uma responsabilidade muito grande em relação a professor e
aluno, porque eu tenho que formar esse professor, para esse professor formar esse aluno. E
quando você lida com cabeças formadas, personalidades formadas é totalmente diferente
quando você entra numa sala e você vai formar aquilo, o aluno junto. Então, o meu papel
maior é mostrar para esse professor, fazer com que esse professor reflita sobre a prática dele e
que seja a melhor, a melhor que ele conseguir. Não depende só dele também.
Pesquisadora: Claro.
Coordenadora: Depende do aluno, da família do aluno, de todo um processo, mas que ele tem
que rever isso. É o que eu estou tentando fazer nesses seis anos. Porque as pessoas, às vezes,
pensam assim: “Ah, mas você já está há seis anos, você já está acostumada com o grupo.”
Não é assim, eu não posso estar acostumada, eu tenho que cutucar sempre, porque senão eles
acostumam comigo e aí, não vai dar certo (risos). Então, tem professores que dizem: “Nossa,
você mudou, né, esse ano?”. “Não, não mudei, só estou cobrando um pouco mais, eu só estou
mostrando um pouco mais, por que estão me cobrando, eu preciso ter resultados. A minha
parte pedagógica são resultados.”
Pesquisadora: Como você se sente diante disso? Porque aí, tem uma coisa que é uma pressão
também. Por um lado você tem essa consciência, essa noção do que você, da sua função como
coordenadora, mas por outro lado você também tem uma cobrança, você tem resultados que
você precisa apresentar.
215
Coordenadora: Tem números. Eu preciso começar o ano em fevereiro com número X e
terminar, em dezembro com número Y. E como que eu vou chegar nesse professor e mostrar
dados? Eu pego a sondagem que eles fazem, monto gráficos e mostro pra eles a real. “Olha
quantos aluninhos nós ainda temos com dificuldades. Por que isso está acontecendo?”. Claro
que existem os casos específicos. A gente conhece cada um. Tem os cadeirantes, tem aquele
com problema, com dificuldade mental, mas eu preciso atingir esse aluno. E o professor, ele
está avaliando de uma forma correta? Às vezes, não. Tem professor que chega aqui pra mim
com a sondagem do aluno que o professor acha e coloca que ele é silábico sem valor sonoro,
que ele ainda não conhece que cada duas letras ele precisa para formar uma sílaba. Ele precisa
do som de duas letras para formar uma sílaba. Então, o professor vem aqui e fala: “Estou com
dificuldade nesse aluno, olha aqui, não progrediu.” “Prô, como foi que ele leu?”, eu pergunto.
“Como foi que ele leu, ele leu para você?”. Porque o professor tem muito disso concreto, só
números, e letras, e papel, mas a oralidade precisa trabalhar muito mais ainda. O aluno, eu
tenho aluno super inteligente na oralidade e ele não consegue registrar. Tenho esse problema
também. E aí ele chega aqui e eu tento mostrar pra ele que a realidade é outra. Eu nunca vou
chegar e falar: “O senhor avaliou errado.”, porque quem conhece o aluno é o professor. Eu
não estou lá quatro horas por dia, lá, junto com ele. Mas eu tenho que falar assim: “Ele não
melhorou nessa parte aqui? E como que ele leu para o senhor? Então, ele já reconhece isso?
Ele não reconhece?”. E o professor tem ainda um pouco de dúvida e avalia errado, muitas
vezes e desse avaliar errado é que os resultados vão para baixo. Aonde um aluno que ele é,
existem os níveis pré-silábico sem valor, com valor. O aluno pré-silábico é aquele que não
reconhece nada, nem letras, nem números e nem nada. Para o professor o aluno que ainda não
consegue é, é, reconhecer as letras, ele é um aluno pré-silábico, mas ele não é pré-silábico
mais, ele sabe que aquilo é letra, mas ele não reconhece, diferente do aluno que coloca
bolinha, pauzinho, estrelinha, que reconhece símbolos e não letras. Então, eu tento mostrar
isso para eles também, que é a minha função, que tem que ter um novo olhar para a avaliação.
Pesquisadora: E como que você minimiza, resolve, enfim, esse problema do professor?
Coordenadora: Trazendo atividades para eles fazerem.
Pesquisadora: Na formação, no HTPC?
Coordenadora: É. Hoje eu trouxe também. Eu cheguei no final de semana, peguei todos os
meus documentos antigos, lá e tudo, aí eu trouxe para eles, ó, tá vendo? (a coordenadora
mostra as atividades) de capacitações minhas. Então, eu vou tirar xerox e vou dar o exercício
216
para eles fazerem. “Avalie essas escritas”. A partir daí é que eu vou sentir as maiores
dificuldades do professor ainda em avaliar. Então, eu tento trazer de forma concreta a
dificuldade deles, porque que ainda esse aluno..., avalie esta escrita. Ele vai lá, vai ler. E a
leitura, professor, é assim que você faz com o seu aluno, é assim que ele ainda está? Pensa no
aluno J. – supondo, só – ele ainda escreve assim? Então, eu trago a realidade para eles
avaliarem e em cima dessa avaliação é que eu vejo a dificuldade deles também.
Pesquisadora: Entendo. Descreva pra nós, assim, brevemente a comunidade escolar que você
trabalha. O que você sabe sobre essa comunidade, quem são os alunos, quem são os
professores.
Coordenadora: Comunidade escolar pensando em aluno: são muito carentes. Carentes de quê?
De afeto, de atenção. Eles não têm o contato alfabético em casa, os pais, muitos deles não
sabem ler, escrever, saem de manhã sete horas, só chegam às onze. E também temos outros
que os pais acompanham, que sabem ler, que são letrados, é, muitos até fazem faculdade. Nós
temos dois extremos, aquele que só sabe vir aqui na reunião, tadinho, colocar o dedo
(carimbar o dedo para assinar), quantas vezes isso.
Pesquisadora: Analfabetos mesmo?
Coordenadora: Sim.
Pesquisadora: É comum?
Coordenadora: É comum. Você fala assim: “Assina aqui a ficha que você veio para a
reunião.” “Eu não sei assinar.” Aí você tem que pegar a carimbeira, ele vai lá, coloca. É
difícil, é muito difícil. Então, como o aluno não tem esse contato com a leitura em casa,
ninguém lê para ele, ninguém lê junto com ele, ele não consegue desenvolver também isso e é
na escola que ele vai desenvolver. Então, é nesse sentido de carência que eu falo, carência
afetiva, carência social. Então, é onde a escola, ela está com a função de suprir essa
necessidade. Ela supre cem por cento? Nunca vai acontecer. Ela vai suprir, que seja lá, setenta
por cento. Os outros trinta depende da vida deles social. Então, é uma comunidade difícil, nós
estamos cercados por duas favelas, né? Não que favela vá denegrir ninguém, não é isso, é a
condição social totalmente diferente. O aluno vem aqui de chinelinho, um baita frio, aonde
você tem que fazer um chá quente pra ele, pra ele tentar se aquecer, porque ele não consegue
se concentrar lá na aula, então, eu peço, sapato, meia, roupa para os professores, se os filhos
dos professores podem doar pra deixar de reserva pra um aluno que não tem. Essa é a nossa
217
comunidade, assim, onde você chama os pais e falam assim: “Mas eu trabalho, professora.”.
“Mas eu também trabalho, só que o filho é seu.”. Então, vem acompanhar, acompanha em
casa. Se você olhar todo dia o caderninho o aluno vai se sentir cobrado também de uma certa
forma, ele vai se sentir importante. “Olha meu pai está olhando meu caderno, minha mãe está
olhando o meu caderno.”. Não é só a professora, a coordenadora, a diretora que está
cobrando, que está vendo. É isso que falta na nossa comunidade, acompanhamento. É
totalmente o extremo uma aluno que é acompanhado, que o pai está aqui, ou que o pai liga:
“Eu posso passar aí uma vez por semana, posso passar só para ver como ele está?”. “Pode.”. É
diferente daquele outro que nem na reunião de pais ele vem. Ele passa o ano inteiro sem vir na
reunião e só vem para assinar, em dezembro, a rematrícula, preocupado se esse aluno, no ano
quem vem vai ter ou não a vaga aqui. É totalmente diferente.
Pesquisadora: E os professores?
Coordenadora: Isso, eu vou falar. A nível de professor eu acredito no meu grupo, acredito que
eles são capacitados, que eles são assim, esforçados, mas de uma forma bem sutil é, eu cutuco
para eles se esforçarem um pouco mais. Acho que essa é a minha função, eu tenho que ir
cutucando devagar. “Professor, será que você não podia mudar aqui, será que não seria
diferente aqui?”. Nunca falando pra ele: ”Você não sabe, você não soube avaliar, você não
sabe...”. Isso eu nunca vou falar. “Mas pode ser diferente, não pode professor? E se a gente
fizer dessa maneira? E se a gente tentar dessa maneira?”. Sempre “a gente”, “nós”, porque é
um grupo, eu não posso falar: “você, você...”, não posso. E existe o nosso professor, além de
ser capacitado, ele tem boa vontade, mas eu preciso disso, minha função é essa, pra mostrar
isso pra eles. E tem aqueles que, como eu já disse, não precisa cutucar tanto, por ele próprio.
Essa professora que veio me entregar o livro, ela tem trinta e três anos de magistério, tem
sessenta e dois anos de idade e eu não preciso falar pra ela: “Professora, a senhora está no
sistema que é outro, está avaliando assim, diferente. Ela, naquela época, há trinta e três anos
atrás, ela tinha uma realidade, hoje ela tem outra e não quer se aposentar, ela gosta daquilo
que ela faz.
Pesquisadora: Interessante.
Coordenadora: Então, ao mesmo tempo que eu tenho professores que só estão preocupados
com o governo e com a cobrança e não sei o que, e muitos que já falaram para mim, falaram
para mim, falaram para a diretora: “Eu só estou aqui pelo dinheiro, eu preciso de aumento, eu
quero aumento.”, “Eu não vou para outra área, porque eu não passei em outro concurso.”. Eu
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tenho o extremo, eu tenho o outro professor de trinta e três anos que gosta daquilo que faz e
está aqui. Ela traz roupas das netas dela, até das bisnetas, que ela já tem duas bisnetas, já, é,
para os alunos, para doar para os alunos. Faz gincana, faz..., gente, eu fico assim, boba. Então,
eu tenho vários, mas no contexto eu tenho que cobrar de todos e tenho que ouvir todos. Em
cada um eu tenho uma dificuldade e eu tenho que atingir aquela dificuldade. Com jeitinho,
com conversa, mas eu tenho que atingir. Mas eu acredito no meu grupo, acima de qualquer
coisa. Eu acredito que todos, dentro das suas limitações, é..., desenvolvem um bom trabalho.
Pesquisadora: Bom, você já apontou isso quando você respondeu a questão anterior que eu
coloquei, mas assim, na sua opinião, quais são as maiores necessidades dos alunos dessa
escola?
Coordenadora: Necessidades pedagógicas?
Pesquisadora: Necessidades. Quaisquer necessidades.
Coordenadora: Olha, você presenciou aqui uma. Primeiro é a conversa, o afeto, o ouvir. Ele
precisa de alguém para ouvir ele também. Ele senta lá na cadeirinha e ouve, ouve, ouve.
Quem o ouve? Ele precisa disso. Muitas vezes a gente está numa rotina, já numa, numa
situação que ele chega e já aprontou. Esses três que estavam sentados aqui, eles aprontaram,
bateram, né?!. Você chega até meio agressiva: “Por que que você fez isso? Você não tem o
direito de fazer isso. Quer que alguém bata em você?”. Mas aí você tenta resgatar neles o
seguinte: qual a função deles aqui, para que eles vem para a escola. Não foi isso que eu
perguntei para a criança? Para tentar fazer ela refletir: “O que eu estou fazendo dentro da sala
de aula? O que eu estou fazendo na minha escola? Para que eu levanto cedo, seis horas da
manhã e venho para a escola? E para brigar? É para responder a professora, é para quê?”. É
para me esforçar, para estudar. Eles sabem. Eles são inteligentes, só que precisa desse resgate.
A necessidade maior, eu acho, é o resgate dos valores dessas crianças. Precisa saber o que eles
têm de bom, para trabalhar junto com as habilidades a desenvolver. E a nível social eu acho
que eles precisam de tudo, francamente dizendo. Tenho alunos que vêm de perua escolar, o
pai paga e tem aqueles alunos que vêm de chinelo de dedo. “– Ah, V., você vai dar mais
importância para aquele que vem de chinelo de dedo, você vai dar mais atenção porque aquele
outro tem uma certa bagagem, uma certa base?”. Não. Tenho que tratar todos iguais. Mas os
problemas acontecem com esses que vêm de chinelinho de dedo, porque já está na vida social
deles. Os outros eu trato bem, a gente conversa e tudo, dou bronca também, mas a realidade é
outra e o resultado também é outro. Então, para que eu possa atingir esse de chinelinho de
219
dedo eu tenho que ter essa conversa, eu tenho que ter essa, esse ouvir. Que o aluno fala: “Ah,
todo mundo me cobra, professor me cobra, direção me cobra, mas, é aí? Aí, fecha assim os
bracinhos? “Não vou fazer, não vou fazer.” “Por que que você não quer fazer?” “Não vou
fazer!” “Fala para mim, porque que você não quer fazer? Você veio aqui para quê?” Você tem
que resgatar isso.
