piotr kropotkin
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Geografia
Nos braços do Leviatã Alegações sobre a Crítica ao Estado territorial na obra de Piotr Kropotkin
São Paulo
2013
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Geografia
Nos braços do Leviatã Alegações a Crítica ao Estado territorial na obra de Piotr Kropotkin
Rafael Florêncio da Silva
Trabalho de Graduação Individual apresentada ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Dr. Heinz Dieter Heidemann, para obtenção do título de Bacharel em Geografia.
São Paulo
2013
2
“Poderás tu fisgar Leviatã com um anzol, e amarrar-lhe a língua com uma
corda?
Serás capaz de passar um junco em suas ventas, ou de furar-lhe a
mandíbula com um gancho?
Ele te fará muitos rogos, e te dirigirá palavras ternas? Concluirá ele um
pacto contigo, a fim de que faças dele sempre teu escravo?
Brincarás com ele como com um pássaro, ou atá-lo-ás para divertir teus
filhos? Será ele vendido por uma sociedade de pescadores, e dividido entre os
negociantes?
Crivar-lhe-ás a pele de dardos, fincar-lhe-ás um arpão na cabeça?
Tenta pôr a mão nele, sempre te lembrarás disso, e não recomeçarás. Tua
esperança será lograda, bastaria seu aspecto para te arrasar.”
Livro de Jó, cap.40, 20-28
3
“Se você vai chutar alguma autoridade nos dentes, é melhor você
usar os dois pés.”
Keith Richards
Agradecimentos especiais á
John, Joey, Paul, Johnny, George, Dee Dee, Ringo e Tommy.
Sem vocês rapazes, essa graduação teria sido impossível.
4
Sumário
Agradecimentos e ________________________________________ 5
Apresentação ee _________________________________________ 8
Introdução em __________________________________________ 10
Capítulo 1. Êmulo Negro ________________________________ 12
1.1 Heresia e destruição _______________________________ 12
1.2 Herdeiros do apocalipse ____________________________ 23
1.3 Пётр Алексе́евич Кропо́тки _________________________ 33
1.4 A concepção de história em Kropotkin ________________ 49
1.5 O anarco-comunismo ______________________________ 54
1.6 O método científico ________________________________ 59
Capítulo 2. No bordel do historicismo ______________________ 69
2.1 No balcão do iluminismo ___________________________ 69
2.2 Uma ciência ______________________________________ 73
2.3 No bordel do historicismo ___________________________ 82
2.4 O Black Bloc bate a porta ___________________________ 89
2.5 A Ajuda Mútua e a crítica ao darwinismo social _________ 93
Capítulo 3. Nos braços do Leviatã ________________________ 100
3.1 A teoria do contrato social _________________________ 100
3.2 Estatismo e monetarismo. A reprodução do capital como
economia política de guerra desde seus primórdios _________ 107
3.3 O Leviatã vive. A relação Estado e território em Ratzel __ 112
3.4 Kropotkin: O Estado e seu Papel Histórico ____________ 121
Considerações Finais ____________________________________ 134
Referências Bibliográficas ________________________________ 137
5
Agradecimentos e
Não é novidade entre os contemporâneos dedicar as primeiras linhas a um desabafo
sobre a sujeição e a determinação que o trabalho de graduação individual exerce na
aquisição do título de bacharel em geografia na vida acadêmica e seu papel na reprodução
da sociedade do trabalho em crise, e a subjetivação do processo social e da realidade na qual
nos inserimos, ao mal estar que todos sentem maior uma hora, menor em outra. Os espaços
de agradecimentos e sua relação com espetacularização das relações pessoais, e da própria
pesquisa positivando-a a ponto de transforma-la em uma instância máxima da vida são
abordados por Bezerra (BEZERRA, 2011), pontuando que em um mundo de relações
fetichistas, há a proposição de formas de sociabilidade menos abstratas.1 (BEZERRA, 2011)
O processo de emancipação do bacharelado ao qual o sujeito perpassa após a defesa
do trabalho de graduação individual e a expropriação a qual é submetido, quando a única
coisa que lhe resta é a venda de sua força de trabalho necessária a sua reprodução diária
com o término da graduação é um dos aspectos apontados por Sturlini, bem como a
contradição inserida nessa relação como um momento o qual o sujeito se livre, mas em uma
liberdade negativa.2 (STURLINI, 2013)
O fetiche que envolve a relação graduando e trabalho de graduação individual,
fazendo este aparecer como natural da própria graduação e seu valor de uso, e não como
resultado de um trabalho abstrato determinado valorizar o valor é colocado por Mazzamati,
mas que justifica a si mesmo quando colocado no tempo da mercadoria. A positividade vem
da possibilidade de relações menos abstratas que se colocam no convívio desse mesmo
período3, tal qual Bezerra. (MAZZAMATI, 2013)
A “obrigação de terminar a graduação em geografia pelo templo do positivismo
bandeirante.” (CAMARERO, 2013, pg.6), é apontada aqui como imposição fantasmagórica,
1 BEZERRA, Roberta Lopo. Processo de Modernização e formação de fronteira: desdobramentos. Tese de
graduação apresentada ao Departamento de Geografia FFLCH USP, sob a orientação do Prof. Dr. Heinz Dieter Heidemann, 2011.
2 STURLINI, Manuela Otero. Conservação e Manejo de Florestas Tropicais. Enfoque nas Agroflorestas
conduzidas por sucessão natural no Vale do Ribeira – SP, Tese de graduação apresentada ao Departamento de Geografia FFLCH USP, sob a orientação Prof. Dr. Sueli Angelo Furlan, 2013.
3 MAZZAMATI, Gabriella Mattos. DAS RELAÇÕES ENTRE O SISTEMA AGRÍCOLA DE PRODUÇÃO E A
ALIMENTAÇÃO: a Agrofloresta na mesa, Barra do Turvo SP. Tese de graduação apresentada ao Departamento de Geografia FFLCH USP, sob a orientação Prof. Dr. Sueli Angelo Furlan, 2013.
6
em um recorte meritocrático, o qual um ponto de fuga é apresentado pelo aprofundamento
das relações em seu convívio cotidiano, no valor de uso do tempo da mercadoria4.
(CAMARERO, 2013)
Há algo que subjaz em tudo o que escrevi para além disso, em todas as
minhas reflexões, que sobrepassam em muito ao que ele se destina de fato,
o cumprimento de um regimento acadêmico de entrega do trabalho final
da graduação. Porém na forma como ele se apresenta não se desprende
dele as experiências que tive ao longo desses sete, ou melhor, seis anos e
meio dentro do curso de Geografia. Do título ao ponto final, do sumário à
bibliografia, não se vê, ouve, e muito menos se tateia, as feições e as
palavras de todas as pessoas que estiveram presentes na sua construção.
(LOPES, 2012, pg.4)
Para Lopes, mesmo diante da máquina do mundo, a positivação do processo da
graduação perpassa em linhas, do título ao ponto final, passando pelos diversos
compartimentos dissertativos, se encontrando muito além do cumprimento do regime
acadêmico. Aqui, vemos uma positivação do sujeito em uma série de objetividades da forma
social que estão sempre escondidas por esta. O processo histórico, este, sempre está a
passar pelas costas do sujeito.
Diante desse processo dialético que é graduação, cabe a mim nesse momento na
condição de sujeito, e, colocadas às devidas críticas balizadas acima pelos devidos autores,
colocar em palavras que não traduzem a experiência do narrador de todos esses anos na
geografia. Anos esses, que tiveram sua fase dentro dos ônibus desbravando os sertões em
ENG’s, ENEG’s e EREGEO’S, que se revelaram experiências traumáticas quando você oferece
um lugar na sua barraca a quem você acaba de conhecer. Espero que dessa experiência,
algum dia possamos ingressar no mundo dos royalties literários (ou quem sabe,
audiovisuais) com a saga de Aloysio Rouber.
Aos meus companheiros de sertão em um momento tão delicado, naquela Kombi
amarela que insistia em se camuflar aos nossos olhos de micro-ônibus com o logo da USP.
Alinha, Robs, Francisco, Artur, Lia, Ewa, Marina e o brilhante Marcha. O peso das estrelas
4 CAMARERO, Artur Attarian Cardoso. Armênios em São Paulo: mobilização e genocídio. Tese de graduação
apresentada ao Departamento de Geografia FFLCH USP, sob a orientação Prof. Dr. Heinz Dieter Heidemann, 2011.
7
sobre nas cabeças eu nunca esquecerei. A Gabi, que além de compartilhar as mesmas
estrelas do sertão, é tão fã de Beatles quanto eu. A Marizinha, por ser tão Fogarelli.
Carol, Fernandão Mello, Jean, Martinha (sempre inspiradora), Daniel, Raquel,
Sandrinho, Júlio Várzea, Ana Maria, Cubano, Boni, Guto, Marte, Catatau, Gustavão, Fábião
Alkmin, Fê (Corguinho), Luni, Marcela, Ritinha, Ana Gomes, Don Don, Brunão (o melhor
imediato que um capitão poderia ter), Tom, Ramon, Cláudinho, Luni, Rafa Zen, Olívia, Rafa
Hippie, Fabião Pitta e seu gosto musical duvidoso.
Ao Cristiano, por anos tão abomináveis que só nós sabemos. A Tatá, companheira de
Lou Reed e a Clarinha de Ramones, até morrermos, e a Ag. Ao Gromps, grande amigo, mais
um sobrevivente.
Ao meu grande companheiro de estudos anarquistas solitários, Adriano. Sem você,
metade da bibliografia contida nesse TGI não seria possível.Ao meu xará Aragi, pelas nossas
conversas e desabafos, e que leu esse texto com sua sinceridade característica, autor da
melhor definição de TGI que eu ouvi até hoje5.
A Manu, a minha prima mais querida.
E a todos com quem ri em algum desses muitos momentos.
Ao Carlão, esse mestre do improviso e da paciência, que tanto me ajudou na reflexão
não só desse texto, mas ao longo das reflexões desses últimos anos.
Ao meu pai, que do seu jeito bem particular, me apoia nesse périplo que é a vida.
Ao Dieter, pela travessia, e por mostrar que outra relação dentro dos corredores
acadêmicos da vida é possível. E pelo caráter destrutivo, que praticamente me obrigou a
esse tema de TGI após ter desistido dele umas sete vezes, acho.
Ao Elvis, que naquele 18 de julho de 1953, atravessou a rua e entrou no estúdio de
Sam Philips, dando início a lenda, seguido por Johnny Cash. Ao Muddy que abraçou a
guitarra elétrica, e ao Dylan que seguiu seu exemplo. Ao Velvet Underground e sua música
marginal. Ao Kinks que tentou até se tornar uma das bandas mais fantásticas da Inglaterra,
justiça seja feita. Aquele motor elétrico chamado The Who. Ao The Clash pelo melhor álbum
de todos os tempos, o London Calling. Deixo aqui, a trilha sonora dessas páginas finais. Get
Off Of My Cloud!
5 “Uma espécie de circuncisão com data marcada espetacularmente”
8
Apresentação ee
O fio condutor deste trabalho de graduação é a reflexão da categoria Estado, mais
expressamente, da relação das categorias Estado e Território na historia do pensamento
geográfico, na obra de Piotr Kropotkin. O tema do anarquismo sempre me fascinou, e no
início da graduação, brilhou mais intensamente. Por inúmeras razões. A primeira é que era
muito tentador um movimento rejeitado tanto pela direita e ainda mais pela esquerda. Os
caídos exercem uma atração maior. A segunda era; qual o sentido de ouvir um bom punk
rock e não flertar com isso?
Antes de escolher o tema da pesquisa, em uma conversa o Dieter me disse; “Você
deve odiar o seu objeto de estudo”. Deveria ter ouvido ali. Foram diversas as dificuldades no
decorrer do processo de construção do TGI, motivo o qual, culpa confessa, me arrependi em
diversas oportunidades de não ter escolhido um objeto com ampla produção acadêmica
dentro da geografia, creio que teria sido muito mais cômodo. Inicialmente, a dificuldade foi
em relação à bibliografia, tanto do autor, quanto um estudo sobre Kropotkin com produção
própria da geografia, que se revelou com uma bibliografia muito rarefeita sobre o assunto.
No primeiro momento, busquei o revolucionário no geógrafo, e um dos resultados
foram as extensas partes biográficas presentes no texto. Conhecer a história de Kropotkin,
um nobre russo geógrafo que se torna anarquista, e a história de um movimento que não
teve tempo de se perder de seus objetivos, marginalizado pelo sucesso da via partidária de
modernização, e sua recusa proclamada a toda autoridade, me fez debruçar em muitas
leituras históricas. Poderia ter me concentrado nos conceitos principais da pesquisa, mas
não consegui.
Nesse processo, fiquei com um receio particular de cair em um estruturalismo
conceitual que nivela todos os fenômenos sociais em seu arcabouço teórico devidamente
segmentado e positivamente crítico. Outra é que fiquei curioso mesmo. Nesse segundo
momento busquei o geógrafo no revolucionário. O resultado é que além de ter me
demorado em ambos os processos, foram essas páginas recheadas de críticas ou elogios ao
sujeito tão contraditórios que em diversos momentos eles podem soar ambíguos, o que
preferi, ao invés de percorrer a rua de mão única. Se consegui, não sei. Mas um dos motivos
do TGI ser dividido em capítulos é também para isso. Dessa forma, aconselho bruscamente
9
aqueles que querem ir direto ao assunto a leitura do capítulo III. Acho que o centro do
debate está lá.
Em muitas horas, fui escravo da escrita, de variadas maneiras. Uma foi o erro de não
ter iniciado o processo da escrita junto ao da leitura. Experiência ás vezes requer paciência.
Após iniciado o percurso, não consegui me desvencilhar do viés histórico do processo, nem
sempre necessário. Este trabalho poderia ter sido elaborado com maior poder de síntese,
mas guardo isso como experiência. Até o fim, e até agora, não sinto que essa escrita é a
minha, e que ela ainda está presa dentro de mim. Senti-me refém do discurso acadêmico o
qual não consegui me livrar, não tanto pelo fato de ser enfadonho ou pelo tédio que o
acompanha em vários momentos, mas pelas suas limitações. Benjamin é um ponto de
reflexão ao descrever essa tensão, a extinção da arte de narrar, “É como se estivéssemos
privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar
experiências” (BENJAMIN, 1996, pg.198)
10
Introdução em
Este trabalho se propõe um estudo da relação entre as categorias Estado e território
em diversos textos do geógrafo anarquista Piotr Kropotkin. Como um estudo de história do
pensamento geográfico, há tanto uma discussão conceitual sobre as categorias que compõe
o tema da pesquisa quanto um aprofundamento na história do movimento anarquista. Uma
das perguntas que permeiam o texto é; qual a diferença que o pensamento anarquista pode
oferecer em uma análise de uma categoria clássica da Geografia Política como o Estado e
território?
O primeiro capítulo se dedica a uma tentativa da compreensão da trajetória histórica
do movimento anarquista, suas correntes e propostas teóricas sob o processo de
modernização. Há uma imersão em parte da obra de Kropotkin, como se dava seu conceito
de história, sua teoria do anarco-comunismo e a proposta do anarquismo como método
científico em suas análises. O segundo capítulo se debruça sobre o discurso disciplinar
geográfico e o método historicista, a “descoberta” e uma reflexão sobre os geógrafos
anarquistas e uma possível proposta crítica diferenciada em seus estudos. Ambos os
percursos são realizados procurando um diálogo através da Teoria Crítica, evidenciando os
traços trans – históricos do pensamento iluminista, a ontologização das categorias modernas
do capital e seus desdobramentos na história do pensamento geográfico.
O terceiro capítulo trata respectivamente da relação entre as categorias Estado e
território. Há uma reflexão sobre a Teoria do contrato social nos pensadores do iluminismo e
a forma mercadoria, uma reflexão da origem do Estado e sua relação com mercado como
um duplo do mesmo campo histórico, e não como duas categorias cindidas. A Reflexão
sobre a categoria Estado e território em Ratzel se dá por alguns motivos. Entre eles porque é
dado que Ratzel é o introdutor dos estudos sobre Estado e território em geografia, além do
método positivista, oferecendo uma contraposição pelos mesmos parâmetros utilizados por
Kropotkin quanto aos estudos das mesmas categorias.
E como introdutor da Geografia Política, inicialmente havia a proposta da reflexão do
discurso geopolítico em Ratzel e outros pensadores como Richtofen, Kjellén, Graf, Haushofer
e Mackinder e o materialismo geográfico como método, bem como a reflexão de Wittfogel e
Kropotkin sobre os meandros de uma geografia política como “consciência do Estado” e um
11
discurso que legitima a expansão imperialista. Outra questão, que foi o pano de fundo inicial
da pesquisa, era uma pretensa crítica a geografia crítica, analisando seu discurso como
escola crítica e como se dá a discussão das categorias analisadas por este estudo por essa
linha de pensamento, que durante a graduação, se mostrou uma análise sociológica
positivada pela construção de um conceito democrático de Nação, sendo colocado diversas
vezes a negação do Estado como um “mero” niilismo. Mas, talvez, fique para uma outra
oportunidade.
12
Capítulo 1. Êmulo Negro
1.1 Heresia e destruição
Enforquemos os poderosos do mundo e todos os nobres
e estrangulemo-los com as tripas dos padres,
os grandes e os nobres que esmagam os pobres,
os atormentam e os reduzem a miséria
Thomas Muntzer, 1525
O anarquismo, como movimento ou doutrina, junto a outras teorias revolucionárias, é
um fenômeno oriundo do século XIX. Mas, se levando em conta a dominação como a
questão central do anarquismo, são os ecos do mundo feudal em ruínas que reverberam nas
revoluções que se sucedem.
Tanto o anarquismo quanto o marxismo tradicional beberam da mesma fonte, as
ideias dos socialistas utópicos como Fourier, Saint Simon e Robert Owen. Reivindicaram uma
sociedade futura onde todos teriam suas necessidades satisfeitas e os homens seriam iguais,
se diferenciando radicalmente quanto ao método para alcançar seu objetivo. Porém, a
urgência na transformação da sociedade de maneira imediata, a ânsia pela destruição, e o
espírito da revolta com que isso se daria, incendiou os corações e mentes dos anarquistas6.
O marxismo tradicional é herdeiro da formulação iniciada pelos Jovens Hegelianos7, a
qual se fundamentava na dialética de Hegel, onde há uma razão que se realiza na história.
Ao invertê-la como uma filosofia radical de mudança (Hegel objetivava a dialética no Estado
Prussiano), esta posteriormente deságua na doutrina da luta de classes esboçada por Marx,
6 Como teria dito Buenaventura Durruti, líder espanhol durante a Guerra Civil Espanhola a Pierre van Paassen
“Não temos medo de ruínas – nós herdaremos a terra. Não há menor dúvida quanto a isso. A burguesia pode fazer explodir e arruinar o seu próprio mundo antes de abandonar o palco da história. Nós trazemos o novo mundo em nossos corações. Esse mundo está surgindo nesse momento.” (WOODCOCK, 2002, pg.12)
7 Foram os hegelianos que cimentaram na nova geração de revolucionários a convicção de que a História
estava ao seu lado, fornecendo-lhes uma filosofia radical de mudança. Os sucessores do Hegel -os Jovens Hegelianos – tomaram a doutrina do mestre e transformaram-na num fim revolucionário. Enquanto o próprio Hegel usara a sua filosofia como um meio de justificar o estado prussiano existente, os seus sucessores, como Marx o afirmou, colocaram a dialética de cabeça para cima e transformaram-na numa filosofia de revolução. (JOOL, 1977, pg.62)
13
onde os conflitos contribuem para uma nova síntese, onde através de sucessivas revoluções,
chega-se a sociedade comunista.
Os ideais anarquistas conspiram pela heresia e o fim do mundo, uma transformação
radical que possuí uma necessidade imediata. Os grilhões não podem esperar uma revolução
burguesa para serem rompidos, e acordos com classes abastadas não fazem seu gosto; o
Leviatã perde a sua coroa no cadafalso anarquista. Suas bases filosóficas se assentam nos
filósofos do Iluminismo; a Revolução Francesa, o fato histórico empírico de que uma
revolução pode ser bem sucedida, frente a destruição que a revolução conduzirá a
sociedade na sua evolução.
A ânsia da destruição é herdada das violentas reformas protestantes que varreram a
Europa e culminaram na Revolta dos Camponeses liderada por Thomas Muntzer no século
XVI, bem como a revolta dos anabatistas. A violência legitima que caracterizou esses
movimentos e a necessidade de rompimento radical com o mundo, pela instalação imediata
do Reino de Deus em sua plenitude, expõe os limites categoriais impostos de forma
espetacular pela forma mercadoria aos movimentos sociais que se seguiram na
modernidade, a renúncia à violência, a busca por paliativos legislativos e a legitimação tanto
por parte da social democracia presente na Internacional dos Trabalhadores no séc. XIX e
sua tomada do poder via Estado quanto aos movimentos sindicais do final do séc. XX e início
do XXI. A negação da negação da propriedade que se converte tanto na manutenção e
integridade física quanto a reprodução da mesma sob a égide da ordem, do progresso, dos
nacionalismos.
Naqueles últimos dias de um mundo medieval que viria a conhecer brevemente a
sutileza de uma violência totalmente nova, a imediata destruição da ordem medieval, da
Igreja e da Nobreza ao som das vozes do apocalipse8, carrega uma negatividade que
desconhece a afirmação positiva; ela não se pauta pela reforma ou reivindicação ela quer a
destruição do existente, porém por outro mundo, a Jerusalém Celeste, apocalíptica, que
reduziria a cinzas a Babilônia medieval.
8 Exortava Thomas Munzer seus companheiros em tom apocalíptico “A eles, a eles enquanto o fogo está aceso.
Não deixem arrefecer a vossa espada! Nada de hesitações! Que o martelo não deixe de bater na bigorna de Nimrod! Derrubemos as suas torres! Enquanto eles viverem nunca sacudireis o medo dos homens...” Exortava Thomas Munzer seus companheiros (JOLL, 1977, pg.25)
14
Se esses movimentos medievais não possuem o caráter anarquista, a sua prática fora
inspiradora. No cerco da cidade de Munster em 1535, os anabatistas destruíram todos os
registros de contratos e dívidas, prática que os anarquistas seguiriam, e organizaram
armazéns de comidas, roupas e alojamentos comunais. Uma marca que esses movimentos
deixam no pensamento anarquista, a reação violenta à ordem existente, tomará mais força
ainda pelo Terror da Revolução Francesa.
O anarquismo bebe nas convicções filosóficas do Iluminismo. Será Jean-Jacques
Rousseau (apesar dos anarquistas rejeitarem a ideia do contrato social), ao fundir o
racionalismo com o ardor dos românticos, a fundamentação do pensamento clássico do
anarquismo.
A crença na perfectibilidade do homem e das instituições humanas,
Rousseau acrescentou a noção do Bom Selvagem, uma figura querida a
todos os corações anarquistas. “O Homem nasceu livre e por toda a parte
vive agrilhoado” tornou-se de fato o primeiro princípio do pensamento
anarquista. A ideia de um mundo de felicidade primitivo, de um estado de
natureza no qual, bem longe de estarem envolvidos em uma luta de todos
contra todos, os homens viviam num estado de cooperação mútua, veio a
ser um apelo irresistível aos anarquistas de todos os gêneros. E, mesmo que
o próprio Rousseau viesse contribuir para o desenvolvimento de teorias
políticas baseadas num poder de Estado forte, as ideias de simplicidade e
de bondade que ele propagou, as teorias da educação racional que
advogou, são bastante semelhantes às de Kropotkin ou de Francisco Ferrer.
(JOLL, 1977, pg.33)
Além dos apontamentos históricos colocados por Joll, a força dessa contestação
negativa se dá no contraste entre indivíduo e mundo, que tem uma das suas primeiras
expressões no romantismo moderno. Aí, a rebelião existencial do individuo não é mais a luta
pelo Kairós9, como os rebelados da Idade Média, mas contra o aspecto genérico entre
“mundo e vida”, individuo e sociedade, pária da natureza, contra o tempo da mercadoria.
9 De acordo a teologia cristã, o Kairós é o ”Tempo de Deus”, que não pode ser medido e nem mesurado, que
não encontra início, fim ou meio, em contrapartida ao Chronos, o “Tempo dos Homens”, histórica e linear cronologicamente.
15
A Revolução Francesa, apesar de não trazer a descentralização e o fim da propriedade
privada, a violência dos métodos revolucionários que haviam derrubado uma ordem secular
em suas dimensões políticas, econômicas e espirituais levam a certeza de que uma
Revolução violenta pode ser bem sucedida, e que a próxima Revolução seria muito mais
radical. Em A Grande Revolução Francesa, escreve Kropotkin:
O que hoje aprendemos do estudo da Grande Revolução é que ela foi a
fonte e a origem de todas as concepções comunistas, anarquistas e
socialistas atuais [...] A única coisa certa é que qualquer que seja a nação
que, nos nossos dias, entre no caminho da revolução será herdeira de tudo
o que nossos avós fizeram em França. O sangue que verteram derramaram-
no pela humanidade – os sofrimentos por que passaram padeceram-nos
por toda a raça humana; as lutas, as ideias que deram ao mundo, o choque
dessas ideias, fazem hoje parte da herança da humanidade. Todas
produziram frutos e produzirão mais, e ainda melhores, a medida que
avançamos em direção a esses horizontes rasgados diante de nós, onde,
como grandes faróis a apontarem-nos o caminho, flamejam as palavras
LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE. (KROPOTKIN apud JOOL, 1977,
pg. 45-46)
O mercantilismo como base econômica do Estado Absolutista francês enfrentava uma
crise tanto nos seus limites de reprodução baseado em manufaturas e a necessidade de
industrialização para um sistema produtor de mercadorias quanto ao custo de um Estado
que se centralizava cada vez mais e que não conseguia mais arcar com seu edifício, enquanto
economia doméstica (Oikos) do príncipe (KURZ, 2010). O Antigo Regime não conseguia mais
reproduzir-se de modo a arcar com a ociosidade do Primeiro e Segundo Estado, nobreza e
clero, respectivamente, além do exército militar permanente do monarca financiado a base
dos domínios rurais que se constituíam com fonte de renda principal juntamente ao Terceiro
Estado, composto por burgueses, artesãos, aprendizes, camponeses e proletários.
Para aumentar as receitas principescas, tinha que ser criado um sistema
tributário geral. Essa medida não apenas fez nascer os traços fundamentais
de uma economia financeira moderna, mas também exigia o fomento e o
controle conscientes da produção de mercadorias, como fonte principal da
tributabilidade monetária, a estimulação das exportações e a intensificação
16
planejada do processo de produção de mercadorias, para além dos limites
estamentais das forças produtivas. A manufatura, a divisão forçada do
trabalho e o recrutamento coativo de mão de obra assalariada barata, entre
os produtos da decomposição da sociedade feudal, conduziram a um novo
modo de produção que logo rompeu os objetivos limitados do absolutismo.
(KURZ, 1993, p. 32-33)
A Revolução Francesa promoveu cada vez mais um centralismo de Estado e a extensão
de seu poder a todos os setores da sociedade. Na constituição de 1791 foi abolido o
feudalismo, promovendo a expropriação e nacionalização dos bens eclesiásticos e a
separação entre o Estado e a Igreja, reconhecendo a igualdade civil e jurídica e excluindo a
igualdade econômica na qualidade dos cidadãos.
Em primeiro lugar, os proprietários, na qualidade de cidadãos, não deviam
ser abandonados a qualquer arbítrio do Leviatã, mas deviam ter também
direitos face a essa instância agregadora, e os seus representantes deviam
poder mesmo apresentar queixas perante tribunais independentes. Em
segundo lugar, como pagadores de impostos, os cidadãos também deviam
adquirir uma função de controle sobre a utilização dos seus tributos, sob a
forma política de uma representação própria (parlamento). Nesse sentido,
a relação contratual determinada em termos jusnaturalistas passa a ser
compreendida, na filosofia mesma do iluminismo, como uma relação não
fechada, mas ainda atuante. (KURZ, 2010)
Foi a Comuna Insurrecional de Paris formada em 1789, de cunho popular, que
modernizou o exercito e sua força bélica juntamente com a criação da Guarda Nacional,
milícia popular burguesa responsável tanto por combater um possível contra golpe da
monarquia quanto reprimir a população civil que se levantasse contra a ordem, além da
defesa dos limites territoriais da Nação. A modernização do aparato estatal que a Revolução
trouxe, suplantou aqueles componentes dispersos em pequenos poderes como as
congregações religiosas e suas propriedades com produções próprias, relações familiares,
hierarquias nas manufaturas urbanas de resquícios feudais, utilização da gleba na produção
agrícola, e do aparato de funcionalismo estatal substituindo os nobres por funcionários
públicos realizando a função domesticadora do Leviatã no interior da Nação pela garantia da
força da propriedade declarada na constituição. Os brados de “liberdade, igualdade e
17
fraternidade” aparecem como a liberdade negativa do sujeito, que conserva apenas sua
força de trabalho para sua reprodução. “Rousseau diz sem rodeios que todos os cidadãos
têm de ser coagidos a essa “liberdade” da vontade abstrata da razão geral. Liberdade é
necessidade – eis a primeiríssima versão do princípio orwelliano.” (KURZ, 2010)
O golpe do 18 de brumário de Napoleão I encerra o período da Revolução e a Primeira
República com a instauração do Império. Após a queda de Napoleão I e a restauração da
dinastia Bourbon, será em 1848 o ano em que as barricadas serão reerguidas em diversos
países da Europa convulsionando os últimos regimes absolutistas e rompendo os últimos
resquícios feudais, com exceção da Rússia. Nesse contexto, com a aliança da burguesia junto
ao Estado, emerge um recente movimento dos trabalhadores iniciando sua organização,
com Proudhon líder dos operários e artesãos em França e candidato a Assembleia
Constituinte, e Marx publicando o Manifesto Comunista.
O movimento agora operário compõe uma divisão técnica do trabalho mais
aprofundada, bem como um exército de mão de obra reserva formado e numeroso. Os
trabalhadores não se limitam a organização nacional, mas buscam o apoio da própria classe
internacionalmente. Sob o governo de Napoleão III, com uma política de aproximação dos
trabalhadores após o golpe que findou a Segunda República, incentiva artesãos franceses a
visitarem a Mostra Internacional de Londres onde diversos mutualistas influenciados pelas
ideias de Proudhon se aproximam dos sindicalistas ingleses e trabalhadores alemães, e
iniciam as conversações sobre a possibilidade de uma associação internacional. Em 1864 a
delegação francesa apresenta a resolução propondo a fundação da Associação Internacional
dos Trabalhadores. A Internacional dos Trabalhadores congregará um esforço internacional
do movimento operário e um espaço de debate das ideias de emancipação do operariado e
mote de sua divisão; entre os socialistas libertários que viam na tática da ação direta e a
supressão imediata do Estado para a instalação de uma sociedade comunista e os socialistas
autoritários, que buscam na tomada do Estado uma etapa necessária a se atingir a sociedade
burguesa e posteriormente a sociedade comunista. A primeira Internacional tem fim
juntamente com a Comuna de Paris de 1871 e a perseguição dos governos europeus que
fizeram com que os congressos caíssem na clandestinidade até sua dissolução oficial em
1876.
18
Em 1872, após o cisma do Congresso de Haia onde diversos grupos libertários se
retiraram da organização em solidariedade a expulsão de Bakunin da Internacional, tiveram
início vários esforços que se estenderam ao longo das décadas seguintes para a constituição
de uma Internacional Anarquista. O Congresso de Saint Imier se deu no mesmo ano com a
presença de vários lideres do movimento como Bakunin, Cafiero, Malatesta, Costa, Fanelli,
Guillaume além de sobreviventes da Comuna de Paris. Diversos congressos se seguiram,
bem como a tentativa dos anarquistas de participarem da Segunda Internacional onde foram
constantemente rechaçados pelos sociais democratas marcaram os passos do movimento no
ultimo quarto de século, sendo que os anarquistas como um movimento organizado e
significante emergiria no início do séc.XX através do anarco - sindicalismo, doutrina que
propunha a greve geral como instrumento revolucionário e pela organização dos operários
em sindicatos, não sem antes passar por um período de atentados individuais niilistas tal
como o emblemático caso de Ravachol na França e Nechayev na Rússia, que utilizavam a
estratégia da propaganda pela ação na ultima década do séc.XIX.
A Guerra Civil Espanhola talvez seja o momento mais dramático onde uma revolução
anarquista toma forma. A Espanha dentre os países europeus foi onde o anarquismo mais
fora difundido entre os proletários. E diversas foram as particularidades desse processo.
Com as guerras napoleônicas pós Revolução Francesa, as colônias espanholas na América
entraram em um processo onde diversos territórios coloniais declaram sua independência.
As colônias formavam a espinha dorsal da economia mercantilista espanhola, alicerçada no
monopólio da metrópole sobre a produção de manufaturados e o mercado de consumo
colonial, com o comércio entre colônias proibido além da acumulação de metais oriundos
das minas do Novo Mundo.
Com a independência das colônias americanas e o fim do Antigo Regime, se seguiu
durante o séc.XIX um período de instabilidade política na Espanha rivalizado inicialmente
entre liberais e absolutistas, posteriormente assinalado por republicanos e monarquistas. Na
metade do séc.XIX, as ideias de Proudhon foram introduzidas pelo bancário Pi y Margall que
adaptou a ideia da organização federalista de Proudhon. Em muitas regiões da Espanha era
apreciada a ideia de Patria Chica, contrapondo o conceito de nação. A adaptação do
federalismo de Proudhon atraiu a classe média inferior fora de Castella, simpatizantes da
ideia de autonomia regional. Posteriormente, o coletivismo de Bakunin influenciou os
artesãos e o operariado de Barcelona e Madrid, cabendo o anarco - comunismo de Kropotkin
19
a influência nas áreas rurais, sempre em convulsão em meio a revoltas populares, no final do
século.
Em 1874, Pi y Margall torna-se presidente da breve Primeira República, trabalhando
pela instalação de uma república federativa de administração descentralizada, promovendo
a separação entre Estado e Igreja e laicizando o ensino. Com uma frágil organização, cidades
como Sevilha, Granada, Valência, Cádiz, Málaga e Cartagena declararam-se autônomas,
criando comitês de segurança pública fechando igrejas e realizando um processo de
expropriação daqueles mais ricos. O governo republicano decidiu enviar tropas federalistas a
fim de acabar com esse processo, abrindo caminho para um golpe dos militar no mesmo ano
e a restauração da dinastia dos Bourbons. A monarquia propõe um pacto de povos com
princípio federativo para o novo governo frente a tendência autônoma regional. Para os
anarquistas espanhóis, as propostas de Pi y Magall eram vistas como reformas liberais.
O período que se seguiu foi marcado por intensa violência, com revoltas em áreas
rurais, sublevações em municípios, surgimento de grupos de propaganda pela ação como La
Mano Negra por parte dos trabalhadores e a criação da Brigada Social, uma força policial
especial antianarquista por parte do governo. No final do século, o movimento anarquista
cresce no meio intelectual e para além do proletariado de Barcelona, Madrid e as áreas
rurais da Andaluzia.
É no início do séc.XX que influenciada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT),
francesa de caráter anarco – sindicalista, e após o evento conhecido como Semana Trágica10
é fundada a maior organização anarquista da Espanha e que assumiria a resistência durante
a Guerra Civil Espanhola, a Confederação Nacional do Trabalho (CNT). A Espanha passava
por um processo de industrialização durante a Primeira Guerra Mundial e conseguiu manter
seu parque industrial em funcionamento durante o conflito aumentando as suas
exportações para ambos os lados da guerra.
10
A Solidariedad Obrera, federação de diversos sindicatos libertários da Catalunha, convocou uma greve geral em 1909 após o exército ter decidido convocar os reservistas da região. “Os anarquistas, socialistas e sindicalistas concordaram quanto a uma ação conjunta, e o Solidariedad Obrera convocou uma greve geral. Durante a "Semana Trágica" que se seguiu, travaram-se violentas lutas nas ruas de Barcelona; a polícia e as tropas levaram cinco dias para estabelecer o controle. Aproximadamente 200 trabalhadores foram mortos nas ruas e - na explosão da paixão anticlerical que habitualmente acompanha os levantes populares na Espanha - mais de cinquenta igrejas e conventos foram incendiados e muitos monges assassinados. O governo conservador reagiu da forma costumeira com prisões em massa, torturas em Montjuich e execuções sumárias incluindo a de Francisco Ferrer.” (WOODCOCK, 2002, pg.119)
20
Durante a ditadura de Primo de Rivera, na década de vinte, a CNT é considerada ilegal
e dissolvida colocando seus líderes e ativistas na clandestinidade. Muitos se refugiaram na
França onde se reorganizaram decidindo fundar uma organização clandestina dedicada a
atividade revolucionária, a Federação Anarquista Ibérica (FAI). Junto a CNT, que voltaria a
agir na legalidade no início da década de trinta, organizarão o movimento operário durante a
Guerra Civil. Esse modelo de organização do movimento operário se aproxima da proposta
revolucionária de Bakunin onde um conjunto de organizações agiria tanto na
clandestinidade quanto na legalidade promovendo a atividade revolucionária.
Na década de trinta, a CNT fez uma campanha massiva entre seus associados pela
abstenção do voto e mobilização através da greve. Um governo de extrema direita assume a
República então. Devido aos milhares de militantes presos durante esse período, a CNT
decide se unir com a Frente Popular, uma coalizão de partidos de esquerda que propunha a
anistia dos presos. Com a vitória da Frente Popular se formulou a proposta de um governo
revolucionário, com a coletivização das fábricas e sua direção pela ação direta dos
trabalhadores e a gestão coletiva da terra.
O exército sob a liderança do general Franco desencadeou o golpe contra a república
revolucionária em 1936. A mobilização para a guerra faz com que os sindicatos se organizem
em milícias de populares com a ajuda do proletariado internacional. As brigadas
internacionais possuíam uma ampla gama de diversos aspectos da ideologia socialista,
reunindo anarquistas, comunistas e socialistas.
