percepções interiores e exteriores de pesquisa etnográfica ... · 2 da pesquisa etnográfica...
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Percepções Interiores e Exteriores de Pesquisa Etnográfica entre Professores da T. I.
Raposa e Serra do Sol - RR1.
Prof. Wanderley Gurgel de Almeida (Autor) Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Secretaria de Educação, Cultura e Desporto de Roraima – BR.
Prof. MSc. Jonildo Viana dos Santos (Cooperador)
Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Federal do Amazonas - UFAM
Universidade Federal de Roraima - UFRR
Resumo
Professor pesquisando professores em espaço de igualdade profissional como a escola,
implica em reflexões e posturas desiguais sobre aspectos objetivos e subjetivos de ambos os
atores. O trabalho feito durante o ano de 2007 é parte da pesquisa de campo para o Mestrado
em Antropologia Social do PPGAS-UFRN, sobre o conflito interétnico entre Macuxi e
Wapixana na Terra Indígena Raposa e Serra do Sol, Roraima, Brasil. Utilizou-se a observação
participante com entrevistas e cobertura videográfica na Maloca Barro. As evidências
apontam para uma compreensão diversificada quanto à importância do professor e da escola
na vida comunitária, suas posturas na sociedade e a participações em pesquisa.
PALAVRAS CHAVES: conflito, observação participante, professores índios.
1. Apresentação
Este texto pretende colaborar com as discussões em torno dos “Desafios
Contemporâneos para uma Antropologia da Educação: ensino, pesquisa e políticas de
igualdade” tema deste grupo de trabalho, à medida que se deseja provocar uma aproximação
entre Antropologia e Educação, trilhando por desafios, mas também por conformações de
uma relação própria e adequada entre ambas.
A decisão em propor este texto veio no intuito de contribuir, também, com a reflexão
da identidade docente e prática pedagógica dos professores e professoras indígenas e não
indígenas, particularmente do Centro de Formação e Cultura Indígena da Raposa/Serra do Sol
ou com aqueles e aquelas que desempenham funções em áreas indígenas. Traz, assim, parte
1 “Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil”.
2
da pesquisa etnográfica para a dissertação de mestrado intitulada Conflito Interétnico entre
Makuxi e Wapixana na Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, no Estado de Roraima, realizada
durante o segundo semestre de 2007. As fontes de pesquisa consistem em observação
participante como método e entrevistas não-diretivas na Maloca Barro, antiga Vila Surumu,
somada à gravações em fitas magnéticas (cassetes) e produção de um curta metragem para
vídeo gravado em fita 8mm, trabalhos que está em processo de conclusão.
Portanto, se quer aqui perseguir algumas indagações que levaram ao delineamento do
olhar de um professor formador de professores que atua com o referido grupo profissional a
dez anos, considerando ainda parte de um “fazimento docente” iniciado em 1989 quando por
decisão pessoal, este professor ingressou no curso de Licenciatura Plena em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN. Isto nos impulsionou aos
estudos da Metodologia do Ensino Superior e da Pesquisa Científica em 1996 na UERN e,
agora, ao Mestrado em Antropologia Social pela UFRN (2006-2007).
Afinal, como uma pesquisa etnográfica pode ser recebida por professores indígenas e
não indígenas (percepções internas)? Como pesquisador, respondo às expressões deles
(percepções externas)? Por que um professor não indígena necessita de conhecimentos de
professores indígenas? Como se formam ou são formadas as posturas daqueles e daquelas
envolvidos e envolvidas no processo de investigação? Que espaços para pesquisa podem se
mostrar mais adequados para os encontros e desencontros entre os envolvidos numa pesquisa
deste “tipo”? Que implicações as posturas assumidas inter sujeitos são requeridas antes,
durante e depois da pesquisa?
Esclareço que para marcar quem é quem nos textos falados, deixo a partir de agora a
condição da impessoalidade do trabalho científico visto que a generalidade seria pouco
provável de facilitar o entendimento tanto da pesquisa realizada quanto do presente texto,
ressaltando que, estou convicto de uma força que a pesquisa antropológica me fez descobrir:
aquela em que a diversidade identitária é tão dinâmica quanto às forças que mobilizam uma
sociedade, seja indígena ou não.
2. Nascimento e descoberta desta reflexão
Estudar conflitos interétnicos não foi por acaso. Sempre tive um certo envolvimento
com movimentos de participação política. Foi assim desde que cooperava com as
comunidades eclesiais de base – ceb’s – da igreja católica, ainda quando residia no Município
de Caraúbas, Rio Grande do Norte. Naquele período (década de 1990), quase que
semanalmente mantinha contato com trabalhadores rurais no município. Eram ocasiões em
3
que, reunidos, debatíamos sobre os problemas sociais de cada uma delas e pensávamos em
alternativas de superá-los. De certa forma, isto me serviu de “escola”, uma espécia de espço
de iniciação.
Com a licenciatura em Ciências Sociais, sobretudo pelas experiências de pesquisa
vivenciada no Programa Especial de Treinamento (CAPES/UERN), e o curso de
Especialização em Metodologia do Ensino Superior e da Pesquisa Científica (UERN), há 12
anos que procuro identificar, enquanto docente de Ensino Fundamental, Médio e na Educação
Superior, os fatores que incidem direta e indiretamente no ato do conhecimento do outro,
visto que o exercício profissional docente requer esta habilidade, inclusive para verificação da
aprendizagem.
Como formador de professores que sou hoje, me sinto participando da personificação
profissional de outras pessoas, mesmo enquanto pesquisador, aspecto evidenciado em
conversas estabelecidas com meus pares, sobretudo quando de três atuações por mim
exercidas, sendo a primeira quando docente do Magistério Parcelado Indígena2 (1999-2001), a
segunda, por ocasião da docência no Instituto Superior de Educação de Roraima – ISE – RR,
e quando lecionava disciplinas antropológicas para alunos de cursos de licenciatura e
bacharelado na Universidade Federal de Roraima – UFRR (1998-1999; 2002-2003). Por todas
as experiências anteriores, percebia que eram apreendidos não apenas teorias e métodos, mas
também percebia aproximações de pensamento, ação, sentimentos, falas, relações e
construções de conhecimentos do professor, manifestos nos discentes. Devia acontecer o
mesmo com outras características de outros docentes.
