o longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomização
Post on 08-Jan-2017
257 Views
Preview:
TRANSCRIPT
-
i
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Cincias Humanas e Filosofia
Departamento de Histria
Programa de Ps-Graduao em Histria
O LONGO BONAPARTISMO BRASILEIRO (1930-1964):
AUTONOMIZAO RELATIVA DO ESTADO, POPULISMO,
HISTORIOGRAFIA E MOVIMENTO OPERRIO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Histria da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor.
rea de concentrao: Histria Social
Linha de pesquisa: Poder e sociedade
Orientador: Professor Doutor Marcelo Badar Mattos
FELIPE ABRANCHES DEMIER
Niteri, 2012
-
ii
Felipe Abranches Demier
O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964):
autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento
operrio
Orientador: Marcelo Badar Mattos
Niteri, 2012
-
iii
DEMIER, Felipe Abranches 1980 -
O longo bonapartismo brasileiro
(1930-1964): autonomizao relativa
do Estado, populismo, historiografia e
movimento operrio
Niteri: [ s.n.], 2012. 506 p.
Tese (Doutorado) Universidade
Federal Fluminense, Departamento de
Histria. rea de concentrao:
Histria Social
1. Bonapartismo Populismo cesarismo Len Trotsky
I. Ttulo
-
iv
FELIPE ABRANCHES DEMIER
O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964):
autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento
operrio
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Histria da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor.
rea de concentrao: Histria Social
Linha de pesquisa: Poder e sociedade
Orientador: Professor Doutor Marcelo Badar Mattos
Aprovada em: __/___/___
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Prof. Dr. Marcelo Badar Mattos (orientador) UFF
________________________________________
Prof. Dr. Virgnia Fontes UFF/FioCruz
_________________________________________
Prof. Dr. Renato Lus do Couto Neto e Lemos - UFRJ
________________________________________
Prof. Dr. Alvaro Bianchi - UNICAMP
_________________________________________
Prof. Dr. Valrio Arcary IF/SP
-
v
DEMIER, Felipe Abranches. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964):
autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento
operrio. (Tese de doutorado em Histria). Niteri: PPGH/UFF, 2012.
Palavras- chave:
1- bonapartismo; 2- populismo; 3- cesarismo; 4- Len Trotsky
Resumo
A finalidade deste trabalho assinalar a presena da idia de autonomizao relativa
do Estado, fenmeno histrico-poltico abordado por alguns clssicos do pensamento
marxista, em alguns dos destacados trabalhos cientficos que se dedicaram ao chamado
perodo populista da histria nacional. Mais especificamente, buscaremos expor como o
conceito de bonapartismo, tal como foi trabalhado e desenvolvido por autores como Marx,
Engels, Trotsky e Gramsci, se encontra presente em uma parcela da produo bibliogrfica
acadmica que visou compreenso das relaes entre classes sociais e Estado no perodo da
repblica brasileira localizado entre 1930 e 1964. Ademais, este trabalho tambm objetiva
evidenciar a existncia de uma relao pouco conhecida para no dizermos simplesmente
ignorada entre essas interpretaes acadmicas sobre o perodo populista brasileiro e
aquelas que, bem antes, no calor dos acontecimentos, haviam sido elaboradas por
organizaes polticas do movimento operrio entre os anos 1930-1964. Mais especificamente,
intentamos expor como pequenos agrupamentos de extrao trotskista (ou prximos ao
trotskismo), como a Liga Comunista Internacionalista (LCI), o Partido Operrio Leninista
(POL), o Partido Socialista Revolucionrio (PSR), o Partido Operrio Revolucionrio (POR)
e a Poltica Operria (POLOP) anteciparam, em suas anlises conjunturais sobre o carter
poltico assumido pela dominao de classe no pas, muitos elementos que, mais tarde,
reapareceriam nas tais interpretaes acadmicas sobre o perodo populista. Alm de todas
essas questes de carter historiogrfico, o presente trabalho traz tambm, ao seu final, uma
proposta nossa de interpretao histrica do processo poltico brasileiro do perodo 1930-1964
realizada luz do que chamamos de uma teoria do bonapartismo.
-
vi
DEMIER, Felipe. Brazils long Bonapartism (1930-1964): relative autonomy of
the State, populism, historiography and the labor movement. (PhD thesis in
History). Niteri: PPGH/UFF. 2012.
Key-words: 1- Bonapartism; 2 populism; 3 Caesarism; 4 Leon Trotsky.
Abstract
This work highlights the idea of a relative autonomization of the State a social-
political phenomenon discussed by some Marxist classics in some of the important
scientific works dealing with the so-called populist period of Brazils history. It is shown how
the concept of Bonapartism, as developed by authors such as Marx, Engels, Trotsky and
Gramsci, is present in part of the academic production that sought to understand the relations
between social classes and the State in the Brazilian republic between 1930 and 1964. In
addition, evidence brought forward of a relatively unknown or perhaps ignored relation
between that academic production and works produced in the 1930-1964 period by political
organizations of the labour movement in the heat of the events. It is shown how small
trotskyist groups (or groups close to Trotskyism) such as the Internationalist Communist
League (LCI), the Leninist Labourers Party (POL), the Socialist Revolutionary Party (PSR),
the Revolutionary Labourers Party (POR) and Labourer Politics (POLOP) appear to have
anticipated, in their conjunctural analyses of the political character of class domination in
Brazil, many of the elements which, later, would reappear in the academic interpretations of
the populist period. In addition to those historiographic questions, the present work also
advances a historical interpretation of the Brazilian political process in the 1930-1964 period,
elaborated in the light of what is here called a theory of Bonapartism.
-
vii
Sumrio
Introduo geral
Bonapartismo, populismo e a nossa pesquisa
O carter deste trabalho ....................................................................................................3
Temtica, objetivos e teses ..................................................................................................3
Estrutura do trabalho e disposio dos captulos ..........................................................5
Duas breves justificativas...........................................................................................10
Parte I
A Teoria do Bonapartismo
Introduo primeira parte
Bonapartismo e marxismo
Bonapartismo: o fenmeno e o conceito ..................................................................15
Uma proposta de sntese conceitual .................................................................................17
Bonapartismo e capitalismo ..............................................................................................22
Estado, regime e governo..............................................................................................23
Crise de hegemonia e bonapartismo..........................................................................31
O bonapartismo esvaziado de sentido: breves comentrios sobre dois autores
acadmicos ............................................................................................................................35
Poulantzas e a permanente autonomia relativa do Estado........................................35
Losurdo e o bonapartismo onipresente.........................................................................39
Captulo I
As origens do conceito: Marx e Engels
-
viii
Marx e o clssico bonapartismo francs (1848-1871).........................................47
A Revoluo de fevereiro de 1848.....................................................................................50
Uma repblica para a burguesia e a luta contra o proletariado................................52
O domnio dos republicanos burgueses e as contradies constitucionais................54
Bonaparte e o partido da ordem contra os republicanos burgueses............................58
A repblica burguesa contra a pequena-burguesia republicana...............................60
A repblica sob domnio da burguesia monrquica.....................................................62
A burguesia contra Bonaparte: Executivo x Legislativo.............................................64
A burguesia contra o seu partido: Economia x poltica..............................................70
2 de dezembro de 1851: o golpe de Estado contra (e para) a burguesia..................73
Bonapartismo e poltica de massas...................................................................................76
Um poder acima da sociedade: a autonomizao relativa do Estado.........................78
O Estado e a classe camponesa: a ideologia bonapartista.......................................81
Bonapartismo e desenvolvimento capitalista.................................................................82
Engels e o bismarckismo alemo.................................................................................84
Bonapartismo: as revolues de cima para baixo.....................................................85
Bonapartismo: uma forma excepcional de Estado........................................................88
Atraso e bonapartismo: o caso alemo.............................................................................89
Bonapartismo: um caminho poltico para a modernizao retardatria................92
Capitalismo tardio e o duplo equilbrio bonapartista................................................93
Do absolutismo ao bonapartismo......................................................................................96
Bonapartismo, corporativismo e massas populares......................................................97
Captulo II
As perspectivas de dois revolucionrios do sculo XX: Trotsky e Gramsci
Len Trotsky e os vrios bonapartismos ...............................................................101
Histria e bonapartismos..................................................................................................101
O complicado bonapartismo alemo (1930-1933)..............................................104
O bonapartismo francs semiparlamentar (1934-1940)........................................112
O bonapartismo perifrico...............................................................................................121
A lei do desenvolvimento desigual e combinado: um breve histrico do conceito.....124
-
ix
As origens do conceito de desenvolvimento desigual e combinado....................131
A revoluo na China e o amadurecimento do conceito....................................134
Itlia, ndia, Espanha e frica do Sul: outras aplicaes do conceito...............137
A Revoluo Russa: demonstrao histrica da validade do conceito..............139
Amrica Latina: ltimo campo de observao conceitual.................................148
Totalidade e internacionalismo em Len Trotsky.............................................150
Trotsky e o papel contra-revolucionrio das burguesias atrasadas...................161
Os bonapartismos sui generis da Amrica Latina...................................................176
O bonapartismo sovitico.............................................................................................183
Antonio Gramsci e os cesarismos..............................................................................186
Crise de hegemonia, crise orgnica e cesarismo.................................................187
Cesarismo progressista e cesarismo regressista............................................................189
Revoluo passiva e cesarismo....................................................................................197
Parte II:
Bonapartismo e populismo no Brasil
Introduo segunda parte
Trotskismo, movimento operrio e universidade
