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Seminário de Economia I
Terá a antropologia económica futuro?
Enquadramento do artigo de Filipe Reis “É a economia, estúpido vs. É a dádiva estúpida: Reflexões de
um antropólogo sobre o ensino da antropologia a futuros economistas”
Amarílis Felizes
Tatiana Burmester
Faculdade de Economia
Universidade do Porto
2011
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
2
ÍNDICE
1. Introdução. 3
2. Antropologia e economia: duas lógicas diferentes de produção científica. 4
3. Antropologia económica: a história e os desafios da disciplina. 5
4. O “Grande Debate” entre formalista e substantivistas. 7
5. A crítica da antropologia económica à construção epistemológica da economia
oxtodoxa. 9
6. Terá a antropologia económica futuro? 12
7. Conclusão 14
8. Bibliografia 15
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
3
INTRODUÇÃO
A possibilidade de fazer este trabalho foi um novo folgo na nossa licenciatura de economia, em
que nos são dadas poucas oportunidades para desenvolver o pensamento crítico.
A escolha da antropologia económica, e do artigo de Filipe Reis, de entre os temas/textos que
previamente tivemos de analisar, pareceu-nos uma das mais interessantes e menos óbvias, ao
contrário das áreas da economia comportamental ou psicologia económica.
Ao longo do nosso trabalho vamos debruçar-nos sobre algumas das questões que nos
chamaram mais à atenção durante a nossa pesquisa prévia.
Começaremos por abordar a curiosa distância e divergência que existe entre os métodos
científicos da antropologia e da economia e, a partir daí, tentar compreender como é que surge
uma disciplina que combina estas duas áreas – a antropologia económica.
Explicitaremos brevemente a evolução teórica deste subcampo científico, nomeando as
principais escolas e controvérsias desenvolvidas. Dentro destas controvérsias, pareceu-nos
importante dedicar atenção ao debate entre formalistas e substantivistas, que incide, entre
outras coisas, na epistemologia da antropologia económica e da economia, o que nos abrirá
caminho para recair sobre a grande crítica que a antropologia económica faz à construção
epistemológica da economia ortodoxa.
Por fim, cuidaremos de apontar os principais desafios e dificuldades que a antropologia
económica enfrenta actualmente, nomeadamente dentro do panorama da construção de
pensamento teórico sobre a economia.
A oportunidade de fazer uma pesquisa sobre a antropologia económica, acabou por nos
mostrar a utilidade e relevância desta perspectiva de análise e por nos despertar para questões
esquecidas dentro da nossa área de estudo.
Apesar disso, a verdade é que as limitações da teoria económica dominante, por demais
abordadas ao longo do nosso trabalho, revelam-se barreiras que nos constrangem o pensamento
e capacidade de análise sobre a realidade social e económica ao longo do nosso percurso
académico.
Por isso, a não integração da antropologia económica no currículo dos cursos de economia, é
reveladora per si da actualidade da crítica epistemológica que esta disciplina dirige ao
pensamento económico ortodoxo.
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
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ANTROPOLOGIA E ECONOMIA: DUAS LÓGICAS DIFERENTES DE PRODUÇÃO CIENTÍFICA
A antropologia económica surge, enquanto disciplina ou subcampo da antropologia, de um
aceso debate entre a antropologia e a economia. Ambas são ciências sociais, e como tal
ocupam-se do estudo do comportamento humano, contudo, e como nos diz Filipe Reis1, no
final do século XIX a Economia e a Antropologia estavam já demasiado afastadas.