Pesquisadora: Você acha que tem de ter um resgate de valores? Ter uma escuta para os
alunos?
Coordenadora: É. E o professor, eu entendo o lado deles porque eu sou, é, ele não tem tempo
para isso, ele tem quarenta dentro da sala. As salas são lotadas. Como ele vai parar com esse
aluno e deixar os trinta e nove lá? É aí que entra o meu papel também de..., se ele quiser ter
esse, essa conversa com o aluno eu tenho que ir lá na sala, fico lá com os alunos e ele tem
uma conversa particular com ele que deu o problema.
Pesquisadora: Você se dispõe a fazer isso?
Coordenadora: Sim, eu já fiz muitas e muitas vezes. Já dei aula dentro da sala. Faltou
professor, fui eu dar aula para o aluno não ficar sem aula. Complicado, né?
Pesquisadora: Porque você descobre uma outra também... Sua função fica descoberta.
Coordenadora: Totalmente.
Pesquisadora: E do ponto de vista pedagógico, você diria que a maior necessidade deles é?
Coordenadora: Então, quando a gente ouve a gente se põe no lugar e se colocando no lugar, a
gente tem motivação para mudar, para melhorar. Muitas vezes, não, às vezes não dá, mas,
outras acontece isso. “Puxa, então a necessidade dele é mais de afeto? Deixa eu abordar ele
diferente. Deixa eu cobrar ele diferente.”. Não é eu cobrar: “Faça isso aqui agora”. É abordar
diferente, é: “Eu estou aqui para te ensinar, então, tenta fazer, tenta fazer, tenta desenvolver.
Se tiver alguma dúvida, você levanta a mão, você me pergunta, mas tenta”. Aí, até faço isso
com os alunos: “Qual é essa letrinha, qual é essa? Então, agora aqui, o que é que eu formo?”
É um espaço que ela não tem, mas eu tenho um pouco mais aqui. Então, eu tento ajudar o
professor nesse sentido. Ele tem quarenta. Se ele quiser vir aqui, só ele e a criança, pode vir
aqui. Senta aqui e eu fico lá, desde que isso não atrapalhe os outros também, né? Mas
pedagogicamente eu acho que a necessidade ainda é desse professor estudar. Eu sempre falei
isso para eles: estudar, estudar, estudar. “De novo?”. Estudar, estudar, estudar. Eu ouço:
220
“Hum, que saco!” Outra que foi entregar..., essa professora de educação física, foi entregar,
porque eu acho que educação física, artes, também tem que participar, ele está num contexto.
Então, eu entreguei o texto “A importância do ato de ler” e ela fez assim para mim (cara feia),
na minha frente, e é uma pessoa que quer fazer pós-graduação. Aí eu só chamei ela depois que
acabou o HTP, falei: “Prô, eu percebi que você...” – com todo um, uma sutileza, sabe? – Eu
falei assim: “Eu percebi que você, é..., não foi agradável para você essa leitura hoje. O que
que está acontecendo?” “Ah, não, é que tem que ler seis páginas?” Eu falei assim: “Mas, prô,
a senhora não quer fazer pós-graduação? É muita leitura. Para quem quer fazer pós precisa
dessa leitura e não é só a leitura que te agrada é a leitura que é necessária”. Aí ela mudou um
pouquinho, sabe (risos)?! Trouxe ela para a realidade dela. Até com o professor a gente tem
que fazer isso e é o que eu pretendo fazer isso hoje, por exemplo, nesse caso que, nessa
situação que aconteceu comigo no ônibus, reflita um pouquinho sobre isso, não reclame da
sua prática, não reclame da sua sala, não reclama da sua vida: “Ai, tem que ir para a outra
escola”. Não reclame, gente.
Pesquisadora: É verdade.
Coordenadora: Eu tenho que resgatar também o valor do professor. Eu não sou Deus, nunca
vou ser, não quero ser. Eu não sou sabe tudo, toda poderosa. Nunca fui, nunca vou ser. Eu
estou aprendendo a cada dia. Mas eu aprendi a ser mais humilde, a agradecer o trabalho que
eu tenho. Meu esposo fala assim, eu chego, falo das coisas terríveis que acontecem, “muda de
escola” ele fala pra mim. Eu falo assim: “Olha, escola é tudo igual, existem os seus
problemas, mas eu me sinto útil aqui. Se eu for para uma escola centralizada aonde eu não
tenho problema de aluno indisciplinado, aonde eu não tenho dificuldade de falar com o
professor, aonde eu não tenho que ler com o professor, para que que eu vou estar lá? É
diferente, eu não vou só assinar e ganhar o meu salário.
Pesquisadoraa: Você se enxerga útil desenvolvendo um trabalho aqui.
Coordenadora: Aqui. É impressionante, eu só trabalhei em periferia, nessas duas escola, uma
lá em baixo, que é na periferia do C. e outra aqui na periferia do J. P. É assim que eu me
enxergo.
Pesquisadoraa: Interessante. Legal. Bom, eu vou fechar com você aqui, porque, é claro, eu
tenho outras, muitas questões que eu quero perguntar para você, mas eu estou atenta um
pouco ao horário, porque eu sei que o HTPC, que inclusive nós vamos estar juntos. Tem mais
221
um monte de coisa que eu queria perguntar para você, muito legal esse bate papo, a gente
compreende uma série de coisas também, para nós, que estamos desenvolvendo pesquisa isso
é essencial e aí assim, só para a gente encerrar a parte de hoje, eu já vou até pedir para você
que no dia dezessete a gente tenha um espacinho para a gente poder continuar isso e eu até
vou trazer transcrito o que a gente conversou, eu perguntaria para você assim, você me falou
das necessidades que os alunos têm, falou também das necessidades que os professores têm.
Eu queria que você fechasse essa parte de hoje me dizendo quais são os objetivos desta
escola, em linhas gerais.
Coordenadora: O maior objetivo é que a criança aprenda. Nós, nós estudamos para isso, nós
estudamos para isso. Ninguém bateu na sua porta e falou: “Vem, vem estudar pedagogia, vem
estudar letras”. Ninguém fez isso comigo. Então, se eu escolhi isso para a minha vida eu tenho
que tentar desenvolver o melhor possível. E a maior necessidade, o objetivo da escola é esse,
é formar o cidadão e fazer a criança aprender, ler, escrever, ter visão de mundo, trabalhar as
habilidades dela. Tem crianças aqui com uma habilidade para teatro que você não imagina.
Você fala assim: “Nossa, aquela ali abriu a boca?” Porque ela não abria a boca e quando na
hora do teatro ela abriu tudo, não só a boca, mas tudo dentro dela. Então é isso que a gente
tem que formar, cidadão crítico, crítico no bom sentido, aonde ele saiba de direitos e dos
deveres dele. Então, meu direito começa quando termina o seu e aí é isso que a gente tem que
fazer e formar. Formar cidadão crítico, no bom sentido, no sentido que ele saiba o que é certo
o que é errado e para a vida, como nós temos alunos aqui que, essa professora de trinta e três
anos (de serviço), a Luci, ela já está dando aula para os filhos dos alunos dela.
Pesquisadora: Nossa! É porque são trinta e três anos de magistério.
Coordenadora: E aqui eles têm filho muito cedo, muito cedo. O pai é..., a mãe tem vinte, o pai
tem vinte e um, então, uma criança que passou pela escola e que hoje casou, já tem os seus
filhos, os seus filhos já estão estudando aqui e que já estão fazendo faculdade, os alunos dessa
professora. Então, eles vêm aqui reencontrar a professora, isso é gratificante, isso é a função
de uma escola, é deixar boas lembranças, é deixar um bom estudo, aonde ele fala assim: “Eu
adoro o C.!” Quando ele fala assim, eu fico... “Eu adoro o C.!” “Essa escola..., eu estudei
aqui, agora o meu filho está estudando aqui, eu queria ver a professora Luci”. “Pois não”. Eu
levo lá na sala. Vai atrapalhar cinco minutinhos? Não vai atrapalhar. Vai ser um ganho para
aquela professora, aonde ela vai recordar tudo aquilo que ela fez e que ela está vendo o
resultado agora. Isso motiva, isso deixa a professora mais..., “Puxa, eu posso fazer melhor
222
também, eu posso... Essa, eu acho que é a maior, é o objetivo da escola, é formar, reformar,
porque já vem de uma certa forma, a cabeça..., a criança vem de uma certa vivência e tudo, e
mostrar o que é certo ou errado. Esse menino que estava aqui, a diretora, até a secretária
falou: “Não, manda uma convocação para a mãe vir aqui para a gente conversar”. Primeiro eu
tenho que ouvir o que aconteceu, eu tenho que ouvir o outro lado. Como que eu vou mandar
uma convocação e eu nem sei o que está acontecendo? Eu não vou mandar mãe vir por nada.
Não é que “por nada” eu primeiro preciso saber. E a mãe vai falar pra mim: “De novo, de
novo está me convocando?”Aí que ela não vem, ela pega birra, pega raiva. Então, eu tenho
que ver os dois lados e a comunidade espera muito da escola, muito. Só que fazemos o que
podemos. Também não somos detentores de tudo.
223
Entrevista com a Diretora
Pesquisadora: Há quanto tempo que você assumiu a função de diretora aqui dessa escola?
Diretora: Nessa escola, 6 anos.
Pesquisadora: E você começou nesta escola como diretora?
Diretora: Eu comecei como diretora.
Pesquisadora: Então faz 6 anos que você está na escola...
Diretora: Em junho, faz 7.
Pesquisadora: Anteriormente, você trabalhou em outras unidades como diretora?
Diretora: Trabalhei. Assim, eu ingressei, eu comecei a dar aula em 77, em 80 eu ingressei
como professora. Em 84, eu fui ser assistente de diretor de escola. Até 89, fui assistente. De
84 a 89. De 89 a 99, eu fui diretora designada. Aí, depois, de 99 a 2003, eu fiquei na
supervisão. Aposentei, 2003. E tinha passado no concurso de diretor. Aí, ingressei em 2005. E
aí, ingressei aqui e to aqui até hoje.
Pesquisadora: Nessa trajetória profissional toda, quais foram os fatos mais marcantes, que
você poderia destacar?
Diretora: Se eu vou falar o que marcou muito a gente, a reorganização. Então, passei por
aquele ciclo, o CCI, que é o ciclo inicial e ciclo continuidade, aceleração. Passei por tudo. Aí,
quando houve a reorganização em 96, foi muito dolorido pra todo mundo. Porque, trocar de
escola, fica de 1ª a 4ª numa escola e os demais vão pra outra escola. Então, teve uma série de
problemas com professores... isso aí foi assim, marcante nesse sentido. Agora, eu tive uma
escola em 96, onde eu trabalhava, que tinha a sala especial, né, hoje são as crianças com
necessidades especiais. Lá era assim, a sala especial, classe especial. E nisso, por exemplo, a
gente tá falando em alfabetização: tinha aluno de 4ª série que não sabia absolutamente nada. E
aí, ele não sabia nada e o que a gente fazia? A gente passava ele um pouquinho pra sala
especial, pra aprender alguma coisa. E essa coisa de tirar a criança de uma sala e passar pra
outra, faz sentido pra gente. Porque, eu tenho um aluno na 4ª série que não acompanha. Aí,
pega esse aluno e passa lá pro 3º ano, 2º, tal, pra ver que estágio. Onde que a gente pode pegar
essa criança, trazer ela de volta.
224
Então, esse tipo de situação, por exemplo, o fato de ter a sala especial era bom por isso.
Porque são crianças especiais que não conseguem aprender. São, eles têm necessidades
especiais, embora aparentemente não tenha. Você vai pra um psicólogo, fazer uma avaliação,
qualquer coisa, fala que não tem. Então, vai pro lá posto, faz uma avaliação: "não, não, essa
criança é normal." Normal, é normal. Toda a criança é normal, só tem algumas dificuldades
de aprendizado e tal. Então, o que eu to querendo dizer é assim: o que marcou bastante foi
essa história dessa área especial ajudar as crianças que estão lá, vamos dizer, nas crianças
normais, que na verdade, antes ... hoje todas vão ver que hoje tem a inclusão e eles
acompanham também. Então, acho que o que marcou mais foi a reorganização. Porque mexeu
muito com os professores e mexeu com a cabeça das crianças também. Dos pais, de todo
mundo, viu. Essa parte aí... eu não se era isso que você queria saber.
Pesquisadora: Sim, é isso. E nessa trajetória, teria alguma pessoa, ou pessoas que você
explicaria, que exerceram influência no teu exercício profissional?
Diretora: Sim. Tinha uma dirigente, A. C. Ela era coordenadora da COGSP. Nota 100. Então,
acho assim, aprendi muito com A. C. e com a dona N. A., também. Professora N. A., que
também foi nossa dirigente. Então, são pessoas assim, fora que escola tinha, é, com
professores. Vários professores, assim. A gente aprende muito com professores e com as
crianças também. Então, aí, crianças, de montão, a gente aprende muito com eles. Mas,
bastante com professores assim, que passou na minha vida e colegas que, enquanto
professora, e depois também, enquanto diretor, supervisor, a gente acaba aprendendo. E,
enquanto supervisor, aprende muito com várias escolas, que eu passei e aprendi com o
trabalho dos outros diretores também, né. A gente acaba aprendendo com todo mundo.