A influncia trotskista nas cincias sociais brasileiras......................................205
Uma nova corrente no pensamento social brasileiro: a intelectualidade
antidualista e antietapista........................................................................................207
As organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) no Brasil (1930-
1964).......................................................................................................................................212
A primeira gerao trotskista (LCI e POL): distantes da intelectualidade acadmica
marxista dos anos 60...................................................................................................212
O PSR: Florestan Fernandes e o trotskismo................................................................215
O POR: uma experincia poltica e terica para futuros acadmicos.........................220
A POLOP: militantes, intelectuais e teoria da dependncia....................................230
A lei do desenvolvimento desigual e combinado e a intelectualidade brasileira....235
Organizaes trotskistas e pensamento social brasileiro: dois breves
comentrios..........................................................................................................................248
-
x
Captulo III
Bonapartismo e populismo:
Historiografia, movimento operrio e as interpretaes sobre o perodo
1930-1964
Populismo e bonapartismo nas cincias sociais brasileiras.............................251
A teoria do populismo brasileiro....................................................................................252
Uma nova perspectiva sobre a historicidade da periferia capitalista (Amrica
Latina/Brasil)...............................................................................................................253
Crise de 1929, periferia e populismo..........................................................................256
Crise de hegemonia, Revoluo de 1930, compromisso e populismo.................258
Populismo e trabalhadores: a cidadania das massas................................................266
Nacionalismo, estatismo e mobilizao de massas.....................................................269
Populismo e trabalhadores: sindicalismo e corporativismo........................................271
Populismo e trabalhadores: a questo das direes polticas da classe.......................274
A crise do populismo...................................................................................................277
Populismo: o desenvolvimento da teoria....................................................................281
Teoria do bonapartismo e teoria do populismo: convergncias..............................295
O bonapartismo nas origens do conceito de populismo: Weffort e Ianni...................295
Populismo, burocracia e bonapartismo: Dcio Saes e Armando Boito Jr...................306
Hegemonia ou revoluo passiva/cesarismo? A variante gramsciana da teoria do
populismo (Rgis Andrade e Ren Dreifuss)..............................................................309
O bonapartismo no Brasil (1930-1964): outros autores..............................................312
Vises trotskistas da dominao poltica no Brasil 1930-1964: bonapartismo....323
O surgimento do bonapartismo no Brasil....................................................................323
Estado Novo e bonapartismo.......................................................................................325
Os bonapartismos ps-1945........................................................................................332
Um intermezzo para a polmica historiogrfica: o movimento de reviso do
populismo (da valorizao das lutas operrias ao fetichismo do varguismo).......336
O conceito de populismo nas cordas do ringue historiogrfico: os dois campos da
reviso em curso..........................................................................................................339
Populismo e luta por direitos: a corrente historiogrfica da Unicamp....................342
-
xi
Como era gostoso o nosso populismo: a corrente revisionista fluminense.................350
Historiadores, poltica, passado e presente: uma indagao guisa de concluso.....358
O bonapartismo ps-populista: o Golpe de 1964 e a ditadura militar...................361
Captulo IV
O longo bonapartismo brasileiro:
um ensaio de interpretao histrica do Brasil contemporneo (1930-1964)
A via bonapartista da modernizao capitalista do Brasil ............................369
Domnio cafeeiro e crise de hegemonia......................................................................370
A Revoluo de 1930 e a emergncia do bonapartismo.........................................377
O bonapartismo em construo: o Governo Provisrio (1930-1934)......................382
A Constituio de 1934 e a formao de um bonapartismo semiparlamentar.......393
A escalada bonapartista (1934-1937).............................................................................398
O 18 brumrio de Getlio Vargas e o fastgio bonapartista: rpidas
consideraes sobre o bonapartismo semifascista do Estado Novo (1937-1945)...423
Ditadura em crise, a guerra e o incio da transmutao bonapartista (1942-
1945).......................................................................................................................................434
O semibonapartismo democrtico ou o cesarismo sem Csar (1946-1964): algumas
notas para uma pesquisa futura......................................................................................442
Consideraes finais
Teoria poltica, historiografia, universidade e movimento operrio
Algumas palavras guisa de concluso .................................................................467
Bibliografia ......................................................................................................................479
-
xii
para meus pais Elio e Cristina, pelo apoio sempre
incondicional;
para minha mulher Bianca,
por todo o amor e companheirismo oferecidos ao
longo desta jornada;
para meu av Roberto Abranches (in memoriam) que,
provavelmente, no concordaria com quase nada do que est
escrito nestas pginas (mas isso nunca teve a menor importncia
entre a gente)
-
1
A intelligentsia russa cedo me inculcara que o prprio sentido da vida consiste em
participar conscientemente da realizao da histria. Quanto mais penso nisso, mais parece-
me profundamente verdadeiro. Isso significa pronunciar-se ativamente contra tudo o que
diminui os homens e participar de todas as lutas que tendem a libert-los e engrandec-los.
Que essa participao seja inevitavelmente manchada de erros no minimiza o imperativo
categrico; pior erro viver para si, segundo tradies totalmente manchadas de
desumanidade. Essa convico me deu, como a um certo nmero de outros, um destino
bastante excepcional; mas estvamos, estamos bem na linha do desenvolvimento histrico,
agora se v que, por toda uma poca, milhes de destinos vo seguir os caminhos que fomos
os primeiros a trilhar. Na Europa, na sia, na Amrica, geraes inteiras se desenraizam,
engajam-se profundamente nas lutas coletivas, aprendem a violncia e o grande risco,
experimentam cativeiros, constatam que o egosmo do cada um por si est caduco, que o
enriquecimento pessoal no a finalidade da vida, que os conservadorismos de ontem s
levam s catstrofes, sentem a necessidade de uma nova tomada de conscincia para a
reorganizao do mundo
Victor Serge (1890-1947), em suas Memrias de um revolucionrio
(So Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 426.)
-
2
Introduo geral:
Bonapartismo, populismo e a nossa pesquisa
-
3
O carter deste trabalho
uma obra importante, precisamente porque nela se apresentam conjugadamente algumas das principais contribuies do pensamento dialtico. A est aplicada a teoria da luta de classes, bem como
a concepo marxista do Estado. Explica-se a maneira pela qual o Exrcito se envolve na poltica e
quais so os sentidos da politizao dos militares. No confronto entre diferentes concepes sobre a
organizao poltica da sociedade, verificamos como se manifestam os ideais da social-democracia.
Ao mesmo tempo, ficamos conhecendo a maneira pela qual a atividade dos homens, tomados
individualmente e em grupo, assume significao coletiva e histrica. Ou melhor, de como as classes
sociais e suas faces se apresentam nos acontecimentos, esclarecendo os seus sentidos ou incutindo-
lhes novas direes. Nessa linha de reflexo, verificamos como se d a formao da conscincia, em
especial como a conscincia de classe e a conscincia social individual conjugam-se e desencontram-se
na produo dos acontecimentos. Alm disso, verificamos a maneira pela qual o Estado aparece
representando a vontade geral e em que medida ele exprime os interesses da classe dominante. O
bonapartismo, de que falam os polticos e os cientistas sociais modernos, um desenvolvimento da
interpretao formulada nesta obra.
Em suma, em O 18 brumrio podemos acompanhar as maneiras segundo as quais se do os
encadeamentos entre as diversas esferas da existncia coletiva. Em particular, conhecemos as diferentes
conexes recprocas entre o econmico e o poltico. Observamos, com preciso, as maneiras pelas quais
ocorrem as transies no modo de produo s relaes de produo e s ideologias. Em outras palavras,
nesta obra o pensamento dialtico rev-nos a maneira pela qual se d a produo da histria, como
dialtica do real.1
Temtica, objetivos e teses
Poucos anos antes de sua morte, o intelectual e militante socialista Ruy Mauro Marini
relatou que, por volta de 1962-1963, preparava sua tese de doutorado sobre o fenmeno do
bonapartismo no Brasil. Segundo Marini, o texto da tese e demais materiais relativos a ela
se perderam em 1964, quando da primeira invaso, pelo Exrcito, da ento recm-criada
Universidade Nacional de Braslia (UNB).2 Ainda que no intencionalmente, aquela ao
truculenta da ditadura militar (uma entre milhares) acabou por gerar uma importante lacuna
temtica no pensamento social brasileiro, j que no temos cincia de nenhum outro trabalho
cientfico dedicado especificamente compreenso das formas bonapartistas assumidas pela
dominao burguesa no Brasil.
Todavia, ainda que no como objeto central de investigao histrico-sociolgica, a
idia de um bonapartismo brasileiro figurou, desde o sumio do natimorto estudo de Marini,
em uma significativa parcela de trabalhos cientficos realizados no pas. De forma explcita ou
implcita, a categoria de bonapartismo esteve presente como um elemento estruturante em
muitos conhecidos estudos sobre o Brasil Contemporneo produzidos pela academia no ps-
1 IANNI, Octavio. Apresentao in MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte [e Cartas a Kugelman].
Traduo de Leandro Konder e Renato Guimares. 4 edio. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 4-5. Grifos do
autor. 2 MARINI, Ruy Mauro. Memria: por Ruy Mauro Marini (agosto de 1990) in ____. Ruy Mauro Marini. Vida
e obra. TRASPADINI, Roberta e STEDILE, Joo Pedro (orgs.). So Paulo: Expresso Popular, 2005, p. 65.
-
4
1964. isso o que, precipuamente, este trabalho pretende apresentar e discutir. De natureza
eminentemente historiogrfica, ele tem boa parte de suas pginas dedicada a expor como a
noo de uma autonomia relativa do Estado em face das classes sociais ncleo central do
que aqui chamamos de uma teoria do bonapartismo embasou interpretaes sobre o
processo scio-poltico brasileiro do ps-1930 realizadas por autores como Lencio Martins
Rodrigues, Carlos Estevam Martins, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Carlos Nelson Coutinho,
Luiz Werneck Vianna e o prprio Ruy Mauro Marini. Mais enfaticamente, procuramos
demonstrar como essa noo de autonomizao relativa do Estado se constituiu tambm
explcita ou implicitamente em um dos pilares centrais das anlises sociolgicas que
propuseram como chave explicativa para o perodo 1930-1964 o conceito de populismo.