Essa guerra que se estende por três anos é marcada pelo embate das doutrinas
revolucionárias e fascistas pré Segunda Guerra Mundial. A Alemanha, que passara por
radical processo de modernização pós Primeira Guerra Mundial, fornece a logística e
material bélico para as tropas franquistas e diversas táticas como a Blitzkrieg que contava
com avanços terrestres combinados a intensos bombardeios são testados na Espanha. Os
anarquistas acuados não tiveram outra opção se não fazer uma aliança com a URSS de Stalin
para fornecimento de armas e logística para vencer a guerra. Sob a política de Moscou, as
milícias anarquistas foram sabotadas internamente. Cobrando altos valores dos
revolucionários espanhóis e fornecendo um armamento ultrapassado e em péssimas
condições, foram enviadas armas utilizadas na Primeira Guerra Mundial para o fronte contra
o fascismo. A isso soma a pressão de Moscou pela adoção de um exército republicano
21
centralizado no governo sob o comando dos comunistas. Isso minou a base da estratégia de
guerrilha que se mostrara a mais eficiente frente o belicismo das tropas fascistas, e teve seu
golpe final quando o próprio exército republicano desarmou os revolucionários e não
ofereceram resistência as tropas franquistas no restante da guerra. O socialismo autoritário
da URSS minou a ultima revolução de caráter anarquista da história. Durante um breve
período, as ideias de organização econômica propostas por Kropotkin foram postas em
prática tanto nas fábricas quanto nos campos, baseadas no modelo do comunismo libertário.
No livro Homenagem a Catalunha; lutando na Espanha, George Orwell como um ex-
combatente do front faz uma reflexão sobre a derrota das forças revolucionárias. Orwell,
que pertencia ao POUM11 e que lutara em uma milícia anarco-comunista, reflete em suas
memórias a derrocada da revolução espanhola:
Quanto aos russos, sua motivação na guerra civil espanhola mostra-se
completamente inescrutável. Teriam eles, como acreditam os simpatizantes
do comunismo, intervindo na Espanha a fim de defenderem a Democracia e
ir contra os nazistas? Nesse caso, por que intervieram em escala tão
insignificante, e acabaram deixando a Espanha no buraco, entregue a si
própria? Ou teriam, como sustentam os católicos, intervindo a fim de
fomentar a revolução na Espanha? Nesse caso, por que fizeram tudo
quanto puderam para esmagar os movimentos revolucionários espanhóis,
defender a propriedade privada e entregar o poder à classe média, contra a
classe trabalhadora? Ou teriam, como sugeriram os trotskistas, intervindo
apenas para impedir uma revolução espanhola? Nesse caso, por que
deixaram de dar seu apoio a Franco? Na verdade, seus atos tornam-se mais
fáceis de explicar quando supomos que estivessem agindo impulsionados
por diversos motivos contraditórios. Acredito que, no futuro, passaremos a
perceber que a política externa de Stalin, ao invés de tão diabolicamente
hábil quanto dizem, foi apenas oportunista e estúpida. Seja lá como for a
guerra civil espanhola demonstrou que os nazistas sabiam o que estavam
fazendo, e seus oponentes não. A guerra foi empreendida em baixo nível
técnico, e sua estratégia principal era bastante simples. O lado que tivesse
armas seria o vencedor. Os nazistas e italianos deram armas a seus amigos
11
Partido Operário de Unificação Marxista
22
fascistas espanhóis, e as democracias ocidentais e os russos não as deram
aos que deveriam ter sido seus amigos. Assim foi que a República
espanhola caiu, tendo “recebido o que não fazia falta a república alguma”.
(ORWELL, 2002, pg.155)
23
1.2 Herdeiros do apocalipse
O igual direito de todos aos bens e prazeres deste mundo,
a destruição de toda autoridade, a negação de todo o freio moral,
eis aí, se descermos ao fundo das coisas, a razão de ser da insurreição
de 18 de março e o programa da terrível associação
que lhe rendeu um exército.
(Inquérito parlamentar sobre a insurreição de 18 de março de 1871, início da Comuna de Paris)
Stirner, Proudhon, Bakunin e Kropotkin. Se estes nomes estão vinculados com as
correntes teóricas anarquistas e a sistematização desse pensamento, as ideias anarquistas
ganham expressão durante a Revolução Francesa. Em paralelo ao movimento pela
centralização do poder pelos Jacobinos, onde surgem as “seções” organizadas
municipalmente independentes de um comando central. Essas seções tentaram estabelecer
uma correspondência direta com as 36 mil comunas da França por intermédio de um
conselho especial, a margem da Assembleia Nacional, além de se fazer o uso pela primeira
vez da palavra anarquista:
O nome anarquistas fora abundantemente aplicado pelos girondinos
durante a Revolução Francesa em relação aos revolucionários que não
consideravam que a tarefa da revolução devesse limitar-se a derrubar Luís
XIV, e insistiam em que se tomasse uma série de medidas econômicas
(abolição de direitos feudais sem indenização, devolução as comunidades
dos povos das terras comunais cercadas desde 1669, limitação da
propriedade da terra para 120 acres, imposto progressivo sobre a renda,
organização nacional das trocas com base num valor justo, que então
começava a se elevar na prática, etc.). (KROPOTKIN, 1987, pg.24)
Mas o primeiro formular a teoria anarquista, segundo Kropotkin, foi o britânico
William Godwin (1756-1836), em sua obra Investigação a cerca da Justiça Política e da
influência sobre a Virtude Geral e a Felicidade:
Sem empregar na sua exposição esta palavra (anarquia) definiu-lhe,
entretanto, claramente os princípios, atacando rijamente as leis, provando
a inutilidade do Estado e finalmente, sustentando que, só com a abolição
24
dos tribunais, seria exequível a verdadeira Justiça – único fundamento real
de toda a sociedade. Relativamente a parte econômica a propriedade,
preconizava abertamente o comunismo libertário. (KROPOTKIN, 1964,
pg.95)
Foi a partir dessa abordagem de Kropotkin que Godwin passou a ser reconhecido
como um libertário dentro do pensamento anarquista. Kropotkin leu a obra de Godwin após
já ter formulado sua teoria, de forma a reconhecer nos escritos de Godwin as ideias que
tanto o identificam com o anarquismo. A influência de Godwin no desenvolvimento do
pensamento anarquista beira mais a uma necessidade de formalização histórica por parte de
Kropotkin que pela elaboração das ideias dos autores que influenciaram tanto a doutrina
quanto a construção do movimento dentro da Internacional. É presente em sua obra a
recusa tanto da ideia do direito divino como base de legitimação do governo ou esta pela
força; do contrato social de Locke e Rousseau como base para a organização social, além da
expressa recusa da propriedade privada, origem da desigualdade, e o caráter comum tanto
dessa como do trabalho. Godwin definia o sistema econômico como de “propriedades
acumuladas”, cunhando uma “expressão pré-marxista” do capitalismo, para Woodcock12.
Diversos historiadores anarquistas atribuem a Max Stirner (1806-1856), pseudônimo
de Johann Kaspar Schmidt, com o seu livro O Único e a Propriedade, a escola Individualista
dentro do anarquismo. Stirner, que fez parte do grupo dos Jovens Hegelianos junto com
Marx e Engels, era mais próximo a Bruno e Edgar Bauer. Porém Kropotkin rejeita em sua
obra a ideia da Associação dos Egoístas proposta por Stirner, apesar de conter uma crítica ao
Estado13, seja pelo método de exposição de Stirner que deriva da dialética de Hegel, ou pela
12
A propriedade acumulada - a expressão pré-marxista de Godwin para designar o que chamamos de capitalismo - é contrária ao enriquecimento qualitativo da vida. Ao perpetuar a desigualdade econômica, ela "esmaga a força do pensamento, transformando-a em pó; extingue as fagulhas da genialidade e reduz a grande massa da humanidade a viver mergulhada em preocupações sórdidas." (WOODCOCK, 2002, pg. 79)
13 A divulgação da obra de Stirner, que a muitos então preocupou produziu, nos meios anarquistas da época,
certa sensação; foi considerada como uma espécie de manifesto dos anarquistas individualistas. Ela é uma manifesta revolta contra o Estado e contra a nova tirania, já delineada, que seria, indubitavelmente, imposta se o comunismo autoritário vingasse na sua realização prática. (KROPOTKIN, 1964, pg. 98)
25
aversão de uma ideia que conferia o pleno desenvolvimento do individuo e não deste em
conjunto com a sociedade14.
Já deixamos dito em um capitulo anterior quanto é ultra-metafisica, e
completamente afastada dos fatos da vida real, a afirmação unilateral do
individuo; quanto ela fere os sentimentos de igualdade, base de toda a
libertação, por que não há onde alguém pretende dominar; quanto esse
conceito de individuo aproxima os que se declaram categoricamente
individualistas das minorias de nobres, padres, burgueses, funcionários, etc.
que se julgam seres superiores as massas e aos quais devemos a
organização do Estado, da Igreja, da Magistratura, da Polícia, do
Militarismo, do Imperialismo e de toda a secular opressão que sofremos. O
segundo grupo de individualistas anarquistas compreende os mutualistas
de Proudhon 15[...] (KROPOTKIN, 1964, pg.138)
É Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), tipógrafo de profissão, o inspirador do
socialismo francês, o primeiro a se declarar anarquista, defendendo uma sociedade sem
governo e usando esse nome para resigna-la. Renegou as formas do comunismo baseado na
organização de monastérios ou barracões comunistas, bem como as Oficinas Nacionais e os
planos de um socialismo de Estado proposto por Louis Blanc. Marx, depois de romper com
os Jovens Hegelianos, entrou em contato com as ideias socialistas junto a Proudhon, quando
esteve exilado na França durante o período anterior a 1848, rompendo com ele após
publicar A Miséria da Filosofia, como resposta a Filosofia da Miséria de Proudhon.
14
Afirmar que alguém possa ter o direito de oprimir toda a humanidade, se para tal tiver forçam, que os direitos do individuo são apenas limitados pelos direitos que igualmente aos outros são reconhecidos, é indubitavelmente, cair em cheio no campo da dialética. [...] impossível para nós imaginar uma sociedade na qual o contato contínuo entre os seus membros não estabeleça, como resultado, a comunidade de interesses e não torne materialmente impossível a sua atuação sem o reflexo das consequências dos atos de cada um sobre a sociedade de que fazem parte. (KROPOTKIN, 1964, pg.141)
15 O segundo grupo de individualistas anarquistas compreende os mutualistas da escola de Proudhon a quem
também já nos referimos.Pensam estes ter achado a solução do problema social em uma organização livre, voluntária, que introduzisse o sistema de permuta dos produtos avaliados estes em bônus de trabalho. Estes bônus representam o número de horas despendidas por tal individuo em funções reconhecidas de utilidade pública. Ora, na realidade este sistema deixa de ser individualista no sentido que ao termo, em rigor, cabe. Representa um compromisso entre o comunismo e o individualismo, na posse coletiva do que serve para produzir: terras, máquinas, fábricas, etc... (KROPOTKIN, 1964, pg.139)
26
Primeiro dos teóricos do movimento, seu livro O que é a propriedade? A propriedade é
um roubo inaugura o anarquismo no movimento socialista, e o primeiro dos revolucionários
a realizar uma análise filosófica da Revolução. O princípio do Federalismo que desenvolve
em seu livro Do Principio Federativo será um dos pilares sobre o qual Kropotkin desenvolverá
sua proposta de uma rede de comunas territoriais, como opção ao Estado territorial, bem
como as concepções econômicas que marcam o anarco-comunismo. É em cima das teorias
econômicas de Proudhon que Kropotkin irá desenvolver suas ideias sobre o trabalho.
Proudhon criticava acerbamente todos os planos de revolução contidos
nesses espécimes de socialismo e, tomando de Robert Owen o sistema de
bônus trabalho desenvolveu a sua concepção de Mutualismo que tornaria
inútil, a seu ver, toda a forma de governo político. (KROPOTKIN, 1964,
pg.96)
Influenciado por Robert Owen pela ideia de bônus trabalho, pode desenvolver sua
ideia de Mutualismo. O valor mutatório de todos os produtos deve ser avaliado e expresso
pela quantidade de trabalho necessária a ser empregada no processo de produção. Todas as
trocas poderiam ser efetuadas através de um Banco Nacional, que estaria habilitado a
facilitar empréstimos a associações de trabalhadores, com juros de um por cento anual para
despesas administrativas a fim de incrementar a produção, também em bônus trabalho.
Acreditava que assim conseguiria criar uma rede de artesãos, camponeses e associações de
operários em um circuito independente, em uma retirada do sistema capitalista e uma
transformação pacífica da sociedade, um “capitalismo sem lucro”, pois não haveria uma
apropriação da mais-valia pela classe burguesa, e interpretava a propriedade no sentido
limitado de posse contra as interferências do Estado. “As principais relações entre planos os
cidadãos se baseariam no livre acordo e se regulariam por uma simples contabilidade. As
disputas se resolveriam pela arbitragem.” (KROPOTKIN, 1987, pg. 25)
Chegou a criar em 31 de janeiro de 1849 o Banco do Povo, que chegou a ter 27.000
membros, porém nunca chegou a funcionar, pois logo foi acusado oficialmente por
insurreição aos poderes instituídos, e condenado a três anos de prisão. Nessa época, suas
ideia já encontravam lugar entre os russos, como Tolstoi, que pegou emprestado o nome de
uma de suas obras, “La guerre et La paix”, cujo tema central era que “a missão do século XIX
é obter o fim do militarismo”. (WOODCOCK, 2002)
27
Se suas ideias não foram colocadas totalmente em prática durante o período de sua
vida, pode-se reivindicar a Proudhon o lugar de primeiro socialista. Ao reconhecer o
proletariado como sujeito histórico da revolução, juntou-se ao movimento ajudando a
levantar as primeiras barricadas em junho de 1848, ano que se dedicou a atividades
revolucionárias. Serão os seguidores de Proudhon que estabelecem as primeiras seções da
Internacional na França, apesar de Proudhon não ter sido o organizador do movimento
anarquista. São suas ideias que lançam as bases que o pensamento anarquista usou como
pedra angular.
Será o russo Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876), descrito como
monumentalmente excêntrico16 e rebelde em todos os seus atos, talvez o que expressou
com mais vigor as paixões do anarquismo, bem como suas contradições. Filho da aristocracia
russa foi oficial júnior na Guarda Imperial Russa. Seu pai era um adepto das ideias
Iluministas, e descrevia sua mãe como uma despótica, de onde desenvolvera sua aversão à
autoridade. Se desligou do exército, e mergulhou na literatura e o estudo da filosofia,
primeiro Fichte e depois Hegel. Perdeu todos os seus bens confiscados pelo governo do Tzar
enquanto participava de movimentos revolucionários pela Europa.
Nunca possuiu uma profissão. Quando não estava preso, era empregado ou mesmo
mantido por parentes e amigos. Conheceu Marx17, quando este se encontrava exilado em
Paris e Proudhon, com o qual estabeleceu fortes laços de amizade. Dedicado totalmente a
revolução, foi condenado a morte duas vezes por governos diferentes, sendo sua sentença
atenuada para prisão perpétua. Quando preso pelo governo russo e exilado na Sibéria,
conspirou para que essa área recém-anexada ao território russo fosse declarada Estados
Unidos da Sibéria, federada com os Estados Unidos da América.
Era um pária como escritor. Enquanto outros anarquistas se esforçavam pela
propaganda e o desenvolvimento de uma crítica intelectual e científica, Bakunin realizava
16
Conforme seu amigo Vissarion Belinsky, “Um homem maravilhoso, uma natureza profunda, primitiva, leonina – isto não podemos negar dele. Mas suas exigências, a sua infantilidade, a sua fanfarronice, a sua falta de escrúpulos e a sua insinceridade – tudo isto torna a amizade com ele impossível. Amam as ideias, e não aos homens. Quer dominar com a sua personalidade, e não amar” (JOLL, 1977, pg.96)
17 Anos mais tarde escreveria Bakunin sobre Marx; “chamou-me um idealista sentimental, e tinha razão. Eu
chamei-lhe sombrio, convencido e desleal, e eu tinha razão também” (JOLL, 1977, pg.97)
28
um esforço homérico para finalizar suas cartas, e suas teorias econômicas quase sempre
derivavam de Hegel, Proudhon, Herzen e até mesmo Marx.
Homem de ação que concebeu revoltas dramáticas, estranhamente inúteis em seu
tempo. Conspirava como poucos, e laconicamente chegou atrasado as barricadas em 1848,
ano da revolução esperada. Sua personalidade, porém, era daquelas raras que inspiram pela
simples presença. Em seu instinto primal, a questão social era puramente a destruição da
sociedade, e pregou essa necessidade mais que nenhum outro anarquista de seu tempo,
apaixonadamente. A destruição leva a criação.
É na Associação Internacional dos Trabalhadores que Bakunin deixará sua marca, não
como teórico, mas como um catalisador do movimento operário anarquista. A dissolução da
Internacional dos Trabalhadores pelo governo com o fim da guerra Franco-Prussiana e a
insurreição da Comuna de Paris em 1871, com a obtenção do direito ao voto junto a
parlamento imperial pelo proletariado alemão, este passou a se organizar sob a divisa de um
partido social-democrata diferindo das táticas adotadas pelo movimento até então. Isso
provocou uma divisão dentro do movimento por parte das federações latinas. Espanha,
Itália, Bélgica formaram uma união federal independente do conselho geral da organização
de ideologia marxista. Foi dentro dessas federações que o anarquismo como movimento
ganhou corpo, além do início da histórica cisão entre os socialistas libertários e os
autoritários.
Bakunin então se tornou o opositor histórico de Marx durante a II Associação
Internacional dos Trabalhadores18, com uma posição solidamente definida contra o
autoritarismo de estado e a ditadura do proletariado se tornaria a falsa expressão da
vontade do povo, simples ditadura. Sua teoria anarquista que abrangia o campesinato como
sujeito histórico revolucionário em contrapartida ao conceito de lumpemproletariado de
Marx, onde as minorias não organizadas dentro das categorias clássicas do capital não
estariam aptas a realizar a revolução, que só poderia ser realizada sociedades industriais
com um proletariado que possuísse a consciência de classe. Isso contribuiu para que as
18
Que essa Associação não foi fundada por Karl Marx, ou qualquer outra personalidade de destaque, como nos querem fazer crer os marxistas e os cultivadores de heróis, é um fato mais que provado. Ela foi obra do encontro fortuito que ocorreria em 1862 em Londres, entre operários franceses, vindos para visitar a Segunda Exposição Universal, com os representantes das corporações inglesas de ofícios (Trade Unions), aos quais se agregaram alguns radicais ingleses para receberem aquela delegação. (KROPOTKIN, 1964, pg.100)
29
ideias anarquistas penetrassem nos países de língua latina, como Itália e Espanha, países
onde a população se relacionava com a produção agrária em seu contingente populacional,
ainda mais se confrontados aos níveis de desenvolvimento das forças produtivas na
Alemanha.
A Guerra Civil Espanhola em 1936 leva esse acerto de contas conceitual do movimento
socialista em um encontro atemporal através da práxis mais perigosa. Sua mais alta
formulação teórica e sua maior força de ruptura estão em simplesmente ter existido, com
suas milícias e brigadas internacionais, formados por campesinos, socialistas, e anarquistas,
na ultima revolução que levou o proletariado internacional as barricadas.
Contraditório, Bakunin manifestava em sua obra um antissemitismo em suas análises
econômicas sobre a formação e acumulação de capital e sua tributação na forma de juros,
responsabilizando os judeus que se utilizariam do organismo estatal para orquestração de
tal empreendimento. Ele se perde nas particularidades da forma mercadoria quando se
utiliza da psicologia étnica, a qual o espírito pangermânico e sua orientação estatal eram
atribuídos ao sangue e ao instinto alemão, e não a uma crítica as particularidades do
desenvolvimento histórico da Alemanha e sua posterior crença no Estado Absolutista.
Essa consanguinidade leva Bakunin a procurar o contra - polo anti - estatista nas
regiões de seu país natal. Os eslavos levados por paixões contrárias a dos alemães não
propiciavam a criação de um Estado entre si, e procurando sua reprodução sempre fora
deste, criando uma polarização eslava-pangermânica entre anti-estatismo e estatismo.
“Como coroação deste constructo não conceitual, em Bakunin estatalidade, pangermanismo
e “dominação judaica” fundem-se num complexo global; alemães e judeus são designados
de uma assentada como imagem do inimigo.” (KURZ, 2011)
Época em que vigorava a política dos pogrom na Rússia, Bakunin reproduz o discurso
do nacionalismo absolutista, prega a barbárie da raça corrompida pela consanguinidade, se
aproximando ideologicamente daquele darwinismo evolucionista que os geógrafos
anarquistas posteriormente tanto combateram, a naturalização do elemento geográfico
como identitário e suas classificações biológicas determinantes no caráter da humanidade.
Os comentários de Kropotkin sobre Bakunin em suas obras se dirigem ao desempenho
e a luta de Bakunin na Internacional contra o socialismo autoritário e sua recusa radical do
Estado, de importância crítica no tencionamento junto a imobilidade do elemento
30
modernizador no pensamento marxista em relação ao Estado. Sua influência sobre
Kropotkin se manifestará pela recusa determinante total do Estado e o combate contra o
socialismo-autoritário no seio da Internacional, mais que pelas suas ideias de organização
política e econômica.
O Coletivismo19 que Bakunin propunha estava alicerçado nas associações de
trabalhadores independentes de Proudhon, porém o trabalho a ser gerenciado se dava a
“cada um de acordo ao seu trabalho”. Se a Bakunin a critica da mercadoria se faz ausente
mais que a todos os outros anarquistas, essa proposta se firma pelo mais burguês dos
conceitos; o equivalente da mercadoria força-trabalho, como nexo de sociabilização.
Tanto a ideia de uma associação de trabalhadores livres de Proudhon, quando a
coletivização dos meios de produção por grupos de trabalhadores proposta por Bakunin, e a
socialização e livre distribuição dos produtos de trabalho do anarco –comunismo de
Kropotkin (o qual é dedicado um capítulo a seguir) reduzem a alternativa ao capitalismo a
relações de vontade imediatamente empíricas e simples, com cooperativas e comunidades
de democracia de base onde seus limites estariam livres da dominação de acordo com
decisões comuns. Vale refletir a relação entre as cooperativas e as comunidades de base,
conforme Robert Kurz:
Marx expressa-se sobre isso em A guerra civil em França apenas de modo
breve e significativamente vago no que respeita à determinação do
conceito: “Ora aqueles membros das classes dominantes que são
suficientemente inteligentes para perceber a impossibilidade de continuar
o sistema presente – e são muitos – tornaram-se os apóstolos, importunos
e de voz cheia, da produção cooperativa. Mas se a produção cooperativa
não permanecer uma fraude e uma armadilha, se substituir o sistema
capitalista, se a totalidade das cooperativas regular a produção nacional
segundo um plano comum, tomando-a assim sob o seu próprio controle e
19
Quanto as suas ideias econômicas, Bakunin se dizia, junto com os seus camaradas federalistas das Internacional, “anarquista coletivista”; não como foram Vidal e Becqueur nos anos 40, os seus modernos seguidores social-democratas, mas como defesa de um estado de coisas em que todos os meios de produção fossem propriedade comum de grupos de trabalho e das comunas livres, e em que o sistema de retribuição de trabalho, comunista ou de outro gênero, fosse estabelecido por cada grupo. A revolução social, cuja proximidade prediziam então todos os socialistas, seria o meio de dar vida as novas condições. (KROPOTKIN, 1987, pg.28)
31
pondo termo à anarquia constante e às convulsões periódicas que são a
fatalidade da produção capitalista – que seria isto, senhores, senão
comunismo, o comunismo ‘possível’?” (KURZ, 2011)
Na produção baseada em cooperativas, tanto Marx quanto os autores anarquistas,
reduzem a questão da produção de mercadorias e das organizações operárias em seu
enfoque sociológico baseado em uma vontade empírica dos sujeitos. As cooperativas
continuam se relacionando através do mercado mediante a produção de mercadorias
juntamente ao seu duplo valor de uso e valor de troca. E mesmo sem um Estado em sua
totalidade e como regulador e organizador da divisão do trabalho territorial, as cooperativas
não podem permanecer isoladas no seu processo de produção, sendo que o fetiche da
mercadoria como mediação continua presente nessa relação.
O planejamento ou planificação da produção pressupõe uma centralização da
organização das cooperativas, um atributo pertencente ao próprio Estado (que apoiou o
sistema de cooperativas no século XX no ocidente tanto no campo quanto na cidade, bem o
socialismo real soviético). Na perspectiva liberal clássica, se essas cooperativas se auto
regulassem, ainda estaria presente a “mão invisível do mercado” como mecanismo de
regulação, que exigiria um correspondente de forma política e jurídica para além das
expressões empíricas de vontade. Dessa forma:
Assim como os dois polos de um campo magnético ou de uma bateria
elétrica não se excluem apenas, mas também se condicionam
reciprocamente e são, por conseguinte, complementares, assim também
ocorre com as posições antípodas da modernização. O mercado e o Estado,
o dinheiro e o poder, a economia e a política, o capitalismo e o socialismo
não são, na verdade, alternativas, mas constituem os dois polos de um
mesmo "campo" histórico da modernidade. O mesmo vale para o capital e
o trabalho. Não importa quão inimigos sejam os dois polos, eles não
poderão, por sua natureza, existir exclusivamente para si enquanto existir o
"campo" histórico, que os constitui na sua oposição. Esse "campo",
considerado na sua totalidade, é o moderno sistema produtor de
mercadorias, a forma da mercadoria totalizada, a transformação incessante
do trabalho abstrato em dinheiro e, com isso, na forma de um processo, a
"valorização" ou a economicização abstrata do mundo. (KURZ, 1994)
32
Se na Revolução Francesa o reconhecimento da mercadoria força de trabalho como
sujeito jurídico burguês é herança para o Ocidente, no socialismo real da União Soviética a
estatalidade moderna aparece naturalmente como forma geral do “socialismo”. A
positivação do sujeito reduzido à esfera política em uma crítica sociológica esvaziada da
crítica categorial, não oferece uma reflexão sobre a relação dialética das categorias da
modernidade.
A organização social fundamentada na produção de mercadorias para sua reprodução
ainda está sujeita ao duplo valor de troca e valor de uso da mercadoria. Se há mercado,
deverá haver um organizador dessas relações em algum nível jurídico tanto para a produção
como para circulação e consumo das mercadorias. O mercado necessita de sua esfera
jurídica Não há mercado sem Estado, o mesmo vale para o contrário. Ao Bakunin propor a
constituição de uma federação que congregasse a Rússia e o já federado Estados Unidos da
América, “Marx anota certeiramente: ‘Este local é muito característico de Bakunin, o Estado
capitalista autêntico para ele é antigovernamental. ’” (KURZ, 2011).
A proposta de comunas territoriais federadas com sua produção organizada em
cooperativas, ainda estaria sujeita ao espectro do Leviatã?
33
1.3 Пётр Алексе́евич Кропо́тки
(Piotr Alexeyevich Kropotkin)
Sonhar o sonho impossível, sofrer a angústia implacável,
pisar onde os bravos não ousam, reparar o mal irreparável,
Amar um amor casto à distância, enfrentar o inimigo invencível,
tentar quando as forças se esvaem, alcançar a estrela inatingível:
essa é a minha busca.
Dom Quixote, Miguel de Cervantes
Kropotkin. Ao lado de Humboldt, talvez seja o geógrafo mais citado por não geógrafos.
Junto a Stirner, Proudhon e Bakunin foi um dos principais pensadores do movimento
anarquista. A ele é creditada, dentro da teoria anarquista, a corrente conhecida como
anarco-comunismo. Amigo de Willian Morris e Oscar Wilde, citado por autores dos mais
diversos, como Emile Zola, Leon Tolstoi, George Woodcock, Noam Chomsky, Hebert Read,
Paul Fayerabend, entre tantos outros (VISENTINI, 2009, pg.172). A influência de suas ideias
ecoa em diversas correntes do pensamento contemporâneo, como na ecologia urbana de
Lewis Mumford e Paul Goodman, na visão bioregional de Kirkpatrick Sale, na ecologia social
de Murray Bookchin, e os pós-estruturalistas como Michel Foucault e Gilles Deleuze,
atraídos particularmente pela crítica de Kropotkin ao estado, a representação e a vanguarda
partidária. (MORRIS, 2010, pg.5) A banda de Punk Delta Blues de Maurenn Tucker, baterista
da imortal banda de Lou Reed, The Velvet Underground, o homenageia levando seu nome
“The Kropotkins”, realizando uma fusão de sons como rock, folk, country e pop com o blues
do Delta do Mississipi de fundo. Este capítulo se propõe a apresentar a figura de Piotr
Kropotkin, um nobre russo militar da antiga casa de Rurik, que se tornou um dos mais
conhecidos revolucionários e um teórico do movimento anarquista de seu tempo. Uma
pequena imersão na biografia de sua vida, seu envolvimento com o anarquismo essa
doutrina revolucionária oferecia de combustível às suas ideias científicas.
Se antes anarquistas como Godwin, Déjacque, Stirner e Proudhon oscilavam entre uma
forma de filosofia política e econômica, na segunda metade do sec. XIX, com a expansão do
Imperialismo pelo globo e a disputa de recursos para a indústria, bem como o
aprofundamento de uma divisão territorial do trabalho mundial, diversos anarquistas
34
optaram pela geografia, como Léon Metchnikoff, Mikhail Dragomanov, Gustave Lefrançais
ou Charles Perron.
Críticos do Darwinismo social, sua proposta teórica é diametralmente oposta a
produção contemporânea de geógrafos universitários como Ratzel, Richtofen, Kjellén e
Haushofer, adeptos da eterna luta de todos contra todos. Como uma rede, sua produção
científica se realiza coletivamente. A teoria da Ajuda Mútua que ficou famosa através de
Kropotkin foi inicialmente abordada em um artigo por Metchnikoff e compartilhada por
Reclus, antes da sistematização da teoria ser feita por parte de Piotr.
A sujeição ao trabalho é uma constante na biografia de Kropotkin. Depois de partir da
Rússia como fugitivo da Fortaleza de Pedro e Paulo, e sob a condição de imigrante ilegal na
Inglaterra, inicia suas publicações de caráter científico sob o nome falso de “Sr. Levachov”. A
Nature fora uma das primeiras revistas em que conseguira publicar, e onde se tornou amigo
do geógrafo John Scott Keltie. Kropotkin só revelou sua identidade a Keltie quando este deu
a Kropotkin obras sobre o período glacial e a orografia da Ásia em russo de autoria do
próprio Kropotkin, que frente ao dilema de criticar as próprias obras, revela sua identidade.
Foram publicados seus estudos sobre Geologia e Glaciologia tanto pela Sociedade
Geográfica Russa como a Britânica, e durante os quarenta anos em que viveu no exílio
contribuiu para publicações como The Nineteenth Century, Les Temps Nouveaux, The Times,
Nature, Geographical Journal, entre outros, bem como sua colaboração com a Sociedade
Geográfica Real de Londres, onde travara diversos debates com Mackinder.
Infância e juventude
Piotr Ayexeyevich Kropotkin. Esse homem a quem Oscar Wilde se referia como “... um
homem com a alma daquele Cristo branco que parece que virá da Rússia” (JOOL, 1977, pg.
188) nasceu em 1842, no antigo Bairro dos Escudeiros – a Staraïa Koniuchumaia – o qual
passou seus primeiros quinze anos. Esse bairro fora ocupado pela velha nobreza moscovita,
após Pedro Grande, considerado por Kropotkin o fundador do Estado Russo (KROPOTKIN,
1946, pg.20) chamar “homens de todas as condições” para ocuparem os cargos a serviço do
Estado. Dessa maneira, a nobreza perde cada vez mais espaço no que tange ao serviço
público, se dedicando então em sua maioria ao serviço militar, tal como o pai de Kropotkin,
35
Alexei Petrovich Kropotkin. Este descendia da antiga família aristocrata dos Rurik, dinastia
que governara a Rússia antes dos Romanov. Seus antepassados haviam sido príncipes do
principado de Smolensk, o que lhes garantiam cargos importantes no estado e no exército, já
que a carreira militar era praticamente uma imposição aos filhos da nobreza, garantia de
manutenção do status social.
Kropotkin descreve seu pai como um típico oficial dos tempos de Nicolau I. Nunca
participara de uma batalha e não tinha nenhum gosto pela vida no campo. Era um amante
do uniforme, desdenhava qualquer outra maneira de se vestir e era o oficial que exibia na
parada homens tão perfeitamente enfileirados e imóveis que pareciam soldados de chumbo.
Sua mãe, Ekaterina Nikolaevna Sulima, filha de um general russo, marcou a personalidade de
Kropotkin profundamente.
Ao contrário de seu pai, sua mãe nutria gosto pelas artes. Anos depois de sua morte,
Kropotkin encontrou seu diário, onde ela escrevia sobre seus desgostos e sua sede de
felicidade e copiava poesias proibidas pela censura como do poeta Ryleiev, possuindo
cadernos contendo músicas, dramas franceses. Era leitora de Lamartine e de Byron, muito
amada pelos criados. Após sua morte, são estes que cercam de cuidados as crianças órfãs.
Esse episódio marcaria a vida de Kropotkin com uma grande dedicação com a condição dos
servos e camponeses russos, apesar de sua origem nobre: “Não sei o que teria sido de nós,
senão tivéssemos encontrado em casa, entre os criados a atmosfera de amor de que as
crianças tanto necessitam” (KROPOTKIN, 1946, pg.28). Após o falecimento da mãe, as
crianças ficaram aos cuidados da governanta alemã madame Burman. O carinho com que os
servos trataram Kropotkin e seu irmão será um dos fatores decisivos que influenciará
Kropotkin nos caminhos da revolução.
Dois anos após a morte de sua mãe, seu pai se casa novamente. Sua madrasta
procurava apagar a presença da mãe de Kropotkin na família, assim, eles passariam a morar
em diversas casas no mesmo bairro antes de se fixarem em um novo lar. Seu pai contratou
para sua educação e de seu irmão um preceptor francês, chamado Mr. Poulain, bem como
um jovem estudante de Direito chamado Nicolau Pavlovich Smirnov como professor de
russo.
Aos oito anos seu destino é decidido por um mero acaso. Em um baile organizado em
Moscou para a comemoração do 25º aniversário da coroação do Tzar Nicolau I, onde as
36
famílias nobres estariam presentes, Kropotkin substituíra o filho de uma amiga de sua
falecida mãe que se adoentara ás vésperas de um baile à fantasia. Assim, o pequeno infante
vestido de príncipe persa, se perde em meio aos movimentos e danças, se encontrando com
o Tzar Nicolau I, conquistando sua simpatia. Com o final do baile, Nicolau I ordena que o
menino seja enviando para o Corpo de Pajens, a mais exclusiva escola militar da Rússia
Tzarista onde os assistentes pessoais da família imperial eram escolhidos. (WOODCOCK,
1978, pg.165)
O Corpo de Pajens era uma escola de duplo caráter de escola militar com prerrogativas
especiais e de instituição da Corte, ligada a Casa Imperial. Após a permanência de quatro ou
cinco anos, após os exames finais os alunos eram recebidos como oficiais de um Regimento
da Guarda ou de qualquer outro do Exército, de acordo com sua escolha, houvesse vaga ou
não, além dos dezesseis melhores alunos serem nomeados “Pajens da Câmera”, a serviço
especial de diversos membros da família imperial como o Imperador e a Imperatriz, os Grão
Duques e as Grã Duquesas, sendo considerado um serviço de grande honra. Os rapazes
nessa posição eram posteriormente nomeados “Ajudantes de Campo” com todas as
facilidades para uma brilhante carreira no Estado (KROPOTKIN, 1946, pg.79).
Ao ingressar na escola 1857, Kropotkin fora influenciado pelo espírito de reforma
presente então no início do reinado de Alexandre II, pelo crescente questionamento da
cerrada disciplina pelos alunos, e pelas reformas pedagógicas ocorridas com a entrada de
novos professores na instituição. Possuindo um verdadeiro prazer nos estudos, nessa fase
ele começa a desenvolver um crescente interesse em Geografia, inicialmente despertado
pela leitura dos livros de seu preceptor, Mr. Poulain.