Pesquisadora: E como você descreveria a função de diretora de escola?
Diretora: Olha, na verdade, eu acho fundamental, viu. Não to querendo puxar pra lado
nenhum, não é isso. Agora, assim, a escola, quando falam assim que a escola é a cara do
diretor e diz "ah, a escola não tem cara..." - tem sim. Tem, porque é assim: as pessoas, elas
seguem o ritmo... embora a gente ache... antes eu não achava dessa importância. Mas o diretor
é muito importante, uma figura importante. Os professores, eles seguem, sim, o perfil do
diretor, vão seguir, e acabam entrando no esquema. Eu não sei se é a gente que também...
Aqui é um grupo, eu falo que é um grupo, assim, especial pra mim. Mas acho que é porque eu
to aqui, né. Então, eu acho que é especial porque eu tô aqui. Então, as pessoas, parece que a
gente têm uma ligação, uma coisa que a gente conversa e se entende. Que eu acho que é
225
assim, que há um entendimento no grupo. É um grupo bom. Tem aqueles que, assim, desvia...
onde tem muita gente, não é todo mundo igual, é tudo diferente. Mas eu sinto que, quando eu
falo alguma coisa, onde eu to presente, que eu falo, eles escutam. Então, a gente conversa, a
gente fala, a gente propõe algumas coisas e aí, a coisa rola. E não é a mesma coisa se eu não
estou presente. Você entendeu? Não to querendo falar porque a diretora é isso e aquilo, não é
isso. É que às vezes, a gente sabe que, se a gente não tá em determinado lugar, e aí, acontece,
desvia alguma coisa, então fala "poxa, né, não tinha que estar assim?" Mas acontece. Então, o
diretor é uma peça fundamental. Ele é líder, sim, não adianta a gente falar que não, porque é
sim. Então... a vice-direção também, que ela exerce uma influência muito boa aqui, em todo
mundo. E a V. também.
Então o grupo é um grupo bacana e a gente conversa, a gente fala... eu me entendo muito com
a Luzia, porque às vezes, eu vou falar determinada coisa e ela fala, aí é o que eu ia falar
mesmo. Parece um casamento.
Pesquisadora: A gestão de vocês, desde sempre,foi essa composição?
Diretora: Foi, praticamente sim. Em 2005, quando eu entrei, era o A., que era o vice-diretor.
Aí, ele ficou na direção do Renato, que é aqui perto, e a L. voltou, porque ela era diretora
aqui. Aí, quando ele veio, ela ficou vice dele, aí quando eu vim, ela saiu e ele ficou meu vice.
Aí, quando.. e ela foi ser vice na escola C. Aí, quando o A. foi pra lá, eu falei "ah, então
vamos trazer a L., né." Ela era daqui. E, aí a L. veio e ficou comigo. Hoje, eu falei "Quando
ela aposentar, eu aposento junto." Porque eu me acostumei tanto, que não dá pra... assim, é
difícil.
Pesquisadora: Quando uma equipe funciona, né?
Diretora: É difícil você trabalhar com outras pessoas... No começo, quando eu tava aqui, eu
pensei em remoção várias vezes. Entrei em remoção três anos. Depois, eu falei "não vou me
remover daqui. É aqui mesmo que eu vou ficar e pronto. Vou trabalhar com eles", e esse
grupo que eu tenho, vou trabalhar com esse grupo, e a gente vai se conhecendo, eles também
vão me conhecendo e a gente vai trabalhando junto. Às vezes, a gente pensa que... eu falo
assim: que eu aqui... se eu não to até do mesmo jeito, se eu não estou... continua tudo igual. E
continua mesmo. Eu acho que é um prolongamento do que a gente faz. Os professores, têm o
compromisso, eles sabem o que eles têm que fazer, eles têm essa coisa assim,já traçada. E a
Vanessa trabalha muito bem também.
226
Pesquisadora: Quando que a V. chegou?
Diretora: 2006.
Pesquisadora: Ah, então vocês são todas contemporâneas.
Diretora: Isso. Porque aí, eu tinha a S. B., que era coordenadora. Só que quando a Sandra foi
trabalhar na oficina da E. R. na diretoria de ensino, veio e falou pra mim que tinha tido uma
proposta, e tal. E eu falei: "olha, o que a bom a gente tem que deixar, né. " Porque ela
trabalhava muito bem, e ela queria abrir mais. Então vai pra oficina, que aprende mesmo! Que
tem mais curso, tem mais coisa, vai, vai fazer. Aí, ela foi e veio a V. pra cá. E aí, a V. Porque
os professores daqui também são assim. E vem e fica. Então, a L., por exemplo, tem mais de
20 anos dentro da escola. A R. também tem bastante tempo. Tem alguns que vão aposentar. E
os novos que vêm também ficam. Quando chegam, ficam.
Pesquisadora: Isso ajuda num processo de construção, de um projeto de escola, né.
Diretora: Isso, isso.
Pesquisadora: E como você descreve a comunidade dessa escola? Assim, as famílias,
características do bairro.
Diretora: Olha, a gente tem, tem vários problemas, que falei, desajustados. Assim, não tem
estrutura. A gente vê que a criança não tem. Algumas crianças, você vê que tem estrutura
dentro de casa. Então, é meio que misturado, né. Quando fala assim "ah, é um bairro carente",
não é assim também, sabe, tem de tudo. Assim como aqui ou naquela escola mais
centralizada, tem. A visão das pessoas em relação à comunidade, acha assim "não, é porque
eles não têm condições, é por isso que eles não vão. Em determinadas coisas, é assim que
acontece. " Não é bem assim. Eu acho assim, que eles têm dificuldades, alguns têm mais
dificuldades... é... financeira, de alimentação, tudo mais... bom, é um bairro pobre.
Quando eu vim pra cá, em 2005, eu senti bem a pobreza. Hoje, eu já não sinto com tanta..
sabe... porque é assim, na época que eu vim, parece que era pior.
Pesquisadora: E era mais desestruturado, né, lógico. Mais início de urbanização...
Diretora: Isso, foi melhorando. Foi melhorando... Eu acho também que é assim, que bolsa
família, a gente não valoriza essas coisas. Embora as pessoas falem assim "ah, agora que tem
227
bolsa família, eles pega dinheiro pra tomar cachaça" - Tá. De tudo tem. Mas assim, eu acho
que as crianças vêm de uma forma diferente pra escola.
Pesquisadora: São muitos os alunos cujas famílias recebem bolsa família?
Diretora: Ah, a maioria recebe. E isso ajuda, né, a criança.
É o nosso sistema de alarme da escola...
Pesquisadora: Quer ir lá ver?
Diretora: Não, as meninas tão lá. Que vai desligar, se for o caso.
Então, a bolsa família: antes eu tinha muito mais criança que chegava aqui com fome. À 1
hora da tarde, sem almoçar, sem ter tomado café, sem nada. Então, chegava, já entrava e
falava que tava com dor de barriga. Coisa que eu perguntava "você comeu?" - "não." - Não
tinha comido nada. Então come um... Então, tinha criança que já chegava, já almoçava. Já
teve mãe que chegou pra mim, chorando, falando que o menino tinha diabetes, que não podia
ficar sem comer, aquelas coisas. Eu falava "olha, então a senhora já, quando entrar, chegar, já
manda. Vem antes do horário, já vem, já come." Tinha essas coisas. Agora, nossas crianças
comem bem. Tanto de manhã, quanto de tarde. Eles comem mesmo.
Pesquisadora: Mas penso que a qualidade da merenda também é um fator assim, que leva a
criança a aceitar ou não, né.
Diretora: É, a merenda é boa. Melhorou bastante também. De uns tempos pra cá, foi
melhorando.
Pesquisadora: Vocês que são responsáveis pelas compras dos...
Diretora: Não. Assim, natura, sim. A gente compra fruta, aqui eles comem rúcula, acelga,
alface, tomate, repolho, cenoura. Todas as hortaliças e a gente diversifica, porque tem criança
de primeira ali que não aceitava a rúcula. Depois começou a aceitar. Porque a Elzinha tem
isso, ela falou "não, eles têm que conhecer tudo quanto é verdura, não é só..." e ela que cuida
dessa parte. Então, ela.. que nem, a fruta, não é só banana. Tem escola que acha dificultoso
cortar o abacaxi, então dá só banana. É banana, maçã, mexerica, abacaxi, melão. Cada dia é
uma coisa gostosa. Uma fruta diferente. Caqui, goiaba, né... fruta da época. Eles vão
comendo, e aí eles conhecem. Que tem criança que não conhece. Que a mãe mesmo compra
só aquela fruta mais barata, ou a verdura na hora ali, é alface... outros é arroz e feijão e pronto,
né. Então, eles comem.
228
Deixa eu só ver uma coisa aqui... dá uma licencinha. Deixa eu ver a dona C. aqui, ver o que
que aconteceu...
(interrupção)
Diretora: Escola é assim, né. É truncado. (risos)
Pesquisadora: Ano passado, eu tava na minha faculdade e me roubaram, dentro da sala e a
câmera não funcionou. Então é assim, a qualidade da gravação é fundamental. Porque senão,
não resolve nada.
Diretora: É. A gente tem câmera no pátio, aqui duas (sala de informática), aqui na secretaria.
Aí eu falei “pronto, sala de informática”, né, que é a única que poderia... ou lá em cima,
alguém mexeu alguma coisa e tocou o alarme. Aí falou que o alarme toca mesmo. De vez em
quando toca sozinho aí tem que ligar pra... Ela ligou.
Pesquisadora: não foi nada mais...
Diretora: Não.
Pesquisadora: Que necessidades a mais dessas que você descreveu, que você apontaria em
relação aos alunos? Que você observa?
Diretora: Eles são muito violentos. A gente tem que trabalhar essa parte da violência. Eu acho
que o professor, dentro da sala, tem um trabalho, tem que ter esse trabalho conta a violência: a
não-violência. É que nem agora, no recreio. Só pegando esse caso aqui dos meninos. O
menino falou que estava separando os outros dois. Então, disse que foi brincar com o outro e
tomou um soco. Aí o outro se meteu no meio e falou que tava separando, mentira, ele foi lá e
socou o outro. Porque viu o outro brincando, batendo, ele foi lá e bateu também. E esses
corinthianos e palmeirenses, é a mesma coisa: um começa, o outro vai e bate e mata uma
pessoa. Você já imaginou, viver com uma situação dessas pro resto da vida? Eles não podem
tem. Eles têm que ter noção, não tem que imitar a televisão e não tem que imitar a violência
que está aí fora. Agora, eles vivem a violência dentro de casa também, né. Então, pra eles é
muito fácil resolver no tapa, no soco, porque vê o pai bater na mãe, vê o irmão bater não sei
em quem... eles, sabe, vivem isso. No vizinho, né... Aqui tem muito disso. O companheiro
bater na companheira, aquelas coisas todas. Então, eles vivem isso.
Pesquisadora: Você observa alguma ação de conselho tutelar nessas intermediações? Em
casos de violência contra a criança, o adolescente?
229
Diretora: Contra a criança, sim. A gente já teve mesmo, aqui na escola, eu já tinha visto o
problema com uma criança. Eu comecei a investigar com a criança, pra entrar em contato com
o conselho tutelar. Quando eu tava aqui, com a criança, conversando e ia chamar a família pra
ver o que estava acontecendo, chega a moça do conselho tutelar, dizendo que tinha uma
denúncia e que tinha vindo atrás da menina, também, por conta da denúncia dos vizinhos.
Então, foi de imediato: a gente viu e aconteceu deles estarem... mas tem! Tem sim. Funciona,
funciona bem.
Pesquisadora: E além da violência, você destacaria alguma outra coisa? Alguma necessidade
dos alunos, que a escola tem atuado pra suprir?
Diretora: (pausa)...gente... A questão da aprendizagem, que a gente falou, é assim: esse
professor Ronaldo, ele fala assim: “a criança já é rejeitada no útero. A mãe fuma, bebe, então
a criança nasce com problemas de rejeição, de tudo mais, o que vai acarretar problemas no
aprendizado. Tem uma porcentagem isso? Tem. A gente sabe que tem. E a gente tem que
trabalhar com o que a gente tem. Se tem essas crianças assim, o que a gente precisa estar
trabalhando... e tem as que você... ela vai sozinha. Aí, tudo bem. Você ensina e a criança vai.
E ai, é... ta indo...
Pesquisadora: ta indo...
Diretora: Aí, você... com essa questão da... ó, só pra te resumir: o bônus, agora, que sai nessa
6ª-feira. Eu acho assim, que foi um absurdo. Porque nós não atingimos a meta. E tava todo
mundo crente que iria atingir, porque as crianças foram bem. As nossas crianças estavam bem
no ano passado. Aí eu falei... era 3,58 a meta, foi 3,50, abaixo da meta. Então, o que o
governo faz atrapalha, desestimula o professor. Porque eles trabalharam, eles fizeram, eles
treinaram as crianças nos gabaritos - porque também tem essa coisa de passar errado no
gabarito - foi treinado, foi feito, então teve um bom trabalho em cima dessas 4as séries todas,
o ano passado, e de repente, um balde de água fria. Ano passado, a mesma coisa. Ano
passado, até entendo, porque a gente tinha, no ano anterior, de 2 foi parar no 4, 4 e pouco.