Desse modo, nos esmeramos em expor, um tanto quanto detalhadamente, aquilo que a
principal tese deste trabalho: a teoria do bonapartismo foi a base fundamental daquela que
se tornaria conhecida como a teoria do populismo (brasileiro), formulada e desenvolvida,
nos anos 60, 70 e 80, por autores marxistas como Francisco Weffort, Octavio Ianni, Rgis de
Castro Andrade, Ren Dreifuss, Dcio Saes e Armando Boito Jr.
Secundariamente, este trabalho tem por fito evidenciar a existncia de uma relao
pouco conhecida para no dizermos simplesmente ignorada entre essas interpretaes
acadmicas sobre o perodo populista brasileiro e aquelas que, bem antes, no calor dos
acontecimentos, haviam sido elaboradas por organizaes polticas do movimento operrio
entre os anos 1930-1964. Mais especificamente, intentamos expor como pequenos
agrupamentos de extrao trotskista (ou prximos ao trotskismo), como a Liga Comunista
Internacionalista (LCI), o Partido Operrio Leninista (POL), o Partido Socialista
Revolucionrio (PSR), o Partido Operrio Revolucionrio (POR) e a Poltica Operria
(POLOP) anteciparam, em suas anlises conjunturais sobre o carter poltico assumido pela
dominao de classe no pas, muitos elementos que, mais tarde, reapareceriam nas tais
interpretaes acadmicas sobre o perodo populista. Retomando e desenvolvendo, assim, o
que j havamos discutido em nossa dissertao de mestrado,3 apresentamos aquela que a
segunda tese deste trabalho: na interpretao do populismo brasileiro, o movimento operrio
antecedeu academia. Na discusso proposta, veremos como certos autores acadmicos h
pouco mencionados, quando novos, integraram ou estabeleceram algum tipo de relao
perifrica com algumas dessas organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) que,
entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964, lutaram encarniadamente contra a ordem
burguesa no Brasil. Tal elemento ser apresentado como um possvel fator explicativo para
essa espcie de convergncia analtica entre militantes trotskistas pr-1964 e acadmicos
3 DEMIER, Felipe. Do movimento operrio pra universidade: Len Trotsky e os estudos sobre o populismo
brasileiro. (dissertao de mestrado). Niteri: PPGH/UFF, 2008.
-
5
marxistas ps-1964 acerca do que teriam sido os aspectos centrais do processo poltico
populista. Mostraremos, tambm, como tal convergncia pode ser vista como expresso de
outra comunho epistemologicamente mais ampla entre os grupos em questo: tanto as tais
pequenas organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) quanto aqueles acadmicos
marxistas realizaram suas anlises da formao social brasileira reconhecendo nela a
existncia de uma historicidade particular, resultante de sua prpria natureza atrasada,
perifrica e dependente. Como veremos, no s os trotskistas militantes, como tambm os
acadmicos marxistas com os quais trabalharemos realizaram suas interpretaes do processo
poltico brasileiro contemporneo tendo por base a chamada lei do desenvolvimento desigual
e combinado, de autoria de Len Trotsky.
Alm de todas essas questes de carter historiogrfico, o presente material traz
tambm, ao seu final, uma proposta nossa de interpretao histrica do processo poltico
brasileiro do perodo 1930-1964, realizada luz da teoria do bonapartismo. Aproveitando-
nos de aportes tericos oferecidos ao longo do trabalho, e retomando questes e discusses j
ento anunciadas nas pginas dos captulos anteriores, realizamos uma sinttica anlise da
dinmica poltica que, dialeticamente, acompanhou e produziu a retardatria modernizao
industrial do pas sob o perodo populista.4 Abordando os diversos momentos e configuraes
especficas da autonomizao relativa do Estado face s classes sociais existente ao longo de
todo o populismo, lanaremos a ltima tese deste trabalho: a transformao do secular Brasil
agrrio-exportador em um moderna nao urbano-industrial se fez por um caminho
bonapartista, isto , percorreu os trilhos do que chamamos de uma via bonapartista da
modernizao capitalista.
Estrutura do trabalho e disposio dos captulos
Por questes de mtodo de exposio que, sempre vale lembrar, no deve ser
confundido com mtodo de investigao optamos por organizar nosso trabalho em duas
partes centrais, a saber, A teoria do bonapartismo (parte I) e Bonapartismo e populismo no
Brasil (parte II).
4 Ao longo deste trabalho, utilizamos o termo modernizao no sentido de desenvolvimento das foras
produtivas e relaes sociais capitalistas, isto , como o desenvolvimento das formas de explorao do trabalho.
Como procuraremos apresentar no decorrer destas pginas, nos pases perifricos do sistema capitalista esse
desenvolvimento se processou (processa) de um modo em que o chamado atraso constantemente reproduzido,
acompanhando e estimulando sempre os elementos modernos. Assim, no tomamos a idia de modernizao tal
como os chamados tericos da modernizao, para quem esta se apresenta como uma verdadeira panacia para
as naes retardatrias. Como tambm veremos, mesmo algumas correntes marxistas, adeptas de concepes
dualistas e etapistas do desenvolvimento histrico, partilharam dessa viso neutra e apologtica da
modernizao capitalista.
-
6
Parte I) A teoria do bonapartismo
Essa primeira parte, como seu prprio nome j antecipa, dedicada apresentao do
que decidimos chamar de uma teoria do bonapartismo. Realizamos nessa parte, portanto,
uma detalhada exposio crtica daquilo que pensamos ser as principais contribuies para o
surgimento e desenvolvimento de um corpus terico-analtico acerca do objeto
bonapartismo. Dispostas cronologicamente, as anlises produzidas por destacados
intelectuais marxistas do movimento operrio referentes ao fenmeno histrico do
bonapartismo ocupam as pginas dessa primeira parte.
Em uma Introduo (esta) primeira parte (Bonapartismo e marxismo), aps
alguns importantes comentrios inaugurais, propusemos uma sntese do conceito de
bonapartismo a partir da bibliografia trabalhada nos dois captulos subseqentes. O carter
antecipatrio dessa sntese se justifica, sobretudo, pela significativa escassez de discusses
acerca do prprio conceito, o que nos impede, pensamos, de prescindir de esclarecimentos
prvios sobre ele em um trabalho desta natureza. Resultado de uma pesquisa acerca das
principais apreenses j feitas sobre o fenmeno bonapartista, essa sntese , tambm, uma
proposta nossa de interpretao do fenmeno bonapartista. Em seguida, de modo breve e
ainda guisa de esclarecimento, discutimos a relao do bonapartismo com os distintos nveis
das estruturas polticas (Estado, regime e governo), como tambm as conexes entre sua
emergncia e a situao histrico-social conhecida como crise de hegemonia. Por fim,
fizemos um breve debate em torno das elaboraes sobre o bonapartismo produzidas por dois
marxistas acadmicos contemporneos: Nicos Poulantzas e Domenico Losurdo. Apontando os
importantes subsdios oferecidos por estes autores discusso do fenmeno, mostramos,
entretanto, como suas concepes mais gerais sobre ele se distanciam daquelas formuladas
por aqueles que aqui nomeamos de tericos do bonapartismo (e as quais corroboramos).
Captulo I)
O primeiro captulo propriamente dito, intitulado As origens do conceito: Marx e
Engels, aborda, primeiramente, as pioneiras elaboraes de Marx sobre o fenmeno da
autonomizao relativa do Estado em face das classes sociais. Contidas, principalmente, nos
ricos textos do autor sobre o processo poltico francs de 1848-1871, essas elaboraes foram
trabalhadas de um modo que as vinculasse ao momento histrico de seu surgimento, o que
nos levou a reconstituir resumidamente a dinmica daquele prprio processo poltico.
Entretanto, mostramos como Marx, ao se debruar sobre uma situao poltica concreta na
qual a burguesia abdicava de seu poder poltico para preservar seu poder social , acabou por
-
7
lanar as bases de uma teoria do bonapartismo, de alcance temporal mais geral. Na
seqncia, nos detivemos sobre os tambm pioneiros escritos de Friedrich Engels sobre o
bonapartismo, destacando, especialmente, o que se constituiu, a nosso ver, na sua maior
contribuio para o estudo do fenmeno: as sugestivas interpretaes sobre o regime poltico
institudo por Otto Von Bismarck na Alemanha em unificao, concebido por Engels como
uma variante, dotada de especificidades, do bonapartismo francs de Lus Bonaparte.
Captulo II)
Neste segundo captulo, denominado As perspectivas de dois revolucionrios do
sculo XX: Trotsky e Gramsci, procuramos apresentar o desenvolvimento da teoria do
bonapartismo a partir das valiosas contribuies a ela feitas por esses dois sofisticados
tericos e militantes de filiao bolchevique. Iniciando o captulo com a contribuio de
Trotsky, trabalhamos com alguns dos muitos momentos da obra do revolucionrio russo nos
quais a questo do bonapartismo foi tratada de um modo mais destacado. Nessa empresa,
observamos suas anlises sobre o que teriam sido distintas formas de regime bonapartista
presentes ao longo da primeira metade do sculo XX, como, por exemplo, o bonapartismo
alemo pr-hitlerista (1930-1933), o bonapartismo semiparlamentar francs (1934-1940) e
o bonapartismo estalinista da Unio Sovitica ps-revolucionria. Com especial ateno, nos
detivemos tambm sobre as caracterizaes de Trotsky acerca dos bonapartismo sui generis
da Amrica Latina nos anos 30 do sculo XX, as quais, como acreditamos, possuem muitos
aspectos em comum com a chamada teoria do populismo latino-americano (e brasileiro em
particular). Nossa discusso acerca desses contraditrios bonapartismos perifricos est
precedida de uma sistematizada apresentao da lei do desenvolvimento desigual e combinado
formulada por Trotsky, instrumental terico que embasou suas anlises sobre as estruturas
polticas dos pases atrasados. Findado nosso trabalho com a produo de Trotsky,
procedemos a uma exposio analtica das elaboraes de Antonio Gramsci acerca do
bonapartismo, fenmeno que o marxista sardo optou (na maioria das vezes) por chamar de
cesarismo. Observamos, assim, as diferenas existentes entre o que Gramsci caracterizou
como sendo cesarismos progressivos e regressivos, ambos oriundos, segundo o autor, de
situaes de crise de hegemonia e crise orgnica. Em seguida, discutimos tambm as
conexes existentes entre os regimes polticos cesaristas e os processos histricos
denominados por Gramsci como revolues passivas.