Matemática, física e astronomia - posteriormente economia – são suas principais áreas
de interesse. Correspondia-se por carta com seu irmão Alexandre, pelo qual nutria um
grande amor, onde os dois discutiam e compartilhavam a experiência das mais variadas
leituras. Autores como Kant, Turguniev, Volteire, Michelet, e Goethe estavam em voga na
conversa dos irmãos. Por influência de Alexandre, propusera-se a aprender a língua alemã, e
começou a travar contato com diversas obras que teriam um impacto crucial em sua
formação:
“No fim do inverno pedi a Herr Becker que me emprestasse um exemplar
do “Fausto” de Goethe, que eu já havia lido numa tradução russa. Lera
37
também o belo romance de Turguenev, “Fausto” e desejava muito ler a
obra prima de Goethe no original. “Não vai compreender nada, é muito
filosófico”, disse-me Becker, sorrindo com bondade; mas apesar disso
trouxe-me um livro pequeno, quadrado, de páginas amarelecidas pelo
tempo e que continha o drama imortal. Não soube que alegria aquele
livrinho me proporcionou. Absorvi o sentido e a música de cada linha,
desde os primeiros versos da dedicatória de uma beleza ideal e não tardei
em aprender de cor páginas inteiras. O monólogo de Fausto na floresta e
especialmente os versos em que fala da sua concepção da natureza; “Tu me
ofereceste a Natureza e a puseste sob a minha mão fazendo-me sentir o
quanto era bela. Tu me disseste: “não fiques diante dela apenas friamente
exaltado, mas contempla o seu âmago como se fosse o coração de um
amigo,” encheram-me de entusiasmo e esse trecho conserva ainda hoje
todo o seu poder sobre mim.” (KROPOTKIN, 1946. p. 92-93)
Seu fascínio pela natureza o leva a desenvolver um grande interesse pelas ciências
naturais, bem como as diversas descobertas científicas divulgadas em sua época de
estudante, então, recentemente traduzidas para o idioma russo:
“Como se sabe, os anos de 1859 a 1861 assinalaram-se por um
desenvolvimento especial do gosto pelas ciências exatas: Grove, Clausius,
Joule e Seguin acabavam de demonstrar o calor e todas as forças físicas são
apenas formas diferentes do movimento: Helmholtz começava já nessa
época as suas célebres pesquisas sobre o som; e Tyndall, nas suas
conferências populares, tornava palpáveis, por assim dizer, os átomos e as
moléculas. Gerhardt e Avogrado apresentavam a Teoria das Substituições e
Mendeleiev, Lothar Meyer e Newlands descobriram as leis periódicas dos
elementos; Darwin, com sua Origem das Espécies, revolucionava todas as
ciências biológicas ao passo que Karl Vogt e Moleschott, seguindo as
pegadas de Claude Bernard, fixavam os fundamentos da psicofísica. Foi uma
grande época de renascimento científico e a corrente que dirigia os
espíritos para as ciências naturais tornou-se irresistível. Nessa época foram
traduzidos para o russo inúmeros livros excelentes e em breve compreendi
que quaisquer que sejam os estudos ulteriores, um homem precisa, antes
de tudo, conhecer a fundo as ciências naturais e familiarizar-se com seu
método” (KROPOTKIN, 1946, pg.119)
38
Essa paixão pelas ciências norteia seu olhar durante sua vida, refletindo até mesmo em
seus escritos anarquistas. Posteriormente adota o positivismo, método por excelência das
ciências naturais, como o método do anarquismo. Futuramente elabora a teoria da Ajuda
Mútua,baseada na teoria do Apoio Mútuo, onde para a evolução das espécies a cooperação
entre seus membros seria o fator decisivo para sobrevivência, em contrapartida a teoria da
competição de Darwin.
Em meados de 1862, a conclusão de seus estudos no Corpo de Pajens estava próxima
do fim, e cada aluno deveria indicar para qual regimento da guarda desejariam ingressar. Em
suas reflexões, sua predileção por ciências da natureza o leva a se decidir pela Sibéria,
momento decisivo para sua futura incursão na Geografia. Inicialmente, Kropotkin enfrenta a
resistência não só de seu pai, que telegrafa ao diretor do instituto se opondo a decisão do
filho, mas de professores e colegas. É então que, mais uma vez, outro acaso decisivo se faz
presente em sua vida.
Um terrível incêndio irrompe em uma praça da cidade, Apraxine Dvor, local de uma
imensa feira formada por barracas que vendiam toda sorte de objetos, e se espalha pela
cidade. Diante da incapacidade das autoridades de se organizarem para o combate das
chamas, o povo se organiza para combatê-las e dessa forma, os próprios cadetes passam a
defender o Corpo de Pajens e os arredores das chamas. Kropotkin lidera uma brigada de
soldados que lhe é confiada pelo Conde Suvorov em meio ao caos, e estes conseguem
controlar o incêndio nessa área. No dia seguinte, o Grão Duque Miguel, ao felicitar Kropotkin
pela sua atuação durante a crise, se oferece para escrever uma carta de recomendação ao
governador da província de Amur para que ele seja aceito. Dessa forma, fica decidida sua ida
para a Sibéria. Essas expedições que Kropotkin realizaria e que seriam decisivas na sua
decisão em se tornar um geógrafo se compõe na inserção do sujeito no processo de
modernização do Império Russo.
Explorador, geógrafo... Anarquista
Kropotkin chega à província do Amur no verão de 1863 - um ano após ter chego a
Sibéria Oriental, onde se tornou ajudante de campo particular do Chefe de Estado Maior B.
K. Kukel, - indo para uma viagem a região do Amur, na Sibéria.
39
É lá que Kropotkin realizaria diversas expedições, sendo que a sua primeira expedição
não possuiu um caráter científico, mas uma expedição que possuía o caráter de organização
e ocupação territorial de uma porção desse território recém-anexado pela Rússia graças ao
Conde Nicolau Muraviev20, então Governador Geral da Sibéria Oriental. A Rússia passava na
época por uma política imperialista de anexação de diversos territórios a fim de expandir
suas fronteiras políticas, já que seu processo civilizatório não se qualifica pela conquista de
territórios ultra-mar, mas na conquista da plataforma continental da Eurásia dentro da
particularidade de seu processo de modernização.
É verdade que o Império dos czares fazia parte das potências europeias
tradicionais e tinha ele próprio roubado um império colonial para si,
embora não no Ultramar, mas como expansão para a massa continental da
Eurásia. Mas, ao mesmo tempo, a Rússia era ela mesma também periferia,
sem uma base industrial própria e, em muitos aspectos, estava em larga
medida estruturalmente aparentada com as regiões coloniais e
dependentes. (KURZ, 2003)
Concebendo um plano de ocupação territorial contemplando a região banhada pelo
Rio Amur e de seu afluente Usuri, compreendendo uma área de mais de 4.000 quilômetros,
compondo uma cadeia de cidades russas, com o objetivo de assegurar um canal de
comunicação entre a Sibéria e a costa do Pacifico bem como a posse territorial do Império
Russo, o Conde Muraviev liberta tanto os presos forçados quanto os escravos das minas
imperiais. Mais de mil homens condenados por roubo e assassinato, bem como mulheres
nas mesmas condições, são levados a colonizar a área devido à população insuficiente da
Sibéria Oriental. Todos se estabelecem como homens livres na parte inferior do Amur.
Para abastecer essa população, é necessário o envio de diversos viveres como grandes
quantidades de sal, farinha e carne em conserva, contando apenas com os rios como meio
de transporte. Dessa forma Kropotkin é designado adjunto chefe da flotilha de cento e
cinquenta barcos enviados para abastecer a região de difícil acesso.
20
Um homem de ideias avançadas descreve Kropotkin, que comenta: “No seu próprio gabinete, os jovens Oficiais e o exilado Bakunin (que fugiu da Sibéria no outono de 1861) discutiam as probabilidades que se tinha de poder criar os Estados Unidos da Sibéria, federados através do Pacífico, com os Estados Unidos da América.” (KROPOTKIN, 1946, pg. 168)
40
Somente aqueles que já viram o Amur ou os que conhecem o Mississipi
podem imaginar que rio gigantesco se torna o primeiro depois de ter
recebido o Sungari, e as vagas imensas que sobem o seu curso, nos dias de
tempestade. Em julho, quando caem as chuvas devidas às monções, o
Sungari, o Usuri e Amur recebem quantidades inimagináveis de água.
Milhares de ilhas baixas geralmente cobertas de salgueiros, são inundadas
ou varridas pela correnteza. A largura do rio atinge em certos pontos oito
quilômetros. As águas formam centenas de braços e de lagos que se
enfileiram nas depressões ao longo do leito principal e quando o vento
sopra de leste ao encontro da corrente, erguem-se vagas imensas, mais
altas do que as que agitam o estuário de São Lourenço, e sobem a corrente
principal, bem como os canais laterais. É pior ainda quando um tufão, vindo
da China, se abate sobre a região do Amur. Fomos testemunhas de um
desses tufões. (KROPOTKIN, 1946, p.187)
Durante uma dessas tempestades, cerca de quarenta e cinco embarcações de
cinquenta toneladas são inutilizadas, sendo salva apenas uma pequena quantidade da carga.
Inicia-se uma difícil viagem para que Kropotkin conseguisse informar as autoridades a tempo
de enviar mais viveres antes que a navegação do Amur fosse interrompida durante o
inverno.
Após viajar uma distancia de oitocentas léguas em vinte dias, contando com barcos
tanto a vapor como á remo, se tratando de uma região caudalosa, bem como a cavalo,
chegou a Tchita, onde o governador da Transbaicália tratou de enviar os viveres necessários
a tempo, enviando Kropotkin a São Petersburgo a fim de informar o ocorrido. Chegando a
São Petersburgo, contou com a ajuda do Ministro da Guerra, Dmitri Milutine, que o conhecia
de sua estada no Corpo de Pajens do Imperador, para atribuir o juízo da veracidade da
informação, já que ninguém acreditava na história de tão jovem oficial. Após o ocorrido, fora
nomeado adido do Governador Geral da Sibéria Oriental para negócios dos Cossacos.
Aceitou uma proposta de empreender uma exploração geográfica com fins de estabelecer
uma rota comercial na região da Manchúria, onde sua missão era realizar o levantamento
cartográfico da antiga estrada que ligaria a região de Transbaicália com a do Amur.
A Transbaicália é muito rica em gado, e os Cossacos da região sudeste, que
são grandes criadores, queriam estabelecer comunicações diretas com a
41
região central do Amur, que seria um ótimo mercado para seus rebanhos.
Faziam comércio com os mongóis, e tinham ouvido dizer que não seria
difícil atingir o Amur, dirigindo-se a leste, através do Grande Khingan.
Tinham-lhes dito que andando sempre em linhas retas na direção do leste
sairiam numa velha estrada chinesa, que atravessava o Khingan e conduz a
cidade mandchuriana de Merghen, sobre o Nonni, tributário do Sungari, de
onde uma excelente estrada leva ao médio Amur. (KROPOTKIN, 1946,
pg.194)
Devido ao tratado sino-russo, não era permitido a presença de um oficial militar nessa
região, sendo preparada uma expedição geográfica transvestida de comercial, aonde
Kropotkin iria disfarçado de comerciante. Sua caravana era composta por onze Cossacos e
um Tunguse, levando quarenta cavalos e duas carruagens com tecidos, veludos de algodão,
galão dourado e outros artigos para serem comercializados.
Soldados chineses lhes fizeram companhia logo no início da viagem, o que lhe
dificultou os primeiros levantamentos de dados. “Tive portanto de contentar-me muitas
vezes com um rápido olhar à bússola, anotando as altitudes e distância no meu bolso”.
(KROPOTKIN, 1946. p. 198). Após quatro dias do início da viagem, chegaram a velha estrada
chinesa que os conduziria a Merghen, através do Khingan. Foram acompanhados por um
velho funcionário chinês que realizava a mesma travessia, que para surpresa da expedição se
revelou das mais fáceis.
Com grande espanto nosso, verificamos que essa travessia da cadeia de
montanhas, que parecia tão sombria e horrível, era na realidade das mais
fáceis. Encontramos na estrada um velho funcionário chinês com uma cara
de fazer pena. Viajava na mesma direção que nós, numa carruagem de duas
rodas. Durante os dois últimos dias, a estrada subia muito, e a própria
região atestava a sua grande altitude. O terreno era pantanoso, a estrada
lamacenta, o pasto miserável e as árvores escassas, secas e cobertas de
líquens. Montanhas, sem vegetação, elevavam-se de ambos os lados; e já
imaginávamos as dificuldades que teríamos ao atravessar a cordilheira,
quando vimos o velho funcionário chinês descer da carruagem, diante de
um “obo”, isto é, um monte de pedras e de ramos de árvores às quais se
prendiam mechas de crina de cavalo e pedaços de estopa. O velho arrancou
alguns pelos da crina do seu cavalo e amarrou-os aos ramos.
42
- Que é isso? Perguntamos.
- O “obo”. As águas, a partir daqui correm para o Amur.
- Estamos então no fim do Khingan?
- Sim. Daqui ao Amur não há mais montanhas a atravessar; apenas colinas!
(KROPOTKIN, 1946, pg.199)
A segunda parte da viagem transcorreu de forma tranquila. Abandonaram o velho
funcionário chinês que estava suspeitando da veracidade dos documentos bem como do
caráter comercial da expedição, e que queria enviar um relatório para o governo chinês.
Seguiram para a Manchúria. Poucos dias depois chegaram a Merghen, e venderam suas
mercadorias. No final da jornada, haviam descoberto a configuração da cadeia marginal do
Khinghan, a facilidade de sua travessia e os vulcões terciários da região de Uiun Kholdontsi,
entre outras coisas. (KROPOTKIN, 1946, pg. 202)
Após alguns meses, Kropotkin inicia outra expedição com objetivo de explorar o rio
Sungari, maior afluente do Amur, localizado em território chinês. A expedição fora
organizada sob o pretexto de levar uma mensagem para o Governador Geral da província de
Ghirine, envolvendo o mapeamento do rio Sugari e assegurar se o trajeto do mesmo era
navegável, para futuras trocas comerciais. O pequeno vapor de nome “Usuri” levava um
médico, um astrônomo, dois topógrafos bem como Kropotkin sob o comando do Coronel
Tchernyaiev. O vapor rebocava um barco carregado de carvão o qual transportava vinte e
cinco rifles dissimulados em sua carga.
Enfrentando poucos problemas, e apesar do pouco contato com os chineses, chegaram
com sucesso a Ghirine, onde entregaram a mensagem. Constataram a navegabilidade do rio,
bem como erigiram sua cartografia. Ao fim da expedição, Kropotkin e o astrônomo Usoltzev
publicaram um relatório nas “Memórias” da Sociedade Geográfica Russa, que infelizmente
se perdeu em meio a um grande incêndio em Irkutsk junto ao mapa original do Sungari.
Somente trinta e cinco anos depois, com a construção da estrada de ferro da Mandchúria
que os geógrafos russos reencontraram esse material. (KROPOTKIN, 1946)
Durante sua estadia na região do Amur, ele participaria de mais duas expedições. A
expedição do Sayan Ocidental realizada em 1865 permitiu a uma melhor compreensão da
estrutura das altas terras siberianas, além de descobrir uma região vulcânica na fronteira
com a China. No ano seguinte, empreendeu uma longa viagem a procura de uma
43
comunicação direta com as minas de ouro da província de Yakutsk e a Transbaicália. Munido
de um mapa que um turguesa traçara sobre um pedaço de cortiça, Kropotkin, um topografo
e um naturalista chamado Palakov iniciaram suas buscas. Após incluírem na equipe um velho
caçador akute, atravessaram a região montanhosa e após três meses, encontraram a
passagem que levava a Tchita.
Com a insurreição dos deportados poloneses, durante a Revolta de Janeiro na Polônia,
bem como a violência empregada contra estes pelo Estado durante e após o término do
conflito, em 1866 Kropotkin e seu irmão Alexandre decidem abandonar o exército.
Em 1867 Kropotkin retorna a São Petersburgo, ingressando no curso de matemática da
Faculdade de Ciências Físicas e Matemáticas, onde se dedicaria durante os próximos cinco
anos. Possuindo uma sólida base em matemática, dispensa uma parte de seu tempo para o
estudo da geografia. Kropotkin passa então a trabalhar na seção de geografia física, na
Sociedade Geográfica Russa, na qualidade de secretário da seção, onde idealiza vários
projetos.
Um de seus planos era publicar um estudo sobre a Ásia setentrional, expondo as ideias
que tivera durante suas explorações em como se davam as cadeias de montanhas dessa
parte do globo, questionando as teorias de Humboldt. Porém, devido sua prisão em 1873
não consegue terminar esse projeto, que acaba se resumindo a um mapa e um sumário
publicados pela Sociedade Geográfica Russa.
Intenta também publicar uma obra onde descreveria a estrutura física da Rússia, bem
como as características econômicas das diversas regiões segundo o método de Ritter,
quando se encontrava em uma exploração na Finlândia e Suíça para o estudo dos depósitos
glaciais, quando no outono de 1871, recebe um telegrama pedindo que assumisse o cargo
de secretário da Sociedade Geográfica Russa. “Meus sonhos estavam realizados”, escreveria
ele em sua biografia.
Assim, passados os anos na Sibéria, já ativo membro da Sociedade Geográfica, na
solidão da Finlândia, Kropotkin passava por muitas reflexões. Seria esse o momento da
ruptura entre o cientista e o revolucionário? Difícil dizer. Mas os primeiros passos de uma
vida dedicada a causa revolucionária é dada. Apesar do sucesso da expedição, que constituiu
44
um grande material publicado com o título “Pesquisas sobre o Período Glacial”21 pelas
“Memórias” da Sociedade Geográfica, além de compor junto ao seu companheiro de
expedição, o geólogo Friedrich Schmidt, um conceito de dinâmica do manto do gelo, onde a
erosão e as marcas nas rochas de granito só poderiam ter sido causadas pela ação de uma
enorme massa de gelo que se entendia sobre a terra movimentando-se lentamente e
exercendo uma grande pressão, deixando ranhuras nas rochas de gelo por onde a massa
glacial passava (IVANOVA, 2008 p. 127), porém, outras inquietações tomavam de assalto seu
espírito:
Vendo quanto esforço dispende o camponês da Finlândia para lavrar a terra
e quebrar os duros torrões de barro, pensava: “Provavelmente acabarei
descrevendo a geografia física desta parte da Rússia, e indicarei ao
camponês a melhor maneira de cultivar o solo. Aqui, um extirpador
americano seria inestimável; ali certos processos de adubação seriam
indicados pela ciência.” Mas de que vale falar a esse camponês em
máquinas americanas, quando ele tem apenas o pão indispensável para
vegetar de uma colheita a outra, quando a renda que tem de pagar por essa
terra argilosa se torna mais elevada à medida que ele melhora o solo? Rói a
sua broa de farinha de centeio, dura como pedra, que é feita duas vezes por
ano. Com esse pão come um pedaço de bacalhau horrivelmente salgado e
bebe leite desnatado. Como me atreveria eu a lhe falar em máquinas
americanas, quando tudo o que ele pode produzir tem de vender para
pagar o aluguel da terra e os impostos? O que é preciso é que eu viva com
ele, para ajudá-lo a tornar-se o proprietário ou o possuidor livre desta terra.
Só então poderá ler os livros com proveito; mas agora é inútil. (KROPOTKIN,
1946, p. 227-229)
E recusa o cargo de secretário da Sociedade Geográfica Russa, bem como a
oportunidade de se tornar “oficialmente” um geógrafo. Como um jovem nobre russo de
educação ilustrada que crescera cercado pelos servos de seu pai, ansiava por reformas
liberais as quais o Império Russo sempre se negou a fazer. E tal como Bakunin se lançaria em
uma jornada rumo ao movimento revolucionário.
21
“Researches on the Glacial Period.” tradução livre do autor.
45
Ainda no ano de 1871, retorna a São Petersburgo, e como muitos jovens russos dessa
época procura se engajar em um plano para a constituição de escolas para os servos recém
libertos. Devido a repressão das autoridades russas que consideravam suspeitas tais escolas,
decide realizar sua primeira viagem a Europa Ocidental.(WOODCOCK, 2002) Esse ano data a
morte de seu pai. Foi primeiro para a Suíça, onde se encontrava um grande número de
radicais russos, homens e mulheres, que se dedicavam a vida universitária bem como a
política expatriada ao lado de Bakunin e Peter Lavrov. Através de um discípulo de Bakunin,
Michael Sazhin, que lhe reunira um grande material composto por livros, panfletos e jornais
que estavam sendo publicados por várias seções da Internacional dos Trabalhadores
espalhada pela Europa, se convence da consciência que existia entre os trabalhadores da
Europa Ocidental.
Viaja para Genebra, um centro onde a Internacional era mais ativa, e conhece
Zhukovsky, um bakuninista, que lhe sugere a viagem ao Jura, onde entraria em contato com
os relojoeiros montanheses. Conhece James Guillaume, dono de uma tipografia na cidade de
Neuchâtel onde Kropotkin trabalha e conhece diversos ex-communards que se refugiaram
na Suíça após a Comuna de Paris. Entra em contato com as teorias anarquistas, bem como o
federalismo adotado naquela região após a passagem de Bakunin:
A exposição teórica da Anarquia, tal como era apresentada então pela
Federação Jurassiana, e sobretudo por Bakunin, a critica do socialismo de
Estado, o receio de um despotismo econômico, muito mais perigoso que o
simples despotismo político, – que ouvi formular ali, e o caráter
revolucionário do movimento, atraíram fortemente a minha atenção. Mas
os princípios igualitários que eu encontrava nas montanhas do Jura, a
independência de pensamento e de linguagem que eu via em
desenvolvimento entre os operários e a sua absoluta dedicação à causa do
partido, tudo isso exercia sobre os meus sentimentos uma influência cada
vez mais forte; quando deixei aquelas montanhas, depois de alguns dias de
permanência entre os relojoeiros, minhas opiniões sobre o socialismo se
haviam firmado. Eu era anarquista. (KROPOTKIN, 1946. p. 273)
Retorna a São Petersburgo, desempenhando o papel de propagandista das ideias
socialistas e ativo membro do Círculo de Tchaikovsky,usando seu trabalho como geógrafo
para encobrir suas atividades subversivas. Em 1874, fora preso no dia em que proferira uma
46
fala na Sociedade Geográfica Russa por sua expedição de dois anos atrás, com nome de Sr.
Borodin, nome que usava para propaganda subversiva nos bairros operários de São
Petersburgo.
Encarcerado na fortaleza de Pedro e Paulo lhe é permitido trabalhar com os relatórios
sobre suas expedições para a Sociedade Geográfica, o que lhe garante acesso a biblioteca da
Academia de Ciências. Após dois anos de estadia na prisão, Kropotkin adoece devido as
péssimas condições da fortaleza. Fora transferido para o hospital militar a fim de recuperar a
saúde.
Quando sua saúde melhorou, os planos de evasão da prisão passaram a ser elaborados
pelos seus companheiros do Círculo de Tchaikovsky. A fuga ocorreu no Hospital Militar, em
uma coordenada ação que envolveu mais de vinte indivíduos (KROPOTKIN, 1946). Após a
fuga, seguiu para a Suíça, já que não poderia mais retornar a Rússia, e de lá, seu destino era
a Inglaterra.
Em seu exílio na Inglaterra, Kropotkin contou com o auxílio do geógrafo John Scott
Keltie, membro da Sociedade Geográfica Real e editor da revista Nature. Kropotkin passa a
colaborar com a publicação, escrevendo pequenas notas sobre artigos científicos russos. Em
1878, Kropotkin volta à Suíça, a fim de retomar suas atividades revolucionárias junto a
Federação Jurassiana.
De volta a Suíça, Kropotkin mergulha no movimento anarquista, onde diversos
companheiros foram amigos pessoais de Bakunin, como o jornalista James Guillaume,
Ademar Schwitzguebel Spichiger, relojoeiros do Jura, e refugiados da Comuna de Paris, como
Lefrançais, o professor, Pindy, o carpinteiro, Paul Brousse, médico e Elisée Reclus, que viria a
se tornar seu grande amigo, devido a tantas afinidades que ambos possuíam. Kropotkin se
refere a Reclus com admiração:
Alguns refugiados da Comuna de Paris haviam adentrado a Federação.
Elisée Reclus, o grande geógrafo, era desse número – o tipo verdadeiro de
puritano, na sua maneira de viver, e do ponto de vista intelectual, o tipo de
filósofo enciclopedista francês do século dezoito: o homem que inspira os
outros, porém, jamais governou ou governará alguém, o anarquista cujo
anarquismo não e mais do que um resumo do seu vasto e profundo
conhecimento das manifestações da vida humana, sob todos os climas e
47
todas as eras da civilização, cujos livros estão entre os melhores do século,
cujo estilo, de uma beleza impressionante, comove a alma e a consciência;
é o homem que entrando na redação de um jornal anarquista pergunta a
um redator – mesmo ao que junto dele não passa de uma criança: “Diga-me
o que devo fazer”, e que se senta como um simples cronista, para
preencher uma lacuna de tantas linhas no número do jornal que vai
aparecer. Durante a Comuna de Paris armou-se simplesmente de um fuzil e
entrou nas fileiras; se convida um colaborador para trabalhar num volume
da sua Geografia, célebre no mundo inteiro e se este colaborador lhe
pergunta o que deve fazer, responde: “Aqui estão os livros, eis uma mesa.
Faça como lhe agradar.” (KROPOTKIN, 1946, pg.369)
Conheceu também Carlo Cafiero e Errico Malatesta, anarquistas italianos, amigos de
Bakunin que se encontravam na Suíça, onde se reuniram tantos revolucionários. “Começou
então para mim uma vida cheia de atividade, - a vida que me agradava” (KROPOTKIN, 1946).
Trabalhando para a Federação Jurassiana, Kropotkin colaborava com o “L’ Avant Guarde”,
jornal de James Guiullaume, que fora fechado pelo governo suíço devido a pressão dos
outros países da Europa. Com a evasão dos principais colaboradores do jornal para outros
países, coube a Kropotkin fundar um outro boletim para a Federação. Surge o “Le
Revolté”, com tiragem de duas mil cópias, redigido por Kropotkin junto a seus amigos,
Dumartheray e Herzig, um jovem caxeiro de Genebra, Jean Grave e posteriormente Elisée
Reclus, que publicaria diversos artigos escritos para o jornal em uma compilação chamada
“Palavras de um Revoltado”.
Com o assassinato do Tzar Alexandre II, sendo que a Suíça vinha sofrendo cada vez
mais pressão internacional dos países monárquicos por dar abrigo a refugiados, Kropotkin é
expulso do país, tendo de retornar Inglaterra onde devido a falta de atividade do movimento
operário permaneceria por um ano. Assim, decide juntamente com a sua esposa ir para a
França onde se estabelecem na cidade de Thonon. Por ocasião de um atentado a um café
em Lion, Kropotkin é preso pelo governo francês acusado de participar da conspiração, junto
com outros revolucionários. Em um julgamento arbitrário, Kropotkin é condenado sem
provas a cinco anos de prisão, bem como os outros acusados, e são presos. Junto aos outros
anarquistas, publicam o Manifesto dos Cem. Durante sua estada na prisão, sua esposa Sofia,
48
permanece hospedada na casa de Elíe Reclus, irmão de Elisée, seu grande amigo. Após dois
anos na prisão de Lion, é transferido para Clairvaux22.
É libertado em 1886, juntamente com outros condenados, publicando logo diversos
artigos a respeito das prisões. Após sua libertação, permaneceu em Paris. Porém, temendo
ser preso novamente, retorna a Inglaterra, onde juntamente com sua esposa residiriam
pelos próximos trinta anos. Retorna as publicações científicas em diversos periódicos, como
The Nineteenth Century, Les Temps Nouveaux, The Times, Nature, o Geographical Journal,
entre outros, além de publicar diversos livros como A Conquista do Pão, onde ensaia ao
passos do anarco comunismo, O Estado e seu Papel Histórico, propondo uma outra leitura
sobre a relação sociedade estado, contrária a naturalização desta por Hobbes e A Ajuda
Mútua, onde realiza uma análise da lei natural da ajuda mútua, segundo a qual a evolução
das espécies se define por um processo de cooperação e não competição, conforme
estabeleciam os darwinistas sociais como Malthus.
Com a revolução de dezessete de outubro retorna a Rússia, a qual não toma parte
devido sua idade avançada, o que não impede de debater com os líderes do movimento
sobre o caráter da revolução. Escreve a Lênin, advertindo-o do perigo que oferecia a
revolução uma ditadura de um partido único, sua centralização bem como um capitalismo
de estado. Lênin se oferece para publicar suas obras em russo, como História da Revolução
Francesa, oferta que Kropotkin recusa por se originar de um patrocínio do Estado Soviético.
(TRAGTENBERG, 1987) Morre ao dia 8 de fevereiro de 1921. Foi a ultima vez na Rússia
revolucionária que se permitiu uma expressão pública por parte dos anarquistas e a
bandeira negra com os dizeres “Onde há autoridade, não há liberdade”.23
22
Não faltaram manifestações contrárias ao governo francês pela prisão de Kropotkin. Victor Hugo submeteu ao governo francês uma petição de intelectuais e literatos ingleses, como Swinburne, William Morris, Watts-Dunton, Burne-Jones, Leslie Stephens, Frederic Harrison, Sidney Colvin, Patrick Geddes, John Morley, James Runciman, Alfred Russel Wallace, bem como professores universitários e funcionários do museu britânico. (WOODCOCK, 2002)
23 Mais de cem mil pessoas acompanham a marcha fúnebre pelas ruas de Moscou do velho revolucionário, na
ultima manifestação pública permitida aos anarquistas pelo governo socialista soviético.
49
1.4 A concepção de história em Kropotkin
Nesse ultimo movimento que acreditou dominar a história
atual por um conhecimento científico, o ponto de vista revolucionário permaneceu burguês.
Guy Deboard
Como marca, todo movimento de pensamento crítico, na literatura científica ou não,
há a busca de uma reflexão crítica da história, essa, sempre acompanhada de um sujeito
histórico. Se tratando de uma teoria do século XIX, em um contexto revolucionário, ela
realiza o movimento de buscar na história as qualidades do sujeito, esse êmulo moderno. O
pensamento iluminista realiza o movimento de buscar categorias inerentes a seu nexo de
sociabilização de forma trans-histórica24 fomentando uma linearidade do processo histórico
que só pode ser inerente a ele enquanto campo histórico. A teoria crítica do valor pode
oferecer um ponto de partida para essa reflexão25, pela localização histórica desses
processos.
Em diversas de suas obras, na necessidade de validar sua ideia de anarquismo como
um fenômeno que transcende uma construção histórica26 no tempo, são as diversas revoltas
ao longo da história que Kropotkin se baseia com a finalidade de enxergar traços do
movimento anarquista presentes nesses acontecimentos históricos. Baseado no
pensamento Iluminista, e por referência nos Enciclopedistas, desenvolve uma concepção
ontológica do anarquismo e do sujeito revolucionário, mas, mais pela certeza de um método
neutro a priori, quê pela construção de um conhecimento trans – histórico cultural. O
24
“Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser, determinações de existência, com frequência somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por isso, a sociedade, também do ponto de vista científico, de modo algum só começa ali onde o discurso é sobre ela enquanto tal.” (MARX, 2011, pg.59)
25 “Um elemento essencial da teoria crítica do valor e da dissociação consiste na sua fundamentação e auto-
localização históricas. À dinâmica capitalista corresponde uma história interna ascendente dessa “socialização negativa” e da sua reflexão teórica. Todas as teorias possuem um “núcleo temporal” (Adorno), o qual não as pode deixar permanecer inalteradas em si mesmas. As contradições teóricas, a reelaborar continuamente, correspondem às contradições internas reais do processo social.” (KURZ, 2010)
26 Tais como em O Estado e seu papel histórico, A questão social, o anarquismo em face a ciência, o verbete
Anarquismo na Enciclopédia Britânica e diversos artigos como A Lei e a Autoridade, o Espírito da Revolta, etc...
50
anarquismo não se dá como um conhecimento que se realiza, mas como instinto moral e
inerente a espécie, que se desenvolve socialmente. Sua base, o positivismo metodológico
emergente do Iluminismo.
Utilizando-se de registros historiográficos27 como base e o método indutivo – dedutivo
para análise, é através da observação que verifica as diversas formações sociais ao longo da
história e formula uma concepção ontológica do anarquismo, a qual “*...+ não procede de
uma determinada descoberta científica nem assenta em um sistema definido de filosofia.”
(KROPOTKIN, 1964, pg. 11). Kropotkin parte de uma concepção ontológica da luta de classes
não como produto das relações sociais de produção, entre os que detêm os meios de
produção e os que possuem apenas a força de trabalho, mas como um sentimento talhado
durante milhares de anos de evolução da espécie hominídea na história que resulta nessa
luta. “Através de todos os tempos, verifica-se que, no seio das sociedades humanas, duas
correntes de pensamento se têm encontrado constantemente em luta antagônica”
(KROPOTKIN, 1964, pg.12).
Uma corrente é a força criadora28 das massas, que deixada a sua natureza cria
instituições de auxílio mútuo. Em paralelo a essa força criadora, existem três classes. A dos
sacerdotes que detinham os conhecimentos religiosos e científicos da época, conhecimentos
que serviam como laços para manter a unidade federativa das tribos, os pregoeiros das leis
que agiam como juízes no caso de contendas, e os chefes dos bandos de combate, que
detinham o conhecimento das estratégias militares29. Essas três classes se mantém unidas
27
E pelo método historiográfico atribui o fato de não encontrar os registros historiográficos das ideias libertárias nos escritos de pensadores clássicos ao longo de diversas épocas, pelo fato do anarquismo ser uma força inerente ao domínio popular, o qual estava distante do interesse dos sábios da época. “Todavia, porque em sua essência o espírito anarquista mergulhava raízes nas massas e não nos cenáculos de sábios, os quais, na verdade, escassas simpatias nutriam pelos movimentos populares, os pensadores da época, em geral, não procuravam extrair a ideia profunda e fundamental em que se inspiravam tais movimentos.” (KROPOTKIN, 1964, pg.94)
28 Como o socialismo, e em geral todos os movimentos de caráter social o anarquismo originou-se do povo e só
conservara a vitalidade e força criadora que lhe são inerentes enquanto se mantiver com sua peculiaridade de movimento popular (KROPOTKIN, 1964, pg.11)
29 “[...] os magos, os xâmanes, os feiticeiros, os raptadores de chuva, os oráculos e os sacerdotes, que foram,
pela ordem natural das coisas, os primeiros monopolizadores de um rudimentar conhecimento da natureza e os fundadores dos diferentes cultos – do sol, da lua, das forças naturais, dos ancestrais – que serviam perfeitamente de elo mantenedor da unidade federativa das tribos. [...] Todas as artes e ofício tiveram esta origem de estudos e de superstições e, aquelas como estas, tinham suas fórmulas místicas, só conhecidas dos iniciados e mantidas cuidadosamente ocultas das massas para evitar o acesso ao seu conhecimento” Ao lado
51
ao longo dos tempos a fim de dominar as massas, mantendo-as na obediência e na
subserviência. Disso, deriva a luta entre as duas categorias opositoras na história, a força
criadora das massas e o centralismo governamental das minorias, uma libertária e a outra
autoritária.
Das duas citadas categorias, é evidente que o anarquismo representa a
primeira delas, isto é, a força criadora e construtiva das massas, que no
passado, elaboraram as instituições de direito comum para melhor se
defenderem de uma minoria agressiva e dos instintos dominadores. E
também por essa mesma força criadora e construtiva, apanágio do povo,
com o poderoso auxílio que lhe prestam a ciência e a técnica modernas que
o anarquismo procura, nos tempos atuais, estabelecer as instituições
necessárias que garantam o livre desenvolvimento da sociedade, em
oposição aqueles que depositam todas as suas esperanças em uma
legislação feita por minorias governantes e por rígida disciplina imposta as
massas. Podemos, portanto, afirmar que nesse sentido, houve sempre
anarquistas e estatistas. (KROPOTKIN, 1964. pg.13)
E da mesma forma, os revolucionários sempre agiram dentro da história em torno de
ambas as tendências. “Assim, pode-se dizer sem receio de contestação, que jacobinos e
anarquistas tem sempre existido de permeio nas hostes de reformadores e revolucionários.”
(KROPOTKIN, 1964, pg.15). O que explicaria a decadência de diversas instituições movidas
pela força criadora das massas ao longo do tempo, que inicialmente pertenciam a uma
tradição libertária, como o cristianismo.
O movimento cristão que se produziu na Judeia sob o império de Augusto
contra a lei romana, contra o Estado romano e a moral da época, ou
melhor, a imoralidade desenfreada que então campeava – teve,
inquestionavelmente, fortes laivos de anarquismo. Mas, paulatinamente,
esse movimento degenerou em um movimento sectário que operou a
dos sacerdotes, que detinham o conhecimento da religião e da ciência, estavam os indivíduos que “*...+ como os bardos entre os celtas e os gálios, os brehons da Irlanda, os pregoeiros da lei de usos e costumes antigos a quem se recorria em casos de discórdia ou de conflito” e os “*...] chefes temporários dos bandos de combate, a quem se atribuía a posse dos segredos mágicos do êxito das batalhas, do envenenamento das armas e dos vários segredos militares.” (KROPOTKIN, 1964, pg.12)
52
formação da Igreja, traçada nos moldes da Igreja hebraica e até da própria
Roma Imperial, o que naturalmente, matou tudo o que o cristianismo no
seu início tinha de anarquismo, deu-lhe formas romanas e, rapidamente,
veio a constituir o esteio principal da autoridade, do Estado, da escravidão e
da opressão. (KROPOTKIN, 1964, pg. 15-16)
Dessa mesma forma encara o movimento da Reforma Protestante, onde “possuíam
um fundo eminentemente anarquista”. Lutero inicialmente rompendo com a autoridade de
Roma realiza uma aliança com a realeza, reprime os camponeses em sua revolta, e em seu
compromisso com o Estado funda o Protestantismo enquanto os anabatistas eram
massacrados tanto em Frankenhausen, quanto em Münster posteriormente. Para Kropotkin,
o anarquismo como uma doutrina racional naturalista, é uma consequência natural no
decorrer do continuum histórico que se apoia na força criadora das massas e no espírito da
revolta ao longo dos tempos30. Essa concepção ontológica do anarquismo como fenômeno
natural apenas flerta com uma construção histórica aparente, a medida que rejeita a história
e fica preso ao modo de exposição da verdade científica. Além de, ao atribuir ao anarquismo
a qualidade de força inerente à espécie, perde-se o horizonte de que grupos sociais possuem
interesses diferentes ou não dependente ou independente de situações, bem como uma
consciência reificada no tocante ao momento histórico partilhado.
Em sua exposição, Kropotkin atribui a alguns pensadores traços do pensamento
anarquista, como no pensador chinês Lao-Tse, e mesmo nos filósofos gregos, como
Aristipo31 (430 A.C.) e hedonistas como Zenão (342 – 267 A.C.) e os filósofos estoicos.
Desses poucos, o estoico grego Zenão foi um. Pregava a comunidade livre,
sem autoridade de espécie alguma, em oposição a utopia estatista de
Platão, na sua celebre República. Zenão, já nesse tempo, punha em
evidência o instinto de sociabilidade que a natureza, segundo o seu parecer,
30
Sumariando o que ficou dito: o anarquismo originou-se da atividade criadora e construtiva das massas, que, em épocas remotas, souberam elaborar todas as instituições sociais da Humanidade, e não só nisso assenta, mas nas revoltas individuais e coletivas contra os representantes da força extrínseca a essas instituições, nas quais, quando lhes bolem, é tão somente para as utilizar em seu único proveito. (KROPOTKIN, 1964, pg.16)
31 Como destacou o professor Adler em seu Geschichte des Sozialismus und Kommunismus, Aristipo, um dos
fundadores da escola cirenaica, já ensinava que o sábio não deve ceder a sua liberdade ao Estado e, em resposta a uma pergunta de Sócrates, disse que não desejava pertencer nem a classe governante nem a governada. Mas esta atitude era ditada, ao que parece, por uma simples visão epicurista da vida do povo. (KROPOTKIN, 1987, pg.22)
53
desenvolve em oposição ao instinto egoísta da preservação do individuo.