Quer dizer, subiu muito, por que as crianças... quer dizer, foi um trabalho que anos anteriores
não conseguiu atingir, então os professores começaram a trabalhar de forma diferente.
“Vamos trabalhar em gabarito”, porque se você olhasse a prova deles no caderno, era uma
coisa, no gabarito era outra. Eles não sabiam passar no gabarito. Então, vamos treinar
gabarito. Treinou, treinou e surtiu efeito. Uma das coisas, porque eles faziam um bom
trabalho. Nunca deixou de fazer esse bom trabalho. E ai, ano passado não recebeu porque
230
tinha que atingir muito mais e porque foi 3,51 no ano passado, né. Aí, não chegou aos 4
pontos que tinha que chegar. Aí, esse ano, falei “bom, 3, 51 vai conseguir com certeza, porque
é nessa média, de 3 e pouco a 4, né, então não ultrapassou tanto.” Mas não atingiu de novo.
Mas os professores ficaram chateados, nossa, foi assim, um absurdo. E o governador falou
que todos iriam receber. Ia repartir o pão, né... e não foi o que aconteceu. Nossa, ficaram
todos muito chateados. E a gente sabe que as coisas não são tão verdadeiras em umas escolas
e a gente sabe que as crianças não são tão diferentes daqui, agora. Então, me preocupa essa
coisa da maquiagem, o que pode acontecer. Agora, a gente tenta não influenciar no dia da
prova. A gente explica, a gente fala junto com as crianças, tal.. e tenta não influenciar pra que
as coisas sejam verdadeiras, reais. E, de repente, a realidade é uma outra. Então, isso ai,
desestimula o professor. Ao invés de estimular, desestimula. Então, fala assim: “olha, eu não
falto”, que tem o critério de falta, “não falto, eu faço tudo pra estar aqui todos os dias,
trabalhar, estar sempre constante.” Primeiro que não tem eventual, né. Difícil. Então, eu já
combino com os professores “não falta, se tiver necessidade de faltar, avisa com muita
antecedência, pra gente procurar alguém pra ficar na sala”. A gente trabalha em torno disso.
Aí, professor fala “Eu trabalhei doente o ano passado. Eu fiz num sei que... e ainda, assim que
é a recompensa da gente? Olha, não adianta a gente ser. Se tiver que tirar licença, eu vou tirar
licença, se tiver que faltar, vou faltar, porque não adianta. A gente não é reconhecido... eaí,
você vai responder o que?” eu falei “não, gente, olha, é que a gente não pode reclamar do
nosso... 3,50 não ta ruim. Não ta porque tem coisas muita piores. Aí, o outro lá, que recebeu
R$4 mil reais porque ele tava lá embaixo. Era 0,85, foi pra 1 e pouquinho, então ele conseguiu
a meta. E a gente não conseguiu porque a gente ta lá no alto. Já ta num índice bom. Aí, vira o
professor “ih, esse ano vai ser pior, porque as nossas crianças, no ano passado estavam
melhores.” Aí, eu disse “bom, então a gente vai ter que treinar bastante essas crianças,
trabalha com eles bastante, até chegar lá, pra ver se a gente consegue melhorar o índice.”
Agora, aí o pessoal começa a ver as outras escolas “0,71? Como?” A gente fica assim, sem
saber, o dobro da gente. Mas a gente sabe que a gente faz um bom trabalho. Então eu falo
assim “tem que ter consciência do trabalho que você faz.” Se as crianças não foram bem na
prova, tem a ver com outros problemas. Aí, a gente já não pode... ultrapassa os limites do
entendimento da gente. E é assim, a gente só fica triste com isso. Porque o governo, ao invés
de incentivar, ele desestimula. Então, tem que haver um incentivo sim, pro professor. E os
professores têm que ganhar. Aqui, eu tenho um bom número de professores que ganha aquele
mérito, que eles fizeram prova de mérito, conseguiram, então receberam um pouco mais.
Agora, quando a gente fala “dinheiro é importante, sim.” Faz parte da vida de todo mundo.
231
“Trabalha porque gosta?” Trabalho porque gosto, to na educação porque eu gosto. Mas assim,
se eu recebesse mais, eu ia ficar mais feliz, né?
Pesquisadora: É, é uma professor como outra, né...
Diretora: É. Eu ia gostar mais. Eu ia poder fazer outras coisas pra mim, pra minha família.
Então, eu ia ficar mais feliz. Só que assim: eu até esqueço e quanto eu ganho, sabia? Eu
trabalho e esqueço essa parte. Só na hora do “vamo vê”, que eu preciso de alguma coisa, é que
eu lembro “poxa!” O dia que eu recebo, eu sei o que me custa isso. Mas assim, fora isso, eu
acabo esquecendo e trabalho. Simplesmente trabalho. Faço as coisas que tem que fazer. E os
professores são assim também. Chega no dia pagamento, é que vai lembrar que tinham coisas
que precisava ser feito. Mas precisa, o governo precisa melhorar isso aí. A gente tem que ter
voz nesse pedaço aí, e tem que mudar essas coisas.
Pesquisadora: profissão de professor tem que como ta.
Diretora: Profissional. Profissional.
Pesquisadora: E reconhecida, o papel dela na construção de um país...
Diretora: Exatamente, porque se eu quero um país melhor, menos violência na rua, menos
assalto, menos bandido, eu vou ter que fazer alguma coisa diferente. E é na periferia. E eu
vejo, eu sei aqui que eu tenho filho de traficante, tenho filho de assassino, eu tenho filho de
tudo quanto é coisa. Tá lá na prisão, eles saem de lá, eles vêm na escola, você pode ver que a
escola não é depredada, não tem nada disso. Eles cuidam da escola porque eles não querem
que os filhos deles sejam iguais a eles. Eles não querem. Eles querem o melhor pro filho. Eles
não querem a vida deles para os filhos. Eles querem uma vida melhor. Agora, quando
acontece de roubar o step da professora, o GPS, não sei o que, na porta da escola, dentro de
um lugar que, a gente fala “não é nem estacionamento”, porque na escola não tem
estacionamento. Tem um espaço lá que eles colocam o carro. E ai, o que acontece? Aqui
dentro da escola aconteceu. Então, deve ter alguém solto por aí que eles não tão sabendo
ainda. Agora, a gente passa pras crianças o que aconteceu, é só comunicar as crianças, pronto.
Não mexe em mais nada. Porque alguém descobre que quem fez, fez na escola, e não pode
fazer na escola. Eu contei paralelo, que a gente tem. Quando eu cheguei aqui, eu levei
um susto em 2006. Nossa, festa junina, nós fomos assaltados, colocados aqui dentro, que
gente tava aqui... levou pouco dinheiro, não levou muito não. Levou celular de professor,
levou celular meu, algumas coisas assim e a gente ficou bastante assustado. Só que quando eu
cheguei na 2ª-feira, a máquina fotográfica da escola que tinham levado, tal.. já tava aqui com
232
uma pessoa da comunidade já tava com a máquina, o celular das pessoas... mas o meu não
achava. E não era de chip naquela época. Aí falaram pra mim “não, eles vão dar outro celular
pra senhora.” Eu falei “não, obrigada. Não precisa dar, não, porque eu já ia trocar mesmo,
agora vai ter chip, então eu vou ter que trocar. Larga mão...” - porque eu sabia que ia tirar de
outra pra dar pra mim. Mesmo que desse com nota e tudo, roubou de alguém, né... Eu falei
“não, não quero, não precisa. O que achou tudo bem, o que não achou...” - “e o dinheiro?” -
eu falei “também não precisa, porque foi pouco dinheiro, não foi muito. Pegou só o que tava
aqui, porque a gente tava guardando em uma outra sala. Então, não quero. Veio a máquina
fotográfica? Que bom que tava as fotos das crianças, então ta bom.” E o susto que a gente
teve que foi muito grande. Só que daí, nunca mais mexeram com a escola. Foi uma pessoa
que veio de fora. AÍ, quando viram, pegaram a máquina de volta, bateram na pessoa, diz que
apanharam muito... não sei de nada, não sei de nada, não conheço pai de ninguém, nem nada.
Se vem um pai aqui, eu trato como se fosse um pai normal e pronto, e acabou. Eu trato a
criança do jeito que eu trataria qualquer criança, sempre como tratei em qualquer lugar. A
gente tem que educar, a gente tem que ensinar o que é melhor, falar as coisas, tem que ser
rígido também, tem que ter punição? Tem que ter punição. Não é uma coisa pesada, nunca é.
Se, por exemplo, lá no recreio, quer bater nas crianças, fica sem recreio? Aí vai lá, pega a
comida, vem sentar, vem comer aqui, vai ficar aqui, vai pro banheiro... vai fazer tudo igual ao
que é, só que não vai ficar solto lá batendo em ninguém. Não vai ficar machucando ninguém.
É a única coisa. Então, é assim: não existe aquela coisa “ah, não sei que...” não! A gente dá
uma bronca, briga, é que nem pai e mãe. Pai e mãe não briga com o filho, dá bronca? Sabe,
tem que dar. Não pode deixar fazer o que quer.
Pesquisadora: Então, você pode dizer que a relação da escola com a comunidade é uma
relação boa?
Diretora: Boa, boa. É tranquila.
Pesquisadora: E os casos de violência, deturpação contra a escola são pontuais...?
Diretora: Não tem. Na verdade, não tem. O que acontece às vezes, que nem aconteceu aqui,
que pegou o GPS da professora aqui, tal... é alguém que anda solto por aí. E agora, ontem eu
vi o L. A. (não posso que foi o L. A.), ele ficou uns cinco anos fora daqui da comunidade e
veio ontem trazer o sobrinho dele. “Ah, posso entrar pra tomar uma água?” falei “Não, não
pode. Você mora aqui perto, não vai entrar aqui, não.” E aí, então tem a escola da família, as
233
vezes ele vem... mas ele andou meio sumido. Me falaram ate que ele tinha sido morto, tava na
FEBEM, num sei o que, aquelas coisas...
Pesquisadora: Foi aluno da...
Diretora: Foi dessa casa. Daqui. Foi. Eu não peguei ele como aluno, ele já tava fora, mas ele
vinha aqui... acho que ele foi aluno em 2005 e ele perturbava muito. E ele sumiu. E a escola
ficou tranqüila, e tal. Agora, ele veio trazer o sobrinho, ontem eu vi. Eai, falaram disso, eu
falei “será que tem alguma relação?” A gente não sabe, né. Mas é assim: se falar aí pra
comunidade, ele daqui a pouco desaparece de novo.
Pesquisadora: E quais são os objetivos da escola?
Diretora: Em que sentido?
Pesquisadora: O que a escola pretende em relação às crianças?
Diretora: O que a gente quer realmente é que eles aprendam a ler, a escrever, pra ter condição
de continuidade de estudos. Isso aí é o primeiro. Porque eu acho assim: que as coisas ruins
que eles vivem aí fora, eles vão continuar vivendo. Então a gente tem que mostrar o outro
lado. O nosso dever é mostrar o lado bom da vida. A gente acha que a pessoa, pra ela
sobreviver, ela tem que estudar, trabalhar, ela tem que ter um trabalho digno, e ela poder sair
dessa vida, que ela pode não desviar, entendeu? Eu, inclusive falo, quando vem um aqui: “em
que sua mãe trabalha? O seu pai, tal?” “Ah, eu não tenho minha mãe, meu pai ta preso, e eu
moro com minha vó, com meu tio, sei lá o que...” – “Você quer isso pra você?” – vou citar só
o V., a mãe dele ta presa e ele mora com a vizinha. A vizinha pegou quando era pequeno, que
vivia na rua, e a vizinha pegou e botou pra dentro de casa. A mãe saiu, queria levar, mas a
mãe dele mora na rua, agora. Ela saiu da prisão e mora na rua. Ele tava meio revoltado,
quando a mãe saiu da prisão e tava na rua. E a mãe queria levar as crianças, mas não tem
como, mora um numa vizinha e outro na outra vizinha. Aí eu peguei e falei “você quer isso
pra você? Você quer tirar sua mãe da onde ela ta? Então, você tem que estudar. Tem que
aproveitar essa família que tá te acolhendo, você tem uma casa, tem alimentação, você tem
roupa, você tem tudo. Agora, você tem que aprender e você tem que estudar, pra um dia você
poder trabalhar e tirar sua mãe da onde está. Você tem que ajudar sua mãe. Mas pra isso, você
precisa crescer, e tem que crescer em todos os sentidos, né.” Então, a gente trabalha
com as crianças nesse sentido também, de mostrar pra eles que eles podem ter uma vida
melhor e trazer quem ta La também, na pior. Ajudar essas pessoas e poder melhorar a vida de
todo mundo. Então, acho que é nesse aspecto que eles têm que ter uma visão e ver o lado
234
bom. Eles não tem que ser massacrados aqui, maltratados, porque eles já são maltratados
demais pela vida. Uma vidinha maltratada. A gente tem que ajudar eles a enxergar um outro
lado, pra não ocorrer a mesma coisa que acontece com a família deles.
Pesquisadora: E esses objetivos estão expressos no PDP da escola?