Foi então no primeiro semestre do mestrado (2006) à medida que estudava as
disciplinas, particularmente duas – Antropologia e Meio Ambiente e Etnologia Indígena – fui
iniciado em um processo de reconstrução teórico-metodológica, que resultou numa descoberta
muito importante para mim: nós professores não somos apenas um “produto social”, mais um
encontro entre indivíduo, coletividade e ambiente. Pronto. Meu problema estava invertido:
entender a mim mesmo enquanto professor pesquisador e aos outros, necessitava de uma
imersão na trilogia Homem, Natureza e Sociedade.
3. Ambiência
2 Curso preparatório de professores para o Ensino Fundamental desenvolvido pela Escola Estadual de Formação de Professores de Boa Vista – RR. Em 2002 foi transformado no Instituto Superior de Educação de Roraima – ISE-RR e em 2006, na Universidade Estadual de Roraima, onde participei da elaboração do Projeto Pedagógico das duas últimas instituições.
4
Apoio-me em elementos apreendidos de estudos e pesquisas na Terra Indígena Raposa
Serra do Sol, terras habitadas predominantemente pelas etnias Makuxi – de tronco lingüístico
Caribe e Wapixana – Aruak (FREITAS, 1997). Contudo, reporta-me aqui às etnias Makuxi e
Wapixana, por serem aquelas que se mantiveram da “linha de frente” do processo
demarcatório e se mantêm “frente de defesa” de sua homologação.
A área de estudo encontra-se situada a nordeste do estado de Roraima. Persegue-se
aqui alguns desdobramentos e repercussões ao nível coletivo e individual, na perspectiva de
perceber compreensões sobre as relações de conflito3 a partir do olhar de professores.parte-se
do pressuposto que a tradição4 vai definir as expectativas dos indígenas que vão ficar em
conflito entre os anseios elaborados no seu grupo e aqueles, novos, adquiridos de um grupo
dominante intrusivo, rizicultores, fazendeiros e religiosos.
A área em foco alcança os municípios de Pacaraima, Uiramutã, Normandia e Bonfim,
fazendo fronteira ao Norte com a Venezuela e a Leste, com a Guiana Inglesa, como mostra o
mapa abaixo:
Todo o Estado de Roraima apresenta 1.922 km de divisas internacionais, sendo: 958
km com a Venezuela, a Norte e a Oeste, e 964 Km com a República Cooperativista da
3 Uma definição para ambas pode ser identificada no livro de Pérsio Santos de Oliveira (2001) como “processo social que decorre da luta pelo status social. Quando indivíduos ou grupos procuram derrotar ou destruir um rival, de forma consciente e pessoal, surge um conflito”. (op. Cit., p. 236). 4 Tradição aqui não no sentido de traços originais de uma cultura, mas como definida na direção pensada por Melvina Araújo (2006): tradição como resultado da resignificação sugerida pela gramática religiosa da Missão Consolata. Neste sentido, as formas de ação destes índios [Makuxi] passam a ser concebidas na perspectiva alheia aos seus atores, propiciando uma reapropriação do simbólico e do ritualístico, aferindo uma outra extensão, no que seja classificado como próximo àqueles traços anteriores.
Figura RR 1. Mapa de localização dos municípios no estado (Fonte SEPLAN RR – 2001 / Adaptação Ruschmann Consultores)
5
Guiana. A capital estadual é Boa Vista sendo que 15 municípios compõem o estado,
totalizando 225.116,1 km2, o que corresponde a 2,63% do território nacional5.
Há uma razoável produção de literatura6 que permite compreender um pouco da
história deste Estado, o que é necessário, também, para o entendimento deste conflito. Nesta
literatura pode-se perceber um consenso que aponta ao entendimento de que a distribuição
demográfica indígena e não indígena mantem um vínculo com a história, o que independe do
olhar do observador, é contemplado, com brevidade, em uma seção posterior.
A Maloca Barro não foi escolhida por mim ao acaso, como o local onde deveria
realizar a pesquisa. Havia comigo a hipótese de que um conflito interétnico presumia a priori,
uma consideração entre a trilogia Homem, Natureza e Sociedade, e que, portanto, ela [a
pesquisa] toda seria contextualizada. Então, era mesmo a Maloca Barro, pois lá se concentra a
organização e a coordenação política da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, por sinal, local
onde fica a mais antiga escola indígena do Estado, a Escola Estadual Pe. José de Anchieta (50
anos) e o Centro de Formação e Cultura Indígena Raposa Serra do Sol (4 anos – apesar de o
Projeto Político Pedagógico ter sido concluído em 2006). Na primeira, ocorre o Ensino
Fundamental desde a Educação Infantil ao Ensino Médio não profissionalizante, e a segunda é
realizada a formação em ensino profissionalizante com concentração em técnicas
agropecuárias e manejo ambiental, instituição criada em 2006, além dos demais espaços
[centro comunitário, posto de saúde, sub-prefeitura de Pacaraima, quadra de esporte e
caminhos7].
As fotos a seguir, ilustram os espaços estudados nos quais foram entrevistados 10
professores: oito da Escola Estadual Pe. José de Anchieta e dois do Centro de Formação e
Cultura Indígena Raposa Serra do Sol.
5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 2000. 6 Entre outras: DIOCESE DE RORAIMA. Índios e brancos em Roraima. Coleção histórico-antropológica, n. 2. Boa Vista: Centro de Informação da Diocese de Roraima, 1990, 86 p.; SOUZA, Antônio Ferreira. Roraima: fatos e lendas. Boa Vista: s. Ed., s.a., 97p.; COSTA, Luis Pereira da. Análise da política fundiária do estado de Roraima. Boa Vista: Unigráfica Ltda, 1998, 133 p.; SABATINI, Silvano. Massacre. Boa Vista: Conselho Indigenista de Roraima; São Paulo: Conselho Indigenista Missionário: Loyola, 1998, 239 p.; FREITAS, Aimberê. Geografia e história de Roraima. 5. ed., Manaus: Grafina, 1997, 158 p. No final do trabalho, segue uma relação de outros fontes bibliográficas. 7 Não identifico como ruas pois não há placas que as denomine ou identifique. Daí opto por caminhos.
6
Refletir sobre a relação de igualdade e desigualdade entre professores em pesquisa,
como em qualquer pesquisa antropológica de base etnológica, requeria uma contextualização.
