o intertexto bíblico como expressão de um ethos em crônicas de lya
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O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS
EM CRÔNICAS DE LYA LUFT
MÁRIO ACRISIO ALVES JUNIOR
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa.
Rio de Janeiro
Maio de 2015
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O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS
EM CRÔNICAS DE LYA LUFT
Mário Acrisio Alves Junior
Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Aprovada por:
__________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa – UFRJ
_______________________________________________________________
Professora Doutora Janayna Bertollo Cozer Casotti– UFES
_______________________________________________________________
Professora Doutora Luciana Paiva de Vilhena Leite - UNIRIO
_______________________________________________________________
Professora Doutora Maria Aparecida Lino Pauliukonis – UFRJ
_______________________________________________________________
Professora Doutora Patrícia Ferreira Neves Ribeiro – UFF
_______________________________________________________________
Professora Doutora Beatriz dos Santos Feres – UFF (Suplente)
_______________________________________________________________
Professora Doutora Márcia dos Santos Machado Vieira – UFRJ (Suplente)
Rio de Janeiro
Maio de 2015
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Alves Junior, Mário Acrisio.
O intertexto bíblico como expressão de um ethos em crônicas de Lya Luft/ Mário
Acrisio Alves Junior. – Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2015.
xi, 123f.: il.; 31 cm.
Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa
Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, 2015.
Referências Bibliográficas: f. 130-134.
1. Ethos discursivo. 2. Semiolinguística do Discurso. 3. Intertextualidade. 4. Lya
Luft. I. Gouvêa, Lúcia Helena Martins. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. O
intertexto bíblico como expressão de um ethos em crônicas de Lya Luft.
4
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres (...)
Álvaro de Campos
5
“De boas palavras transborda o meu coração;
ao Rei consagro o que compus”
(Salmo 45:1)
6
Agradecimentos
A Deus, o meu amado Criador e Pai, que merece o mérito por tudo o que
conquistei, desde a seleção até o final do doutorado, pois sem Ele eu nada
teria e nada seria.
À minha amada esposa, Michelle, pelo incentivo e por compreender todas as
vezes que tive que dispensar maior atenção a este trabalho do que a ela; por
suas orações e pelo exemplo de garra e competência que é para mim.
À professora Lúcia Helena Martins Gouvêa, minha orientadora, por me aceitar,
pelo interesse sempre sincero em me orientar e por tudo o que pude
apreender, em termos de solidariedade e altruísmo, com essa fantástica
pessoa.
Às professoras Maria Aparecida Lino Pauliukonis e Patrícia Ferreira Neves
Ribeiro, pelas preciosas sugestões oferecidas na ocasião da qualificação.
À professora Regina Gomes, sempre generosa e pronta a prestar auxílio.
À minha mãe, pelas constantes orações, por mostrar-se sempre feliz por
minhas conquistas e por ter sido a primeira orientadora em minha vida, me
mostrando, com seu jeito simples, a não complicar as coisas.
Ao meu pai, pelo modelo de ser humano que é para mim; pelo apoio nos
estudos e pela amizade que temos um com o outro.
Aos amigos Marcelo, Meyre, Marianna, Maria Alice e Melissa, família que fez
de sua casa a minha, e sem a qual eu certamente não teria conseguido
enfrentar minha jornada de estudos.
À colega Natália Rocha Oliveira Tomaz, pela solicitude prestada a mim em uma
importante etapa da pesquisa.
À Capes, pelo apoio financeiro.
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RESUMO
O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS
EM CRÔNICAS DE LYA LUFT
Mário Acrisio Alves Junior
Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa
Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Esta pesquisa tem o objetivo de estudar a construção de um ethos
religioso cristão em crônicas de Lya Luft, expresso por meio de diferentes
tipologias e configurações intertextuais que remetem ao texto bíblico. O corpus
é composto por 53 crônicas selecionadas entre os anos de 2005 e 2013 e
extraídas da revista Veja, em que os textos de Lya Luft são publicados
quinzenalmente. O recorte teórico adotado é fruto de uma articulação entre
conceitos advindos das teorias da Enunciação e da Análise do Discurso em
sua vertente semiolinguística. Os dados revelam três tipologias do fenômeno
intertextual: intertextualidade com valor de captação, intertextualidade com
valor de subversão e intertextualidade por alusão. As análises, de natureza
qualitativa e quantitativa, destacam, entre outros aspectos: a afinidade da
cronista com o discurso bíblico; a destreza com a qual emprega fragmentos
bíblicos na composição de seus textos; o número extremamente expressivo de
casos de alusão ao texto bíblico, os quais, ancorados na memória discursiva,
por serem menos explícitos se comparados aos outros dois tipos, transcendem
os limites do cotexto, situando-se no nível mais profundo de uma escala de
implicitude; e, enfim, uma quantidade menor, porém considerável, de casos de
subversão, estes particularmente analisados sob o prisma da Teoria Polifônica
da Enunciação. As análises confirmam, então, que o intertexto bíblico expressa
um ethos cristão nas crônicas de Lya Luft.
Rio de Janeiro
Maio de 2015
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ABSTRACT
O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS
EM CRÔNICAS DE LYA LUFT
Mário Acrisio Alves Junior
Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa
Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
This search studies the construction of a Christian religious ethos in Lya
Luft‟s chronicles, express by diffrents intertextual types and configurations that
make reference to the biblical discourse. Corpus consists of 53 chronicles,
selected between 2005 and 2013, extracted the magazine Veja, where Lya Luft
publishes her texts fortnightly. The theoretical approache used comes from the
theories of Enunciation and Semiolinguistics Discourse Analysis. Data presents
three types of intertextual phenomenon: intertextual relations of capturing,
intertextual relations of subversion and intertextuality by allusion. Analysis,
which are qualitative and quantitative character, stand out, inter alia: the writer
affinity with the biblical discourse; the skill with which she uses the biblical text
fragments in the composition of her chronicles; the very significant number of
cases of intertextuality by allusion to the biblical discourse, which, anchored in
the discoursive memory – because they are less explicit –, transcend the limits
of the linguistic context and reaches the deepest level of an implicitness scale;
and finally, a smaller but significant amount of cases of intertextual relations of
subversion, which are particularly analyzed through the point of view of
Polyphonic Theory of Enunciation. Thus, the analyses confirm that biblical
intertext express a Christian ethos in the Lya Luft‟s chronicles.
Rio de Janeiro
Maio de 2015
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RÉSUMÉ
O INTERTEXTO BÍBLICO COMO EXPRESSÃO DE UM ETHOS
EM CRÔNICAS DE LYA LUFT
Mário Acrisio Alves Junior
Orientadora: Professora Doutora Lúcia Helena Martins Gouvêa
Résumé da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Cette recherche a l‟objectif d‟étudier la construction d‟un ethos religieuse
chrétien en chroniques de Lya Luft, exprimée par différents typologies et
configurations intertextuelles qui font référence au texte biblique. Le corpus se
compose de 53 chroniques sélectionnée entre l‟ans de 2005 et 2013, publiées
chaque quinze jours par l‟écrivain dans le magazine Veja. Le cadre théorique
adopté naît d‟une articulation entre les concepts des théories de l‟enonciation et
de la branche semiolinguistics de l‟analyse du discours. Le données indiquent
trois typologies du phénomène intertextuel: intertextualité avec valeur de
captation, intertextualité avec valeur de subversion et intertextualité par
allusion. L‟analyses, qui sont qualitative et quantitative, soulignent, entre autres
aspects: l‟affinité de l‟écrivain avec le discours biblique; la dextérité avec
laquelle utilize les fragments bibliques dans la composition de ses textes; le
quantité trop expressive d‟affaires d‟allusion au texte biblique, qui, ancré dans la
mémoire discoursive – parce que c‟est moins explicites que l‟autres deux types
–, transcende le nivèl d‟une intertextuelle restreinte au contexte linguistique,
étant située au niveau le plus profonde de l‟implicite; et, finalement, une
quantitée inférieure, pourtant considerable, de cas de subversion,
particulièrement analysés du point de vue de la Théorie Polyphonique de
l‟Enonciation. L‟analyses confirment que l‟intertexte biblique expresse un ethos
chrétien à las chroniques de Lya Luft.
Rio de Janeiro
Maio de 2015
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .......................................................................................11
2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ..............................................................17
2.1 A Enunciação .......................................................................................17
2.2 Análise Semiolinguística do Discurso...............................................23
2.3 A Crônica Jornalística: um Gênero, um Contrato ............................30
2.4 A Intertextualidade...............................................................................37
2.5 O Conceito de Ethos ...........................................................................50
2.5.1 Ethos aristotélico ................................................................................51
2.5.2 Ethos discursivo .................................................................................52
2.5.3 Ethé e procedimentos enunciativos ....................................................55
3. METODOLOGIA ....................................................................................60
4. ANÁLISE DO CORPUS..........................................................................65
4.1 O corpus sob uma perspectiva qualitativa .......................................65
4.1.1 “Meu país é uma fênix” .......................................................................66
4.1.2 “A matança dos bebês” ......................................................................77
4.1.3 “A praga moderna” .............................................................................84
4.1.4 “Voz no deserto” .................................................................................92
4.1.5 Microanálises das ocorrências............................................................98
4.2 O corpus sob uma perspectiva quantitativa ...................................122
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................126
REFERÊNCIAS .........................................................................................129
ANEXOS ....................................................................................................134
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1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo investigar a construção de um ethos
discursivo, operada por meio de estratégias de intertextualidade, em crônicas
da escritora Lya Luft publicadas quinzenalmente na Revista Veja.
O percurso teórico-analítico que doravante se intenta percorrer nasce da
inquietação por responder certos questionamentos, tais como: I) de que forma
o sujeito falante emprega, particularmente o intertexto bíblico, como discurso
constituinte da crônica jornalística, resultando na projeção de uma
representação de si? II) Que classificação se pode atribuir ao ethos que é
expresso por meio dos índices de intertexto bíblico? III) Que sujeito se revela,
nos textos, por meio da construção desse ethos?
Uma determinada área dos estudos da linguagem, que se ocupa da
investigação em torno das problemáticas enunciativas envolvidas nos discursos
em geral, vem defendendo, nas últimas décadas, a ideia de que qualquer
manifestação verbal é passível de apresentar marcas, de natureza linguístico-
discursiva, que podem denunciar traços de subjetividade daquele que enuncia.
Embora tais marcas variem de sujeito para sujeito, todas comungam do fato de
que apontam para uma determinada atitude e para uma imagem de si que o
sujeito, intencionalmente ou não, acaba por projetar em sua fala.
Quando, a título de exemplo, Deus pronuncia seu primeiro enunciado
conhecido – “Haja luz” –, a imagem de Supremo se sobressai, pois a partir de
um imperativo, Ele se mostra no controle de toda a natureza criada. Assim
sendo, não se trata exatamente do estilo, da forma ou da maneira de dizer,
embora estes sejam alguns vestígios essenciais. Diz respeito a uma identidade
assumida, percebida e atribuída a esse sujeito. Essa identidade resulta em um
modo de se projetar “Supremo”, sem que seja necessário que o falante enuncie
claramente: “Eu sou Supremo; portanto, que haja luz!”.
À atitude do sujeito falante que resulta na construção de uma imagem de
si no discurso, dá-se o nome de ethos, conceito explorado desde a antiguidade,
com os retóricos, e que foi incorporado aos estudos sobre o discurso, sendo,
por isso, retomado sob o rótulo de ethos discursivo.
12
Em síntese, esta pesquisa visa a examinar a construção de um ethos
religioso cristão expresso por meio de elementos intertextuais que remetem ao
texto bíblico, empregados em crônicas da escritora Lya Luft.
É importante antecipar que a forma como se definiu nomear o referido
fenômeno – ethos religioso cristão – não deve servir para identificar a opção
religiosa do indivíduo real que escreve as crônicas, a pessoa Lya Luft, já que
se trata de instâncias enunciativas inscritas para além da “superfície” do texto
escrito. Embora não seja improvável que a imagem de si no discurso de um
sujeito possa coincidir com alguns de seus traços reais, acredita-se, com
Charaudeau (2011), que o ethos não é uma propriedade exclusiva daquele que
fala, já que é construído também por meio dos “dados trazidos pelo próprio ato
de linguagem” (op.cit., p.115).
A própria escritora, em uma de suas crônicas acerca do Natal, publicada
em 2008, faz a seguinte afirmação, relembrando os tempos de sua infância:
“Não éramos particularmente religiosos, mas uma de minhas avós, luterana
convicta, na manhã seguinte [à ceia de Natal] me levava à igrejinha, onde eu
gostava de cantar”.1 E, em texto de 2013, outro comentário confirma que ela se
mantém relativamente neutra em relação à religião cristã, até os dias de hoje:
“Eu, que não sou muito praticante, mas acho religião, religiosidade, alguma
espiritualidade fundamentais, estou encantada com esse [papa] Francisco”.2
Mesmo sem se dizer adepta à religião cristã, a maneira como Lya Luft se
apropria do discurso bíblico, recorrendo, com isso, a diferentes formas de
intertextualidade em suas crônicas, é suficiente para instigar um estudo de
caráter descritivo acerca da construção de um ethos cristão nos textos desta
autora.
A partir de um quadro teórico definido pelas teorias da enunciação e pela
análise do discurso, o trabalho focaliza o fenômeno da intertextualidade, que
ocorre por meio de alusões e outros modos de referência à Bíblia Sagrada,
presente nas crônicas de Lya Luft. Partindo-se da hipótese de que os referidos
índices intertextuais encontrados nesses textos participam da encenação de
1 Acreditar no Natal, Veja, 24-12-2008.
2 Temos papa, temos pai, Veja, 27-03-2013.
13
um ethos da cronista, procede-se aqui a uma análise de corpus de caráter
qualitativo e quantitativo.
A pesquisa implica uma variedade temática aparentemente complexa,
embora todos os tópicos envolvidos sejam oriundos dos mesmos fundamentos
teóricos. O modelo de análise do discurso que subsidiará esta pesquisa é o da
Teoria Semiolinguística, construída ao longo dos trabalhos de Charaudeau
(1983; 1992; 1996; 2001; 2007; 2008). O referencial teórico a que se recorre
contempla, ainda, necessariamente autores como Bakhtin (2002; 2003), com
seu princípio dialógico, que inspira a problemática da enunciação na
linguagem; Benveniste (1989; 2014), linguista que atribuiu um caráter mais
consistente ao estudo da enunciação, consagrando, assim, a Teoria da
Enunciação; além de outros autores desta linhagem, tais como Ducrot (1987),
que definiu o fenômeno da polifonia como um princípio do ato de linguagem, e
Maingueneau (1997; 2005), com sua proposta sobre interdiscursividade. No
que se refere à questão do ethos discursivo, serão revisitados, sobretudo, os
estudos de Maingueneau (1997, 2005b, 2008a); de Amossy (2005) e de
Charaudeau (2011). Também, ainda acerca do ethos, considerar-se-á o
trabalho de Ribeiro (2007) como referência de análise.
Os pressupostos teórico-metodológicos giram em torno da noção de
enunciação, a qual implica uma abordagem em que se assume a figura do
sujeito como elemento central. Postura semelhante determinou uma mudança
de orientação nos estudos sobre a linguagem, pois, se em um dado momento
postulou-se uma certa autonomia da língua nos processos de significação, hoje
é quase um consenso que o sujeito é o ponto de convergência desses
processos, tendo em vista que não é possível construir sentidos
independentemente da (inter)ação subjetiva.
Tendo em vista que o modelo semiolinguístico se inscreve em um
quadro sociocomunicacional bastante peculiar em relação às outras análises
do discurso, julga-se pertinente delimitar a finalidade desta teoria do discurso.
Na visão de Charaudeau, aliás, discurso está relacionado ao fenômeno de
encenação do ato de linguagem, o qual, por hora, pode ser considerado como
sinônimo de texto, não considerado somente como a materialidade linguística,
14
mas como o conjunto de contextos (linguístico, situacional, cultural) de
produção de um enunciado.
Sabendo-se, pois, de antemão, que a teoria semiolinguistica reconhece
o desdobramento (não-unicidade) do sujeito falante, estando envolvidos, então,
mais do que apenas um locutor empírico, Charaudeau sugere que, para
analisar um ato de linguagem, “a tradicional questão feita a um texto sob a
forma: „Quem fala?‟ seja substituída por outra: „Quem o texto faz falar?‟, ou
„quais sujeitos o texto faz falar?‟” (CHARAUDEAU, 2008, p.63).
Estas são questões que devem, a priori, conduzir o sujeito analisante, o
qual se encontra “em uma posição de coletor de pontos de vista
interpretativos”, e que “deve dar conta dos possíveis interpretativos que surgem
(ou se cristalizam) no ponto de encontro dos dois processos de produção e
interpretação” (op. cit.).
Vale antecipar, ainda, que um dos conceitos centrais na abordagem
semiolinguística é o de contrato comunicacional, o qual prevê tanto o
desdobramento dos sujeitos envolvidos no ato de linguagem – EU e TU –
quanto as possibilidades e restrições de uma situação de troca. Considera-se
que essa noção é fundamental na busca pela definição de algum gênero
discursivo, tendo em vista que o contrato comunicacional é determinante para
instruir uma situação de comunicação específica.
Os procedimentos de análise e o quadro teórico definidos acima serão
os instrumentos de pesquisa utilizados para o exame das seguintes hipóteses:
1. uma hipótese inicial, segundo a qual a ocorrência do intertexto bíblico
nas crônicas de Lya Luft expressaria um ethos religioso cristão. A
confirmação desta hipótese mais genérica se dará em consequência da
ratificação das demais hipóteses, de teor mais específico;
2. uma segunda hipótese, de acordo com a qual a manifestação do
intertexto bíblico revelaria um conhecimento especificamente
aprofundado da Bíblia por parte da cronista, visto que as frases,
expressões e palavras referentes ao texto bíblico são extraídas de
partes muito diversas, do Antigo e do Novo Testamento;
15
3. uma terceira hipótese, segundo a qual os casos de intertextualidade por
subversão – em que ocorre a alteração ou adulteração do texto-fonte –
seriam indícios de uma forte intimidade com o discurso bíblico,
permitindo à cronista o engendramento de novas significações em seu
discurso. Esta hipótese seria uma consequência da anterior, ou seja, o
conhecimento aprofundado do texto bíblico marcaria a natureza intimista
de Lya Luft com as expressões bíblicas que ela emprega em seu
discurso, a ponto de jogar deliberadamente com as palavras. Para a
ratificação desta hipótese, deverá ser considerada, sobretudo, a
habilidade com a qual a escritora retextualiza as expressões originais;
4. uma quarta hipótese, pela qual se revelaria que o intertexto bíblico
participa da orientação argumentativa que a cronista busca imprimir em
seus textos;
5. uma quinta hipótese, pela qual se atestaria o recurso ao intertexto
bíblico como um fenômeno recorrente nas crônicas de Lya Luft;
6. uma sexta hipótese, segundo a qual a construção do referido ethos
cristão se dá preferencialmente por meio de formas intertextuais de
natureza mais implícitas, considerando-se uma escala de implicitude;
7. uma sétima e última hipótese, que prevê que o ethos religioso cristão se
expressa também – mas não somente – na dinâmica polifônica, numa
relação entre o dito e o já-dito, entre as vozes das instâncias
enunciativas identificadas em um determinado percentual das
ocorrências registradas.
Note-se que, enquanto a hipótese (1) será confirmada no quadro geral
das análises, as hipóteses (2), (3) e (4) serão ratificadas pela análise
qualitativa, ao passo que as hipóteses (5), (6) e (7) deverão ser sustentadas,
sobretudo, pela análise quantitativa.
A confirmação dessas hipóteses, ao final da pesquisa, deverá avalizar a
tese a ser defendida, a saber: diferentes estratégias de intertextualidade
concorrem para a construção de um ethos religioso cristão em crônicas de Lya
Luft publicadas na revista Veja.
16
A fim de alcançar os objetivos apresentados e de comprovar as
hipóteses delineadas, o trabalho segue dividido em mais quatro capítulos.
O capítulo 2, após esta breve introdução, deverá apresentar o quadro
teórico elencado para a pesquisa, retomando temas como a teoria da
enunciação; a teoria semiolinguística; aspectos quanto à intertextualidade,
polifonia e interdiscursividade; a definição de ethos discursivo; além de uma
seção dedicada a algumas problemáticas para a definição do gênero crônica
jornalística.
No capítulo 3, capítulo que trata da metodologia com a qual se
procederá às análises, será explicado qual deverá ser o tratamento dado ao
corpus e aos dados encontrados, isto é, que elementos apresentados no
capítulo 2 – Pressupostos Teóricos – serão de utilidade para o exame das
crônicas.
No capítulo 4, operam-se as análises qualitativa e quantitativa do
corpus, apresentam-se os resultados obtidos, confirmam-se hipóteses e
colocam-se algumas considerações parciais sobre a pesquisa.
No capítulo 5, tecem-se as “Considerações Finais” acerca da articulação
entre o percurso teórico proposto, a metodologia adotada e as análises
operadas. Além disso, este capítulo deverá argumentar em favor das
contribuições desta pesquisa para os estudos do discurso e, em caráter
específico, para aqueles que se interessam pelo fenômeno do ethos discursivo
aqui focalizado.
Após a apresentação das referências, estão disponíveis, na seção
“Anexos”, as crônicas constantes do corpus, com exceção daquelas que já
serão previamente mostradas, em sua íntegra, no capítulo de análises.
Por meio deste itinerário, acredita-se que este trabalho deverá se
destacar não somente pela relevância dos temas envolvidos para os estudos
sobre o discurso, mas, sobretudo, por trazer à tona uma investigação que
revela de que forma o discurso bíblico, mesmo fragmentado ou até implícito, se
imiscui no discurso jornalístico como expressão de um ethos cristão.
17
2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
2.1 A Enunciação
Ao se considerar o percurso teórico das principais tendências
linguísticas do século XX, é fundamental conhecer alguns momentos
definidores. O primeiro deles remonta ao estruturalismo, cuja paternidade, no
âmbito dos estudos da linguagem, se atribui a Saussure. Ao estabelecer sua
dicotomia básica, langue/parole, sua intenção foi, sem dúvida, lançar o olhar
em direção àquilo que, naquele momento histórico, era essencial para o seu
fazer científico: a língua enquanto sistema abstrato. Uma célebre afirmação
confirma sua postura epistemológica diante da linguagem: “bem longe de dizer
que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria
o objeto” (SAUSSURE, 2006, p. 15).
Emergia a linguística da língua (langue), que sistematizou uma
importante fatia da linguagem com todo o rigor científico requerido para esse
fim. Ao focalizar a langue, de caráter social e estático, Saussure não
necessariamente julgou ser a parole, com sua natureza dinâmica e privada, um
fenômeno sem relevância para o fazer científico. Na verdade, foi o método que
o levou a fixar-se em um ponto no imenso universo da linguagem e, assim, a
declarar:
Se estudarmos a linguagem sob vários aspectos ao mesmo tempo, o objeto da Linguística nos aparecerá como um aglomerado confuso de coisas heteróclitas, sem liame entre si. [...] De fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito (SAUSSURE, op. cit., pp.16-17).
Sem ir muito longe em uma noção geral de signo – semiologia –,
Saussure fundamenta uma teoria do signo linguístico – a linguística, e é o
método de estabelecimento de dicotomias que o levou a focalizar a linguística
da langue. Ainda que o empreendimento saussuriano tenha tido o mérito de
consagrar a linguística enquanto ciência, alguns teóricos se posicionam em
reação a tal modelo, seja em clara oposição a ele, como é o caso de Mikhail
18
Bakhtin, seja para recondicioná-lo em um quadro que comporta o elemento
discursivo, como o faz Émile Benveniste.
Bakhtin (1992; 19973), em seus estudos voltados para o universo
literário, usou o termo “enunciação” para denominar a unidade mínima da
comunicação discursiva e um elo entre vários enunciados4, destacando já aí a
natureza dialógica e social da linguagem e o caráter de responsividade de cada
enunciação. Sua concepção de linguagem é fruto de uma postura crítica diante
de outras concepções, sobretudo diante do estruturalismo saussuriano. Para
justificar seu desconforto diante dessas tendências,
Bakhtin [Volochinov] propõe a observação da dinamicidade da linguagem e da natureza social da enunciação. Para tanto, desenvolve uma concepção de enunciação em que a língua é considerada em situações concretas, cujos interlocutores, espaço, tempo e projeto discursivo são fundamentais. Desse modo, o que importa não é o aspecto reiterável da forma linguística, mas sim seu caráter de novidade, o evento, aquilo que permite a circulação de posições avaliativas de sujeitos do discurso e a permanente renovação de sentidos (FLORES et al., 2009, p.99).
De fato, Bakhtin, desde seus primeiros trabalhos, inova ao questionar a
abordagem estruturalista, apontando para a inserção da subjetividade na
linguagem e para um conceito de enunciação como evento único, no qual os
sentidos são renovados pela ação do sujeito que necessariamente interage
com um “outro”, o qual garante sua existência. Ainda que, anteriormente, Bréal
(1897) já houvesse destacado a intervenção do sujeito na construção do texto
por meio de escolhas linguísticas por ele operadas, a proposta de Bakhtin
ganha relevo por tratar-se de um posicionamento reacionário à concepção
estruturalista.
Em Benveniste, contudo, é possível contemplar bases conceituais
sólidas para o estabelecimento de uma linguística do discurso, já que sua
proposta é baseada na ideia de que a língua comporta um ingrediente
semântico. A propósito da concepção de língua priorizada nos estudos de
Saussure, Benveniste aponta para a necessidade de se considerar, além do
sistema das formas – aquele privilegiado pelo paradigma estruturalista, o
3 O texto original é de 1929.
4 O Dicionário de Linguística da Enunciação (FLORES et al., 2009) registra que se equivalem, na obra
bakhtiniana, os tratamentos dados ao enunciado e à enunciação.
19
sistema do sentido produzido pela enunciação. Em uma de suas últimas
palestras, no Collège de France, ele reitera seu posicionamento acerca da
coexistência desses dois sistemas na língua, um dos seus pressupostos de
base:
Classificando a língua nos sistemas, articulando-a pelo signo, Saussure – paradoxalmente – a classificou entre os sistemas não significantes, aqueles cujos elementos nada significam sozinhos (sons, cores, sinais) e somente existem em oposições, entidades opositivas, o que é o caso dos fonemas, essencialmente não significantes. A esse sistema se opõe a língua um outro sistema (seria mesmo um sistema?), este do querer-dizer que está ligado à produção e à enunciação das frases, o semântico. [...] A doutrina saussuriana cobre apenas, sob as espécies da língua, a parte semiotizável da língua, seu inventário material. Ela não se aplica à língua como produção (BENVENISTE, 2014, p.191-192).