Previa um tempo em que os homens se uniriam por sobre as fronteiras e
constituiriam o Cosmos, o Universo, sem necessidade de leis, de câmeras
legislativas, de tribunais, de templos, nem sequer de moeda para
intercambio de seus serviços. As suas próprias expressões parecem-se, ao
que é dado verificar, de modo notável as que modernamente empregam os
anarquistas. (KROPOTKIN, 1964, pg. 94)
Kropotkin cita o bispo de Alba, Marco Girolamo Vita, que em 1553 expunha ideias
contra o Estado, tanto em seu primeiro diálogo De Dignitate Reipublicae quanto em sua obra
Suprema Justiça. Em meio a comunidades cristãs primitivas como a dos hussitas, e
sobretudo Chelcick, na Armênia do séc. IX. e nos anabatistas do séc. XV, em especial o
teólogo Hans Denk. Rabelais e Fénelon, na primeira metade do séc.XVI, bem como Diderot
no séc.XVIII, se encontram entre os precursores do anarquismo.
Através da observação dos fatos históricos, a soma das revoltas e reviravoltas da
história, diferente de uma análise processual são mais o resultado de uma quantificação
cronológica do tempo pelo poder da demonstração científica, manifestado através de um
sistema racional geral de causa e consequência. A história não pode ser provada. Sua
insistência em provar isso como exposição de uma verdade científica e em ultima instância
antropológica, a própria existência de uma força vetorial natural que move a espécie
bastaria para isso. Quanto aos cálculos socialistas históricos concebendo a história como um
conhecimento científico, a forma permaneceu burguesa.
54
1.5 O anarco-comunismo
ANARQUISMO (do grego an – e arke, contrário a autoridade) é o
nome que se dá a um principio ou teoria da vida e do comportamento que concebe uma sociedade sem governo, em que se obtém a harmonia, não
pela submissão a lei, nem obediência a autoridade, mas por acordos livres estabelecidos entre os diversos grupos, territoriais e profissionais, livremente
construídos para a produção e consumo, e para a satisfação da infinita variedade de necessidades e aspirações de um ser civilizado.
Kropotkin, Anarquismo32
O anarquismo surge com verdadeira força, tanto entre os trabalhadores que não
vislumbravam qualquer possibilidade de reforma ou de mudanças pacíficas na estrutura
socioeconômica do país, como Espanha e Itália como entre os grupos de artesãos livres
como os que se encontravam nos Alpes suíços, abrigo da Federação do Jura, onde Kropotkin
entrou em contato com as ideias anarquistas que posteriormente adotou. O fato de exigir
uma mudança imediata nas relações sociais e econômicas e a proposta de ação direta como
estratégia para o movimento socialista atraiu tanto os trabalhadores do campo que sofriam
as ruminantes mazelas feudais eclesiásticas como os intelectuais das grandes cidades
preocupados com o crescimento da opressão do Estado sobre o individuo e a sociedade,
formando uma corrente teórica de revolta social. Porém, é pela crescente práxis por parte
do movimento operário, que definitivamente o ideal anarquista passará de um caráter
individual que o qualificava para um ideal social, reivindicado coletivamente por uma
sociedade composta de indivíduos sem a mediação estatal33.
Se as propostas antes se apresentavam pelo mutualismo de Proudhon e o coletivismo
de Bakunin, o anarco-comunismo se desenvolve em meio a práxis do movimento operário.
São as discussões desses dois modelos teóricos e a atuação dentro da Internacional que
levam ao desenvolvimento dessa corrente, a qual Kropotkin se tornará seu principal
formulador.
32
KROPOTKIN, 1987, pg.19
33 Na ideia de seus fundadores operários, a A.I.T. deveria ser, como já vimos, uma vasta federação de
agrupamentos de trabalhadores que representaria, em germe, o que poderia ser uma sociedade regenerada pela revolução social, uma sociedade na qual o aparelhamento atual de governo e de exploração capitalista teria por completo desaparecido, substituindo-o os acordos livres derivados das relações diretas entre os grupos autônomos de produtores e consumidores. Em tais circunstancias, o ideal anarquista passou de um caráter individual a ser um ideal eminentemente social. (KROPOTKIN, 1964,pg. 127)
55
Exilado, Kropotkin, será uma referência teórica do movimento, sem a participação em
revoltas e insurreições que tanto crédito deram a figura de Bakunin. Não possuíra influência
na organização e ação do movimento revolucionário, mesmo quando o anarquismo se
espalhou no território russo. Sua contribuição será teórica e internacionalista, junto aos
congressos socialistas, e de extrema importância. Suas ideias de organização comunal no
campo serão à base do processo de expropriação levado a cabo durante a Guerra Civil Russa
por Nestor Makhno na Ucrânia e seu exército negro, na região que ficou conhecida como
Território Livre, antes da traição de Trotsky34 e a guerra contra o exército vermelho, que
levou a destruição do Exército Insurrecional Revolucionário de Makhno em 1921 e seu exílio
na França, sendo que os restantes dos anarquistas na Rússia sucumbiram a perseguição
implacável da Theka35.
O anarco-comunismo está em diálogo direto com o mutualismo de Proudhon, corrente
teórica anarquista debatida na Internacional, e como base o coletivismo de Bakunin, que
predominava sobre as seções anarquistas da Internacional. Sua base de discussão se
desenvolve principalmente no tocante a como se daria a organização federativa, conforme
os princípios estabelecidos por Proudhon. Porém, diversos anarquistas discordavam em
relação problematização da questão do trabalho pelos moldes do coletivismo, já que para
Bakunin o consumo se daria em relação à capacidade de produção individual medida em
horas trabalho, o “a cada um de acordo o seu trabalho”. Conforme Kropotkin escreve em A
Conquista do Pão:
34
Após formar uma aliança com Moscou e derrotar o exército branco na Ucrânia, mais um coup traiçoeiro da história soviética que se tornaria característico na relação entre os anarquistas e os comunistas, como na Guerra Civil Espanhola, se dá sobre os anarquistas na Ucrânia: “Em 26 de novembro de 1920, numa série de ações coordenadas, a Theka aprisionou todos os anarquistas conhecidos na região da Ucrânia sob seu controle; convidaram os comandantes makhnovistas da Criméia para uma conferência, durante a qual foram todos capturados e imediatamente fuzilados, e desarmaram todos os seus homens, com exceção de um único regimento de cavalaria, que conseguiu escapar, em meio a muita luta, dirigindo-se para Gulyai-Polye.” (WOODCOCK, 2002, pg. 207). Trotsky enviou um efetivo de mais de cinquenta mil homens a fim de exterminar o exército de Makhno.
35 Criada através de um decreto por Lênin em 1917 foi a primeira das organizações de polícia secreta da União
Soviética. Sucessora da Okhrana czarista, a polícia política do Tzar, possuía um poder praticamente ilimitado, perseguindo os adversários do regime bolchevique. Motins no exercito vermelho, revoltas camponesas pela falta de alimento, tumultos por parte dos trabalhadores, críticos do regime, e até o gerenciamento dos campos de trabalho, os Gulags, eram feitos pela Theka, que possuía uma tropa de 200.000 homens em 1921. Seus métodos de tortura extremamente cruéis, bem como a eficiência com que realizavam suas missões tornaram famosa essa divisão da polícia soviética.
56
Colocando-nos neste ponto de vista geral, sintético, da produção, não
podemos admitir com os coletivistas que uma remuneração proporcional às
horas de trabalho fornecidas por cada um à produção das riquezas possa
ser um ideal ou mesmo um passo à frente para esse ideal. Sem discutir aqui
se realmente o valor de troca das mercadorias se mede na sociedade atual
pela quantidade de trabalho necessário para as produzir, basta dizer, salvo
voltar mais tarde ao objeto, que o ideal coletivista nos parece irrealizável
numa sociedade que considerasse os instrumentos de produção como um
patrimônio comum. Baseada neste princípio, ela ver-se-ia forçada a
abandonar desde logo toda a forma de salariado. (KROPOTKIN, 1953, pg.14)
Após a morte de Bakunin, a tendência que se fortaleceu tanto na Internacional quanto
entre os teóricos do movimento anarquista foi o anarco-comunismo. Se Kropotkin mais uma
vez aparece como o formulador de uma corrente de pensamento, a origem dela parece
partir de Dumartheray ou Reclus.
“A mais antiga publicação ligando anarquismo e comunismo é um pequeno
panfleto escrito por François Dumartheray, um artesão de Genebra que
mais tarde ajudaria Kropotkin a editar o jornal Le Révolté. Chamava-se Aux
travailleurs manuels partisans de l’action politique e foi publicado em
Genebra durante o ano de 1876. Por essa época Kropotkin acabava de
deixar a Rússia e não chegaria a Genebra antes de fevereiro de 1877 e
assim, Dumartheray dificilmente poderia ter sido influenciado por ele.
Elisée Reclus, por outro lado, estava em Genebra e pode muito bem ter
convertido Dumartheray, que não parece ter sido um homem de muitas
ideias originais. Seja como for, quer tenha tido origem de Reclus ou no
próprio Dumartheray, uma vez criada, a ideia se espalhou rapidamente.”
(WOODCOCK, 2002, pg.179)
Cherkesov, um príncipe georgiano que participava ativamente do movimento
anarquista na Suíça afirmava que em 1877, um ano após a morte de Bakunin, que os círculos
libertários suíços haviam aderido a ideia do anarquismo comunista. E segundo Woodcock,
Kropotkin teria contado a Guillaume que ele, Cafiero e Reclus persuadiram a Federação do
Jura a aceitar o comunismo livre como sua doutrina econômica. A adesão de diversos
57
membros do movimento anarquista em 1880 é citada por Kropotkin, em um artigo escrito
originalmente como verbete para a Enciclopédia Britânica, de 1905:
“A maioria dos operários anarquistas prefere as ideias anarco-comunistas,
que gradualmente evoluíram a partir do coletivismo anarquista da
Associação Internacional dos Trabalhadores. A esta direção pertencem (e
nomeio só os nomes mais conhecidos do anarquismo) Elisée Reclus, Jean
Grave, Sebastian Fauré e Emilio Pouget, na França; Enrico Malatesta e
Covelli na Itália; R. Mella, A. Lorenzo e os autores, a maioria desconhecidos,
de muitos manifestos excelentes, da Espanha; John Most, entre os alemães;
Spies, Parsons e seus seguidores nos Estados Unidos, etc.; também Domela
Nieuwenhuis ocupa uma posição intermediária na Holanda. Os principais
jornais anarquistas publicados a partir de 1880 pertencem também a essa
tendência; e grande quantidade de anarquistas que também pertencem a
ela se uniram ao chamado movimento sindicalista, nome francês do
movimento operário não político consagrado a luta direta contra o
capitalismo, que tanta proeminência adquiriu ultimamente na Europa.”
(TRAGTENBERG, 1987, PG.30-31)
O anarquismo comunista seria publicamente discutido por Kropotkin através de seu
relatório intitulado A ideia anarquista do ponto de vista de sua realização prática no
Congresso do Jura em 1880, publicada mais tarde no Le Revolte. Seu conteúdo apregoava
que quando a revolução viesse, sua base seria nas comunas locais, responsáveis pelas
expropriações necessárias bem como a coletivização de todos os meios de produção. O
sentido de comunismo aí vem da distribuição livre e da extinção de qualquer forma de
sistema de salário, consequência direta da coletivização dos meios de produção, tal como
cita em A Conquista do Pão:
Colocando-nos neste ponto de vista geral, sintético, da produção, não
podemos admitir com os coletivistas que uma remuneração proporcional às
horas de trabalho fornecidas por cada um à produção das riquezas possa
ser um ideal ou mesmo um passo à frente para esse ideal. Sem discutir aqui
se realmente o valor de troca das mercadorias se mede na sociedade atual
pela quantidade de trabalho necessário para as produzir, basta dizer, salvo
voltar mais tarde ao objeto, que o ideal coletivista nos parece irrealizável
numa sociedade que considerasse os instrumentos de produção como um
58
patrimônio comum. Baseada neste princípio, ela ver-se-ia forçada a
abandonar desde logo toda a forma de salariado. Estamos persuadidos que
o individualismo mitigado pelo sistema coletivista não poderia existir ao
lado do comunismo parcial da posse por todos do solo e dos instrumentos
de trabalho. Uma nova forma de posse requer uma nova forma de
retribuição. Uma nova forma de produção não poderia manter a antiga
forma de consumo, como não poderia acomodar-se às antigas formas de
organização política. O salariado nasceu da apropriação pessoal do solo e
dos instrumentos de produção por alguns. Era a condição necessária para o
desenvolvimento da produção capitalista: morrerá com ela, mesmo que se
quisesse disfarçá-la sob a forma de “bondes de trabalho”. A posse comum
dos instrumentos de trabalho trará necessariamente o gozo em comum dos
frutos do labor comum. (KROPOTKIN, 1953, pg. 14)
E no mesmo verbete da Enciclopédia Britânica, Kropotkin sintetiza sua concepção do
anarco-comunismo:
“Como anarco-comunista, este que escreve trabalhou muitos anos para
desenvolver as seguintes ideias: mostrar a conexão lógica e intima que
existe entre a filosofia moderna das ciências naturais e o anarquismo; dar
ao anarquismo uma base científica para o estudo das tendências que são
patentes hoje na sociedade e que pode indicar sua evolução posterior; e
estabelecer as bases da moral anarquista. Quanto a essência do próprio
anarquismo, meu objetivo foi demonstrar que o comunismo (ao menos
parcial) tem mais possibilidades de êxito que o coletivismo, sobretudo se as
comunas tomam a direção, e que a forma livre, ou anarco-comunista, é a
única forma de comunismo que oferece possibilidades estáveis as
sociedades civilizadas, comunismo e anarquia são, em consequência, dois
fatores de evolução que se complementam mutuamente, e que se fazem
mutuamente possíveis e aceitáveis.” (KROPOTKIN, 1987, pg.31)
59
1.6 O método científico
Legislar para toda a ciência é o projeto positivista
Michel Focault
O livro A questão Social, o humanismo libertário em face da ciência talvez seja onde
Kropotkin realiza seu maior esforço para conceber o anarquismo como uma filosofia de base
científica imbuída de um método de análise, abrangendo os fenômenos sociais e lhes dando
uma significação, em uma visão extremamente particular, em detrimento ao movimento
anarquista.
Buscando a relação entre o anarquismo e a filosofia das ciências naturais, ela se insere
em uma concepção do modelo científico natural para a sociedade derivado da mecânica de
Newton36. E dentro desse modelo, evolução e revolução37 fazem parte das mesmas leis
naturais que regem tanto os fenômenos naturais quanto os fenômenos sociais.
Já podemos ler o livro da natureza, no qual se compreende, não só o
desenvolvimento da vida orgânica e inorgânica, como a evolução da
humanidade, sem necessidade de recorrer a um hipotético criador, a uma
mística força vital ou a uma alma imortal, e muito menos sem precisar de
consultar a trilogia de Hegel para, com ela e com os símbolos metafísicos
que possuem, ocultar a nossa ignorância. Os fenômenos mecânicos, que
36
É indubitável que uma concepção mecânica integral do universo, abrangendo a natureza física e as sociedades humanas, na parte sociológica dedicada ao estudo da vida e evolução das sociedades, está apenas esboçada. O pouco, entretanto, que, nesse sentido se tem feito até agora, ás vezes, valha a verdade, inconscientemente, reveste-se do caráter que temos enunciado. Na filosofia do direito, na teoria da moral, da economia política e no estudo da história dos povos e das instituições sociais, o anarquismo, por seus adeptos, manifestou peremptoriamente que não se satisfaria com as conclusões metafísicas dos pensadores de antanho, mas, ao contrário, que procuraria dar as suas conclusões uma base eminentemente naturalista. (KROPOTKIN, 1964,pg.80)
37 Em comparação com este fato primordial da evolução e da vida universal, o que são todos estes pequenos
acontecimentos denominados revoluções: astronômicas, geológicas ou políticas? Vibrações quase insensíveis, aparências, poder-se ia dizer. É por miríades e miríades que as revoluções se sucedem na evolução universal; mas, por mínimas que sejam, elas fazem parte deste movimento infinito” (RECLUS, 2002, pg.21).
Podemos complementar com outra citação de Kropotkin: A ideia de evolução impunha-se em todas as províncias do saber humano. Era, pois, uma necessidade lógica aplica-la a interpretação não só de todo o sistema natural de mundo, como ao estudo das instituições humanas, das religiões e das várias doutrinas éticas. Cumpria, posto que mantendo a ideia mater da filosofia positiva de Augusto Comte, alarga-la de modo a enquadra-la no conjunto de tudo que vive e se desenvolve na Terra. (KROPOTKIN, 1964, pg.54)
60
progressivamente se complicam a medida que passamos do estudo dos
fatos físicos para os fatos da vida, bastam amplamente para explicar a
natureza e toda a existência orgânica, intelectual e social em nosso planeta.
(KROPOTKIN, 1964,pg.29-30)
Essa concepção metodológica prevalece a Teoria da Evolução de Darwin, e a Filosofia
Positiva elaborada por Augusto Comte e Herbert Spancer. Mas podemos atribuir a raiz desse
pensamento, ou até mesmo a forma com que os anarquistas davam a esse método, nos
Enciclopedistas e pensadores utópicos do Iluminismo como Saint Simon, o primeiro a colocar
que a ciência do homem deve se apresentar como positiva. Na virada do século XVIII para o
XIX, o positivismo vem à tona como uma utopia crítico revolucionária da burguesia
antiabsolutista. O ideal de ciência neutra, a existência de leis naturais que regem a vida
social, uma ciência da sociedade segundo o modelo das ciências naturais permeia o conflito
entre o Terceiro Estado e ordem feudal absolutista. Uma ciência natural contra a doutrina do
direito natural.
O cienticismo positivista é aqui um instrumento de luta de classes contra o
obscurantismo clerical, as doutrinas teológicas, os argumentos de
autoridade, os axiomas a priori da Igreja os dogmas imutáveis da doutrina
social e política feudal. *...+ O combate da ciência social livre de “paixões” é,
portanto, inseparável da luta revolucionária dos Enciclopedistas e de toda a
filosofia do Iluminismo contra os preconceitos, isto é, contra a ideologia
tradicionalista (principalmente clerical) do Antigo Regime.” (LOWI, 1994,
pg.19-20)
A ciência do homem é apresentada como um ramo tanto da física quanto da fisiologia,
e a consequente concepção da sociedade como um todo orgânico, funcional, se coloca como
uma nova forma de conceber o mundo desencantado dos laços feudais do direito natural.
Claro que com o desenvolvimento do capitalismo essa concepção irá perdurar quando a
burguesia deixar de ser uma classe revolucionária e advogar cada vez mais pela ordem
industrial e burguesa, e disso, o axioma de uma ciência natural, neutra e rigorosamente
objetiva dos fatos sociais. E aqui Kropotkin surpreende pelo cientificismo extremo em trata
as diversas questões sociais. Sua fé no método indutivo e dedutivo é tanta, que sua crítica a
Comte não se dá pela naturalização da ordem secular que legitima a desigualdade social
como uma lei universal, mas pelo fato de este não haver detectado que um sentimento
61
moral é inerente à espécie humana e que orienta naturalmente a humanidade no continuum
do tempo.
Augusto Comte, ao terminar o seu Cours de Philosofie Positive teria, sem
dúvida, notado que, nessa obra, não havia tocado sequer na questão mais
essencial de todas, a saber: a origem do sentimento moral no homem e a
influência desse sentimento sobre a vida do mesmo homem e das
sociedades humanas. [...] Comte explicava a vida em geral; deveria mostrar-
nos porque é que o homem, sem a intervenção de qualquer força
sobrenatural, se sente obrigado a influência desse sentimento ou, pelo
menos, levado a computa-lo devidamente. [...] E que Augusto Comte, não
pudera compreender que o senso moral do homem depende tanto da
intrínseca natureza como da sua organização física, as quais são derivadas
de um longo processo evolutivo. [...] Consequentemente, Comte não vira o
que Darwin tão bem compreendera: que o sendo moral do homem nada
mais é do que uma evolução sucessiva dos instintos, dos hábitos de auxilio
mútuo existentes em todas as sociedades animais muito anteriores ao
aparecimento, na Terra, dos primeiros espécimes com aparência humana.
(KROPOTKIN, 1964, pg.33)
E continua:
Pelas mesmas razões, Comte não pode verificar, como agora estamos
habituados a fazê-lo, que, não obstante os atos imorais dos indivíduos
isolados, o sendo moral na espécie humana perdurará, todavia,
instintivamente enquanto a humanidade não entrar em uma fase de
declínio; que os atos contrários a moral derivada desta origem natural
deverão provocar necessariamente reações da parte dos outros indivíduos,
tal qual uma ação mecânica que produzirá a sua consequente reação no
mundo físico. Que nessa capacidade de reação contra os atos antissociais
reside uma força natural capaz de preservar o senso moral e os hábitos
sociáveis das sociedades humanas, como os mantém nas sociedades
animais, sem qualquer interferência exterior; que, finalmente, essa força é
infinitamente mais poderosa do que os mandamentos de qualquer religião
ou os éditos dos legisladores. (KROPOTKIN, 1964, pg.34-35)
62
Essa será a base qual Kropotkin construíra todo seu edifício teórico do anarquismo. Um
sentimento moral, fenômeno a priori que se insere no tempo e no espaço não como parte
de uma história social, construída historicamente, mas como um sentimento pertencente às
espécies, ora moral, ora fisiológico. Assim, ele também constrói sua noção de evolução e
revolução38 como categorias já dadas no tempo, onde o anarquismo se desenvolve.
Que lugar, ocupa então, o anarquismo no grande movimento intelectual do
século 19? [...] O anarquismo, fundamentalmente é uma concepção do
universo baseada na interpretação mecânica dos fenômenos da natureza,
compreendendo nesta igualmente os fatos da vida social e seus múltiplos
problemas de ordem econômica, moral e política. Seu método de análise e
de investigação é o das ciências naturais, quaisquer que sejam as
conclusões a que, em um estudo se chegue, a pretenderem de científicas,
terão de ser verificadas pela adoção desse método, sem o qual não há
verdadeira ciência. Sua tendência é fundar uma filosofia sintética que
abranja todos os fatos naturais, incluindo os que se relacionam com a vida
das sociedades humanas, sem, contudo, incorrer nos erros já atrás referidos
pelas razões dadas em que incorreram os grandes espíritos de Augusto
Comte e Herbert Spancer. (KROPOTKIN, 1964, pg.80)
Seu objetivo é que o anarquismo como método científico se desenvolva nos moldes da
Filosofia Sintética de Comte e Spancer. A confiança dada a método indutivo e dedutivo é
tamanha que em sua obra este nunca é posto em dúvida ou questionado, sendo suas críticas
a outros métodos moralista. Podemos encontrar afirmações como “O anarquismo por sua
própria natureza não se deixa colher nas malhas artificiosas das metafísicas de Hegel, de
38
A ideia de evolução impunha-se em todas as províncias do saber humano. Era, pois, uma necessidade lógica aplica-la a interpretação não só de todo o sistema natural de mundo, como ao estudo das instituições humanas, das religiões e das várias doutrinas éticas. Cumpria, posto que mantendo a ideia mater da filosofia positiva de Augusto Comte, alarga-la de modo a enquadra-la no conjunto de tudo que vive e se desenvolve na Terra (KROPOTKIN, 1964, pg.54). Podemos complementar com uma citação de Reclus: “Em comparação com este fato primordial da evolução e da vida universal, o que são todos estes pequenos acontecimentos denominados revoluções: astronômicas, geológicas ou políticas? Vibrações quase insensíveis, aparências, poder-se ia dizer. É por miríades e miríades que as revoluções se sucedem na evolução universal; mas, por mínimas que sejam, elas fazem parte deste movimento infinito” (RECLUS, 2002, pg.21)
63
Schelling ou de Kant.” 39 O método dialético, apenas um resquício feudal da escolástica
medieval.
Ultimamente tem-se gabado muito o uso do método dialético preconizado
pelos social - democratas na elaboração do seu ideal socialista. Por anti -
científico, repudiamos absolutamente esse método que não se compara
com o das ciências naturais pois em tudo sobreleva aquele. O método
dialético evoca na mente dos naturalistas qualquer coisa de anacrônico que
fez sua época e desde há muito foi entregue ao olvido para a honra da
ciência. De todas as descobertas do século XIX, em mecânica, em
astronomia, em física, em química, em biologia, em psicologia, em
antropologia, nenhuma se fez pelo método dialético. Toda imensa série de
aquisições do século as devemos ao uso do método indutivo – dedutivo,
único científico conhecido. Ora, o homem sendo parte integrante da
natureza, como a sua vida pessoal e social igualmente um fenômeno
natural, do mesmo modo que o crescimento de uma flor ou a evolução da
vida em coletividades como as das formigas e as das abelhas, não vemos
razão bastante para que, passando da flor ao homem, de uma comunidade
de castores as populosas cidades humanas, tenhamos de abandonar um
método que tão esplêndidos resultados até agora deu e busquemos outro
arsenal na metafísica. A eficácia do método indutivo dedutivo que
empregamos nas ciências naturais está exuberantemente provada pelo
impulso que, no século XIX, deu as ciências, de tal maneira que, em cem
anos, fez mais do que, antes do seu emprego, se fizera em dois mil. E
quando os cientistas, na segunda metade desse século, deram de aplica-lo
ao estudo das sociedades humanas, não toparam com qualquer obstáculo,
por mínimo que fosse, que os abrigasse a retroceder a escolástica medieval
ressuscitada por Hegel. (KROPOTKIN, 1964, pg.82-83)
Diante de tal alarde, bem como as beneficies que o método indutivo e dedutivo
oferece no discurso de Kropotkin, há algumas ressalvas a se fazer. A primeira se encontra
muito mais na revolução do modo de pensar do sujeito automático do capital que a eficácia
39
KROPOTKIN, 1964,pg.80
64
da prova que o método matemático oferece como validade desde Galileu, e fomentada
posteriormente pelo positivismo.
As evidências da supremacia do método indutivo dedutivo colocada por Kropotkin se
mantém muito mais pela interpretação dada pelo autor de suas observações, que pela prova
empírica deste método. O pensamento ilustrado proclama a universalidade das ciências da
natureza como estágio ultimo da evolução humana, sendo que a ‘prova’ é uma mensuração,
o impulso dado a ciência em ‘cem anos em detrimento de dois mil’, como Kropotkin coloca
em seu texto. A essa mensuração como prova empírica que Kropotkin coloca, segue a
reflexão de Claus Peter:
Toda medição é uma relação recíproca, mediada pelo método matemático-
científico, entre o sujeito que conhece e a natureza da qual faz seu objeto;
portanto, não pode referir-se nunca à "natureza em si", mas unicamente a
este forma específica de interação. A relação sujeito-objeto produzida pelo
experimento e expressa em forma de lei não pode reduzir-se simplesmente
a um de seus dois polos: tampouco ao sujeito, como acaso possa sugerir um
culturalismo estrito. As leis da natureza não são nem produtos do discurso
que se possam fabricar infinitamente, prescindindo do lado objetivo, nem
tampouco meras propriedades da natureza, que nada tivessem a ver com
os sujeitos cognoscentes. (ORTLIEB, 1998)
Essa concepção é indissociável da ideia de um desenvolvimento linear, o progresso
científico, cujas origens se projetam na pré-história humana, ou ainda mais longe. Talvez,
nas primeiras espécies hominídeas que passaram a se apropriar de objetos a fim de se
relacionar com o meio40. Mais uma vez, o conceito trans - histórico do trabalho justifica os
avanços técnicos e a apropriação da natureza e sua transformação em meio de produção
como produto da criatividade do individuo ontologicamente. As inovações técnicas que
transformaram a paisagem no séc.XIX para Kropotkin são frutos do método e do sujeito
40
A humanidade andou bastante desde o tempo em que a pedra lascada lhe servia para fabricar a suas armas, para lutar desesperadamente pela existência. Esse período durou milhares e milhares de anos durante os quais o gênero humano acumulou tesouros incomensuráveis. Desbravou o solo, aterrou pântanos, desbastou florestas, abriu estradas, edificou, construiu e raciocinou; arranjou utensílios complicados, arrancou à Natureza os seus arcanos, aprisionou o vapor. Hoje o homem civilizado já ao nascer encontra um capital imenso, acumulado pelos seus antepassados, com o qual, só com o trabalho, combinado com o alheio, obtém riquezas que deixam a perder de vista os sonhos orientais das Mil e uma Noites. (KROPOTKIN, 1953, pg. 4)
65
histórico consciente “que não é consciente da própria forma” (ORTLIEB, 1998), e não das
determinações impostas pelo avanço das relações capitalistas de produção. A apropriação
de uma divisão do trabalho pela vontade empírica simples dos indivíduos levaria a
distribuição da riqueza e a evolução da sociedade.
Sobretudo a descrição precisa de seu procedimento que Galileu nos oferece
torna possível determinar sistematicamente o método que se formou,
durante o período de tempo que separa Copérnico de Newton, e que segue
sendo fundamental para as ciências matemáticas da natureza. Um exame
crítico revela que tal método se funda sobre uma série de pressuposições
fundamentais que se apoiam mutuamente, mas que por sua vez não são
suscetíveis de nenhuma fundamentação empírica, mas, ao contrário,
precedem a todo conhecimento científico. (ORTLIEB, 1998)
Transposto para o âmbito das ciências sociais em contraposição ao método dialético,
não há nada de científico nas afirmações de Kropotkin. Não há uma prova de que o método
indutivo dedutivo corrobore no estudo das sociedades humanas, onde essas afirmações se
dão muito mais por categorias que precedem o conhecimento científico. As conclusões que
Kropotkin coloca são fruto de sua própria observação como sujeito. Por mais que ele cite o
método indutivo dedutivo, em seu texto essas afirmações acontecem apenas para dar uma
base “científica” as suas opiniões. Não há um movimento que indique como o método
inferiu nos resultados afirmados no estudo das sociedades humanas. Apenas a velha
afirmação da “lei natural”, do “livro da natureza”. Parece mais marketing do método.
A ilusão que faz aparecer a regularidade produzida pelo experimento como
se fosse uma propriedade da natureza é a mesma ilusão pela qual o cego
processo social da sociedade mercantil se apresenta aos homens como um
processo regido por leis, exterior a eles próprios, quando de fato são eles
que o constituem através de sua ação como sujeitos burgueses. (ORTLIEB,
1998)
A regularidade que o modelo matemático oferece nas ciências naturais possui também
a função de servir como um modelo de previsibilidade de resultados, que o lança no futuro.
Isso é ensaiado a exaustão através de experimentos em laboratórios, a fim de quê as
66
medições realizadas reproduzam sempre os mesmos resultados, mesmo que em condições
ideais.
O anarquismo representa um ensaio de aplicação das generalizações
científicas que o método indutivo dedutivo das ciências naturais fornece
para as instituições humanas. Não só isso; o anarquismo baseado nessas
apreciações é ainda um prognóstico certo dos aspectos da marcha futura
da humanidade para a liberdade, a igualdade e a fraternidade no sentido de
obter a maior soma de felicidade para cada uma das unidades que compõe
as sociedades humanas. (KROPOTKIN, 1964, pg.170)
O conceito de anarquismo elaborado por Kropotkin aparece como um momento do
desenrolar do pensamento iluminista. Ela rompe com a ideia do direito natural do Antigo
Regime em detrimento a uma concepção de mundo regido por leis naturais que regem tanto
a natureza quanto a sociedade onde além de caber ao sujeito a descoberta dessas leis pelo
método, têm o caráter de mensurar através de ensaios e experiências fornecendo um
‘prognóstico’ através da previsibilidade de resultados lançados em direção ao futuro, em um
padrão de tentativa e erro41. O anarquismo nessa apreciação seria um caminho seguro para
a humanidade atingir a promessa burguesa de felicidade.
A identidade ideológica entre autocracia dos proprietários privados e auto-
submissão à “vontade geral” tinha de permanecer politicamente limitada,
enquanto a “mão-de-obra” gozasse da honra de tomar parte na repressiva
“promessa de felicidade burguesa” apenas pelo lado econômico da auto-
submissão à máquina concorrencial da “mão invisível”. A “felicidade” da
auto-objectivação em “sujeito” ficou reservada politicamente aos
proprietários dos meios de produção, de modo que a cidadania ainda
formalmente universal foi partida em duas, tal como a legitimação pelo
“trabalho”. A representação parlamentar, fosse perante um Leviatã
monárquico ou perante um Leviatã burguês considerado mais
41
No pensamento original do iluminismo, tratava-se inicialmente do suposto progresso do "erro" para a "verdade", classicamente formulado por Condorcet. A Humanidade até então, assim opina ainda Kant em todas as suas obras principais, teria caído em erros sistemáticos e inconsequências, no pensamento e na ação; ter-se-ia entregue à irracionalidade e a inclinações errôneas, ao passo que só agora, com a modernidade burguesa, se teria iniciado a era da "razão". (KURZ, 2002)
67
desenvolvido, foi ela própria rigidamente limitada por um direito eleitoral
censitário de cidadãos proprietários conforme as classes fiscais, através de
concessões de uma cidadania nacional sobrejacente. (KURZ, 2010)
A busca pela promessa de felicidade do iluminismo aparece em uma sociedade
concorrencial entre sujeitos e seu objetivo em vencer essa concorrência, tanto que
inicialmente essa era a promessa do sujeito burguês emancipado do Antigo Regime e
proprietário dos meios de produção, ideia que permeou toda reivindicação do movimento
operário do século XIX e XX com a premissa do cumprimento da promessa de liberdade,
igualdade e fraternidade. Essa promessa é perseguida independente do caráter do Leviatã,
tal como se deram tanto nos Estados keynesianos do ocidente quanto os Estados do
socialismo real.
Talvez a potência da crítica do anarquismo se afirme muito mais em um
tencionamento crítico em relação à práxis, que pela suficiência de uma teoria anarquista,
revelando uma contradição onde a crítica radical não depende unicamente do método e da
determinação deste sobre o sujeito, mas de que maneira se dá sua práxis. A contradição
entre a teoria e a prática pode ser vista no tencionamento após a Revolução de Outubro e a
constituição do Estado Soviético pelos bolcheviques e a burocratização intensa que se
formava. Em uma carta de Kropotkin dirigida a Lênin em 4 de março 1920, Kropotkin realiza
uma crítica a práxis da ditadura do partido soviético em basear a revolução através da
estrutura estatal, da hierarquia e centralismo partidário. A busca pela revolução através do
Estado, mesmo como etapa revolucionária, perpetuaria a dominação do povo não mais por
uma classe burguesa, mas pela dominação que o centralismo do partido ofereceria
conservando essa estrutura de dominação.
Em vez disso fica uma verdade: ainda que a ditadura de um partido
constituísse um meio útil para combater o regime capitalista – o que duvido
muito - , esta mesma ditadura seria totalmente nociva para a criação de
uma ordem socialista. O trabalho, necessariamente, tem de constituir-se na
base das forças locais, mas até agora, isto não ocorre nem é estimulado por
nenhum lado. Em seu lugar se encontram, a todo instante, individualidades
que desconhecem a vida real e cometem os maiores erros, ocasionando a
morte de milhares de pessoas e arruinando regiões inteiras.
68
Sem a participação das forças locais, sem o trabalho construtivo de baixo
para cima, executado pelos trabalhadores e todos os cidadãos, a edificação
de uma nova vida é impossível.
Uma obra semelhante poderia ser empreendida pelos sovietes, pelos
conselhos locais. Mas a Rússia, devo enfatizar, é uma república soviética
apenas no nome. A influência e o poder dos homens do partido, que são
frequentemente estranhos ao comunismo – os devotos da ideia estão
sobretudo instalados aí no centro – têm aniquilado a influência verdadeira
e a força daquelas instituições que muito prometiam: os sovietes. Repito:
não há mais sovietes na Rússia, mas somente comitês do partido que fazem
e desfazem. E as suas organizações padecem de todos os males do
funcionalismo.
Para sair da desordem atual a Rússia deve retomar o espírito criador das
forças locais que, asseguro, são as únicas capazes de multiplicar os fatores
de uma nova vida. Quando antes se compreender isto, melhor! As pessoas
se disporão a aceitar mais facilmente as novas formas de organização
social. Entretanto, se a situação atual se prolongar, a mesma palavra
socialismo se converterá numa maldição, como ocorreu na França com a
ideia igualitária durante os quarenta anos que seguiram ao governo dos
jacobinos.” (KROPOTKIN, 1987, pg.178-179)
69
Capítulo 2. No bordel do historicismo
2.1 No balcão do iluminismo
O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado,
o materialista histórico faz desse passado uma experiência única.
Ela deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo,
com a meretriz “era uma vez”.
Walter Benjamin
Muito já se discutiu, dentro do discurso geográfico disciplinar, sobre as diversas formas
de manifestações ao longo da história que se encontram sob o signo Geografia, suas origens
e referenciais. Durante séculos são “conhecimentos esparsos” que diversos autores da
história da disciplina denominam possuírem uma identidade geográfica. Relatos de viagem,
curiosidades sobre lugares exóticos, relatórios estatísticos de órgãos administrativos, obras
com estudos sobre fenômenos naturais, bem como mapas com contornos continentais, são
atribuídos com o rótulo Geografia.
No afã histórico, Tales de Mileto, Anaximandro, Heródoto e Estrabão, de Grécia á
Roma. Claudio Ptolomeu em Alexandria e Bernardo Varenuius em Hannover com sua
Geografia Generalis compõe os referenciais que o discurso geográfico irá basear a
continuidade desse conhecimento até a sua sistematização.