Diretora: Eu tento, sabe, melhorar minha proposta. Inclusive, tinha começado a trabalhar isso,
mas tem que dar uma melhorada. Tem que colocar mesmo essa parte social, que a escola tem,
não adianta. A gente quer que aprenda mas tem esse lado aí que a comunidade, a gente sabe,
que tem uma série de problemas e que a gente quer tirar essa criança de lá e mostrar um outro
lado, pra poder também influenciar a família. Que influencia. A escola influencia. O que eles
aprendem aqui, eles passam pros pais. Então, tem uma influência, a gente sabe que a gente
tem uma influência, a gente tem um trabalho. E tem que desenvolver bem, porque é daí que
vai acontecer coisas.
Pesquisadora: Esses objetivos, você acha que é compartilhado pelos professores, pelos
servidores da escola?
Diretora: Eu acredito que sim. Porque a gente conversa, então eu acredito que sim. Não quero
ser tão ingênua de achar que todo mundo vá trabalhar da mesma forma, não. Mas a maioria
tem uma visão assim, mais humanitária. Que tem que ter. Eu trabalho com a gente e a gente
tem que ter esse olhar também. Que eles têm que trabalhar com essas crianças... Você sabe
que a maioria, que nem, quem recebe as nossas crianças é o R., da escola aqui de baixo. E a
diretora lá, fala muito bem dos nossos alunos, sabe. Então, tem uma minoria que vai sem
aprender mesmo. Que aí, tem que trabalhar lá. Mas é minoria, não é maioria. A maioria sai
sabendo, sai fazendo coisas, sai sim. E tem uns que são tão bons que não querem nem estudar.
O R. não escolhe... não é uma escola... é a localização talvez. Os pais não querem que vá pra
lá, querem que vá pra uma outra escola. Então a gente arruma vaga pra eles em outras escolas,
a gente liga pra outros diretores e vê. Pra atender também essa expectativa do pai, que
também não quer que vá pra uma escola que, assim, que concentra drogas, não sei o que, não
sei o que lá. E ser pra adolescência, né. Então, eles falam mesmo das escolas. Não é só nessa
escola. Tudo quanto é escola tem. Então, a gente sabe que a gente tem que estar atento. Pai e
mãe tem que estar atento.
Pesquisadora: Segundo Ciclo, Ensino Médio, já começam a andar mais propensos, né...
Diretora: Já começam. Então, eles têm medo por conta da localização da escola, que fica num
lugar assim... e aí, é difícil. E aqui em frente à escola, tinha um senhor que morava aqui,
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morreu. Eai, eles invadiram a casa do senhor e a filha veio esses dias aqui, porque eles usam
droga dentro daquela casinha, alugam a casa ali pra usuários de droga. Aluga assim, o espaço
pra eles fazerem o uso da droga. E a moça, dona da casa, veio falar pra mim que andaram
acontecendo umas coisinhas assim, de entrar e pegar alcool do professor na sala. Aí, a gente
falou “é pra beber ou pra acender o fogo”, né, que eles têm ... pra...
Pesquisadora: Pra (?)
Diretora: É. Aí, eu chamei a polícia. De dia, ele ficava sentado – tinha um só – ele ficava
sentado, encostado no muro. Eu fui conversar com ele. O pessoal tava com medo. Eu fui
conversar com ele e falei “Você usa droga?” ele falou “Eu uso”. Falei “Olha, é o seguinte,
não quero você aqui, na calçada da escola.” Ele olhou pra mim assim, eu falei “É, você mora
ali, então você vai ficar pra lá. Porque aqui os pais vêem você aqui, então vão achar que a
gente não ta tomando nenhuma providência. Você é usuário de droga, não é preconceito nem
nada, mas não vai ficar aqui, encostado no muro da escola.” – “Não, porque eu queria
comida.” Daí, teve uns dias que, sobrava merenda e, depois do recreio das crianças, eu favala
“Pode dar comida pra ele.” Aí, começou a achar que era obrigação da escola. Eu falei “Não,
então não vai comer mais da comida. Se é isso, então vai trabalhar e vai fazer alguma coisa.”
E aí, a comida que sobra, a gente em que jogar. Mas ela coloca num saco plástico as sobras de
comida, inclusive das crianças; é uma comida limpa, não é uma comida suja, mas assim: vai
no saco de lixo. Aí, ele tava comendo ali. E aí, você fica assim... “é, é desumano, não é?”
Pesquisadora: Exato.
Diretora: É. E é uma coisa assim que fica... Aí, ele veio um dia e disse “ai, vou comer comida
do lixo. Vocês jogam comida no lixo, porque não dá comida pra gente...” Aí ele falou que iria
arrebentar todos os carros, eu chamei a polícia. E foi embora. Aí, ficou um outro casal, que
também usa drogas. Só que esses não vêm atrás, não incomodam. Só que a moça, a dona da
casa, falou isso.
Então, a gente convive com isso também e as crianças vêem essas coisas. Eles convivem com
a droga. O tempo inteiro. E eles sabem aonde tem... e eles usam (?) que às vezes choca. A
gente choca, mas ao mesmo tempo a gente tenta trabalhar isso de uma outra, com uma outra
visão.
Pesquisadora: Pensando no professor dentro da escola, como você imagina que eles
descreveria o ser professor aqui nessa escola?
Diretora: Hmmm, difícil...
236
Pesquisadora: É falar pelo outro...
Diretora: É.
Pesquisadora: De uma maneira geral...
Diretora: Olha, eu vou falar assim, eu acho que eles gostam de trabalhar aqui. Eu tenho a
impressão que eles têm medo de trabalho. Porque eu não gosto de trabalhar sob pressão. Eu
sou uma pessoa que, se tiver alguém me pressionando, aí é que não sai nada mesmo. Não sai,
porque eu não aceito trabalhar. Eu sou um pouco rebelde, também. Né, nesse sentido. Eu sou
uma pessoa fácil de trabalhar, eu entro em acordos, a gente acerta as coisas, a gente resolve
junto, né. Mas assim, eu também sou impulsiva, eu sou bem... eu procuro não ser mal-
educada, né. Porque se me aprontar muito, eu sou grosseira. Então eu faço tudo pra não
chegar ao extremo. Porque eu sou uma pessoa que, às vezes, eu falo coisa que vou magoar
mesmo a pessoa. E não quero isso. Então, eu acho assim, eu dou liberdade pro trabalho, mas
quando vejo que está querendo extrapolar os limites, aí eu chamo aqui mesmo. Ó, conversar,
antes do que as coisas... porque eu sou, eu sou muito chata. Então, pra eu não chegar nesse
ponto que vai pegar no pé e tudo o mais, então eu já converso antes. "Ó, tem toda a liberdade
de trabalho. Tem que saber o que tá fazendo. Tá trabalhando, a gente sabe do trabalho, né." A
V. é muito atenta, (?) e ai, a gente deixa trabalhar mas ao mesmo tempo ali, né, na supervisão
do trabalho. Mas eles gostam porque a gente deixa cada. E eles trabalham. Direitinho.
Pesquisadora: Nesse sentido, o que você imagina que eles esperam de você? Como diretora
desta escola?
Diretora: ...Olha... Eu acho assim, que essa coisa, essa troca de trabalho, assim, num sei... que
eles...
Pesquisadora: (risos).
Diretora: Pensando assim, eu acho que é isso. É deixar trabalhar pra ver resultado, né. E eu
acho que muitas vezes eles acham que a gente deveria ser muito mais rígidos com as crianças,
quanto a isso, você entendeu? Mas eu não sou, porque eu vejo os dois lados. Eu vejo o lado da
criança também e vejo o lado do professor. Porque tem professor que provoca determinadas
situações. Tem professor, que faz coisa que não pode fazer. Um menino usou de uma rebeldia
com ela lá, respondeu, porque ela falou assim, que ele era zé povinho. Ele respondeu à altura,
que ela era também: "se eu sou zé-povinho, você também é, né". Nossa, a professora se sentiu
agredida. "Quando eu agrido, tudo bem. Quando me agridem, com a mesma palavra, aí eu
fico... eu fui agredida, fui desrespeitada..." Claro, você derespeitou...
237
Em primeiro lugar, eu tenho que respeitar quem tá comigo, certo? Porque tem um monte de
criança e você ta trabalhando, resolvendo, aí de repente, um vai lá e soca o outro, pega o
lápis... agora, tem professor que já pega e.... é birra, né. Pega assim com a criança e aí, não
aceita nada que a criança faz. Se ela derrubar um lápis, ela jogou o lápis. Ela derrubou, não
jogou. Então, é assim. Então, eu vejo os dois lados. E aí, não é a mesma coisa, né.
Esse caso hoje da (?) por exemplo, ele falou "tem que ver o lado, conversar com a professora
e ver o que aconteceu, porque o menino não ia peitar a professora assim." Quando falaram
que ele peitou, eu achei que ele tinha ido pra cima dela. Chegado perto, não que... porque as
crianças falaram que ele tinha feito isso. Que tinha peitado a professora. Mas ele respondeu,
foi o que ele falou. Eu preciso ver o lado dela, conversar com ela, que não conversei ainda.
Mas são coisas assim, que eles acham que devia deixar 3, 4 dias suspensos. Porque chamar os
pais, a gente chama.
Então, eu acho que eles gostariam que eu fosse mais rígida.
Pesquisadora: E os funcionários, que você pensa? Quando eu falo funcionário, a merendeira,
o pessoal da limpeza...
Diretora: Eu não tenho problema com eles não. Eles trabalham direitinho.
Pesquisadora: Mas que você acha que eles esperam de você?
Diretora: Eu acho...... não sei. Porque é assim, eu vejo quantas vezes eles chegam assim e
falam "ai, tem pouca gente pra trabalhar." Eles acham que eu tenho poder de chegar e
conseguir mais pessoas. Eles trabalham, eles dão conta do serviço, porque trabalham muito. A
gente sabe o trabalho. Mas quando não tem criança...
Pesquisadora: Quantas merendeiras você tem?
Diretora: Duas. Uma tá de licença (?). Então, peguei uma que é do estado também, que tá
ajudando na merenda. Da lanchonete. É uma contratada do estado que tá ajudando na
merenda. E tem a empresa que faz a limpeza. São dois funcionários. É pouco, mas eles dão
conta. É o marido e mulher, um casal que trabalha aí, na faxina. Eles dão conta. A escola não
é assim... mais por conta do espaço físico mesmo. Porque ela é aberta, completamente aberta.
Então, pra fazer limpeza e ficar bonito e tal, não vai ficar não. Tem que derrubar isso tudo aí e
fazer uma outra. Eu, na minha cabeça, faria lá na quadra, uma extensão daquele outro prédio
lá. Fazia uma quadrinha lá onde é o estacionamento, pra ter aula, né. Até fazer lá. E depois,
derrubava tudo ali. E fazia quadra em cima, que nem é lá no Renato agora, a quadra é lá em
238
cima, no último andar. Aí, sim. Aí, sobraria espaço pra fazer mais uma escola. Mas dividido.
Essa era uma escola, a outra, outra escola.
Pesquisadora: E pras crianças terem alguma possibilidade de brincar mais à vontade, né.
Diretora: É... porque aqui, é complicado. Não tem espaço, o intervalo lá no pátio, é muito
pequenininho. Muito pequeno.
Pesquisadora: Muitas crianças, né?
Diretora: É.
Pesquisadora: E os pais, o que você acha que esperam de você enquanto diretora?
Diretora: Acho que eles esperam um bom tratamento pros filhos, e que os professores
trabalhem. E que as crianças saiam daqui sabendo. É isso o que eles esperam.
Pesquisadora: Como você pensa que é a avaliação deles em relação ao trabalho da escola?
Diretora: Olha, tem os que não gostam e tem os que gostam da escola. Eu acredito que a
maioria até goste da escola. Tá de lado, tal. Agora, existem os pais aí que eu acho assim, que
são meio revoltados. Então, por exemplo, já vão entrando pra entrar com as crianças no
começo do (?), nos primeiros dias, sempre deixo. Aí, achavam que todo dia tem que entrar. E
quando você fala "não, agora, eles vão sozinhos. Já conhecem a professora, já sabem entrar,
então agora, aqui no portão vocês deixam." Nossa, foi uma guerra. E tem um ou outro que
furam. Querem conversar com professor na entrada. Eu falei "não pode, não pode. O senhor
tem que vir conversar aqui comigo primeiro. Saber o que que é, de repente eu posso resolver o
assunto." Não tem que conversar com professor ali na entrada. Tem 40 crianças esperando, 40
crianças. Tem que entrar com as crianças. Agora, vai atender um pai? Não pode. Tem horário
pra atender. A gente marca um horário pro pai vim. Não tem essa. "Ah, mas eu só posso..." -
Então, o senhor vem conversar comigo. Se eu achar que o caso é assim, eu mando inspetor de
aluno na classe e a professora vem conversar. Não vou deixar... a gente até chama, não tem
problema. Só que assim, na entrada não. Porque atrapalha os demais. Então, tem todo um
processo né. Não pode ser assim, não tem que ser do jeito que eles querem. A escola tem
regras e as crianças têm que ter regras e eles tem que... também os pais têm que ter. E tem os
que não têm. De jeito nenhum. Chega aqui peitando, peita a L., a "formiga", sabe? E a gente
não se intimida. Não. A gente também vai em cima. Chega junto. Aquele "chega junto, na
moral, mano..." (risos)
Pesquisadora: Mas, vai aprendendo como (?) educação, né...
239
Diretora: Exatamente. E a gente faz isso por conta de estabelecer regras mesmo, disciplinar
com a criança, com os pais. Porque, se eles não têm limite em casa, aqui eles não têm que ter.