5
As contribuições desse exímio estudioso foram fundamentais para os
estudos sobre a subjetividade na língua. Ao postular a existência de um
“aparelho formal da enunciação”, o linguista sugere que o emprego da língua,
em oposição ao emprego das formas da língua, necessariamente deixa marcas
da ação de um sujeito ao mobilizá-la num dado momento, e “a enunciação é
este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”
(BENVENISTE, 1989, p.82).6 Cada vez que um sujeito locutor se designa como
“eu”, provocando, em consequência, a emergência de um “tu”, a quem se
dirige, a língua é discursivizada, e se manifesta aí a enunciação.
Assim, em Benveniste, a enunciação é o meio pelo qual se dá a
conversão da língua em discurso pela intervenção da subjetividade. As
reflexões do linguista atravessam, pois, dois eixos teóricos:
O sujeito é constituído nas práticas sociais de linguagem, uma vez que
sua existência é condicionada por uma intersubjetividade: “É um homem
falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro
homem, e a linguagem ensina a própria definição de homem”
(BENVENISTE, op. cit., p.285).
5 A edição original é de 2012, tendo sido elaborada a partir de registros do último curso ministrado por
Benveniste, nos anos 1968 e 1969. 6 O texto original é de 1966.
20
A subjetividade na língua é observada nas situações concretas de
emprego das formas da língua. Com relação ao uso dos pronomes,
Benveniste define: “Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a
alguém, que será na minha alocução um tu” (BENVENISTE, op. cit.,
p.286).
A partir desses fundamentos, Benveniste instaura a Teoria da
Enunciação que direciona, até os dias de hoje, os estudos sobre enunciação, e
é o ponto de partida para muitos pesquisadores que tomam o discurso e o
sentido como objetos de investigação. De filiação estruturalista, o autor inova
ao sugerir a articulação entre sujeito e estrutura. Nas palavras de Flores e
Teixeira (2005, p.30),
(...) se de um lado Benveniste mantém-se fiel ao pensamento de Saussure – na justa medida em que conserva concepções caras ao saussurianismo, tais como estrutura, relação, signo –, por outro apresenta meios de tratar da enunciação ou, como ele mesmo diria, do homem na língua.
Oswald Ducrot está no rol dos linguistas influenciados por Benveniste.
Autor de um programa teórico muito peculiar, sua proposta é a de uma
pragmática integrada à língua, e se baseia, para tanto, no quadro estruturalista
de Saussure, na Teoria da Enunciação de Benveniste e na pragmática anglo-
saxã.
Além da enunciação, outros dois temas se destacam nas investigações
de Ducrot: são os conceitos de polifonia e de argumentação. Visto, porém, que
ambos serão especificamente abordados nas próximas páginas, interessa
agora rever a noção de enunciação postulada por Anscombre e Ducrot (1983,
p.18) que a definem como “a atividade linguística exercida por aquele que fala
no momento em que fala”.
Vale dizer que, em Ducrot, o sujeito – “aquele que fala” – é uma
representação, e o “evento enunciação” pode ser atribuído a uma ou mais
instâncias discursivas, dentre as quais o locutor e o enunciador, cada qual com
seus desmembramentos. Tendo em vista essa complexidade na caracterização
da subjetividade no empreendimento de Ducrot, é possível compreender
21
porque o linguista opta, na obra de 1987 – “O dizer e o dito” –, por uma
definição de enunciação sem comprometimento com o sujeito: “a enunciação é
o acontecimento constituído pelo aparecimento do enunciado” (DUCROT,
1987, p.168). À semelhança da afirmação basilar de toda a sua teoria, segundo
a qual “a argumentação está na língua”, é possível apreender também que a
enunciação está no enunciado.
Não se entenda, com isso, que Ducrot descarta o sujeito de sua
proposta. Sua opção em omitir o sujeito de sua definição de enunciação é
simplesmente fruto de um posicionamento científico. Na verdade, esse linguista
se coloca contra o pressuposto “da unicidade do sujeito falante”, o que fica
evidente em sua teoria polifônica (DUCROT, op. cit.), em que defende a
existência de diferentes representações do sujeito da enunciação no sentido do
enunciado.
Os estudos em torno da enunciação introduzidos, na linguística, por
Benveniste, foram determinantes para o desenvolvimento das teorias do
discurso, sobretudo ao colocar um sujeito ativo em evidência nas análises
textual-discursivas. De fato, ela – a enunciação – é hoje o ponto de partida para
as reflexões em torno da relação entre a língua em uso e a intervenção dos
sujeitos-enunciadores para a produção de sentido. Dessa forma, cabe aqui
uma outra definição em que a noção de sujeito parece estar pressuposta no
termo “enunciação”. Conforme Charaudeau e Maingueneau (2004, p.228):
(...) a enunciação constitui o pivô da relação entre a língua e o mundo: por um lado ela permite representar fatos no enunciado, mas por outro ela própria constitui um fato, um acontecimento único definido no tempo e no espaço.
Como se vê, embora os conceitos de enunciação apresentados possam
se diferenciar um pouco de um autor para outro, o certo é que, “com a Teoria
da Enunciação, a presença dos responsáveis pelo ato de linguagem, suas
identidades, seus estatutos e seus papéis são levados em consideração”
(CHARAUDEAU, 2008, p.19), e esse posicionamento subsidiará toda esta
pesquisa.
22
Entre as tendências que sofreram influência direta do quadro teórico
aqui delineado, encontra-se a Análise do Discurso de linha francesa (AD), que,
ao longo de seu desenvolvimento enquanto metodologia de leitura, acabou por
acatar a ideia da existência de uma subjetividade na linguagem, não podendo
excluí-la das circunstâncias de produção discursiva.
Ainda que nos primórdios de sua existência, a AD defendesse que o
sujeito do discurso fosse plenamente determinado ou assujeitado pela posição
socioideológica que ocupa no universo dos discursos, viu-se, no
desdobramento de outras linhas de análise do discurso, que esse sujeito não
se configura como mera “travessia”.
Ao propor um modelo de análise capaz de integrar as múltiplas
dimensões envolvidas no ato de linguagem, articulando os planos linguístico e
situacional, Charaudeau é um dos que se colocam contra a ideia de um sujeito
inteiramente sobredeterminado pela língua ou por uma formação
socioideológica, afirmando que “nem tudo é jogado no pré-ato de enunciação, e
o sujeito falante não é simplesmente o porta-palavra de uma posição de poder”
(CHARAUDEAU, 1996, p.30).
Influenciado pela Teoria da Enunciação e pela Pragmática, ambas com
foco no sujeito – seja esse um sujeito do discurso seja um sujeito falante –,
Charaudeau lança um olhar inovador sobre a análise discursiva, colocando o
sujeito como ser da enunciação em um quadro teórico bastante particular.
Para concluir esta seção de forma a garantir a coerência da presente
pesquisa, julga-se necessário formular, em síntese, o tratamento que será
adotado quanto às noções de enunciação e de sujeito.
À primeira, será concebido que se expressa na relação entre a língua e
a realidade extralinguística no momento em que um enunciado é produzido. E
o sujeito, estando no centro da enunciação, pode ser visto como o ponto de
convergência da língua em discurso. A propósito dessa concepção de sujeito
que se adota, vale destacar ainda que as problemáticas a serem levantadas e
discutidas neste trabalho apontam para o desdobramento do sujeito, em
oposição à sua unicidade. Dessa forma, a postura que se assume é aquela
postulada por Ducrot (1987), para quem todo enunciado comporta mais de uma
23
voz, cada qual correspondente a uma entidade enunciativa. Essa perspectiva
será revisada com mais pormenores, mais à frente, quando será abordada a
Teoria Polifônica da Enunciação, esboçada por Ducrot (op. cit.).
No momento, vale mencionar que um posicionamento bastante
semelhante ao de Ducrot é admitido por Charaudeau, em sua Teoria
Semiolinguística, que oferece uma abordagem mais atenta aos papéis
discursivos e sociais do(s) sujeito(s). Tal postura será mais bem explicitada na
próxima seção, ao lado de outros tópicos fulcrais dessa corrente teórica cujo
próprio fundador chama de “nova” análise do discurso.
2.2 A Análise Semiolinguística do Discurso
A Teoria Semiolinguística do Discurso (TSD) é uma corrente de estudos
desenvolvida pelo linguista francês, Patrick Charaudeau, no interior da Análise
do Discurso. A construção de seu quadro teórico-metodológico – sua “nova”
análise do discurso – tem origem na constatação de que a linguagem é
multidimensional, ainda que cada uma das dimensões que ela comporta seja
normalmente estudada de forma isolada, dependendo da perspectiva teórica
que se adota. Assim sendo, Charaudeau busca situar certos domínios num
projeto global de análise, com o intuito de “relacionar entre si determinados
questionamentos que tratam do fenômeno da linguagem – sendo uns mais
externos (lógica das ações e influência social), outros mais internos
(construção do sentido e construção do texto)” (CHARAUDEAU, 2007, p.13).
Esse posicionamento está diretamente relacionado com o termo
“semiolinguística”, proposto para definir sua corrente de estudos. O autor
destrincha essa terminologia explicando que o morfema semio-, de “semiosis”,
ressalta a relação forma-sentido que fundamenta a construção e a
configuração do sentido, ao passo que o morfema -linguística destaca que a
significação opera com a matéria verbal.
Analisar um discurso por uma abordagem semiolinguística implica
conceber a significação discursiva como o produto da articulação entre dois
componentes: o linguístico e o situacional. Ao primeiro relacionam-se as
24
características internas do discurso – categorias de língua e configuração
estrutural da matéria linguística. O segundo refere-se à dimensão social, a toda
a realidade extralinguística, incluindo-se aí também os sujeitos envolvidos na
“encenação” do ato de linguagem.
Charaudeau (1996) avalia que, embora esses dois componentes sejam
autônomos em sua origem, estabelece-se entre eles uma relação de
interdependência para a construção da significação discursiva. Logo, ele evita
meticulosamente uma abordagem unilateral, seja a que privilegie o plano
social, seja a que contemple apenas o plano linguístico, “para o qual tudo o que
é „dizível‟ é expresso pela língua e, portanto, inscrito em marcas formais”
(CHARAUDEAU, op. cit., p.06). Sem uma articulação equilibrada não é
possível apreender a totalidade da significação discursiva de um ato de
linguagem.
Com essa postura, Charaudeau elabora uma teoria que concebe a
linguagem como “jogo de comunicação”, considerando, nesse “jogo” a
coexistência de um espaço externo e um espaço interno, relacionados,
respectivamente, às dimensões situacional e linguística. Nessa articulação
externo/interno e situacional/linguístico abrem-se dois espaços de atuação para
os sujeitos: o fazer e o dizer, assim definidos por Charaudeau (2001, p.28):
O fazer é o lugar da instância situacional que se auto-define pelo espaço que ocupam os responsáveis deste ato [...] O dizer é o lugar da instância discursiva que se auto-define como uma encenação da qual participam seres da palavra [...] Esta dupla realidade do dizer e do fazer nos leva a considerar que o ato de linguagem é uma totalidade que se compõe de um circuito externo (fazer) e de um circuito interno (dizer), indissociáveis um do outro.
Como se vê, uma das inovações da proposta teórica de Charaudeau
sugere um desdobramento dos sujeitos envolvidos no ato de comunicação, em
resposta ao modelo clássico sustentado por teóricos como Roman Jakobson,
que sugere um emissor e um receptor numa relação simétrica – este
paradigma está fundado em uma concepção de língua que supõe sujeitos
passivos e que privilegia apenas o conhecimento do código linguístico para fins
de comunicação. Charaudeau rejeita este modelo, que reduz a comunicação a
um mero fenômeno de transmissão de informação.
25
A teoria semiolinguística é também determinada por um “postulado de
intencionalidade”, e o conceito norteador desse postulado é o de contrato de
comunicação, termo diretamente relacionado às condições situacionais de
produção discursiva. Esse contrato é estabelecido entre os parceiros da
comunicação – seres do Fazer – entre os quais se estabelece uma relação
necessária a sua própria existência, conforme explica Charaudeau (2001,
p.30):
(...) Na interação linguageira, vemos dois parceiros: o sujeito comunicante (EUc) e o sujeito interpretante (TUi), implicados no jogo que lhes é proposto por uma relação contratual.
7
Essa relação contratual não se baseia nos estatutos sociais dos parceiros, do lado de fora da situação linguageira. Ela depende do “desafio” construído no e pelo ato de linguagem, desafio este que contém uma expectativa (o ato de linguagem vai ser bem sucedido ou não?). Isso faz com que os parceiros só existam na medida em que eles se reconheçam (e se “construam”) uns aos outros com os estatutos que eles imaginam.
Para que haja esse reconhecimento recíproco, é necessário que os
parceiros conheçam e se submetam às “normas” do contrato de comunicação.
A partir desse conceito, é possível pensar que cada situação de comunicação
pressupõe necessariamente alguns critérios que devem ser respeitados para
que o ato de linguagem seja válido. Quando se associa algum gênero
discursivo à essa relação contratual, fica evidente, por exemplo, que, se um
sujeito-poeta não atende a condição predeterminada de registrar seus poemas
em versos, está descumprindo uma “cláusula” desse acordo tácito entre ele e o
sujeito-interpretante. Da mesma forma ocorre, caso um juiz em um tribunal não
declare aberta a sessão, não seguindo, assim, o protocolo de abertura.
Dentro do contrato de comunicação, essas condições mínimas a serem
atendidas, que tornam legítimo o ato de linguagem e garantem a
intercompreensão em uma troca comunicativa, são o que Charaudeau
denomina de espaço de restrições. Uma vez, porém, que o sujeito comunicante
é dotado de uma intencionalidade que determina seu projeto de fala, é
previsível que, dentro desse espaço de restrições, ele recorra a certas
manobras que lhe são lícitas e que supõem, então, um espaço de estratégias,
7 Grifo em itálico do autor.
26
“que corresponde às escolhas possíveis à disposição dos sujeitos na mise-en-
scène do ato de linguagem” (CHARAUDEAU, 2007, p.18).
Na teoria semiolinguística, é o contrato de comunicação que prevê a
inclusão dos sujeitos situados no circuito interno do ato de linguagem. Assim,
tem-se que, no circuito externo, encontram-se os seres do Fazer – o sujeito
emissor-produtor de um ato de linguagem (o sujeito comunicante - EUc) e o
sujeito receptor (o sujeito interpretante - TUi) desse ato de linguagem. No
circuito interno, por seu turno, encontram-se os protagonistas, seres do Dizer –
o sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (TUd).
Como seres de fala da mise-en-scène (encenação), os protagonistas
EUe e TUd assumem diferentes facetas de acordo com os papéis que lhes são
atribuídos pelos parceiros EUc e TUi. Numa perspectiva “teatralizante” do ato
de linguagem, é possível pensar nos parceiros como “produtores”, e nos
protagonistas como os “atores” 8 desse ato.
Para Charaudeau, comunicar, mais do que transmitir uma informação, é
proceder a essa encenação, e tanto os seres de fala quanto os seres de ação
se correlacionam na produção dos efeitos de sentido. Nessa dinâmica, o EUc
coloca em cena um enunciador (EUe) dirigindo-se a um co-enunciador (TUd),
ambos idealizados. O EUe corresponde, pois, a uma projeção de EUc, o qual
tem a intenção de transmitir uma imagem de si (um ethos) no ato de
comunicação, imagem essa que pode coincidir ou não com a do ser que a
projetou.
Da autoridade de que é revestido o contrato de comunicação, como
regulador das práticas sociolinguageiras, emerge também o princípio do direito
à fala. Trata-se de uma condição, já mencionada, de reconhecimento recíproco
(porém não simétrico) entre o EU e o TU, ou, no dizer de Charaudeau (1996,
p.25), da necessidade “de que cada parceiro do ato de comunicação seja
reconhecido pelo outro como digno de ser escutado, em outras palavras como
tendo direito à palavra”. Esse reconhecimento está fundado em dois critérios:
8 Charaudeau prefere evitar a terminologia “ator”, da sociologia, temendo alguma confusão que ela
acarretaria se empregada em uma teoria do discurso.
27
I. a legitimidade, a fim de que um reconheça no outro uma autoridade
procedente de um Saber, relativo ao universo de discurso, ao saber
partilhado entre as partes, e de um Poder, posição que confere ao sujeito
comunicante uma identidade socioinstitucional;
II. a credibilidade, que representa a capacidade de saber fazer do sujeito, e
que permite julgá-lo competente em sua ação de sujeito comunicante.
É por atender a esses critérios que o sujeito se constitui como tal e é
apto a transformar um “mundo a significar” em “mundo significado”. Para
proceder a esse processo de transformação, o sujeito é autorizado a mobilizar
uma série de recursos linguísticos, o que inclui, num plano mais geral, os
modos de organização do discurso e as categorias de língua. O processo de
transformação é dependente de um processo de transação precedente entre
um sujeito falante e um sujeito falante destinatário, conforme consta no
esquema a seguir:9
Mundo Sujeito Mundo Sujeito a significar falante significado falante
destinatário
Processo de transformação
Processo de transação
Como se pode observar, para que o processo de transformação ocorra é
necessária a mobilização das instâncias envolvidas no processo de transação.
Isso ilustra uma concepção de linguagem segundo a qual a língua não possui
autonomia para construir significados, pois é essencialmente na relação
intersubjetiva que essa construção se opera.
A propósito dos modos de organização do discurso, Charaudeau (2008)
explica que correspondem aos princípios de organização da matéria linguística,
9 Cf. Charaudeau (2007, p.17).
28
os quais são determinados pela finalidade comunicativa do sujeito falante –
enunciar, descrever, narrar, argumentar. Cada um desses modos é
caracterizado por uma função de base.
O modo de organização descritivo tem como função de base identificar
(nomear e situar) e qualificar seres, de forma objetiva ou não. O modo narrativo
é marcado pela construção de uma sucessão de ações de uma história com a
finalidade de produzir um relato. O modo argumentativo serve para descrever
as lógicas que se decompõem elas próprias em “explicativas” de fenômenos,
ante verdades preestabelecidas, e em “demonstrativas”, quando se trata de
estabelecer a verdade e sustentá-la. O modo enunciativo, conforme postula
Charaudeau (op. cit., p.74), é um caso particular:
(...) Por um lado, sua vocação essencial é a de dar conta da posição do locutor com relação ao interlocutor, a si mesmo e aos outros – o que resulta na construção de um aparelho enunciativo; por outro lado, e em nome dessa mesma vocação, esse Modo intervém na encenação de cada um dos três outros Modos de organização. É por isso que se pode dizer que este Modo comanda os demais [...].
10
O modo enunciativo participa da encenação dos outros três modos, e
isso é decorrente do fato de que, em qualquer enunciação, essa categoria atua
no nível da conversão da língua em discurso. Isso significa que ele consiste na
organização das categorias da língua ao serem mobilizadas, a fim de dar conta
da posição assumida pelo sujeito falante – da sua atitude enunciativa –, a qual
pode revelar três funções do modo enunciativo:
estabelecer uma relação de influência do locutor sobre o interlocutor,
indicando um comportamento alocutivo;
expressar o ponto de vista do locutor, indicando um comportamento
elocutivo;
revelar a relação do locutor com um terceiro, indicando um
comportamento delocutivo.
10
Grifos em itálico do autor.
29
As categorias modais, bem como as especificações enunciativas de
cada um dos comportamentos mencionados acima, estão relacionadas no
quadro a seguir, transcrito de Charaudeau (op. cit., p.85)
COMPORTAMENTOS
ENUNCIATIVOS
ESPECIFICAÇÕES
ENUNCIATIVAS
CATEGORIAS DE
LÍNGUA
RELAÇÃO
DE INFLUÊNCIA
(relação do locutor ao interlocutor)
ALOCUTIVO
Relação de força
(locutor/interlocutor) + -
Interpelação
Injunção Autorização
Aviso Julgamento Sugestão Proposta
Relação de pedido (locutor/interlocutor)
- +
Interrogação Petição
PONTO DE VISTA SOBRE O MUNDO
(relação do locutor consigo mesmo)
ELOCUTIVO
Modo de saber
Constatação Saber/ignorância
Avaliação Opinião Apreciação
Motivação
Obrigação Possibilidade
Querer
Engajamento Promessa Aceitação/recusa Acordo/desacordo
Declaração
Decisão Proclamação
APAGAMENTO DO PONTO DE VISTA
(relação do locutor com um terceiro)
DELOCUTIVO
como o mundo se impõe
Asserção
como outro fala
Discurso relatado
No primeiro caso – comportamento alocutivo –, vê-se configurada, por
meio de categorias de língua específicas, a ação do sujeito falante sobre seu
interlocutor (alocutário), na busca por incitá-lo a um dado comportamento. No
segundo caso – comportamento elocutivo –, o sujeito falante enuncia seu ponto
30
de vista sem que o interlocutor esteja implicado, uma vez que é orientado por
um propósito referencial, estabelecendo-se uma relação entre aquele que
enuncia e o mundo. Neste caso, o efeito da enunciação produzida se dá por
meio de modalizações subjetivas, que expressem o ponto de vista interno do
sujeito falante. No terceiro caso – comportamento delocutivo – verifica-se o
apagamento do sujeito falante, pela ausência de marcas de primeira pessoa, e
a não implicação do interlocutor, o que resulta em uma enunciação
aparentemente objetiva.
As categorias modais (ou categorias de língua) classificam o conjunto de
procedimentos e expressões linguísticas que o locutor, em sua enunciação,
utiliza para modalizar subjetivamente os enunciados. São essas marcas
linguísticas, bem como o modo de organização do discurso, que irão indicar o
comportamento e, mais especificamente, a atitude do enunciador em relação a
sua enunciação.
É nesses índices linguísticos que o presente estudo se concentra e,
portanto, o modo enunciativo voltará a ser evocado nas próximas seções, a fim
de que possa ser um dos conceitos norteadores para a elucidação dos
resultados abstraídos pela análise do corpus.
De momento, é preciso discutir, de maneira particular, sobre o gênero
privilegiado nesta pesquisa: a crônica jornalística.
2.3 A Crônica Jornalística: um Gênero, um Contrato
No Dicionário de Gêneros Textuais (COSTA, 2009), a acepção de
crônica ocupa um número de linhas e de páginas bem maior se comparada a
tantos outros verbetes constantes da obra. Não é de surpreender, já que se
trata de um gênero textual de definição complexa, entre outros – o editorial, por
exemplo – que, como a crônica, possuem um acentuado teor opinativo, e cujas
marcas de subjetividade enunciativa são, consequentemente, mais explícitas.
Tal subjetividade é caracterizada por uma suposta liberdade...
A fim de se introduzir alguma definição, mesmo sem total precisão, deste
gênero textual, o referido Dicionário (op. cit.) fornece algumas caracterizações
31
bastante pertinentes, sobretudo considerando-se particularmente a categoria
de crônicas que compõem o corpus desta pesquisa. Costa (op. cit., pp.79-81)
define, pois, que:
[...] Contemporaneamente, no jornalismo, em coluna de periódicos, assinada, pode vir em forma de notícias, comentários, algumas vezes críticos e polêmicos, abordando temas ligados a atividades culturais (...), políticas, econômicas, de divulgação científica, desportivas, etc. (...) Conforme a esfera social que retrata, recebe o nome de crônica literária, policial, esportiva, política, jornalística, etc. (...) Além do tipo narrativo, pode ser do tipo argumentativo ou expositivo, como textos de opinião sobre temas diversos de diversas áreas. A crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser vinculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e predeterminada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o leem. (...) é leve e rápida, (...), numa cenografia de conversa amena, diferentemente, por exemplo, do editorial, que recupera os fatos midiáticos de maneira mais densa e formal. Sem regras preestabelecidas, (...), a crônica jornalística consolida o simulacro de relato informal de um “causo”. Essa liberdade discursiva privilegia o efeito de aproximação do enunciador em relação ao leitor [...]
Algumas das características acima mencionadas devem ser
consideradas. Primeiramente, fala-se em esfera social como um dos fatores
distintivos das várias espécies de crônica. Assume-se, pois, que as crônicas de
Lya Luft publicadas na revista semanal Veja estão inseridas na categoria de
crônica jornalística, já que a variedade temática com a qual a autora se
expressa impede a classificação de seus textos como pertencentes, por
exemplo, ao domínio político, embora “política” seja um tema frequente em
seus textos. Nesse sentido, é válido também um questionamento da afirmação
de Costa, segundo a qual a crônica seria “um gênero literário produzido
essencialmente para ser vinculado na imprensa”: se a crônica é produzida para
ser veiculada pela imprensa, não deveria ser qualificada primordialmente como
“jornalística”?
Além da noção de esfera social que, neste estudo, equivale ao
conhecido conceito de domínio discursivo ou domínio de prática (cf.
CHARAUDEAU, 2010b), a citação acima menciona uma “finalidade utilitária e
predeterminada”. Tais conceitos, no entanto, serão retomados mais adiante,
32
uma vez que, antes de situá-los em uma proposta de pesquisa, cabe um
esclarecimento.
Partindo-se do pressuposto de que a problemática dos gêneros deve ser
considerada, aqui, por uma perspectiva sócio-comunicacional, faz-se pertinente
recorrer-se ao modelo de análise da teoria semiolinguística – por estar ela
inserida em um quadro comunicacional –, empregando-se, assim, as
terminologias e posicionamentos concernentes à questão dos gêneros
textuais/discursivos. Em outras palavras, é a teoria semiolinguística do
discurso, diluída na obra de Charaudeau, que irá fornecer o aparato teórico na
busca de situar a crônica jornalística no interior deste modelo comunicacional
de análise.