Para Morais, “Desta forma, pode-se dizer que o conhecimento geográfico encontrava-
se disperso.” (MORAIS, 198442). A Geografia possui então um percurso historiográfico que se
realiza como um conhecimento sistematizado, junto a pressupostos históricos objetivados
no avanço das relações capitalistas de produção. Moreira assinala que “A Geografia
Moderna nasce como um projeto da revolução burguesa” (MOREIRA, 2008, pg.13). Aqui, a
sistematização do conhecimento científico aparece como um projeto, um fenômeno
consciente próprio da revolução burguesa e de seu sujeito histórico, frente às vicissitudes de
seu tempo. E com ela, para Benjamin, o início do “era uma vez”.
42
Desta forma, pode-se dizer que o conhecimento geográfico se encontrava disperso. Por um lado, as matérias apresentadas com essa designação eram bastante diversificadas, sem um conteúdo unitário. Por outro lado, muito do quê se entende hoje por Geografia não era apresentado com esse rótulo. (MORAIS, 1984, pg.49-50)
70
Dessa maneira, quando legitimada, a Geografia como conhecimento só o consegue ser
na forma histórica, um percurso pressuposto da razão no tempo cronológico, como um
conhecimento em construção que se realiza na sociedade burguesa. Max Weber, na
introdução de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, coloca que “No estudo de
qualquer problema da história universal, um filho da moderna civilização europeia sempre
estará sujeito a indagação de qual a combinação de fatores a que se pode atribuir o fato de
na Civilização Ocidental, e somente na Civilização Ocidental, haverem aparecido fenômenos
culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento universal em seu valor e
significado” (WEBER, 1967, pg.01)
A Civilização Ocidental a qual Weber se refere é a sociedade burguesa. Como Weber
trata o tema através da história da cultura, e de forma bem periférica as relações sociais de
produção determinantes na sociabilidade, a sociedade burguesa aparece pelo seu
referencial geográfico, ocidental, e não como aquilo que a difere de todas as demais, o seu
nexo social de relacionamento determinado pela forma mercadoria. Por consequência, ela
aparece como Civilização Europeia, crivada pelo seu referencial espacial, e não pela sua
forma de sociabilização.
Outras formas de sociabilização então se classificam como Civilizações, legitimadas
pelos seus referenciais geográficos, e não pela cosmogonia que as qualifica. E assim, seus
conhecimentos se tornam passíveis de apropriação. “A Geometria da Índia faltava a prova
racional, (...) As ciências naturais indianas (...) careciam do método experimental, (...) a
historiografia chinesa faltava o método de Tucídides. (...) e de todas as coletâneas de leis
indianas e de outras, faltava o que é essencial a uma jurisprudência racional: o rígido
esquema jurídico de pensamento dos romanos e do Direito ocidental por ele influenciado.
Uma estrutura como a do cânone jurídico só é conhecida no Ocidente.” (WEBER, 1967, pg. 1-
2) Há de se refletir que o cânone jurídico, com uma estrutura institucional rígida e
burocratizada, é oriunda dos Estados Absolutistas da Europa. Essa concepção, esvaziada de
um processo histórico, aparece na forma de uma ideologia geográfica43 (MORAES, 2005).
43
Antonio Carlos Robert Moraes, na introdução de seu livro “Território e História no Brasil”, propõe a distinção de “pensamento geográfico” e “geografia” (stricto sensu), visando alargar o campo de investigação a ser analisado além da mera história da disciplina, de forma a abranger as diversas “ideologias geográficas”, uma classe mais restrita de discursos, que pode ser contida na representação de um direcionamento político explícito, seja orientado na produção do espaço material, seja referido na própria construção de juízos e
71
Esta que está objetivada no modo de produção capitalista, e não uma invenção do
“Ocidente” geográfico, como construção cultural dos povos.
É bem possível que nas antigas civilizações agrárias se detectem formas
correspondentes de relações humanas face à natureza e à sociedade (o que
teria de ser deixado a cargo de investigações mais detalhadas), visto que
sem dúvida qualquer sociedade humana, contrariamente aos
agrupamentos correspondentes entre animais, produz uma relação de
consciência ativa para com os objetos que integram o seu mundo. No
entanto esta, tão pouco como outras definições formais societárias, não
pode ser projetada retroativamente a partir da realidade e do sistema
conceptual correspondente do moderno sistema produtor de mercadorias
para a totalidade da História humana. Afinal é precisamente nisso que
consiste a ontologização por parte da teoria iluminista das definições
fundamentais apenas produzidas pela moderna relação do valor e da
dissociação. Antes do século XVI não existia nem trabalho, nem economia,
nem estado, nem política, e muito menos um sujeito (estruturalmente
"masculino"): estes termos foram em parte inventados de raiz e, em parte,
totalmente revolucionados quanto ao seu significado; e talvez tal tenha
sucedido da forma mais evidente com o conceito da subjetividade.” (KURZ,
2003) 44
Weber destaca o fato de “somente na Civilização Ocidental, haverem aparecido
fenômenos culturais dotados (como queremos crer) de um desenvolvimento universal em
seu valor e significado”. Ao iluminar o percurso da história, esse olhar busca para além da
forma civilizatória da sociedade burguesa, traços intrínsecos à moderna sociedade produtora
de mercadorias em diferentes formas de sociabilização, e em outros tempos históricos,
projetando no continuum do tempo os fundamentos da subjetividade do homem moderno
em face da objetividade. Esses fenômenos dotados de universalidade, valor e significado,
valores que conformam as próprias formas de consciência sobre o tema. O discurso aqui referido tem o enfoque epistemológico na análise dos textos “(...) em sua coerência, em suas estruturas argumentativas, na elucidação dos conceitos empregados, enfim, tomando diretamente o discurso como objeto de investigação.” (MORAES, 2005, pg. 12-13)
44 Kurz, Robert. Ontologia Negativa Os obscurantistas do Iluminismo e a metafísica histórica da Modernidade.
in: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz115.htm, 2003.
72
longe de aparecem nas mais diversas civilizações como construções culturais como Weber
coloca, são determinados pela relação entre forma mercadoria e forma pensamento,
objetivando um conhecimento através dessa matriz a priori, que longe de serem universais,
são construções históricas determinadas. Pensar em um cânone jurídico universal é fazer
crer que as instituições jurídicas são tão naturais quanto a venda de força de trabalho e o
assalariamento na construção das pirâmides egípcias. O que desperta a dúvida, nesse caso, é
se realmente foram homens que construíram as pirâmides.
Por essa relação fetichista, pode-se afirmar que o conhecimento universal se manifesta
não só através de diferentes lugares, mas em épocas diferentes. “Na verdade, trata-se de
todo um período de dispersão do conhecimento geográfico, onde é impossível falar dessa
disciplina como um todo sistematizado e particularizado. Nélson Wernek Sodré denomina-o
de ‘pré-história da Geografia’” (MORAES, 1984, pg. 50). Pensar em “pré-história” da
geografia como um período onde um conhecimento que se encontrava disperso,
fragmentado no fluxo cronológico onde os diversos pedaços do conhecimento científico se
encontravam em outras sociedades e ao longo da história, é atribuir não só ao
conhecimento uma qualidade natural a espécie, mas uma vocação a ser realizada ao longo
da história, a montagem final de um quebra-cabeças por um ensaísta de xadrez ciente de
todos os lances. Essa vocação do conhecimento se torna o vir-a-ser da ciência geográfica, e
esta encontra sua legitimação como um conhecimento de valor universal, ontológico. “A
história universal não têm qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza
a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio” (BENJAMIN, 1996,
p.231). Pré- história da geografia, projeto da revolução burguesa, para essa perspectiva
historicista, desde que o homem saiu da caverna de Platão subiu a montanha e olhou ao seu
redor, cortou-se a fita inaugural da ciência geográfica.
73
2.2 Uma ciência
Que faz o senhor aqui?
- Sou geógrafo, respondeu o velho.
- Que é um geógrafo? perguntou o principezinho.
- É um sábio que sabe onde se encontram os mares,
os rios, as cidades, as montanhas, os desertos.
É bem interessante, disse o principezinho. Eis, afinal, uma verdadeira profissão!
O pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry
Uma lona tratada com giz e cola, para fechar os poros da tela. A superfície enrijecida
por uma mistura de chumbo com óleo de linhaça. Os tons de pó de azul ultramarino, feitos
de lápis-lazúli, uma rocha metamórfica, mesclada com óleo vegetal, dão o tom da
pictografia. Um globo terrestre de e Jodocus Hondius e uma carta náutica de Willem Blaeu
pendurada na parede, são reproduzidas. Na imagem, a luz banha a face daquele que
empunha um compasso acima da carta aberta sobre a mesa, contemplando um mundo que
se encontra além da janela. O quadro de Vermeer de nos coloca diante de uma paisagem
burguesa do séc.XVII. Ali, a geografia em exercício de profissão.
A Geografia como um conhecimento imbuído do método empírico de análise e
observação, indutivo ou dedutivo, nomotético ou idiográfico, se constitui enquanto parte do
processo histórico qual surge o modo de produção capitalista, objetivando-se na moderna
sociedade produtora de mercadorias (KURZ, 1993). Assim, a gênese da ciência geográfica, é
intrínseca a modernidade e a razão transcendental iluminista.
Na constituição histórica desse processo, se tomarmos a abstração como elemento
identitário do Moderno, e sua expressão em diferentes quadros temporais, se não há um
momento histórico preciso de sua origem, é na Revolução Industrial o momento em que
modernização e o Moderno se tornam uma realidade empírica, tanto pelo domínio da
técnica que transforma a paisagem, em um ritmo vertiginoso nunca visto, quanto a
sociabilidade determinada pelo trabalho abstrato se universalizando, organizando tanto a
74
divisão territorial do trabalho com a formação de sujeitos expropriados de seus meios de
produção45. E dentro dessa lógica, toma forma os diversos discursos sobre a disciplina.
Dentro do ideário da história do pensamento geográfico, a Geografia aparece na
Modernidade através de Immanuel Kant (1724 - 1804), e nele reconhece seu fundador.
Para Kant, é necessário encontrar o ponto comum de pensar a Natureza e
pensar o Homem, seja no plano empírico trilhado pela ciência, seja no
abstrato que é característico da Filosofia. E vão buscar os pontos de apoio
na Geografia e na História. Na Geografia vai buscar os conhecimentos
empíricos concernentes a natureza. E na História (que Kant chama de
Antropologia e que mais se aproxima da nossa Psicologia Social), os
concernentes ao homem. (MOREIRA, 2008, pg.14)
A Geografia que Kant concebeu nos quarenta anos em que lecionou na Universidade
de Königsberg, é designada Geografia Física pelo conjunto de conhecimentos bem como
grupos de classificação taxonômica do mundo físico, no sentido aristotélico do termo
(MOREIRA, 2008). São grandes recortes de paisagens da superfície terrestre, fazendo uma
ampla corografia. O que se opera no período de Kant é uma mudança fundamental. A
percepção geográfica de Kant, um plano de extensão geométrica preexistente ao olhar
humano, faz com que o fenômeno apreendido pela percepção humana seja ordenado nos
parâmetros de uma ordem espacial, ocupando um lugar e distância pré-determinados,
dispostos e distribuídos em um espaço a priori, pré-existente. Retratado no pensamento
ilustrado essa relação se dá de forma de cisão, dual e complementar; a dualidade homem–
natureza, sujeito-objeto.
A influência de Kant na geografia não se restringe a sua contribuição ao léxico
geográfico ou as categorias do movimento do conhecimento. Refletindo sobre a ética, Kant
elabora o “Imperativo Categórico” 46, que deve representar todo o fundamento de todo o
direito e toda a estatalidade. "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne lei universal", é a máxima kantiana. Esse princípio da lei
45
Tal como descreve Marx no capítulo XXIV do Capital ‘A assim chamada acumulação primitiva’. “A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção.” (Marx, Karl, pg. 340, 1996.)
46 Em sua obra A Fundamentação da Metafísica dos Costumes de 1785
75
universal se localiza na razão transcendental do pensamento iluminista, válida para todos
como um a priori vazio de conteúdo, na forma abstrata de uma lei geral.
O conteúdo verdadeiro só pode ser a abstração social transcendental do
valor do capitalismo em desenvolvimento, que exclui como critério
qualquer conteúdo das necessidades e, pelo contrário, submete estas à
produção de “riqueza abstrata”. Esta submissão é executada pela forma
geral e abstrata do direito, em cuja fundamentação se ergue a estatalidade,
como garante da “obrigação”. (KURZ, 2010)
A submissão dos sujeitos à forma universal de pensamento constitui a forma abstrata
do direito e sua fundamentação na estatalidade, como reprodução da riqueza abstrata do
capital. “Age de modo que consideres a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na de
qualquer outro, sempre como objetivo, nunca como simples meio", outra máxima de Kant. A
forma jusnaturalista do contrato social pode ser vista na submissão do sujeito a priori ao
princípio racional capitalista da valorização. A humanidade como objetivo só pode ser
atingida por sujeitos emancipados, de quem age com fim nas categorias de reprodução a
priori. O Leviatã como organizador do arbítrio da vontade geral é uma categoria a priori do
sujeito emancipado do iluminismo. “A razão iluminista não consegue expressar de outro
modo senão deste modo paradoxal a contradição entre “liberdade e necessidade” nos seus
fundamentos porque já pressupõe estes cegamente.” (KURZ, 2010)
Kropotkin dirige uma crítica ao imperativo categórico kantiano:
É por demais sabido que Kant, por exemplo, pretendia explicar a origem do
sentimento moral humano como um imperativo categórico, e afirmava, ao
mesmo tempo, o caráter obrigatório de tal ou qual máxima particular de
conduta se a pudermos conceber como uma lei suscetível de aplicação
universal. Mas cada termo deste rosário de palavras contém algo de
nebuloso e incompreensível – imperativo categórico, lei universal – em vez
do fato palpável, conhecido de toda a gente, que se pretende explicar, e de
que o filosofo alemão tão arredio andou. (KROPOTKIN, 1964, pg.19-20)
Positivista, Kropotkin atribui à organização da sociedade baseada em sentimentos
morais inerentes a biologia da espécie, coloca o termo de lei universal como “nebuloso e
incompreensível” pela análise abstrata de relações entre as categorias de conhecimento em
76
detrimento a fenômenos que possam ser comprovados em sua forma física, laboratorial ou
historiográfica pelo método indutivo47.
Partindo desse gênero de observações e de fatos análogos, geralmente
conhecidos, os enciclopedistas, por esse modo, chegaram a formular as
mais largas generalizações e assim, pelo exame dos fatos mais simples,
explicaram de verdade a origem do sentimento moral como fato complexo
que é. O que, porém, eles nunca fizeram foi por, em vez de fatos
conhecidos e compreensíveis, palavras incompreensíveis e obscuras que
não explicam absolutamente nada, tais como as de imperativo categórico
ou de lei universal. (KROPOTKIN, 1964, pg.20)
Serão Ritter e Humboldt as influências do jovem Kropotkin quando este decide ir para
a Sibéria após o término de seus estudos no Corpo de Pajens, se lançando como um
explorador, como é descrito em sua biografia:
Meus pensamentos voltavam-se então cada vez mais para a Sibéria. A
região do Amur acabava de ser anexada pela Rússia. Eu havia lido tudo o
que se publicava sobre esse Mississipi do Oriente: as montanhas que
atravessava, a vegetação subtropical do seu afluente, o Usuri, e o meu
pensamento ia mais longe – para as regiões tropicais descritas por
Humboldt e para as belas generalizações geográficas de Ritter, cuja leitura
me causava tanto prazer. (KROPOTKIN, 1946, p. 155)
Carl Ritter (1779 – 1859), alemão, historiador, filósofo e pedagogo, é que se encontra
na esteira da sucessão de Kant. Inicia seus estudos universitários financiados por um
banqueiro de Frankfurt, J. J. Bethmann Hollweg, a fim de se tornar o preceptor de seus
filhos. Dessa maneira, Ritter se interessa pela pedagogia antes mesmo da geografia, sendo
Pestalozzi sua referência nesse campo. Ritter sempre reconheceu a influência de Pestalozzi
quando iniciou seus estudos em Geografia; e Horácio Capel aponta a discussão de diversos
47
Para descobrir o porquê dessa concepção, foram levados, naturalmente, a estudar o próprio homem em quem a ideia se manifestava e como já haviam feito Hutcheson em 1725 e depois Adam Smith na sua melhor obra, The Origin of Moral Feelings (Origem do Sentimento Moral), acharam que o sentimento moral do homem tem sua origem no sentimento de piedade e no da simpatia que experimentamos por todos os que sofrem. (KROPOTIKIN, 1964, pg.20)
77
autores se a geografia de Ritter não era uma aplicação dos métodos de ensino Pestalozzi na
geografia. Mesmo assim, assinala que a influência deste na obra de Ritter é marcante,
“Influência que atinge aspectos muito diversos de sua obra, desde a utilização do conceito
de "tipo" a sua produção cartográfica, que foi interpretado em relação com a importância
que dá Pestalozzi ao desenho, e como forma de visualização intuitiva das unidades
geográficas.” (CAPEL, 2008, pg.41). Ritter, como um cristão evangélico, admirava o
cristianismo autêntico de Pestalozzi. O que influenciou sua carreira em diversos círculos
influentes de Berlin, que rejeitavam o racionalismo e procuravam um cristianismo mais
profundo, unido a posições políticas conservadoras e ao Estado Prussiano.
Após se estabelecer em Berlim em 1820, assume a recém - fundada cátedra de
Geografia na Universidade de Berlin, fundada por Wilhelm Von Humboldt, irmão de
Alexander Von Humboldt, e se torna um dos membros fundadores da Sociedade Geográfica
de Berlin.
Para desenvolver seu método, o método comparativo, Ritter48 se apoia na corografia
de Kant. Em um recorte da paisagem, este não só implica em uma arrumação da superfície
terrestre em uma ordem de classificação taxonômica, como propicia ao geógrafo organizar
essa descrição. Ao comparar as paisagens, se extrai os traços comuns e singulares de cada
um, inferindo uma ordem geral de classificação, especificando as individualidades. A
corografia se converte em uma corologia. A Geografia Comparada de Ritter se apoia na
explicação metódica.
Ritter não deixou discípulos diretos na universidade após sua morte, a exemplo de
alguns alunos notáveis como Karl Marx e P. P. Semenov, e o que mais sofreu sua influência,
Elisée Reclus, que frequentara seu curso durante sua estadia em Berlim, influenciando a
obra desse geógrafo anarquista. Kropotkin, apesar de não ter sido seu aluno, ao tencionar
escrever uma obra que descrevesse a geografia física da Rússia, após ter sido enviado em
uma expedição pela Sociedade Geográfica Russa para a Finlândia e Suíça para exploração
48
Seus escritos, permeados pelo Idealismo Alemão, possuem a ideia do Todo expressa em sua obra, concepção esta que advém de Schelling; “para Ritter o Todo é ao mesmo tempo uma imagem divina e a visão global da natureza, e é para compreensão deste todo que ele como geógrafo tenta contribuir” (CAPEL, 2008, pg.46). As relações entre o homem e a natureza terrestre, assim como outras totalidades são subordinadas ao grande “Todo absoluto”, o cosmos, o globo terrestre, a superfície terrestre, o conjunto de suas relações.
78
dos depósitos glaciais, a fim de pesquisar os “esker”, acompanhado pelos geólogos General
Hemersen e Friedrich Schmidt, descreve em sua biografia:
Eu tencionava fazer uma descrição geográfica completa do país, baseada
nas características principais da estrutura corográfica que começava a
deslindar para a Rússia Europeia, e delinear as diversas formas de vida
econômica que deveriam prevalecer nas diferentes regiões físicas.
Considere-se, por exemplo, os vastos campos da Rússia meridional, tantas
vezes submetidos às secas e às más colheitas. Ambas não deviam ser
consideradas calamidades acidentais – porque constituem uma
característica natural dessa região, do mesmo modo que a sua posição na
vertente meridional do planalto central da Rússia, o seu solo, a sua
fertilidade, etc. E a vida econômica das estepes meridionais deveria ser
organizada na previsão da inevitável volta periódica das secas. Todas as
regiões do Império russo deveriam ser estudadas da mesma maneira,
seguindo-se o método científico que Karl Ritter empregara nas suas
admiráveis monografias de diferentes partes da Ásia. (KROPOTKIN, 1946,
pg.227)
Alexander Von Humboldt (1769-1859) nasceu em uma família aristocrática prussiana.
Seu pai, que era maçom e racionalista, preocupara-se com a formação de seus filhos desde
muito cedo, cercando-os de preceptores. Como naturalista, não contribuiu somente com a
Geografia, mas com diversas outras ciências.
Enquanto Ritter possuía formação em história e filosofia, tendo posteriormente
realizado cursos de botânica, mineralogia e geognosia, Humboldt tinha formação em
matemática, ciências naturais, botânica e física, mineralogia, geognosia, e desde muito cedo
aulas de economia política com o fisiocrata Wilhelm Dohm, bem como formação na
disciplina “Comércio”, destinada a formar altos funcionários das finanças, o que faz de
Humboldt um naturalista com a formação de um estatista, tendo sempre trabalhado para
diversos governos na condição de pesquisador e explorador em expedições científicas
financiadas pelo Estado, bem diferente de Ritter que se dedicou ao ensino sua vida inteira.
Através da sua variada formação, Humboldt pode oferecer contribuições decisivas a diversos
ramos da ciência, sobretudo à geologia, à mineralogia, à meteorologia e climatologia (nome
que parece haver criado), à geografia botânica, assim como à oceanografia (estudo da
79
corrente marítima com seu nome), à hidrologia e ao estudo do problema do
geomagnetismo.
Na viagem que Humboldt realiza para a América espanhola, esboça a ideia de uma
Geografia Física “uma observação sobre as relações geográficas dos vegetais, sobre a
migração das plantas sociais, sobre o limite de altitude a que se elevam seus diferentes
grupos rumo ao cume das montanhas.” (HUMBOLDT apud CAPEL, 2008, pg.14) Nos Andes
realizou os estudos da diferenciação das espécies de plantas com o aumento da altitude. Já
no oriente, realiza estudos de geomagnéticos, geológicos e astronômicos, estudando os
recursos minerais. Nessa viagem desenvolve teorias sobre montanhas e mesetas, sua
influência na altura média das massas continentais, sua configuração topográfica, e a
articulação das massas marinhas e terrestres, bem como estudos de hidrografia. Rigoroso
com os métodos de estudo, se baseava em uma análise nomotética, onde são características
seus estudos comparativos, levando em consideração a história do lugar, no mundo
inorgânico pela decomposição dos materiais rochosos e sua forma; a análise e distribuição
dos diferentes fenômenos, utilizando-se da linguagem cartográfica, e a evolução do planeta
em plantas e animais fossilizados.
No ano de 1829, aos 60 anos, inicia uma expedição a Rússia, a convite do governo que
pretendia emitir moedas de platina. Consultado pelo governo russo, Humboldt se mostrara
desfavorável a ideia já que o preço da platina era instável. Assim, se lança em uma
exploração as minas dos montes Urais, junto com Gustave Rose, professor de química e de
mineralogia, C.G Ehrenberg, naturalista e zoólogo.
Nas minas, onde passa o período de um mês, estuda a presença de filões de platina e
areias auríferas, sugerindo a presença de diamantes, descobertos logo depois pelo conde
Polier, proprietário das jazidas. Sua expedição segue da Sibéria até a cordilheira de Altai,
realizando medições barométricas e instalando estações de magnéticas e meteorológicas
fazendo análises ao longo do percurso. Após seis meses e 17.000 quilômetros percorridos,
encerra a expedição. Seus estudos sobre essa região são publicados por seus companheiros
de viagem sob o nome de Ásia Central, contendo o estudo das cadeias de montanhas da
Ásia.
Com base nesses estudos de Humboldt, após seu retorno da Sibéria e de suas
explorações, bem como sua entrada na seção de geografia física da Sociedade Geográfica
80
Russa, Kropotkin intenta lançar um livro sobre a exposição de suas novas ideias sobre as
montanhas e planícies da Ásia setentrional:
Durante muito tempo os mapas antigos e até mesmo as teorias de
Alexandre de Humboldt – o qual, após um estudo detalhado das nascentes
chinesas vira a Ásia coberta por uma rede de montanhas seguindo os
meridianos e paralelos, – dificultaram-me as investigações até que, por fim,
reconheci que as próprias teorias de Humboldt, embora tivessem sido para
os geógrafos um estimulo formidável, estavam em completo desacordo
com os fatos.
Começando então pelo princípio recorri ao método puramente indutivo:
recolhi todas as observações barométricas dos viajantes que me haviam
precedido, e, com o auxílio desses dados, fiz o cálculo de centenas de
altitudes. Num mapa em grande escala, marcava eu todas as observações
geológicas e físicas que haviam sido feitas por diferentes viajantes – fatos e
não hipóteses – e tentava descobrir as linhas de estrutura que melhor
correspondessem aos fatos observados. Esse trabalho preparatório exigiu
mais de dois anos. Seguiram-se meses de intensa reflexão, a fim de
orientar-me nesse caos de observações isoladas. Afinal, repentinamente,
tudo me apareceu claro e compreensível, como se tivesse sido iluminado
por um jato de luz.
As linhas principais da estrutura da Ásia não se dirigiam para o norte, nem
para o sul nem para o oeste, mas sim do sudoeste para o nordeste – da
mesma forma que nas Montanhas Rochosas e planaltos da América,
dirigem-se elas do nordeste para o sudeste; apenas as cadeias secundárias
se dirigem para o nordeste. Além disso, as montanhas da Ásia não são
cadeias de montanhas independentes, como os Alpes: elas se ligam a um
plano imenso, antigo continente cuja ponta era voltada para o estreito de
Behring. Altas cordilheiras formaram-se no rebordo desse continente e com
o decorrer dos tempos, emergiram do oceano terraplenos formados por
sedimentos mais recentes, aumentando assim a largura dessa aresta
primitiva da Ásia. (KROPOTKIN, 1946, pg. 218-219)
81
Devido sua prisão no ano de 1873 não pode publicar esse estudo, confeccionando um
mapa e um sumário que foram publicados por seu irmão Alexandre pela Sociedade
Geográfica Russa.
Diferente de Ritter, Humboldt não teve uma atuação acadêmica, realizando
expedições científicas, bases para sua obra49. Tanto Humboldt quanto Ritter faleceram
próximos ao surgimento do novo paradigma que se apresentaria durante a mudança da
segunda metade do séc. XIX, e que seria um dos principais temas discutidos por Kropotkin,
permeando toda sua obra, tanto suas publicações científicas quanto políticas; o
evolucionismo.
Esse é um período de ruptura metodológica onde os estudos de geografia,
influenciados pelo Idealismo e Romantismo Alemão, em uma perspectiva naturalista, se
voltarão a elaboração de uma Geografia voltada ao pensamento político, levando em conta
os interesses do organismo Estatal como o conhecimento, segurança e expansão do
Território pelo viés positivista. Interesses que são presentes nos trabalhos de Humboldt,
como no Ensaio Político sobre a Nova Espanha50, que também se dedica ao estudo do
potencial dos recursos naturais e defesa do território de uma nação.
49
Sua formação e sua atividade científica se basearam sempre no rigor das observações e na realização de numerosos de experimentos. Quer se tratasse de suas observações botânicas, zoológicas, mineralógicas ou geomagnéticas ou de suas experiências a respeito do galvanismo e o eletromagnetismo, Humboldt procedeu, a todo o momento, com um impecável método científico. Por isso valorizou sempre o método empírico e indutivo, a respeito dos quais podemos encontrar numerosas declarações em seus textos. Para ele, o espírito científico procede: 1) ―pela aplicação do pensamento às observações isoladas‖; 2) ―pela visão do espírito que compara e combina‖; 3) ―pela indução‖, que ―nos revela as leis numéricas‖. Dessa forma, afirma no Cosmos, é possível dar ―um caráter mais elevado à descrição física do globo. (CAPEL, 2008, pg.34)
50 ―a fisionomia de um país, o modo com que estão agrupadas as montanhas, a extensão das planícies, a
elevação que determina sua temperatura, enfim, tudo o que constitui a estrutura do globo, tem as relações mais essenciais com os progressos da população e o bem estar dos habitantes. Essa estrutura influi no estado da agricultura, que varia segundo as diferenças dos climas, na facilidade do comércio interno, nas comunicações mais ou menos favorecidas pela natureza do terreno e, por fim, na defesa militar da qual depende a segurança externa da colônia. Somente sob estes aspectos as grandes indagações geológicas podem interessar ao homem de Estado, quando calcula as forças e a riqueza territorial das nações. (HUMBOLDT apud, CAPEL, 2008, pg.21)
82
2.3 No bordel do historicismo
A história universal não tem qualquer armação teórica.
Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos
para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio.
Walter Benjamin
No processo de sistematização da disciplina há o surgimento do que se convencionou
(e se reproduziu) chamar “Escolas Nacionais” de pensamento. Alemanha e França,
respectivamente, protagonizam esse momento na história da disciplina. Não que foram as
únicas escolas de pensamento nacional a propor uma teoria de cunho nacionalista, já que
uma das características do discurso é o apelo á modernização via Estado Nação. E de certo
modo, a Geografia Crítica se coloca como uma.
A Alemanha realiza seu processo de unificação territorial em um momento em que os
Estados Modernos europeus que já haviam realizado sua Revolução Industrial realizavam a
partilha entre si da África, Oriente Médio e Ásia, em um processo já praticamente
consolidado. O Sacro Império Germânico era composto por diversos Reinos e Ducados e
Principados, não possuíam uma unidade política e territorial, sendo o traço cultural comum
entre estes o determinante para sua unificação. A Confederação Germânica criada em 1815
aumentou o comércio entre as regiões, agrupando os reinos da Áustria e da Prússia, bem
como outros principados. A unificação territorial germânica segue liderada pelo Estado da
Prússia, por uma via de modernização militarizada, aristocrática e conservadora, liderada
pelo general prussiano Otto Von Bismarck, realizando as guerras de unificação que terminam
com a Guerra Franco - Prussiana em 1870. A França derrotada perdia as regiões de Alsácia e
Lorena, ricas em minerais de ferro e carvão, essenciais para o desenvolvimento industrial
dos respectivos países.
Na história do pensamento da disciplina, esta seria a gênese das “Escolas Nacionais”
de pensamento. Ruy Moreira classifica esta fase como a da Geografia Clássica. Seus
representantes seriam Friedrich Ratzel e Vidal de La Blache, um com a “Escola Alemã”
determinista, outro com a “Escola Francesa” possibilista, no período que se estende à guerra
franco-prussiana, permeada pelo projeto de unificação alemã, na forma da “Confederação
Germânica, que congregou todos os principados alemães e os reinos da Áustria e da Prússia.
83
(...) É dentro desta situação que se pode compreender a eclosão da Geografia.” (MORAES,
1984, pg.46)
Com os Estados Modernos já consolidados ou em vias de, há a disputa mundial por
territórios onde as economias nacionais buscam por matérias primas para a sua indústria.
Esta passava por uma transformação técnica dramática, nos moldes da segunda Revolução
Industrial, baseada em novas matrizes energéticas e tecnológicas, para além da energia a
vapor, como a indústria química. O que também diferencia a Geografia desse período em
relação ao anterior. O Idealismo e o Romantismo Alemão, presente na obra de ambos os
autores, Ritter e Humboldt, não atende as novas demandas oriundas do processo produtivo
do capital, dando lugar ao positivismo e ao naturalismo, baseados na observação e no
método experimental, objetivados no processo de expansão das mercadorias pelo globo.
Frente a esse avanço, as nuances do pensamento científico se voltam para um
conhecimento cada vez mais compartimentado e fragmentado, já que deve atender a
crescente demanda de mão de obra necessária no processo produtivo especializada em
diversos graus do conhecimento técnico-científico. Frente ao positivismo, um pensamento
que se propõe a edificar diversas áreas do conhecimento em uma síntese que as relacione
como diversas partes fragmentadas de um todo, desprovida de uma base matemática
abstrata e lógica em seus fundamentos, e que admite até mesmo a existência de um ser ou
algo superior, como o faz Ritter, encontra cada vez menos adeptos.
Há a influência do Iluminismo e do positivismo que emerge deste na sistematização da
disciplina, o homem como centro do universo, o desencantamento do mundo, bem como o
pensamento ilustrado dos ideólogos das revoluções burguesas. As reflexões de Rousseau
passavam pelas formas de representação e extensão do território de uma sociedade, como o
regime democrático em nações com pouca extensão e um regime autoritário para estados
de grandes extensões territoriais. Montesquieu discute a ação do meio no caráter dos povos,
influindo na índole de acordo a forma do relevo, povos pacíficos em regiões montanhosas e
povos guerreiros nas planícies.
A economia política clássica, pelas suas análises materialistas sobre produção e
comércio, produtividade do solo e sua valorização, dinâmica populacional, oferta dos
recursos minerais, a indústria e as distâncias entre os mercados na emergência do modo
84
capitalista de produção tem seu lugar. Adam Smith e Thomas Malthus representam uma das
corrente que influenciou ás análises geográficas que se formam nesse período.
O advento das ideias de Darwin, influenciadas por Malthus, irá emergir no meio
científico com uma força que só as mudanças de paradigmas movem. O evolucionismo, a
competição das espécies e a luta pela sobrevivência transposta para o campo sociológico,
adquire o tom que definirá a valsa que o imperialismo do séc. XIX ira debutar e a ciência irá
conduzir. A missão civilizatória, a partilha continental da África e do Oriente.
Frente a esse novo paradigma, o processo de institucionalização cada vez maior da
ciência geográfica colabora para sua consolidação como disciplina universitária. Na
Alemanha na segunda metade do séc. XIX há um aumento significativo na demanda de
professores, uma ampliação da produção editorial por materiais de geografia e
cartográficos, bem como a criação de diversas vagas em universidades. É quando diversos
pesquisadores com formações diferenciadas entre si são atraídos por essas vagas na
geografia, como Ratzel, farmacêutico e zoólogo qual possuía seus estudos em etnologia. De
acordo com Jean Brunhes;
O próprio professor Ratzel me contava nos termos a seguir em janeiro de
1904, alguns meses antes de sua morte a evolução característica de sua
carreira: ‘Realizei viagens, desenhei, escrevi. Isso me conduziu a
Naturschilderung. Enquanto isso, voltei da América e me disseram que
necessitavam de geógrafos. Então, reuni e analisei todos os fatos que eu
próprio havia observado e colhido sobre a imigração chinesa à Califórnia, ao
México e à Cuba, e redigi minha obra sobre a imigração chinesa que foi
minha tese de habilitação’ (BRUNHES apud CAPEL, 2008, pg.80)
O peso da formação original de cada autor contribuiu na formação do arcabouço
teórico disciplinar desse período, a revelia das categorizações que estes produziram como
conhecimento serem encaradas como produções de cunho estritamente geográfico ou não.
A força com que a profissionalização da Geografia no séc. XIX atuou na sua sistematização
parece mais determinante que os conhecimentos esparsos ao longo da história e do
desenvolvimento de uma epistemologia da disciplina em sua historiografia.
Tomando como base a discussão das escolas nacionais, alemã e francesa, para o
geógrafo alemão Friedrich Ratzel, a sociedade é um organismo que mantém relações
85
duráveis com o solo, manifesta em necessidades como moradia e alimentação. A natureza
então é apropriada para fornecer os meios de reprodução da sociedade, e quanto maior o
solo, maior a necessidade de manter a sua posse, bem como a garantia da reprodução de
sua população. Dessa forma, quando a sociedade se organiza para defender o território,
surge o Estado (MORAES, 1984). Esta problematização desembocará no conceito de “espaço
vital”, o espaço necessário de uma sociedade para se reproduzir. Territorialmente, o
progresso se apresenta como necessidade de modernização e ampliação do território a fim
de englobar maiores recursos, como matérias primas para a indústria alemã, bem como a
ampliação do mercado e alcance de suas mercadorias.
Já para La Blache, representante da escola francesa, o conceito de “gênero de vida”
marca a relação entre sociedade e território, e seu conjunto de técnicas e habilidades
desenvolvidas ao longo da história por uma determinada população ao se relacionar com o
meio. O progresso se dava conforme o contato com outras populações que trariam uma
troca de técnicas num processo de enriquecimento mútuo, englobando várias comunidades
em um gênero de vida comum, o qual La Blache denomina “domínios de civilização”51. Dessa
forma, a expansão territorial se transveste como missão civilizatória.
Os historiadores da disciplina buscam por conhecimentos geográficos ao longo da
história, transpondo o conhecimento de formas de sociabilização distintas da capitalista, de
forma a legitimar a Geografia enquanto ciência, mesmo em uma análise materialista
histórica. Se a Geografia emerge como ciência no séc. XIX, pois demandava uma série de
pressupostos que se realizam com o avanço das relações capitalistas de produção, suas
categorias já estavam lá antes dela. Aqui, mais uma vez precede o conceito da trans –
historicidade do pensamento iluminista e sua ontologia, justificado pela abstração do fim em
si mesmo da riqueza abstrata determinada na missão de civilização.
51
Possibilismo que seria muito útil ao governo francês, não só por melhor conhecer e orientar a política de utilização dos recursos naturais do espaço francês, como também por tornar desnecessário o desenvolvimento de uma teoria radical como a da superioridade da raça branca sobre os nativos da Ásia e da África, de vez que o domínio colonial francês estava, nestes continentes, em fase de consolidação. A França deglutia, no início do séc. XX, o segundo império colonial da superfície da Terra, necessitando, naturalmente, de confundir a política colonial com os interesses humanitários de levar a civilização a povos incultos e capazes de ser educados e absorvidos pela civilização ocidental, em vez de pregar uma política de extermínio ou de conquista de povos inferiores. (...) Na realidade, nunca houve uma escola livre-arbitrista em Geografia, e o possibilismo, longe de se contrapor ao determinismo, foi mais o resultado da desradicalização do mesmo, uma forma atenuada do determinismo. (ANDRADE, 1977, pg.7)
86
A respeito desse movimento na História do Pensamento Geográfico, o debate sobre
esse período é profícuo. Se na primeira metade do séc.XX, na tradição do pensamento
geográfico, ambas as escolas eram postas como o contraponto da outra, tanto pela posição
nacional como pelo conteúdo qualitativo do discurso geográfico que apresentavam, nas
ultimas décadas diversos autores criticaram essa forma de classificação do pensamento, que
aparece pela primeira vez na obra de Lucien Febvre, A Terra e a Evolução Humana.