Eles chamam os pais e conversam: "é, porque essa escola não sei que, não sei que, não sei que
lá..." Depois que conversam, vem os pais aqui feito leão. Sentou, conversou, conversou
conversou, falou bastante? eu deixo falar. Eu ouço bastante, por quê? Porque eles têm essa
necessidade. E aí, a gente vai, conversa. Então vamos lá, vamos chamar professor, vamos ver
o que aconteceu, ta ra ran... a gente chega num consenso. Aí sai daqui, sai bem, sai tranquilo.
Agradece o professor e tudo. Mas é assim, de primeiro momento, você tem que deixar
explodir. Fal, fala, fala, fala, tudo o que tem que falar. Porque aí, depois que terminou de
falar, aí você consegue ter um diálogo, do contrário você não tem. Chegam exaltados. Então,
a gente tem que ter paciência com algumas coisas. O dia que eu não tô paciente, nem nada,
deixo com a Luzia, largo, saio fora. Falo "não, atende porque se eu for atende, vai ter..."
Pesquisadora: Vai pegar fogo...
Diretora: Vai, vai. Então é melhor eu sair fora. E eu faço isso com criança também. Às vezes,
quando eu vejo que eu vou estourar, explodir, largo pra outros e saio fora, porque... e eu falo
isso pros professores: "tá nervoso? Tá grave na sala, acontece alguma coisa... sai, vai no
banheiro, vai tomar uma água. E chama, manda uma criança me chamar. O inspetor de aluno
vai ficar lá, a S. fica lá. Se a S. não estiver aí, outro vai e fica. E você vai dar uma volta, vai
tomar uma água, vai tomar um café, relaxa, porque não dá pra entrar em confronto com
criança, de jeito nenhum. Porque tem alguns que peitam mesmo.
Pesquisadora: Eles tiram a paciência, né...
Diretora: É. E olha que são os pequenos. Imagina (?) Aí, os professore têm assim, a gente
sabe que têm uma série de problemas.
Pesquisadora: É verdade. E quais são os principais desafios que você vê aqui pra escola?
Diretora: Aprendizagem. O que mais me preocupa é aprendizagem. Não entra na minha
cabeça uma criança entrar no 1º ano e sair no 5º ano sem saber escrever. Não entra na minha
cabeça. Eu não consigo entender isso. Não consigo, por mais que as pessoas, sabe... Aí, veio
uma professora, Sara, e falou assim: "Mas E., às vezes eles aprendem na 1ª assim e chega no
3º ano e desaprendem." - "Como assim? Como é que desaprende uma coisa que você
aprendeu?" - "Desaprende." - E aí, que eu fiquei sem entender mesmo. E eu não consigo
entender. Porque eu lembro de mim, quando fui pra escola, 1º ano. Cheguei lá no 1º ano, D.
M. falou que eu era cega e que eu ia enxergar. Aí quando chegou mais ou menos em junho, eu
240
deixei de ser cega. Então, aquilo pra mim, foi um instante que eu era cega e não enxergava a
estrada, e de repente, comecei a enxergar. E aí, eu falo pras pessoas "Como é que eu
consegui? Não sei como, na cartilha?" - É, na cartilha. É na cartilha. (?) E todo mundo é
contra a cartilha, contra isso, contra aquilo. E porque que eu aprendi e as crianças não
aprendem?
Então, isso aí é uma coisa que não entra na minha cabeça. Não consigo entender isso. Isso pra
mim é um desafio. Alfabetização. Porque, eu sempre lidei com escola de primeira, até o
ensino médio, sempre trabalhei em escola grande. E aí, quando eu vim pra uma escola de 1ª a
4ª série, que eu nunca tinha trabalhado, só com 1ª a 4ª série, eu fui fazer "Letra e Vida". Logo
no semestre seguinte ao que eu entrei, fui fazer "Letra e Vida". E prestei (?) comecei a
estudar. Fui fazendo coisas pra ver se entendia. Pra esse lado, esse lado com alfabético, com
valor, sem valor, aquela coisa toda. É assim, eu to engatinhando. São seis anos que estou
engatinhando. Porque eu não tinha consciência da alfabetização quando a minha escola era do
1º ano até ensino médio. A criança não aprendia ou aprendia e, sem saber, os professores
reclamavam de 5ª série. Aí, professor de 4ª série ia lá, trabalhava junto com professor, era
uma integração ali, e coisa e tal. "Ah, manda pra minha sala, a gente vai trabalhar isso e tal."
E devolvia pra 5ª série. Havia muita (?), coisa tal, que passava meio desapercebida. Porque
tinha outros problemas junto, então a gente trabalhava um toldo, né. E aí, de repente, veio
uma escola de 1ª a 4ª série, que o foco é alfabetização. Realmente, e pra mim ainda que, eu
não sou alfabetizadora. Eu comecei a aprender a alfabetizar depois que eu entrei pra uma
escola de 1ª a 4ª série. Aí, eu comecei a aprender como é que você pode funciona a leitura de
uma criança. As letrinhas, de pegar uma letra com outra e formar "B" e o "A" dá o que, dá
"BA". Aqui, é o "N", aqui é o "A", junta o "N" e o "A", dá "NA". Aqui, você junta o "N" e o
"A" de novo, que que tá escrito? É BA-NA-NA. Que é então que tá escrito? É a banana?
Então, essa coisa assim de juntar "C"-"V"-"L" pra mim é o cavalo, nome da criança... então,
eu começo a enxergar de uma forma diferente. Mas assim, é difícil, viu. É muito difícil, não é
fácil, não. Então, eu valorizo muito o trabalho do professor alfabetizar. Porque é ele que
começa...
Pesquisadora: Bem que a tua professora disse: "é ele que dá a luz ao olhar"
Diretora: É, exatamente. É isso aí. Então, e eu, na minha cabeça, não passa uma criança não
saber. E eu, quando chegou em novembro, do 1º aninho que eu tava, antes de novembro, já
tava lendo o livro. Aí, ganhei o livro dessa mesma professora. Capa dura, ela me deu de
presente no meu aniversário, em novembro. Aí, nunca mais deixei de ler, ler, ler, ler muito.
241
Então acho que a gente tem que passar isso pras crianças também. E meu pai não deixava a
gente ler gibi, que engraçado, né. E gibi é tão bom pra criança.
Pesquisadora: É que naquela época, havia um preconceito muito grande, né.
Diretora: E tinha aquelas telenovelas, tele, pra revista...
Pesquisadora: Telenovela, né.... É, fotonovela.
Diretora: Fotonovela, é. Não deixava eu ler, aquilo era tudo escondido. Mas eu lia também,
mas era escondido. E adorava ler fotonovela, nossa. E tudo o que caia na minha mão, porque
meu pai também, apesar de não ter estudado, só fez o primário, ele lê, sempre leu. Sempre leu.
Jornal, essas coisas em casa, sempre teve, né, leitura. E a minha mãe também, ela só fez o
primário. Mas assim, eles lêem, escrevem, conta... ninguém passa a perna nos dois de jeito
nenhum. Minha mãe vai fazer 88, domingo, meu pai vai fazer 90 em outubro, e é assim. Meu
pai lê, minha mãe lê, e eles gostam de televisão também, mas eles gostam de ler. Continuam
gostando de ler.
Então, isso tudo faz parte da cultura da família, né. Eu acho que isso, se tem jornal em casa, se
tem alguma coisa... Agora, a gente dá pras crianças, também levar pra casa. Livro, essas
coisas. Porque eles têm que ter em casa, pra ajudar as pessoas que estão lá, que não tem... pra
ler também. Então, tem que incentivar a leitura, né. Uma das grandes... um dos grandes
desafios.
Pesquisadora: E você tem alguma expectativa em relação à nossa equipe. À equipe da PUC?
Diretora: Ai, é assim, é meio mágica a coisa, né. Então, só o fato de vocês estarem aqui, eu
acho assim: por menos que possa acontecer alguma coisa, vai acontecer alguma coisa. Vai
mexer com os professores? Vai, vai mexer com os professores, vai mexer com gente que tá
aqui. Eu acho que acaba influenciando, acho que alguma coisa a gente pega. Milagre não se
faz, né. Mas assim, muita coisa acontece quando alguém , vem alguma coisa de fora pra
gente. E a gente acaba aprendendo, né. Acaba absorvendo... coisas. Então, acho que é isso.
Acho que a gente vai aprender com vocês, sim. Por mais que a gente, às vezes, pense que não
a gente tá passando nada, tá sim. Então, a presença de vocês é importante, sim. É bom.
Pesquisadora: Você gostaria de acrescentar mais alguma coisa a mais em relação à escola?
Diretora: Nossa, acho que eu já falei tanto, eu já falei bastante, né? Às vezes eu fico falando, e
eu não sei se eu to falando exatamente o que você gostaria de saber. Porque eu tenho uma
expectativa com a escola e a única expectativa que eu tenho é essa mesmo: de incentivar a
242
leitura, de que as crianças saiam daqui sabendo ler e escrever, sabendo fazer as continhas
deles. Sabendo fazendo conta, né, pra ninguém passar a perna neles, né. Pra eles fazerem
coisas. E assim, seguir em frente, conseguir acompanhar, ˜é. O ciclo 2, o ensino médio, a
faculdade. E eu acho que eles têm esse direito e eles precisam disso, né. É um direito de todo
o cidadão, então eu acho que é o mínimo que se faz. A gente tá fazendo o mínimo da gente.
Mas a gente tem que fazer o máximo, pra que esse mínimo aconteça.
Pesquisadora: A despeito de todas as (?)
Diretora: De todas as coisas que acontecem, a gente tem que ter, né, essa... essa... tem que
acontecer alguma coisa. E não é esperar. Se a gente ficar esperando (?)... nada acontece. As
coisas vão acontecendo muito lentamente. Então, desde que eu to no magistério, eu vejo
assim: o professor segura alguma coisa apodrecida que tá caindo. Mas ele segura. Ele segura,
ele vai, ele luta contra essa coisa que tá querendo derrubar. Então, é um peso em cima, mas
ele luta contra. Ele não deixa cair. Então, quando se fala que aqui é a base, é a base. Quando
um professor grita lá "cala a boca!", é que ele não ta aguentando. Ele tem meia duzia de
alunos que atrapalha os outros trinta. E essa meia dúzia não quer fazer nada. Então, que cê
faz? Pega um dessa meia dúzia e passa com uma outra professora. Aí, lá, ele não sabia ler
nem escrever, e tá numa 4ª série. Ou seja, num 5º ano. Aí, não aprende. Ele chegou lá sem
saber. Então, não consegue acompanhar e o que acontece? Ele fica indisciplinado. Então, tem
tudo isso. Então, o que a gente quer é que eles aprendam, só isso. É isso.
Pesquisadora: Então, a gente também, da PUC, da nossa equipe, a gente agradece muito essa
oportunidade, de estar na escola. Eu acho que isso é uma experiência muito importante pra
gente em termos de formação mesmo, porque a maioria vai se tornar formadores de
professores. E assim, a gente tem que conhecer esse universo da escola, pra falar de um
universo que realmente, seja mais próximo da realidade possível. Que não fique numa
abstração que pouco colabore na formação desse professor. Então, assim, agradeço muito essa
possibilidade.
Diretora: A gente que agradece.
Pesquisadora: E à tua a disponibilidade de fazer essa entrevista com a gente.
Diretora: É, mas assim. Eu acho que essa parceria é uma parceria boa. Eu aprendo bastante
com vocês, e acho que eles também vão aprender. Então, nós todos. O grupo vai aprender.
Pesquisadora: Como você mesma colocou: "é um processo em que todos participam."
243
Diretora: Todo mundo ganha. É, todo mundo ganha. Então, a gente ta aí pra isso, né. E se a
gente puder ter esse tipo de parceria e quando a gente enxergar uma outra necessidade,
qualquer coisa, a gente ter com quem a gente possa contar. Chegar e pedir ajuda, né. É bom, é
bom. Porque a gente tem: a oficina pedagógica, vamos dizer assim, tem a oficina pedagógica
da diretoria de ensino, e tal, que ajuda. Ajuda, faz o trabalho do ler, né. Que tá sendo muito
bom. Mas assim, uma outra ajuda também... porque eles têm muitas escolas pra atender.
Muitas escolas. Então, fica difícil pra atender todo mundo o tempo todo, né. A gente sabe da
dificuldade. E aí, a gente ter um outro tipo de apoio também, pra escola, pra todo.
E eu sei que professor é assim, que muitas vezes acha que o diretor tem uma boa vida.
Flexibilidade de horário... falei "não, eu tenho horário." Outro dia, o professor falando "ah, eu
quero ser diretor...", eu falei assim "eu acho que tem que ser mesmo, né. E que todo mundo
tem que... você quer ser diretor, vai ser diretor, quer ser supervisor, vai ser supervisor." É só
viajar na carreira e vai embora. Aí, fala assim "ah, diretor faz o que quer a hora que quer." Eu
falei "é, (?), faz o que quer na hora que quer." Tem flexibilidade de horário? Tem. Agora,
compromisso de professor é diferente. Por exemplo, se a Luzia chegar pra mim e falar "ah,
minha filha tá doente, tem que sair agora, tenho que ir lá buscá-la..." ela vai. Ela não vai tá
mexendo com 40 crianças. Agora, se o professor chega e fala a mesma coisa, que que eu faço
com essas 40 crianças?