Nas palavras do autor, um estudo ponderado sobre os gêneros deve
estar apoiado em uma “teoria do fato linguageiro, dito de outra maneira, em
uma teoria do discurso na qual possamos conhecer os princípios gerais sobre
os quais ela se funda e os mecanismos que os colocam em funcionamento”
(CHARAUDEAU, 2010b, online). Acerca dos aspectos mais pertinentes para
tratar dos gêneros, ele registra a importância de dois pressupostos essenciais:
a) O primeiro desses pressupostos é o de que todo ato de linguagem se
realiza em uma dada situação de comunicação, a qual é definida
como o conjunto de dados situacionais não enunciados que
determinam parcialmente o sentido do ato de linguagem e que fariam
deste um objeto de troca, constituindo o contrato de comunicação
(CHARAUDEAU, op. cit.).
b) O segundo pressuposto é o de que o contrato comunicacional irá
fornecer instruções discursivas ao sujeito falante para tornar efetivo
seu projeto de fala, devendo, se deseja ser compreendido por seu
interlocutor, respeitar tais instruções (CHARAUDEAU, op. cit.).
A situação de comunicação
33
Cada situação de comunicação é situada no interior de um domínio de
prática ou domínio de comunicação, cada qual resultante de um recorte do
espaço social – midiático, político, religioso, jurídico etc. Nesse modelo de
análise, o domínio de comunicação seria o nível mais abrangente, o que o
torna muito impreciso para caracterizar especificamente algum gênero
discursivo. O nível da situação de comunicação é, pois, aquele em que as
particularidades de cada situação de linguagem são tipificadas.
Toda situação de comunicação é estruturada, entre outros fatores, de
acordo com uma finalidade – visada – do ato de fala. Essa finalidade, por sua
vez, “corresponde a uma intencionalidade psico-sócio-discursiva que determina
a expectativa do ato de linguagem do sujeito falante e por conseguinte da
própria troca linguageira” (CHARARAUDEAU, op. cit., online).
Dado que toda situação de comunicação instrui uma ou mais visadas,
dentre as quais, uma (ou até duas, às vezes) é dominante, Charaudeau (2004,
p.25) registra que o domínio midiático seleciona
(...) uma visada dominante dupla: de informação, para responder à exigência democrática que quer que a opinião pública seja esclarecida sobre os acontecimentos que se produzem no espaço público; de incitação, para responder à exigência de concorrência comercial que quer que esse discurso se enderece ao maior número e, desse modo, procure captá-lo.
Observe-se que no nível situacional ainda não há possibilidade de se
caracterizar um gênero específico, visto que a dupla finalidade de
informar/incitar abrange toda a esfera midiática. Charaudeau (op. cit., p.26)
alerta que tentar distinguir uma categoria apenas por via de restrições
situacionais “não permite, por exemplo, distinguir, no interior da classe dos
textos jornalísticos, as diferenças que existem entre os diferentes tipos de
crônicas ou artigos”.
Sabe-se, por hora, que o corpus focalizado nesta pesquisa é composto
por crônicas pertencentes ao domínio de comunicação midiático e que, por
isso, são exemplares da esfera jornalística, assumindo, assim, o rótulo de
crônicas jornalísticas.
As instruções discursivas
34
Charaudeau (2006), ao tratar especificamente de aspectos concernentes
ao domínio de comunicação midiático, propõe a existência de três modos
discursivos do tratamento da informação: acontecimento relatado,
acontecimento comentado e acontecimento provocado. A crônica jornalística se
situa no plano do acontecimento comentado e, aliás, está na zona superior do
eixo de [+ engajamento] entre os gêneros de comentário. Assim sendo, é o
cronista sujeito que goza de um espaço privilegiado de argumentação, em que
seus pontos de vista e avaliações podem suplantar a visada (finalidade)
midiática de informar.
Reside aí o problema do posicionamento do comentarista, uma vez que,
via de regra, o discurso comentado “é, em princípio, marcado por uma
argumentação de ponderação”, a qual consiste em:
(...) uma dosagem equilibrada entre julgamento pró e julgamento contra, entre apreciação favorável e apreciação desfavorável, entre exposição de uma determinada opinião ou de uma outra (muitas vezes contrária). Disso decorre uma argumentação em forma de gangorra, que corresponde de fato, a uma recusa em escolher entre os termos de uma alternativa, entre uma opinião e seu contrário (CHARAUDEAU, 2006, p.183).
Ora, situando a crônica no topo dos gêneros jornalísticos mais
opinativos, com alto grau de engajamento, Charaudeau (op. cit.) observa que
uma atitude de ponderação diante do acontecimento impõe restrições ao
campo de ação que o sujeito deve assumir como seu espaço de estratégias.
Se assim fosse, a crônica jornalística certamente deveria ser rebaixada a uma
categoria de gêneros de engajamento moderado, pois
Que tipo de engajamento pode ter o sujeito que procura comentar fatos, sabendo que não pode tomar partido, mas querendo, ao mesmo tempo, interpelar a consciência cidadã? E como interpelar sem tomar partido? Toda interpelação em nome de uma moral ou de uma causa, qualquer que seja sua extensão humana, implica tomar partido. Isso deveria ser levado em consideração pelos atores das mídias modernas que têm uma tendência cada vez mais marcada de fazer o jogo da interpelação (CHARAUDEAU, op. cit., p.184).
Vê-se que a crônica jornalística, como gênero dos mais emblemáticos do
acontecimento comentado, se configura como uma espécie de gênero
35
transgressor ao mesmo tempo em que se assume como gênero em que se é
permitido transgredir.
Ao abordar a crônica jornalística da perspectiva das relações
contratuais, o que salta aos olhos é que o sujeito comunicante (EUc), instituído
cronista, dispõe de um amplo espaço de manobras para interagir com seu
interlocutor (TUi). Partindo desse mesmo entendimento, Mendes (2004, p.125)
explica que
(...) no domínio midiático, o hipergênero representado pelo jornal [ou revista] escrito apresenta, de um lado, gêneros que parecem exigir um registro estilístico mais normatizado, a exemplo do “editorial” e da “matéria” jornalística, e de outro lado, gêneros que oferecem mais liberdade para a emergência da criatividade e de uma construção estilística singular, mais característica do sujeito do que do próprio gênero, a exemplo do “artigo de opinião” e da “crônica”, que apresenta inclusive uma forte interface com o domínio literário.
Como o material de análise desta pesquisa é composto por crônicas de
uma autora em particular, nota-se inevitável que a definição deste gênero na
cena midiática passe pelo crivo da natureza estilística que caracteriza sua
individualidade.
Tendo em vista a complexidade de enquadramento desse gênero, por
conta de sua flexibilidade temática e estilística, parece ser coerente concordar
com o parecer de Mendes (op. cit., p.125), para quem “o estilo, associado a um
determinado gênero, enquanto regularidade formal, pode ser concebido como
característica típica desse gênero”. O autor adverte, no entanto, que o fato de o
estilo ser um traço em evidência na crônica não quer dizer que seja exclusivo.
Não se trata, portanto, de uma característica distintiva deste gênero midiático.
Uma forma coerente de se caracterizar a crônica, a fim de se definir uma
identidade mais concreta para este gênero consiste na busca por uma
definição para o sujeito cronista – o sujeito colocado em cena no momento de
produção/publicação de uma crônica. Recorrendo à literatura específica sobre
o tema, verifica-se que o cronista é visto como aquele
(...) que sabe atuar como consciência poética da atualidade (...) aquele que mantém vivo o interesse do seu público e converte a crônica em algo desejado pelos leitores. Atua como mediador literário entre os fatos que estão acontecendo e a psicologia coletiva (MELO, 1985, p.116).
36
Embora haja o consenso de que a crônica é ornada de traços literários,
Melo (op. cit., p.116) assevera que “a crônica moderna configura-se como um
gênero eminentemente jornalístico”. Esse autor observa que além do “ar de
conversa fiada” e de “apreciação irônica dos acontecimentos”, assumido pela
crônica, ela é dotada de duas características fundamentais:
1) Fidelidade ao cotidiano, pela vinculação temática e analítica que
mantém em relação ao que está ocorrendo, aqui e agora; pela captação
dos estados emergentes da psicologia coletiva.
2) Crítica social, que corresponde a entrar fundo no significado dos atos e
sentimentos do homem.
A função de mediação entre os acontecimentos recentes e a psicologia
coletiva remete, necessariamente, ao contrato comunicacional firmado entre os
parceiros do circuito interno do ato de linguagem. É possível, assim, sem
pretensão de esgotar o assunto, definir a crônica pela relação contratual que se
impõe entre o sujeito enunciador e seu destinatário (leitor ideal/psicologia
coletiva), a qual deve levar em conta que o cronista está legitimado a significar
o mundo do acontecimento cotidiano primando pela fidelidade aos fatos, sem
deixar de dotar seu discurso de uma linguagem descontraída e pessoal.
Ao contrastar o sujeito enunciador da crônica com o do editorial,
Charaudeau (2006) constata que, embora ambos se caracterizem por um
engajamento relativamente livre da instância midiática, o editorialista tem sua
liberdade discursiva limitada pelo conjunto de temas de que dispõe –
essencialmente relacionados à política – e “porque seu ponto de vista implica o
engajamento de toda a redação do jornal” (p.235). O cronista, por sua vez,
além de dispor de um arsenal temático diversificado, pode “dar livre curso aos
seus próprios sentimentos, sua própria emoção, seus próprios julgamentos,
sem que isso constitua uma falta, pois nesse modo de enunciação a regra é a
subjetividade” (pp.235-236).
37
Como se vê, no caso de um gênero do discurso com um apelo subjetivo
extremamente marcado, como é o caso da crônica jornalística, não é possível
abstrair dela traços distintivos, senão pela relação que se estabelece: entre o
sujeito falante e seu dizer – uma relação de ampla liberdade para se expressar;
e entre os sujeitos que participam da mise en scène do ato de linguagem –
uma relação de familiaridade e de cumplicidade entre enunciador e co-
enunciador.
2.4 A Intertextualidade
Atualmente, há um consenso ao se admitir que todo texto mantém uma
relação de diálogo com outros textos. Assim, é fato a inexistência de um texto
autônomo, isolado e, portanto, livre de aspectos intertextuais. Essa perspectiva
está alinhada com uma noção de sujeito como ser que se desdobra em muitos,
assumindo diferentes posições e vozes no discurso. Tal concepção, que se
opõe à ideia de unicidade do sujeito, está ancorada no conceito de polifonia de
Bakhtin, para quem toda produção discursiva é fruto da relação dialógica entre
um enunciado efetivamente produzido e discursos outros.
A noção de intertextualidade situa-se na intersecção das teorias do texto
e do discurso, ligando-se a elas por semelhanças conceituais. Devem-se
ressaltar, nesse sentido, as contribuições de Ducrot e seus seguidores, com a
teoria polifônica da enunciação, bem como as análises de Authier-Revuz sobre
a heterogeneidade constitutiva. É possível afirmar ainda que o conceito de
interdiscurso, defendido pela Análise do Discurso de linha francesa, iniciada
por Pêucheux, também tem influência nessa lista de terminologias. O certo é
que, no fundo, todas essas distintas perspectivas teóricas, por vezes
concebidas como um mesmo fenômeno, buscam um “fora do texto” ou um “já
dito” que explique o fenômeno das relações entre diferentes enunciados.
É válido esclarecer, porém, que embora haja alguma relação entre essas
noções, todas elas são definidas a partir de quadros teóricos e de métodos de
análise distintos.
38
Postulada por Bakhtin, em seus estudos dedicados à análise da obra de
Dostoiévski, a polifonia é por ele definida como um “carnaval” ou “multiplicidade
de vozes” em interação no romance; vozes que, grosso modo, correspondem
aos próprios personagens, instituídos como sujeitos do discurso (cf. BAKHTIN,
2002).
A partir do postulado bakhtiniano, Ducrot (1987) elabora sua teoria
polifônica. Ele próprio afirma que se trata de “uma extensão (bastante livre) à
linguística dos trabalhos de Bakhtin sobre a literatura” (op. cit., p.163). Ducrot
propõe que todo enunciado comporta mais de um enunciador, cada qual
representando uma perspectiva ou ponto de vista diferente, sendo um deles
sempre correspondente à voz do locutor.
Assim, para Ducrot, um enunciado seria constituído de, pelo menos, um
enunciador E1 e um enunciador E2, sendo este portador da voz do locutor L.
No enunciado “Jorge não escreve bem”, dito por L, da perspectiva de E2, está
pressuposto um enunciador E1 que diz: “Jorge escreve bem”.
A propósito do conceito de heterogeneidade enunciativa, amplamente
recorrente nas pesquisas de Authier-Revuz (1982; 1990), vale mencionar seu
estudo sobre as formas de manifestação da heterogeneidade mostrada. Nele,
são descritas as formas linguísticas, marcadas e não marcadas, “de
representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a
heterogeneidade constitutiva do seu discurso” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.26).
Com esse procedimento, a autora se debruça sobre os elementos da
língua que indicam a inscrição do outro nos discursos. Necessariamente, sua
pesquisa contempla a análise e a descrição do discurso direto, indireto, das
aspas, das glosas, do discurso indireto livre, e de outros mecanismos da
linguagem. Também inspirada no modelo bakhtiniano, Authier-Revuz (1990,
p.27) assevera: “nenhuma palavra é „neutra‟, mas inevitavelmente „carregada‟,
„ocupada‟, „habitada‟, „atravessada‟ pelos discursos nos quais viveu sua
existência socialmente sustentada”.
A noção de intertextualidade foi introduzida na década de 60, no interior
da Crítica Literária, por Julia Kristeva (1974; 1974a). A partir do princípio
dialógico de Bakhtin, essa estudiosa propõe que cada evento discursivo se
39
constitui como intertexto uma vez que resulta de uma atitude responsiva –
resultado, resposta ou eco – a textos anteriores e, ao mesmo tempo, supõe-se
como parte da cadeia discursiva que motivará a existência de textos
posteriormente escritos.
No âmbito dos estudos textuais, a intertextualidade é elencada como um
critério de textualidade, tendo em vista, segundo Koch (2008, p.60),
parafraseando Beaugrand & Dressler, que esse fenômeno “diz respeito aos
modos como a produção e recepção de um texto dependem do conhecimento
que se tenha de outros textos com os quais ele, de alguma forma, se
relaciona”. Em seu Dicionário de Análise do Discurso, Charaudeau e
Maingueneau (2004, p.288) afirmam ser a intertextualidade uma “propriedade
constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas
que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos”.
Tais afirmações evidenciam que a presença de um “outro” no discurso do “eu”
é uma das razões de existência de qualquer texto, o que legitima a natureza
dialógica da linguagem.
Ao abordar o tema da intertextualidade em um trabalho de corpus e
objeto bem definidos, é necessário esclarecer a que formas de
intertextualidade se reporta o fenômeno analisado. Para tanto, é necessário
recorrer à literatura sobre o tema para se conhecer as categorias e os modos
de manifestação da intertextualidade.
Koch (2004) e Koch et al. (2008) distinguem intertextualidade em sentido
amplo e em sentido restrito. Explicam essas autoras que a intertextualidade em
sentido amplo é uma condição de existência do próprio discurso, e se aproxima
muito do que a Análise do Discurso concebe como interdiscursividade ou do
conceito de heterogeneidade constitutiva, postulado por Authier-Revuz, ou
ainda, mais remotamente, do conhecido dialogismo bakhtiniano.
A intertextualidade em sentido restrito refere-se, acompanhando Koch et
al. (op. cit.), à relação de um texto com outros textos previamente existentes,
isto é, efetivamente produzidos. Neste caso, as marcas dessa relação são
reveladas linguisticamente. Entre as modalidades do fenômeno intertextual em
sentido restrito – stricto sensu –, as autoras mencionam a distinção entre
40
intertextualidade explícita e implícita. Atribuem à primeira os casos em que
ocorre citação da fonte do intertexto, tal como ocorre no discurso relatado. Já a
intertextualidade implícita acontece “sem citação expressa da fonte, cabendo
ao interlocutor recuperá-la na memória para construir o sentido do texto” (op.
cit., p.63). As formas explícitas e implícitas de intertextualidade
corresponderiam, no conhecido modelo de Authier-Revuz, às configurações
marcadas e não-marcadas de heterogeneidade mostrada.
Nesta pesquisa, os casos de intertextualidade focalizados são da ordem
do implícito, uma vez que são caracterizados pela inexistência de marcas de
heterogeneidade expressas graficamente ou mesmo menção de autoria. É
como ilustram os fragmentos a seguir, extraídos do corpus, cujos grifos em
negrito aparecem apenas nas transcrições:
1. “[...] Cresce a economia, encolhe a respeitabilidade; pisca uma
luzinha de esperança, mas a seriedade extraviou-se. Poucos andam à
sua procura. Aumenta o isolamento dos homens e mulheres públicos
respeitáveis, que mais parecem dinossauros sobreviventes de um tempo
em que seria totalmente impensável o que hoje é pão nosso de cada
dia [...]” (Não vou pra Pasárgada – 04-07-2007).
2. “[...] Menina de cidade do interior, só conheci a maravilhosa cultura
oriental muitos anos depois.
Adulta, descobri que a vida tem outros poços, nem todos divertidos. Um
deles agora se afunda como se não tivesse chão: o poço dos
escândalos nossos de cada dia, o poço da nossa desolação e dos
nossos enganos. Percebo que, a pior das situações, raras pessoas
ainda se dão ao trabalho de se preocupar de verdade [...]” (O instinto
animal – 18-07-2012).
3. “[...] por que algumas figuras até agora respeitadas no cenário público
parecem não ter vontade de ver desvendado logo esse segredo,
certamente velho conhecido de alguns iniciados?
41
Mais do que intrigante, é um pouco assustador ver que alguns dos
acusados, talvez culpados, de qualquer forma os mais atingidos, em
lugar de abrir o cofre da verdade para mostrar sua inocência, tudo fazem
para que as chaves sejam jogadas no mar do ignorado. Ainda por
cima, erguem a marola das contra-acusações e das jogadas nem
sempre leais, para perturbar o bom andamento das coisas [...]” (Quem,
por quê? – 16-11-2005)
4. “[...] tudo é uma construção: a vida pessoal, a profissão, os ganhos,
as relações de amor e amizade, a família, a velhice (naturalmente tudo
isso sujeito a fatalidades como doença e outras, que ninguém controla).
Mas, mesmo em tempos de fatalidade, ter um pouco de economia, ter
uma casinha, ter um diploma, ter objetivos certamente ajuda a enfrentar
seja o que for. Podemos ser derrotados, mas não estaremos jogados na
cova dos leões do destino, totalmente desarmados. [...]” (Degraus da
ilusão – 06-06-2012).
Estabelecida a primeira distinção, entre intertextualidade explícita e
implícita, vale registrar uma segunda classificação, segundo a qual o fenômeno
intertextual pode ocorrer:
i) pelas semelhanças do enunciado-fonte com o enunciado produzido,
caracterizando o que Grésillon e Maingueneau (1984) chamam de captação; ou
ii) por meio de paródias e outros recursos de retextualização do enunciado-
fonte, resultando, na terminologia de Grésillon e Maingueneau (op. cit.), em
uma intertextualidade com valor de subversão.
Essas duas tipologias serão adotadas na análise do corpus em apreço
nesta pesquisa, sob as terminologias captação e subversão, por julgar-se que
traduzem, em certos termos, parte dos casos de intertextualidade identificados
nas crônicas constantes do corpus.
42
Pode-se, porém, em outros casos, não coincidir exatamente com o que
os teóricos mencionados classificam como sendo uma ocorrência de captação
ou de subversão, sobretudo porque a classificação adotada por Koch et al.
(2008), de empréstimo de Grésillon e Maingueneau (1984), foi pensada por
conta da função argumentativa que o recurso à intertextualidade pode
desempenhar.
Os dados desta pesquisa, porém, revelam outros propósitos
comunicativos, especificamente determinados por meio do recurso ao intertexto
bíblico nas crônicas de Lya Luft. Saliente-se que o que se focaliza aqui é a
construção de um ethos cristão expresso por intermédio dos referidos índices
de intertextualidade que remetem ao discurso bíblico.
Nos fragmentos (1), (2) e (3), anteriormente transcritos, é possível
observar o comportamento do fenômeno intertextual, conforme ocorram com
valor de captação ou de subversão, sendo que:
o exemplo (1) apresenta uma ocorrência de intertextualidade com valor
de captação, uma vez que menciona fielmente uma famosa expressão
do texto bíblico, pão nosso de cada dia, um dos versos da bem
conhecida oração do Pai Nosso, a qual Jesus Cristo ensina em seu
Sermão do Monte, conforme registram o capítulo 6 do evangelho de
Mateus (cf. Bíblia de estudo NVI, op. cit., pp.1626-1627) e o capítulo 11
do evangelho de Lucas (p.1750).
Os exemplos (2) e (3), por sua vez, ilustram casos de intertextualidade
com valor de subversão. Pela análise de cada um, observa-se que:
no exemplo (2), o texto original (outrora reproduzido pela cronista,
conforme ilustra o exemplo 1), extraído da oração do Pai Nosso, “o pão
nosso de cada dia”, dá origem, na referida enunciação, à expressão os
escândalos nossos de cada dia, a qual,aliás, sugere uma conotação
negativa, em oposição ao sentido de esperança e fé que o verso bíblico
(original) produz;
43
no exemplo (3), o texto original é extraído da passagem bíblica
encontrada no Livro de Miquéias, capítulo 7, versículo 19, em que o
profeta, dirigindo-se a Deus, assevera: “[...] pisarás as nossas maldades
e atirarás todos os nossos pecados nas profundezas do mar” (Bíblia de
estudo NVI, 2003, p.1547). Em uma versão mais tradicional da Bíblia
Sagrada, no idioma inglês, o trecho nas profundezas do mar traduz-se
por into the sea of forgetfulness, o que, em português, resultaria
literalmente em no mar do esquecimento. Essa transposição explica o
intertexto por subversão: “para que as chaves sejam jogadas no mar
do ignorado”, na crônica de Lya Luft.
Em seu trabalho, Koch et al. (2008) retomam, entre outros, os estudos
de Gérard Genette, contemplados em sua obra Palimpsestes (GENETTE,
1982), na qual propõe certas tipologias de uma intertextualidade restrita; e os
de Piègay-Gros, autora que redimensiona a proposta de Genette a fim de
aplicá-la ao estudo dos gêneros literários.
Com o olhar sobre a obra de Genette, Koch et al. (op. cit.) observam que
o autor estabelece, em princípio, que sua “intertextualidade restrita”
compreende as relações de co-presença efetiva entre textos, e sugere a
distinção estabelecida pelas autoras, entre intertextualidade explícita e
implícita, porém com uma subdivisão particular. Os casos de explicitude
abarcam a tipologia da citação marcada com alguma indicação tipográfica,
como o uso de aspas. Este é, pois, o tipo de intertextualidade concebida por
Genette como sendo de natureza explícita.
No plano da intertextualidade implícita, as autoras mencionam que
Genette a subdivide em: citação sem indicação de autoria ou marcas
tipográficas, alusão e plágio.
Destaque-se que a tipologia da alusão é particularmente essencial para
a presente pesquisa, tendo em vista que ela será a terceira categoria
intertextual elencada para a classificação das ocorrências verificadas no corpus
em análise, juntamente com as categorias de captação e subversão ora
mencionadas.
44
Por isso, é conveniente concentrar-se, acompanhando Koch et al. (op.
cit.), no que propõe Genette, para quem, no dizer das autoras, a alusão ocorre
“quando um enunciado supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro
ao qual remete tal ou tal de suas inflexões, que só são reconhecíveis para
quem tem conhecimento do texto-fonte” (KOCH et al., op. cit., p.123).
Na sequência, as autoras destacam que, na rediscussão proposta por
Piègay-Gros, esta autora se apoia no modelo de Genette e acrescenta, entre
os casos de intertextualidade explícita, o que chama de referência, e explicam
que “para Piègay-Gros, a referência (assim como a citação) remete o leitor a
um outro texto, embora não o cite literalmente” (KOCH et al., op. cit., p.125).
Entendendo que esta tipologia da referência mostra-se um tanto
imprecisa na definição de Piègay-Gros, Koch et al. (op. cit.), argumentam:
Mas perguntamos, se „não cita literalmente‟, não se poderia perfeitamente classificá-la como um caso de alusão, que se caracteriza naturalmente pela implicitude de sua referência? Se assim o for, a distinção entre a alusão (que é implícita) e referência (que é explícita) pode cair por terra. Por isso, sugerimos que, para manter a referência como um tipo de intertextualidade explícita de co-presença, é mais coerente considerá-la como uma remissão direta ou ao próprio texto como um todo (KOCH et al., op. cit., p.125).
A fim de estabelecer uma distinção funcional entre a citação, a
referência e a alusão, as autoras supracitadas estabelecem uma espécie de
escalonamento, em que situam a citação “no ponto mais alto de uma escala de
explicitude”, pois “por meio de códigos tipográficos, ela torna visível a inserção
de um texto em outro”, configurando-se como o tipo mais emblemático de
intertextualidade. A referência, por sua vez, se encontra em um nível
intermediário de explicitude, por não se realizar por meio de índices
tipográficos, requerendo “do co-enunciador um conhecimento prévio do texto a
que pertence”.
A modalidade da alusão se localiza no nível mais inferior da escala,
configurando-se, no dizer das autoras, como uma tentativa de implicitude. Elas
explicam que
(...) na alusão, não se convocam literalmente as palavras nem as entidades de um texto, porque se cogita que o co-enunciador possa compreender nas
45
entrelinhas o que o enunciador deseja sugerir-lhe sem expressar diretamente” (KOCH et al., op. cit., p.127).
Registra-se, ainda, que o que se consideram como eventos alusivos são
ocasiões em que “um co-enunciador não domina inteiramente as informações
requeridas para se reconhecerem os sinais intertextuais”, conforme explicam
Koch et al. (2008). As autoras complementam, destacando que a falta desse
domínio ao co-enunciador não descaracteriza o fenômeno intertextual:
Embora admitamos, com Sant‟Anna (1988), que os casos de intertextualidade exijam uma memória cultural e que só um leitor mais informado os percebe, diremos que a compreensão depende, obviamente, do co-enunciador, mas não o processo intertextual em si, que não se aborta por isso, pois ganha autonomia ao vir ao mundo” (KOCH et al., op. cit., p.128).
A despeito de entender-se que Koch et al. (op. cit.) buscam um
consenso entre as várias definições de tipologias intertextuais abordadas em
sua obra, elas apontam para as incertezas existentes no campo da
intertextualidade em sentido restrito. Alertam para uma certa imprecisão na
distinção entre intertextualidade implícita e explícita operada por Genette e
acreditam que Piègay-Gros, ao adotar tal distinção, “incorre no mesmo
equívoco que Authier-Revuz comete ao dividir a heterogeneidade mostrada
em marcada e não-marcada” (p.130).