Pois ali eu não era um igual. Humano e professor, mas diferente desde o espaço à cultura. Eu,
um professor em busca de aprimorar o self profissional. Os demais, o que vim descobrir
quando convivi com eles durante o mês de novembro de 2006, professores e índios. Sim, eles:
“dois em um” mesmo ser, envolvidos por um processo nada fácil que o de conciliar trabalho
profissional com trabalho comunitário.
Vejamos as seguintes fotos que por si mesmas, demonstram o contexto social e
político de onde vieram os elementos para este texto.
Foto 1: Viveiro de criação de coelhos Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol – novembro de 2007. [Wanderley G. de Almeida]
Foto 3: Viveiro de ervas medicinais. Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol – novembro de 2007 [Wanderley G. de Almeida]
Foto 2: Pocilga Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol. [Wanderley G. de Almeida]
7
Vestígio de Incêndio Criminoso
na Maloca – Surumu – Pacaraima – RR em 06 de janeiro de 2004
Encontrava-me, pois, em um lugar “traumatizado” por uma ação criminosa. A
sensação de estar lá é bastante diferente daquela de estar aqui. Em julho de 2007 estive no
referido local por ocasião da minha primeira viagem a que chamei de visita de
reconhecimento, onde fiz as seguintes fotografias.
Vestígios de ações estratégicas
Fotos: Gonçalo
Posto de Saúde
Foto 4: G. - Tipiri queimado
Foto 5: G. – Moradia
Foto 6: G. - Creche
Foto 7: Ponte incendiada sobre o rio Surumu. Fonte: Jornal Folha de Boa Vista – Boa Vista – RR em 07.01.2004.
Para segurança de quem me disponibilizou as fotografias, guardo o anonimato apenas o identificando pela letra “G”, pois, como é do conhecimento de todos, há quem diga que Roraima é uma terra sem lei.
8
4. Teoria e Prática da Pesquisa
No caso em estudo, é exigida uma compreensão de conflito interétnico como fato
construído historicamente. Nessa perspectiva, carece aqui de um diálogo com a História, pois
havendo duas culturas em situação de conflito como aponta a literatura local consultada,
história e cultura sugerem uma inter relação mesmo que uma esteja oposta à outra neste
contexto. Como entender isto? Marshall Sahlins (1990) reconhece que há sim uma relação
simétrica entre ambas, já que uma participa da ordenação da outra, ao que ele chama
transformação estrutural e a repercussão disto, de mudança sistêmica (op. Cit., p. 7). Como
então estabelecer uma relação conflitante sem haver uma produção armas para uso em
situação de guerra?
Janice Theodoro8 (1998) reconhece que “as populações meso-americanas ou mesmo
andinas, resolviam o conflito interétnico, evitando criar uma cultura basicamente beligerante”.
Em que medida a cultura européia se constituía e trazia em seu bojo uma narrativa em torno
da guerra, inclinando-se ao conflito permanente? Ela prossegue: “As relações de
reciprocidade na América constituem-se em parte substantiva da resposta. Entenda-se bem,
8 Professora Janice Theodoro é Doutora em História pela Universidade de São Paulo em 1997. Seu texto está disponível em http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/cultura/conferencias/ja-p-co-assis7.htm. Acessado em: 28 de março de 2008.
Foto 8: Interior da Igreja Católica Missão Consolata – Maloca Barro – Nov 2007. Anexo ao Centro de Formação.
Foto 9: Ângulo da parte superior do que era o dormitório masculino da sede da Missão Consolata. [Wanderley G. de Almeida]
9
havia culturas que tinham sido vencidas por meio da guerra, como ocorrera no Brasil e em
outras partes da América”.
O que diz a literatura local?
O mestre e doutor em História (UNB) Prof. Burgardt (2006) aponta ao entendimento
da possibilidade de um conflito interétnico que soma e não de divide, que é aquele
reivindicado pela realidade em estudo. Vejamos:
Segundo colóquios com índios em Maturuca, o garimpo só acabou na TIRASOL quando os próprios índios desta maloca tomaram a iniciativa de expulsar os garimpeiros, em 1992, após os últimos seis terem resistido aos prazos estipulados, primeiro pela justiça, após, pela Polícia Federal. Na ocasião, conta um dos autóctones, “fomos em um bom número para solicitar que deixassem o garimpo em que ainda estavam, às margens do rio Mau. Cinco deles saíram sem problemas, porém, um reagiu com uma arma, ferindo a perna de nosso professor e, além de confirmar a narrativa do acontecimento, a cicatriz em sua perna parece confirmar estas informações’ (op. Cit., p. 87-8).
A mestra em Antropologia Social Profa. Alexandra Lemos (UFRR)9, escreve acerca
do problema, hipótese, justificativa e método da pesquisa. Nesta, caracteriza os Macuxi
quanto a localização (entre os rios Maú, Cotingo e Surumu), alimentação (mandioca e peixes)
grupos sociais adjacentes (missionários católicos da Missão Consolata) em que este grupo de
missionários seria, em hipótese, responsável pela inspiração da organização política e de suas
relações com o poder extra tribal, ou seja, com organismos governamentais, cuja importância
do estudo seria, sinteticamente, a oportunidade de conhecer o processo de índios adaptados e
de se averiguar os impactos do pensamento missionário católico (Lemos, p. 4-9).
De seu trabalho, as seções que mantém maior relação com esta pesquisa são a segunda
e a terceira. Na segunda seção, The Brazilian State of Roraima and Macuxi Indians, a
Professora Alessandra apresenta as dimensões geográficas do território em que habitam os
Macuxi, cerca de 7.410,000 a 9.880,00 acres e localizadas entre as latitudes 3º ao 4º N. e
longitude 58º ao 61º W, afirmando que estes, naquele ano, consistiam uma população de cerca
de 12.500 índios habitantes na Maloca e nos centros urbanos [Pacaraima e Boa Vista],
segundo informações da FUNAI. Ela, além de recuperar parte da história do contato entre
Macuxi e não índios, acentua que índios foram tomados como aliados na defesa territorial
brasileira, referindo-se ao Século XVII no que faz interface à FARAGE (1991), HEMMING
(1978) e WAGLEY (1976) quanto a relação de dominação e exploração da mão de obra
indígena e a resistência Macuxi ocorrida entre 1784 e 1789 no espaço físico do que era
chamado de Fazendas Nacionais (op. Cit., p. 14-28).