A Economia é, na sua definição mais convencional (seguindo a proposta de Lionel Robbins
[1898 – 1984]), a ciência que estuda o modo como as sociedades afectam os recursos
escassos para produzir bens com valor e de como os distribuem entre os vários indivíduos. No
entanto, há diferentes definições possíveis (do mesmo modo que existem diversas correntes
de pensamento económico). Define-se, também, economia como a ciência das trocas, a
ciências das escolhas ou o estudo dos fluxos e meios de aplicação de recursos para atingir
qualquer fim. Há que notar, desde já, que muitos antropólogos reflectem e põem em causa a
própria definição mais convencional de economia (como veremos mais à frente), retomando,
por exemplo, a Aristóteles - que não associou a ideia de escassez à economia - como insistiu
Polanyi.
A Antropologia é a ciência que estuda o homem ou a humanidade em geral, embora se
interesse particularmente pelo estudo de sociedades distantes das ocidentais. Divide-se em
três ramos principais: a antropologia física (já pouco estudada) que desenvolveu um conjunto
de técnicas utilizadas para medir o corpo humano ou suas partes (antropometria), a
antropologia social que incide no estudo das sociedades não ocidentais ou tradicionais, e a
antropologia cultural que se interessa pelas práticas, costumes e crenças nessas sociedades.
Os métodos utilizados nas investigações da antropologia e da economia são radicalmente
diferentes. Enquanto os antropólogos baseiam os seus estudos em trabalhos de campo tendo
por base a observação participante, os economistas apresentam trabalhos dedutivos de
“índole demasiado abstracta” (FIRTH, 1967).
Quanto ao objecto ou ao plano de análise, temos de assinalar que a economia surgiu e
desenvolveu-se como uma ciência que estuda, exclusivamente, as relações económicas nas
sociedades capitalistas. Outras formas diferentes de organização social 2 não têm sido objecto
de investigação da ciência económica. Por oposição, a antropologia centra cada vez mais o seu
1 Ao longo do nosso texto seguiremos de perto o artigo “É a economia, estúpido vs. É a dádiva estúpida: Reflexões de um
antropólogo sobre o ensino da antropologia a futuros economistas” e é apenas a este artigo que nos refer imos quando citamos
Filipe Reis. 2 Surgem vários termos para definir estas formas de organização: economias primitivas, economias pré mercantis, economias pré-
industriais, economias de subsistência, etc. Daqui em diante vamos chamar economias pré- capitalistas às sociedades que são
objecto de estudo da etnografia (contudo a denominação de economias não-capitalistas também nos parece adequada mas não a
vamos utilizar por ser um termo muito pouco vulgar).
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
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estudo nas sociedades pré-capitalistas em geral e interessa-se menos em analisar as
actividades especificamente económicas nessas sociedades.
Torna-se, portanto, intrigante, perguntarmo-nos como se estabeleceu um diálogo entre
estas duas disciplinas? É precisamente esta a primeira pergunta a que Filipe Reis nos
responde.
ANTROPOLOGIA ECONÓMICA: A HISTÓRIA E OS DESAFIOS DA DISCIPLINA
Precisamente por se terem apropriado de ferramentas tão distintas e, por isso, serem
instrumentos de análise limitados, é que o diálogo entre a economia e a antropologia se
tornou tão próspero e acabou por se revelar um importante subcampo científico.
Apesar de a economia ter sido das ciências sociais menos influenciadas pela antropologia
social, este encontro acabou por se dar quando Malinowsky3 aponta algumas considerações
sobre o conceito de homo economicus numa nota de rodapé em “Os Argonautas do Pacífico
Ocidental”. Como afirma Filipe Reis, este autor representa “uma centelha, um início de
combustão que se consumiu em centenas de artigos e livros, entre meados dos anos 50 e
inícios do anos 60”. Em todo o caso, não é ele o “founding father” da antropologia económica,
uma vez que esta só se institui como disciplina (segundo Filipe Reis) quando os estudos mais
descritivos dão lugar a obras em que se acentua a “discussão teórica com a Economia”, o que
acontece ao longo dos anos cinquenta e sessenta do século XX potenciada pelos estudos de
Polanyi4 em que apresenta a sua posição substantivista (da qual falaremos mais adiante).