Diante desse quadro um tanto fluido, as autoras propõem um ponto de
vista que consideram ser mais equilibrado: “seria mais adequado considerar
variados graus de explicitude, evitando, assim, atribuir a marcação de
explicitude apenas àquelas classicamente reconhecidas” (KOCH et al., op. cit.,
p.130).
O exemplo (4) foi propositalmente deixado por último para que se ilustre
uma terceira tipologia, no que tange às categorias intertextuais. Além das
formas com valor de captação e de subversão, serão considerados exemplares
de intertextualidade por alusão, sequências textuais, pequenas construções
nominais ou vocábulos isolados, que, sem estabelecerem um paralelismo
formal exato com alguma passagem da Bíblia Sagrada, constituem elementos
intertextuais ainda menos explícitos. É o que ocorre em (4), uma vez que:
46
a expressão cova dos leões marca uma alusão ao capítulo 6 do livro do
profeta Daniel (Bíblia de estudo NVI, 2003, pp.1465-1466), quando o
mesmo profeta, por não deixar de orar ao Senhor Deus, mesmo quando
isso lhe fora proibido por um decreto, foi atirado junto aos leões, por
ordem do rei Dario;
De acordo com o critério da escala de explicitude, sugerido por Koch et
al. (2008), serão adotadas aqui três terminologias para classificar os tipos de
intertextualidade identificados no corpus, procedimento que visa a tornar as
análises mais operacionais. Assim, retomando os exemplos dados, considerar-
se-á que, no interior de uma intertextualidade implícita, pensando-se, portanto,
em termos de graus de implicitude, e não de explicitude, como sugerem Koch
et al. (op. cit.):
os casos de intertextualidade com valor de captação situam-se em
um nível menos elevado (pouco profundo) de implicitude, por
corresponderem a menções (quase) fiéis do texto-origem, conforme
ilustra o exemplo (1);
os casos de intertextualidade com valor de subversão situam-se em
um nível intermediário de implicitude, pois requerem um esforço
maior para serem recuperados na memória discursiva do co-
enunciador, como ocorre nos exemplos (2) e (3);
os casos de intertextualidade por alusão situam-se no nível mais
elevado (mais profundo) da escala de implicitude, por serem, muitas
vezes, (quase) impossíveis de serem recuperados na memória do
co-enunciador, de acordo como ilustrado em (4).
Saliente-se, então, que no capítulo destinado às análises, serão estas as
três tipologias aplicadas para a classificação das ocorrências de intertexto
bíblico identificadas nas crônicas em apreço.
47
Uma particularidade das ocorrências de intertexto bíblico reside na
autoridade indiscutível da voz de um hiperenunciador, que garante a “validade”
do enunciado e “sua adequação aos valores, aos fundamentos de uma
coletividade” (MAINGUENEAU, 2005a, p.78). O hiperenunciador manifesta-se,
então, com uma voz de autoridade, como o argumento irrefutável de uma
enunciação. Nos sermões religiosos de linhagem cristã, a presença do
hiperenunciador é, por excelência, bastante evidente, já que sua voz se faz
ouvir pela leitura da Palavra (a Bíblia), que fundamenta toda a comunicação do
pregador.
É certo, porém, que Lya Luft, ao recorrer ao intertexto bíblico, não tenha
a preocupação de evocar esse hiperenunciador para dar razão ao seu
discurso. É, contudo, inevitável não admitir sua presença nos exemplos dados,
mesmo quando nas ocorrências de subversão, pois aplicando a teoria
polifônica de Ducrot (1987) nesses casos, observa-se, paralelamente ao
enunciado reformulado E2, a presença de um enunciador E1, que
corresponderá sempre ao hiperenunciador.
Quanto ao co-enunciador, por serem os desvios do texto original
intencionalmente produzidos, é certo que a cronista conta com sua
competência de leitura para reconhecer essa fonte e para compreender seu
novo uso ao ser adaptado. Isso leva a crer que o “público invisível e
desconhecido” a quem o enunciador se dirige é visível ao menos para ele, não
no sentido da materialidade corpórea do auditório, obviamente, mas por ele
supor e crer que um mínimo de conhecimentos é partilhado entre ele e esse
“auditório”. Dessa forma, pode-se dizer que o enunciador prevê o co-
enunciador, também co-produtor do texto.
Outra observação relevante é que as escolhas operadas pela cronista,
ao retextualizar os fragmentos bíblicos, reconstruindo-os, nunca são aleatórias.
Trata-se, na verdade, de estratégias semântico-discursivas coerentes, que
propiciam o fluir do texto de acordo com o estilo da autora, com seus
propósitos comunicativos e com o universo de saberes partilhados.
Para compreender essa constatação, é preciso não apenas supor a
comunhão de conhecimentos entre enunciador e co-enunciador, mas também
48
recorrer ao contexto linguístico (cotexto). Somente assim é legítimo, por
exemplo, interpretar o segmento “tudo fazem para que as chaves sejam
jogadas no mar do ignorado” como uma reiteração, de natureza metafórica, de
“parecem não ter vontade de ver desvendado logo esse segredo”, no parágrafo
anterior, em (3).
Enfim, dadas as perspectivas revisadas nesta seção, é possível formular
aquela que será levada em conta como método analítico nesta pesquisa. Na
verdade, o que se apresenta é uma tomada de posição construída a partir de
alguns conceitos que foram revisitados:
os casos de intertexto bíblico em foco na análise das crônicas de Lya Luft
serão distribuídos em três modalidades, conforme o grau de implicitude
verificado em cada um. São elas: intertextualidade com valor de captação,
intertextualidade com valor de subversão e intertextualidade por alusão;
as ocorrências do fenômeno intertextual serão também discutidas nos
termos da teoria polifônica (DUCROT, 1987), sendo que particularmente
os casos de intertextualidade por subversão serão submetidos à análise
de distribuição das vozes dos sujeitos – instâncias enunciativas –
envolvidos;
Além desses critérios, serão ainda identificadas certas operações de
retextualização, examinadas por Frasson (1991), rediscutidas por Koch et al.
(2008), e que, como se verá, são aplicáveis também aos dados apreciados
nesta pesquisa. A seguir, observe-se as quatro modalidades de retextualização
que as autoras registram juntamente com alguns de seus exemplos transcritos:
1) substituição
a) de fonemas:
E1: “Penso, logo existo”
E2: “Penso, logo hesito.” (Luiz Fernando Veríssimo, no conto
“Mínimas”)
49
b) de palavras:
E1: “Quem espera sempre alcança.”
E2: “Quem espera nunca alcança.” (Chico Buarque, na composição
“Bom Conselho”)
2) Acréscimo
a) de formulação adversativa:
E1: “O amor é cego.”
E2: “O amor é cego. Mas tem o olfato superdesenvolvido.”
(Publicidade da Acqua de Fiori)
b) outros tipos de acréscimo:
E1: “A preguiça é a mãe de todos os males.”
E2: “A preguiça é a mãe de todos os males que não requerem muito
esforço” (L. F. Veríssimo, “Todo o Mal”, Veja, 22/07/1987)
c) por inversão da polaridade afirmação/negação:
E1: “Devagar se vai ao longe.”
E2: “Devagar é que não se vai ao longe” (C. Buarque, na composição
“Bom Conselho”)
3) Supressão
E1: “O que os olhos não veem, o coração não sente.”
E2: “O que os olhos veem o coração sente” (Veja, suplemento
publicitário de Brinquedos Estrela)
4) Transposição
50
E1: “Pense duas vezes antes de agir.”
E2: “Aja duas vezes antes de pensar” (C. Buarque, na composição
“Bom Conselho”) (C. Buarque, na composição “Bom Conselho”)
Os exemplos não apenas ilustram as operações de retextualização
mencionadas, mas também constituem demonstrações de como a teoria
polifônica da enunciação se aplica a certos casos de subversão de um texto-
fonte.
Esse modelo de análise será adotado também aqui nesta pesquisa, uma
vez que é perfeitamente aplicável aos casos de subversão identificados no
corpus. O tratamento oferecido aos dados encontrados será mais bem
detalhado no capítulo 3, que trata da metodologia a ser empregada nas
análises.
Na próxima seção, a noção de ethos é revisitada a fim de se
compreender de que maneira o fenômeno intertextual focalizado se configura
linguisticamente como projeção de uma imagem de si no discurso das crônicas.
No caso específico desta pesquisa, acredita-se que o discurso bíblico avaliza a
construção de um ethos cristão nas crônicas de Lya Luft, hipótese que introduz
a investigação.
2.5 O Conceito de Ethos
Diversos são os estudiosos que, desde tempos remotos, se interessam
pelos fenômenos relacionados à representação do “eu” no discurso, tais como
as emoções e a argumentação. Esses estudos se estendem desde Aristóteles
até um setor específico das ciências humanas contemporâneas, que é aquele
que tem como objeto a língua e as problemáticas discursivas envolvidas no seu
funcionamento.
Assim, antes de se proceder a uma revisão do conceito de ethos
discursivo, é válido antecipar uma “distinção” entre a concepção aristotélica e a
concepção adotada pela análise do discurso. Essa distinção, porém, não é
51
caracterizada por força de oposição, mas pelo alargamento teórico-
metodológico de uma em relação à outra.
2.5.1 Ethos aristotélico
Dentre as definições mais primitivas sobre ethos, a que repercute com
maior solidez nos estudos atuais sobre a atividade discursiva pode ser
identificada na Retórica, de Aristóteles. Nela, o ethos aparece junto ao logos e
ao pathos, formando a tríade dos elementos de prova que se pode conceber
pelo discurso. O logos se refere à própria argumentação, constituída por
argumentos verdadeiros ou prováveis; o pathos reúne os meios de persuasão
derivados das emoções (paixões) despertadas nos ouvintes (auditório) pelo
orador; e o ethos estaria ligado a aspectos morais ou éticos que o enunciador
confere a si por meio de seu modo de se expressar.
No dizer de Eggs (2005, p.29), Aristóteles, por julgar o ethos como a
mais importante das três provas engendradas pelo discurso, distancia-se “dos
retóricos de sua época, que entendiam que o ethos não contribui para a
persuasão”. Para estes, o ethos seria algo preexistente ao discurso, uma vez
que para aparentar virtuosidades, deve-se, inevitavelmente, ser virtuoso.
Para Aristóteles, bem como para seus adeptos, o ethos é construído
quando o orador busca projetar em seu discurso um caráter digno da obtenção
de adesão de um auditório. Conforme o pensador explica,
Persuade-se pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas, em todas as coisas em geral, mas sobretudo nas de que não há conhecimento exato e que deixam margem para dúvida. É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o caráter do orador [...] (ARISTÓTELES, 2012, 1356a p.13).
Nessa visão, pois, não é importante, para um auditório, que um orador
esteja sendo sincero em seu discurso. Não importa se a imagem de si
projetada pelo dizer de um orador corresponda à realidade de seu caráter.
Logra-se êxito quando esse sujeito imprime as virtudes de seu caráter no
52
discurso, e, neste caso, o que conta não é a verdade em si, mas a aparência
de verdade – verossimilhança – construída no discurso.
É importante registrar que a definição de ethos desenhada por
Aristóteles fundamenta-se nas modalidades de discurso oral, de teor,
necessariamente, argumentativo, no âmbito, por exemplo, das esferas
filosófica, política e religiosa. Conforme se verá nos parágrafos a seguir, a
análise do discurso contemporânea reafirma o conceito aristotélico de ethos
partindo de, pelo menos, dois pressupostos gerais: 1) o de que o ethos é um
construto comum a todo o ato de linguagem, seja na modalidade oral, seja na
escrita; e 2) o de que, no rastro teórico deixado por Aristóteles, o ethos é um
fenômeno indissociável do ato de enunciação.
2.5.2 Ethos discursivo
Nas últimas décadas, um grupo de estudiosos em análise do discurso
vem desenvolvendo uma abordagem sobre o ethos iniciada por Aristóteles e,
agora, ampliada em alguns pontos. As contribuições mais relevantes podem
ser encontradas nos trabalhos de Maingueneau (1997; 2005b; 2008a) e Ducrot
(1987), além da obra organizada por Amossy (2005) e de um rico capítulo
sobre ethos constante do trabalho de Charaudeau (2011).
Embora esse conceito tenha raízes na tradição retórica, a sua difusão
nas ciências da linguagem, nas últimas décadas, é fruto da constatação de que
o ethos é um aspecto indissociável da enunciação. A esse respeito,
Maingueneau (2008a, p.11) afirma que “o reaparecimento dessa noção não se
deu, de saída, dentro do quadro da retórica, mas, sobretudo, por meio das
problemáticas relativas aos discursos”.11
De fato, enquanto a tradição aristotélica define ethos como uma projeção
intencional das qualificações morais do locutor através de seu discurso, com
11
Isso não significa, no entanto, que o posicionamento da retórica e o da análise discursivo-enunciativa sejam opostos entre si. Trata-se, em verdade, de um alargamento, uma extensão do emprego do conceito de ethos às análises discursivas de forma geral, e não apenas aos discursos tradicionalmente
argumentativos. A própria noção de “credibilidade” do sujeito, cara à concepção aristotélica, é conceito basilar no programa teórico de Charaudeau e de outros estudiosos. Por essas razões, o ethos pode ser definido, de forma simplificada e genérica, como a imagem de si construída no (e pelo) discurso.
53
evidência em sua capacidade de transmitir credibilidade pela persuasão do
alocutário, os estudos discursivos atuais partem do pressuposto relativamente
consensual de que
(...) toda fala implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu retrato, detalhe suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si próprio. Seu estilo, suas competência de linguagem e enciclopédicas, suas crenças implícitas bastam para dar uma representação de sua pessoa. Deliberadamente ou não, o locutor efetua assim no seu discurso uma apresentação de si (AMOSSY, 2005, p.09).
Um importante aspecto da apreensão discursiva do ethos é que, embora
as teorias mais atuais concebam um sujeito intencional, no que concerne ao
seu projeto de fala, a imagem que o locutor apresenta de si nem sempre é
deliberada, podendo, na maioria dos casos, ser inconsciente. Isso porque essa
imagem de si não é produzida pela fala de um sujeito efetivo, mas pelo
discurso de um sujeito enunciador que mostra e não necessariamente diz, o
que leva Maingueneau (2008a, p.13) a considerar que “a eficácia do ethos
reside no fato de ele se imiscuir em qualquer enunciação sem ser
explicitamente enunciado”.
O interesse das ciências da linguagem pela noção de ethos é observado
primeiramente em Ducrot (1987), em sua teoria polifônica da enunciação,
proposta no quadro mais amplo de uma pragmática linguística. Ao postular que
uma multiplicidade de vozes emerge de um único enunciado, Ducrot avalia que
a figura do locutor se desmembra em duas instâncias distintas, que são o
locutor enquanto ser do discurso (L) e o locutor enquanto ser do mundo (λ). Em
pragmática, essas instâncias correspondem respectivamente aos registros do
mostrado e do dito, e para corroborar a ideia acerca da primazia do primeiro
sobre o segundo, no que se refere ao ethos, é válido atentar-se à seguinte
passagem de Ducrot (op. cit., p.189):
Na minha terminologia, direi que o ethos está ligado a L, o locutor enquanto tal: é enquanto fonte de enunciação que ele se vê dotado de certos caracteres que, por contraponto, tornam essa enunciação aceitável ou desagradável. O que o orador poderia dizer de si, enquanto objeto da enunciação, diz, em contrapartida, respeito a λ, o ser do mundo, e não é este que está em questão na parte da retórica de que falo (...).
54
Maingueneau (2005b) chama a atenção para a natureza do enunciador –
ser do discurso –, o qual ele considera como uma “instância subjetiva
encarnada que exerce o papel de fiador” (p.72). A subjetividade, vale dizer, não
corresponde ao ethos; porém, as marcas de subjetividade, ou seja, as escolhas
formais e o estilo que denunciam a intervenção do enunciador, é que se
configuram como a matéria de construção do ethos. Por essas escolhas, o
enunciador, intencionalmente ou não, se mostra em seu discurso.
É preciso ressaltar a relevância do papel do interlocutor na construção
do ethos. No caso dos textos escritos, a participação do leitor nessa construção
requer um forçoso trabalho de elaboração mental, que é operada a partir dos
índices linguísticos de subjetividade. Esse interlocutor, no entanto, pensado
como público (auditório), nem sempre depende da matéria textual para levantar
hipóteses sobre o ethos do enunciador. Ele pode fazê-lo antes mesmo que o
enunciador se manifeste pela palavra.
Essa representação antecipada do locutor é garantida, segundo
Maingueneau (op. cit.), por um caráter, que corresponde a um conjunto de
traços psicológicos; e, sobretudo, por uma corporalidade relativa “a uma forma
de vestir-se e de mover-se no espaço social”. A exposição social supõe, como
consequência, a construção de um ethos “prévio” ou “pré-discursivo”, dada a
inevitável inclinação dos meios sociais para a criação de estereótipos. O ethos
pré-discursivo se baseia exatamente na estereotipagem, que, como define
Amossy (2005, pp.125-126),
(...) é a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado. Assim, a comunidade avalia e percebe o indivíduo segundo um modelo pré-construído da categoria por ela difundida e no interior da qual ela o classifica. Se se tratar de uma personalidade conhecida, ele será percebido por meio da imagem pública forjada pelas mídias.
Neste caso, o que estaria em jogo seria o ethos de um locutor enquanto
ser do mundo enquanto sujeito social. Entende-se, porém, que assumir um
posicionamento que concebe o ethos apenas como algo preexistente ao
discurso resulta em priorizar, em uma análise ou leitura, os estereótipos
culturais em detrimento do que concerne à enunciação. Acompanhando a
55
postura assumida por Charaudeau (2011), acredita-se, aqui, que os dois
aspectos devem ser considerados, conforme explica o autor:
De fato, o ethos, enquanto imagem que se liga àquele que fala, não é uma propriedade exclusiva dele; ele é antes de tudo a imagem de que se transveste o interlocutor a partir daquilo que diz. O ethos relaciona-se ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê. Ora, para construir a imagem do sujeito que fala, esse outro se apoia ao mesmo tempo nos dados preexistentes ao discurso – o que ele sabe a priori do locutor – e nos dados trazidos pelo próprio ato de linguagem (CHARAUDEAU, op. cit., p.115).
Charaudeau justifica sua postura trazendo à baila um dos pressupostos
fulcrais de sua teoria segundo a qual o sujeito falante é dotado de uma dupla
identidade – uma social e outra discursiva – e, por isso, se desdobra em duas
instâncias:
um locutor, responsável pelo fazer comunicacional, representado por
EUc, cuja identidade social “lhe dá direito à palavra” e “funda sua
legitimidade de ser comunicante em função do estatuto e do papel que
lhe são atribuídos pela situação de comunicação” (op. cit.); e
um enunciador, instituído ser do dizer (discurso), representado por EUe,
cuja identidade discursiva corresponde a uma construção, operada pelo
sujeito, de “uma figura daquele que enuncia” (op. cit.), fruto das
restrições impostas pela situação de comunicação e das estratégias
possíveis ao sujeito falante.
Para Charaudeau, o ethos é o resultado da fusão da dupla identidade do
sujeito falante – uma identidade social de locutor e uma identidade discursiva
de enunciador – em apenas uma. Por esse motivo, afirma o autor, “o sentido
veiculado por nossas palavras depende ao mesmo tempo daquilo que somos e
daquilo que dizemos” (CHARAUDEAU, op. cit., p.115).
2.5.3 Ethé e procedimentos enunciativos
56
Na seção 2.3, em que foi apresentada, em linhas gerais, a teoria
semiolinguística do discurso, ficou esclarecido que, entre os quatro modos de
organização do discurso – enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo –,
o modo enunciativo exerce uma função particular. Acerca dessa categoria,
Charaudeau (2008, p.74) registra:
(...) Por um lado, sua vocação essencial é a de dar conta da posição do locutor com relação ao interlocutor, a si mesmo e aos outros – o que resulta na construção de um aparelho enunciativo; por outro lado, e em nome dessa mesma vocação, esse Modo intervém na encenação de cada um dos três outros Modos de organização. É por isso que se pode dizer que este Modo comanda os demais [...].
A depender da atitude enunciativa assumida pelo sujeito falante, o modo
enunciativo poderá exercer as funções de: estabelecer uma relação de
influência do locutor sobre o interlocutor, indicando um comportamento
alocutivo; expressar o ponto de vista do locutor, indicando um comportamento
elocutivo; revelar a relação do locutor com um terceiro, indicando um
comportamento delocutivo. Neste último caso, ressalta-se que o sujeito falante,
além de se apagar, numa aparente atitude de neutralidade, também não
implica seu interlocutor.
Serão retomadas, a seguir, as especificações enunciativas e as
categorias de língua que caracterizam cada uma das três funções do modo
enunciativo (cf. tabela – p. 25). O objetivo, aqui, é buscar associar a construção
do ethos a cada uma dessas funções.
A enunciação elocutiva
De acordo com Charaudeau (2011, p.68), a enunciação elocutiva
É expressa com a ajuda de pronomes pessoais de primeira pessoa acompanhados de verbos modais, de advérbios e de qualificativos que revelam a implicação do orador e descrevem seu ponto de vista pessoal: “eu contesto”, “eu estou certo de que juntos venceremos”, “nós somos capazes de modernizar nosso país”, “Eu decidi ser candidato”, “Eu confesso a vocês que [...]”, “Ao menos é a minha opinião”.
12
12
Grifos do autor.
57
A propósito do modo elocutivo, pode-se observar, por exemplo, que
enunciações marcadas pelo emprego do pronome “nós”/”a gente” podem estar
associadas à construção de um ethos de solidariedade do locutor, uma vez que
se mostra mais próximo de seu interlocutor.
A modalidade da confissão pode ser indício de um ethos de humildade e
de sinceridade, já que, neste caso, o locutor reconhece sua culpa ao revelar,
ao interlocutor, “um saber que o colocaria em causa” (CHARAUDEAU, 2008,
p.98).
As modalidades do saber e da convicção, por sua vez, podem auxiliar na
construção de um ethos de credibilidade. A depender do “tom” da afirmação e
da articulação de seu modo de falar, ao locutor pode ser atribuída uma imagem
daquele que é digno de crédito. Obviamente, isso também dependerá da
identidade social do sujeito falante, de uma imagem preexistente à enunciação.
A enunciação alocutiva
No caso do comportamento alocutivo, “o sujeito falante enuncia sua
posição em relação ao interlocutor no momento em que, com seu dizer, o
implica e lhe impõe um comportamento. Assim, o locutor age sobre o
interlocutor” (CHARAUDEAU, op. cit, p.82).
Nesse tipo de enunciação, o sujeito falante pode atribuir dois tipos
distintos de papéis linguageiros a si e ao seu interlocutor, indicando a posição
de cada um em uma situação de troca:
– O sujeito falante se enuncia em posição de superioridade em relação ao interlocutor, atribuindo a si papéis que impõem ao interlocutor a execução de uma ação (“fazer fazer” / “fazer dizer”). Essa imposição do locutor sobre o interlocutor estabelece entre ambos uma relação de força. É o caso das modalidades de “Injunção”, “Interpelação”, etc. – O sujeito falante se enuncia em posição de inferioridade em relação ao
interlocutor e assume papéis nos quais necessita do “saber” e do “poder fazer” do interlocutor. Produz-se uma “solicitação” do locutor ao interlocutor, o que estabelece entre ambos uma relação de petição. É o caso das modalidades de “Interrogação” e de “Petição” (CHARAUDEAU, op. cit.,
p.82).13
13
Grifos do autor.
58
No primeiro caso, em que o locutor assume posição de superioridade, é
possível evocar, pela modalidade de injunção um ethos de autoridade, uma vez
que esse locutor: enuncia “uma ação a realizar („a dizer‟ ou „a fazer‟)”; “impõe
essa ação ao interlocutor de maneira cominatória”, mandando, ordenando,
intimando; e “atribui a si um estatuto de poder”. Esse mesmo ethos pode ser
reconhecido quando do emprego da categoria de autorização. Neste caso, o
locutor, entre outros papéis, “julga que o interlocutor está apto a executar a
ação e que as circunstâncias são adequadas” (CHARAUDEAU, op. cit., p.82).
Já no segundo caso, em que o locutor se encontra em posição de
inferioridade, pode-se, por meio da modalidade de petição, evocar um ethos de
carência ou de humildade. Ocorre que o locutor, julgando-se “impotente para
melhorar a situação por si mesmo”, necessita da intervenção (ação) do
interlocutor para melhorar sua situação. Alguns exemplos de petições
sugeridos por Charaudeau (op. cit.) são: “Peço que você apóie minha
candidatura”; “Solicito providências urgentes”; “Imploro o perdão de Sua
Majestade”; “Você pode me ajudar”. As formas em negrito integram uma
espécie de “aparato modal” para os casos de petição.
A enunciação delocutiva
A enunciação delocutiva é caracterizada pelo apagamento do locutor e
pela não implicação do interlocutor, numa espécie de neutralização de qualquer
traço de subjetividade. Ocorre por meio do emprego de asserções ou quando
se recorre ao discurso relatado.
Neste último caso, pode-se pensar na construção de um ethos de
objetividade, o que irá depender do distanciamento do locutor nas hipóteses,
por exemplo: de um discurso citado, como em: “Ele disse: „meu carro está
quebrado‟”; ou de um discurso evocado, como é o caso das citações de
máximas e de provérbios, do tipo: “É como se diz: „quem ama o feio, bonito lhe
parece‟”.
Em linhas gerais, o que se viu nesta seção são alguns dos pressupostos
sobre o conceito de ethos discursivo. Para esta pesquisa, compreende-se que
59
o ethos é inscrito no próprio ato de enunciação ou, como afirma Charaudeau
(2011, p.114), “no próprio dizer do sujeito que fala”. Sabe-se, no entanto, que a
imagem de si construída por esse sujeito pode estar ligada, ao mesmo tempo,
à sua identidade social, isto é, a uma imagem de si construída previamente à
produção do ato de linguagem.
60
3 METODOLOGIA
O material de análise que constitui o corpus desta pesquisa é composto
por 53 crônicas da escritora Lya Luft, que tem seus textos publicados
quinzenalmente na revista Veja, um dos grandes periódicos semanais que
circulam no Brasil. Os textos foram selecionados dentre um total de 228
crônicas que foram publicadas entre os anos de 2005 e 2013. Em outras
palavras, desse montante de 228, 53 crônicas apresentaram índices de
intertexto bíblico.