Então, eu faço eles enxergarem uma coisa assim: eu tenho compromisso com horário, sim. Só
que, se eu chegar 5 minutos atrasada, eu não vou fazer diferença. (Faz também, porque eles
ficam de olho, né) Mas assim, não vou fazer diferença quanto você vai fazer, porque você tá
com as crianças. É diferente, é diferente. Eu saio mais cedo pra levar as impressões, porque eu
não tenho um boy pra vir aqui, pegar as coisas, levar, fazer, e acontecer. Eu tenho que
negociar com os caras lá da loja, pra ficar mais barato pra escola? Tenho, porque não tem
dinheiro, o dinheiro é pouco. Então, tem tudo isso, né. Então eu falei "olha, é bom ser
diretora. Tem o lado bom e tem o outro lado ruim também." A cobrança é grande também.
Então, a gente tá ali, né. Fica no meio de professor e da Diretoria de Ensino e Secretaria da
Educação, fica meio... Mas não tem problema. A gente trabalha com todo mundo.
244
Transcrição da entrevista com a vice-diretora
Vice: Agora você não pode mais entrar aqui. (Falou isso para alguém que abriu a porta da sala
e disse, brincando que a pessoa não poderia entrar mais).
Pesquisadora: Porque a gente acredita, o seguinte. A gente tem visto muita pesquisa que não
dá o retorno para as pessoas que estão envolvidas, que deveriam ser aquelas que são as
beneficiárias da ação e que a gente também aprende muito e as pessoas pouco.
Vice: Hum hum.
Pesquisadora: Então, a gente vai falar isso durante esse ano, mas, assim, nesse quadro que a
gente está, na psicologia da educação é a pesquisa de cunho colaborativo e aí, é em função das
necessidades também...
Interrupção – uma pessoa que entrou na sala tropeçou no fio da filmadora.
Pesquisadora: ... do público que está envolvido. Por que que a gente faz isso? Porque quanto
mais a gente entende os contextos mais a gente pode trabalhar, ver aquela formação que eu te
falei, para uma pessoa concreta, não para uma pessoa idealizada e aí nesse quadro teórico
também. Todo material é disponibilizado aos participantes. Todos. E a gente só usa com
autorização e o que tiver de ser, por exemplo, tirado, falado: “olha, eu não quero isso, quero
tire isso”, não precisa nem justificar, é um direito de todos nós quando somos participantes de
pesquisa. Como a gente tem o direito também de dizer onde foi aquilo. Então, essas perguntas
são justamente para nós conhecermos melhor esses contextos. Ah, só um uma coisa que eu
vou falar enquanto a gente está aqui. Dentro dessa teoria, também não do jeito que eu estou
falando, mas eu vou explicar melhor, é assim, uma pessoa, por exemplo, uma vice-diretora,
ela tem uma questão que é única, que é dela, de como você se constituiu, mas um pouquinho
do todo, ela revela, porque ela faz parte de um todo maior e essa relação parte/todo, que pra
gente é importante. Então, é importante você saber o que eu estou fazendo aqui, numa outra
escola estadual em Carapicuíba, trabalho com as diretoras da prefeitura num projeto também
de pesquisa chamado AB. Então, a gente está investigando, eu pessoalmente, a questão da
equipe diretiva, que formação que se espera, que se precisa para a equipe diretiva hoje para
que ela possa fazer melhor. Então, essa entrevista a gente fala, é inicial, é assim, eu queria que
você falasse livremente - depois eu vou pensar - como você chegou, qual é a sua história
profissional e...
Vice: Como eu cheguei aqui ou na educação?
245
Pesquisadora: É, no dois.
Vice: Ah, na educação foi assim, eu estava perdida, era bancária, né?! Aí, minha mãe, né, me
ajudou a: “ah, faz o magistério, porque é uma saída, já que você não está decidida ainda.” Aí
eu acabei fazendo o magistério, não trabalhei logo em seguida, continuei no banco, depois...
Pesquisadora: E como é que foi para você fazer o magistério? O que que você achou do
magistério?
Vice: Ah, eu achei... Eu era muito nova, né? Tinha dezenove anos. Então, eu achei
interessante, né, estar fazendo o magistério, mas me achava assim, “nossa, trabalhar com
criança, trabalhar com pessoas, né, será que eu sei tudo? Eu não sei tudo. E quando eu me
formei eu falei: “nossa, o que é que eu vou fazer com essas crianças?”. Então, faz, né, mas
quando sai dali a preocupação minha era muito grande , né? Como trabalhar, como receber,
como fazer. Aí, de imediato eu não comecei. Aí eu recebi um convite. Como eu participo da
comunidade da igreja aqui da Brasilândia, aí foi feito um convite, que eles davam preferência
para pessoas da comunidade para trabalhar como coordenadora numa creche conveniada.
Pesquisadora: Ah, numa creche conveniada da prefeitura?
Vice: É, da prefeitura. Aí, eu falei assim: “bom, é o início”. E aí eu peguei e me inscrevi. Aí
me inscrevi e aí eu fui chamada. Fizeram as entrevistas, tal e aí falaram que eu tinha sido a
escolhida, porque eu era a única que era do bairro, porque eu conhecia bem lá a comunidade e
aí eu trabalhei seis meses como, como coordenadora, mas foi um trabalho muito difícil,
porque a pessoa com quem eu trabalhava era uma pessoa difícil também, era uma irmã, que
ela era bem conhecida aqui, irmã N., não sei se vocês conhecem e assim, tinha determinadas
coisas que ela fazia que eu concordava, né? Botava criança de castigo no sol, essas coisas e aí,
na época, não eram formadas, eram as pajens e era muito difícil trabalhar com as pajens
também e elas ficavam questionando porque eu trabalhava pouco e ganhava mais que elas,
porque, então era esse tipo de coisa, né?! Aí eu fiquei seis meses, saí e depois eu comecei
aqui, logo em seguida eu comecei aqui.
Pesquisadora: Então você prestou concurso?
Vice: Não, aqui eu entrei como comissionada.
Pesquisadora: Ah tá.
246
Vice: Comissionada não, contratada, né? Eu era OFA. Em 87 eu entrei aqui. Aí fiquei aqui, já
peguei sala em fevereiro, peguei uma sala, o CB, na época, né? Era o CB. Lembro que no
meio do ano, assim, muito insegura, pedia muito, conversava com as professoras, porque não
tinha experiência de sala de aula, mas eu lembro que no meio do ano um aluno meu, porque
aqui a comunidade é muito pobre, muito carente, né? Então, a gente tem dar muito afeto, a
gente tem que estar muito junto para eles confiarem e lembro - que foi uma coisa marcante
pra mim – que aí, quando foi junho, julho, mais ou menos, o menino começou a ler. Eu trouxe
ele na mesa e ele começou a chorar e eu chorei também e isso eu lembro até hoje, né? Que
aquilo era muito importante para ele, muito importante, um desafio muito grande pra ele e pra
mim também, né? Aí eu fiquei até 89 aqui, fazendo esse trabalho aqui, eu gostava muito de
trabalhar aqui.
Pesquisadora: Você ficava em sala de aula?
Vice: Em sala de aula. Sala de aula, professora OFA, né? Contratada. Sala de aula. Nunca
fiquei, tinha até uma amiga minha trabalhava aqui, a Angela, né? Me deu muita força
também: “Você não tem que ficar só com o magistério, você tem que ir pra frente, você tem
capacidade, vai fazer faculdade”. Sempre me incentivando, né? Mas eu sempre precisei, né?
Trabalhava aqui, trabalhava no banco, então ficava bem dividida.
Pesquisadora: Ah, você trabalhava também no banco? Era professora e trabalhava no banco
Vice: É, depois eu saí.
Pesquisadora: Dava para conciliar o horário?
Vice: Era meio período, eu era digitadora.
Pesquisadora: Ah tá.
Vice: Aí depois eu saí, final do ano, aí eu tive a minha filha e aí eu saí e fiquei só na escola
mesmo. Aí eu fiquei aqui até 89 e aqui era um grupo muito bom, um grupo de trabalho, até
nós que saímos daqui: Z., M., elas foram para a mesma escola, né? Então era um grupo muito,
compromissado.
Pesquisadora: Do estado também?
Vice: Do estado.
247
Pesquisadora: Aí você prestou concurso?
Vice: Aí eu fiquei aqui e fui para outra escola em 89.
Pesquisadora: Como contratada?
Vice: Como contratada. Aí eu prestei concurso como PEB I. Aí não passei, chorei, fiquei
toda, aí fiz geografia e prestei e concurso e fiquei como PEB II. Aí eu exonerei de PEB I e
fiquei como PEB II, aí eu fiquei trabalhando como PEB II lá na outra escola, em 89, Aí eu
fiquei lá até 2003.
Pesquisadora: Você não fez pedagogia, então?
Vice: Fiz complementação.
Pesquisadora: Ah tá.
Vice: Fiz complementação, fiz supervisão, fiz tudo (risos).
Pesquisadora: Hã, hã.
Vice: Fiz a complementação, supervisão e aí eu fiquei lá até 2003, aí dava aula para o ensino
médio e pegava sempre as finais, né?. E aí chegou um momento que não dava mais pra ficar
lá muito difícil trabalhar. Os alunos gostavam de mim, sempre me dei muito bem com os
alunos, sabe? A gente sempre, sempre compromissada. Eu até encontro os alunos hoje e eles:
“ah, prô, lembro de vocês”. Só que aí não deu mais por causa da indisciplina da escola.
Chegou um momento que a gente também estava correndo risco. Falei: “bom, não dá mais pra
mim, eu ficar enrolando em sala de aula, não dá!”. Aí eu me inscrevi para a direção, pela 73,
aqui nessa escola. Aí fui duas, três vezes para substituição.
Pesquisadora: Qual é a diretoria regional aqui?
Vice: É a Norte I, Norte I. Aí eu me inscrevi e a primeira vez eu não escolhi, na segunda, aí
tinha o C., eu falei: “Ah, vou voltar para o Crispim! Saí de lá em 89”. Aí como tinha vaga
aqui eu vim para cá como profess..., como diretora. Diretora...
Pesquisadora: Eventual?
Vice: Designada, né? Designada. Aí eu vim pra cá e fiquei em 2003. Cheguei aqui, minha
filha, isso aqui estava de ponta cabeça, estava em reforma, tinha uma direção aqui muito
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complicada, que saiu. Assim, que depois eu fiquei sabendo e depois me cobraram coisas que
eu nem sabia que existiam. Então, foi muito difícil, não tinha funcionários. Hoje a gente está
no paraíso aqui. Então, eu tive que contratar pessoas que eu também não sabia. Eu saí da sala
de aula e vim para a direção, né? Então, eu não tinha experiência nenhuma, Então, eu aprendi
tudo na raça mesmo, né?! Aí eu fui aprendendo, passei bons bocados aqui, mas foi um desafio
para mim, né? Daí, fiquei até 2005 e depois veio a E.. Aí veio a E. Eu não, eu prestei concurso
para direção, mas não chegou no meu número e depois eu não prestei mais, não queria mais,
porque você vai conhecendo, né?! Não, eu quero ficar como vice-diretora. Aí a E., veio outro
diretor, depois...
Pesquisadora: Se você precisar sair, a qualquer hora.
Vice: Tá. Depois veio outro diretor, aí teve uns problemas lá na diretoria e eu não quis me
indispor lá com ninguém, sabe? Aí, “vou ficar como vice-diretora, não tenho problema
nenhum, vou fazer o meu trabalho como estou fazendo até hoje, tenho capacidade para isso”.
Depois o diretor que saiu daqui me indicou para a E. Aí eu falei: “mas, E., você nem me
conhece!”. (Ela) falou: “Não, mas eu quero ficar com você.”. E aí eu fiquei aqui com ela e aí
ela veio e aí a gente foi trabalhando junto, né? A gente se dá bem, né? E aí a gente foi fazendo
o trabalho aqui na escola, com os alunos, que o objetivo maior mesmo é o ensino-
aprendizagem, porque essas crianças, muitas dificuldades, os pais não, é, acompanham entre
aspas, né?
Pesquisadora: Hm, hum.
Vice: Os pais acompanham entre aspas. Então, a gente, esse trabalho também da disciplina, da
violência, são muito violentos, então...
Pesquisadora: Quem é muito violento?
Vice: As crianças, as crianças. Muito assim, qualquer coisa é tapa, é chute, é, então eu trato
tudo na base da... (frase incompleta). Então, a gente vem administrando isso, né? Vem
tentando melhorar e trazer a comunidade para dentro da escola, fazendo reuniões,
conversando, falando da importância dos pais na vida escolar dos filhos, a importância deles
dentro da escola também, ajudando, mostrando nosso trabalho, né? Inclusive hoje eles falam
que a escola melhorou muito, que a escola está diferente, né? Porque a gente precisa ter essa
cumplicidade, né, com a comunidade, senão a gente não consegue nada, mas assim, não é o
que a gente espera, né?
249
Pesquisadora: Mas fala um pouco mais disso? Como é a sua comunidade e que necessidades
você identifica?
Vice: Eu acho assim, é uma comunidade que tudo o que ela precisa ela vem na escola, ela
acha que a escola resolve tudo, né? Então, que a escola tem que resolver todos os problemas.