Contudo esta opinião não é unânime: para Rymond Firth (Temas de Antropologia
Económica) a instituição da antropologia económica dá-se muito antes, ainda nos finais do
século XVIII, inícios do século XIX, com os estudos de autores, então marginais, como Bücher,
Cunow, Herment, Kholer, e outros, que só no início do século XX são debatidos com mais
atenção - por Whilhelm Koppers (1916) e Max Schnidt (1921) - altura em que, para este autor,
se iniciam os estudos da antropologia económica.
3 Bronisław Malinowski (1884 — 1942) foi um antropólogo polaco considerado um dos fundadores da antropologia social. Na sua
obra principal - “Os argonautas do Pacífico Ocidental” Malinowsky centraliza a sua atenção no sistema de trocas utilizado pelos
habitantes das ilhas Trobriande (arquipélago situado na Nova Guiné) permanecendo assim dois anos de sua vida a analisar os
costumes, o quotidiano e suas crenças. Malinowski desenvolveu o funcionalismo, que imprimiu uma nova orientação ao estudo
antropológico, estudando agora o passado a partir da análise do presente, em contraposição ao estudo do presente através do
passado. 4 Karl Polanyi (1886 – 1964) foi um historiador, filósofo e economista húngaro que concentrou os seus estudos na área da história
económica e na crítica ao pensamento económico dominante. A sua principal obra é “A Grande transformação” (1944), contudo é
posteriormente com o artigo “Comércio e mercado nos impérios antigos” (1957) que apresenta a posição substantivista da
antropologia.
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
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Podemos então defini-la como uma área de pesquisa académica que tenta explicar o
comportamento humano usando as ferramentas da economia e as da antropologia. É
praticada predominantemente por antropólogos “que exploram as ligações entre os
processos materiais e o ambiente, a cultura e os valores culturais” (GUDEMAN, 1998).
Se considerarmos que os estudos dos anos vinte a trinta do século XX eram já da área da
antropologia económica, de qualquer das maneiras, permaneceram num lugar relativamente
modesto dentro dos estudos antropológicos. Alguns destes estudos tinham como base a
escola da economia clássica, e procuravam explicar modos de funcionamento de economias
pré-capitalistas através de modelos formais.
Foi nos anos cinquenta a setenta que a disciplina tornou-se uma das principais da
antropologia. O que se deve, principalmente, às grandes mudanças que ocorreram desde a II
Guerra Mundial: implantação em massa do movimento de libertação nacional e o surgimento
de novos estados independentes da Ásia, África e Oceânia. Estes novos países, que
subitamente obtiveram independência política, tinham agora de lidar com os seus problemas
económicos, tornando-se o centro das atenções e dos estudos das ciências sociais.
É nesta altura em que a presença de argumentos marxistas se torna central (mais tarde
muito advogada por Maurice Godelier, importante antropólogo francês), defendendo que o
homem não se define por uma essência imutável, o egoísmo (homo economicus), mas sim
pela sua experiencia e acção (homo faber).
É também neste ambiente que surge a teoria substantivista (que, como sugere Gudeman,
surge na linha do institucionalismo económico, apesar de diferir da posição de Veblen) de
Polanyi que por sua vez se inspirou no que Malinowski escreveu. Pouco depois surge, através
de Marshall Sahlins5 e Clifford Geertz6, a crítica aos modelos formais, às posições marxistas
(sempre que tendem a ser universais) e até a algumas teorias substantivistas. Surge duma
corrente a que se poderá chamar “economia cultural” (que nasce do culturalismo – corrente
de pensamento na antropologia), que contrapõe à ideia de progresso a ideia de que os
principais processos sociais (nos quais se incluem os processos económicos) são culturalmente
construídos.
Estão assim apresentadas (na visão de Gudeman), as quatro principais teorias, escolas ou
aproximações da antropologia económica: a posição formal, a influência marxista, a posição
substantiva e a economia cultural/culturalismo.