As análises, conforme se antecipou na introdução, serão de caráter
qualitativo e quantitativo, visando a um melhor aproveitamento dos dados e a
garantir, de forma mais precisa, a confirmação das hipóteses levantadas.
A análise qualitativa atenderá a expectativa de se verificar o quão
relevantes são os dados, a saber, as marcas verbais de intertexto bíblico nas
crônicas. Nesta etapa das análises serão observadas e descritas:
a classificação mais pertinente a cada umas ocorrências, de acordo com
o critério da escala de implicitude. Assim, serão classificados: casos de
intertextualidade com valor de captação aqueles em que se observar
menor implicitude (aproximando-se da explicitude); casos de
intertextualidade com valor de subversão aqueles em que, por se
caracterizarem pela alteração proposital do texto-fonte, não gozam do
mesmo estatuto da captação, situando-se em um nível intermediário na
escala de implicitude; e casos de intertextualidade por alusão aqueles
com potencial para se camuflarem de tal modo no texto, que seja pouco
provável que o co-enunciador possa recuperá-los em sua memória
discursiva, situando-se, logo, no nível de maior implicitude.
a dinâmica polifônica – vozes de L, E1, E2 etc. – presente nas
sequências, expressões e/ou vocábulos intertextuais em foco, nos casos
de subversão, a fim de que se verifiquem as instâncias enunciativas
envolvidas. O enunciador E2 será aquele que altera/retextualiza o texto-
fonte, e com o qual o locutor (L) se identifica ao proceder à subversão,
61
ao passo que E1 corresponde à instância do hiperenunciador, a voz do
enunciado original – texto bíblico –, a partir do qual se operam as
retextualizações;
as operações de retextualização, estrategicamente empregadas, nos
casos de subversão, para se alterar a estrutura do enunciado original –
extraídos da Bíblia Sagrada –, resultando em uma nova forma e, como
consequência, em um novo sentido;
a participação das sequências, expressões e/ou vocábulos intertextuais
em foco na orientação argumentativa a que o texto pode direcionar o
leitor;
as estratégias de construção de sentido sugerida pelo emprego de cada
um dos referidos elementos, considerando-se que a atividade
interpretativa se fundamenta em possíveis interpretativos, os quais,
atrelados a determinadas crenças socioculturalmente partilhadas,
“constituem as representações linguageiras das experiências dos
indivíduos (...), enquanto sujeitos individuais e coletivos”
(CHARAUDEAU, 2008, p.63).
Ao final da seção que contempla a análise qualitativa, será apresentada
uma tabela contendo micro-análises de cada uma das ocorrências do
fenômeno intertextual, registradas nas 53 crônicas que constituem o corpus.
A análise quantitativa consistirá em examinar a proporção de
ocorrências de cada uma das categorias intertextuais verificadas, o que
permitirá identificar de modo mais pontual o ethos em estudo.
Na tabela a seguir, estão registradas as 53 crônicas que serão alvos das
análises:
Título Publicação
Notas sobre cinema 09-03-2005
Uma Páscoa particular 04-04-2005
Faxina nos mitos II 04-05-2005
O feio vício da inveja 1º-06-2005
62
Quero a pena de morte 15-06-2005
A revolução da decência 13-07-2005
Meu país é uma fênix 24-08-2005
Quem, por quê? 16-11-2005
Quanto nós merecemos 14-12-2005
Para onde estamos indo? 22-03-2006
Mulheres & poder 15-11-2006
Não vou pra Pasárgada 04-07-2007
Um grande lamento 1º-08-2007
Sobre o papel do pai 15-08-2007
Paisagem com problemas 07-11-2007
Sem retoque ou com retoque? 21-11-2007
Honrar pai e mãe 11-06-2008
A matança dos bebês 23-07-2008
As bolsas e as vidas 29-10-2008
Caipirinha chapa-branca 12-11-2008
Do horror brota a grandeza 10-12-2008
Acreditar no Natal 24-12-2008
As mortes poderiam ser evitadas 14-01-2009
Como administramos crises? 11-02-2009
No paraíso da transgressão 11-03-2009
Esse poço tem fundo? 06-05-2009
A sordidez humana 20-05-2009
É o fim do mundo 03-06-2009
Trilha de contradições 1º-07-2009
Educação e autoridade 23-09-2009
Contraponto: deixar desabrochar 07-10-2009
A gente decide 21-10-2009
A praga moderna 02-12-2009
Trabalhar e sofrer 20-01-2010
Alegres e ignorantes 03-03-2010
63
Mordaças e palmadas 04-08-2010
Plataforma contra as fomes 18-08-2010
Os dias depois 13-10-2010
A lei e a Justiça 19-01-2010
O inverno do nosso desalento 20-07-2011
A dor do mundo 03-08-2011
Drogas: o labirinto 28-09-2011
Baile de máscaras 07-12-2011
Pós-modernos de tacape 21-12-2011
Voz no deserto 28-03-2012
Degraus de ilusão 06-07-2012
O instinto animal 18-07-2012
Querendo que dê certo 29-08-2012
A formação de um povo 10-04-2013
Eu ia falar de flores 17-07-2013
O jeito brasileiro 31-07-2013
Eu pensava ter visto tudo 11-09-2013
Tomie Ohtake e a esperança 04-12-2014
Especificamente para a análise qualitativa, foram selecionadas as
crônicas:
Meu país é uma fênix
A matança dos bebês
A praga moderna
Voz no deserto
Os critérios para a seleção desses quatro textos foram: a possibilidade
de análises ricas em dados e em explicações; e a variedade do conjunto de
dados distribuídos nos quatro textos, o que possibilitou a observação dos
diferentes tipos de intertextualidade e de operações de retextualização (no
caso da intertextualidade com valor de subversão).
64
Conclui-se, assim, o percurso teórico-metodológico e abre-se, a seguir, o
capítulo destinado às análises das crônicas.
65
4. ANÁLISE DO CORPUS
4.1 O corpus sob uma perspectiva qualitativa
A partir das análises de quatro crônicas selecionadas, serão observados
e descritos os movimentos enunciativos que dão corpo ao fenômeno
intertextual. Pela teoria polifônica, será observado o jogo de vozes que envolve
a fusão da enunciação de E1 com o ponto de vista de E2, resultando na
enunciação do locutor (L). Paralelamente, as análises ainda deverão
contemplar as diferentes operações de retextualização empregadas pela
cronista. A orientação argumentativa (quando se fizer necessário) e as
estratégias de construção de sentido também são aspectos a serem avaliados.
Todos esses critérios deverão dar conta de relacionar o fenômeno
intertextual, enquanto estratégia textual-discursiva, à construção de uma
imagem de si, a fim de que se confirme a hipótese inicial desta pesquisa,
segundo a qual a ocorrência do intertexto bíblico nas crônicas de Lya Luft
expressa um ethos religioso cristão.
Em síntese, as análises deverão demonstrar que o ethos que esta
pesquisa se ocupa a investigar se constrói em torno do emprego de estratégias
de intertextualidade que atuam em vários níveis de implicitude, conforme
possam ocorrer com valor de captação, de subversão ou por alusão.
66
4.1.1 “Meu país é uma fênix”
67
A propósito do ethos religioso cristão, cuja construção será efetivamente
atestada pelas análises quantitativa e qualitativa, três ocorrências no texto o
ilustram pela evocação de três diferentes passagens bíblicas, todas registradas
no novo testamento.
A primeira ocorrência, um caso de intertextualidade com valor de
subversão, aparece no 5º parágrafo da crônica, numa clara remissão ao texto
situado na carta do apóstolo Paulo aos Romanos, capítulo 8, versículos 22 e
23. Assim, tem-se:
Na Bíblia Sagrada: “Sabemos que toda a natureza criada geme até
agora, como em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que
temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente,
esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do
nosso corpo” (Romanos 8:22,23; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1934).
Na crônica: “O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma
democracia menos infestada pela corrupção” (5º parágrafo).
No texto-fonte, o emprego metafórico da imagem de uma mulher em
dores de parto se justifica na expectativa ansiosa pela passagem de um
estágio de dor a um estágio de redenção. Ao operar a retextualização,14 a
cronista não chega a contradizer o texto fonte, mas se apropria da metáfora
para dar significado à expectativa do Brasil (ou do povo brasileiro), que sofre
com uma democracia corrupta e anseia “por uma democracia menos infestada
pela corrupção”.
Recorrendo aos conceitos esboçados na teoria polifônica da enunciação
(DUCROT, 1987), tem-se que o fenômeno intertextual emerge da fusão do
enunciado bíblico original (texto-fonte), expresso na voz do enunciador E1, com
o ponto de vista implícito do enunciador E2. O resultado é a enunciação
explicitada no texto, expressa na voz do locutor L. Aplicando, ainda, neste
exemplo, as operações de retextualização propostas por Frasson (1991) e
14
Os termos “retextualização” e “reenunciação” serão empregados invariavelmente nas análises, embora se saiba que, em situações específicas, como discussões teóricas, esse expediente pode não ser o mais adequado.
68
revisitadas por Koch, Bentes e Cavalcante (2008), verifica-se um misto de
ocorrências:
Operação: Substituição de palavras
E1 = (...) toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto.
E2 = O Brasil anseia por uma democracia com menos corrupção.
L = O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma democracia menos
infestada pela corrupção.
Operação: Acréscimo
E1 = (...) toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto.
E2 = O Brasil anseia por uma democracia com menos corrupção.
L = O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma democracia menos
infestada pela corrupção.
Operação: Supressão
E1 = (...) toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto.
E2 = O Brasil anseia por uma democracia com menos corrupção.
L = O Brasil geme Ø nas dores do parto de (esperemos) uma democracia
menos infestada pela corrupção.
No processo de reenunciação, o termo “toda a natureza criada” é
substituído por “O Brasil” para dar sequência à proposta de sentido pretendida
pela cronista, caracterizando a operação de substituição. A operação de
acréscimo se configura pela adição de um complemento – inexistente no texto
bíblico – ao substantivo “parto”, resultando em “parto de (esperemos) uma
democracia menos infestada pela corrupção”. Pela operação de supressão,
omite-se, na crônica, a locução adverbial “até agora”, que, na Bíblia, reforça a
ideia de ansiedade por redenção.
A propósito da orientação argumentativa, acredita-se que o recurso a
este intertexto introduz uma sequência com a qual a cronista busca
fundamentar a tese enunciada no quarto parágrafo da crônica. O enunciado em
69
foco atua, pois, como argumento favorável a esta tese, formando uma
sequência argumentativa:
Tese: “O pano de fundo de minhas frases acabaria sendo a teia de malfeitos
que de momento constrangem o meu país”.
Argumento: “O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma
democracia menos infestada pela corrupção”.
A articulação tese-argumento propõe que o povo brasileiro anseia por
uma diminuição – ou pelo fim – da corrupção, a qual é representada na tese
pela sequência “a teia de malfeitos que de momento constrangem meu país”.
Parte dessa “teia de malfeitos” é sugerida no quarto parágrafo, cuja transcrição
segue abaixo:
“O Brasil geme das dores do parto de (esperemos) uma democracia
menos infestada pela corrupção. A turma dos panos quentes acorre
solícita. Porém, band-aid não resolve doença tão grave e espalhada.
Quando a ferida explodiu eram tantos os tumores e tantos os atingidos
que quase não conseguimos respirar – nós que vivemos do suor do
nosso trabalho, nós que pagamos as contas com dificuldade e as contas
com indignação, nós que estamos quase paralisados com juros
absurdos e estímulo pífio, nós que acreditamos neste país mas somos
forçados a desacreditar de boa parte dos que o comandam. Nós,
desmoralizados pelas mentiras do bando que assinava sem ler, fazia
reuniões sem ver, viajava sem saber, negociava a vida de seu país
como se fosse um objeto qualquer, prevaricava sem se dar conta, e
agora experimenta todas as máscaras disponíveis enquanto aponta
o dedo para os outros: „Ele também fez xixi na calça, ele é pior do
que eu!‟”. (Veja, 24 de agosto de 2005, p.22)
A leitura deste parágrafo permite destacar as sequências em negrito
como parte da “teia de malfeitos” que, no momento da enunciação, à época
70
precisa da produção da crônica, “constrangiam o país”, no dizer da escritora.
Constata-se, assim, que o enunciado representativo do intertexto bíblico
participa da orientação argumentativa proposta no texto.
A segunda ocorrência, classificada também como um caso de
intertextualidade com valor de subversão, que marca o intertexto bíblico,
que aparece no 6º parágrafo da crônica, remete ao texto do Evangelho de
Mateus, capítulo 6, versículo 34. Veja-se:
Na Bíblia Sagrada: “Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o
amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu
próprio mal” (Evangelho de Mateus 6:34; Bíblia de estudo NVI, 2003,
p.1628).
Na Crônica: “Que surpresa malévola nos aguarda a cada dia?” (6º
parágrafo).
No que tange à fusão das instâncias E1 e E2, tem-se:
E1 = Basta a cada dia o seu próprio mal.
E2 = Todos os dias o Brasil é vítima de uma surpresa malévola.
L = Que surpresa malévola nos aguarda a cada dia?
Neste caso, a retextualização é operada pela apropriação da parte final
do texto-fonte – “Basta a cada dia o seu próprio mal”. A fusão deste enunciado
com a perspectiva de E2, resulta na expressão de L: “Que surpresa malévola
nos aguarda a cada dia?”. A subversão do texto fonte consiste no processo de
substituição, pelo qual a expressão “o seu próprio mal” se converte em
“surpresa malévola”, e a forma verbal “basta” – verbo “bastar” – é substituída
pela forma “aguarda” – verbo “aguardar”. Além disso, a categoria de língua (cf.
terminologia de CHARAUDEAU, 2008) observada no texto bíblico – Declaração
– não é a mesma do enunciado retextualizado, onde o que se tem é uma
Interrogação. Trata-se, pois, da operação de retextualização de transposição
(de uma categoria de língua para outra).
71
A interrogativa dá sequência à cadeia de enunciados que dão suporte à
orientação argumentativa do texto. Ao perguntar “Que surpresa malévola nos
aguarda a cada dia?”, o enunciador busca levar o leitor a refletir sobre as
incertezas da massa brasileira, que vive à mercê de um sistema político que se
eleva a um nível de descontrole excessivo e incapaz de inspirar qualquer
confiança.
Em um nível de análise mais pragmático, isto é, voltando-se para o
significado e para os efeitos de sentido produzidos pelo uso da interrogativa
expressa pelo locutor L, pelo menos três ângulos de leitura são pertinentes de
se mencionar. Em primeiro lugar, é válido observar que o cotexto (ou contexto
linguístico) em que o enunciado “Que surpresa malévola nos aguarda a cada
dia?” se insere, inclui uma sucessão de outros questionamentos anteriores no
mesmo parágrafo. No entanto, somente o enunciado em análise tem foco no
depois, conforme se pode observar na transcrição:
“Nas coxias procura-se (ou procura-se ainda ocultar) o responsável:
quem esteve por trás de tudo isso? Que pessoa, grupo, entidade,
manejava os cordéis, enganava e intimidava todo mundo e, covarde
criminoso, não mostra o rosto? Quem assassinou tão meticulosamente a
nossa confiança? Que surpresa malévola nos aguarda a cada dia?”
Em contraste, aliás, com a versão original do enunciado, que se
encontra na Bíblia Sagrada, as duas se distinguem não somente pela categoria
de língua – interrogação e declaração – pela qual são apresentadas. É
importante atentar que, enquanto o texto-fonte – “Basta a cada dia o seu
próprio mal” –, pela voz do hiperenunciador do discurso bíblico, se concentra
no presente, no hoje, o enunciado retextualizado focaliza, pela voz da cronista,
o devir, o futuro, a dúvida.
Ainda pela análise do cotexto, nos parágrafos posteriores, nota-se que a
cronista, em tom pessimista, mostra-se em busca de algumas respostas à sua
interrogativa, tais como:
72
“[...] se não aproveitarmos a ocasião para graves mudanças, seremos o
subpovo de um subpaís, digno de piedade. [...]”
“[...] receio uma caça às bruxas, que joga na fogueira inocentes junto
com os culpados; de outro, temo uma varredura generalizada para
debaixo dos tapetes, com o sacrifício de alguns bodes expiatórios para
nos fazer crer que tudo está resolvido. [...]”
Imediatamente após esta última manifestação de desespero, observa-se
uma mudança de tom no discurso do enunciador, onde se lê:
“[...] Apesar da ameaça de descrença que me ronda, preciso esperar
que ao fim e ao cabo a vergonha não tenha passado de moda
inteiramente. [...]”
Neste trecho, que já aponta para a conclusão da crônica, vê-se uma
transição de um ethos pessimista para um ethos levemente otimista, marcada
pelo operador argumentativo concessivo apesar de. O emprego desse
elemento marca, então, a oposição entre uma perspectiva negativa e uma
perspectiva positiva dos fatos apontados pela autora, que, na segunda parte do
enunciado – “preciso esperar que ao fim e ao cabo a vergonha não tenha
passado de moda inteiramente” – expressa uma esperança de “novos ares,
sem palavrório falso nem idealismo oco” (10º parágrafo).
Outro ângulo de observação do emprego da interrogativa diz respeito
particularmente à pressuposição que se pode abstrair da expressão “surpresa
malévola”. Embora esteja dentro de uma pergunta – o que indica dúvida,
incerteza –, a expressão sugere uma certeza: alguma surpresa malévola
certamente nos aguarda, só não se sabe qual. Essa evidência realça ainda
mais o tom pessimista empregado pela cronista nessa passagem do texto.
Por fim – o que não necessariamente esgota a análise –, apoiando-se
em um quadro teórico que tem como fim a investigação dos mecanismos de
referenciação, observa-se a função anafórica/catafórica operada pela
73
expressão “surpresa malévola”. Embora não seja possível delimitar com
precisão os limites do referente encapsulado por essa expressão, o fato é que
esse referente é categorizado por meio de uma construção nominal pela qual a
cronista: (a) mostra seu ponto de vista em relação ao referente encapsulado,
num movimento anafórico (retrospectivo); (b) aponta para algumas
possibilidades, diante da pergunta “Que surpresa malévola nos aguarda a cada
dia?”, num movimento catafórico (prospectivo). O uso do modificador
“malévola” contribui de forma particular para a manifestação da visão de mundo
da cronista, uma vez que especifica que tipo de “surpresa” se pode esperar.
Ainda, uma terceira ocorrência do fenômeno intertextual – desta vez de
intertextualidade por alusão –, que concorre para a construção do ethos
cristão em foco, está registrado no 9º parágrafo. Trata-se da sequência: “o
sacrifício de alguns bodes expiatórios para nos fazer crer que tudo está
resolvido”.
São inúmeras as passagens bíblicas em que se pode ler sobre
sacrifícios de animais, com o propósito de adorar a Deus ou de apresentar a
Ele uma oferta de expiação pelos pecados do povo ou de um líder. O livro de
Levítico, no Antigo Testamento da Bíblia Sagrada, é onde se encontram
registros de sacrifícios de bodes, bem como suas finalidades:
“Arão sacrificará o novilho como oferta pelo seu próprio pecado, para
fazer propiciação por si mesmo e por sua família. Depois pegará os dois
bodes e os apresentará ao Senhor, à entrada da tenda do Encontro. E
lançará sortes quanto aos dois bodes: uma para o Senhor e outra para
Azazel. Arão trará o bode cuja sorte caiu para o Senhor e o sacrificará
como oferta pelo pecado. Mas o bode sobre o qual caiu a sorte para
Azazel será apresentado vivo ao Senhor para fazer propiciação, e será
enviado para Azazel no deserto” (Levítico 16:6-10; Bíblia de estudo NVI,
2003, p.182)
Uma interpretação tipológica da finalidade desses sacrifícios aponta para
o sacrifício de Jesus Cristo ao dar a sua vida na cruz em favor de toda a
74
humanidade, tal qual um “cordeiro” sacrificado. Observem-se algumas ocasiões
em que, na Bíblia, Jesus é nomeado como “Cordeiro”:
“Livrem-se do fermento velho, para que sejam massa nova e sem
fermento, como realmente são. Pois Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi
sacrificado” (I Coríntios 5:7; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1959)
“Ele foi oprimido e afligido; e, contudo, não abriu a sua boca; como um
cordeiro foi levado para o matadouro, e como uma ovelha que diante de
seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca” (Isaías 53:7;
Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1224)
“No dia seguinte, João viu Jesus aproximando-se e disse: „Vejam! É o
Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo‟” (Evangelho de João
1:29; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1787-1788)
“Então olhei e ouvi a voz de muitos anjos, milhares de milhares e
milhões de milhões. Eles rodeavam o trono, bem como os seres viventes
e os anciãos, e cantavam em alta voz: „Digno é o Cordeiro que foi morto
de receber poder, riqueza, sabedoria, força, honra, glória e louvor!‟”
(Apocalipse 5:11,12; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.2176)
A propósito dos bodes apresentados como oferta pelos pecados,
conforme registrado no livro de Levítico, e sua analogia com o sacrifício do
Cordeiro de Deus, Jesus Cristo, a Bíblia de estudo NVI (2003) esclarece, em
nota textual, que
“nenhuma oferta individual podia tipificar plenamente a expiação feita por Cristo. Um dos bodes era sacrificado, seu sangue era aspergido no Lugar Santíssimo e seu cadáver era queimado fora do arraial, simbolizando o preço da expiação por Cristo. O outro bode, mandado embora com vida e carregando sobre si os pecados da nação, simbolizava a remoção do pecado e da sua culpa” (Bíblia de estudo NVI, 2003, p.182.)
Observando-se mais atentamente o parágrafo da crônica em que se
insere a sequência textual em análise, e levando-se em conta também o
contexto mais amplo em que o parágrafo está inserido, é possível abstrair
algumas considerações mais precisas em relação ao significado – em um nível
75
mais pragmático – das escolhas operadas pela cronista. Veja-se, pois, todo o
referido parágrafo:
“[...] De um lado, receio uma caça às bruxas, que joga na fogueira
inocentes junto com os culpados; de outro, temo uma varredura
generalizada para debaixo dos tapetes, com o sacrifício de alguns bodes
expiatórios para nos fazer crer que tudo está resolvido. Apesar da
ameaça da descrença que me ronda, preciso esperar que ao fim e ao
cabo a vergonha não tenha passado de moda inteiramente. [...]”
Mesmo que, nesta crônica, seja possível notar que a autora não vai
direto ao ponto – já que o contrato comunicacional que regula este gênero
permite isso –, algumas associações plausíveis e certos elementos do léxico
devem levar a uma leitura mais objetiva deste trecho. A começar pelo título
“Meu País é uma Fênix”, é razoável prever, sem muito esforço para quem
domina um mínimo de conhecimento sobre mitologia grega, que a cronista
compara o Brasil (seu país) a um ser que, segundo a lenda, pode renascer das
cinzas após ser queimada no fogo do Hades (ou inferno). O título reflete o já
comentado tom de esperança que Lya Luft costuma imprimir no discurso do
conjunto de suas crônicas. Mas de que inferno o Brasil renasce?
Embora o conteúdo de grande parte da crônica seja bastante subjetivo
para se obter uma resposta precisa, o enunciador deixa alguns rastros que nos
conduzem a possibilidades plausíveis de interpretação. A expressão “exercício
do poder” e a palavra “ética” (1º parágrafo), bem como a sequência “uma
democracia menos infestada pela corrupção” (5º parágrafo) permitem inferir
que a indignação da cronista, mostrada desde o início do texto, se deve à
maneira corrupta com a qual se tem praticado política no país; política que,
aliás, é um tema bastante recorrente nas crônicas de Lya Luft.
Com essas especulações, não é difícil interpretar a expressão “bodes
expiatórios” como, por exemplo, uma referência a certos indivíduos que,
apontados como responsáveis – sendo isso verdade ou não – pelas atitudes
76
corruptas que destroem o país, acabam por assumir a culpa em lugar dos
verdadeiros responsáveis, provavelmente daqueles que detém “o poder”.
Trata-se, aqui, de um caso de intertextualidade por alusão, em que não
se verificam quaisquer semelhanças ou paralelismos formais entre o discurso
bíblico e o conteúdo da crônica. O intertexto se apresenta de forma difusa no
texto, não sendo possível recuperá-lo numa leitura mais rasa. Apenas um leitor
com certo grau de conhecimento das Escrituras pode estabelecer a relação
entre o enunciado efetivamente produzido pela crônica e o discurso bíblico.
Ao olhar analítico, a transferência de significado – do bode sacrificial
bíblico para o “bode expiatório” da crônica, numa espécie de trajetória
metafórica – operada por Lya Luft ao aludir ao discurso bíblico, produzindo a
sequência “o sacrifício de alguns bodes expiatórios para nos fazer crer que
tudo está resolvido”, se justifica, sobretudo, pela semelhança entre as
simbologias expressas pelos bodes apresentados como oferta, na Bíblia, e pelo
“bode expiatório da crônica”, simbologias essas de teor sacrificial, em que um
assume a culpa em favor de outro(s).
Vê-se, então, que, além do recurso à pressuposição e a mecanismos de
referenciação, o emprego de outras estratégias linguístico-discursivas, como a
metáfora, reforça o caráter parcialmente intencional da cronista na construção
de uma imagem de si.
Ampliando-se a análise para uma perspectiva mais ampla de
intertextualidade, pode-se verificar que o discurso bíblico, da memória, e o
discurso jornalístico, da atualidade, se entrecruzam no espaço da crônica,
efeito da interdiscursividade que caracteriza a linguagem e seus usos.
77
4.1.2 “A matança dos bebês”
78
A análise desta crônica permitiu a identificação de três ocorrências de
intertextualidade por alusão às Sagradas Escrituras. Saliente-se que se julga
necessário que se façam alguns registros históricos, a fim de se apurar a
construção do sentido e a orientação argumentativa no texto.
As duas primeiras ocorrências de intertextualidade por alusão são
identificadas pelo nome “Herodes”, que aparece duas vezes no primeiro
parágrafo. Um ponto importante a se destacar é sua articulação com o título “A
matança dos bebês”. A sentença que introduz o texto, imediatamente após o
título, é: “Herodes faria uma festa” – primeira ocorrência. Linhas abaixo, lê-se
a frase “Viva Herodes” – segunda ocorrência.