Parte II) Bonapartismo e populismo no Brasil
-
8
De natureza fundamentalmente historiogrfica, esta segunda parte tem por objetivo
primordial demonstrar a forte presena (explcita ou implcita) da teoria do bonapartismo
em muitas das clssicas interpretaes acadmicas sobre o processo histrico-poltico
brasileiro situado entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964. Fazendo um uso farto de
fontes bibliogrficas, mostramos, particularmente, como muitos dos aspectos definidores do
conceito de bonapartismo encontram-se presentes na teoria do populismo. Procuramos
indicar tambm nessa parte do trabalho os j anunciados vnculos entre as interpretaes
acadmicas do processo poltico brasileiro do 1930-1964 e aquelas realizadas por
organizaes polticas de matriz trotskista (ou prxima ao trotskismo). Em um segundo
momento dessa segunda parte, esboamos, a partir da teoria do bonapartismo (j ento
discutida), uma proposta interpretativa sobre determinados momentos do processo poltico
brasileiro compreendido entre 1930-1964.
Na Introduo (esta) segunda parte (Trotskismo, Movimento Operrio e
Universidade), apresentamos um pouco do contexto intelectual brasileiro (dcadas de 1960 e
1970) no qual se situaram alguns dos intelectuais acadmicos com os quais aqui trabalhamos,
em especial aqueles mais diretamente ligados teoria do populismo. Assim, aps a
exposio do que consideramos ter sido uma corrente antidualista e antietapista do
pensamento social brasileiro, traamos um breve histrico das organizaes polticas
esquerda do PCB5 (LCI, PSR, POR, POLOP etc.) que, assim como alguns intelectuais
componentes da referida corrente, propuseram leituras dialticas da complexa realidade
scio-poltica nacional e chamaram a ateno para a formatao bonapartista assumida pelo
Estado no ps-1930. Nesse breve histrico das organizaes trotskistas (ou prximas ao
trotskismo), indicamos tambm os expressivos contatos polticos estabelecidos com estas por
parte de alguns dos membros daquela corrente antidualista e antietapista do pensamento
social brasileiro (normalmente em suas militncias de juventude). Por fim, expusemos os
vnculos (explcitos ou implcitos) das organizaes polticas e intelectuais acadmicos em
questo com a lei do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky a qual, como
veremos, encontra-se subjacente teoria do populismo brasileiro, sendo um de seus
pressupostos tericos constituintes.
5 O partido comunista aqui fundado em maro de 1922 levou o nome de Partido Comunista do Brasil (PCB),
seo brasileira da Internacional Comunista (IC). Em 1961, com o intuito de reaver seu registro eleitoral cassado
pelo TSE em 1947 que, entre outros argumentos, alegou ser o partido uma ramificao de um partido
internacional com sede em Moscou, o que era () proibido pela legislao eleitoral do pas , o partido alterou,
em 1961, seu nome para Partido Comunista Brasileiro, preservando a sigla PCB. Em 1962, uma ruptura sada
alguns anos antes do PCB, adotou a linha chinesa (maosta) e fundou o Partido Comunista do Brasil, tendo por
sigla PC do B.
-
9
Captulo III)
O terceiro captulo, Bonapartismo e populismo: historiografia, movimento
operrio e as interpretaes sobre o perodo 1930-1964, iniciado com uma resumida
apresentao do caminho interpretativo populista do perodo 1930-1964, tal como foi
proposto pelos cientistas sociais Francisco Weffort e Octavio Ianni, e desenvolvido por
autores como Dcio Saes, Armando Boito Jr., Rgis de Castro Andrade e Ren Dreifuss. Essa
apresentao dos principais alicerces da teoria do populismo abre caminho para a
demonstrao de nossa tese central, isto , a de que muitos desses alicerces so derivados
justamente da teoria do bonapartismo. Seguindo em nossos objetivos demonstrativos,
fizemos uma breve exposio de algumas anlises de conjuntura feitas pelas organizaes
esquerda do PCB no perodo 1930-1964, nas quais a noo de bonapartismo apareceu como
um elemento central na caracterizao das formas de dominao poltica ento vigentes no
pas. Na seqncia, adentramos rapidamente o atual debate historiogrfico sobre o populismo,
tecendo algumas poucas consideraes acerca das recentes propostas de reviso interpretativa
do perodo histrico 1930-1964 (a chamada reviso do populismo). Prosseguindo na
demonstrao da relao entre teoria do bonapartismo e a intelectualidade brasileira,
mostramos como aquela foi utilizada tambm por autores que se debruaram sobre a natureza
do sistema poltico brasileiro configurado a partir do Golpe de 1964. Em poucas pginas,
apresentamos as caracterizaes bonapartistas da ditadura militar antipopulista (1964-1985)
propostas por autores como Carlos Estevam Martins e Mrio Pedrosa, o que indicar ao leitor
a vasta amplitude da idia de bonapartismo no trato de nossa histria republicana.
Captulo IV)
Se ao longo do captulo anterior nos encarregamos de apresentar a marca bonapartista
em conhecidos trabalhos dedicados ao processo poltico do 1930-1964, neste ltimo captulo,
intitulado O longo bonapartismo brasileiro: um ensaio de interpretao histrica do
Brasil Contemporneo (1930-1964), procuramos mostrar como a teoria do bonapartismo
pode ser, de fato, um profcuo instrumental de anlise para o perodo em questo. Centrando-
nos no balizamento temporal 1930-1945, mas nos estendendo at a derrubada do populismo
em 1964, discutimos o que acreditamos ter sido uma via bonapartista da modernizao
capitalista do Brasil.
Consideraes finais)
Em nossa breve concluso (Teoria poltica, historiografia, movimento operrio e
universidade), procedemos a uma exposio do caminho traado pela pesquisa na busca de
-
10
confirmao de nossas hipteses, assim como apontamos aspectos parciais que certamente
ainda carecem de desenvolvimento. Tentamos, tambm, indicar, de modo um tanto breve,
alguns dos motivos que podem ajudar a explicar o silncio quase total por parte da
historiografia quanto ntima relao entre as elaboraes bonapartistas oriundas do
movimento operrio e aquelas produzidas por uma parcela expressiva da produo acadmica
brasileira voltada para o perodo 1930-1964.
Duas breves justificativas
1) Desde praticamente o seu nascimento, o pensamento social brasileiro produziu
muitas reflexes marcadas por concepes tericas que tomavam (tomam) Estado e sociedade
como entidades abstratas e estanques. Em conhecidos e importantes trabalhos informados pela
perspectiva weberiana, o Estado brasileiro, grosso modo, apresentado como uma gigantesca
deformidade burocrtica, resultante, segundo alguns autores, do prprio processo de
colonizao portuguesa, que teria deixado em nossa formao social e, consequentemente, em
nossas instituies pblicas (quando no nas mentalidades do povo brasileiro), as marcas
patrimonialistas do alm-mar. Produtor e produto de uma cultura nacional autoritria, o
Estado brasileiro, ao longo do sculo XX, teria se mantido como uma instituio permeada
por interesses particulares daqueles indivduos que ocupavam seus postos de comando, o que
teria tornado a mquina pblica do pas distinta do modelo de um aperfeioado Estado
moderno, compatvel com uma forma de dominao racional-legal. Nessa linha de
raciocnio, ao invs de terem servido sociedade, os membros do corpo estatal, desprovidos
de uma conduta impessoal no trato da coisa pblica, teriam representado e continuariam a
faz-lo, segundo alguns analistas , somente eles prprios (Estado cartorial) cabe
assinalar que existe nessa perspectiva uma ntida inspirao da chamada teoria das elites.
Numa leitura esquerda, tpica do perodo de redemocratizao dos anos 1980, tal tese
patrimonialista/weberiana foi traduzida como privatizao do Estado, apresentando como
anomalia o que , de fato, a marca do Estado moderno, sua representao de interesses
especficos de classes e fraes de classe.
Agigantado, ultra-burocratizado e guiado por regras prprias, esse tipo de Estado
estaria contraposto a e, ao mesmo tempo, seria tambm fruto de uma sociedade fraca,
incapaz de construir formas associativas e representativas verdadeiramente enraizadas no
tecido social, e que, por isto mesmo, no teria logrado construir uma formatao estatal
compatvel com uma ordem social competitiva (urbano-industrial capitalista). Com forte
influncia at os dias de hoje (sobretudo entre os adeptos da escola neoliberal), essa linhagem
interpretativa da formao social brasileira apresentava (apresenta) um Estado forte em
-
11
contraposio a uma sociedade fraca. Tal dicotomia, segundo alguns estudiosos, teria sido
preservada e at mesmo acentuada sob o processo de modernizao industrial retardatria do
pas, realizada, em grande parte, sob os anos da chamada Era Vargas. O Estado varguista
e sua herana burocrtica e paternalista seriam fiis expresses desse carma que atingiria
secularmente a histria nacional.6
A nosso ver, esse tipo de perspectiva, sobretudo em funo dos limites impostos por
suas prprias referncias tericas, no chegou a captar mais do que a superfcie do problema.