Introdução geográfica a História52. Aqui, mais do que uma diferença teórica de cunho
nacionalista, refletimos a respeito de como o discurso geográfico de ambos oferece o
amparo a fim de legitimar a expansão do Estado Nacional.
É o historicismo que se realiza enquanto historia universal a qual Weber se dirige
quando declara que “fenômenos culturais dotados (como queremos crer) de um
desenvolvimento universal em seu valor e significado”. A historiografia universal encontra
fragmentos do conhecimento e fatos históricos “perdidos” no continuum do tempo de
forma aditiva, somando-os, culminando em uma construção universal que valida a sociedade
moderna capitalista e todas as suas contradições como construções culturais de valor
universal e unidade histórica, tal como a própria Geografia e o Estado, e com elas, a meretriz
“era uma vez”.
Mesmo a Geografia Crítica, que cada vez mais se projeta como uma Escola de
pensamento dentro da Geografia, por um discurso próprio com um variado recorte
epistemológico, ao incorporar o materialismo histórico dialético do pensamento marxista,
tendo em vista como um dos seus objetivos, o “resgate crítico” da História do Pensamento
Geográfico, mantém uma perspectiva sociológica esvaziada da crítica categorial53, que
52
E vêm, provavelmente de Lucien Febvre, através do seu livro A Terra e a Evolução Humana. Introdução Geográfica a História (Febvre, 1954), esta ideia de tradição de escolas que se iniciara com as escolas alemã e francesa enquanto encarnações de suas necessidades nacionais respectivas, a primeira materializando-se no pensamento de Ratzel e a segunda, no de Vidal de La Blache. Confundindo alhos com bugalhos, Febvre, neste que é, diga-se com ênfase, um excelente livro, e como tal nessa perspectiva crítica de ser lido, designa a geografia vidaliana de possibilista e a ratzeliana de determinista, a vidaliana justamente pelo seu vínculo com o historicismo francês e a ratzeliana por seu vínculo com o naturalismo alemão.
Daí que Febvre opte por um contraponto de escolas e escolha Ratzel e Vidal de La Blache para referências de um fictício movimento nacional e um ainda mais fictício embate de pontos de vista (a derrota de 1870 da França diante de uma Alemanha militarista é o fantasma que está atrás do ideologismo de Febvre). (MOREIRA, 2008, pg.42)
53 A montanha da razão capitalista auto-reflexiva acumulada tornou-se assim um lugar santo justamente da
teoria marxista dos epígonos, na medida em que esta já pretendia declarar a mera discussão do contexto
87
reafirma os pressupostos trans – históricos do pensamento iluminista e com ela sua busca
pelo desenvolvimento e progresso da nação.
A teoria e, mais ainda, a prática da social democracia foram determinadas
por um conceito dogmático se progresso sem qualquer vínculo com a
realidade. Segundo os social – democratas, o progresso era, em primeiro
lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e
conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites,
correspondente a perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro
lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo,
irresistível, uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses
atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas para ser rigorosa, a
crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A ideia
de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua
marcha no interior do tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia de
progresso tem como pressuposto a crítica dessa marcha. (BENJAMIN, 1996,
pg.229)
Para Benjamin, o materialista histórico trata o conceito de presente não como uma
transição de acontecimentos, mas como um “agora”, que para no tempo e se imobiliza,
fazendo dele uma experiência única. Ainda aqui, há uma tentativa de nossa parte com um
momento reminiscente da constituição da historiografia geográfica em olhar um desses
acontecimentos, ciente que isso pode se dar em uma tanto uma conotação positiva como e
a inserção e reconhecimento por parte desse reminiscente na história da disciplina. Mas
aqui é um momento de desenvolvimento do pensamento da pesquisa.
Afinal, contemporâneos a Ratzel e La Blache, estão Elisée Reclus, Piotr Kropotkin, Leon
Metchnikoff, Mikhail Dragomanov e Gustave Lefrançais, geógrafos anarquistas e
revolucionários. Apresentaremos um breve histórico da relação entre eles e como sua
produção científica se diferenciava dos geógrafos fundadores da geografia universitária. Esse
categorial como “herança” positiva e já quase fazê-la passar por crítica radical, embora apresentasse este sistema de pensamento como rígida afirmação. O conceito de crítica deslocou-se, pois, do plano das categorias para o plano dos atributos, e assim para a “realização” dos ideais iluministas, em vez de para a abolição dos seus reais pressupostos, o que também vinha precisamente ao encontro da consciência histórica do movimento operário. (KURZ, 2011)
88
movimento tem como objetivo a desnaturalização com que o discurso disciplinar trata esse
momento histórico tanto ao colocar os pontos da teoria dos fundadores da disciplina como o
“espaço vital” de Ratzel, e o “gênero de vida” de La Blache, como resultado de uma mera
construção histórica cultural da constituição da disciplina e vitimas da cientifização do
próprio método positivista.
89
2.4 O Black Bloc bate a porta
Oh, I get by with a little help from my friends.
Lennon / Mccartney
A sistematização da geografia se dá na esteira do processo de expansão dessa
disciplina pelas universidades, com a abertura de várias cátedras dedicadas a disciplina de
geografia, aumentando a produção desse ramo do conhecimento (CAPEL). Mas naquele
momento, em outro lugar, esse conhecimento percorria outros caminhos. Se no início do
surgimento do movimento socialista, anarquistas como Godwin, Déjacque, Stirner e
Proudhon oscilavam entre uma forma de filosofia política, economia e sociologia, no ultimo
quarto do séc.XIX diversos militantes se associaram na produção de conhecimento cientifico,
e especialmente um grupo deles no conhecimento geográfico.
Com a expansão do Imperialismo pelo globo e a disputa de recursos para a indústria, a
divisão territorial do trabalho em escala mundial, diversos anarquistas, como Léon
Metchnikoff (1838-1888), Mikhail Dragomanov (1841-1895), Gustave Lefrançais (1826-1901)
ou Charles Perron (1837-1909) viram na geografia um lugar de debate de suas ideias
libertárias, no conceito de paisagem geográfica de Humboldt, a possibilidade para os
libertários de lugares sem Estado.
Esses anarquistas possuíam uma vasta troca de correspondências entre si, se
relacionando em rede, mantendo sua produção científica em paralelo a sua militância
política. Exemplo disso é a revista internacionalista Le Travailleur, impressa em Genebra na
gráfica dos exilados russos Rabotnik54 e que tem o mesmo coletivo editorial da Nouvelle
Géographie Universelle, uma enciclopédia geográfica de 19 volumes, a qual Elisée Reclus era
o editor.
Essa revista, que era dirigida por Reclus e Perron, cartógrafo da enciclopédia, possuía
como colaboradores fixos Metchnikoff (informante científico e coautor do volume VII),
Dragomanov (consultor científico e coautor do volume V), e Lefrançais (secretário editorial
da obra). Kropotkin, Metchnikoff e Dragomanov eram inimigos do Tzar, sendo Reclus e
Lefrançais combatentes da Comuna de Paris, todos na condição de exilados, reunidos na
54
Trabalhador em russo.
90
Editora Hachete. Entre os assuntos que essa revista abordava, estão artigos de geografia
política como os estudos de Metchnikoff sobre o Japão, onde suas análises sugeriam um
redimensionamento na influência da Europa nas relações dinâmicas mundiais e a
emergência do Pacifico55 no quadro mundial.
Desses homens, o historicismo não faz questão. Léon Metchnikoff, russo, desertor,
havia lutado lado a lado de Garibaldi na guerra de unificação da Itália. Morou na Espanha e
no Japão. Woodcock comenta de quando Bakunin exilado se encontrava na Itália:
Frequentemente os russos que passavam pela Itália iam visita-lo, mas o
único que chegou a aproximar-se realmente dele foi um jovem cientista,
provavelmente membro da Irmandade Florentina, chamado L. Metchnikoff,
que havia lutado sob as ordens de Garibaldi e, tal como o próprio Bakunin,
era também uma espécie de revolucionário internacional. (WOODCOCK,
2002, pg. 189)
É Metchnikoff que trará primeiramente a crítica positivista dos anarquistas ao
darwinismo social, destacando como principal fator da evolução a cooperação “A ciência
natural nos ensina que a associação é a lei de cada existência. O que normalmente
chamamos sociedade é somente um caso particular desta lei”56 (METCHNIKOFF apud
FERRETI e PELLETIER, 2013, pg.7). Ele tratará inicialmente essas ideias em um artigo, o qual
Reclus enviará para Kropotkin quando este se encontrava detido na França, entre Lyon e
Clairvaux (1882-86). Apesar das ideias serem debatidas em coletivo entre eles, os artigos
científicos eram assinados pessoalmente. Será Kropotkin o sistematizador da crítica ao
darwinismo social em seu livro A Ajuda Mútua.
55
Elisée Reclus comenta o processo de integração da Ásia Oriental no mercado mundial e divisão territorial do trabalho que se dava nas manufaturas inglesas que se instalavam na Ásia, no auge do Imperialismo europeu: “O período histórico em que a humanidade vivencia a junção definitiva da Ásia Oriental ao mundo europeu, é rica de eventos. Como a superfície da água, por efeito do peso, tenta nivelar-se, assim as condições do mercado do trabalho tendem a se igualar. Considerado como simples proprietário, dono de seus braços, o homem mesmo é uma mercadoria, não menos não mais do que os produtos de seu trabalho. As indústrias de todos os países, cada vez mais empenhadas na luta da concorrência vital, querem produzir barato comprando ao preço mais baixo a matéria prima e os braços que a transformam. Mas onde as poderosas manufaturas, como as da Nova Inglaterra, encontram trabalhadores mais hábeis e sóbrios, e ainda menos dispendiosos, que os do Extremo Oriente?” (Nouvelle Géographie Universelle, t. VII, p. 15. RECLUS apud FERRETI e PELLETIER, 2013, pg. 10)
56 (METCHNIKOFF L., “Révolution et évolution”. The Contemporary Review, 1886, 50, p. 415. METCHNIKOFF
apud: FERRETI, e PELLETIER, 2013, pg.10)
91
A crítica ao darwinismo social caracteriza a produção desses autores. Os parâmetros
biológicos como divisores de classes, e a ideia de uma raça superior com uma missão de
civilização dos povos bárbaros e incultos, era veemente criticada por eles. Em um artigo de
Kropotkin, que tencionava com Mackinder sobre o papel social da geografia em um debate
na Sociedade Britânica Real:
“É tarefa da geografia mostrar que a humanidade é uma só, que as
diferenças nacionais ou locais não devem servir para ocultar a imensa
semelhança que existe especialmente entre as classes trabalhadoras de
todo o mundo, que as fronteiras políticas são relíquias de um passado
bárbaro e que os nacionalismos exarcebados, as guerras e os preconceitos
entre nações ou em relação às ‘raças inferiores’ só servem para manter ou
reforçar os interesses de grupos ou classes dominantes”57. (KROPOTKIN
apud VESENTINI, 1987, pg a ver.)
Metodologicamente, recusavam o termo ecologia, cunhado por Ernst Haeckel (1834-
1919), um dos maiores divulgadores da luta pela sobrevivência como principal fator de
evolução humana, já que ele admite a influência do meio no comportamento das criaturas
via seu metabolismo, base das ideias materialista geográficas sobre a relação da
determinação do ambiente sobre o caráter do homem. Reclus utilizava o termo meio
posteriormente adotado em sua “Geografia Social” em detrimento a ecologia, baseado na
concepção de Pascal e Diderot, de “espaço material através do qual passa um corpo no seu
movimento”. Auguste Comte (1798-1857) modifica o termo para Mesologia, como um
“estudo teórico do meio”, lançado primeiramente por Charles-Philippe Robin (1821-1885),
biólogo.
Será o conceito cunhado por Louis-Adolphe Bertillon (1821-1883), socialista
proudhoniano, médico, antropólogo e demógrafo, da mesologia como “adaptação da
espécie humana ao meio”. Reclus expõe essa ideia em o L’Homme et La Terre (1905), e tenta
ampliar esse conceito para abranger suas ideias sobre civilização, em escalas temporais
(tempo curto, tempo longo).
57
KROPOTKIN, P. What geography ought to be. In: Antipode: a Radical Journal of Geography, vol.10-11, n.1-3, 1976, p.6-15. (Ensaio foi publicado originalmente in The Nineteenth Century, Londres, dezembro de 1885).
92
O meio geral compõe-se de inúmeros elementos, entre os quais Reclus
distingue o “meio-espaço”, o “meio por excelência”, “pertencendo à
natureza exterior” (conceito veiculado por Bakunin), ou ainda “ambiente”
ou “meio estático primitivo”. Adiciona-se o “meio dinâmico”, combinação
complexa de “fenômenos ativos” em que a “marcha das sociedades” é
composta por “impulsos progressivos e regressivos” (noção utilizada por
Proudhon consoante Vico e Michelet). Ao final, trata-se de “forças
primárias ou secundárias, puramente geográficas ou já históricas, que
variam segundo os povos e os séculos.” A dinâmica reclusiana revela-se
muito próxima do que Proudhon chama “o movimento”, uma noção central
em sua obra. (FERRETTI e PELLETIER, 2013, pg. 8)
A relação entre o meio-espaço e o meio-tempo é o responsável pela dinâmica da
civilização. Muitas relações se davam dentro desse processo. As necessidades de existência
relacionadas com a maneira de achar e sentir resultam na civilização, sempre em processo
com novas aquisições, e necessidades de sobrevivência mais ou menos duradouras. Junto ao
gênero de vida, criavam uma “semi-civilização”, já que para Reclus, “civilização” é a que
oferece oportunidades iguais a todos (FERRETTI e PELLETIER).
93
2.5 A Ajuda Mútua e a crítica ao darwinismo social
O termo, que se originou da estreita concepção malthusiana –
de competição de indivíduo contra todos os outros –,
perdeu assim sua estreiteza
na visão de alguém que conhecia a Natureza.
Piotr Kropotkin, A Ajuda Mútua
A Ajuda Mútua58 é o livro publicado por Kropotkin quando se encontrava exilado em
Londres, lançado em 1902, e a sistematização da crítica ao darwinismo social que esses
geógrafos esboçavam coletivamente. Podemos dizer que essa crítica é uma metacrítica da
obra de Darwin, já que sua crítica não era direta ao método, mas os resultados quais os
discípulos de Darwin, como Thomas Henry Huxley (1825 – 1895), conhecido como “O
Buldogue de Darwin”, e Herbert Spencer (1820 – 1903) em sua sociologia, afirmavam com
“sobrevivência do mais apto”59.
Por isso julguei que um livro sobre Ajuda mútua como lei da Natureza e
fator de evolução preencheria uma lacuna importante. Em 1888, quando
Huxley publicou seu manifesto da “Luta pela vida” (Struggle for Existence
and its Bearing upon Man) que, a meu ver, foi uma representação muito
incorreta dos fatos da Natureza como são vistos nas matas e florestas,
comuniquei-me com o editor da Nineteenth Century, perguntando-lhe se
me daria a honra de uma leitura crítica e uma resposta minuciosa às
opiniões de um dos mais ilustres darwinistas da época. James Knowles
acolheu a proposta com a maior boa vontade. Também falei a respeito com
W. Bates. “Sim, claro; isso é darwinismo autêntico”, foi sua resposta. “É
58
Os diferentes capítulos deste livro foram publicados na Nineteenth Century. (“ Ajuda mútua entre os animais” saiu em setembro e novembro de 1890; “Ajuda mútua entre os selvagens”, em abril de 1891; “Ajuda mútua entre os bárbaros”, em janeiro de 1892; “Ajuda mútua na cidade medieval”, em agosto e setembro de 1894; e “Ajuda mútua nas sociedades contemporâneas”, em janeiro e junho de 1896). (KROPOTKIN, 2009, pg. 18)
59 Sobre a filosofia sintética de Spencer: “Ainda que reconhecendo o notável serviço que ele prestou ao
pensamento moderno, seria um funesto erro determo-nos na admiração por essa obra a ponto de julgar que ela contenha realmente ao homem, individual e socialmente considerado. A ideia fundamental da filosofia de Spencer é mais do que justa. Por diversas causas, algumas das quais expusemos, essa filosofia, na suas variadas aplicações, foi truncada múltiplas vezes. Outras causas, como a aplicação do método vicioso das analogias, e, sobretudo, a exageração do conceito de luta pela existência entre indivíduos da mesma espécie e a pouca atenção dada a um outro fator ativo da natureza, a ajuda mútua, foram enumeradas, ainda que sucintamente, nesta nossa critica” (KROPOTKIN, 1964, pg.73)
94
horrível o que ‘eles’ fizeram com Darwin. Redija esses artigos e, quando
estiverem impressos, vou lhe escrever uma carta que poderá publicar.”
Infelizmente, levei quase sete anos para escrever esses artigos e, quando o
último foi publicado, Bates não vivia mais. (KROPOTKIN, 2009, pg.15)
Como já foi dito, para Kropotkin, é o método indutivo nomotético o método o qual
todos os ramos do conhecimento, como a filosofia, a biologia e sociologia, deveriam aplicar
a sua análise. Sua critica se dá em relação a interpretação feita da obra de Darwin, e não ao
método. Inicia assim a defesa da obra desse autor, destacando o uso metafórico da
expressão “luta pela sobrevivência” em detrimento ao uso estrito dessa metáfora60 para
ilustrar o “estado de natureza” dos indivíduos.
Embora estivesse usando o termo em seu sentido estrito, principalmente
tendo em vista seus objetivos específicos, ele alertou seus seguidores para
que não cometessem o erro (que ele próprio parece ter cometido um dia)
de superestimar esse sentido. Em A origem do homem, Darwin escreveu
algumas páginas memoráveis para ilustrar seu sentido próprio, o sentido
amplo. Observou que, em inúmeras sociedades animais, a luta entre
indivíduos pelos meios de subsistência desaparece, que essa luta é
substituída pela cooperação e que essa substituição resulta no
desenvolvimento de faculdades intelectuais e morais que assegura à
espécie as melhores condições de sobrevivência. Ele sugeriu que, nesses
casos, os mais aptos não são os mais fortes fisicamente, nem os mais
astuciosos, e sim aqueles que aprendem a se associar de modo a se
apoiarem mutuamente, fossem fortes ou fracos, pelo bem-estar da
comunidade. “Aquelas comunidades”, escreveu ele, “que possuíam o maior
número de membros mais cooperativos seriam as que melhor floresceriam
e deixariam a prole mais numerosa.” (2.a ed. inglesa, p. 163). (KROPOTKIN,
2009, pg. 20)
Kropotkin reflete sobre a terminologia utilizada por Darwin em sua teoria, com
exemplos cheios de embates gladiatórios, e que aparece como suporte a aqueles que
60
E, logo no início dessa obra memorável, ele insistiu para que o termo fosse compreendido em seu “sentido amplo e metafórico, que incluía a interdependência entre os seres e (o que é mais importante ainda) não apenas a vida do indivíduo, mas também sua capacidade de deixar descendentes”. (KROPOTKIN, 2009, pg. 19)
95
seguem a filosofia de Hobbes, constituindo um argumento científico em relação ao homem
primitivo e seu estado natural da “guerra de todos contra todos”. “Aconteceu com a teoria
de Darwin o que sempre acontece com teorias que exercem qualquer influência sobre as
relações humanas” (KROPOTKIN), e nesse contexto, Huxley é o representante dessa escola.
Como se sabe, Huxley foi o fundador dessa escola. Num artigo escrito em
1888, ele representou os homens primitivos como se fossem tigres ou
leões, destituídos de quaisquer concepções éticas, levando a luta pela
sobrevivência a seu mais amargo fim e vivendo uma “contínua luta livre”.
Segundo ele, “além das relações limitadas e temporárias da família, a
guerra hobbesiana de cada um contra todos era a condição normal da
vida”. (KROPOTKIN, 2009, pg. 73)
Darwin sempre admitiu a inspiração que a teoria de Malthus havia lhe proporcionado
em sua obra. A critica que Kropotkin esboça, é o uso dessa ideia que para Darwin se colocava
como metáfora, e de quando ela perdeu seu sentido filosófico para ser aplicado
qualitativamente as sociedades humanas. Tolstoi taxou Malthus pela sua “mediocridade
maliciosa”, e não foi o único. A obra de Darwin foi plenamente aceita pela comunidade
científica russa, mas não sem ressalvas.
O primeiro a abordar o argumento da Ajuda Mútua como principal fator de evolução
foi o zoólogo russo Karl Fiódorovich Kessler (1815 – 1881)61, reitor da universidade de São
Petersburgo, em uma palestra proferida em 1880 para naturalistas russos poucos meses
antes de sua morte. Kessler afirmava a existência da luta pela sobrevivência, mas a negava
61
Entretanto, se faço menção especial ao discurso de Kessler, é porque ele alçou a ajuda mútua à altura de uma lei, muito mais importante na evolução do que a lei da luta de todos contra todos. As mesmas ideias foram apresentadas no ano seguinte (em abril de 1881) por J. de Lanessan, em uma conferência publicada em 1882 sob o título La lutte pour l’existence et l’évolution des sociétés *Paris, Félix Alcan, 1903+. Animal Intelligence, obra importante de G. Romanes, foi publicada em 1882, acompanhada, no ano seguinte, de Mental Evolution in Animals [Nova York, Penguin, 1883]. Mais ou menos na mesma época (1883), Büchner publicou outro trabalho, Liebe und Liebes-Leben in der Thierwelt, cuja segunda edição, ampliada, apareceu em 1885. Como se vê, a ideia estava no ar. Outros autores citados por Kropotkin que antecederam Darwin; “Menciono as de Houzeau, Les facultés mentales des animaux, 2 vols., Bruxelas, 1872; L. Büchner, Aus dem Geistesleben der Thiere, editado em 1877, e Maximilian Perty, Über das Seelenleben der Thiere, Leipzig, 1876” (KROPOTKIN, 2009, pg. 37)
96
como o motor da evolução das espécies62, a qual ilustrou com diversos exemplos do reino
animal.
Em um país de proporções continentais como a Rússia as dificuldades de ocupação do
território eram imensas, essas exposições foram aceitas com naturalidade pela comunidade
científica russa, que realizava seus estudos em áreas como o norte da Ásia e leste da Rússia.
(GOULD, 1992)
Eu mesmo me lembro da impressão que o mundo animal da Sibéria
produziu em mim, quando explorei as regiões do Vitim em companhia de
um zoólogo talentoso,o meu amigo Poliakov. Ambos estávamos sob o
impacto recente do livro A origem das espécies, mas procuramos em vão
pela feroz competição entre animais da mesma espécie que a obra de
Darwin nos fez esperar, levando em conta até as observações do terceiro
capítulo (p.54). Vimos diversas adaptações para a luta – muito
frequentemente em comum – contra as adversidades do clima ou vários
inimigos, e Poliakov escreveu belas páginas sobre a dependência mútua de
carnívoros, ruminantes e roedores nas regiões por onde se distribuíam;
testemunhamos numerosos casos de ajuda mútua, principalmente durante
as migrações de pássaros e de ruminantes; no entanto, mesmo nas regiões
do Amur e do Usuri, onde a vida animal parece fervilhar, tal a sua
abundância, muito raramente observei casos reais de competição e de luta
entre animais superiores da mesma espécie, embora eu tivesse procurado
ansiosamente por elas. Os trabalhos da maioria dos zoólogos russos dão a
mesma impressão, e isso provavelmente explica por que as ideias de
Kessler foram tão bem aceitas pelos darwinistas russos, ao passo que ideias
semelhantes não estão em voga entre os seguidores de Darwin na Europa
Ocidental. (KROPOTKIN, 2009, pg.24)
62
“É óbvio que não nego a luta pela sobrevivência, mas sustento que o desenvolvimento progressivo do reino animal, e principalmente da humanidade, é muito mais favorecido pela ajuda mútua do que pela luta de todos contra todos. [...] Todos os seres vivos têm duas necessidades essenciais: a nutrição e a propagação da espécie. A primeira leva-os à guerra e ao extermínio mútuo, ao passo que a segunda faz com que se aproximem e se apoiem mutuamente. Mas estou inclinado a pensar que, na evolução do mundo orgânico – na modificação progressiva dos seres orgânicos –, a ajuda mútua desempenha um papel muito mais importante do que a luta entre indivíduos.” Fala proferida pelo Prof. Kessler, in Memórias (Trudy) da Sociedade de Naturalistas de São Petersburgo, vol. XI, 1880. Apud (KESSLER apud KROPOTKIN, 2009, pg. 38)
97
Como destaca Kropotkin, essa ideia era aceita por diversos cientistas russos, e suas
discussões com Metchnikoff e Reclus faziam parte de uma discussão levada pela
comunidade científica russa. Além de o próprio Kropotkin inicialmente ter ido a campo
disposto a encontrar as relações de competição como fator decisivo da sobrevivência da
espécie, e que foram implodidas pelo seu empirismo naturalista. Vale lembrar também que
as regiões visitadas por Darwin eram tropicais e subtropicais, abundantes em espécies em
sua conformidade latitudinal, enquanto na Rússia prevalecem condições climáticas muito
diferentes e pouco amistosas de climas temperados e semi glaciais.
As expedições a Manchúria que Kropotkin participou em sua juventude, ele menciona
o esforço pela ocupação territorial das margens do Rio Amur, recém - anexado pela Rússia,
realizado pelo governo russo. Como a região era praticamente inabitada, a tática utilizada
pelo Governador Geral da Sibéria Oriental foi a de libertar diversos presos a fim de se quê
fixassem nesse lugar, conforme já mencionado no capítulo 1, devido a escassez populacional
dessa região a ser mobilizada, situação adversa a qual passou a Inglaterra, que inspirou
Malthus a estabelecer a relação entre o crescimento populacional e a disputa por recursos
do meio.
A concepção de Malthus seguia o mesmo pensamento de autores como Hobbes e
Smith, partidários da guerra perpétua de todos contra todos. A disputa crescente de uma
população pelos recursos do lugar não deixava passar despercebido sua relação junto à ética
protestante então identificada como uma qualidade britânica pelos russos, e o local usado
como inspiração para sua teoria. Um território delimitado, literalmente uma ilha, onde o
exército de mão de obra reserva já estava formado, disputando recursos escassos.
Estes acabaram por conceber o mundo animal como um mundo de
perpétua luta entre indivíduos semifamintos e sedentos do sangue uns dos
outros. Fizeram a literatura moderna ressoar com o grito de guerra de “ai
dos vencidos”, como se esta fosse a última palavra da biologia moderna.
Elevaram a luta impiedosa por vantagens pessoais à condição de um
princípio biológico ao qual também o homem deve se submeter, sob a
ameaça de, caso contrário, sucumbir em um mundo baseado no extermínio
mútuo. Deixando de lado os economistas, cujo conhecimento da ciência
natural se resume a umas poucas palavras de segunda mão, devemos
reconhecer que mesmo os mais respeitados defensores do ponto de vista
98
de Darwin se empenharam ao máximo para preservar aquelas falsas ideias.
(KROPOTKIN, 2009, pg. 21)
A luta pela sobrevivência para Kropotkin possui implicações opostas; a primeira,
organismo contra organismo de uma mesma espécie disputando recursos limitados levando
a rivalidade e competição, segundo, organismo contra meio ambiente, levando a
cooperação. E é essa a característica determinante da evolução. Entre os mais variados
exemplos que Kropotkin oferece da cooperação no reino animal, podemos citar o das
formigas:
Nessa imensa divisão do reino animal, que engloba mais de mil espécies e é
tão numerosa que os brasileiros dizem que o Brasil pertence às formigas, e
não aos homens, não existe competição entre os membros do mesmo
formigueiro ou da mesma colônia. Por mais terríveis que sejam as guerras
entre espécies diferentes, e quaisquer que sejam as atrocidades cometidas
nessas circunstâncias, a ajuda mútua dentro da comunidade, a abnegação
mútua tornada hábito e, muito frequentemente, o autossacrifício pelo bem
comum são a regra. As formigas e as térmites renunciaram à “guerra
hobbesiana” e passam muito bem, obrigado. Seus ninhos maravilhosos,
suas construções – superiores em tamanho relativo às do homem –, suas
estradas pavimentadas e galerias subterrâneas de superfícies abobadadas,
seus espaçosos salões e celeiros, seus campos de cereais, suas colheitas e
sua “maltagem” de grãos, seus métodos racionais de cuidar dos ovos e
larvas e de construir ninhos especiais para se protegerem dos pulgões – que
Lineu descreveu tão pitorescamente como “as vacas das formigas”– e,
finalmente, sua coragem, garra e inteligência superior, tudo isso é o
resultado natural da ajuda mútua que esses insetos praticam em todas as
fases de suas vidas laboriosas e diligentes. (KROPOTKIN, 2009, pg.27)
E não priva as formigas de sua face guerreira, ao afirmar que a força do formigueiro
reside na coletividade. A formiga não possui uma carapaça protetora como um animal
individual, sua cor não se camufla na floresta. Seus ovos são iguarias para diversos animais, e
sua picada quando única, não oferece perigo a outros animais. Ao citar o exemplo de Forel,
que ao esvaziar um saco de formigas em um arbusto com diversas outras espécies de insetos
99
e animais, observa grilos, gafanhotos, besouros, aranhas e até ninhos de vespas serem
abandonados diante o ataque coletivo, comenta:
E se as formigas – sem contar o desenvolvimento ainda superior das
térmites – está no topo de toda a classe dos insetos por suas capacidades
intelectuais, se sua coragem só é igualada pela dos vertebrados mais
corajosos e se seu cérebro – usando palavras de Darwin – “é um dos
átomos de matéria mais maravilhosos do mundo, talvez mais ainda do que
o cérebro humano”, isso não se deveria ao fato de a ajuda mútua ter
tomado inteiramente o lugar da luta de todos contra todos em suas
comunidades? (KROPOTKIN, 2009, pg.28)
Seu argumento começa a ser construído baseado nas observações das relações de
ajuda mútua entre os animais63, não sem deixar de atribuir qualidades humanas ao reino
animal e vice-versa. Da construção do conceito de associação entre as mais diversas espécies
presentes no reino animal, esse conceito deriva para um estado natural. Esse estado natural
se edifica junto à história humana, seguindo uma linha evolutiva, nos moldes naturalistas,
entre os primórdios da sociedade, dos selvagens aos bárbaros a cidade medieval e assim, na
sociedade moderna contemporânea, a fim de criticar a concepção da “guerra de todos
contra todos”.
63
A primeira coisa que nos impressiona quando começamos a estudar a luta pela sobrevivência em ambos os seus aspectos – o literal e o metafórico – é a abundância de casos de ajuda mútua, não apenas para criar a prole, como reconhece a maioria dos evolucionistas, mas também para a segurança do indivíduo e para sua provisão do alimento necessário. A ajuda mútua é a regra em muitas das grandes divisões do reino animal. Existe realmente entre os animais inferiores, e devemos estar preparados para um dia descobrir, com os estudiosos da microbiologia, casos de ajuda mútua inconsciente até mesmo na vida de microrganismos. (KROPOTKIN, 2009, pg. 24)
100
Capítulo 3. Nos braços do Leviatã
3.1 A teoria do contrato social
Que trevas e obscuridade se apoderem dele, que nuvens o envolvam, que eclipses o apavorem, que a sombra o domine; esse dia, que não seja
contado entre os dias do ano, nem seja computado entre os meses! Que seja estéril essa noite, que nenhum grito de alegria se faça ouvir nela.
Amaldiçoem-na aqueles que amaldiçoaram os dias, aqueles que são hábeis para evocar Leviatã!
Livro de Jó
Nos primórdios do modo capitalista de produção e o advento de uma nova
sociabilidade baseada na concorrência, a teoria do Estado implica em um novo paradigma
frente ao direito divino dos reis do antigo regime na alvorada no pensamento iluminista.
Igualdade é necessidade.
A constituição do Estado frente a doutrina do direito natural implica na concepção de
um “estado da natureza” das relações sociais. Formulado por Thomas Hobbes, essa relação
se dá nos termos de uma teoria do contrato. Todos os homens são iguais, portanto,
investidos dos mesmos direitos. Porém estão submetidos a imposição da vontade, e a
causalidade da lei natural. Frente a essa causalidade, a vontade se impõe como impulso de
auto - conservação e necessidade de sobrevivência, levando os homens a “guerra de todos
contra todos”. A fim de acabar com esse estado de guerra perpétua e autodestruição, cada
individuo cederia uma parcela de sua liberdade para agrega-la a uma instituição que
possuiria por si só o monopólio da violência a fim de garantir a liberdade dos indivíduos.
Hobbes ilustra essa figura na forma do monstro bíblico Leviatã, instituição de soberania
estatal.
Nesta lenda se ilustram obviamente as relações estruturais fundamentais
do capitalismo nascente, de imediato afirmativamente ontologizadas.
Aquilo que mais tarde Marx dirá ironicamente a respeito de Darwin
também se aplica de certo modo a Hobbes: ele reencontra as relações
sociais da concorrência universal projetivamente na natureza e na luta pela
sobrevivência do mundo animal. A razão de direito natural do contrato
firmado de livre vontade deve ter o seu fundamento na servidão da
101
vontade perante a lei natural, na luta pela autopreservação. Daí a relação
contratual ser desde logo uma relação de submissão a um poder central, a
uma relação de poder. Não por acaso, Hobbes ilustrou o resultado do
suposto contrato com o nome do monstro bíblico “Leviatã”. O Estado não
está para além da concorrência universal, pelo contrário, ele cria o monstro
da sua instância agregadora e internamente domesticadora, enquanto
simultaneamente prossegue a concorrência nas relações externas com
outros meios assassinos. (KURZ, 2011)
A teoria do contrato social de Hobbes realiza o movimento trans - histórico do
iluminismo. Parte das categorias modernas do surgimento do capitalismo como economia de
guerra aplicando-as as diversas formas de sociabilidade anteriores que permeiam a história.
Dessa forma a ação contratual sempre se submete a uma relação de poder, representada
então pelo Leviatã. Dentre as funções do Leviatã, sua função domesticadora interna aparece
primeiramente como garantia pela força da propriedade, categoria central na doutrina
burguesa de direito natural. Nessa relação idealizada onde todos os homens são iguais, a
propriedade aparece alicerçada na contribuição pessoal de trabalho. Não mais na concepção
de trabalho como originariamente o cristianismo concebia como abandono metafísico ao
sofrimento, na formação histórica religiosa, mas a positivação do trabalho que o
protestantismo legitimou como acumulação em si mesma, em um contexto real em
formação. Essa legitimação ideológica da acumulação, inicialmente religiosa, coloca as
formas de representação sociais como o trabalho abstrato, dinheiro e valor autonomizadas
se sintetizam politicamente na instância estatal, sendo o Estado uma instância consciente.
Na instância agregadora do Estado, vale colocar o caráter androcêntrico do Leviatã e
sua figura de “Pai Estado”, na obra de Hobbes como monstro patriarcal. Alicerçado na figura
do proprietário masculino legitimado pelo trabalho, originalmente as mulheres não
possuíam o direito a propriedade e nem o reconhecimento de cidadãs pelo Estado, mesmo
essa relação sendo relativizada quanto o direito da família e sua sucessão. Apesar da
integração da mão de obra feminina durante um longo processo histórico no processo
produtivo e o reconhecimento da “igualdade” de gêneros, a canalização de profissões
“tipicamente femininas”, remunerações abaixo do mercado, cargos de chefia em postos
chave e jornadas duplas de trabalho marcam a dissociação de gêneros. O direito ao próprio
corpo por parte da mulher, não só negado como passível de punição jurídica pela instância
102
estatal como o aborto e a relativização a violação do corpo da mulher como o estupro, são
alguns aspectos que apontam o caráter androcêntrico do Leviatã e seu caráter patriarcal.
Em um segundo momento, a própria teoria jusnaturalista tem de se colocar contra o
Leviatã. O que teórico mercantilista Antoine des Montchretien (1615) definiu como conceito
de economia política o lado estatal da economia. Tratava-se de um problema de economia
interna do Estado, “no âmbito da revolução militar protomoderna das armas de fogo, a
saber, como produção proto-industrial de canhões, já não representável sob as antigas
formas da economia natural, com a expansão da mineração e da siderurgia” (KURZ, 2011).
Com a revolução protomoderna das armas de fogo e a cada vez maior especialização do
trabalho na produção das mesmas, resulta em uma necessidade cada vez maior de
arrecadação dos príncipes e reis como a monetarização dos impostos, a fundação de
manufaturas estatais e de agro – latifúndios, etc.
A economia doméstica (Oikos) do príncipe, até então apenas a mais proeminente de
todas as economias domésticas independentes, transforma-se na pretensão abrangente de
transformar toda a reprodução em multiplicação de dinheiro, a níveis cada vez mais
elevados; o que foi ideologicamente flanqueado pelo protestantismo ou pela sua adaptação
católica no momento econômico do desenvolvimento da contra - reforma. (KURZ, 2011)
Para Robert Kurz, a estatalidade tem início quando o Oikos, a economia doméstica do
príncipe e da família, se converte em economia política, onde a finalidade inicial da
acumulação da economia se desloca de seus objetivos iniciais como a revolução militar e a
ética protestante e as forma dinheiro torna-se independente. É quando Estado e capital
crescem co - originariamente “de uma só raiz”, condicionando-se mutuamente, os dois lados
de uma mesma relação.