De acordo com as Escrituras, Herodes – conhecido como Herodes, o
Grande – era rei de toda a Palestina na época do nascimento de Jesus Cristo.
A narrativa bíblica envolvendo Herodes e Jesus está registrada no capítulo 2
do evangelho de São Mateus, o qual segue transcrito, a fim de se obter um
entendimento mais abrangente para a análise da crônica em questão:
Depois que Jesus nasceu em Belém da Judeia, nos dias do rei Herodes,
magos vindos do oriente chegaram a Jerusalém e perguntaram: “Onde
está o recém-nescido rei dos judeus? Vimos a sua estrela no oriente e
viemos adorá-lo”.
Quando o rei Herodes ouviu isso, ficou perturbado, e com ele toda
Jerusalém. Tendo reunido todos os chefes dos sacerdotes do povo e os
mestres da lei, perguntou-lhes onde deveria nascer o Cristo. Em Belém
da Judeia; pois assim escreveu o profeta:
“Mas tu, Belém, da terra de Judá, de forma alguma és a menor em meio
às principais cidades de Judá; pois de ti virá o líder que, como pastor,
conduzirá Israel, o meu povo”.
Então Herodes chamou os magos secretamente e informou-se com eles
a respeito do tempo exato em que a estrela tinha aparecido. Enviou-os a
Belém e disse: “Vão informar-se com exatidão sobre o menino. Logo que
o encontrarem, avisem-me, para que eu também vá adorá-lo”.
79
Depois de ouvirem o rei, eles seguiram o seu caminho, e a estrela que
tinham visto no oriente foi adiante deles, até que finalmente parou sobre
o lugar onde estava o menino. Quando tornaram a ver a estrela,
encheram-se de júbilo.
Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e,
prostrando-se, o adoraram. Então abriram os seus tesouros e lhe deram
presentes: ouro, incenso e mirra. E, tendo sido advertidos em sonho
para não voltarem a Herodes, retornaram a sua terra por outro caminho.
Depois que partiram, um anjo do Senhor apareceu a José em sonho e
lhe disse: “Levante-se, tome o menino e sua mãe, e fuja para o Egito.
Fique lá até que eu diga a você, pois Herodes vai procurar o menino
para matá-lo”.
Então ele se levantou, tomou o menino e sua mãe durante a noite e
partiu para o Egito, onde ficou até a morte de Herodes. E assim se
cumpriu o que o Senhor tinha dito pelo profeta: “Do Egito chamei meu
filho”.
Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou
furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para
baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que
havia obtido dos magos.
Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias:
“Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que
chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem”.
Depois que Herodes morreu, um anjo do Senhor apareceu em sonho a
José, no Egito, e disse: “Levante-se, tome o menino e sua mãe e vá
para a terra de Israel, pois estão mortos os que procuravam tirar a vida
do menino”.
Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe e foi para a terra de Israel.
Mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judeia em lugar de seu
pai Herodes, teve medo de ir para lá. Tendo sido avisado em sonho,
retirou-se para a região da Galileia e foi viver numa cidade chamada
Nazaré. Assim cumpriu-se o que fora dito pelos profetas: “Ele será
80
chamado Nazareno”. (Evangelho de Mateus 2:1-23; Bíblia de estudo
NVI, 2003, pp. 1615-1618).
O conjunto de profecias acerca da chegada do Messias ao mundo
estava para se cumprir, e tratava-se, de acordo com essas previsões, de um
menino – o Filho de Deus – que nasceria para reinar, tornando-se o “rei dos
judeus”. A ideia de alguém que viria para reinar sobre o povo de Israel (judeus)
causa em Herodes, de acordo com a narrativa, um sentimento de perturbação,
uma vez que naquele momento era ele quem reinava nas regiões habitadas
por este povo, e, obviamente, faria de tudo para eliminar quaisquer ameaças
contra o seu governo. Na verdade, havia um receio de que toda a
descendência real de Herodes fosse comprometida com a chegada do Cristo
prometido.
De acordo com o relato, algum tempo depois, o rei Herodes, sem saber
a real origem e localização do recém-nascido, ordenou que matassem todos os
meninos de dois anos ou menos, com o intuito de eliminar todas as
possibilidades de que tal bebê sobrevivesse e ameaçasse o seu reinado.
É nesse ponto que, voltando-se agora para a crônica, intitulada “A
matança dos bebês”, fazem-se essenciais algumas explicações no que tange
aos elementos intertextuais em foco. Para isso, é válida a transcrição do
primeiro parágrafo da crônica, onde o nome “Herodes” é mencionado duas
vezes:
“Herodes faria uma festa. Eu que às vezes penso que nada mais vai me
chocar, mal acredito no que se anuncia: morreram trinta e tantos bebês
em certo hospital do norte do país. Já é horrível. Logo depois, haviam
morrido quase 100 e, finalmente, as autoridades admitiram bem mais de
200 mortos em alguns meses. Bebês morriam como moscas no hospital
que lhes devia propiciar a vida. Era caso de fechamento em todos os
hospitais do mundo, mas uma autoridade local apenas disse, piscando
os olhos como quem está um pouquinho insegura: „Esse numero de
bebês mortos em hospital nessas condições é aceitável‟. Como tais
81
condições perduraram mais de um dia? Eu estava ouvindo e lendo bem?
Estava em meu juízo normal? Estava. Pois então, viva Herodes. Porém,
os caixõezinhos amontoados em uma pequena carreta e um pai muito
jovem carregando mais um corpo, como se fosse o seu filinho morto,
não permitiam gracejo”. (Veja, 23 de julho de 2008, p.20)
Não é forçoso o estabelecimento de associações entre a crônica e a
narrativa de Mateus 2, propiciada pela menção do nome “Herodes”. Tendo ele
sido o responsável pela morte de tantos bebês nos dias do nascimento de
Jesus e tendo em foco que a crônica traz à tona a notícia sobre a morte de 200
bebês “em alguns meses” em um hospital no norte do Brasil, concluí-se que, na
avaliação da cronista, a responsabilidade atribuída a Herodes naqueles dias
supõe a necessidade de que alguém se responsabilize pelos bebês mortos no
hospital brasileiro, e que alguma atitude seja tomada em razão do ocorrido.
Como estratégia de referenciação textual, o nome “Herodes” opera, no
contexto da crônica, como uma espécie de anáfora discursiva, ou, mais
precisamente, como um encapsulador anafórico,15 uma vez que, pode remeter
o leitor a toda a narrativa bíblica do capítulo 2 do evangelho de São Mateus.
A propósito da orientação argumentativa e sua relação com o elemento
intertextual em foco, é possível destacar, no interior do primeiro parágrafo da
crônica, enunciados que indicam a tese inicial e o argumento que entra em
relação com essa tese. São eles:
Tese: “Herodes faria uma festa”
Argumento: “morreram trinta e tantos bebês em certo hospital do norte do país
(...) Logo depois, haviam morrido quase 100 e, finalmente, as autoridades
admitiram bem mais de 200 mortos em alguns meses. Bebês morriam como
moscas no hospital que lhes devia propiciar a vida”
15
O encapsulamento anafórico, estratégia textual-discursiva de referenciação, é o processo pelo qual uma expressão nominal opera, no texto, como uma espécie de anáfora resumitiva de uma porção de texto de extensão complexa, ou de um referente difuso (não delimitável) sugerido pelo cotexto. No caso do emprego do nome “Herodes”, na crônica de Lya Luft em análise, o processo de referenciação ultrapassa os limites do cotexto, visto que remete a um fora do texto, a saber, uma narrativa pertencente a outra esfera discursiva.
82
A sequência correspondente ao argumento cumpre a função de justificar
a proposição expressa pela tese “Herodes faria uma festa”. No caso em
questão, é importante destacar que essa articulação tese-argumento só é
possível pelo domínio do intertexto, ou melhor, pelo conhecimento da narrativa
bíblica que o nome “Herodes” suscita por via do fenômeno intertextual que,
nesta ocorrência, é tratado como alusão.
Acredita-se, como já se mencionou na análise da seção anterior, que,
além do recurso às formas de intertextualidade em sentido restrito em foco
nesta pesquisa, seja coerente atrelar tais configurações a uma visão ampla de
intertextualidade, ou, mais precisamente, ao nível do interdiscurso.16 Por via da
memória discursiva, recupera-se o discurso registrado no capítulo 2 do
evangelho de Mateus, o qual é trazido à atualidade no entrecruzamento com o
discurso jornalístico materializado na crônica em análise.
O caráter sagrado, além de temas como esperança e sacrifício, que
alimentam a fé e o otimismo de muitas sociedades, torna o discurso bíblico
capaz de atravessar as mais variadas esferas discursivas, incluindo-se aí a
esfera jornalística.
No quarto parágrafo da crônica, outro caso de intertextualidade por
alusão ao texto bíblico – terceira ocorrência – é identificado. Após relatar
toda sua indignação em relação ao conteúdo expresso no primeiro parágrafo, a
cronista, entre outras reflexões, avalia:
“(...) tanta gente bandida vivendo feito rei, e tanta gente boa crucificada
quando quer fazer o bem e consertar o mal”
A identificação de referências ao texto bíblico é possibilitada pela
presença das palavras “rei” e “crucificada”. Analisando o trecho em dois
momentos, tem-se:
16
Advindo da proposta teórica de Michel Pêcheux, o interdiscurso “relaciona-se à memória discursiva, ou
seja, aos vários discursos anteriores e exteriores ao dizer, construído no momento da enunciação” (FLORES et al., 2009, p.144).
83
1º) “tanta gente bandida vivendo feito rei”: se, pelo aspecto intertextual, essa
sequência retoma a figura de “Herodes” – o antagonista e “bandido” que era rei
na narrativa bíblica –, na crônica seu significado se estende àqueles que vivem
como “reis” na realidade atual do Brasil. É possível pensar naqueles que não
dependem, por exemplo, de hospitais do mesmo nível daquele onde os bebês
foram mortos. Usando um trecho da própria crônica, essa “gente bandida
vivendo feito rei” certamente não representa
“tantas famílias feridas, pais e mães arrasados, vidas desperdiçadas
nesse vergonhoso lamaçal de omissão. O mesmo que em tantos lugares
deixa milhares de doentes serem atendidos no corredor, sofrendo ou
morrendo em salas de espera, ou no pátio do hospital – mais recente
notícia”.
2º) “e tanta gente boa crucificada quando quer fazer o bem e consertar o mal”:
nesta sequência, a palavra “crucificada” remete claramente à figura de Jesus
Cristo, morto inocentemente – ou seja, por “fazer o bem” – por meio de
crucificação. O uso da referida sequência na crônica adquire um valor
metafórico que conduz o leitor a associá-la, mesmo por inferência, àqueles que
poderiam trabalhar de forma benéfica, a fim de transformar a realidade do
descaso na saúde pública e, assim, “consertar o mal”.
84
4.1.3 “A praga moderna”
85
Logo no primeiro parágrafo, a autora indica qual é a “praga moderna”
sobre a qual se posiciona – o estresse. Nas primeiras linhas, ela comenta:
“Nossas pestes – que também as temos – podem ser menos tenebrosas
do que as medievais, que nos faziam apodrecer em vida. Mas, mesmo
mais higiênicas, destroem. E se multiplicam, na medida em que se
multiplica o nosso stress. Ou melhor: o stress é uma das modernas
pragas”.
Mais adiante, ao terceiro parágrafo, aparece a primeira ocorrência de
intertexto bíblico nesta crônica – um caso de intertextualidade com valor de
subversão, a qual está registrado em destaque no trecho transcrito a seguir:
“O que somos mesmo, neste período pós-moderno de que algumas
pessoas tanto se orgulham, é estressados. Não tem doença em que
algum médico ou psiquiatra não sentencie, depois de recitar os
enigmáticos termos médicos: “E tem também o stress”. Para alguns, ele
é, aliás, a raiz de todos os males. Eu digo que é filho da nossa
agitação obsessivo-compulsiva. Quanto mais compromissados, mais
estressados: é inevitável, pois as duas coisas andam juntas, gêmeas
siamesas da desgraça”.
A propósito do tópico sobre o qual discorre, a cronista sugere que
algumas pessoas pensam ser ele, o stress, a raiz de todos os males. Para fins
de análise e entendendo-se que o pronome “ele” substitui anaforicamente a
expressão nominal “o stress”, tem-se: “o stress é a raiz de todos os males”.
Na Bíblia Sagrada, o apóstolo Paulo, em epístola dirigida a Timóteo, um
de seus pupilos na fé, usa o mesmo predicativo para exortá-lo acerca da
ganância, como se vê, em negrito, na citação abaixo:
86
“Os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em
muitos desejos descontrolados e nocivos, que levam os homens a
mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao dinheiro é a raiz
de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro,
desviaram-se da fé e se atormentaram com muitos sofrimentos” (I
Timóteo 6:9,10; Bíblia de estudo NVI, 2003, p. 2074).
Do ponto de vista formal, o que ocorre é um processo de reenunciação
da afirmativa bíblica (origem) pela cronista, estratégia discursiva que, aliás, se
consolida mais a cada passo das análises aqui empreendidas. Neste caso, a
reenunciação ocorre por substituição de palavras, em que “o stress” entra no
lugar de “o amor ao dinheiro”:
Na Bíblia Sagrada: “(...) o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”.
Na crônica: “(...) o stress é a raiz de todos os males”.
Na perspectiva das instâncias enunciativas, é necessário considerar que
a assertiva “o stress é a raiz de todos os males” (na crônica), não corresponde
ao ponto de vista da cronista. O trecho em que tal afirmação está inserida é:
“Para alguns, ele [o stress] é, aliás, a raiz de todos os males”. Obviamente, o
modalizador em negrito sugere que a sequência em questão deve ser atribuída
a um enunciador E3. A opinião da cronista é expressa no período subsequente:
“Eu digo que [o stress] é filho da nossa agitação obsessivo-compulsiva. Com
isso, tem-se
E1: “(...) o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”.
E3: “(...) o stress é a raiz de todos os males”.
E2: o stress não é a raiz de todos os males, mas o resultado de nossa agitação
obsessivo-compulsiva
L: “ (...) [o stress] é filho da nossa agitação obsessivo-compulsiva”.
em que
87
E1 corresponde à voz do hiperenunciador – a Bíblia Sagrada –, que é o
ponto de partida, o texto-origem que fundamenta o processo de
retextualização por substituição;
E2 corresponde ao ponto de vista expresso/implícito na voz de L. Trata-
se daquilo que L quer dizer ao se posicionar diante do tópico em
questão;
L corresponde à materialização linguística do ponto de vista da cronista
(locutor L);
E3 corresponde à voz de um terceiro enunciador, não identificado,
senão pela expressão modal “Para alguns”.
Como se pode observar, a cronista não apenas não assume a
responsabilidade pela expressão (re)enunciada por E3, como também se
posiciona em relação a isso. Sua argumentação inclui, portanto, os três
elementos que configuram o modo argumentativo de organização do discurso,
que são: proposta, tese e argumento(s).
A propósito, pois, da orientação argumentativa e da forma como o
enunciado em análise se articula com o projeto de influência da cronista, os
referidos elementos podem ser identificados (neste, que é o terceiro parágrafo
da crônica) na seguinte ordem:
Proposta: “Para alguns, ele [o stress] é, aliás, a raiz de todos os males”.
Tese: “Eu digo que é filho da nossa agitação obsessivo-compulsiva”.
Argumentos: “Quanto mais compromissados, mais estressados: é inevitável,
pois as duas coisas andam juntas, gêmeas siamesas da desgraça. Porque a
gente trabalha demais, se cobra de mais e nos cobram demais, porque a gente
não tem hora, não tem tempo, não tem graça”.
De acordo com a metodologia de análise da organização do discurso
argumentativo, tem-se que a proposta corresponde a “uma ou mais asserções
que dizem respeito a alguma coisa sobre os fenômenos do mundo”
88
(CHARAUDEAU, 2008, p.222) e, via de regra, trata-se de expressão do ponto
de vista de outrem. No caso em questão, a proposta é evocada – porém, não
apoiada – pela cronista sob o enunciado “ele [o stress] é, aliás, a raiz de todos
os males”.
A tese é expressa por um enunciado de responsabilidade do enunciador
E2, através do qual irá propor o seu posicionamento em relação à proposta –
se é a favor ou contra, ou, pelo menos, parcialmente contra. Nesta análise,
considera-se que o sujeito não apoia a proposta uma vez que, se, para um
terceiro, o estresse é a raiz de todos os males, para a cronista, ele é filho (não
a raiz/origem, mas o fim/produto) da nossa agitação obsessivo-compulsiva.
Os argumentos cumprem o papel de oferecer o suporte à tese
apresentada. Neste caso, a tese é amparada por uma série de argumentações
que, seguindo o estilo de discurso de Lya Luft, construído predominantemente
na primeira pessoa do plural, tonifica ainda mais o quadro de persuasão.
Vejam-se os argumentos:
1) Quanto mais compromissados, mais estressados: é inevitável, pois as
duas coisas andam juntas, gêmeas siamesas da desgraça.
2) Porque a gente trabalha demais
3) [porque a gente] se cobra de mais
4) [porque] nos cobram demais
5) porque a gente não tem hora
6) [porque a gente] não tem tempo
7) [porque a gente] não tem graça
Essa série de avaliações constituem, pois, os argumentos do enunciador
que reforçam a tese em apreço, segundo a qual o stress não é a raiz de todos
os males, mas filho de nossa agitação obsessivo-compulsiva. Acredita-se que
toda essa organização discursiva, formada pela tríade argumentativa proposta
– tese – argumentos, com o intuito de se buscar a adesão do enunciatário por
meio de uma construção racional, ainda é realçada por outro eficiente recurso
de captação do outro: o emprego da primeira pessoa do plural – nós / a gente.
89
Tal estratégia não somente garante um estreitamento nas relações entre
cronista e leitor, mas implica também a divisão da responsabilidade dos pontos
de vista expressos com o leitor, que acaba por se tornar cúmplice do produtor
do texto.
Em síntese, entende-se que a análise envolvendo os três elementos que
caracterizam o modo argumentativo objetiva mostrar o papel do referido
enunciado no direcionamento argumentativo proposto pela cronista; e que o
emprego da primeira pessoa do plural, típico em textos de teor mais intimista, é
uma instrução definida pelo próprio contrato que se estabelece entre os
sujeitos envolvidos na troca comunicacional.
Vale destacar, neste ponto, a maneira como Lya Luft conduz o discurso
na construção de cada um dos textos, principalmente no que concerne à
manipulação com as palavras do texto bíblico, na forma como são retomadas e
reenunciadas para atender aos propósitos comunicativos da cronista. Isso está
ligado ao que Charaudeau (2008) nomeia como legitimação de fala,17 segundo
a qual o sujeito comunicante, ciente de que está legitimado no espaço social –
circuito externo (EUc – TUi) –, poderá permitir-se a construir qualquer imagem
do sujeito enunciador, conforme o grau de credibilidade do qual julga gozar
junto ao sujeito interpretante.
Vale destacar que, se a imagem de credibilidade construída é fruto de
uma atribuição dada ao sujeito falante, podendo tratar-se de algo que é prévio
ao ato de enunciação – um ethos pré-discursivo –, o ethos religioso cristão é
projetado diretamente pela expressão dos atos de linguagem verificados a
cada texto que compõe o corpus. Reitera-se, contudo, que a construção desse
ethos é apreendida pelo olhar do sujeito analisante, visto que o leitor comum
pode não perceber que comentários como “o stress é a raiz de todos os
males”, por exemplo, sejam a reenunciação de uma passagem bíblica.
Ainda na mesma crônica, encontra-se um segundo registro do
fenômeno intertextual. Neste caso, porém, trata-se de uma ocorrência de
intertextualidade por alusão. De fato, como se verá a seguir, não se trata de
uma reenunciação com paralelismo sintático, como se pôde observar na
17
Termo, segundo explica o próprio autor, utilizado também pela escola de sociologia de Pierre Boudieu, porém inserido em uma problemática distinta.
90
primeira ocorrência. Observe-se, pois, no trecho transcrito a seguir, a porção
de texto em negrito:
(...) ainda temos a casa, o marido, os filhos, a creche, o pediatra, o
ortodontista, a aula de dança ou de judô dos meninos, de inglês, de
mandarim (...), mas a verdade é que o stress nos domina. É nosso novo
amante, novo rival da família e da curtição de todas as coisas boas da
vida.
Que pena. Houve uma época em que a gente resolvia, meio às
escondidas, dar uma descansadinha: 4 da tarde, a gente deitada no sofá
por dez minutos, pernas pra cima... e eis que, no umbral da porta, mãos
na cintura ou dedo em riste, lá apareciam nossa mãe, avós, tias, dizendo
com olhos arregalados: “Como??? Quatro da tarde e você aí, de pernas
pra cima, sem fazer nada?”
Era preciso alguma energia para espantar os tais fantasmas. Neste
momento, porém, eles nem precisam agir: todos nós, homens e
mulheres, botamos nos ombros cruzes de vários tamanhos, com
prego ou sem prego, com ou sem coroa de espinhos (...) Começo a
ficar com medo, não do destino, eterno culpado, não da vida nem dos
deuses, mas disso que, robotizados, estamos fazendo a nós mesmos.
Note-se, nesta ocorrência, que a referência ao texto bíblico é de
natureza alusiva, uma vez que as menções de cruz, prego e coroa de espinhos
estão diluídas nos evangelhos e em outras passagens do Novo Testamento.
Mesmo não se tratando de uma referência pontual, a alusão remete
diretamente a Jesus Cristo, que, ao sofrer injusta condenação, foi forçado a
subir até o monte Calvário levando, nos ombros, a cruz na qual iria sofrer sua
morte, e usando, em sua cabeça, a coroa de espinhos que soldados romanos –
alguns de seus algozes – colocaram em sua cabeça ao mesmo tempo em que
zombavam dele. Alguns dos versículos bíblicos que narram a trajetória e o
sofrimento de Jesus, na ocasião de sua condenação e morte, estão no capítulo
19 do evangelho de João, conforme segue:
91
“Então Pilatos mandou açoitar Jesus. Os soldados teceram uma coroa
de espinhos e a puseram na cabeça dele. Vestiram-no com uma capa
de púrpura e, chegando-se a ele, diziam: “Salve, rei dos judeus!” E
batiam-lhe no rosto (...) Finalmente, Pilatos o entregou a eles para ser
crucificado. Então os soldados encarregarem-se de Jesus. Levando a
sua própria cruz, ele saiu para o lugar chamado Caveira. Ali o
crucificaram (...)” (Evangelho de João 19:1-3,16-18; Bíblia de estudo
NVI, 2003, pp.1832-1833).
O intercâmbio de sentido que se pode abstrair do emprego do intertexto
na crônica é o de que, semelhantemente a Jesus Cristo, que foi declarado
culpado sem ter culpa alguma, o stress é fruto do que “estamos fazendo a nós
mesmos”, já que, na visão da cronista, a carga de tarefas e responsabilidades
que o homem moderno impõe a si acaba por se tornar um verdadeiro e
incômodo “peso nos ombros”, da mesma forma como os pecados da
humanidade (simbolizados pela cruz) pesaram, naquele momento, sobre os
ombros de Cristo. Por outro lado, da mesma forma como Cristo lutou contra e
venceu o pecado, a crônica sugere que o homem de hoje necessita enfrentar o
stress, “novo rival da família e da curtição de todas as coisas boas da vida”.
92
4.1.4 “Voz no deserto”
93
Diferentemente das análises anteriores, em que as ocorrências do
fenômeno intertextual aparecem apenas ao longo dos parágrafos das crônicas,
o texto selecionado para está ultima análise de cunho qualitativo registra uma
primeira ocorrência de intertexto bíblico no título – “Voz no deserto”.
Trata-se de um caso de intertextualidade com valor de subversão às
passagens bíblicas que apontam para a figura do profeta João Batista,
personagem do Novo Testamento sobre quem outro profeta, Isaías, é guiado a
pronunciar:
“Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho ao Senhor; endireitai,
no ermo, vereda a nosso Deus” (Isaías 40:3; Tradução ARC, online)
Essa mensagem é reiterada pelo profeta Malaquias, que, em tom
profético, anuncia:
“„Vejam, eu enviarei o meu mensageiro, que preparará o caminho diante
de mim. E então, de repente, o Senhor que vocês buscam virá para o
seu templo; o mensageiro da aliança, aquele que vocês desejam, virá‟,
diz o Senhor dos Exércitos” (Malaquias 3:1; Bíblia de estudo NVI, 2003,
p.1598)
Nos evangelhos, confirmam-se as passagens proféticas anunciadas em
Isaías e Malaquias, sobre as quais João Batista haveria de vir antes de Jesus
Cristo, a fim de lhe preparar o caminho através da pregação em prol do
arrependimento:
“Naqueles dias, surgiu João Batista, pregando no deserto da Judeia. Ele
dizia: „Arrependam-se, pois o Reino dos céus está próximo‟. Este é
aquele que foi anunciado pelo profeta Isaías: “Voz do que clama no
deserto: „Preparem o caminho para o Senhor, façam veredas retas para
ele‟”. Assim surgiu João, batizando no deserto e pregando um batismo
de arrependimento para o perdão dos pecados. [...] E esta era a sua
94
mensagem: „Depois de mim vem alguém mais poderoso do que eu,
tanto que não sou digno nem de curvar-me e desamarrar as correias de
suas sandálias‟” (Mateus 3:1-4,7; Bíblia de estudo NVI, 2003, p.1618).
Na crônica de Lya Luft, a figura “voz no deserto” é atribuída ao deputado
Romário, sobre quem a autora comenta em alguns trechos do segundo
parágrafo, transcritos a seguir:
“(...) me causaram admiração e tristeza os comentários do agora
deputado Romário sobre o Congresso, a Copa e outros temas. Porque
ele, político estreante, teve a coragem, e porque tudo me pareceu tão
evidente, e tão corajoso neste nosso teatro de invenções e negação da
realidade. Animou-me um deputado comentar que ali no Parlamento
poucos de verdade trabalham; que muito do que se anuncia sobre a
Copa é bastante improvável; e que há perigo de também nela
acontecerem propina, desvio de dinheiro, o circo habitual. Entristeceu-
me (...) que coubesse a ele, jogador de futebol, e deputado novato, botar
em palavras, publicamente, o que muitos de nós percebemos, com
maior ou menor entendimento e lucidez, mas não fazemos nada. Por
que não formamos um grande coro? Porque temos receio de críticas ou
preferimos desviar o rosto e os olhos e fechar a boca? (...)”