Pode-se dizer, talvez, que captou a aparncia da coisa, mas esteve (est) longe de apreender
sua essncia. Coube, ento, a outros autores brasileiros, filiados melhor tradio do
marxismo no-oficial, avanar nas anlises da formao social brasileira e dar passos
importantes para a descoberta da verdadeira natureza das relaes entre Estado e sociedade no
pas. So alguns desses autores que perfilam nas pginas deste trabalho.
Tomando o aparelho estatal como a representao poltica dos interesses de algumas
pequenas partes da sociedade contra os interesses de outra(s) parte(s) dessa mesma sociedade
(Estado de classe), esses autores marxistas7 perceberam que, em funo da prpria dinmica
do desenvolvimento capitalista brasileiro, o Estado desempenhava funes e assumia aqui
formas polticas distintas daquelas presentes no mundo ocidental democrtico-burgus.
Devido correlao de foras entre as classes sociais em luta, responsvel, desde fins da
dcada de 1920, por uma duradoura crise de hegemonia, o aparelho estatal brasileiro, ainda
que representante dos interesses do conjunto da classe dominante (e, portanto, voltado
politicamente contra as classes dominadas), teria adquirido em face daquela uma significativa
autonomia relativa, produzindo, assim, uma (falsa) idia de si prprio como um corpo
burocrtico absolutamente (e no relativamente) autnomo em relao s classes sociais. Tal
caminho interpretativo, como j anunciamos, encontra-se baseado no que chamamos de uma
teoria do bonapartismo.
Em nosso entendimento, resgatar esse caminho e seus principais construtores
intelectuais pode vir a ser de grande valia em um momento no qual o pensamento social
brasileiro (hegemonicamente conservador) atravessa uma de suas fases mais decadentes,
sobretudo no que diz respeito anlise das relaes entre Estado e sociedade: no s ambos
continuam a ser concebidos como entidades abstratas estanques, como agora so
reconciliados pela mais nova vertente da historiografia revisionista, a qual, sob a alegao
de que a sociedade (tomada em bloco) sempre compactua de alguma forma com o Estado
6 Um balano crtico dessa perspectiva weberiana de interpretao do Estado brasileiro pode ser encontrado em:
SAES, Dcio. A evoluo do Estado no Brasil (uma interpretao marxista) in ____. Repblica do Capital.
Capitalismo e processo poltico no Brasil. So Paulo: Boitempo, 2001, p. 93-105. 7 Alguns deles se utilizando, vale ressaltar, tambm de aportes tericos weberianos.
-
12
(liberalmente visto como o representante geral da nao), vem impudentemente reabilitando
fenmenos como o populismo e mesmo at a ditadura militar.
2) Assumidamente dmod, este um trabalho sobre regimes polticos em perspectiva
marxista. Mais especificamente, trata-se de um estudo sobre o chamamos de o longo
bonapartismo brasileiro. Esperamos, assim, dar alguns passos para que a lacuna temtica
deixada pelo desparecimento da j mencionada tese de doutorado de Ruy Mauro Marini
(dedicada especificamente ao bonapartismo no Brasil) possa comear a ser suprida. Nesse
sentido, estas pginas so, de certa forma, tambm uma homenagem a Marini, intelectual cuja
trajetria a prova cabal de que o pensamento crtico, mesmo quando produzido nos espaos
acadmicos, no pode ser feito apartadamente das lutas sociais levadas a cabo pelos
trabalhadores. Certamente, a homenagem que o presente estudo sobre o bonapartismo
brasileiro pretende prestar a Marini est muito aqum da que um intelectual e militante do seu
porte mereceria. Mas uma homenagem. Do sumio da tese de Marini, em 1964, at os dias
de hoje, muitos outros estudiosos estiveram mais habilitados do que ns para realizar uma
pesquisa sobre a temtica em questo. Atualmente, muitos outros tambm o esto. Contudo,
j disse certa vez o historiador polons Isaac Deutscher que a histria opera atravs do
material humano que [se] encontra disponvel,8 ainda que este material no seja o mais
apropriado pra a realizao das tarefas que a histria exige.
8 DEUTSCHER, Isaac. Ironias da histria. Ensaios sobre o comunismo contemporneo. Rio de Janeiro:
Civilizao brasileira, 1968, p. 53. Aproveitamos a insero deste colchete para comunicar ao leitor que, ao
longo deste trabalho, todos os colchetes (e seus respectivos contedos, inclusive as reticncias que indicam pulo
no texto) presentes em meio a citaes de outros autores so de nossa autoria. J o que estiver entre parnteses
(inclusive as reticncias) foi inserido pelos prprios autores das citaes.
-
13
Parte I
A Teoria do Bonapartismo
-
14
Introduo primeira parte:
Bonapartismo e Marxismo
-
15
Bonapartismo: o fenmeno e o conceito
O concreto concreto porque a sntese de muitas determinaes, isto , unidade do diverso.
Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da sntese, como resultado, no como
ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida tambm da
intuio e da representao.9
Naturalmente que os doutrinrios no se satisfaro com uma definio to vaga; desejariam
frmulas categricas: sim, sim e no, no. As questes de sociologia seriam bem mais simples se os
fenmenos sociais tivessem sempre um carter acabado. Mas nada mais perigoso do que eliminar, no
desenvolvimento de uma preciso lgica, os elementos que contrariam os nossos esquemas e que,
amanh, os podem refutar.10
De resto, o cesarismo uma frmula polmico-ideolgica e no um cnone de interpretao
histrica.11
Na ampla e heterognea literatura marxista de cunho mais propriamente poltico, o
vocbulo bonapartismo e suas variantes (bonapartista, bonapartistas, semibonapartismo,
filobonapartismo etc.) apresentam uma frequncia perceptvel, ainda que, diferentemente de
outros tantos mencionados porfia e indiscriminadamente, no possam ser tomados
propriamente como termos batidos. Suas no to correntes aparies nos permitem, entretanto,
perceber que distintos tratos, alguns cuidadosos e sofisticados, outros nitidamente
reducionistas e imprecisos, j foram (so) dispensados a este conjunto terminolgico.
Um tpico uso que se encaixa no segundo caso aquele no qual a adjetivao
bonapartista imputada a qualquer governo ou regime mais ou menos ditatorial, cujo teor
repressivo, ainda que elevado, no chega a justificar, segundo a lgica do autor, a sua
caracterizao como fascista. Nesse raciocnio, muitas vezes sub-reptcio, o que define o
regime ou governo bonapartista nica e simplesmente o seu grau coercitivo, o nvel de
violncia do qual lana mo o aparelho de Estado contra seus adversrios polticos; tal
raciocnio, muito comum em apressados documentos polticos de organizaes de esquerda,
parece ser embasado pela seguinte frmula algbrica: pouca violncia = democracia burguesa;
muita violncia = fascismo; mdia violncia = bonapartismo. Em ltima anlise, essa forma
de proceder no expe seno uma verso um pouco mais detalhada da tipologia utilizada
pelos Partidos Comunistas estalinizados, os quais, desde o fim dos anos 20 do sculo XX,
9 MARX, K. Introduo crtica da economia poltica in ____. Os pensadores (Marx). So Paulo: Nova
cultural, 1999, p. 39-40. 10
TROTSKY, L. A revoluo trada. O que e para onde vai a URSS. 2 edio. So Paulo: Jos Lus e Rosa
Sundermann, 2005, p. 228. 11
GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. (Caderno 13). 3 edio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
2007,volume III, p. 77.
-
16
passaram a definir qualquer regime poltico capitalista que se distanciasse em especial, pelo
uso abusivo da violncia da forma democrtico-burguesa como fascista.12
Lembremos aqui tambm da costumeira idia, presente em certos ramos eclticos da
cincia e histria polticas, a qual associa o bonapartismo presena de um governante (lder)
nacional que, dotado de fortes traos carismticos, postar-se-ia como um rbitro neutro face
s pugnas sociais e polticas internas sociedade, buscando garantir a harmonia da nao.
Nessa perspectiva, o contedo de classe (burgus) da dominao poltica bonapartista, o qual
se encontra, na realidade, mediado e embuado pela autonomia relativa do aparelho estatal,
fica encoberto tambm pelas linhas desses analistas polticos, os quais confundem a aparncia
do fenmeno (Estado neutro) com sua verdadeira essncia (Estado burgus). Vale mencionar
ainda a qualificao de bonapartista aplicada a certos governos e regimes pelo simples fato de
possurem um Poder Executivo hipertrofiado, ou mesmo graas ao poderoso peso exercido
pela burocracia e/ou as Foras Armadas (FFAA) na conduo da vida poltica nacional.
Findando nossa exemplificao dessas utilizaes pouco apuradas do corpo conceitual em
questo, assinalamos que, alm de ser empregado para designar regimes e governos, o
adjetivo bonapartista tambm alocado ao lado do substantivo Estado, o que deixa entender
que bonapartista podem ser no s o regime e o governo, mas igualmente o Estado
capitalista em si.