5 Marshall Sahlins (1930) é um antropólogo americano que abraçou a corrente culturalista da antropologia e, a partir daí criticou a
teoria utilitarista e a teoria marxista: “O dinheiro significa para o Ocidente o que o parentesco significa para o Resto”.
6 Clifford Geertz (1926 – 2006) foi um antropólogo americano considerado fundador da antropologia hermenêutica (interpreta e
analisa a leitura que os “nativos” fazem da sua própria cultura).
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
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Filipe Reis refere-se ao que Richard Wilk 7designou de “teoria da escolha racional”, “teoria
social”e ”teoria cultural” como as três grandes correntes.
Na última parte do nosso texto vamos continuar a relatar a história e desenvolvimentos
teóricos da antropologia económica num período mais recente.
O “GRANDE DEBATE” ENTRE FORMALISTAS E SUBSTANTIVISTAS
Em 1965 com o artigo “Comércio e mercado nos impérios antigos” Polanyi introduz a
posição substantivista como contraponto ao formalismo dos estudos relacionados com a
antropologia económica até então realizados.
Este é o debate mais alargado e acérrimo entre duas correntes no contexto da
antropologia económica no qual se discutem as suas próprias “bases metodológicas”
(MACHADO, 2009).
É posta em causa a possibilidade da utilização e aplicação da moderna teoria económica 8
aos estudos antropológicos e sua pretensa aplicabilidade universal enquanto base explicativa
da realidade.
O formalismo propõe que o Homem tem uma essencia eminentemente egoísta - age
principalmente por interesse próprio - independentemente do lugar, cultura e sistema de
valores em que se insere.
Este argumento psicologista é baseado na teoria utilitarista do filósofo inglês Jeremy
Bentham, segundo qual todo comportamento humano segue uma linha estratégica que segue
a ideia de maximização dos ganhos e minimização dos custos. Segue, assim, o mito da
racionalidade 9 e a defesa da “busca incessante do lucro” (REIS, 2010).
A posição substantivista, assume que os comportamentos não se reduzem ao dualismo
racional/irracional, antes pelo contrário, são, nas palavras de Filipe Reis, construídos em
7 Richard Wilk é professor de antropologia nos EUA. Apesar de ser um dos autores mais citados por Filipe Reis, não nos foi
possível recorrer à sua obra que está muito inacessível.
8 Gudeman e outros autores falam-nos da «moderna teoria económica» ou «economia moderna» querendo referir-se ao
pensamento económico hegemónico ou economia ortodoxa, que corresponde ao neoclassicismo (o texto que seguimos de
Gudeman é de 1998). 9 Aquilo a que decidimos chamar o «mito da racionalidade» está relacionado, não só com a questão da psicologia e do
comportamento, mas também com todas os pressupostos semelhantes assumidos nos modelos económicos neoclássicos
(maximização, utilitarismo, etc.).
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
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contextos sociais, históricos e culturais específicos (economia embedded - Polanyi) e não
podem ser apresentados como abstracções (é um absurdo epistemológico).
Desde modo, ao interesse pessoal e egoísmo dos formalistas, os substantivistas
contrapõem as ideias de altruísmo, generosidade e solidariedade.
Este controvérsia gera uma discussão muito rica em torno das bases epistemológicas da
economia e da antropologia, dos seus métodos, assim como se prende com a definição do
«económico» e do seu papel nas sociedades capitalistas e pré-capitalistas.
Quando Polanyi se dedicou ao estudo de sociedades pré-capitalista, reconheceu três tipos
de actividade económica, a que deu o nome de “reciprocidade”, “redistribuição” e de
“domesticidade” (algumas famílias alargadas eram completamente auto-suficientes),
concluindo assim que o mercado não era uma instituição universal.