Se no primeiro momento a relação jusnaturalista se realiza na economia doméstica,
com a universalização do processo civilizatório e a formação de um mercado mundial há a
concorrência igualmente universal dos proprietários masculinos. A teoria do contrato
alicerçada na soberania do absolutismo tem de desfazer-se frente a liberdade de mercado.
Os cidadãos como proprietários deveriam possuir direitos frente ao Leviatã, como um
controle sobre a captação dos impostos e a utilização desses tributos, a participação em
tribunais e até mesmo a forma política de representação própria como o parlamento. O livre
mercado como espaço para a valorização não deveria ficar circunscrito aos objetivos
103
estatais. O Leviatã deveria tomar forma como arbitro perante aos cidadãos e seu poder
repartido em diversas instâncias independentes entre si, conforme formulado então por
John Locke (1632-1704) e por Charles-Louis de Secondat (1689-1755), barão de
Montesquieu no livro O Espírito das Leis (1748).
Em Locke64 o individuo aparece a determinação onde o homem teria uma propriedade
sobre sua pessoa. Há uma equiparação nessa de determinação da propriedade monetária
dos proprietários burgueses e da mercadoria força de trabalho dos assalariados, ainda que
em Locke os indivíduos aparecem como proprietários de si de forma autônoma em relação
uns aos outros, sendo Deus o verdadeiro proprietário destes. Se Locke é um dos precursores
do liberalismo, a formulação em conceitos religiosos deixa transparecer o sujeito automático
da maquina de valorização em movimento.
Jean Jacques Rousseau (1712-1778) reformula o postulado da teoria do contrato de
Hobbes. Em o Contrato Social, para Rousseau o homem é bom e livre por natureza, se
submetendo a uma autoridade comum por livre associação e arbítrio, não mais por uma
necessidade de autopreservação como em Hobbes. A instituição garante a liberdade dos
indivíduos, e se realiza através da Vontade Geral (Volonté Générale). A Vontade Geral não
parte da vontade autônoma dos participantes, mas como pressuposto por todos os
membros da sociedade, inclusive os representantes do Leviatã. A Vontade Geral para
Rousseau não é formada por vários indivíduos, mas uma Vontade cindida destes,
autonomizada e transcendental.
A “soberania popular” de Rousseau só na aparência constitui a superação
da delegação por Hobbes de um poder de decisão ilimitado à instância
estatal, para além das vontades individuais, constituindo sim a sua
fundamentação agora transcendental, portanto muito mais profunda. A
liberdade de decisão dos diversos portadores individuais e empíricos de
vontade já não é delegada num único portador individual e empírico de
vontade, mas sim num princípio racional abstrato, que se encontra para
além de todas as expressões empíricas da vida. Por isso tal princípio não
deve proceder da soma das relações de vontade empíricas, ou de uma
64
Dois Tratados sobre o Governo, de 1689.
104
decisão da maioria, mas tem de ser “instituído” independentemente de tais
relações. (KURZ, 2011)
A Vontade Geral se difere então da Vontade de Todos (volonté de tous), que seria o
interesse particular dos indivíduos. Liberdade e soberania então se dão somente quando
submetidas a Vontade Geral, sendo este princípio a priori dos indivíduos, e estes são livres
quando tomam suas decisões nesse princípio. O principio transcendental da valorização não
está mais no Leviatã, funcionando como um a priori para todos os indivíduos na sociedade,
não mais arbitrária e envolvendo todos os cidadãos.
De Immanuel Kant, o imperativo categórico65 aponta reflexão semelhante a Rousseau.
Já realizamos uma reflexão do imperativo categórico kantiano no capítulo 266. Aqui, se
coloca a mesma questão da objetividade por Rousseau, a forma vazia de um princípio a
priori como lei geral;
Diz o imperativo categórico de Kant: "Age apenas segundo uma máxima tal
que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal". Uma tal
determinação é estritamente “sem conteúdo”, ou seja, o conteúdo é a
forma abstrata de uma “lei em geral”. Nesta famosa “forma vazia” o que se
exprime não é senão a “vontade geral” de Rousseau. A “máxima” nesta
“forma vazia” universal naturalmente que não pode ser uma máxima
subjetiva, sendo, pelo contrário, como em Rousseau, dada a priori como
princípio da razão transcendental e, portanto, inegociável e objetivo,
princípio que, segundo Kant, tem de ser válido não apenas para a
humanidade, mas para todos os seres inteligíveis de todos os mundos
imagináveis. (KURZ, 2011)
Esvaziado de um critério que contenha algum conteúdo qualitativo em relação às
necessidades dos sujeitos, a submissão ao principio de uma lei geral universal e válida a
todos os indivíduos se realiza como abstração social transcendental do valor no capitalismo
em desenvolvimento, executada na forma geral a abstrata do Direito, fundamentado pela
estatalidade e obrigação a todos os cidadãos.
65
A Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785.
66 Capítulo 2, pg.6.
105
Se estes autores tratavam do princípio da valorização a partir da estatalidade e da
forma jurídica e da objetividade da razão capitalista até então encarada na forma da teoria
do contrato social e livre arbítrio dos sujeitos, e imposição de um princípio transcendental e
universal para todos, Adam Smith colocará essa objetividade nas categorias econômicas
subjacentes da mão invisível do mercado e na livre concorrência.
A essa nova sociabilidade que o modo de capitalista de produção traz, as categorias
basilares dessa nova constituição como trabalho, mercadoria e dinheiro colocadas no
cotidiano como a - históricas e já pressupostas, Smith faz valer a relativa liberdade de ação
dos burgueses proprietários na concorrência de mercado frente ao Leviatã no agir
econômico dos indivíduos orientado por motivações pessoais.
A liberdade de mercado dos sujeitos da concorrência burgueses
proprietários, pensa ele poder provar, não consistiria em qualquer questão
de vontade subjetiva, ou porventura de arbitrariedade, mas constituiria um
maravilhoso mecanismo automático das relações sociais, por ele aclamado
como “máquina” grandiosa, ou como a célebre “mão invisível do mercado”,
que criaria um próspero efeito de bem-estar geral. Pois, precisamente
através da livre concorrência dos burgueses proprietários seguindo os seus
impulsos egoístas, não só se promoveria a repartição geral do trabalho, mas
também se evitaria qualquer desperdício de recursos e se construiria uma
equiparação geral das grandezas de fluxo desproporcionadas na
reprodução material e do valor. (KURZ, 2011)
Smith apresenta a máquina de valorização como mecanismo social cego e sem sujeito,
apresentando o principio da razão transcendental presente em Rousseau e Kant na forma da
vontade geral como mão invisível do mercado, pressuposto para a decisão livre dos sujeitos
na economia como a estatalidade e a forma jurídica é pressuposta para os cidadãos
políticos. O mecanismo de concorrência da mão invisível à sua maneira garante a submissão
dos conteúdos da necessidade e de todos os recursos materiais, e que apenas externamente
tem de ser garantida pelo poder do Leviatã67. Aqui aparece a polaridade imanente entre
67
Com a sua teoria econômica da “vontade geral” ele deu às pretensões dos sujeitos da concorrência proprietários burgueses contra a ilimitada liberdade de decisão “soberana” do Leviatã, no que respeita à lógica própria do mercado, a mesma fundamentação transcendental objetiva que Rousseau e Kant no que respeita à estatalidade e à forma jurídica. Também aqui não se trata de uma efetiva autonomia dos indivíduos sociais,
106
estatalidade e economia, entre o burguês e o cidadão. Ambos os momentos da vontade
geral apontam um para o outro e procedem um do outro. As mercadorias ao serem lançadas
em um mercado cada vez maior pela concorrência mundial necessita de quem lhe abra as
portas e lhe proteja o caminho. O Leviatã se levanta em sua máquina de guerra a fim de
fazer valer a vontade geral e livre concorrência de mercado para todos igualmente. A
integração de territórios cada vez maior pelo além-mar, a conquista de territórios coloniais e
as guerras para introdução da mercadoria nas sociedades do oriente e a mobilização de
recursos tanto naturais como populacionais integram a livre concorrência e o mecanismo do
principio da mão invisível do mercado.
mas sim da objetivação do princípio da autoridade, agora representado pela “mão invisível”. A “liberdade” econômica consiste precisamente na auto - submissão às leis do mercado; economicamente “emancipado” é quem internaliza estas leis pseudo - naturais e, por si mesmo e sem “direção de outrem”, obedece à “coação tácita” (Marx) da concorrência e respeita os “sinais” da “mão invisível”. Esta é a fórmula orwelliana do liberalismo. (KURZ, 2011)
107
3.2 Estatismo e monetarismo. A reprodução do capital como economia
política de guerra desde seus primórdios
Provenientes de uma longa sucessão de Alexandres, Júlio Césares, Gengis Khans, Carlos Magnos e Napoleões, trincharam o mundo como um
jantar saboroso. Fosse com o cabelo repartido ao meio ou usando um elmo viking, não seriam contestados, e seria impossível fazer um acerto de contas
com eles. Bárbaros rudes precipitando-se pelo mundo e martelando suas novas ideias de geografia.
Bob Dylan, Crônicas
A origem do Estado e sua afirmação na modernidade implicam desde sua constituição
como instância de caráter diverso. Controladora entre os sujeitos e seus impulsos de auto
preservação como em Hobbes, agregadora e tripartidária em Locke e em Montesquieu,
mediadora da associação livre de Rousseau, jurídica em Kant, invisível para Smith. Junto ao
movimento operário, uma instância a ser eliminada de imediato pelos socialistas libertários,
a ser conquistada na concepção dos socialistas autoritários durante Primeira Internacional.
Estado e monetarismo surgem como polos que se determinam mutuamente. A origem
da modernidade remonta para além da concepção etapista do materialismo histórico
marxista do séc. XX como uma consequência do desenvolvimento das forças produtivas das
sociedades agrárias pré-modernas e o domínio do homem sobre as forças da natureza. Nem
tampouco o predomínio do capital pelo globo se deve a uma expansão pacifica dos
mercados, mas remonta a uma economia de guerra desde seus primórdios. Karl Georg Zinn,
economista, refere-se a esse período da história como “economia política das armas fogo”.
Essa abordagem não coloca a expansão da economia agrária de troca direta e a
sobreposição do desenvolvimento das forças produtivas alicerçada na evolução técnica, mas
na realização de uma razão abstrata concomitante ao processo de militarização crescente
presente no fim da Idade Média, com o surgimento das armas de fogo, conforme reflete
Robert Kurz.
A pólvora já era utilizada pelos chineses para a fabricação de fogos de artifício, mas
também possuíam sua utilização para fins militares. Porém, a construção de armas de
projéteis de longo alcance baseado na utilização desse elemento deve seu mérito aos
cristãos da Europa. Como consequência uma revolução militar que permitiu a ascensão
108
histórica do Ocidente, e colocando fim a unidade blindada dos cavaleiros medievais da Idade
Média.
Esse episódio não se restringiu somente a uma alteração da tecnologia militar, mas no
âmbito de organização e logística da guerra. Até então, cada homem que possuía sua
atividade desde as guildas manufatureiras as atividades agrárias, constituíam milícias que
eram convocadas para a defesa do burgo ou convocadas pela autoridade real a qual
mantinham relações para a guerra. Os reinos não possuíam um exército operacional
permanente para tal função, de custo extremamente oneroso. Além disso, qualquer forja em
uma aldeia conseguiria produzir as armas para o combate, como o escudo, a espada e o
elmo.
A introdução das armas de fogo como o mosquete e o canhão altera essas relações.
Eles não podiam simplesmente ser armazenados em qualquer casa e muito menos
transportados de forma habitual. A produção dessas armas exigia uma logística centralizada
e a mobilização de um parque para a construção bélica de canhões e projéteis. O ferreiro da
aldeia já não atendia essa demanda, sendo necessária uma mão de obra especializada para a
realização do intento, longe da escala doméstica da economia feudal, além de uma divisão
do trabalho mais aprofundada.
Com uma nova tecnologia se espalhando pela Europa, há o advento de uma mudança
na estrutura urbana dos burgos. Com o desenvolvimento tecnológico e a produção de
canhões com um alcance e potência cada vez maiores, a fortificação das cidades
corresponde a esse movimento com a construção de muralhas cada vez maiores e mais
espessas e o desenvolvimento da técnica de construção de fortalezas. Um primeiro ímpeto
de modernização da corrida armamentista.
Para a operacionalização dos armamentos, a mão de obra necessária é completamente
desvinculada da reprodução natural agrária perdendo seus vínculos sociais. Os Condottieri,
líderes mercenários, e seus subordinados como os mosqueteiros e os canhoneiros,
constituíam ”o protótipo da própria forma do sujeito que só na Modernidade deveria tornar-
se o princípio geral da sociedade sob a forma da abstração da atividade com relação às
necessidades.” (KURZ, 2002). Os mercenários já não possuíam uma atividade agrícola ou
manufatureira em tempos em que não estavam em guerras. O trabalho abstrato, a atividade
exercida a troco de dinheiro abstraindo-se o conteúdo e este se tornando indiferente se faz
109
presente na conservação da vida ou o encontro da morte na guerra pelo ganho do soldo. A
essa crise soma-se que o período entre guerras. Desvinculados de qualquer atividade de
produção, estes mercenários permaneciam sem soldo, temidos como vagabundos
mendicantes, bandidos e assassinos ocasionais. Ao protótipo do sujeito sujeitado, esses
mercenários já se encontravam desempregados, vagando por aldeias, burgos e reinos, como
fenômeno em massa até.
Com a nascente economia política de guerra, o exército se destaca da sociedade civil
como uma categoria profissional especializada. A produção armamentista e a formação de
um exército operacional exclusivo por parte dos soberanos começa a desviar os recursos da
sociedade para um fim militar de forma nunca vista na história. Os despojos de guerra e os
empréstimos junto aos banqueiros não são suficientes para arcar com os custos militares.
Até então os tributos eram pagos em gênero natural vinculado ao rendimento agrário real. A
forma de arrecadação de tributos, sujeitando a reprodução social simultaneamente a forma
dinheiro, é monetarizada. Os impostos pagos em dinheiros já abstraem as condições
naturais estendendo a lógica do aparelho militar ao restante da sociedade.
A esse processo de militarização e arrecadação, os Estados nascentes passam a fundar
suas empresas de produção. Manufaturas e plantações do Estado que produziam para um
mercado anônimo em grandes extensões geográficas com o fim único arrecadar dinheiro
tornam-se o pressuposto para o mercado de livre concorrência. Recorre-se aos mais diversos
métodos para mobilizar a mão de obra; condenados, doentes mentais aprisionados,
formação legislativa de novos delitos a fim de cooptar uma multidão de trabalhadores
forçados.
A anexação da América fora um processo emblemático. Com um punhado de homens
e munido de canhões e mosquetes, os conquistadores cristãos europeus chacinaram nações
indígenas inteiras, anexando o território ao mercado internacional nascente, introduzindo a
mão de obra escrava. A economia armamentista europeia e o colonialismo potencializaram-
se mutuamente, com a construção de enormes frotas navais para o tráfego (e o tráfico) de
ambos os lados do Atlântico sendo realizado com os recursos da economia abstrata. A
guerra de constituição dos Estados Modernos é delineada em contornos intercontinentais.
Os Estados Absolutistas constituídos sob a base da inovação das armas de fogo colocam seus
110
imperativos pela violência, fomentando a acumulação primitiva de capital que permitiria a
Revolução Industrial.
A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a
escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo
da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em
um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era
de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos
fundamentais da acumulação primitiva. De imediato seque a guerra
comercial das nações européias, tendo o mundo por palco. Ela é aberta
pela sublevação dos Países Baixos contra a Espanha, assume proporção
gigantesca na Guerra Antijacobina da Inglaterra e prossegue ainda nas
Guerras do Ópio contra a China etc. (MARX, ---, pg.370)
Na forma absolutista68 e mercantilista gesta os traços fundamentais de uma economia
moderna. Criação de um sistema tributário geral, fomento e controle de mercadorias como
fonte principal da tributariedade monetária pelo Estado, intensificação planejada do
processo de produção de mercadorias além dos limites estamentais das forças produtivas
conduzem a outro modelo de produção. A Revolução Industrial, o livre mercado o
Imperialismo e a Nação com suas zonas de influência espaço mundial.
Na época do antigo imperialismo policêntrico das potências industriais
europeias (aproximadamente entre 1870 e 1945) tratava-se sobretudo da
repartição territorial do mundo em colônias nacionais e "zonas de
influência". Este nacional-imperialismo europeu clássico estava enraizado
no princípio territorial do Estado nacional burguês, tal como ele se tinha
constituído em oposição ao princípio dinástico ou pessoal da sociedade
agrária feudal. A expansão territorial dos Estados nacionais capitalistas, já
iniciada no começo da Idade Moderna, prossegue em larga escala com base
68
O Estado, o outro volante da máquina de alienação ao lado do dinheiro, recebe assim, por sua vez, uma natureza dupla. Do ponto de vista histórico ele assume, já em sua primitiva forma moderna, absolutista, burguês-revolucionária e ditatorial, por um lado, o papel de parteira do sistema produtor de mercadorias e, por outro, torna-se componente imanente deste último; do ponto de vista institucional ele serve, por um lado, para assegurar as condições que apoiam o capitalismo, e por outro lado é promovido a instância reguladora que interfere ativamente no processo de reprodução do trabalho morto, tão logo os sectores "improdutivos" da infraestrutura (...)” (KURZ, 1991)
111
na industrialização; o seu objetivo era o alargamento do controlo territorial.
Não era ainda um mercado mundial sem fronteiras que estava na base
desta evolução, nem uma globalização transnacional do capital, mas,
precisamente ao contrário, a formação do processo de acumulação,
crescentemente baseada na economia estatal e nacionalmente centrada. A
expansão do movimento econômico assumiu por isso a forma de um
esforço pela simples constituição de parciais e relativas "economias
mundiais" (na pluralidade das nações), controladas pelos "grandes
impérios" nacionais. (KURZ, 2003)
112
3.3 O Leviatã vive. A relação Estado e território em Ratzel
O patriotismo é o último refúgio de um canalha
Samuel Johnson
Na história do pensamento geográfico, Friedrich Ratzel emerge como um dos patronos
da disciplina acadêmica. A ele é atribuído a introdução do método positivista na
sistematização das análises geográficas, com sua aplicação na discussão da relação entre a
sociedade e meio. Sua teorização passa pelos campos da antropologia e da política, como
em suas obras Antropogeografia e Geografia Política. Suas considerações estarão na base do
desenvolvimento do pensamento geopolítico de autores tais como Mackinder, Kjellen e
Haushofer. A categoria Estado no pensamento ratzeliano ecoará nos estudos de geografia
durante todo o século XX, e será umas das matrizes de pensamento que formulará um
determinado discurso geográfico dentro da disciplina.
Sua proposta de um estudo geográfico como meta teórica onde a geografia
contribuiria para a formulação de uma teoria da história, através das influências dos diversos
quadros ambientais da Terra e sua influência na localidade e evolução dos povos, sugere
uma integração da relação entre a história geológica do planeta e a história da espécie
humana, conforme o pensamento positivista, que abarca em um único domínio os
fenômenos naturais e sociais.
Bem, a nossa ciência deve estudar a Terra ligada como está ao homem e,
portanto, não pode separar esse estudo da vida humana, tampouco do da
vida vegetal e animal. As mútuas relações existentes entre e Terra e a vida,
que sobre aquela se produz e se desenvolve, constituem precisamente o
nexo entre uma e outra e, portanto, devem ser particularmente
examinadas. Hoje a parte geográfica desse estudo tem uma importância
indubitável e é, ao mesmo tempo, a de mais fácil realização. É de se
assinalar, em primeiro lugar, que tudo que se refere a natureza, ao
ambiente, é imutável em comparação aquilo que se refere ao homem. (...)
Recordemos, na expressão de escultural de Karl Ritter, “ser o Estado cingido
a natureza de seu território”. Quanto mais elevado é o ponto de vista a
partir do qual se considera a história, tanto mais se torna manifesta a
existência deste canal bem determinado e pouquíssimo mutável, através do
113
qual deriva a corrente da humanidade, e tanto melhor se reconhece a
importância que tem na história o elemento geográfico do qual falamos. É
precisamente sobre esta importância que se apoia o direito da geografia de
investigar as condições naturais em meio as quais os acontecimentos
históricos se desenvolveram. (RATZEL, 1990, pg.32)
No pensamento de Ratzel, há um movimento trans - histórico quanto às concepções
da relação entre natureza e história, mesmo com a limitação do conhecimento empírico de
espaços geográficos, além de registros etnográficos e históricos da Antiguidade. Para Ratzel,
os conceitos antropogeógraficos já se encontravam na Grécia pelas observações sobre a
influência do clima na vida dos povos em Hipocrates e Estrabão, e este último expõe a
necessidade de considerar uma conformação na diversidade dos territórios como
preordenada com base em um princípio racional que, para Ratzel, é o conceito fundamental
obra de Karl Ritter. O rompimento dessa percepção geográfica é retomado com a renovação
da ciência pós Idade Média, mais precisamente centrada na utilização do método científico.
“Somente a ciência natural progride como ciência investigadora de leis, enquanto a história
não avança nenhum passo a diante.” (RATZEL, 1990, pg.34) Para Ratzel, o que se encontrava
em dissonância com as afirmações sobre a influência da natureza junto aos povos é um
problema de ordem metodológica, como em Bodin em seu Methodus ad facilem historiarum
cognitionem de 1566 que, além da influência exercida pelos terrenos e cursos de água
também atribui ao destino dos povos a influência dos planetas.
A crítica que dirige a Thomas Hobbes e sua descrição do estado de natureza é a
idealização por este sem uma base taxonômica dos conhecimentos dos povos desde as
grandes navegações, bem como a falta de uma descrição etnográfica que pudesse
apresentar como prova. Em Hobbes, o estado de natureza não ultrapassou o estágio de
hipótese, como em Bacon que considerou os povos como produto da natureza e da história,
e não apresentou um estudo coerente sobre a influência que as condições naturais exercem
sobre a história69, negligenciando o elemento geográfico representado pela união de
69
Permanece, portanto, infrutífera como uma flor dissecada e encerrada entre as páginas de in fólios filosóficos; porque, mesmo naqueles casos em que teria sido fácil descobrir e provar a influência exercida pelas condições naturais, preferiu-se passar por cima do fatos a pôr decididamente as mãos na intrincada teia(RATZEL, 1990, pg. 34)
114
indivíduos para adquirirem maior força, segurança e conquista territorial na passagem do
estado de natureza para o social.
Montesquieu quer representar o Estado como um organismo nascido não
arbitrariamente, mas formado pela natureza, e que, por isso, não pode ser
arbitrariamente modificado, com o que ele afirma a influência das
condições naturais sobre a história. Assim, considera-se o elemento
geográfico, mas com critérios e entendimentos nada geográficos. (RATZEL,
1990, pg.35)
A crítica aos pensadores iluministas vem da não sistematização desse pensamento,
bem como a falta de demonstração para a elucidação do tema. É presente nas elaborações
de Montesquieu um pensamento sobre a influência que o clima exerce no caráter dos povos
tanto como ação depressora ou fortalecedora, entre climas frios e quentes, sobre as
legislações pouco desenvolvidas nas sociedades orientais e a brandura do temperamento
das populações produzidas pela influência climática, bem como a ideia de que em países
quentes reina o despotismo e nos países frios a liberdade. Tais ideias para Ratzel estão
formuladas precisamente em Ritter e Herder. Os traços do materialismo geográfico que
marcam sua obra já se fazem presentes no pensamento iluminista de forma elaborada, mas
carecendo do método científico70.
Isso colabora para a sua recusa de um determinismo simplista, o qual acusa
Montesquieu e sua afirmação onde o clima interfere diretamente na índole e caráter dos
povos, não levando em consideração os diversos fatores que o ambiente exerce sobre o
homem. Primeiramente a influência deste sobre o biótipo humano, as modificações sobre o
corpo e psique dos povos é de natureza fisiológica e, portanto do campo da fisiologia e do
individuo. Para a geografia, é valido somente quando essas modificações se estendem para
os povos influenciando em sua história. Em segundo, o meio passa a ter uma influência
determinante quando direciona, acelera ou se coloca como obstáculo natural a expansão
das massas étnicas, determinando a direção, amplitude, posição geográfica e limites
70
Montesquieu e Herder não se propuseram absolutamente a resolver problemas sociológicos ou geográficos quando tomaram em consideração as relações existentes entre os povos ou os Estados e os seus territórios, mas pretenderam apenas compreender a missão e o futuro do homem estudado no seu ambiente físico, que, segundo a concepção de Herder e Ritter, foi preparado deliberadamente por ele para que pudesse realizar aqui seu desenvolvimento segundo o projeto do Criador. (RATZEL, 1990, pg.80) Ratzel não nega o Criador.
115
territoriais aos povos. Ratzel considera também a influência das condições geográficas sobre
a essência intima de cada povo, favorecendo seu isolamento, conservação a afirmação de
determinadas características ou sua miscigenação com outros povos e perda das
características originais. Por último, a possibilidade de cada povo de se apropriar das
riquezas naturais que lhe fornecem primeiramente os meios necessários a reprodução da
vida, em seguida ao exercício da indústria e do comércio e a obtenção de riquezas por meio
da troca. Esse conjunto ofereceria um panorama da influência da natureza no destino da
humanidade. Ao determinismo geográfico, a fisiologia do individuo deve ser analisado em
primeiro lugar, e somente depois a influência geográfica sobre o organismo, determinada
pelos conceitos de migração e isolamento dos povos71.
É a relação entre o homem e o território o ponto central na teoria de Ratzel. E este se
dá na relação da sociedade com o solo, com a necessidade da busca por moradia e
alimentação, esta determinando a fixação do local das moradias. Independente se a forma
de reprodução dos povos é o nomadismo ou o sedentarismo, a oferta dos recursos
disponíveis em uma porção territorial determina o tempo da fixação de um povo em
determinado lugar, desde a oferta de caça disponível, pastos para a criação de animais bem
como as terras agricultáveis. Quanto maior o vinculo através da alimentação e da moradia,
maior a necessidade de proteção do território. “A sociedade que consideramos, seja grande
ou pequena, desejará sempre manter sobretudo a posse do território sobre o qual ela vive.
Quando esta sociedade se organiza com esse objetivo, ela se transforma no Estado.”
(RATZEL, 1990, pg.76)
A organização da sociedade inicia-se com a fixação da família monogâmica em uma
porção territorial. Com o crescimento da família proporcionalmente é o do território. A
família permanecendo unida durante o processo de crescimento do território em junto a
disponibilidade de recursos naturais, se complexifica constituindo - se a si própria em
Estado. Se há a separação da prole da família, esta ocupa novos territórios, e sem vínculos
econômicos mútuos para reprodução, constituem-se outros vínculos de afinidade,
71
Podemos portanto estabelecer como regra que nas pesquisas relativas a influência que a natureza exerce sobre características materiais ou espirituais dos povos, o argumento da sua difusão geográfica deve ser sempre deixado a parte ou por ultimo, porque ele induz ao erro com extraordinária facilidade. Dada a imensa mobilidade do homem aquelas características não permanecem exclusivas dos territórios de cuja influência foram produto, pois elas migram com o homem que as adquiriu; e nesse caso sua duração depende das condições internas do organismo que as possui. (RATZEL, 1990, pg.63)
116
mantendo unidas as habitações, vilas e clãs formando-se um Estado. É quando ocorre a
distinção entre a unidade política e econômica, onde a gen e o Estado se coincidem.
Conforme a aliança entre as diversas gens com finalidades de ataque e defesa, o Estado
conduz o incremento territorial, e seu crescimento gradativo leva a unidade a alcançar a
amplitude dos impérios mundiais e suas extensões continentais.
Ratzel coloca que se o Estado quer manter seu território com as mesmas proporções e
não sair do isolamento em relação a outros Estados, ele entra em luta contra a sociedade,
buscando através de meios não naturais como abandono de recém-nascidos, canibalismo,
vingança familiar e a guerra a diminuição da população, fenômeno que se realiza
pronunciadamente em oásis e ilhas, extremos territoriais, conforme observado por Malthus.
O estágio de desenvolvimento político entre sociedade e território exerce a influência sobre
a natureza do Estado. Uma população nômade para manter o controle de seu território dá
lugar a formação de um Estado nômade, o qual para prover a proteção do próprio território
deve ter organização e governo militar. Se a relação com o solo se dá através da agricultura,
as características do Estado variam de acordo com a repartição do terreno entre as famílias.
Uma repartição uniforme produz uma sociedade inclinada a democracia, enquanto uma
repartição desigual leva a uma oligarquia, com expressão mais pronunciada em sociedades
escravistas, com uma população escrava privada de qualquer propriedade e direitos. “O
território, sendo um fator constante em meio a variação dos acontecimentos humanos,
representa em si e por si um elemento universal. (Ratzel, 1990, pg.80)
O território como categoria universal se manifesta como lugar a ser apropriado pelo
homem, na totalidade de seus recursos naturais em uma luta contra a natureza. “A luta
contra a natureza, no sentido mais amplo da expressão, produzia os impulsos mais fortes a
formação dessas agregações sociais.” (RATZEL, 1990, pg.143) Em detrimento ao estado de
natureza de Hobbes, da guerra de todos contra todos, Ratzel em seu materialismo
geográfico primeiramente postula a sujeição deste ao ambiente, onde o estado de guerra se
dá primeiramente junto ao meio. Da sujeição do homem ao solo72, sua apropriação de um
72
Na verdade o solo nos aparece como a causa mais profunda da sujeição humana, na medida em que permanece rígido, imóvel e imutável, abaixo das mutáveis disposições humanas, e se ergue dominador acima do homem toda a vez que este ignora sua presença para adverti-lo severamente de que a raiz da vida está unicamente no solo. É ele que, duramente e sem nenhum critério de escolha determina a cada povo o seu destino. (RATZEL, 1990, pg.81)
117
território através do nomadismo ou pela agricultura o Estado se torna a mediação dessa
relação como organizador para defesa e ataque de outros territórios como fator geográfico
em uma teoria da história. Em um segundo momento, em contrapartida a neutralidade que
o método positivista, oferece na análise de um objeto onde como ciência, reside no discurso
científico para além de uma proposta de um estudo onde os métodos das ciências naturais
são aplicados ao estudo dos fenômenos humanos, a instituição estatal é um organismo com
funções fisiológicas, um organismo vivo. Aqui, todas as qualidades da sociedade são
atribuídas a ela, esvaziadas do processo social em sua totalidade.
Os inventários de Estados que descrevem o território estatal como um
objeto estável e inteiramente fixo chegam a essa concepção dogmática e
estéril basicamente por desconsiderarem tais rupturas. A sua apreciação só
pode fortalecer a única conclusão correta: com o Estado, estamos tratando
de uma natureza orgânica. E nada contradiz mais a natureza do ser
orgânico que esta rígida circunscrição. Isso vale também para a geografia
política que, certamente, trata principalmente das bases estáveis dos
movimentos populacionais, mas nunca pode perder de vista que o fato que
os Estados dependem, em forma e tamanho, de seus habitantes, isto é, eles
se conformam a mobilidade de suas populações, tal como se expressa
especialmente nos fenômenos de seu crescimento e declínio. Um certo
número de pessoas está ligado a área do Estado. Elas vivem de seu solo,
dele retiram seu sustento e, além disso, estão ligadas a ele por razões
espirituais. Juntamente com essa porção de terra, elas formam o Estado.
Para a geografia política, cada povo, localizado na sua área essencialmente
delimitada, representa um corpo vivo que se estendeu sobre uma parte da
Terra e se diferenciou de outros corpos, que igualmente se expandiram por
fronteiras ou espaços vazios. (RATZEL, 1990, pg.176)
É na proposta de uma geografia política que reside o coup de Ratzel. Como um corpo
orgânico imbuído de um comportamento próprio, os atributos do Estado como localização,
espaço, fronteira, e soberania que possuem uma determinação histórica no modo capitalista
de produção, aparecem naturalizadas. O método positivista que utiliza permite afirmar que
cada povo ligado a sua área represente um corpo vivo que tem sua expansão por fronteiras
ou espaços vazios, se diferenciando de outros corpos através da diferenciação de áreas. Ao
conceber as relações políticas ligadas diretamente ao solo, O Estado aparece como
118
totalidade, por um materialismo geográfico que aponta os aspectos naturais como
protagonistas dessa relação.
Depois que Ratzel eliminou, dessa maneira, a problemática da esfera social
e consequentemente a urgência de um questionamento social em geral,
agora ele precisa somente deixar desaparecer a esfera econômica e desta
feita conseguir uma manobra artística: o Estado e o solo estão sendo
colocados em relação direta. “O Estado deve viver do solo”, proclama
Ratzel. Muito bem, mas o “Estado” ainda que em algum momento
apresentado, em oposição a toda a realidade, como uma sociedade estatal
ratzeliana preenchida com interesses comuns; mesmo um “Estado” dessa
forma, embora tão curioso, não se constituí em nenhuma minhoca. Os
homens que formam a sua “totalidade” digna de louvor não vivem
diretamente da terra, mas das plantas e animais que existem na terra e que
em geral só são produzidos e feito consumíveis pelo trabalho. Onde fica
então o reino do trabalho, através do Estado de Ratzel “vive-se do solo”?
Ratzel não fala aqui do processo de trabalho; mas, de uma forma
completamente diferente, solo e Estado se juntam. (WITTFOGEL, 1992,
pg.33)
Na teoria do organismo de Ratzel, o Estado se alimenta diretamente do solo, excluindo
qualquer processo econômico e político que determina o comportamento deste. O processo
do trabalho, a expansão do modo capitalista de produção impondo uma nova sociabilidade
da mercadoria a todo espaço mundial e a organização da sociedade em diversos Estados
necessários a expansão do mercado mundial é apagado. A expansão do território é
justificada pelas “Leis do crescimento espacial dos Estados”.
Primeiramente, pela cultura. Como o Estado ganha as características da população que
habita seu espaço, elas se inserem em um processo de civilizatório. As menores agremiações
de tribos já apresentam pequenos Estados, e qualquer relação já representa uma relação
política construída culturalmente73. Cada Estado tem sua origem cultural em uma teocracia.
73
Dominar politicamente essas áreas, amalgama-las e mantê-las unidas requer energia ainda maior. Tal energia só pode se desenvolver lentamente pela e através da cultura. A cultura cria progressivamente as bases e os meios para a coesão dos membros de uma população, e amplia continuamente o circulo daqueles que se reúnem apelo reconhecimento de sua homogeneidade. (RATZEL, 1990, pg.177)
119
Pelas relações religiosas e comerciais os povos são aproximados pelos caminhos onde
percorre tais atividades, criando similaridades entre eles preparando o solo para o avanço
político e a unificação. Em épocas de desenvolvimento intelectual avançado a comunalidade
desses povos “surge a consciência como um sentimento patriótico, e assim trabalha para sua
integração e unificação” (RATZEL, 1990, pg.181). A esse movimento segue a anexação de
membros territoriais menores e com aprofundamento da relação do povo com sua terra. “A
nação é uma entidade orgânica que, no curso da história, torna-se cada vez mais apegada a
terra em que ela vive.” (RATZEL, 1990, pg.183)
As fronteiras são extensões do corpo orgânico, por isso mutáveis, indeterminadas,
sempre em movimento de expansão, buscando posições politicamente valiosas. Essa busca
por posições politicamente vantajosas justifica a busca pelo Estado de áreas localizadas ao
longo do mar, rios, lagos e planícies férteis. O Estado busca a conquista dessas áreas como
nas terras mais jovens, as colônias, que mesmo ocupadas por povos antigos, sucumbem a lei
de expansão dos Estados, que busca a anexação de tais áreas. A tendência expansionista do
estado é estimulada por outros Estados próximos, e essa tendência é reproduzida logo que
cada Estado possui essa tendência em si retransmitindo-a a outros corpos políticos.
Pelo menos para um único Estado deve ter existido uma lei de crescimento
diferente; este primeiro Estado com noções maiores de espaço e de Estado,
não poderia ser influenciado por estrangeiros de um outro Estado, a partir
dessas noções, pois isso contraria a noção do primeiro Estado. Como
então? Uma resposta a esta pergunta Ratzel não oferece. Tais Estados, que
romperam com a lei dos espaços estatais “transparentes”, existem
simplesmente. (...) Para variar, Ratzel que até agora explicou o seu Estado
como uma comunidade primitiva, introduz nesse momento um Estado com
tendências á expansão imperialistas. (WITTFOGEL, 1992, pg.37)
A isso, está justificada a expansão militar do Estado, uma tendência inerente ao
organismo estatal, que tem em sua reprodução a necessidade de anexação de novos
territórios. O conceito de “espaço vital”74 de Ratzel, a despolitização das ações do Estado na
74
Este conceito geopolítico de grande território, frequentemente transformado vitalisticamente em "espaço vital", pertencia também, como é sabido, ao vocabulário preferido de Hitler: Povo sem espaço era o título do oportuno romance best-seller do popular escritor colonialista Hans Grimm (1926). Depois de o comércio mundial entre as grandes potências no período entre as duas guerras ter caído profundamente, surgiram
120
sua reprodução econômica em busca de matérias primas, mão de obra e mercado, na
concepção de um corpo vivente, nos remete a imagem das próprias mandíbulas do Leviatã,
ontologicamente, estabelecendo limites, fronteiras e guerras entre os povos, dos mais
primitivos aos mais desenvolvidos;
As zonas de fronteira permanecem livres, mas servem também para toda a
espécie de forças adversas do Estado, são o refúgio dos refratários e dos
desesperados de toda a espécie; não raramente ocorre que elas sejam o
berço de novas formações políticas. Uma fronteira bem distinta se formou
antes ali que em qualquer outro lugar onde se encontram em contato as
duas formas mais opostas da vida e da civilização humana, isto é, a
agricultura e o nomadismo. Ali a necessidade obriga os agricultores a
estabelecer para os povos da estepe uma fronteira precisa, e a arte vem ao
encontro da natureza, erigindo trincheiras ou também baluartes. As
estepes são as regiões onde surgem a muralha da China e os vales cossacos
e dos turcos. pg. 148.