Os exemplos acima so pertencentes a uma espcie de senso comum do
bonapartismo se que se pode assim dizer e, como tais, no deixam de encerrar aspectos
verdadeiros quanto ao seu objeto. Todavia, pecando pela superficialidade e, sobretudo, pela
parcialidade, no chegam a apreender o fenmeno bonapartista em sua totalidade, ou pelo
menos naquilo que lhe essencial. Decerto, os regimes bonapartistas so marcantes pelo seu
aspecto violento e, de fato, seus teores coativos so usualmente maiores que os registrados
sob as democracias burguesas e menores que os atingidos sob os fascismos. Entretanto, no
fazendo uso de um medidor de violncia que se deve buscar apreender a verdadeira natureza
repressiva dos regimes polticos, e sim atentando para a qualidade e seletividade da prpria
atividade repressiva; mais precisamente, de que modo e a que classes, fraes de classe e
grupos polticos a mquina policial-militar e seus eventuais colaboradores para-estatais
endeream suas armas. Correto tambm dizer que o Estado no regime bonapartista,
perseguindo a integridade nacional, tende a desempenhar, por intermdio de um lder quase
12
Sob o risco de nos desviarmos de nosso curso, no poderemos adentrar o debate travado no seio da
Internacional Comunista (IC) em fins da dcada de 1920 e ao longo da de 1930 acerca da caracterizao do
fenmeno fascista. Contudo, alguns aspectos relacionados a tal debate sero brevemente abordados por ns mais
frente na parte destinada s elaboraes de Len Trotsky sobre o bonapartismo. Quanto s polmicas no
interior da IC acerca da natureza poltica do fascismo, ver POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. A III
Internacional face ao fascismo. Porto: Portucalense, 1972, 2v.
-
17
sempre carismtico e solerte, um papel arbitral; contudo, pode-se dizer que profundamente
equivocado tomar como politicamente neutro tal juiz. Do mesmo modo, verdade que sob
os regimes bonapartistas tanto o Poder Executivo apresenta-se hipertrofiado, quanto a
burocracia e as Foras Armadas tm seu papel poltico-institucional realado, embora a
existncia de FFAA e burocracia atuantes, assim como de um Executivo forte, no confira
automaticamente ao regime um carter bonapartista. Por fim, observamos que se a adjetivao
bonapartista pode ser bem empregada para qualificar regimes (principalmente) e governos
(no caso daqueles que funcionam dentro, e sejam adeptos, das estruturas do regime
bonapartista), seu uso para a caracterizao de Estados , no mnimo, inapropriado.
Uma proposta de sntese conceitual
Procurando ir alm desse senso comum sobre o fenmeno bonapartista, um bom
caminho investigativo adentrar na sofisticada produo terica a ele dedicada, a qual
designamos, sem muito rigor epistemolgico, de uma teoria do bonapartismo. Trabalhando,
assim, com as anlises de autores como Marx, Engels, Trotsky e Gramsci, e absorvendo delas
o que h de comum e mais genrico no que concerne aos aspectos definidores do
bonapartismo, possvel propormos uma sntese que tenha por finalidade expor sucintamente
aos leitores como a melhor tradio marxista o concebeu.13
Embora no possa tocar nas
particularidades de cada autor no que tange caracterizao terica do fenmeno, tal como
nas concretas especificidades apresentadas por cada uma de suas distintas manifestaes
histricas, uma sntese dessa natureza, acreditamos, pode fazer as vezes de prembulo s
anlises dos autores mencionados, as quais o leitor encontrar logo em breve.
Iniciando, ento, nossa empreitada sinttica do conceito (que no deixa de ser uma
interpretao nossa do prprio conceito), assinalamos que o bonapartismo se exprime,
fundamentalmente, pelo fenmeno da chamada autonomizao relativa do Estado diante das
classes e demais segmentos sociais em presena. Em determinadas conjunturas de
exacerbao da luta de classes, nas quais o proletariado se apresenta como uma ameaa (real
ou potencial) ao domnio do capital, e nenhuma das fraes da classe dominante possui as
condies de impor um projeto poltico sociedade, de dirigi-la segundo seus interesses e
preceitos particulares, instaura-se aquilo que se convencionou chamar de crise de
13
Esclarecemos, assim, que entendemos por teoria do bonapartismo o conjunto das elaboraes sobre o
fenmeno bonapartista realizadas por tericos como Marx, Engels, Trotsky e Gramsci. A partir de agora,
dispensaremos as aspas para se referir a essa teoria, assim como aos seus formuladores (os tericos do
bonapartismo). Desse modo, alertamos que ao falar de uma teoria do bonapartismo e de seus autores (tericos
do bonapartismo) no nos referimos a uma teoria produzida pelos regimes bonapartistas e aos seus criadores,
preferindo usar, nestes casos, respectivamente, as denominaes de ideologia do bonapartismo (ou ideologia
bonapartista) e idelogos do bonapartismo (ou idelogos bonapartistas).
-
18
hegemonia. Nessa situao de aguda diviso social, de impasse poltico, enfim, de equilbrio
de foras e incapacidade hegemnica, o aparelho de Estado se ingurgita, eleva-se por sobre
os grupos conflitantes e, apregoando a unidade nacional a qual ele prprio afirma encarnar,
impe pela fora a paz social e salvaguarda a ordem capitalista em xeque.
Essa elevao do aparelho estatal acima das partes contenciosas expressa justamente a
autonomia relativa adquirida pelo Estado, ou, mais precisamente, pelo seu ncleo
fundamental (em especial, Poder Executivo, aparato repressivo e burocracia), face s distintas
fraes do capital e suas representaes polticas. Adquirindo uma ingente fora poltica
prpria, o aparelho estatal j no a expresso, o instrumento, de nenhuma dessas fraes em
particular; precisamente para desempenhar o papel de mantenedor do que h de comum a
todas elas, a saber, a propriedade capitalista, o Estado, enquanto novo ordenador da vida
social, necessita submet-las sua direo e ditames polticos de jaez essencialmente
burocrtico. Assim, sob o bonapartismo, o Estado, relativamente autnomo frente s fraes
burguesas, coloca-se como representante dos interesses de conjunto da burguesia, e o faz
mesmo a despeito desta ltima. Tal fato no significa, entretanto, que no haja sempre uma ou
mais fraes do capital privilegiadas pelas polticas estatais sob o bonapartismo. Configura-se,
ento, uma formatao particular assumida pelo Estado capitalista em momentos de crise,
um tipo de regime poltico caracterizado por uma dominao poltica indireta da burguesia
sobre as demais classes sociais. O aparelho estatal, funcionando como uma espcie de rbitro
do jogo poltico e pacificando o cenrio social litigioso, ganha a aparncia de uma fora
descolada, acima e independente da sociedade. Ao longo do bonapartismo, os governos
vigentes, em especial os que so afinados com a arquitetura institucional do regime, tendem,
eles tambm, a encerrar um carter mais ou menos autnomo em relao aos partidos e
demais ajuntamentos polticos contudo, em alguns casos (no raros), todas as formas de
organizao poltica provenientes da sociedade civil so sumariamente extintas pelo regime.
O bonapartismo mostra-se, ento, no s como um regime poltico, mas ainda como uma
modalidade de governo, na qual a classe dominante no tem acesso direto s rdeas do
Estado. nesse sentido que o fenmeno bonapartista se refere a um dialtico processo pelo
qual a burguesia abdica das funes de domnio poltico da nao para ver mantida sua
dominao econmica no interior da mesma.
Originado de uma situao politicamente instvel gerada pela exasperao do
confronto social, o regime bonapartista, colimando preservar as bases da dominao de classe
burguesa, lana-se em uma luta fsica e ideolgica pela reintegrao e harmonizao da
sociedade burguesa ento dilacerada. Destarte, direciona suas foras repressivas contra os
perturbadores da ordem.
-
19
Prioritariamente, ataca violentamente aquele que o fundamento primeiro do temor
burgus: o movimento operrio organizado. Proibindo, fechando ou mesmo destruindo as
organizaes sindicais, polticas e culturais dos trabalhadores, o regime bonapartista intenta
desmontar a vanguarda da classe que, pela sua prpria existncia, coloca em risco a
manuteno da explorao social. Assim, na qualidade de indivduos atomizados e
desprovidos de uma conscincia emancipatria, os trabalhadores podem passar a funcionar
como base e sustentculo de massas da nova ordem poltica capitaneada pelo prprio
Estado; so justamente essas massas populares, um novo sujeito social e poltico nascido
dos processos de urbanizao e industrializao, as quais o bonapartismo v-se impingido e
nisso reside grande parte de sua prpria razo de ser a incorporar, controlada e
subalternamente, esfera poltica. Nessa engenhosa empresa, a direo bonapartista pode vir
a colocar em movimento certas camadas marginalizadas da sociedade, o chamado lumpem-
proletariado, direcionando-as tanto para o apoio efusivo ao regime, quanto para o
esmagamento da resistncia operria. Em certas ocasies, elementos agrrios pequeno-
burgueses (campesinato), temerosos do avano poltico do proletariado, fornecem uma
legitimidade socialmente reacionria ao poder bonapartista.
Entretanto, secundariamente, o regime bonapartista volta suas baterias tambm
contra os elementos revis da classe dominante, adestrando ou mesmo suprimindo suas
recalcitrantes representaes polticas, sejam elas partidos, lideranas classistas, crculos
ideolgicos ou jornais panfletrios. Assim, o Estado burgus, sob a forma bonapartista, priva
a prpria burguesia de sua ampla liberdade poltica, embora o nvel de tal privao seja
infinitamente inferior ao que imposto classe trabalhadora.
Essa nova, complexa e contraditria relao estabelecida entre o aparelho de Estado e
ambas as classes sociais fundamentais determinante na montagem institucional que vertebra
o regime bonapartista. Almejando eliminar o clima politicamente radicalizado e tenso que o
produziu, o novo regime se edifica promovendo a extino das instncias e elementos
jurdico-politicos do regime anterior, os quais, segundo os construtores bonapartistas, teriam
permitido a instalao do embate poltico em propores socialmente insuportveis. Desse
modo, muitas das chamadas liberdades democrticas, algumas delas defendidas pela
prpria burguesia em seu alvorecer revolucionrio, so, em um quadro de contra-revoluo
poltica, suspensas sob a alegao de serem perigosas e socialistas. Liberdades de
expresso, reunio e organizao, entre outros princpios democrtico-burgueses, do lugar,
no bonapartismo, vigncia quase constante e ordinria de expedientes os quais, no regime
democrtico, existem apenas na qualidade de mecanismos excepcionais e temporrios
(permisso para priso sem mandato judicial, suspenso do direito ao habeas corpus,
-
20
suspenso do direito inviolabilidade do lar e de correspondncia etc.). O sufrgio universal,
baluarte-mor da democracia burguesa, tende a assumir, nas vezes em que preservado (ou
institudo), uma conotao plebiscitria. Outros direitos constitucionais mais propriamente
democrticos, como o de greve, impostos burguesia pelas lutas operrias dos sculos XIX e
XX, podem ser tratados de vrios modos (porm essencialmente iguais) pelo poder
bonapartista: em circunstncias relativamente amainadas do confronto social, sua manuteno
se vincula ao enxerto de ardilosos aditamentos jurdicos os quais, na prtica, dificultam ou
inviabilizam seu exerccio prtico; j em momentos de maior radicalizao poltica, tais
direitos democrticos costumam ser simplesmente suspensos ou despudoradamente banidos.