9 Ex-professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Roraima. Mestra em Antropologia Social pela Universidade da Califórnia – EUA, pessoa com quem tive a oportunidade de trabalhar quando éramos colegas do Departamento de Antropologia da UFRR (1998).
10
É quando os Macuxi estabelecem aliança com os Caripuna, também de origem Caribe.
Da mesma forma, a autora relembra que no período de 1970 até 1995, portanto, por 15 anos,
garimpeiros invasores também entraram em conflito com índios Macuxi, já que o acesso aos
garimpos clandestinos dava-se principalmente pela BR-174 que liga Manaus à Venezuela,
cortando terras habitadas por Macuxis. Foi quando em visita às terras da Raposa Serra do Sol
em 1995, repórteres e políticos do Estado de Roraima, foram impedidos de entrar em
Maturuca, alegando que estariam levando morte às crianças (Lemos, p. 38).
Lemos ainda percorre historicamente, a inserção do projeto católico entre os Macuxi.
Refere-se a KELSEY (1972), citando sobre a existência das três fazendas: São José, São
Bento e São Marcos que ladeavam o Rio Branco e que eram a garantia do empreendimento
português no extremo norte brasileiro (op. Cit., p. 41), servindo de ponto de distribuição dos
produtos vindos de Manaus, para consumo dos habitantes das terras, inclusive índios, o que
até 1920, a densidade demográfica consistia de 0,04 pessoas por Km² enquanto que a
quantidade de “cabeças de gado” [grifo da autora] era de 223.861. É quando recorrendo a
BORGES DA SILVA (1996), para enfatizar que a etnia Macuxi é mesmo uma sociedade
indígena integrada à sociedade nacional, pois além de produtos de alimentação, também se
utilizam de ferramentas para plantação, tendo passado por quatro estágios de evolução,
segundo Borges da Silva: 1) isolamento, 2) contato esporádico com a sociedade nacional, 3)
contato permanente e 4) integração final (op. Cit., p. 46), mostrando sua capacidade de
resiliência em prol da manutenção de sua identidade étnica, mesmo utilizando-se de dinheiro
e na aquisição de outros produtos a partir de uma “cantina” instalada pelo Conselho Indígena
de Roraima, o que também fora percebido por SCHMINK e WOOD (1992) em seus estudos
sobre a expansão da fronteira amazônica.
Examinando a tese do Professor e ex-colega de departamento, Dr. Carlos Alberto
Marinho Cirino (UFRR), chama atenção de imediato, quando o Autor abre seu texto pondo
uma epígrafe que diz “O povo indígena traz na sua raiz uma religião forte que é a própria
vontade de viver” (ALVINO, apud Cirino, s.p.). Alvino, índio Macuxi e ex-padre.
Logo em seu Resumo, Cirino aponta para seu objetivo que é de “delinear o processo
de evangelização católica na região do Rio Branco [...] as alterações que esse processo
provocou na cultura do grupo indígena Wapichana no decorrer do século XX”. O que,
parágrafo à frente, vai denominar de “contornos ideológicos da catequese”, as estratégias
Wapichanas de reafirmação identitária e de reordenação de seu código cultural na Maloca da
Malacacheta.
Para tal empreendimento, refere-se à situação política econômica da região e a
estrutura organizacional marcadamente em três datas: 1909 – disputa pela área; 1915 – ano
11
em que missionários da Ordem de São Bento deixa a região e 1948 – ano de entrega da área
pela Ordem de São Sento à Ordem Consolata.
Da Introdução de seu trabalho identifico o fator que o levou a atentar-se para a
pesquisa dele: a tradução em Wapischana do evangelho de São Marcos produzido pela
Diocese de Roraima. O texto segue apresentando todo o percurso seguido até as referidas
malocas (aldeias). Foi enfático ao dizer que em todos seus encontros com os habitantes,
explicava o propósito de seus trabalhos e em escrever sobre a atenção e desconfiança destes
para com suas palavras; os momentos de fortalecimento de vínculos com seus informantes, no
caso o padre Macuxi Alvino Andrade, ocasião em que ia conhecer a maloca do Moscou
(Cirino, p. 13).
Vale perguntar: estando em maior número que os Makuxi, o que teria levado os
Wapixana a passarem da posição de líderes a liderados? Cirino sustenta a tese de que as
hostilidades foram atenuadas com a evangelização católica, tornando possível a convivência
pacífica de demarcação fronteiriça entre ambas. Penso assim que a condição de passividade
instalaria um senso de aceitação, passividade. Acrescenta que, segundo dados da Fundação
Nacional de Saúde, eram cerca de 6 mil índios Wapischanas no lado brasileiro até 1995. E do
lado da República da Guiana, segundo o Centro de Informação da Diocese de Roraima, até
1989 existiam cerca de 8.348 Wapischanas (op. Cit., p. 64). Quanto à língua Wapischana,
segundo Brett (1868 – apud Cirino, p. 68) é uma língua específica, que foi se tornando
predominantemente falada até pelos Atorais, grupo indígena do Sul da Guiana Inglesa numa
expedição (1913-1916), patrocinada pelo Museu da Universidade da Pennsylvania e publicada
no trabalho de Currtis Farabee.
Foi exatamente o que constatei. Se alunos de uma e de outra escolas não tendem a
agregarem-se na sala de aula, da mesma forma comprovei o mesmo entre os professores.
Enquanto eu os entrevistava isoladamente, percebi que lá não havia um elo forte de
comunicação inter docentes na relação externa etnias. O Tuxaua encontrava-se perto de mim,
me acompanhando a todo lugar e sempre me apresentava aos seus.
Burgarth (2006) em sua tese de Doutorado em História, intitulada Bravas Gentes -
Cotidiano, Identidade e Representações na Terra Indígena Raposa/Serra do Sol e Parque
Nacional Canaima: ambiências de Boa Vista (Brasil) e Cidade Bolívar (Venezuela),
reconhece que artimanhas estabelecidas entre fazendeiros, pecuaristas e Wapixana em terras
Wapixana, era tão intensas que “um favor aqui, outro acolá, um batizado de criança indígena
aqui mais um compadre ali. Desta forma foi menos problemático o avanço do gado na
TIRASOL(Burgarth, 2006, p. 78), concordando com Santilli (1994), para explicar que “o
termo compadre conota, neste contexto, uma relação de intimidade, e ainda, alguma
12
permissividade, que variava, conforme o status respectivo de compadres, de uma condição
igualitária a uma distância que impunha o reconhecimento da hierarquia” (Santilli, 1994, p.