Aqui, Ratzel têm o mérito de antecipar o movimento Futurista de Marinetti, ao
considerar como uma “arte” as trincheiras escavadas na paisagem, atribuindo um sentido
estético as fortificações militares que demarcam esse território. Como nos lembra
Benjamin75, “Eis a estetização da política, como a prática do fascismo.” Talvez, a expressão
máxima do Leviatã que ganha vida e caminha sobre a Terra.
esforços para conseguir uma autarquia nacional no Ultramar, os quais já desde o início tinham conduzido ao imperialismo clássico. O objetivo desta política de autarquia, como declarou no começo dos anos 30 num congresso contra a economia liberal o economista Wilhelm Gerloff, era "a criação de um espaço econômico auto - suficiente do ponto de vista da produção e do consumo, dispondo de tanto espaço e de tantas riquezas que pode suprir todas as necessidades econômicas e culturais dos seus membros...” (Gerloff 1932, 13). (KURZ, 2003)
75 Benjamin, 1996, pg.196.
121
3.4 Kropotkin: O Estado e seu Papel Histórico
O caráter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cuja afecção fundamental é a de uma desconfiança insuperável na marcha das coisas, e a disposição para, a cada momento, tomar consciência de que as coisas podem correr mal. Por isso, o caráter destrutivo é a imagem viva da
fiabilidade.
Walter Benjamin
O livro de Kropotkin, O Estado e seu Papel Histórico, é herdeiro da cisão presente no
seio da Internacional dos Trabalhadores, a divisão do que se convencionou chamar entre os
socialistas autoritários e os socialistas libertários76, quanto a como deveria se realizar a
revolução. Os primeiros defendiam um programa baseado na organização disciplinar
concentrada em um comitê central, enxergando na tomada do Estado uma fase de transição
necessária a fim de alcançar o socialismo. Já os socialistas libertários defendiam a imediata
supressão deste, visto que as atribuições do corpo institucional racionalizado em si a priori
impediriam a revolução social dentro dessa própria racionalidade:
Uma é composta de indivíduos que procuram fazer a revolução social
dentro do Estado, mantendo a maior parte de suas atribuições, ampliando-
as, inclusive para utiliza-las em benefício daquilo que preconizam. A outra é
composta de criaturas que, como nós, veem no Estado - não apenas em sua
forma atual, mas até na própria essência e sob todas as formulas as quais
possa revestir-se – um obstáculo a revolução social, um tropeço por
excelência, ao desenvolvimento de uma sociedade baseada na igualdade e
na liberdade. E, mais ainda: os anarquistas veem, no Estado, a fórmula
histórica elaborada para impedir o florescimento da sociedade norteada
por esses dois princípios. Consequentemente, os anarquistas trabalham
para abolir o Estado, e não para reformá-lo (KROPOTKIN, 2000, pg.7-8)
76
Kropotkin não participou da Internacional dos Trabalhadores. A tensão no seio desta que resultou na cisão do movimento fora entre Marx e Bakunin, resultando na expulsão deste último, junto com a retirada dos trabalhadores latinos que se identificavam com a proposta de Bakunin. Kropotkin comenta no artigo A Comuna de Paris, “De acordo com os socialista alemães, o Estado devia tomar posse de todas as riquezas acumuladas e da-las as associações operárias, organizar a produção e a troca, zelar pela vida, pelo funcionamento da sociedade. A isto, a maioria dos socialistas de raça latina, fortalecida por sua experiência, respondia que semelhante Estado – admitindo mesmo a impossibilidade de sua existência – teria sido a pior das tiranias, e opunham a este ideal, copiado do passado, um novo ideal, a an – arquia, isto é, a abolição completa dos Estados e a organização do simples ao composto pela federação livre das forças populares, dos produtores e dos consumidores” Kropotkin, Piotr Alekseievitch. Palavras de um Revoltado, 2005, Editora Imaginário.
122
Ao propor um estudo da instituição Estado pelo seu desenvolvimento histórico,
Kropotkin problematiza a ideia da transição do estado de natureza a vida governada, e
dialoga com a teoria de Estado de Thomas Hobbes (1651). Ele aprofundaria posteriormente
esse tema no seu livro a Ajuda Mútua77. Este parte de um “estado de natureza” onde todos
os homens possuem os mesmos direitos, submetidos á guisa da causalidade da lei natural.
Abandonado ao livre arbítrio e a servidão da vontade, o impulso de autoconservação dirige
então a sociedade a uma “guerra de todos contra todos”.
Há, como sabem, a escola alemã que se vangloria em confundir o Estado
com a Sociedade. Esta mesma confusão se encontra nos escritos dos
melhores pesquisadores franceses, os quais não podem conceber a
sociedade sem a centralização estatal. E é esta a razão porque, contínua e
habilmente, esses pensadores censuram os anarquistas por “quererem
destruir” a sociedade, por “pregarem o retorno da guerra perpétua de
todos contra todos”.
Raciocinar desse modo é ignorar completamente os progressos realizados
no domínio da história durante os últimos oitenta anos; é desconhecer que
o homem, antes de sentir o peso do Estado, viveu em sociedade no decurso
de milhares e milhares de anos; é ouvidar que, na Europa, o Estado é de
origem recente, visto que data, apenas, do século XVI; é esquecer, enfim,
que os períodos gloriosos da humanidade foram aqueles em que as
liberdades não tinham sido ainda esmagadas pelo Estado, naqueles
períodos em que as massas humanas viviam em comunas e em federações
livres. (KROPOTKIN, 2000, pg.9)
A renúncia ao indivíduo, ao direito da liberdade de ação, partindo do comum acordo
de todos expresso na instância agregadora do governo, absoluto e soberano em todas as
decisões, embala o sonho do homem sob o signo contratual acolhedor do Leviatã. Hobbes,
tal qual Darwin, encontra as relações sociais de concorrência universal projetivamente na
natureza e na luta pela sobrevivência animal:
77
Como já tratado no capítulo 2 “No bordel do historicismo”, sub item “A Ajuda Mútua e a crítica ao darwinismo social”.
123
A maior parte dos filósofos do século XVIII tinha uma ideia muito elementar
sobre a origem das sociedades.
No princípio – diziam eles – os homens viviam em pequenas famílias
isoladas; e a guerra perpétua entre estas famílias representava o estado
normal. Mas um belo dia, apercebendo-se, enfim, dos inconvenientes
destas lutas eternas, os homens resolveram constituir-se em sociedades.
Entre as famílias dispersas estabeleceu-se, então, um contrato social,
submetendo-se todas, voluntariamente, a uma autoridade, a qual – terei
necessidade de vo-lo dizer? – se transformou no ponto inicial, na origem de
todo o progresso! (KROPOTKIN, 2000, pg.12)
Para Kropotkin, o Estado não representa uma união contratual espontânea, com uma
finalidade racional abstrata, que permeia os vãos da história guiando a humanidade através
dos mares obscuros do telúrico, onde ela mesma precisa ser salva de si, por um ente
superior, um Deus ex-machina, de afagos patriarcais78. Ele pressupõe um governo e uma
centralização territorial, uma racionalidade objetivada no território e institucionalizada.
Parece-me, não obstante, que, no Estado e no Governo, temos duas noções
de ordem diferente. A ideia de Estado significa uma coisa muito diversa da
ideia de governo. A ideia de Estado compreende não somente a existência
de um poder colocado muito acima da sociedade, mas também uma
concentração territorial e uma concentração de muitas funções da vida das
sociedades nas mãos de alguns indivíduos. E, em consequência disso
surgem novas relações entre os membros da sociedade que não existiam
antes da formação do Estado.
Esta distinção que, certamente, escapa-nos a primeira vista, aparece-nos,
sobretudo, quando estudamos as origens do Estado. Assim, para
compreender bem o que é essa entidade, há um só meio: é estuda-lo
78
Robert Kurz aponta o caráter androcêntrico do Leviatã em Não Há Leviatã que Vos Salve: “A instância de síntese política, mais tarde trivialmente apostrofada como “pai Estado”, figurando em Hobbes sem rodeios como monstro patriarcal, deveria referir a sua legitimação soberana na base dos proprietários masculinos, por sua vez legitimados pelo “trabalho”. Kurz, Robert, 2011, Não há Leviatã que vos salve. Teses para uma teoria crítica do Estado
124
segundo o seu desenvolvimento histórico. Eis o que vou fazer. (KROPOTKIN,
2000, pg. 9-10)
Talvez, por isso ao analisar o Estado79 em sua projeção histórica, recorre a
antropologia, onde a humanidade em seus primórdios se organiza em tribos e clãs, e não a
família como núcleo de sociabilidade base da sociedade. A comunidade, e não o patriarcado.
“Nessas tribos não existia a família isolada, como não existe ainda hoje em muitos
mamíferos sociáveis. No seio da tribo, a divisão fazia-se, de preferência, por gerações”
(KROPOTKIN, 2000, pg.13). E segue: “A acumulação da propriedade privada era impossível
no meio das tribos, visto que tudo tivesse pertencido a qualquer membro delas era
destruído ou queimado no mesmo local onde fosse enterrado o cadáver.” (KROPOTKIN,
2000, pg.14)
A violência entre as tribos dava-se no encontro de seus movimentos migratórios. Suas
guerras se davam por origem, cor, e línguas diferentes, atravessadas por tradições de como
conduzi-la, como ás vezes verter o sangue na mesma quantia do agressor.
Os tão decantados versos da Bíblia: sangue por sangue, olho por olho,
dente por dente, ferida por ferida, têm aqui a sua origem, como
exuberantemente o demonstrou o filosofo Koenigswarter. Era o modo de
conceber justiça naquela época... e nós não podemos orgulhar-nos muitos,
porque o princípio da vida pela vida que prevalece nos nossos códigos não é
mais do que uma destas sobrevivências. (KROPOTKIN, 2000, pg.16)
Desse núcleo de costumes sociáveis, não foi necessária uma autoridade constituída
para fazê-lo prevalecer, apesar da divisão incipiente de diretores temporais como o
sacerdote e o chefe militar, na guerra de todos contra todos. “E não se pode supor a
existência de um Estado nessas tribos como não se pode supor a existência de um Estado
numa “sociedade” de abelhas ou de formigas, ou entre os esquimós ou patagonianos, que,
como se sabe, são nossos contemporâneos.” (KROPOTKIN, 2000, pg.17) A dissolução da
79
Para Kropotkin, a existência de um Estado que não fosse o Estados moderno “O Império Romano foi um Estado na verdadeira acepção do termo. Até nossos dias, esse Império ainda subsiste, para o legislador, como um Império ideal. Os órgãos desse Império cobriam, como uma rede imensa, um vasto domínio. Tudo afluía para Roma: a vida econômica, a vida militar, as relações jurídicas, as riquezas, a educação e até a própria religião. De Roma vinham as leis, os magistrados, as legiões para defender o território ameaçado, os governadores, os Deuses.” (KROPOTKIN, 2000, pg.10)
125
organização social em torno do clã pode ser exemplificada pelos enormes movimentos
migratórios realizados por tribos da Ásia central e boreal, motivada por fenômenos
climáticos, deslocando essas massas em direção ao oriente. A tribo, que se baseava na
comunidade de origem bem como ao culto aos antepassados comuns, no choque desses
movimentos fora quebrada, se relacionando por uma nova sociabilidade que não a dos
deuses dos locais de origem. A posse comunal da terra – do território permitiu novos elos de
sociabilidade, já que;
A posse, em comum, de um certo território - de tal vale, de tais colinas -
converteu-se em um novo entendimento. Os deuses antepassados tinham
perdido todo seu significado; e os deuses locais, deuses de tal vale, de tal
ribeira, de tal bosque, vieram dar a consagração religiosa aos novos
aglomerados humanos, depois de terem substituído os primitivos deuses da
tribo. (KROPOTKIN, 2000, pg.18)
Famílias que não tinham origem em locais, bem como deuses e antepassados comuns,
através da posse comum da terra, fomentaram novos laços de sociabilidade, originando a
comuna rural.
A comuna rural, a posse comum da terra, era dividida entre as famílias. Quanto à
produção, a infraestrutura do lugar como pontes, fortins, de uso coletivo, eram realizados
em comum. Mas o “consumo80” era feito por cada família, cada qual com seu gado, horta,
celeiro, podendo acumula-los e transmiti-los como herança. A comuna rural era soberana,
tendo o direito consuetudinário como mediador em suas necessidades. Como fenômeno de
organização territorial vigora após a queda do Império Romano, na Europa do séc. V ao XII, e
então como comunas livres, estendendo-se ao até o séc. XV. Dessas comunas emanam as
federações, guildas e fraternidades de ofício, que se espalham pela Europa, e em suas
relações externas, essas cidades possuíam todos os atributos do Estado moderno.
Organismos cheios de vida, estas comunas diferenciavam-se,
evidentemente, na sua evolução. A posição geográfica, o caráter do
comércio externo, as resistências que era necessário vencer fora de seus
âmbitos etc., davam a comuna a sua história própria. Mas, para todas elas,
80
“para servir-me dessa expressão moderna” (KROPOTKIN, 2000, pg.20)
126
o principio era sempre o mesmo. Pskov na Rússia e Bruges na Bélgica; um
burgo escocês de trezentos habitantes e a rica Veneza com as suas ilhas;
um burgozinho no norte da França ou da Polônia e Florença, a Bela,
representavam a mesma amitas, isto é, a mesma amizade de comunas
rurais e de guildas associadas. Nos seus traços gerais, a constituição de cada
uma delas era idêntica, semelhante. (KROPOTKIN, 2000, pg.35)
Ao final da Idade Média, diversos processos que se estenderam durante esse período,
como a união nascente entre um poder real e a Igreja, a falta de apoio das comunas livres
aos servos no campo sob o regime feudal81, as guerras das comunas contra os Lordes
feudais, o fortalecimento das guildas e o surgimento da divisão em classes dentro das
comunas, bem como as guerras contra os turcos otomanos no fim da Idade Média e a
centralização do poder militar e eclesiástico formando os Impérios nascentes na península
Ibérica culminaram com o fim das comunas livres. “E o século XVI, o século das guerras
encarniçadas, resume-se inteiramente nesta luta do Estado nascente contra as cidades livres
e contra sua federação. As cidades foram cercadas, assediadas, tomadas de assalto,
saqueadas; e os seus habitantes foram dizimados ou expulsos.” (KROPOTKIN, 2000, pg.62)
A partir do século XVI, com a consolidação dos Estados modernos e sua forma de
centralização territorial, a comuna, como forma de organização territorial, encontra seu fim.
Com a formação da propriedade privada, as áreas comuns passam a ser expropriadas.
Desde 1659 que o Estado tomou as comunas sob a sua tutela. E basta
consultar o Édito de 1667, assinado por Luís XIV, para vermos o roubo dos
bens comunais que, naquela época, se levou a prática. “Cada um arranjou-
se como pôde, repartindo esses bens... E para que o despojo das comunas
fosse completo, valeram-se de dívidas fantásticas” – como disse o Édito o
Rei Sol. Dois anos depois, o mesmo rei confiscou, em proveito próprio,
todas as rendas das comunas. E é a isto que, em linguagem
pseudocientífica, se chama “morte natural” das comunas! (KROPOTKIN,
2000, pg.66)
81
No artigo “A Comuna”, no livro Palavras de um Revoltado, Kropotkin escreve: “Orgulhosa de suas liberdades, ela não procurava amplia-las para aqueles que gemiam do lado de fora. Foi a este mesmo preço, ao preço da conservação da servidão de seus vizinhos que muitas comunas receberam a sua independência.” (KROPOTKIN, 2005, pg.95)
127
Em contrapartida a “morte natural das comunas”, ele aproxima-se da análise de Karl
Marx, ao olhar para o processo dos cercamentos de terras feita no capítulo A assim
chamada acumulação primitiva do Capital82 (Capítulo XXI, V Marx, 1986), onde século XVI é
o século de consolidação dos Estados territoriais. E a consolidação territorial, é a formação
da propriedade privada e a expropriação realizada pelos Estados nascentes das terras
comunais.
Pois bem: o que sucedeu na França, sucedeu igualmente na Bélgica, na
Inglaterra, na Alemanha, na Áustria – em toda a parte da Europa, exceto
nos países eslavos. As épocas de recrudescimento do roubo ás comunas
correspondem-se em toda a Europa Ocidental. No que variam é nos
processos. Na Inglaterra, por exemplo, não se atreveram a proceder por
meio de medidas postas geralmente em prática, e preferiram que o
Parlamento votasse alguns milhares de enclosure acts (atas de
encerramento) separados, pelos quais o mesmo Parlamento sancionaria,
em cada caso especial, o confisco de bens – (atualmente ainda procede
dessa mesma forma) – e deram aos senhores o direito de reter nas suas
mãos as terras comunais que previamente tinham roubado. (KROPOTKIN,
2000, pg.69-70)
Em suas análises, o Estado foi criado para promover a estabilidade e o
desenvolvimento do capitalismo e está ligado a sua tendência de expansão territorial a
necessidade de novos mercados e as guerras resultantes desse processo. No artigo As
Guerras e o Capitalismo, Kropotkin faz uma análise do quadro geopolítico da Europa antes
da Primeira Guerra, evidenciando primeiramente como as guerras na Europa no séc. XIX não
levam mais em conta a honra dos Reis, mas o interesse de industriais tais como Rotschild,
Schneider e companhias como a Anzin. “Na verdade, todas as guerras europeias dos últimos
cento e cinquenta anos foram lutas por vantagens industriais e direitos de exploração.”
(KROPOTKIN, 2012, pg.1)
82
A assim chamada acumulação primitiva do Capital (Capítulo XXI,V Marx, 1986) , onde Marx coloca a formação do Estado moderno como necessária e concomitante para a formação de mercado, realizando expropriação das terras comunais e a formação da propriedade privada – por meio da análise dos enclosures ingleses.
128
Quase no fim do séc. XVIII, o processo de industrialização da França apoiado pelo
comércio marinho e suas colônias na América, como o Canadá e a Ásia começara a se
desenvolver. A Inglaterra possuidora de um Império colonial e marítimo inicia uma série de
guerras contra a França, contratando exércitos prussianos, austríacos e russos. Após um
quarto de século permeado por conflitos a França consegue erguer seu Império colonial na
África, após a perda de suas colônias na América.
Após a Revolução de 1848, com a abolição da servidão e a propriedade comunal, os
diversos estados alemães passam a dispor de um exército de mão obra disponível que migra
para as cidades em busca de emprego nas indústrias. Uma característica particular ao
processo de modernização alemã, que passa a oferecer um ensino técnico a essa população
a fim de superar em um curto espaço de tempo as indústrias inglesas e francesas visando o
comércio exterior.
Desde aquele tempo, em todas as camadas sociais da Alemanha- sejam as
exploradas ou as exploradoras – havia um apaixonado desejo de unificar a
Alemanha a qualquer custo: construir um poderoso império capaz de apoiar
um imenso exército e uma forte marinha, que seria hábil para conquistar
portos no Mar do Norte e no Adriático e em alguns portos da África e no
Oriente – um Império que seria o déspota da lei econômica na Europa.
(KROPOTKIN, 2012, pg.2)
Eclode a guerra com a França de 1870. Com a Prússia vitoriosa e a unificação da
Alemanha em 1871 e com seu poder político reconhecido, a indústria alemã cresce
exponencialmente buscando novos territórios como a Polônia, Hungria, África e a Ásia
Menor pela consolidação das estradas de ferro alemãs. Em detrimento ao sucesso da política
colonial alemã, com o objetivo de manter sua supremacia nos mares, colônias de exploração
e o comércio monopolista a Inglaterra busca por aliados para enfraquecer o poderio alemão,
aumentando sua frota contra os exércitos e blindados germânicos. Em contrapartida, a
Inglaterra tem de manter um exército dentro de seus territórios a fim de evitar uma rebelião
da classe operária. Em função disso, a arte da guerra é ensinada aos jovens burgueses
agrupados em pelotões de escoteiros. “Além disso, não devemos esquecer que a onda
industrial, movimentando-se do Oeste ao Leste, também invadiu a Itália, Áustria e Rússia.
Esses estados estão reivindicando seu “direito” – o direito de seus monopólios pilharem a
África e a Ásia. ”(KROPOTKIN, 2012, pg.4)
129
O processo de expansão pelo domínio de mercados o qual se lançam os países
favorece a criação de uma enorme indústria bélica financiada por grupos financeiros. “(...) as
rivalidades industriais e o desejo de adquirir novos mercados para exportação de produtos
nacionais são as principais causas das guerras nos tempos atuais.” (KROPOTKIN, , pg.9) As
guerras coloniais oferecem um grande mercado ao comércio de armas europeu na Ásia e na
África, sendo vendido armas para os locais contra colonizadores da mesma nacionalidade do
fornecedor. Ou no caso dos ingleses que forneceram uma grande quantidade de armas para
as tribos da Arábia que guerreando entre si, consequentemente ofereceriam a oportunidade
de uma intervenção britânica em seu território a fim de assegurar a ordem e sua
“anexação”.
Nós sabemos que todos os grandes Estados favoreceram, além de seus
próprios arsenais, o estabelecimento de enormes fábricas, onde armas,
blindagem para encouraçados de menor tamanho, pólvora, cartuchos,
granadas, etc, são fabricados. Enormes somas são gastas por todos os
Estados na construção dessas fábricas auxiliares, onde os mais habilidosos
operários e engenheiros são reunidos para fabricarem máquinas de
destruição em grande escala, em caso de guerra. (KROPOTKIN, 2012, pg.
10)
Com a ampliação do parque industrial bélico, diversas empresas investem seus capitais
em um possível cenário de guerra, como Anzin, Krupp, Armstrong. As guerras são
estimuladas por grandes grupos financeiros também através da imprensa, que manipula os
ímpetos nacionalistas. Kropotkin faz uma diferenciação entre as guerras modernas se
diferenciam de períodos anteriores por suas particularidades. As batalhas agora são lutadas
em frontes de até quarenta milhas com mortos que chegam até cento e cinquenta mil para
cada lado da guerra. São introduzidas as inovações técnicas com uma bateria de artilharia
que lançam granadas até cinco milhas de distância podendo bombardear uma única posição
inimiga até sua destruição completa, com soldados sendo levados a loucura após oito dias
de batalha, onde após o bombardeio, entraram em lutas de baioneta corpo a corpo
dilacerando as carnes uns dos outros com dentes (em Porto Arthur, 1904 na guerra sino-
russa). As características da guerra moderna levam aos aspectos mais bárbaros, massacres
que vão a selvageria.
130
Elas ocasionam a destruição do trabalho humano em uma escala colossal e
nós sentimos continuamente os efeitos dessa destruição em tempos de
paz, pelo aumento da miséria entre os pobres que ocorre paralelamente ao
enriquecimento dos ricos. Toda guerra destrói um formidável amontoado
de bens, incluindo não somente o propalado material de guerra, mas
também as coisas mais necessárias à vida cotidiana e à sociedade como um
todo: pão, carne, legumes, alimento de todo tipo, animais de carga, couro,
carvão, metal. tecido, etc. Isso representa o trabalho útil de milhões de
homens por várias décadas; e tudo isso é perdido, queimado, derretido em
poucos meses. Mesmo em tempo de paz isso é perdido por causa da
expectativa de uma guerra futura. (KROPOTKIN, 2012,pg.13)
Kropotkin se aproxima de Benjamin na sua descrição da guerra moderna como este
descreveria sua guerra de material, cegamente mecânica após a Primeira Guerra Mundial.
Na guerra, a utilização das forças produtivas é bloqueada pelas relações de propriedade, a
intensificação dos recursos técnicos, ritmos, fontes de energia, tem uma utilização
antinatural onde a técnica não está suficientemente avançada para controlar as forças da
sociedade.
Em seus traços mais cruéis, a guerra imperialista é determinada pela
discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização
insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta
de mercados. Essa guerra é uma revolta da técnica, que cobra em “material
humano” o que lhe foi negado pela sociedade. Em vez de usinas
energéticas, ela mobiliza energias humanas, sob a forma dos exércitos.
(BENJAMIN, 1996, pg. 196).
Para Ratzel, a expansão do território era uma necessidade do organismo estatal. Seu
método esvaziado do conceito sócio – econômico permite apresentar o Estado na
concepção orgânica onde população, solo, fronteira como extensões de um corpo vivo
possuindo cada qual sua função, dados apresentados. A expansão do território é uma
necessidade do organismo vivo e não do desenvolvimento das forças produtivas, das guerras
imperialistas. Ela cobra em energia humana das massas e a destruição de territórios
conservando as mesmas relações de produção.
131
A análise que Kropotkin empreende do Estado pela sua formação histórica83 e sua
relação com o surgimento e a forma de reprodução do capital foge a determinação proposta
de um método das ciências naturais para a análise dos fenômenos sociais. Mesmo propondo
o método das ciências naturais para os fenômenos sociais em sua teoria o Estado possui
uma origem histórica e moderna. Será que podemos falar de um Duplo Kropotkin?
A negação do Estado passa além da formação da propriedade individual e da produção
apropriada pelo lucro pessoal. A proposta dos partidos políticos socialistas impor restrições
legais aos capitalistas por meio de leis, a incorporação das estradas de ferro, extração do
carvão bem como os bancos nas mãos do Estado no final do séc. XIX era visto por ele como
um reforço ao regime capitalista, que “se constituírem propriedade do Estado que então as
administrará militarmente como é característico seu.” (KROPOTKIN, 1996, pg.134).
A realidade é que cada ano, desde o passado até os nossos dias, todos os
parlamentos do mundo estabelecem novos monopólios em exclusivo
benefício das grandes empresas de transportes, vias férreas terrestres,
fluviais e marítimas, companhias de iluminação a gás e a eletricidade, de
abastecimento de águas e de serviços de esgotos, exclusividade do ensino
público, privilégios para certos institutos públicos, e o mais que ora não nos
ocorre. O impulso dado pelo Estado a todas essas iniciativas só tem servido
para alicerçar as grandes fortunas dos maiores capitalistas do mundo.
Em resumo: em nenhuma parte do mundo, em nenhuma época da história,
teve a mínima aplicação o falado sistema da não intervenção do Estado nas
várias atividades sociais. O contrário sim é que foi verificado. O Estado foi
sempre, em todos os tempos, e atualmente o é o sustentáculo principal e o
criador, direto e indireto, do Capitalismo e do seu formidável poder sobre a
sociedade. (KROPOTKIN, pg.158-159, grifo do autor)
O Duplo Kropotkin, que faz a crítica ao Estado como categoria do capital, como parte
de um mesmo campo histórico que o capitalismo advoga que o principio da não intervenção
83
Acrescentemos apenas para a nossa civilização europeia, civilização dos últimos quinze séculos de que somo originários, o Estado é uma forma de vida social que só começou a incrementar-se depois do século XVI e ainda assim sob a influência de causas cujo o exame o leitor consultará o nosso O Estado e seu Papel Histórico. (KROPOTKIN, 1964, pg.154-155)
132
do Estado não existe. Como criador direto ou indireto do capitalismo, sua constituição e
expansão através das guerras84 remetem a “economia política das armas de fogo” e o
estatismo como parte do processo de modernização do Oikos ao absolutismo. O socialismo
real da URSS, e o capitalismo estatal colocado em funcionamento na Revolução Russa por
parte dos bolcheviques, é a instrumentalização direta de um modelo do Imperialismo que é
a organização dos correios alemães.
Um espirituoso social - democrata alemão dos anos 70 do século passado
designou os correios como modelo de uma economia socialista. Isto é
absolutamente correto. Atualmente, os correios são uma empresa
organizada segundo o tipo do monopólio estatal capitalista. O imperialismo
está transformando, pouco a pouco, todos os trustes em organizações
semelhantes. Acima dos "simples" trabalhadores, que estão se esfalfando e
vivendo na miséria, encontra-se nelas a mesma burocracia burguesa. Mas o
mecanismo da direção social da economia já está desenvolvido. Só falta
derrubar os capitalistas, romper com o punho de ferro dos trabalhadores
armados a resistência desses exploradores, quebrar a maquinaria
burocrática do Estado moderno – e teremos um mecanismo liberado do
"parasita", tecnicamente bastante desenvolvido, que os trabalhadores
unidos poderão muito bem pôr em movimento sem ajuda. (LENIN apud
KURZ, 1991, pg.46-47)
Em comum, os socialistas possuíam a visão positiva do trabalho, cabendo a revolução
liberta-lo do julgo do capital, este visto como um inimigo do trabalho. E daí a crítica
sociológica das formações sociais históricas que levou a classe trabalhadora aos status de
pessoa coletiva independente dos sujeitos empíricos, em detrimento da crítica da forma
mercadoria, de cunho autobiográfico em sua identidade de classe, livre das determinações
das categorias do capital. Na obra de Kropotkin, mesmo negando o trabalho abstrato como
produção do valor e sua autonomização, o monopólio por parte do Estado que Lênin vê
84
Analisai, depois, as guerras, sem as quais os Estados não podem constituir-se nem aguentar-se, guerras que se tornam fatais, inevitáveis, desde que se admite que tal região – como parte integrante de um Estado – pode ter interesses opostos aos dos seus vizinhos. Pensai nas guerras do passado e naquelas lutas sangrentas que os povos subjugados foram obrigados a declarar aos senhores para conquistar o direito de respirar livremente; nas guerras para a conquista de mercados; nas guerras para a criação de impérios coloniais... (KROPOTKIN, 2000, pg.83)
133
como um mecanismo livre do parasita e que pode levar a emancipação do proletariado, para
ele continua sendo o julgo do capital. “Uma nova forma de salariato e de exploração - eis o
que daria a ideia, preconizada por tantos socialistas, da entrega daqueles serviços ao
Estado.” (KROPOTKIN, 1963, pg.133)
Para o caráter recuperador do capitalismo estatal da URSS, o Estado deveria intervir de
forma muito mais agressiva a fim de realizar um regime de acumulação para sua
modernização. Ele deveria ser “mais absolutista que o absolutismo85” com uma economia de
guerra mais acentuada que a própria situação de guerra. A militarização extrema, a ditadura
de um partido único, a violência extrema empregada contra os trabalhadores nos moldes de
uma acumulação primitiva como no Ocidente a fim de superar a inércia da produção de
subsistência dos camponeses e a criação de uma classe burocrata que substituiria a
burguesia liberal foram alguns fatos do socialismo real. Mas o papel do Estado nesse
processo como criador e fomentador de um mercado como os Estados absolutistas do inicio
da modernidade como “criador direto ou indireto” e sua violência eram apontados por
Kropotkin e sua interpretação histórica sobre o Leviatã.
O que deixamos exposto explica claramente, pensamos, por que a nossa
interpretação da história e as conclusões que dela tiramos são tão
diferentes das que tiram os partidos políticos burgueses e o próprio
socialista. Adiantamos mais: enquanto os socialistas - estatistas não
abandonarem o seu sonho de socialização dos instrumentos de trabalho
nas mãos de um Estado centralizado, o resultado de todas as suas
tentativas para o estabelecimento do Capitalismo estatista e do Estado
socialista será o malogro completo desses sonhos e, a consequência, uma
ditadura militar. (KROPOTKIN, 1964, pg.165)
85
KURZ, 1991.
134
Considerações Finais
Um mergulho no objeto de estudo levou ao estudo do quadro histórico do movimento
operário do séc. XIX, em especial o anarquista. A modernidade, longe de ser pautada
cronologicamente pelo empirismo da Revolução Industrial ou a ascensão da República e
queda do Antigo Regime, nos coloca a abstração como elemento indentitário do moderno.
As Revoluções burguesas tal como a Francesa e as Revoluções de 1848, para além da
positivação da conquista dos direitos burgueses se colocam como momento da emancipação
negativa do sujeito e junto aos desdobramentos do processo de modernização que apontam
para a formação da superpopulação relativa, e como consequência do movimento operário.
O fio condutor dessa pesquisa é o argumento desenvolvido por Robert Kurz no Colapso
da Modernização e em textos posteriores, onde Estado e Mercado são categorias oriundas
do mesmo campo histórico, como um duplo, onde uma condiciona a existência da outra.
Assim, o nexo de sociabilidade considerado é a mercadoria. A produção de mercadorias
aparece como uma qualidade natural inerente ao uso da mercadoria escondendo o caráter
social do trabalho e a determinação do valor de uso da relação social entre os produtos do
trabalho. A teoria anarquista do Estado, nesta pesquisa vista nas principais correntes
teóricas do anarquismo, problematiza essa questão. Na teoria anarquista, sua proposta de
uma sociedade baseada em um sistema de cooperativas dentro de uma rede de comunas
territoriais federadas aparece como uma relação entre sujeitos de vontades empíricas
simples, como coloca Robert Kurz em Não Há Leviatã que nos Salve. Nessa relação não há
uma determinação da forma mercadoria no processo que organiza a produção, sendo que o
capital se apropria do trabalho como um inimigo deste. A liberdade na teoria anarquista do
Estado se encontra na liberação do individuo no processo produtivo, livre para assumir o
produto de seu trabalho.
Questões, tal como se organizaria a divisão do trabalho entre as comunas e dentro
delas, o equivalente de troca entre as mercadorias, produção, circulação e o consumo das
mesmas, permanecem. No caso de Kropotkin especificamente, este justifica através do
sentimento da Ajuda Mútua seria suficiente para manter um sistema econômico que
atendesse a todas as necessidades do individuo e da sociedade. A não existência de uma
instituição corruptora como o Estado e da hierarquia das classes deixaria esse sentimento
135
aflorar na sociedade e esta seguiria seu rumo natural. Aqui, todo esse processo depende da
vontade empírica simples do sujeito.
Kropotkin desenvolve uma teoria da história baseada na luta de classes, formulando
uma concepção ontológica do anarquismo, possível pelo método positivista indutivo
dedutivo. Concebendo uma concepção de mundo baseado em Leis naturais de validade
universal, pela mecânica newtoniana, em uma linha cronológica evolutiva, ele desenvolve o
conceito de força criadora das massas presente em séculos de evolução da espécie
hominídea florescendo como a Ajuda Mútua. Esse sentimento manifesto na história conduz
o homem naturalmente a sociedade anarco-comunista após a evolução de várias etapas
históricas, uma busca pela promessa de felicidade do iluminismo. O método positivista pela
sua aplicação ensaística na história oferece vários prognósticos do futuro a cerca da certeza
oferecida por uma Lei natural que aguarda a futuramente a humanidade uma sociedade
comunista. Aqui, a reflexão de Claus Peter Ortlieb em seu artigo a Objetividade Inconsciente
coloca o problema da ilusão do método experimental é a mesma que o cego processo social
da sociedade produtora de mercadorias se apresenta aos homens como uma processo
regido por Leis naturais exterior a eles próprios quando o constituem como sujeitos
burgueses.
A razão iluminista e sua forma ontológica de colocar categorias inerentes a
modernidade no continuum temporal se faz presente no discurso do pensamento geográfico
legitimando a geografia como uma ciência de valor universal. Esvaziada do seu processo
histórico ela aparece fragmentada no tempo, com seus referenciais geográficos espalhados
em civilizações de tempos e lugares diferentes como um conhecimento que irá se realizar na
modernidade, que reúne em seu tempo histórico todas as condições necessárias para que
esse conhecimento alcance o status de ciência. Aqui o fetiche da mercadoria faz a ciência
aparecer como uma qualidade natural da razão que se realiza, não como uma apropriação
dos sujeitos portadores da razão iluminista.
O acesso a artigos recentemente produzidos como o de Federico Ferretti e Philippe
Pelletier, sobre a rede formada por geógrafos anarquistas na editora Hachette no final do
século XIX foi extremamente interessante, inclusive de uma produção conjunta que
incorpora a crítica social a produção geográfica (uma das qualidades introduzidas pela
geografia crítica em seu discurso acadêmico) foi das mais gratas surpresas, lançando como
136
possibilidade futura para pesquisa em história do pensamento geográfico a possibilidade de
artigos dos geógrafos anarquistas que se encontram em outras línguas e a disponibilidade de
seu acesso enriqueceria a reflexão sobre as ideias de tais autores. A Ajuda Mútua como
conceito desenvolvido em conjunto por parte de Kropotkin, Reclus e Metchnikoff nos mostra
essa relação. A Ajuda Mútua sistematizada por Kropotkin, colocando-se como uma Lei
natural era um contraponto a teoria dos darwinistas sociais de competitividade e o estado
de natureza da “guerra de todos contra todos” da sociedade humana, embasando
cientificamente o avanço da civilização europeia a base das guerras contra as raças
inferiores.
A teoria do contrato social sua concepção de um “estado de natureza” inerente ao ser
humano, e o Leviatã como o arbitro de suas vontades empíricas e guardião de sua própria
segurança tem uma influência enorme nas concepções de Estado e território na geografia,
como mostra a influência da “guerra de todos contra todos” naturalizada no pensamento
político de Ratzel e o materialismo geográfico presente em Montesquieu sob o caráter dos
povos e do Estado. A origem da moderna sociedade produtora de mercadorias como a
economia política das armas de fogo coloca a ontologização das categorias imanentes ao
capital produzidas pelo movimento trans – histórico do pensamento iluminista em
sociedades com outros nexos de sociabilização, naturalizando a guerra como algo inerente
ao humano se reflete na aurora do iluminismo colocando-se como pilar da civilização, que
avançara através de guerras para imposição de mercados.
Em relação a pergunta colocada na introdução deste trabalho, se o pensamento
anarquista poderia oferecer em uma análise diferenciada de uma categoria clássica da
Geografia Política como o Estado e território, cremos estar respondida.
Aqui se apresenta o Duplo Kropotkin. Mesmo utilizando-se do método positivista de
análise, sua teoria do Estado propõe uma construção histórica deste, pelo avanço do modo
capitalista de produção através das guerras e a formação da propriedade privada, em
contrapartida a Ratzel que se utilizando do mesmo método encara o Estado como um
organismo vivo, de vontades naturais próprias, destituído de processos históricos e
econômicos sendo resultado da relação direta entre o homem e o solo em qualquer época
da história. Além disso, rejeita a ideia da não – intervenção do Estado na economia, como
categoria inerente ao capitalismo.
137
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