Opera-se, portanto, uma clara mudana de regime no Estado burgus, limitando
demasiadamente a mobilidade das foras sociais na cena poltica. Passa a vigorar uma
espcie de estado de stio permanente.14
A especfica desproporo de foras entre os poderes estatais no regime
bonapartista , tambm, um de seus precpuos aspectos definidores. Encarregado de salvar a
nao ameaada por suas fissuras e lutas intestinas, o Executivo torna-se praticamente
onipotente, concentrando em suas estruturas constitutivas, sobretudo na figura do chefe de
Estado, um quantum de poder exorbitantemente desproporcional em relao aos demais
poderes de Estado. Nesse movimento, verifica-se tambm uma fortssima centralizao
poltica do pas, por meio da qual a instncia central desse fortalecido Poder Executivo (Unio,
Imprio etc.) impe-se quase que integralmente tambm sobre todos os poderes de natureza
regional e local (governos estaduais, prefeituras municipais, chefes polticos distritais,
assemblias estaduais, cmaras municipais, tribunais e fruns locais etc.). Essa fora do
Executivo diretamente proporcional fraqueza do Legislativo e do Judicirio. Vistas como
as arenas, por excelncia, do exacerbado e aziago embate travado entre as representaes
polticas no regime anterior, as instncias parlamentares so tratadas como uma das principais
fontes da discrdia que fraturou o pas. Com a finalidade de manter a ordem e a paz, o
regime bonapartista procura desfazer as conexes entre as vrias fraes e segmentos sociais
beligerantes e a esfera poltica institucional-representativa. Ao Parlamento, consequentemente,
reservado um papel absolutamente secundrio ou inexistente: por vezes colocado sob
ntido controle do Executivo, em outras simplesmente fechado. Quanto ao Judicirio, resta-
lhe capitular abertamente ao Executivo ou ser modificado por este em sua estrutura,
funcionamento e pessoal. Com suas dimenses dilatadas e gozando de poderes discricionrios,
14
Uma discusso sobre as relaes entre a norma e a exceo no ordenamento jurdico dos Estados
capitalistas, e mais particularmente, sobre a utilizao permanente de expedientes excepcionais pelos regimes
constitucionais pode ser encontrada, entre outros trabalhos, em AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceo. So
Paulo: Boitempo, 2003 e BERCOVICI, Gilberto. Constituio e estado de exceo permanente. A atualidade de
Weimar. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2004.
-
21
a cpula dirigente do Executivo equilibra-se sobre os campos em luta e, subalternizando ou
dispensando o Parlamento e seus partidos polticos, encontra seu apoio naquilo que , na
verdade, o ncleo fundamental do aparelho de Estado: a burocracia e as Foras Armadas.
Estas duas instituies extrapolam suas habituais funes exercidas sob o regime
constitucional anterior e ampliam visivelmente seus domnios sobre o tecido social; no
obstante se apresentarem sob um vu de neutralidade e apoliticismo, passam a desempenhar
um papel protagonista na conduo da vida poltica, econmica e cultural do pas.
Desmontando os tradicionais mecanismos de representao poltica da democracia
burguesa, o todo-poderoso aparelho estatal trabalha na construo de uma outra forma de
conexo entre o poder pblico e o corpo cvico, visando tornar este ltimo imune s
exacerbadas contendas polticas verificadas no regime anterior. A relao entre governantes e
governados sob o bonapartismo assume a forma de uma relao direta entre o chefe de
Estado e os cidados nacionais, na qual tem lugar um imprescindvel ingrediente ideolgico
de cunho pequeno-burgus. Seja ele um presidente civil, militar ou um nostlgico Imperador,
o lder mximo do pas, na maioria das vezes carismtico e demaggico, se proclama o
harmonizador da nao, dizendo arbitrar os interesses conflitantes provenientes de todas as
partes que a constituem. A personalizao da poltica , portanto, quase sempre um
ingrediente importante na receita bonapartista.
Objetivando bloquear o desenvolvimento dos elementos classistas na subjetividade
dos trabalhadores, o regime bonapartista trata-os, jurdica e discursivamente, como um
volumoso conglomerado populacional que no seno resultado da adio de indivduos
proletrios isolados. Amalgamado com estratos sociais de diferentes matizes, o proletariado
se dilui pela retrica bonapartista nas manobrveis massas populares e no policlassista
povo em muitos casos, isso no incompatvel com a permanncia da classe
trabalhadora no lxico do regime, que pode at conceb-la como uma parcela especfica da
sociedade (e que deve colaborar com as demais), mas nunca enquanto um sujeito social
estruturalmente antagnico ao capital (o que colocaria em risco a integridade nacional que se
persegue). com esse povo disforme e alienado que o lder Bonaparte, dispensando
qualquer tipo de plataforma poltico-programtica bem definida, estabelece uma relao
extremamente fetichista, dirigindo-se e sendo reconhecido por ele como seu nico e ldimo
intrprete, como aquele que, investido de sabedoria e capacidade decisria, pode proteg-
lo das injustias sociais e das elites gananciosas. maneira tipicamente pequeno-burguesa,
o Estado tomado pelos seus cidados como um ente politicamente neutro que, pairando
acima das classes sociais, mostra-se ao seu povo como uma entidade protetora,
benfeitora e benevolente. Nessa astuta engrenagem ideolgica do regime, uma sofisticada
-
22
mquina de propaganda, declaradamente ufanista e apologeta da ordem, costuma
desempenhar um destacado papel apelando para emocionalidade de amplos contingentes
populacionais trazidos para a cena poltica. Por meio dessa poltica de massas, que combina
ideologia, coero e, tambm, o atendimento de certas demandas populares, procura-se
neutralizar ou eliminar tendncia polticas radicais (classistas) brotadas entre os setores
subalternos no regime anterior. O bonapartismo , portanto, um fenmeno cuja manifestao
prpria a sociedades complexas, nas quais a existncia das incontveis massas
populares torna ineficazes antigas e altamente exclusivistas formas de dominao poltica
burguesa (regimes aristocrticos, oligrquicos, governo dos notveis, voto censitrio etc.).
Compreendido, ento, como uma modalidade particular e contempornea dessa
dominao poltica burguesa, o bonapartismo , ao menos nas naes centrais do capitalismo,
uma forma de regime e de governo excepcional e transitria, no obstante apresente vrias
ocorrncias e, por vezes, uma significativa durao temporal. Engendrado por uma crise de
hegemonia, o bonapartismo solapado ou quando esta se encerra isto , quando uma ou
mais fraes da classe dominante se apresentam, finalmente, capazes de dirigir politicamente
a nao , ou quando massivas mobilizaes polticas anti-regime lhe retiram sua sustentao
social.
Bonapartismo e capitalismo
Nesta introduo temtica bonapartista, consideramos pertinente chamar a ateno,
ainda que de modo ligeiro, para duas importantes questes que permeiam o denso debate
cientfico acerca da chamada autonomizao relativa do Estado.
A primeira dessas questes trata dos distintos nveis de abstrao do mbito poltico da
sociedade capitalista que o analista do fenmeno bonapartista deve necessariamente levar em
considerao em sua empresa investigativa. Fazemos meno, mais propriamente, s
diferentes ordens de grandeza imprescindveis de se observar quando das anlises sobre as
estruturas polticas de determinada formao social burguesa, isto , s diferenas existentes
entre Estado, regime e governo. Naturalmente, nossa abordagem dessa espinhosa
problemtica se limitar apenas a pequenas consideraes as quais, esperamos, faro melhor
fluir aqui a discusso da temtica bonapartista.15
A outra questo diz respeito s dialticas
conexes verificadas entre o problema da hegemonia e os variados modos de dominao
poltica que o Estado capitalista pode assumir. Mais particularmente, iniciaremos nossa
15
Para alm das variadas crticas polticas e epistemolgicas que lhe foram endereadas ao longo do tempo, a
maior referncia para o vital e fatigante debate acerca da natureza e tipos do Estado capitalista, assim como das
distintas formas de regime e modalidades de governo que nele podem ter lugar, continua a ser a obra
POULANTZAS, Nicos. Poder poltico e classes sociais. Porto: Portucalense editora, 1971, 2 v.
-
23
discusso a qual daremos prosseguimento em outros momentos do presente trabalho com
a associao que parece existir entre a j mencionada crise de hegemonia e a emergncia
dos regimes bonapartistas.
Passemos ento a essas questes.