57).
Ainda considerando a reconstrução sócio-política do Professor Cirino, ele recorre a
Farabee, e cita que uma outra etnia integrante do ciclo social Wapixana - os Atorais - “tinham
abandonado quase por completo o velho dialeto para só falar ‘ouapichiane’. [...] Não mais
existiam como grupo separado e nem tampouco falavam sua própria língua” (FARABEE,
apud Cirino, p. 69). Por outro lado, os missionários beneditinos classificavam a língua
Wapischana como um dialeto da língua Tupi ou Nhenhegatu, pelo que consta na anotação de
D. Béda Goppert (1910 – apud Cirino, p. 69). Porém, segundo Ildefonso – índio Macuxi da
região do Surumu –, depoimento coletado por D. Béda Goppert, o Nhenhegatú desaparecia
junto com os mais velhos e pelo desprezo dos Wapischana mais novos. Este foi o fato que
levou os beneditinos a concluir erradamente que as línguas Wapischanas (Aruak) e Macuxi
(Karib) eram sim dialetos Nhenhegatú. E para uma “melhor compreensão” [grifo meu] o
“desaparecimento lingüístico” [idem, ibden], teria ocorrido pela “dispersão contínua dos
índios, o desaparecimento dos antigos missionários que falavam a língua, as epidemias, o
desenvolvimento da região do Rio Negro e a extração da borracha” (Cirino, p. 70).
Cirino descrevendo o espaço físico habitado pelos Wapixana, recorrendo a Henri
Coudreau, que, acometido de febres, permaneceu entre Wapischana na maloca “Maracachite”
em 1987[?]. Sobre as moradias Wapischana, ele constatou que:
tinham o hábito de construir suas malocas a cerca de meia hora de caminhada das margens dos rios ou igarapés, precavendo-se das constantes enchentes no período de inverno. A maioria das casas tinha formato redonda ou oval (sic), mas era possível encontrar algumas de forma retangular. As casas tinham apenas uma porta, de mais ou menos um metro de altura, com telhado em forma de cone e coberto com folhas da palmeira buriti (COUDREAU, apud Cirino, p.71).
E sobre os traços humanos, acrescenta, que características físicas dos Wapischana
[Cirino grafa a etnonímia com o fonema scha. No entanto, todos os Wapixana por mim
entrevistados, grafaram com x. Por tal motivo, todas as vezes que quero me referir a esta
etnia, emprego assim como os próprios] do final do século XIX e XX. Mencionando o próprio
Coudreau, Gillen (1963), Brett (1868), Farabee (1918), Koch-Grünberg e D. Bonaventure
Barbier (1911), para indicar-lhes traços físicos: poucos pêlos no queixo e lábio inferior,
estatura baixa, mas robusta, pele escura, cabeça longa e face redonda, nariz aquilino, poça
pequena, olhos retos, pés e mãos pequenos (sic), pulsos e tornozelos finos, de corpo
parcialmente pintado de jenipapeiro; mulheres e crianças de cabelos cortados à tesoura, porém
um pouco mais longos do que os dos homens.
13
As atividades econômicas dos Wapischanas encontravam-se caracterizadas, segundo
Cirino, de roças [mandioca, tabaco, milho, cana de açúcar, banana, ananás, inhame, batata e
jerimum], cerâmica, tecelagem (exclusivas de mulheres), pesca, caça e fabricação de
instrumentos de trabalho (exclusivas de homens). O excedente da farinha de mandioca era
exportado para abastecer, regularmente, o mercado de Boa Vista, cujo processo de produção
da farinha já fora descrito por D. Eggeerath (1924). Somada ao milho, a mandioca também
era empregada na produção de uma bebida denominada caxiri bem descrita por Coudreau
(1887) e qualificada por Koch-Grünberg como refrescante, resultado da fermentação obtida
da mastigação de pedaços de cana de açúcar ou pedaços de bolo de farinha e cuspidos dentro
de uma gamela, acrescidos de água e abafado com folhas de bananeiras, para posterior
cozimento e coagem. Um processo “verdadeiramente repugnante” (D. EGGERATH, apud
Cirino, p.78).
Necessitando de alguma remuneração, era comum a prestação de serviço no
município de Boa Vista, o que já fora percebido e descrito por Coudreau e por Koch-
Grünberg. Isto era para atender à aquisição de fuzis, chumbo, facas, machados, tecidos, etc.
Para o segundo, tratava-se de trabalho escravo em fazendas e comércios, gerando quase
sempre, endividamento. Uma inserção, segundo Cirino, de uma “inserção numa nova ordem
econômica” (Cirino, p. 81). Tal situação denunciada em crônicas beneditinas ao bispo do
Amazonas, D. Frederico Costa, dava conta de maltratos de Índios Wapischanas por
fazendeiros e comerciantes que “chegavam a retirar à força, de arma em punho, os índios das
malocas [...] quando se rebelavam contra a exploração, eram chicoteados nas margens dos
rios. Quando fugiam, eram capturados por homens especialmente treinados pelos fazendeiros
e comerciantes” (op. Cit., p. 82).
Tudo isto, segundo os beneditinos, em conseqüência da acessibilidade e
vulnerabilidade dos Wapischana à “civilização” [grifo do Autor] que para Cirino, corresponde
a uma “interpretação etnocêntrica dos missionários [que] os impedia de admitir a sua
capacidade de formular um pensamento lógico e racional” (op. Cit., p. 83). Entretanto às
denúncias feitas pelos missionários, estes não deixavam de se beneficiar do mesmo modelo
relacional, pois “encontravam-se na companhia de duas domésticas e duas crianças que
trabalhavam na missão [...] trabalhando na cozinha da missão, outras duas no jardim e duas
outras como serradores na marcenaria e outros ‘kurumys’ encarregados de capinar, cultivar a
terra, cuidar do rebanho e da limpeza da missão” (op. Cit., p. 84).