Esta conclusão era contrária à ideia dos economistas e outros estudiosos liberais que
afirmavam que “os seres humanos haviam sempre sido, e eram-no por natureza, negociantes
e regateadores, que o mercado local era, portanto, a primeira instituição económica e que,
finalmente, o capitalismo de mercado moderno não era mais que o culminar evolutivo da
mais simples forma de vida económica” (GOMES, 2008).
A observação dos sistemas de dádiva em que só as pessoas muito generosas sobrevivem,
numa sociedade que os economistas ortodoxos chamarão de paradoxal, vem também
contradizer esta perspectiva liberal.
“Que se pode aprender deste debate?”, questiona Filipe Reis. O próprio avança algumas
respostas quando fala dos perigos de tentar compreender o mundo com base em
generalizações e abstracções pouco fundamentadas.
Quando assunções como “os primitivos pensam como as crianças” se tornam ciência,
“abre a porta para pensar que certos grupos, por exemplo “mulheres”, ”negros”,
”colonizados”, “imigrantes”, sofrem do mesmo problema; ora como se sabe, estas são não
apenas ideias que ainda perduram em forma de senso comum; foram também, em muitos
casos, legitimadas e levadas à prática.” (REIS, 2010).
É por tais razões que o debate teórico aceso é fundamental, e por isso, Filipe Reis prende-
se, no seu artigo, com várias questões do foro pedagógico partindo da sua experiência como
professor de antropologia económica.
Defende que através do estudo da antropologia e em específico do debate entre
substantivistas e formalista, um aluno de economia questiona e reconhece a dimensão
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ideológica das teorias que estuda, percebendo as “implicações dos postulados teóricos” - o
principal: “ o postulado da acção racional”.10
Por fim, é importante assinalar que o “grande debate” não tem vencedores, uma vez que
de ambos os lados há autores plenamente convictos que têm razão e que se recusam sequer a
testar as suas hipóteses: num artigo Hodgson diz-nos que “questionar, nos círculos da
economia, a ideia de que os agentes são racionais é arriscar-se a ser alvo de desaprovação,
exílio ou pior ainda.” (REIS, 2010). Aliás, os dois significados de economia que surgem deste
debate não possuem nada em comum. “Enquanto o formal resulta da lógica, o substantivo
resulta dos factos; as regras do primeiro são as da mente, as do segundo são as da natureza”
(MACHADO, 2009).
Curiosamente Filipe Reis refere que as duas posições não se excluem necessariamente.
A CRÍTICA DA ANTROPOLOGIA ECONÓMICA À CONSTRUÇÃO EPISTEMOLÓGICA DA ECONOMIA ORTODOXA
Um pescador volta para casa em seu pequeno barco. Encontra um bem sucedido executivo
estrangeiro de férias em seu país. O executivo pergunta por que ele voltou tão cedo. Este
responde que poderia ficar mais tempo no mar, mas já pescou o suficiente para cuidar da
família. O executivo indaga: “E o que faz com todo tempo que você tem?” O pescador diz:
“Brinco com meus filhos. Todos tiram uma sesta quando o dia fica quente. À noite jantamos
juntos. Depois me reúno com meus amigos e tocamos músicas”. O executivo o interrompe:
“Olhe, tenho pós-doutorado em Gestão e estudo esses assuntos. Quero ajudá-lo. Assim
recomendo que você fique pescando mais tempo todo dia. Você ganha mais e logo poderá
comprar um barco e uma rede maiores. Com mais peixes poderá comprar um barco maior
ainda.” O pescador pergunta: “Para que?”. Diz o executivo “Ora! Depois de vender peixes para
um intermediário, poderá negociá-los directamente com a fábrica e até mesmo abrir sua
fábrica. Poderá sair de sua aldeia, mudar-se para a capital ou Nova York e dirigir tudo de lá.