As duas interrogações ao final da citação acima traduzem uma
insatisfação e apontam para a responsabilidade de cada brasileiro na busca
por uma política mais séria e de uma nação menos corrupta. A cronista tira o
foco de um único parlamentar “tão corajoso nesse nosso teatro de invenções e
negação da realidade” (referindo-se ao deputado Romário, no 2º parágrafo), e
expande seu otimismo a outros possíveis parlamentares que buscam trabalhar
para o bem, no 3º parágrafo:
“(...) Sei que os governantes que querem o bem deste povo, deste país,
dos estados municípios, podem ainda nos salvar (...)”.
95
Ao último parágrafo, num comportamento elocutivo, a cronista expressa
uma opinião que não contempla somente “um deputado corajoso” ou mais
“governantes que querem o bem...”. Trata-se, implicitamente, de uma
convocação para que cada brasileiro contribua na construção de um país mais
justo:
“(...) E acho que nós, os cidadãos comuns, podemos ajudar, se não
aceitarmos fatos ruins como coisa natural, não acreditarmos em
promessas nem em exigências absurdas, se cumprirmos com
excelência nosso dever de cada dia, que inclui trabalho, cuidado com a
família, honradez e patriotismo – cada um dentro das suas
possibilidades (...)”.
Saliente-se que o comportamento elocutivo ocorre quando “o locutor
expressa seu ponto de vista, configurando-se linguisticamente através de
categorias modais específicas” (CHARAUDEAU, 2008, p.91). No trecho da
crônica citado acima, tal comportamento assume um valor avaliativo,
denunciado pela modalização expressa por “acho que”. A categoria de língua é
a da Apreciação, pela qual o locutor manifesta “uma avaliação de ordem
afetiva” (p.93), julgando conforme seus próprios sentimentos. Além disso, o
emprego da primeira pessoa do plural aponta para a adesão do locutor ao
próprio ponto de vista e busca, ao mesmo tempo, garantir a adesão do leitor.
A propósito do intertexto bíblico representado pelo título desta crônica,
observe-se a distribuição de vozes enunciativas:
E1 = “voz do que clama no deserto”
E2 = Um único parlamentar corajoso para comentar sobre problemas
relacionados à Copa e a outros temas
L = “voz Ø no deserto”
96
Quanto às instruções formais, a construção de sentido parte da
modificação da forma “voz do que clama no deserto” e, passando pelo
processo de retextualização de supressão de palavras, chega-se à forma “voz
no deserto”.
Para se levantar uma hipótese de interpretação para o emprego da
expressão “voz no deserto”, cuja fonte é bíblica, em referência à Romário, na
crônica, é necessário observar que, na Bíblia Sagrada, quando João Batista se
apresenta como “a voz do que clama no deserto”, o espaço geográfico onde
ele pregava era, de fato, no deserto da Judeia.
Se nas Escrituras, a palavra “deserto” é empregada de forma literal, na
crônica há uma transferência de sentidos, já que, nela, “deserto” não é usada
para se referir a um locus físico. No último período da crônica, a cronista, num
comportamento elocutivo, expõe claramente sobre qual “deserto” ela se
posiciona. O comportamento elocutivo é expresso por uma fórmula
modalizadora que indica o desejo de realçar e de esclarecer seu ponto de vista:
“(...) O que realmente estou querendo dizer é que, num deserto de ideias
lúcidas e opiniões honradas, a gente precisa tentar, com amor e
coragem, abrir caminhos, portas, janelas, e ajudar a mudar as coisas
que podem ser mudadas.”
Registre-se, aliás, neste trecho, uma segunda ocorrência do fenômeno
intertextual. Trata-se de um caso de intertextualidade por alusão, em que
“abrir caminhos” alude à mesma passagem bíblica referente a João Batista, no
livro do profeta Isaías:
“Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho ao Senhor; endireitai,
no ermo, vereda a nosso Deus” (Isaías 40:3; Tradução ARC, online)
Em síntese, a mensagem que a crônica deixa ao leitor é que, assim
como coube a João Batista – a voz do que clama no deserto – pregar aos
pecadores – “preparem o caminho para o Senhor” –, cabe aos cidadãos,
97
reunidos em um “grande coro”, abrir caminhos em prol das mudanças
necessárias e desejadas.
Ainda no parágrafo final, encontra-se uma terceira ocorrência de
intertexto bíblico – outro caso de intertextualidade por subversão. Observe-
se, na citação que se segue, a expressão em destaque:
“(...) E acho que nós, os cidadãos comuns, podemos ajudar, se não
aceitarmos fatos ruins como coisa natural, não acreditarmos em
promessas nem em exigências absurdas, se cumprirmos com
excelência nosso dever de cada dia, que inclui trabalho, cuidado com a
família, honradez e patriotismo – cada um dentro das suas
possibilidades (...)”.
No que concerne à dinâmica enunciativa, tem-se:
E1 = “pão nosso de cada dia”
E2 = Os cidadãos comuns ajudariam cumprindo com excelência os seus
deveres, entre outras possibilidades.
L = [“se cumprirmos com excelência”] “nosso dever de cada dia”
Nesta ocorrência, verifica-se o processo de substituição de palavras
como estratégia de reenunciação. O nome “pão” é substituído pelo nome
“dever”, dando margem à uma possível interpretação:
o “pão nosso de cada dia” é, na Bíblia, uma figuração da graça – o favor
imerecido – de Deus, visto que, o pão-alimento simboliza o próprio
Cristo, o menino-Deus, que outrora declarou “Eu sou o pão da vida.
Aquele que vem a mim nunca terá fome” (Ev. de João 6:35),
expressando-se acerca da fome espiritual;
na crônica, “nosso dever de cada dia” reflete a postura de
responsabilidade do ser humano mortal para o cumprimento de suas
obrigações;
98
logo, ao enunciar “nosso dever de cada dia”, remetendo à passagem
bíblica popularmente conhecida como “oração do Pai Nosso”,
estabelece-se uma relação entre aquilo que Deus já fez pelo homem,
mesmo que este não seja merecedor, e aquilo que o homem deve fazer
em retribuição ao favor imerecido de Deus.
4.1.5 Microanálises das ocorrências
A tabela a seguir elenca as 53 crônicas, com as ocorrências de intertexto
bíblico identificadas em cada uma delas, bem como microanálises de cada uma
dessas ocorrências contemplando: (a) a transcrição de cada ocorrência e da
passagem bíblica que a que ela remete; (b) o tipo de intertextualidade
identificado; (c) a operação de retextualização empregada, nos casos de
intertextualidade com valor de subversão.
* Legenda: P (E2) em (L) significa Perspectiva do enunciador E2 na voz do locutor (L). Exclusiva para os
casos de subversão, em que se verificam operações de retextualização.
Título Síntese do Fenômeno Intertextual
“Notas sobre cinema”
Ocorrência(s) na crônica: (1) “Mocinha e treinador jogavam
pérolas a porcos”
Texto-origem: “Não deem o que é sagrado aos cães, nem
atire suas pérolas aos porcos” (Mateus 7:6)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Uma Páscoa particular” Ocorrência(s) na crônica: (2) “A Páscoa” / (3) “a Páscoa” /
(4) “Minha Páscoa” / (5) “o fim dos tempos” / (6) “Minha
Páscoa”
Ocorrências 2, 3, 4 e 6
Texto-origem: “Então Moisés convocou todas as
autoridades de Israel e lhes disse: „Escolham um cordeiro ou
um cabrito para cada família. Sacrifiquem-no para celebrar a
Páscoa!‟” (Êxodo 12:21)
Tipologia: intertextualidade por alusão nas quatro
99
ocorrências
Ocorrência 5
Texto-origem: “Tendo Jesus se assentado no monte das
Oliveiras, os discípulos dirigiram-se a ele em particular e
disseram: „Dize-nos, quando acontecerão essas coisas? E
qual será o sinal da tua vinda e do fim dos tempos?‟”
(Mateus 24:3)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Faxina nos mitos II” Ocorrência(s) na crônica: (7) “É verdade que todos
precisamos ganhar o pão nosso com o velho suor”
Texto-origem: Trata-se de alusão ao texto popularmente
conhecido como “Oração do Pai Nosso”; remete,
especificamente, ao versículo que diz: “Dá-nos hoje o nosso
pão de cada dia” (Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de
cada dia dá-nos hoje” (Mateus 6:11 – ARC)18
Tipologia: intertextualidade por alusão
“O feio vício da inveja” Ocorrência(s) na crônica: (8) “Se só vulgarização e baixo
nível vendessem uma obra, o Espírito Santo – para quem
nele acredita – teria descido de nível ao inspirar a Bíblia, o
livro que mais vende no mundo”
Texto-origem:
“Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o
ensino, para a repreensão, para a correção e para a
instrução na justiça, para que o homem de Deus seja
apto e plenamente preparado para toda boa obra” (II
18
Além da tradução bíblica NVI, optou-se por apresentar, em algumas análises, a tradução ARC – Almeida Revista e Corrigida –, que, na microanálise da ocorrência 7, apresenta um paralelismo sintático entre o texto origem e o evento alusivo com o emprego da expressão “o pão nosso”. Não é o que se verifica na NVI, que traz “o nosso pão”.
100
Timóteo 3:16)
“pois jamais a profecia teve origem na vontade
humana, mas homens falaram da parte de Deus,
impelidos pelo Espírito Santo” (II Pedro 1:21)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Quero a pena de morte” Ocorrência(s) na crônica: (9) “ídolos de pés de barro”
Texto-origem: “Tu olhaste, ó rei, e diante de ti estava uma
grande estátua: uma estátua enorme, impressionante, e sua
aparência era terrível. A cabeça da estátua era feita de ouro
puro, o peito e o braço eram de prata, o ventre e os quadris
eram de bronze, as pernas eram de ferro, e os pés eram em
parte de ferro e em parte de barro” (Daniel 2:32,33)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“A revolução da decência” Ocorrência(s) na crônica: (10) “ídolos de barro”
Texto-origem: “Tu olhaste, ó rei, e diante de ti estava uma
grande estátua: uma estátua enorme, impressionante, e sua
aparência era terrível. A cabeça da estátua era feita de ouro
puro, o peito e o braço eram de prata, o ventre e os quadris
eram de bronze, as pernas eram de ferro, e os pés eram em
parte de ferro e em parte de barro” (Daniel 2:32,33)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Meu país é uma fênix” Ocorrência(s) na crônica: (11) “O Brasil geme nas dores
do parto de (esperemos) uma democracia menos infestada
pela corrupção” / (12) “Que surpresa malévola nos aguarda
a cada dia?” / (13) “temo uma varredura generalizada para
debaixo dos tapetes, com o sacrifício de alguns bodes
expiatórios para nos fazer crer que tudo está resolvido”
Ocorrência 11
Texto-origem: “Sabemos que toda a natureza criada geme
até agora, como em dores de parto” (Romanos 8:22)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras /
101
acréscimo de palavras / supressão de palavra
E1: “Sabemos que toda a natureza criada geme até agora,
como em dores de parto”
P (E2) em L: “O Brasil geme nas dores do parto de
(esperemos) uma democracia menos infestada pela
corrupção”
Ocorrência 12
Texto-origem: “Portanto, não se preocupem com o amanhã,
pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a
cada dia o seu próprio mal” (Mateus 6:34)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: transposição
E1 = “Basta a cada dia o seu próprio mal”
P (E2) em L: “Que surpresa malévola nos aguarda a cada
dia?”
Ocorrência 13
Texto-origem: Trata-se de uma referência alusiva ao
sacrifício vicário de uma vida por outra, o qual é mencionado
pela primeira vez no livro de Gênesis: “Abraão ergueu os
olhos e viu um carneiro preso pelos chifres num arbusto. Foi
lá pegá-lo, e o sacrificou como holocausto em lugar de seu
filho” (Gênesis 22:13).
De acordo com nota textual da Bíblia NVI, em concordância
com a teologia do antigo testamento, “assim como o carneiro
morreu no lugar de Isaque [filho de Abraão], também Jesus
deu a vida em resgate „por‟ (lit. „em lugar de‟) muitos”19
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Quem, por quê?” Ocorrência(s) na crônica: (14) “tudo fazem para que as
chaves sejam jogadas no mar do ignorado”
Texto-origem: “De novo terás compaixão de nós; pisarás as
nossas maldades e atirarás todos os nossos pecados nas
19
Nota textual, Bíblia de Estudos NVI, p.41.
102
profundezas do mar” (Miqueias 7:19)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras
E1: “atirarás todos os nossos pecados nas profundezas do
mar”
P (E2) em L: “tudo fazem para que as chaves sejam jogadas
no mar do ignorado”
“Quanto nós merecemos” Ocorrência(s) na crônica: (15) “Não nos ensinaram que
„Deus faz sofrer a quem ama‟?”
Texto-origem: “pois o Senhor disciplina a quem ama, assim
como o pai faz ao filho de quem deseja o bem” (Provérbios
3:12).
As aspas caracterizam o discurso relatado em estilo direto, e
podem indicar também: o distanciamento do locutor L com a
forma subvertida do enunciado origem, “Deus faz sofrer a
quem ama”; e que esse locutor busca se eximir da
responsabilidade pelo referido enunciado.20
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras
E1: “o Senhor disciplina a quem ama”
P (E2) em L: “Deus faz sofrer a quem ama”
“Para onde estamos
indo?”
Ocorrência(s) na crônica: (16) “sujeira por toda parte,
frases ameaçadoras nas paredes, trincheiras cheias de
pontiagudas estacas de bambu disfarçadas por ramos e
folhas para receber quem viesse tentar refazer a ordem e a
decência”
Texto-origem: “Mas tudo deve ser feito com decência e
ordem” (I Coríntios 14:40)
Tipologia: intertextualidade por alusão
20
Nesta ocorrência em particular, tem-se, do ponto de vista empírico, “uma só enunciação, pois, nesse caso, ela é ação de um único sujeito falante, mas a imagem que o enunciado dá dela é a de troca, de um diálogo, ou ainda de uma hierarquia de falas” (CARDOSO, 1999, p.68).
103
“Mulheres & poder” Ocorrência(s) na crônica: (17) “um messias de saias” / (18)
“a esperança nossa de cada dia”
Ocorrência 17
Texto-origem: “O primeiro que ele encontrou foi Simão, seu
irmão, e lhe disse: „Achamos o Messias‟ (isto é, o Cristo)”
(João 1:41)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: acréscimo
E1: “Messias”
P (E2) em L: “messias de saias”
Ocorrência 18
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras
E1: “o pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “a esperança nossa de cada dia”
“Não vou pra Pasárgada” Ocorrência(s) na crônica: (19) “pão nosso de cada dia”
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por captação
“Um grande lamento” Ocorrência(s) na crônica: (20) “levados ao sacrifício como
pobres carneiros, vão continuar morrendo
desnecessariamente pessoas que amamos tanto”
Texto-origem: “Ele foi oprimido e afligido; e, contudo, não
abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado para o
matadouro, e como uma ovelha que diante de seus
tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca” (Isaías
53:7)
Tipologia: intertextualidade por alusão
104
“Sobre o papel do pai” Ocorrência(s) na crônica: (21) “Com defeitos e
dificuldades, como todo mundo, sendo apenas um pobre ser
humano como todos nós, o pai tem de ser glorificado,
procurado, amado, aplaudido, pelo menos no dia a ele
dedicado”
Texto-origem: “E eu farei o que vocês pedirem em meu
nome, para que o Pai seja glorificado no Filho” (João 14:13)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Paisagem com
problemas”
Ocorrência(s) na crônica: (22) “„Do caos nasce a luz‟ e da
derrota pode nascer uma nova pessoa”
Texto-origem: Trata-se de uma referência ao primeiro
capítulo do livro de Gênesis, onde se lê: “Era a terra sem
forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito
de Deus se movia sobre a face das águas. Disse Deus:
„Haja luz‟, e houve luz” (Gênesis 1:2,3)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Sem retoque ou com
retoque?”
Ocorrência(s) na crônica: (23) “as notícias nossas de todo
dia”
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras
E1: “o pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “as notícias nossas de todo dia”
“Honrar pai e mãe” Ocorrência(s) na crônica: (24) “Honrar pai e mãe”
Texto-origem: “Honra teu pai e tua mãe,a fim de que tenhas
vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá” (Êxodo
20:12)
Tipologia: intertextualidade por alusão
105
“A matança dos bebês” Ocorrência(s) na crônica: (25) “Herodes faria uma festa” /
(26) “viva Herodes” / (27) “tanta gente boa crucificada
quando quer fazer o bem e consertar o mal”
Ocorrências 25 e 26
Texto-origem: “Depois que Jesus nasceu em Belém da
Judeia, nos dias do rei Herodes, magos vindos do oriente
chegaram a Jerusalém” (Mateus 2:1)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência 27
Texto-origem: “Um dos criminosos que ali estavam
dependurados lançava-lhe insultos: „Você não é o Cristo?
Salve-se a si mesmo e a nós!‟. Mas o outro criminoso o
repreendeu, dizendo: „Você não teme a Deus, nem estando
sob a mesma sentença? Nós estamos sendo punidos com
justiça, porque estamos recebendo o que os nossos atos
merecem. Mas este homem não cometeu nenhum mal‟”.
(Lucas 23:39-41)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“As bolsas e as vidas” Ocorrência(s) na crônica: (28) “o mundo ia se acabar” /
(29) “Dilúvio de grana entrando pelos bolsos” / (30) “o
mundo talvez esteja salvo” / (31) “inundá-los com essas
torrentes de dinheiro”
Ocorrência 28
Texto-origem: A Bíblia Sagrada não registra nada sobre o
mundo se acabar (o fim do mundo), o que parece ser uma
visão secular distorcida sobre “o fim dos tempos”. A primeira
ocorrência sobre o fim dos tempos encontra-se no Novo
Testamento: “Tendo Jesus se assentado no monte das
Oliveiras, os discípulos dirigiram-se a ele em particular e
disseram: „Dize-nos, quando acontecerão essas coisas? E
qual será o sinal da tua vinda e do fim dos tempos?‟”
(Mateus 24:3)
106
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência 29 e 31
Texto-origem: “„Eis que vou trazer águas sobre a terra, o
Dilúvio, para destruir debaixo do céu toda criatura que tem
fôlego de vida‟” (Gênesis 6:17)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência 30
Texto-origem: A Bíblia Sagrada ensina que o papel de
Salvador do mundo é atribuído a Jesus Cristo, o que pode
ser averiguado na seguintes passagens:
“Hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador que
é Cristo, o Senhor” (Lucas 2:11)
“E vimos e testemunhamos que o Pai enviou seu
Filho para ser o Salvador do mundo” (I João 4:14).
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Caipirinha chapa-branca” Ocorrência(s) na crônica: (32) “Dei-me ao trabalho de
botar os óculos, acender outra luz, ver melhor, ver para crer”
Texto-origem: Trata-se de uma alusão a Tomé, um dos
doze discípulos, que, a propósito de ressurreição de Jesus
Cristo, declarou: “Se eu não vir as marcas dos pregos em
suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os
pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei”
(João 20:25)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Do horror brota a
grandeza”
Ocorrência(s) na crônica: (33) “Famílias para sempre
destroçadas, para todo o sempre”
Texto-origem: “sim, ao único Deus sábio seja dada glória
para todo o sempre, por meio de Jesus. Amém” (Romanos
16:27)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Acreditar no Natal” Ocorrência(s) na crônica: (34) “coelho da Páscoa” / (35)
“São Pedro” / (36) “o milagre” / (37) “o nascimento de Cristo”
107
Ocorrência 34
Texto-origem: “Então Moisés convocou todas as
autoridades de Israel e lhes disse: „Escolham um cordeiro ou
um cabrito para cada família. Sacrifiquem-no para celebrar a
Páscoa!‟” (Êxodo 12:21)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência 35
Texto-origem: “Andando à beira do mar da Galileia, Jesus
viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão, André.
Eles estavam jogando redes ao mar, pois eram pescadores.”
(Mateus 4:18)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência 36
Texto-origem: “E não pôde fazer ali nenhum milagre, exceto
impor as mão sobre alguns doentes e curá-los” (Marcos 6:5)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência 37
Texto-origem: “Foi assim o nascimento de Jesus Cristo:
Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José,
mas, antes que se unissem, achou-se grávida pelo Espírito
Santo” (Mateus 1:18)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“As mortes poderiam ser
evitadas”
Ocorrência(s) na crônica: (38) “Talvez seja mais um sinal
dos tempos”
Texto-origem: “Dizia ele à multidão: „Quando vocês vêem
uma nuvem se levantando no ocidente, logo dizem: „Vai
chover‟, e assim acontece. Quando sopra o vento sul, vocês
dizem: „Vai fazer calor‟, e assim ocorre. Hipócritas! Vocês
sabem interpretar o aspecto da terra e do céu. Como não
sabem interpretar o tempo presente?‟” (Lucas 12:54-56)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Como administramos Ocorrência(s) na crônica: (39) “o apocalipse está
108
crises?” chegando”
Texto-origem: Referência ao título do último livro da Bíblia
Sagrada, o “Apocalipse”.
Tipologia: intertextualidade por alusão
“No paraíso da
transgressão”
Ocorrência(s) na crônica: (40) “No paraíso da
transgressão” / (41) “paraíso dos transgressores”
Texto-origem: Tem-se, nas duas ocorrências, um paradoxo,
pelo qual se opõem duas ideias biblicamente opostas:
“paraíso” X “transgressão”/”transgressores”. Nos dois casos,
é possível que se esteja fazendo referência ao Jardim do
Édem, popularmente conhecido como “paraíso”, e onde
também se registra o primeiro caso de “transgressão”,
quando Eva comeu do fruto da árvore que Deus havia
proibido.
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Esse poço tem fundo?” Ocorrência(s) na crônica: (42) “escândalos nossos de cada
dia” / (43) “a desorientada juventude nossa” / (44) “mas logo
se desfaz diante do comentário que vem do alto”
Ocorrência 42
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras
E1: “pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “escândalos nossos de cada dia”
Ocorrência 43
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras /
109
acréscimo de palavras / supressão de palavras
E1: “o pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “a desorientada juventude nossa”
Ocorrência 44
Texto-origem: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm
do alto, descendo do Pai das luzes, que não muda como
sombras inconstantes” (Tiago 1:17)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“A sordidez humana” Ocorrência(s) na crônica (45) “e se dirá que é por
idealismo, pela fé, porque seu Deus quis assim, porque terá
em compensação o paraíso para si e seus descendentes”
Texto-origem: a reunião dos vocábulos “Deus”, “paraíso” e
“descendentes” na mesma sentença permite a remissão a
várias passagens da Bíblia Sagrada, tais como:
“Jesus lhe respondeu: „Eu lhe garanto: Hoje você
estará comigo no paraíso‟” (Lucas 23:43)
“Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua
descendência e o descendente dela; este lhe ferirá a
cabeça e você lhe ferirá o calcanhar” (Gênesis 3:15)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“É o fim do mundo” Ocorrência(s) na crônica: (46) “É o fim do mundo” / (47)
“„Isso é o fim do mundo‟” / (48) “Minha avó acharia que o
mundo está por acabar” / (49) “O mundo vai acabar, diria
minha severa avó luterana” / (50) “O mais novo anuncio do
fim do mundo” / (51) “quem sabe o fim do mundo ainda
demore um pouco para chegar”
Ocorrências 46, 47, 48, 49, 50 e 51
Texto-origem: A Bíblia Sagrada não registra nada sobre o
mundo se acabar (o fim do mundo), o que parece ser uma
visão secular distorcida sobre “o fim dos tempos”. A primeira
ocorrência sobre o fim dos tempos encontra-se no Novo
Testamento: “Tendo Jesus se assentado no monte das
110
Oliveiras, os discípulos dirigiram-se a ele em particular e
disseram: „Dize-nos, quando acontecerão essas coisas? E
qual será o sinal da tua vinda e do fim dos tempos?‟”
(Mateus 24:3)
Tipologia:
- intertextualidade por subversão em (46), (47), (50) e (51)
- intertextualidade por alusão em (48) e (49)
Operação de retextualização [em (46), (47), (50) e (51)]:
substituição de palavras
E1: “o fim dos tempos”
P (E2) em (L): “o fim do mundo”
“Trilha de contradições” Ocorrência(s) na crônica: (52) “pouca trégua e nenhuma
misericórdia”
Texto-origem: “Tendo ele hesitado, os homens o agarraram
pela mão, como também a mulher e as duas filhas, e os
tiraram dali à força e os deixaram fora da cidade, porque o
Senhor teve misericórdia deles” (Gênesis 19:16)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Educação e autoridade” Ocorrência(s) na crônica: (53) “Quem dá forma ao mundo
ainda informe de uma criança e um pré-adolescente são os
adultos”
Texto-origem: “No princípio Deus criou os céus e a terra.
Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do
abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das
águas (...) No sétimo dia Deus já havia concluído a obra que
realizara, e nesse dia descansou. Abençoou Deus o sétimo
dia e o santificou, porque nele descansou de toda a obra
que realizara na criação” (Gênesis 1:1,2 e 2:2,3)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Contraponto: deixar
desabrochar”
Ocorrência(s) na crônica: (54) “veremos milagres” / (55)
“apenas humanos tentando entender o mundo de Deus e as
humanas trapalhadas”
111
Ocorrência 54
Texto-origem: “E não pôde fazer ali nenhum milagre, exceto
impor as mão sobre alguns doentes e curá-los” (Marcos 6:5)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência 55
Texto-origem: Trata-se de uma alusão ao diálogo entre
Jesus Cristo e Nicodemos, registrado no capítulo 3 do
evangelho de João, do qual segue um trecho transcrito: “O
vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer
de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com
todos os nascidos do Espírito. Perguntou Nicodemos: „Como
pode ser isso?‟ Disse Jesus: „Você é mestre em Israel e não
entende essas coisas? Asseguro-lhe que nós falamos do
que conhecemos e testemunhamos do que vimos, mas
mesmo assim vocês não aceitam nosso testemunho. Eu
lhes falei de coisas terrenas e vocês não creram; como
crerão se lhes falar de coisas celestiais?” (João 3:8-12)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“A gente decide” Ocorrência(s) na crônica: (56) “Indagados, os mais
desassistidos dirão que Deus é quem sabe, Deus decide, a
quem ama Deus faz sofrer”
Texto-origem: “pois o Senhor disciplina a quem ama, assim
como o pai faz ao filho de quem deseja o bem” (Provérbios
3:12)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras
E1: “o Senhor disciplina a quem ama”
P (E2) em L: “a quem ama Deus faz sofrer”
112
“A praga moderna” Ocorrência(s) na crônica: (57) “Não tem doença em que
algum médico ou psiquiatra não sentencie, depois de recitar
os enigmáticos termos médicos: „E tem também o stress‟.