Se não tivessem de enfrentar as ações dominantes dos Makuxi invasores, os
Wapixana necessitaram de resistir ao uso da força de não índios, fazendeiros, comerciantes e
mais tarde, mineradores e da própria igreja católica, sem deixarem por extinguir, a língua e a
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organização política, de modo geral, a cultural, mesmo que para isto, adotassem estratégias de
“convivência pacífica” com estes. Nesta tarefa, destaca Cirino do seu entendimento a
Coudreau sobre os Wapischana, o Tuxáua – chefe da maloca, o pajé – curandeiro e detentor
do conhecimento e da religião conseguiam mantê-los unidos e este último, tinha um
“verdadeiro poder de mando [...] sendo suas qualidades socialmente reconhecidas: a
inteligência, energia, autodomínio, conhecimento das plantas medicinais e das lendas que
glorificavam o seu povo e o seu poder” (op. Cit., p. 86).
Assim, a vida na maloca desde as constatações de Coudreau, era tranqüila.
Wapixana levantava cedo antes do nascer do sol. Havia dias de fartura e de escassez, quando
se alimentavam apenas de beiju. Para Coudreau (1887), devido “a maior parte de suas vidas
passava dentro de uma rede, a se balançar, fumando ou passeando uns com os outros,
conversando e bebendo caxiri” em meio a animais domésticos como cães e tartarugas tidos
mais como “ornamentos vivos” até mesmo nas festas constantes em que se acrescia a
embriagues e a mistura de sons instrumentais vindos de flautas, o teiquiem, o yéoué, o yaté,
cabaças cheias de seixos e o tilelé feitos de uma dezena de talos de cana, que animavam a
dança Parischara (COUDREAU, apud Cirino, p. 91-92).
Cirino esclarece que a referida dança originou-se, segundo uma lenda Wapischana,
“quando um pajé recebeu dos animais os instrumentos mágicos da caça e da pesca, mas teve
de devolvê-los, por causa de uns parentes mal intencionados” (op. Cit., p.92), tornando-se
assim, uma dança-ritual festiva também executada, segundo Herrmann [1947] (apud Cirino)
na fertilização da caça e da pesca e por nascimento de criança do sexo masculino, talvez por
que ocupasse uma posição hierárquica superior na estrutura política local, merecendo o
cuidado de todos (op. Cit., p. 94), inclusive para o ensinamento das atividades paternas para
os meninos (brincadeiras de arco e flecha). No entanto, não são mencionadas ocupações das
crianças meninas.
Metodologicamente, apoio este texto acima que empreguei para recuperar parte da
história das etnias e suas características sociais, primeiro porque a atividade da escrita permite
a consolidação de um pensamente e reflexão ou como nos disse Roberto Cardoso de
Oliveira, “a função de escrever o texto é mais do que uma tentativa de exposição de um
saber: é também e, sobretudo, uma forma de pensar, portanto, de produzir conhecimento” (op.
Cit., p. 12), ou noutra expressão dele, “atos cognitivos” (op. Cit., p. 18; p. 25), que procedem
ao ver e ouvir.
Quanto à condução em campo, não poderia seguir apenas por entrevistas visto que
percepções ocorrem não exclusivamente em palavras, mais em pequenas atitudes cotidianas.
Quanto mais se a pesquisa centrada em conflitos entre índio e índio, o que causaria a presença
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de um caderno ou folha agravada por alguém anotando? Mas, um olhar não pode ser aplicado
sem um norte. Requer, portanto, uma orientação. Raúl Rojas Soriano esclarecendo sobre a
observação participante, advoga que para este fim, se requer:
um esquema de trabalho para captar as manifestações e aspectos mais transcendentes e significativos da vida familiar e comunitária [...] avaliando suas atitudes, expressas pela linguagem corporal (aceno, gestos, e posturas do corpo, bem como a linguagem oral – exclamações, expressão emocional da voz. Observa também se o grupo está dividido em subgrupos, se é heterogêneo ou homogêneo; observa suas vestimentas, o tipo de participação [...] e a atitude dos líderes. Observa o meio ambiente onde se desenvolve o acontecimento (op. Cit., p. 146).
Ele ainda adverte que ocorrendo em núcleos indígenas, há de se persistir, pois
embora aquele e aquela que tenham sido aceitos, podem gerar uma aversão, alterando a
normalidade do cotidiano, agindo, portanto com uma formalidade, distorcendo e invalidando
a observação.
Havendo observação participante, não tinha como eu deixar de alterar aquela
realidade social. Então, o que fazer para ter a confiança daqueles a quem observara? Pensei:
proporia-me a trabalhar com as crianças da escola Pe. José de Anchieta. Mas o que fazer com
elas? Lembrei que havia lido sobre isto, nas idéias de Carlos Rodrigues Brandão (1999). Para
ele, se um conhecimento resulta de uma inserção na história de um grupo, implica em tomar
posse deste conhecimento. E, daí, torna-se ética uma retribuição, uma forma em que
pesquisadores-e-pesquisados [palavra composta pelo autor] “são sujeitos de um trabalho
comum” (op. Cit., p. 11). Assim, decidi que eu poderia atuar diretamente com os alunos,
contando e ouvindo histórias deles e, com os professores, ouvindo, primeiro, a história de vida
profissional e pessoal deles e em seguida, contar a minha história também, filmar tudo isto e
viabilizar uma maneira de inserir esses participantes na socialização dos resultados do
trabalho de pesquisa.
James Clifford (2002) colaborou para a certeza de que a observação participante
seria o método principal para captar essas percepções minhas e deles. Para ele:
A observação participante obriga seus praticantes a experimentar tanto em termos físicos quanto intelectuais, as vivissitudes da tradução. Ela requer um árduo aprendizado lingüístico, algum grau de desenvolvimento direto e conversação, e frequentemente, um ‘desarranjo’ das expectativas pessoais e culturais (op. Cit. p. 20).
Mas, e o que fazer com as histórias? E se elas viessem repletas de mitos? Ora,
enquanto essas variáveis circulavam em minha cabeça, mal lembrava que Darrell Posey em
sua Introdução à Etnobiologia: teoria e prática, já chamava a atenção que:
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Em ecossistemas da Amazônia e os modos pelos quais podem ser explorados encontram-se, direta ou indiretamente, expressos nos mitos e rituais dos grupos indígenas da região. Com efeito, sua concepção do mundo influencia – e é influenciada em graus diversos – pela maneira como o ecossistema é percebido. Por outro lado, o modo como os índios interagem com seu hábitat oferece informações preciosas sobre as inter-relações ecológicas, todas elas cruciais para o funcionamento dos microssistemas (1997, p. 12).