Poderá vender as acções de sua empresa e ganhar milhões!” O pescador pergunta: “Quanto
tempo levaria isso tudo?” O executivo diz: “Uns 15 ou 25 anos”. E o pescador: “E daí?” O
executivo responde: “Daí que você poderá aposentar-se. Deixar a agitação e o barulho da
cidade grande e mudar-se para uma aldeia remota e tranquila como esta.” O pescador insiste:
10
Concluímos que não seria adequado preocuparmo-nos muito com as questões pedagógicas que Filipe Reis levanta no seu artigo,
apesar disso, na nossa pesquisa, constatamos que a disciplina em causa é estudada em quase todos os cursos de Antropologia e
(dentro do que observamos) em nenhum curso de Economia.
Tal constatação levou-nos a suspeitar que qualquer modelo de análise ou corrente de pensamento que não se enquadre no
neoclassicismo não tem lugar nas faculdades de economia, onde, cada vez mais, os economistas ortodoxos temem que a ciência
economia perca a extraordinária hegemonia na opinião pública e dentro das ciências sociais.
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
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“E daí?” O executivo entusiasmado fala: “Aí você poderá ter tempo para um pouco de pesca,
brinca com seus filhos, tira uma sesta quando faz calor, janta com a família e se reúne com os
amigos para ouvir música!”. 11
Está espelhada nesta história, com uma certa ironia, a crítica mordaz que alguns
antropólogos fazem ao etnocentrismo e ao carácter abstracto de uma ciência económica
baseada em equívocos.
Os economistas assumem que estudam um mundo em que se partilha uma única
linguagem (GUDEMAN, 1998), a crítica assinala a falsa universalidade desta disciplina que se
apropria de assunções e instrumentos que não são, de forma alguma, universais. Talvez seja
por isso que os economistas se têm centrado especialmente no estudo de fenómenos muito
específicos das economias capitalistas (por exemplo, os mercados financeiros) ignorando
totalmente o estudo das relações sociais.
Claro que os economistas não lidam bem com uma análise que nega a veracidade de ideias
(por eles pré-assumidas) como a existência de escalas de utilidade ou preferências, escolha
racional e outras às quais já nos referimos. Contudo, apesar de parecer que os economistas
não ouvem, nem valorizam tais críticas, os antropólogos constatam, através de estudos de
campo e recolha de material etnográfico, que os paradigmas e esquemas da teoria económica
ortodoxa não encaixam na realidade.
Polanyi sugeriu que se ultrapassasse a inércia desta tradição, hoje claramente hegemónica
no campo académico e no debate público, desenvolvendo e disponibilizando uma base
empírica alargada através da integração da antropologia económica, da história económica, e
dos sistemas económicos comparados; ou ainda, seguindo Sedas Nunes, quando considera o
contributo de Joseph Schumpeter: a ciência económica tem de se constituir através de quatro
vias metodológicas (teoria económica, estatística económica, história económica e sociologia
económica). (NUNES, 2005)
Observa-se assim que os limites da ciência económica estão latentes, em grande parte, na
repulsa dos economistas em empregar toda a amplitude de métodos e técnicas disponíveis, o
que acaba por conduzir ao cerceamento de variáveis relevantes, e limita a extensão e definição
daquilo que se investiga, o que acaba, portanto, por condicionar grandemente o seu objecto
ou centro de interesse.
Por isso, segundo Polanyi, não é possível compreender as economias pré-capitalista, nem
sequer as próprias economias capitalistas, devido a um equívoco simultaneamente
11
História popular retirada do texto Antropologia e Economia: Contribuições à crítica a utopia de mercado e a importância
cultural do consumo de José Sena da Silveira Emerso, 2007.
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epistemológico e ideológico que consiste em definir toda a economia com base no conceito de
mercado.
Há uma frase muito interessante de Filipe Reis (que precede a um exemplo igualmente
curioso), que nos alerta para a já falada falsa universalidade da teoria económica ortodoxa
que os antropólogos parecem descodificar: “os antropólogos estão frequentemente em
desacordo com os economistas em relação a este ponto [não interessa a que cultura as
pessoas pertençam uma vez que todas elas usam as mesmas ferramentas lógicas], se bem
que, em determinados momentos, são eles próprios apanhados na armadilha”.