Estado, regime e governo
Nas pginas precedentes, mencionamos o uso indevido, porm corrente, do termo
bonapartista para designar a natureza (contedo) dos Estados modernos Estado
bonapartista. Alinhavando uma crtica a esse uso abusivo, indicamos em nossa sntese
conceitual do bonapartismo que tal fenmeno deve ser apreendido fundamentalmente como
um regime poltico que o Estado burgus pode vir a adotar em determinadas conjunturas da
luta de classes. Nessa perspectiva, o bonapartismo exprimiria no a natureza (contedo) desse
Estado, a qual, no interior de uma formao social capitalista, seria sempre burguesa, mas sim
uma forma que, em certas vezes histrica e politicamente determinadas , assumida pelo
prprio aparelho estatal. A nosso ver, portanto, o bonapartismo seria uma espcie especfica
de arranjo poltico-institucional, uma formatao particular das engrenagens do Estado
burgus surgida quando os meios de dominao poltica de tipo oligrquico ou democrtico-
burgus mostram-se insuficientes e perigosos para a manuteno da ordem capitalista. Na
mesma sntese conceitual, pde ser ainda observado que a qualificao de bonapartista
adequada tambm a certos tipos de governo, isto , queles que surgem sob o regime
bonapartista e portam-se como seus defensores.
Ocorre, contudo, que nenhum dos tericos do bonapartismo por ns arrolados se
dedicou a uma caracterizao sistemtica e detalhada do fenmeno bonapartista em si, isto ,
nenhum deles chegou a produzir um complexo terico-conceitual sobre o tema, uma teoria
propriamente dita da chamada autonomizao relativa do Estado.16
Na maioria das vezes, os
subsdios e aportes tericos oferecidos por Marx, Engels, Trotsky e Gramsci para a sua
compreenso derivam de anlises sobre processos polticos concretos, os quais, estes sim, se
constituem em objetos centrais dos textos. Talvez o melhor exemplo do que acabamos de
dizer seja a clssica obra marxiana O 18 brumrio de Lus Bonaparte.17
Conquanto
reconhecida, corretamente, como a me da teoria bonapartista, trata-se fundamentalmente
de um arguto ensaio sobre a trama poltica francesa entre 1848-1851 (que teve por desfecho o
golpe de Estado de Lus Bonaparte), estando longe de se apresentar como um compndio
terico sobre a estrutura, organicidade e o funcionamento do tipo bonapartista de regime
16
E por isso que, at as ressalvas que fizemos h pouco (ver nota 2), vnhamos utilizando entre aspas o termo
teoria quando fazamos meno teoria do bonapartismo. 17
MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit.
-
24
poltico. Assim, no possvel encontrar na literatura desses autores um debate sobre as
instncias polticas Estado, regime e governo voltado diretamente para a questo do
bonapartismo. Em que pese o fato de que Nicos Poulantzas e Domenico Losurdo, autores
mais recentes e de perfil universitrio, tenham fugido regra e produzido elaboraes mais
sistemticas sobre o fenmeno,18
nos parece que a situao apresentada pode ter contribudo,
de alguma forma, para que nos meios marxistas, sobretudo nos mais militantes, o termo
bonapartismo e suas variantes sejam muitas vezes empregados com uma preocupante
frouxido conceitual.
Desejando, portanto, limpar o terreno para a continuidade da exposio de nosso
objeto, precisando-o como um tipo de regime e de governo, vale a pena recorrer aos
esclarecimentos didticos feitos pelo militante argentino Nahuel Moreno,19
concernentes s
diferenas e relaes existentes justamente entre Estados, regimes e governos.20
Para o autor, de linhagem trotskista, se o mtodo adequado para se desvendar a
natureza de um Estado seria o de procurar pela classe (ou casta) que o governa,21
o caminho
para se definir um regime poltico deveria conduzir o investigador para o mbito das
instituies estatais.22
Isto seria necessrio, segundo Moreno, porque embora o Estado seja
um complexo de instituies, a classe no poder no as utiliza sempre da mesma forma para
governar:23
O regime poltico a diferente combinao ou articulao das instituies estatais das quais faz
uso a classe dominante (ou um setor dela) para governar: Qual a instituio fundamental de governo?
Como se articulam nela as outras instituies estatais? [...]
O Estado burgus deu origem a muitos regimes polticos: monarquia absoluta, monarquia
parlamentar, repblicas federativas e unitrias, repblicas com uma s cmara ou com duas (uma de
deputados e outra muito reacionria de senadores), ditaduras bonapartistas, ditaduras fascistas etc. Em
alguns casos, so regimes com ampla democracia burguesa, que permitem at que os operrios tenham
seus partidos legais e com representao parlamentar. Em outros casos, so o oposto; no h nenhum
tipo de liberdades, nem sequer para os partidos burgueses. No entanto, em todos esses regimes, o Estado
segue sendo burgus, porque segue no poder a burguesia, que utiliza o Estado para seguir explorando os
operrios.24
J no que se diz respeito aos governos, Moreno os entende como homens de carne e
osso que, em determinado momento, encontram-se cabea do Estado e de um regime
18
POULANTZAS, Nicos. Poder poltico e classes sociais. Op. cit. e LOSURDO, Domenico. Democracia ou
bonapartismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ So Paulo: Ed. UNESP, 2004. Discutiremos rapidamente as vises
desses autores um pouco mais frente. 19
Codinome pelo qual atendia o dirigente poltico e terico Hugo Bressano. 20
MORENO, N. Las revoluciones del siglo XX. Buenos Aires: Antdoto, 1986. 21
O Estado se define, portanto, pela casta ou classe que o utiliza para explorar e oprimir as demais classes e
setores. (MORENO, N. Las revoluciones del siglo XX. Op. cit., p. 8. Traduo nossa). 22
Por intermdio de que instituies governa essa classe em determinado perodo ou etapa? (Idem, p. 9). 23
Idem. 24
Idem, p. 9-10.
-
25
poltico. Neste caso, a pergunta apropriada ao pesquisador poltico seria: quem governa?.25
Oferecendo fartos exemplos de diferentes matizes de governo, o terico argentino atenta para
o que deveria ser uma obviedade (ao menos entre os cientistas polticos, historiadores,
socilogos e afins), a saber, que governos e regimes so coisas distintas, dado que muitos
governos podem suceder-se num mesmo regime desde que o modo de articulao das
instituies estatais no seja alterado.26
Embasando-nos nas esclarecedoras consideraes de Moreno, frisamos nossa
concepo do fenmeno bonapartista tanto como um tipo especfico de regime poltico do
Estado capitalista, quanto como uma modalidade particular de governo (indireto) da burguesia.
Destarte, entendemos que nos regimes democrtico-burgueses, podem ter lugar, entre tantas
outras modalidades, governos liberais, conservadores (ambos mais ou menos reacionrios),
social-democratas e de frente popular27
(todos mais ou menos reformistas), assim como
governos de aspiraes aberta ou veladamente bonapartistas (os quais intentam, normalmente
por intermdio de um golpe de Estado, promover uma mudana de regime). J sob os regimes
bonapartistas, observam-se governos que, pelas prprias caractersticas da conjuntura poltica
em que se encontram (crise de hegemonia) e da formatao poltico-institucional na qual se
inserem (especialmente, a hipertrofia do Poder Executivo, a fraqueza ou inexistncia do
Legislativo, e o forte peso poltico das FFAA e da burocracia), tendem a segui-lo e a buscar
refor-lo, sendo, portanto, governos arbitrais, nitidamente bonapartistas. Ocorrem tambm,
episodicamente, governos no propriamente bonapartistas em meio a regimes
semibonapartistas, governos at certo ponto desencaixados com o regime, pois so
funcional e ideologicamente mais afinados com a democracia burguesa tal foi o caso da
Frente Popular francesa, chefiada por Len Blum, que ascendeu em 1936 ao governo da
nao quando esta contava com um regime predominantemente bonapartista, no qual
subsistiam elementos democrticos agonizantes.28
H registros de governos bonapartistas orientados mais direita, de perfil nitidamente
reacionrio, ou mais esquerda, de colorao levemente avermelhada; desde as primeiras
25
Idem, p. 10. 26
Idem. 27
Segundo as elaboraes excessivamente generalizantes de Moreno, baseadas nas anlises concretas de Trotsky
acerca das experincias das frentes populares defendidas pela Internacional Comunista (IC) na luta contra o
nazi-fascismo, um governo de tipo frente popular forma-se, usualmente, pela coligao de um ou mais partidos
operrios reformistas com um ou mais partidos da burguesia democrtica. Constitudo em meio a uma
ascenso poltica do proletariado, o governo de frente popular tem como misso precpua afastar a classe
trabalhadora do caminho revolucionrio, o que tenta fazer valendo-se de sua autoridade poltica perante o
movimento de massas. O governo de frente popular, no sendo enxergado pela burguesia como o seu governo e
no podendo atender s reais demandas dos trabalhadores, tende a deparar-se como uma profunda crise e tornar-
se a ante-sala de um regime de tipo bonapartista semifascista ou mesmo fascista. (Ver, especialmente,
TROTSKY, L. Aonde vai a Frana? So Paulo: Desafio, 1994 e MORENO, N. Os governos de frente popular
na histria. So Paulo: Sunderman, 2003). 28
Ver TROTSKY, L. Aonde vai a Frana? Op. cit., p. 135.
-
26
dcadas do sculo XX, possvel nos depararmos tanto com os que vituperaram as idias
socialistas, quanto com aqueles que as adotaram retoricamente como sua plataforma poltica.
Dentre esses ltimos, identificados laudatoriamente como progressistas por certas foras de
esquerda, encontram-se aqueles que estabelecem uma prestidigitadora relao com as massas
populares por meio do atendimento de algumas de suas reivindicaes imediatas.
Aparentando ser verdadeiramente populares, esses governos realizam manobras com a
classe trabalhadora visando alcanar objetivos almejados pela cpula burocrtica estatal. Com
uma incidncia localizada na periferia semicolonial do sistema capitalista mundial, esse tipo
particular de governo assume, por vezes, a forma de uma especfica frente popular.29
No
custa frisar, assim, que todos os governos de natureza bonapartista, inclusive os de feio
progressista, limitam-se sempre aos marcos estruturais do Estado burgus que
momentaneamente dirigem, o que faz deles, em ltima anlise, governos inelutavelmente
avessos emancipao socia
top related