Porém, como dialogar com os participantes? Do mesmo autor aprovisionei-me de sua
valiosa compreensão de que “quanto menos pergunta, melhor [...]. Um mito em cujo enredo
compareçam elementos vegetais, animais e seres humanos pode constituir a chave para
decodificar a percepção por uma determinada cultura de importantes inter-relações. [...] A
metodologia geradora [grifo do autor] (op. Cit., p. 13).
Com essa indicação, me compenetrei no mito de origem Makunaima e a Raposa
[grifo meu], obtido de um documento escrito e ilustrado por professores, e o segundo,
pronunciado pelo Tuxaua Anselmo Dionísio Filho [Tuxaua da Maloca Barro – Surumu] no
final da tarde do dia 26 de novembro de 2007, durante um diálogo onde investigava sobre
minha pesquisa. Assim pronunciou-se: “Somos um povo de passado aguerrido. Sempre
estivemos a frente da luta por nossa terra. E todos esses jovens que estudam aqui no Centro de
Formação, se preparam para isto: a defesa de nosso povo, de nossa cultura”. Quando os
entrevistava individualmente na sede da escola entre perguntas e solicitações para que
falassem sobre o passado de suas etnias, apenas me respondiam que tinha sido de muita
exploração e dominação. Se havia conflito entre Makuxi e Wapixana, a resposta era “não”.
Que ambas as etnias conviviam em paz. Só não me souberam explicar o porquê de se ensinar
a alunos das etnias mencionadas, a língua Makuxi como língua materna; de que não
conseguiam, assim como pude observar no Centro de Formação e Cultura da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol, agrupar alunos de etnias diferentes em um mesmo grupo de trabalho,
quando todos falavam e entendiam em língua portuguesa; que, como me disseram em
entrevista o professor do Núcleo de Educação Superior Indígena INSIKIRÁN [nome de um
dos filhos mitológicos de Makunaima], ter ouvido relatos de seus alunos,
Por que não seguir à Antropologia britânica de tomar a etnografia recortado do
passado, entendendo o problema em seu tempo? Porque estou diante de um conflito que tem
uma trajetória construída historicamente. Não uma construção minha, mas das próprias etnias.
Daí, não tinha como seguir um parâmetro radcliffiano ou malinowskiano de buscar
exaustivamente, a descrição das etnias em foco, embora tenha “optado” por um método de
pesquisa plenamente empregado, e por que não dizer, inventada na escola Funcionalista, a
observação participante. Por uma razão que penso própria: não sou indígena e sequer tenho
residência na T. I. Raposa Serra do Sol.
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Estudei a língua Makuxi. Portanto, como apreender uma “totalidade integrada” [grifo
meu] diante das circunstâncias? Como imergir e emergir do “todo” cultural adentrando nos
meandros da economia, parentesco e organização social, religião, ritual e mitologia, e cultura
material, se a todo tempo eu aguardava uma ordem para deixar a Terra Indígena? Como
conviver em meio a etnias sem tempo certo para sair, se a qualquer momento, poderia ser
convidado a deixá-la? Restou-me por necessidade teórica e prática, minhas e daqueles a quem
observei e entrevistei, convivências curtas, intercaladas por retornos à capital, Boa Vista.
Vinha estudando em casa boa parte das formações gramaticais Makuxi. Isto me
facilitou na percepção e “checagem” de algumas informações. Pois não foi uma ou duas vezes
que em minha frente, índios falaram em língua Makuxi ou Wapixana, pensando que eu não
tivesse um saber capaz de tirar um entendimento. Reconheço este saber político como uma
alta expressão de etnoconhecimento político, se assim posso categorizar.
E então me vieram algumas reflexões. As primeiras delas a partir daquelas presentes
em um dos textos estudados durante a disciplina do Mestrado, Teorias Antropológicas
Contemporâneas – A Experiência Etnográfica. Em James Clifford (2002), encontrei aportes
que me permitiram entender algumas crises que senti lá e cá: poderia eu retratar um conflito
que, de fora, só está é percebido por mim? Como então retratar as etnias envolvidas?
Por retomar a máxima malinowskiana de que o etnógrafo poderia alcançar um atributo
“sobrenatural de pensar, sentir e perceber o mundo” (op. Cit., p. 86) desde que se colocasse na
condição do nativo, Clifford Geertz (1999) não considera como um problema, visto de dentro
ou de fora, na primeira ou na terceira pessoa, mas sim, de estabelecer, como dizia o
psicanalista Heinz Kohut diz: “experiência próxima e distante” (apud Geertz, p. 87), a tal
modo que constate a impossibilidade de estar sob a pele do nativo e sim, de esforçar-se em
não se envolver por empatias internas com os informantes, para então saber expressar o que é
uma explicação nativa de uma não nativa
Já na Apresentação, que foi feita por José Reginaldo Santos Gonçalves10, encontro o
primeiro argumento para esta crise que “mexeu” comigo. Ele reconhece que:
No saber convencional da disciplina, a etnografia desempenha um papel metodológico central. [...] É entendida por certos autores como a ‘observação e análise de grupos humanos considerados em sua particularidade (...) e visando a reconstituição, tão fiel quanto possível de cada um deles’ [grifo do apresentador. Lévi-Strauss, apud Gonçalves, 1973: 14] da vida dos grupos estudados e problematizam o entendimento mesmo do que seja a ‘prática da etnografia’ [grifo do apresentador]” (GONÇALVES, op. Cit., p. 9).
10 PhD em Antropologia Cultural pela Universidade de Virginia, Charlottesville, Estados Unidos (1989). Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980). Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4781996H6. Acessado em: 27 de março de 2008.
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Daí, me deixa uma margem para justificar que as particularidades necessárias à esta
pesquisa, poderiam ser contempladas pela averiguação nas histórias das etnias, mediante um
exame mais apurado das fontes. Pretendi consultar a fundo as fontes primárias com
prioridade. Porém, restrições financeiras me impediam de alcançar essa meta. Mas a
possibilidade considerada pelo antropólogo francês, penso, me dá a exceção.