Podemos ainda concluir que esta preocupação por parte dos antropólogos com a teoria
económica ortodoxa é um exemplo daquilo que nos parece ser uma tendência crescente
dentro das ciências sociais: um fascínio em condenar o carácter extraordinariamente abstracto
da economia (que vai beber à matemática e à física), ilusoriamente rigoroso e pela sua
incomparável relevância mediática.
O referido mediatismo conduz a outra característica da teoria económica ortodoxa,
intensivamente criticada pelos antropólogos: a capacidade de influenciar os cenários que ela
própria descreve. Como diz Bruno Latour, “a economia como disciplina não descreve o
mercado auto-regulado, mas antes o prescreve, executa”. (SILVEIRA, 2007)
Por fim, realçamos que a desaprovação da teoria económica ortodoxa está longe de ser um
domínio restrito da antropologia económica. Este debate teórico foi e está a ser feito
internamente e é símbolo disso não só a diversidade de correntes de pensamento económico
(tão antigas como a própria ciência económica) como o institucionalismo, marxismo,
keynesianismo, evolucionismo, mas também, por exemplo, o livro que contêm o artigo em
análise (“A Economia sem muros”), ou o artigo de Dezembro de 2008 “A ciência económica vai
nua” em que se afirma que “A teoria económica dominante é profundamente insensível à
realidade” entre outras coisas.
Terá a antropologia económica futuro?
Continuando, de certo modo, o pequeno resumo sobre a evolução teórica dentro da
antropologia económica, e pegando no que Filipe Reis escreve, nos anos noventa do século XX
ainda havia alguns estudos na linha do formalismo que recorriam a métodos experimentais,
mas havia um renovado interesse pelos textos de Marx e grande parte dos antropólogos
estava enquadrada no plano marxista.
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Foi só nos anos noventa do século XX que a ideia da “economia cultural” ganhou mais
adeptos, que achavam que a posição substantivista não chegava suficientemente longe no
comentário à aplicação universal dos modelos económicos ortodoxos, que denominavam de
tautológicos (que se explicam por si próprios, redundantes).
Acontece que, agora, o estudo de economias pré-capitalistas estava reduzido a exotismos,
uma vez que o processo das globalizações levara a que este tipo de sociedades fosse
desaparecendo. Dá-se aquilo a que se chamou a “crise do objecto” que despoletou várias
discussões acerca dos velhos e novos campos da antropologia económica.
É aqui que surge, pela iniciativa de Maurice Godelier, o que se designa por grupo de
transição, um grupo de estudiosos que se envolve no estudo das formas de transição para o
capitalismo, em contextos que são novos para a antropologia económica, como por exemplo
as sociedades rurais europeias (pastores, pescadores, assalariados agrícolas, operários).
O estudo destes processos de mudança é grandemente multidisciplinar, uma vez que nele
estão empenhados, antropólogos, economistas, sociólogos e historiadores (a análise histórica
é fundamental).
No inicio do século XXI dá-se uma outra renovação dos contextos e objectos da
antropologia económica, são estes novos temas a sustentabilidade ambiental, o consumo
(curiosamente, a antropologia torna-se uma ferramenta do marketing), mercados informais,
indústrias, etc.
Com um tão alargado campo de interesses e debates internos profundos, temos que o
principal desafio actual da antropologia económica é afirmar-se dentro do plano das ciências
sociais como uma disciplina útil que nos traga importantes conclusões.
Por outro lado, há uma questão que nos intriga respeitante ao que os economistas mais
ortodoxos vêm nesta disciplina. Há quem diga que o estudo da economia pré-capitalista é
demasiado simples para o economista, pouco importante e conclusivo. Mas nós perguntamo-
nos se não será, em vez disso, demasiado complexo.