Para alguns, ele é, aliás, a raiz de todos os males‟. / (58)
“todos nós, homens e mulheres, botamos nos ombros
cruzes de vários tamanhos, com prego ou sem prego, com
ou sem coroa de espinhos”
Ocorrência 57
Texto-origem: “Os que querem ficar ricos caem em
tentação, em armadilhas e em muitos desejos
descontrolados e nocivos, que levam os homens a
mergulharem na ruína e na destruição, pois o amor ao
dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por
cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormentaram
com muitos sofrimentos” (I Timóteo 6:9,10)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras
E1: “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”
P (E2) em L: “[o stress] é a raiz de todos os males”
Ocorrência 58
Texto-origem: “Então Pilatos mandou açoitar Jesus. Os
soldados teceram uma coroa de espinhos e a puseram na
cabeça dele. Vestiram-no com uma capa de púrpura e,
chegando-se a ele, diziam: “Salve, rei dos judeus!” E batiam-
lhe no rosto (...) Finalmente, Pilatos o entregou a eles para
ser crucificado. Então os soldados encarregarem-se de
Jesus. Levando a sua própria cruz, ele saiu para o lugar
chamado Caveira. Ali o crucificaram (...)” (João 19:1,2-16-
18)
Tipologia: intertextualidade por alusão
113
“Trabalhar e sofrer” Ocorrência(s) na crônica: (59) “„O trabalho enobrece‟ é
uma dessas frases que a gente repete sem refletir no que
significam, feito reza automatizada. Outra é „A quem Deus
ama, ele faz sofrer‟, que fala de uma divindade cruel, fria,
que não mereceria uma vela acesa sequer” / (60) “darás a
luz com dor”
Ocorrência 59
Texto-origem: “pois o Senhor disciplina a quem ama, assim
como o pai faz ao filho de quem deseja o bem” (Provérbios
3:12).
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras
E1: “o Senhor disciplina a quem ama”
P (E2) em L: “a quem Deus ama, ele faz sofrer”
Ocorrência 60
Texto-origem: “À mulher, ele declarou: „Multiplicarei
grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento
você dará à luz filhos” (Gênesis 3:16 - NVI); ou “E à mulher
disse: „Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua
conceição; com dor terás filhos‟” (Gênesis 3:16 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por captação
“Alegres e ignorantes” Ocorrência(s) na crônica: (61) “uma conversa pode nos
tirar escamas dos olhos”
Texto-origem: “Imediatamente, algo como escamas caiu
dos olhos de Saulo e ele passou a ver novamente.
Levantando-se, foi batizado” (Atos 9:18)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Mordaças e palmadas” Ocorrência(s) na crônica: (62) “Mas a tal lei da palmada,
me perdoem: parece-me irreal, inexequível, geradora de
muita confusão e de indevidas intromissões no lugar que
114
deveria ser o mais nosso, o mais pessoal, nosso refúgio,
nosso reino, nosso santo dos santos:21 a casa, a família, o
lar”
Texto-origem:
“Depois Arão entrará na Tenda do Encontro, tirará as
vestes de linho que usou para entrar no Santo dos
Santos e as deixará ali” (Levítico 16:23)
“O véu separará o Lugar Santo do Lugar Santíssimo”
(Êxodo 26:33)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Plataforma contra as
fomes”
Ocorrência(s) na crônica: (63) “o prato de cada dia”
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: Substituição de palavras
E1: “o pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “o prato de cada dia”
“Os dias depois” Ocorrência(s) na crônica: (64) “Que os fantasmas de
pesadelo que a rondam periodicamente desapareçam para
todo o sempre, amém”
Texto-origem: “sim, ao único Deus sábio seja dada glória
para todo o sempre, por meio de Jesus. Amém” (Romanos
16:27)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“A lei e a Justiça” Ocorrência(s) na crônica: (65) “os escândalos nossos de
cada dia”
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por subversão
21
Também conhecido, nas Escrituras, como Lugar Santíssimo.
115
Operação de retextualização: Substituição de palavras
E1: “pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “os escândalos nossos de cada dia”
“O inverno do nosso
desalento”
Ocorrência(s) na crônica: (66) “quem não quer ver, para
não ter de crer”
Texto-origem: Trata-se de uma alusão a Tomé, um dos
doze discípulos, que, a propósito de ressurreição de Jesus
Cristo, declarou: “Se eu não vir as marcas dos pregos em
suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os
pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei”
(João 20:25)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“A dor do mundo” Ocorrência(s) na crônica: (67) “nosso pão de cada dia”
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por captação
“Drogas: o labirinto” Ocorrência(s) na crônica: (68) “Drogas tem sido o assunto
nosso de cada dia, não o pão, mas o veneno da alma” / (69)
“se abram os abismos do inferno, não míticos infernos de
anjos caídos, mas o labirinto onde se desperdiça a vida”
Ocorrência 68
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: Substituição de palavras
E1: “pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “assunto nosso de cada dia”
Ocorrência 69
Texto-origem: “Ele respondeu: „Eu vi Satanás caindo do
céu como relâmpago‟” (Lucas 10:18)
116
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Baile de máscaras” Ocorrência(s) na crônica: (70) “Somos muitos, já disse o
demônio encarnado em algum pobre que Cristo libertou”
Texto-origem: Pois Jesus lhe tinha dito: „Saia deste homem,
espírito imundo!‟. “Então Jesus lhe perguntou: „Qual é o seu
nome?‟. „Meu nome é Legião‟, respondeu ele, „porque
somos muitos.‟ E implorava a Jesus, com insistência, que
não os mandasse sair daquela região. Uma grande manada
de porcos estava pastando numa colina próxima. Os
demônios imploraram a Jesus: „Manda-nos para os porcos,
para que entremos neles‟. Ele lhes deu permissão, e os
espíritos imundos saíram e entraram nos porcos” (Marcos
5:8-13)
Tipologia: intertextualidade por captação
“Pós-modernos de
tacape”
Ocorrência(s) na crônica: (71) “não se consegue por todo
o sempre, mas por algum tempinho”
Texto-origem: “sim, ao único Deus sábio seja dada glória
para todo o sempre, por meio de Jesus. Amém” (Romanos
16:27)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Voz no deserto” Ocorrência(s) na crônica: (72) “Voz no deserto” / (73) “a
gente precisa, com amor e coragem, abrir caminhos, portas,
janelas, e ajudar a mudar as coisas que podem ser
mudadas” / (74) “nosso dever de cada dia”
Ocorrência(s) 72
Texto-origem: “Este é aquele que foi anunciado pelo profeta
Isaías: “Voz do que clama no deserto: „Preparem o caminho
para o Senhor, façam veredas retas para ele‟” (Mateus 3:3)
Tipologia: intertextualidade com valor de subversão
Operação de retextualização: Supressão de palavras
117
E1: “Voz do que clama no deserto”
P (E2) em L: “voz no deserto”
Ocorrência(s) 73
Texto-origem: Texto-origem: “Este é aquele que foi
anunciado pelo profeta Isaías: “Voz do que clama no
deserto: „Preparem o caminho para o Senhor, façam
veredas retas para ele‟” (Mateus 3:3)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência(s) 74
Texto-origem: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”
(Mateus 6:11 – NVI) ou “O pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” (Mateus 6:11 – ARC)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: Substituição de palavras
E1: “pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “nosso dever de cada dia”
“Degraus de ilusão” Ocorrência(s) na crônica: (75) “Podemos ser derrotados,
mas não estaremos jogados na cova dos leões do destino,
totalmente desarmados”
Texto-origem: “Todos os supervisores reais, os prefeitos, os
sátrapas, os conselheiros e os governadores concordaram
em que o rei deve emitir um decreto ordenando que todo
aquele que orar a qualquer deus ou a qualquer homem nos
próximos trinta dias, exceto a ti, ó rei, seja atirado na cova
dos leões” (Daniel 6:7)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“O instinto animal” Ocorrência(s) na crônica: (76) “não é certo que da treva
sempre nasce a luz”
Texto-origem: Trata-se de uma referência ao primeiro
capítulo do livro de Gênesis, onde se lê: “Era a terra sem
forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito
118
de Deus se movia sobre a face das águas. Disse Deus:
„Haja luz‟, e houve luz” (Gênesis 1:2,3)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“Querendo que dê certo” Ocorrência(s) na crônica: (77) “o sal da terra” / (78) “um
milagre” / (79) “Não acredito cegamente”
Ocorrência 77
Texto-origem: “„Vocês são o sal da terra. Mas se o sal
perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para
nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens‟”
(Mateus 5:13)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência 78
Texto-origem: “E não pôde fazer ali nenhum milagre, exceto
impor as mão sobre alguns doentes e curá-los” (Marcos 6:5)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Ocorrência 79
Texto-origem: Trata-se de uma alusão a Tomé, um dos
doze discípulos, que, a propósito de ressurreição de Jesus
Cristo, declarou: “Se eu não vir as marcas dos pregos em
suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os
pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei”
(João 20:25)
Tipologia: intertextualidade por alusão
“A formação de um povo” Ocorrência(s) na crônica: (80) “não adianta um telhado de
luxo sobre paredes rachadas em casas construídas sobre
areia movediça”
Texto-origem: “Mas quem ouve estas minhas palavras e
não as pratica é como um insensato que construiu a sua
casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios,
sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu.
E grande foi a sua queda” (Mateus 7:26,27)
Tipologia: intertextualidade por alusão
119
“Eu ia falar de flores” Ocorrência(s) na crônica: (81) “nem só de indignação, por
mais justa que seja, a gente vive”
Texto-origem: “Assim, ele os humilhou e os deixou passar
fome. Mas depois os sustentou com maná, que nem vocês
nem os seus antepassados conheciam, para mostrar-lhes
que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra
que procede da boca do Senhor” (Deuteronômio 8:3)
Tipologia: intertextualidade por subversão
Operação de retextualização: substituição de palavras
E1: “nem só de pão viverá o homem”
P (E2) em L: “nem só de indignação... a gente vive”
“O jeito brasileiro” Ocorrência(s) na crônica: (82) “Aí vem Francisco, o papa,
com seu jeito de vovozinho alegre, mas não se enganem: é
experiente, é sábio, é corajoso, chega dizendo que não traz
nem ouro nem prata, mas Cristo”
Texto-origem: a fonte original encontra-se no livro de Atos
dos Apóstolos: “Disse Pedro: „Não tenho prata, nem ouro,
mas o que tenho, isto lhe dou. Em nome de Jesus Cristo, o
Nazareno, ande‟” (Atos 3:6).
Nesta ocorrência, o locutor incorpora linguisticamente na
sua fala a fala de um locutor L2: “não traz ouro nem prata,
mas Cristo”, enunciado antecedido pelo marcador de
discurso indireto “dizendo que”.
Tipologia: intertextualidade por captação
“Eu pensava ter visto
tudo”
Ocorrência(s) na crônica: (83) “queremos a boa-nova de
que médicos brasileiros ou estrangeiros cumprindo as
provas legais encontrem condições mínimas para trabalhar”
Texto-origem: “Jesus foi por toda a Galileia, ensinando nas
sinagogas deles, pregando as boas novas do Reino e
curando todas as enfermidades e doenças entre o povo”
(Mateus 4:23)
Tipologia: intertextualidade por alusão
120
“Tomie Ohtake e a
esperança”
Ocorrência(s) na crônica: (84) “que tudo não desmorone
como um grande castelo erguido sobre um mangue”
Texto-origem: “Mas quem ouve estas minhas palavras e
não as pratica é como um insensato que construiu a sua
casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios,
sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu.
E grande foi a sua queda” (Mateus 7:26,27)
Tipologia: intertextualidade por alusão
Por meio de alguns critérios, buscou-se, por meio da análise qualitativa,
descrever o funcionamento dos elementos intertextuais na construção de um
ethos cristão. A primeira parte, que contempla análises de quatro crônicas, não
somente revela a presença do intertexto bíblico, como também aponta para sua
atuação na organização discursiva, uma vez que, em alguns casos, os
referidos elementos participam efetivamente. A segunda parte, correspondente
à tabela com as micro-análises, oferece, como se pode observar, uma visão
geral de todas as ocorrências do fenômeno intertextual.
Acredita-se, com esse procedimento, que as hipóteses relacionadas à
análise qualitativa, previamente levantadas e registradas na introdução desta
pesquisa, sejam ratificadas.
A primeira hipótese, segundo a qual a ocorrência do intertexto bíblico
nas crônicas de Lya Luft expressaria um ethos religioso cristão, é parcialmente
confirmada, já que ela está atrelada também à análise quantitativa e à
ratificação das demais hipóteses.
A segunda hipótese, segundo a qual a manifestação do intertexto bíblico
revelaria um conhecimento especificamente amplo da Bíblia por parte da
escritora Lya Luft, se sustenta pela constatação de que as passagens bíblicas
que se verificam como fonte da intertextualidade são variadas, já que se
encontram em diferentes livros, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento.
A terceira hipótese, de acordo com a qual os casos de intertextualidade
por subversão – em que ocorre a retextualização do texto-fonte – seriam
indícios de uma forte familiaridade com o discurso bíblico. Para validar essa
121
hipótese, observe-se como a cronista, partindo da estrutura do texto original,
engendra novas significações em seu discurso, de maneira bastante particular.
A quarta hipótese, pela qual se revelaria que o intertexto bíblico participa
da orientação argumentativa que a cronista busca imprimir em seus textos, é
ratificada pela primeira parte da análise, por meio da qual se demonstrou, em
alguns casos, que a argumentação se estrutura em torno de um elemento
intertextual. A título de exemplificação, retoma-se a primeira ocorrência de
intertexto bíblico verificada na análise da crônica “Meu País é uma Fênix”, bem
como o seu funcionamento na organização argumentativa do texto:
Tese: “O pano de fundo de minhas frases acabaria sendo a teia de malfeitos
que de momento constrangem o meu país”.
Argumento: “O Brasil geme nas dores do parto de (esperemos) uma
democracia menos infestada pela corrupção”.
Observe-se que a sequência de texto correspondente ao argumento é
uma retextualização da passagem bíblica registrada na carta do apóstolo Paulo
aos Romanos, transcrita a seguir:
“Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores
de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos
do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa
adoção como filhos, a redenção do nosso corpo” (Romanos 8:22; Bíblia
de estudo NVI, 2003, p.1934).
Assim, nota-se que o intertexto bíblico, além de expressar um ethos
religioso cristão, participa, em alguns casos do direcionamento argumentativo
ao qual o leitor é levado a seguir.
As demais hipóteses serão confirmadas pela análise quantitativa,
apresentada na próxima seção.
122
4.2 O corpus sob uma perspectiva quantitativa
Considerando-se que, dentre 228 crônicas reunidas, publicadas entre os
anos de 2005 e 2013, foram selecionadas 53 para composição do corpus; e
que o fenômeno intertextual focalizado apresentou 84 ocorrências, observe-se
o seguinte gráfico, bem como o significado dos resultados obtidos:
DISTRIBUIÇÃO DOS TIPOS DE INTERTEXTUALIDADE
68%(57)
26%(22)
6%(5)
Intertextualidade com valor de captação
Intertextualidade com valor de subversão
Intertextualidade por alusão
O gráfico mostra que, do total de 84 ocorrências de intertexto bíblico, a
maior frequência – 68% (57 oc.) – é constituída de casos de intertextualidade
por alusão; 26% (22 oc.) correspondem aos casos de intertextualidade com
valor de subversão; e 6% (5 oc.) são casos de intertextualidade com valor de
captação.
Assim como na análise qualitativa, a análise quantitativa deverá
viabilizar a ratificação de algumas hipóteses que foram delineadas na
introdução deste trabalho.
A quinta hipótese, pela qual se atestaria o recurso ao intertexto bíblico
como um fenômeno recorrente nas crônicas de Lya Luft se confirma pelo total
123
de ocorrências identificadas no corpus. São 84 ocorrências distribuídas entre
as três modalidades de intertextualidade – captação, subversão e alusão.
A sexta hipótese, segundo a qual a construção do referido ethos cristão
se dá preferencialmente por meio de formas intertextuais de natureza mais
implícitas, considerando-se uma escala de implicitude, é validada pela maior
frequência de ocorrências de intertextualidade por alusão e de intertextualidade
com valor de subversão. O primeiro situa-se no nível mais profundo de
implicitude; e o segundo, em um nível intermediário de implicitude.
A menor frequência de ocorrências de intertextualidade com valor de
captação reafirma a preferência de Lya Luft por estratégias menos evidentes –
de maior implicitude –, que configuram um estilo próprio e, por isso, revela a
intimidade que, ao longo dos anos, se estabeleceu entre a cronista e seu
público leitor. Saliente-se que, embora a tipologia da captação se situe em um
nível mais “raso” de implicitude, não se deve ignorar que se trata de uma forma
não marcada de intertexto, e, portanto, da ordem do implícito.
A sétima hipótese, que prevê que o ethos religioso cristão se expressa
também na dinâmica polifônica, numa relação entre as vozes das instâncias
enunciativas é confirmada pelo considerável número de ocorrências de
intertextualidade com valor de subversão. Analisados sob a ótica da Teoria
Polifônica da Enunciação, os casos de subversão apontam para a existência de
um enunciador E1, responsável pela expressão do texto-fonte, extraído da
Bíblia Sagrada, e de um enunciador E2, que corresponde a uma perspectiva
que se expressa pela voz do locutor L, materializando linguisticamente o
intertexto.
O próximo gráfico apresenta as frequências referentes às operações de
retextualização verificadas nas 22 ocorrências de intertextualidade com valor
de subversão registradas:
124
DISTRIBUIÇÃO DAS OPERAÇÕES DE RETEXTUALIZAÇÃO
NAS OCORRÊNCIAS DE INTERTEXTUALIDADE COM
VALOR DE SUBVERSÃO
12%(3)
4%(1)
12%(3)
72%(19)
Substituição
Acréscimo
Supressão
Transposição
O gráfico é claro ao evidenciar, dentre um total de 26 ocorrências, a
supremacia da operação de substituição de palavras, empregada em 72% (19
oc.) dos casos, contra 12% (3 oc.) correspondentes à frequência da operação
de acréscimo; outros 12 % (3 oc.) correspondentes à frequência da operação
de supressão; e 4% (1 oc.) correspondentes à frequência da operação de
transposição.
Saliente-se que as operações de retextualização são aquelas que, nas
análises, são empregadas por um enunciador E2 a fim de alterar/subverter o
texto-origem, resultando nas ocorrências de intertextualidade por subversão,
expressas pela voz do locutor L.
A operação de retextualização por substituição consiste na omissão de
certas palavras do texto-origem para dar lugar a outras palavras, como
mostram os exemplos abaixo, retomados do corpus:
1) E1: “o Senhor disciplina a quem ama”
P (E2) em L: “Deus faz sofrer a quem ama”
[Ocorrência (15)]
2) E1: “o pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “a esperança nossa de cada dia”
125
[Ocorrência (18)]
3) E1: “pão nosso de cada dia”
P (E2) em L: “escândalos nossos de cada dia”
[Ocorrência (42)]
4) E1: “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”
P (E2) em L: “[o stress] é a raiz de todos os males”
[Ocorrência (57)]
A constatação de que a operação de substituição é a mais recorrente
indica a busca do enunciador por preservar ao máximo a estrutura formal do
enunciado original. Se assim não fosse, as operações de supressão e/ou
acréscimo deveriam ser as mais frequentes, uma vez que implicam alterações
relativamente mais profundas na estrutura do texto-origem.
Além disso, é plausível considerar que a frequência abundante da
operação de substituição possa significar que ela constitui a forma mais
emblemática de retextualização, tendo em vista que, em suma, a
retextualização consiste em “substituir” um texto por outro.
Por conta dessas evidências, acredita-se que os casos de
intertextualidade com valor de subversão se sobressaem no quadro geral das
análises, ainda que apareçam com um percentual inferior em relação aos
casos de intertextualidade por alusão.
Ao fim deste capítulo de análises, acredita-se que se confirma a primeira
hipótese levantada na introdução, podendo-se afirmar, então, que a ocorrência
do intertexto bíblico nas crônicas de Lya Luft expressa um ethos religioso
cristão.
Tendo em vista o quadro geral das análises qualitativa e quantitativa, registra-
se a defesa da tese: diferentes estratégias de intertextualidade participam
da construção de um ethos religioso cristão em crônicas de Lya Luft
publicadas na revista Veja.
126
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos pressupostos teóricos elencados e na metodologia de
análise adotada para conduzir as investigações, pode-se confirmar as
hipóteses previamente levantadas e, assim, chegar ao término da tese em
defesa. Após este percurso teórico-analítico, trilhado para satisfazer os
propósitos delineados ao longo do trabalho, conclui-se com o registro de
algumas considerações.
Em síntese, os resultados obtidos mostram a construção de um ethos
religiosos cristão que se projeta pelo emprego de certas formas de intertexto
bíblico que a escritora Lya Luft utiliza com bastante frequência em suas
crônicas.
A propósito das ocorrências de intertexto bíblico identificadas no corpus,
verificou-se a existência de três tipologias: intertextualidade por alusão,
intertextualidade com valor de subversão e intertextualidade com valor de
captação. Adotou-se, como critério de classificação, uma escala de implicitude,
no interior da qual se estabeleceu que a alusão ocupa o pólo de maior
profundidade e a captação, o nível mais raso de implicitude. A tipologia da
subversão, por sua vez, situa-se em uma posição intermediária.
Os resultados apontam a tipologia intertextual da alusão como a mais
recorrente nas crônicas de Lya Luft analisadas. Ao descrever o modo como as
formas alusivas ultrapassam os limites do cotexto, situando-se no nível mais
profundo da escala de implicitude, pode-se compreender que um evento
alusivo ancora-se essencialmente na memória discursiva, exigindo do leitor um
esforço extremamente maior para o reconhecimento do intertexto.
Não se pode deixar de realçar os casos de intertextualidade com valor
de subversão, por meio dos quais pode-se perceber a produtividade da
aplicação da teoria polifônica como método analítico. Essa opção para tratar
dos referidos casos de subversão revelou-se eficaz não somente para o
conhecimento de cada uma das instâncias expressas pelos elementos
intertextuais, mas para se confirmar pontualmente quais foram os textos-fonte
127
(hiperenunciador E1) expressos pela voz do locutor (L), a fim de se chegar à
forma empregada nas crônicas (enunciador E2).
Quanto aos casos de intertextualidade com valor de captação, destaca-
se que, embora as ocorrências evidenciem uma menor exigência de esforço
cognitivo do leitor para a recuperação do intertexto, por conta de seu caráter de
semelhança com o texto-fonte, não se pode negar que se trata de um tipo de
intertextualidade implícita. Por isso, mesmo que os resultados apontem para
uma menor frequência de ocorrências de captação, entre as três tipologias, tais
casos não devem ser ignorados.
No que se refere à maneira como os três tipos de intertextualidade
convergem para a construção do ethos cristão, é preciso ressaltar que:
nas ocorrências de intertextualidade por alusão, a projeção de uma
imagem de si constitui-se como resultado do recurso aos níveis
mais implícitos de intertextualidade restrita;
nas ocorrências de intertextualidade com valor de subversão, a
construção do referido ethos é operada, principalmente, na
dinâmica polifônica, ou, mais precisamente, pela identificação do
enunciador E1, responsável por enunciar o texto-origem;
nas ocorrências de intertextualidade com valor de captação, a
semelhança do elemento intertextual com o texto-origem indica que
a construção do ethos cristão se dá, sobretudo, por meio das
instruções formais presentes no cotexto.
Compreendendo-se o fenômeno da intertextualidade não mais no
sentido restrito como foi tratado ao longo desta pesquisa, mas como uma
condição constitutiva da linguagem e sabendo-se, assim, que todo discurso é
atravessado por discursos outros, verificou-se, nas análises, que não se trata
somente do emprego da forma de um conteúdo fragmentado da Bíblia
Sagrada. Para além das restrições formais, observou-se que se trata, de fato,
do discurso bíblico em interação com o discurso jornalístico, representado pelo
gênero analisado, a crônica. Esferas discursivas distintas se entrecruzando a
128
cada enunciação, fruto da natureza dialógica de que se revestem a linguagem
e os sujeitos.
Assim, a Bíblia Sagrada atravessa os discursos contemporâneos, como
uma forma de ela própria perpetuar na história, servindo como reflexo tanto do
que se foi (memória) quanto do que é (atualidade). E a sua vastidão temática
torna ainda maior sua capacidade de perpassar os espaços sociais e o tempo:
a esperança que conduz ao otimismo; o sacrifício que suscita a ideia de
assunção de papéis relevantes; as dores e aflições que podem ser uma formas
de disciplinar o homem. Todos esses aspectos são bem explorados por Lya
Luft, que, mesmo inconsciente disto – porque o interdiscurso é esse espaço de
constituição do sentido que escapa às intenções subjetivas –, revela-se em seu
discurso.
Antes de fechar esta conclusão, julga-se importante destacar, ainda, a
contribuição dos teóricos a que se recorreu para fundamentar a pesquisa, uma
vez que foram essenciais no auxílio à compreensão dos fenômenos estudados.
Nesse sentido, este trabalho é também uma exaltação aos autores referidos.
Acredita-se que esta investigação é relevante, no âmbito de uma linha
de pesquisa que estuda as relações entre língua e discurso, uma vez que
deverá:
constituir uma alternativa de modelo de análise para outros trabalhos
sobre ethos discursivo;
contribuir para pesquisas posteriores, aos interessados pelo
fenômeno da intertextualidade;
contribuir também para trabalhos cujo material de análise é
constituído de exemplares do gênero textual crônica jornalística; e
salientar a relevância das teorias elencadas para as pesquisas em
torno do temas abarcados.
Chega-se, assim, ao encerramento deste trabalho, intitulado O
Intertexto Bíblico Como Expressão De Um Ethos Nas Crônicas De Lya
Luft.
129
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