É, então, tudo eles vêm aqui, até um problema do posto de saúde eles vêm aqui ver, recorrem
à escola. Por quê? Porque a escola atende, a escola dá né, dá atenção. Mesmo que a gente não
possa resolver a gente dá atenção, a gente recebe. Então, é uma comunidade assim, carente.
Pesquisadora: Carente do quê?
Vice: Carente de direitos, né? Carentes de direito, mas elas não, não...
Pesquisadora: Elas não conhecem os direitos, ou não têm, o Estado ainda não chegou com os
direitos
Vice: Não, eu acho que eles não conhecem os direitos, eles não vão atrás, porque eles não têm
informação, né? Mas os deveres, aliás, aliás os direitos eles querem ter também, mas eles
também não se preocupa com os deveres deles, né? Então, a gente trabalha muito isso, é uma
comunidade que, é, coloca o filho na escola e acha que a escola tem que resolver tudo. Então,
isso é a grande dificuldade da gente. Ontem mesmo eu peguei um pai no portão, falou que vai
tirar o filho, vai levar, porque aqui tem que botar o menino que bateu no filho suspenso. Aí,
você fala de legislação, que não é assim que trabalha. Então, é assim, eles... (não terminou a
frase, interrupção).
Vice: O que está acontecendo?
Pesquisadora; Vai lá e a gente...
Vice: Não, não.
Pesquisadora: A gente pode ir para outro lugar. Não tem nenhuma sala vazia que a gente
possa ir? Sala de aula?
Vice: Não tem (risos). Tudo lotado aqui. Então, e o grande problema dessa escola é isso:
espaço. A escola é uma escola grande, né? Tem uma estrutura assim toda irregular e daria pra
gente ter ótimos espaços e a gente não tem e não é falta de pedir.
250
Pesquisadora: Eu só preciso de uma tomada. Se tiver uma tomada no pátio eu posso fazer a
entrevista com você sentada no chão, não tem problema nenhum.
Vice: No pátio as crianças ficam passando toda hora também.
Pesquisadora: Ali naquele lugar que a gente, que vocês fizeram aquele café, comemoração do
aniversário?
Vice: Ah, pode ser.
Pesquisadora: Né, porque daí os professores não ficam, que a gente dá uma interrompida.
Podemos ir lá?
Vice: Ah, pode, mas se você quiser ficar aqui, vai demorar muito ainda?
Pesquisadora: Não, não.
Vice: A gente fica aqui. Ai, onde eu estava, eu esqueci.
Pesquisadora: Você estava falando dos pais.
Vice: Dos pais, né? Então, é isso, eu acho que não sabem, mesmo, né? Não sabem mesmo
qual é a função da escola, então a gente tem que estar o tempo todo explicando isso para eles,
né? Que eles precisam também estar acompanhando os filhos, que eles precisam saber dos
direitos e precisam saber, é, onde a escola pode ir, né? Porque eles cobram, cobram muito isso
da gente, pedir. É, tá certo que eles é: “porque meu filho entrou e não está aprendendo a ler”
“meu filho não está levando a lição para casa”. “Mas porque isso está acontecendo? O senhor
veio na reunião? O senhor veio até aqui perguntar isso pra gente?” “Não, eu estou vindo
hoje.”.
Pesquisadora: E tem bastante reunião?
Vice: Tem, a gente faz, a gente faz, ó, fizemos uma reunião mês passado, reunião de pais, né,
e, a gente faz assim, duas por bimestre.
Pesquisadora: À noite?
Vice: Não, a gente faz no horário que, de aula mesmo. Por exemplo, de manhã, eles vêm para
deixar o filho, então, pela manhã eles já preferem já ficar na reunião, pegam um comprovante,
já levam, né, para poder... Nós já andamos fazendo reunião aqui aos sábados, mas não deu
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certo, vieram muito poucos pais, pouquíssimos pais. Então, durante a semana é melhor. Mas,
no mês passado nós fizemos e teve... vieram bastante pais. Mas assim, aqueles que realmente
precisam não vem, né? Então, mas também a gente também tem crianças de família assim,
muito irregular, né? Pai preso, mãe que abandonou, então ai vem o tio, vem o avô, é...nós
temos um aqui que nós temos um problema muito grande, que é uma família que adotou, e o
menino é super revoltado. A família vem, acompanha mas a gente nunca sabe na verdade o
que é que acontece. Então, são esses casos, não crianças muito violentas...violentas assim,
com os amigos mesmo, que a gente precisa estar assim, a toda hora cobrando, falando...não é?
Pesquisadora: Então a violência é uma questão assim, na escola.
Vice: Sim, a violência é entre eles. Assim, não tem uma conversa. Já vai no murro, já vai no
xingamento. Então, é isso que a gente trabalha o tempo todo aqui. Chamo os pais para isso
também, né? E aquela criança também que tem dificuldade do aprendizado, então isso vai
gerar a indisciplina também. Gera uma indisciplina muito grande e ai onde gera também os
problemas em sala de aula, os professores também, né? Muitos..., muitos são
compromissados, competentes, e outros estão assim, né? No seu ápice assim, né..., de
tolerância.
Pesquisadora: Dentro desse contexto, até você começou a falar disso, quais são os objetivos
da escola? Como você descreveria os objetivos dessa escola?
Vice: Então, o objetivo seria assim...é...que a criança saia daqui, né...é...lendo, escrevendo,
podendo, é... ter autonomia nesse sentido, né? E que a criança, nessa escola, leve algo de bom
para fora, né? Principalmente nessa questão da violência, do respeito, da, né? Da superação de
algumas coisas. Então, o objetivo aqui eu acho que é isso. Fazer com que essa criança possa
sair daqui e, do muro dessa escola para fora, poder se dar bem em outros ambientes aonde ela
passar.
Pesquisadora: E onde estão expressos esses objetivos?
Vice: Ah, eu acho que em todos os lugares da escola. Acho que no nosso plano, né? Nos
nossos HTPC’s, em nossas reuniões com os professores, nas nossas conversas, né? Equipe
gestora. Nas nossas conversas com nossos funcionários, né? Então, todos aqui, a gente
conversa para que haja, né? Para que aconteça isso, para que aconteça, para que essa criança,
pelo menos aqui “dentu”, ela seja respeitada da maneira que ela precisa ser. Então, eu acho
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que esses objetivos assim, de aprendizagem, de respeito, de tolerância, de autonomia, acho
que está expresso assim, em todos os ambientes da escola.
Pesquisadora: Você acha que os professores conhecem, os pais conhecem? Conhecem como?
Vice: Então, todas as vezes que a gente faz a reunião..., que eles (os pais) saem até
xingando...ah, de novo a gente vem aqui pra ouvir isso? Todas as reuniões a gente repete. A
gente repete quais os objetivos da escola, que os pais precisam estar envolvidos, precisam
estar acompanhando, mesmo que saia..., a gente também coloca a vida da gente, né? Eu
também saio de casa 7h da manhã e volto às 11h da noite. Tenho uma lá, mas eu tenho que
chegar, eu tenho que dar um abraço, eu tenho que saber como foi o dia..., porque são filhos,
né? Eles são nossos. Se nós não fizermos isso, quem vai fazer é o mundo, para eles. Então,
mesmo que a gente esteja cansada, nós colocamos para o mundo e nós temos esse
compromisso de escrever. Então, todas as reuniões, todas as chamadas que nós temos com os
pais, a gente coloca essas, essas questões para eles.
Pesquisadora: L., o que, que você acha que é um trabalho importante para fazer com os
professores? Qual é a necessidade desses professores?
Vice: Ai, a autoestima. A autoestima, porque é assim...é um grupo muito compromissado. Um
grupo que trabalha mesmo. Que ver resultado... Quer ter resultado, né? Que...não adianta, eles
estão aqui, eles sabem que é o nosso trabalho que está em jogo também, né? Mas ai, que
nem...a gente faz, faz, acontece...ai vem um índice externo, né? Um índice da secretaria da
educação. Ai a gente não alcança esse índice. Ai fica todo tudo desanimado, sabe? Fica todo...
então, a gente precisa o que? Precisa estar levantando novamente essa autoestima,
dizendo...não, nosso trabalho é um trabalho sério. Eu acho que é por ai mesmo, que a gente
tem que...a gente tem que estar sempre melhorando, né? Então é isso. E eles se sentem só
nessa questão dos pais não ajudarem, também né? Então, eu cobro muito essa questão dos
pais não ajudarem. Então, eu acho que isso é o grande dilema.
Pesquisadora: As necessidades dos professores, o que eles precisam.
Vice: Também eu acho que uma formação, né?!
Pesquisadora: Do que?
Vice: Uma atualização. (risos)
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Pesquisadora: Atualização?
Vice: Risos.
Pesquisadora: Mas, aí, não precisamos resolver tudo hoje, né?! Vamos pensar, e...
Vice: É
Pesquisadora: Tá. O que você acha que os professores esperam de você, do seu cargo?
Vice: O que eles esperam? (Risos) Que eu resolva os problemas que eles têm em sala de aula.
Os problemas de indisciplina, os problemas de aprendizagem, eu acho que é por aí. Uma
ajuda, né?! Então, é isso que eu tenho que fazer. Deu problema? Eu vou até lá, converso,
ajudo, vejo se precisa ser feito um remanejamento, que o professor está assim, meio sem
tolerância com determinado aluno, então a gente faz remanejamento até a coisa melhorar, se
for o caso volta, se não for, fica remanejado o aluno. Então a gente, eu acho assim, essa
assistência que eles esperam da gente. A gente está tentando ajudá-los, né? Dessa forma,
assim, mas nessa questão, principalmente da indisciplina, principalmente.
Pesquisadora: E os funcionários, o que esperam da sua função?
Vice: Ah, os funcionários? (risos) É a mesma coisa, mesmas coisas. Os funcionários me
procuram para eu estar ajudando. Interrupção externa. Onde nós estávamos? Ah, os
funcionários, né?! Então, os funcionários, eles também sempre me procuram pela questão:
criança correndo, criança indo muito ao banheiro, criança..., e a questão da manutenção do
prédio, né?! Então, tudo o que existe de manutenção eles me procuram, um cano quebrado,
uma necessidade na cozinha, uma dispensa, merenda, né?, é..., tudo isso ligado a manutenção
da escola eles me procuram para eu estar ajudando, para eu estar resolvendo e mesmo assim
nas questões, acho que deles, eles têm alguma dificuldade, é, precisam sair, precisam..., então,
eu sou a porta-voz para chegar até a diretora. Se ela não pode resolver, então eu resolvo,
depois passo para a direção. Então, é isso, eu acho que eles esperam de mim é essa ajuda, né,
para eu estar resolvendo aquilo que eles não podem estar resolvendo. O que diz respeito a
merenda, manutenção.
Pesquisadora: E você, o que você espera da sua função? Só tem essa pergunta e mais uma.
Vice: O que espero da minha função?
Pesquisadora: O que ela é e o que você espera dela?
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Vice: Olha, eu gosto muito dessa parte administrativa, me identifiquei bastante. Tanto que eu
não me incomodo, por exemplo, o pessoal fala: “nossa, por que você não fez um concurso
para ser diretora?” Eu não almejo isso, eu acho que onde eu estou eu estou bem, né?! Porque
eu estou trabalhando com os alunos, eu estou trabalhando a parte administrativa que eu gosto,
eu estou...
Pesquisadora: O que é que é essa parte administrativa?
Vice: Parte administrativa? É a vida funcional dos professores, apoiando, podendo resolver,
né? É, alunos, salas, salas lotadas, então, a gente faz todo esse trabalho conjunto, né? Direção,
a gente vê, nunca está negando uma vaga, mesmo que a gente esteja com superlotação, a
gente sempre tem, essa nossa criança vai ficar fora da escola? Não dá para a gente dar um
jeitinho? E a gente vai dando esse jeitinho. Sabe que não é certo, né?! Que isso seria uma
parte mais, é, uma parte do governo, teria que estar ampliando essa escola, que a demanda é
grande, né? Mas ao mesmo tempo a gente tem esse compromisso da criança não ficar fora da
escola, então, a gente tenta ajudar nessa parte funcional também, né? E..., que mais você
perguntou? Esqueci...
Pesquisadora: Uma última coisa que eu acho que..., o que que você espera desse nosso
trabalho? Dos professores, das nossas vindas. Você se preocupa? O que você espera?
Vice: Então, eu espero assim, que seja dado retorno para os professores, né? Que possa, é, ser
dada essa ajuda para eles, que, que é isso que eu disse, para melhorar, para saber que tem
alguém aqui na escola, né? Que está observando o nosso trabalho, está vendo o que é feito,
porque dentro de uma escola a rotina nos engole, né? Então, a gente acha que nós estamos
assim, abandonados. Então, vindo, né, por exemplo, vocês, uma instituição de fora, fazendo
esse trabalho, acompanhando, a gente percebe que não estamos tão, assim, abandonados, por
aí, e tem alguém que possa estar aqui dando uma ajuda, né? Para melhorar nossa qualidade,
assim, de trabalho.
Pesquisadora: Muito obrigada. Essa é a primeira, mas depois a gente conversa. Se ficar
alguma dúvida, você, por favor, nos procure e eu vou transcrever e devolvo para você, tá
bom?
Vice: Está certo.
Pesquisadora: Obrigada, viu?
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