E se considerar a interlocução feita pelo apresentador no qual faz em Clifford Geertz,
para quem a “etnografia é uma atividade eminentemente ‘interpretativa’, ‘uma descrição
densa’ [grifos do apresentador], voltada para a busca de ‘estruturas de significação’”
(GUEERTZ, apud Gonçalves, 1978: 15, op. Cit.), responderia, persigo e intento encontrar o
sentido mais próximo ao que os estudos e vivências pessoais me inspiram, para o conflito
interétnico entre Makuxi e Wapixana. Pois como ressalta o propósito do James Clifford, uma
etnografia deve se propor a
entender a diversidade mesma dos processos de construção dos textos etnográficos, visualizando-os como empreendimento textuais situados em circunstâncias históricas e culturais específicas [...] parte de um sistema complexo de relações [...] vividas por etnógrafos, nativos e outros personagens situados no contexto de situações coloniais. [...] Ela se configura na verdade como um campo articulado pelas tensões, ambigüidades e indeterminações próprias do sistema de relações do qual faz parte (Gonçalves, 2006, p. 10).
Não sou aquela autoridade a que me foi atribuída no primeiro almoço que tive com
alunos e demais autoridades locais, segundo o Tuxaua, quando fui convidado a sair da mesa
dos alunos e passar à mesa “deles”. Autoridade mesmo reconheci na competência de
professores Makuxi e Wapixana nas duas escolas, em lidarem com relações de poder no mais
abrangente sentido do termo. Pois os textos que eu tanto procurava para pensar, refletir e
escrever, já estavam em elaboração nos encontros e desencontros dos professores. Recordo
bem de uma observação que fiz durante uma reunião da comunidade. Emprego este termo –
comunidade – por que foi o utilizado na ocasião, fato escrito em eu Diário de Campo e por
representado a seguir na imagem:
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5. Considerações finais
A atividade de pesquisa em qualquer área deve ser bastante planejada, de preferência,
prevendo e provendo possibilidades. Foi assim que a ansiedade por reencontrar com ex-alunos
e agora colegas professores, tomava minha concentração. Só não foi pior por que “de longe” a
releitura do diário de campo me propiciou links de lembranças para puder fazer algumas
reflexões aqui apontadas.
Lembro bem quando eu cheguei a um automóvel Pick-up, preto, com vidro fumê
preto, quatro portas, em pleno tempo e espaço de conflito. Eu fora recebido no mínimo como
um filho ou representante de rizicultor. Desde a sede do Conselho Indígena de Roraima na
cidade de Boa Vista, que recebi a distinção de “um problema”, como fui classificado por
alguém. E tendo chegado à Maloca Barro, por ocasião da minha primeira visita à escola Pe.
José de Anchieta recebi as boas-vindas de todos os professores e funcionários. Mas, na
segunda visita à escola, ninguém queria falar sobre nada. Foi desencorajador para mim.
Se possível uma leitura da percepção dos professores índios pesquisados, diria: quando
estão juntos, assumem compromissos coletivamente. Mas, quando estão para executar uma
determinada ação de exposição detalhada da pessoa, então reina a “lei do silêncio” [grifo
meu]. É nesta direção que hoje, professores índios ou não, querem conhecer a prática
profissional de cada um. Caso contrário, não haveria a instituição escola.
Assim, as posturas, da maneira como aconteceu comigo, diria que em consciência em
que de que está sendo observado, houve em meus grupos de pesquisa, mudança de
receptividade, variando entre outra de aceitação ou de recusa, talvez com medo de serem
Figura 2: Esboço do espaço onde ocorria a reunião da comunidade. Ao centro, uma diagramação a partir de meu olhar. Destaco a distribuição de gênero e das autoridades. Eu, no penúltimo banco. Todos, à sombra de uma árvore. Diário de Campo pessoal (Almeida, 2007, p. 8 – v).
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surpreendidos pelos seus líderes. Isto insita à pesquisas com permanências maiores que a
minha, o que gera um comprometimento ético para que uma antipatia inicial não progrida a
uma crônica. Mas diria que, antes da pesquisa, ser fiel às fontes; segundo, guardar o
anonimato quando para proteção das fontes humanas; levar em consideração os moradores
locais.
Só para recordar, quando havia descido do automóvel Pick-up que me levara para o
Barro, já fui recebido pelo Tuxaua. Com ele, combinamos sobre minha estadia e trabalho;
dialogamos sobre o que, como e para que pesquisava. Com todos os professores das duas
escolas, detectei a participação coletiva em trabalhos diários: capinar, ajudar ao vizinho,
participar das reuniões no centro da Missão; fazer cerca; pegar uma rês (gado) foragida. Não.
A profissão de professor não é omissa da vida comunitária.
Tais professores conhecem cada canto da Villa Barro, mesmo quando no escuro. Da
mesma forma, as crianças que deitam e rolam nas águas do Surumu faziam acrobacias
mergulhando de cabeça. Portanto, professores sempre com o domínio da prática docente e da
vida comunitária, extensivo à vida política, a quem credito a “vigilância” a Terra demarcada
onde rizicultores teimam em permanecer.
Durante as entrevistas eu também era entrevistado e sempre fui tratado com diferença:
chamavam-me como professor e não pelo meu nome; sentia-me observado pelos professores,
alunos e idosos. Às vezes eu perguntava e me respondiam com perguntas. Os melhores
espaços para pesquisa são aqueles em que surge a espontaneidade e a mútua e recíproca
confiança.
Todos reconhecem o “grande problema” da Maloca: o conflito entre índios e não-
índios. Mas não se dão conta de que há um conflito dentro do conflito, que é aquele que se dá
nas “arenas” das escolas, dos caminhos de passeio que vi, uns fechando entradas das malocas
para que outros índios não entrassem e até sentarem-se próximos a outros, mesmo que da
mesma etnia, mas de posição contrária à retirada de não índios de terras da Maloca.
Tive de ouvir mais de uma vez a reclamação de que a maioria dos antropólogos nunca
que retornaram para pelo menos agradecerem. Pessoalmente, me comprometi que, por ocasião
do término de minha pesquisa, voltaria ao meu grupo de pesquisa – professores índios – para
editar com ele, as imagens, exibi-las e discutir o que for necessário à promoção das etnias. Fiz
isto diante do Tuxaua e do Diretor da escola. A escola indígena na localidade estudada é o
centro da vida social das etnias Makuxi e Wapixana. Um empreendimento que fortalece e é
fortalecido por todos que lá residem, índios ou não.
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6. Fontes
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