Quando há uma tendência para caracterizar a antropologia económica como um pequeno
subcampo da antropologia é fundamental reparar que esta é herdeira da disciplina que se
denominava “economia primitiva” (terminologia que nos remete, indiscutivelmente para o
campo da economia). (FIRTH, 1967)
A par disto, destacamos outra área de produção científica, muito próxima da antropologia
económica (é até difícil distingui-las) que é a etnoeconomia e que estuda, exclusivamente
como os povos tradicionais e indígenas constroem as suas relações económicas e desenvolve
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
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os conceitos, categorias e práticas que as sociedades utilizam para avaliar, calcular,
monitorizar e administrar os seus recursos naturais e humanos (incluindo espirituais e
estéticos).
Terá a antropologia económica futuro?
Nós achamos que sim, na medida em que produz conhecimento científico (e o
conhecimento é um fim em si mesmo) e também pelo contributo que as suas análises podem
ter para a solução dos problemáticas económicos concretos.
Seguindo Gudeman (1998), a antropologia económica trouxe muitos resultados e
ensinamentos interessantes, teorias progressistas e novas formas de entender os processos
económicos, nomeadamente separando a dimensão comunitária e a dimensão de mercado
numa economia.
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CONCLUSÃO
Este trabalho permitiu-nos descobrir uma nova área científica num panorama em que,
como lemos no artigo “A ciência económica vai nua”, “…o ensino dominante não tem
municiado os estudantes para conhecerem o mundo real e para o interpretarem: para
saberem que comportamentos emergem, que sistemas institucionais se confrontam, que
valores estão em crise e quais os que se reforçam”.
Concluímos, então, que a antropologia económica é útil e relevante no plano científico e
que deve permitir um melhor entendimento recíproco entre economistas e antropólogos.
Tendo sempre ideia de que “o económico não é uma esfera autonomizável do institucional,
do político, do social, do psicológico” (novamente “A ciência económica vai nua”)neste sub-
campo científico, muitos autores desenvolveram importantes pesquisas e estudos acerca das
relações económicas nos mais diversos contextos sociais e geográficos.
Em jeito de auto-crítica, temos de referir que não nos alargamos o suficiente sobre alguns
temas, não descrevemos nem especificamos alguns conceitos (ainda que importantes) e há
muitas temáticas a que nem sequer nos referimos.
Aquilo que mais lamentamos é o facto de não nos termos conseguido debruçar sobre a
obra de Maurice Godelier e a de Richard Wilk, autores que compreendemos serem muito
importantes, mas nos quais, por motivos de acessibilidade das obras ou falta de tempo, não
investimos.
Por outro lado, é importante referir que decidimos previamente não nos dedicarmos à
crítica do artigo de Filipe Reis pois isso seria um outro trabalho, talvez menos interessante.
Para finalizar, e citando o autor do nosso artigo de referência, é também nossa a “…
convicção que a antropologia económica constitui, ao arrepio de algumas visões mercantis que
por ai grassam acerca da sua utilidade ou inutilidade, um instrumento, certamente entre
outros, mas com especificidade própria, que produz conhecimento relevante para ‘conhecer e
interpretar o mundo real’. A antropologia económica não é apenas o resultado do olhar dos
antropólogos sobre a economia e os sistemas económicos; ela é, e devia ser mais no futuro, o
resultado de cruzamento entre as duas disciplinas. Haveria então que criar e estimular no
imaginário e na prática profissional da Economia, o economista -antropólogo.”
Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
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BIBLIOGRAFIA
PRINCIPAL
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Contexto: 91/107
GUDEMAN, Stephen, (1998). Introduction - Economic anthropology. The international
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muros, Neves, Vítor e Caldas, José Castro (org.). Coimbra: Edições Almedina: 157/167
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Seminário de Economia I Terá a antropologia económica futuro?
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