o conceito de filosofia na republica -...
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Universidade de Braslia
Departamento de Filosofia
Disciplina: Monografia Filosfica, turma D.
Professor: Agnaldo Cuoco Portugal
Aluno: Jean Pierre de Souza
O Conceito de Filosofia na Repblica
Dissertao filosfica apresentado ao Curso de Graduao em Filosofia da UnB como requisito parcial para obteno do ttulo de Bacharel em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Agnaldo Cuoco Portugal.
Braslia, 27 de junho de 2011.
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ndice
1- Introduo.......................................................................................................... 3
2- Filosofia como possibilidade do conhecimento................................................. 7
3- A filosofia como processo de liberdade da alma............................................... 17
4- Filosofia como modo de produo da felicidade............................................... 23
5- Filosofia como fenmeno esttico-tico-teolgico e poltico........................... 27
6- Consideraes finais........................................................................................... 34
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INTRODUO
Na leitura da lio no se busca o que o texto sabe, mas o que o texto pensa. Ou seja, o que o texto leva a pensar. Por isso, depois da lio, o importante no o que ns saibamos do texto, o que ns pensamos do texto, mas o que com o texto, ou contra o texto ou a partir do texto ns sejamos capazes de pensar.
Jorge Larrosa
Segundo a tradio, o criador do termo filosofia foi Pitgoras, o que, embora
no sendo historicamente seguro, no entanto verossmil. O termo certamente foi
cunhado por um esprito religioso, que pressupunha s ser possvel aos deuses uma
sofia (sabedoria), ou seja, uma posse certa e total do verdadeiro, uma contnua
aproximao ao verdadeiro, um amor ao saber nunca saciado totalmente, de onde,
justamente, o nome filo-sofia, ou seja, amor pela sabedoria (REALE, 1994, p. 21)
E, nas pistas da tradio grega, continuaremos aqui uma investigao sobre a
filosofia mesma, naquela que Jaeger chama a obra mais importante de Plato
(JAEGER, 2003, p. 760), a grande obra prima, A Repblica (idem, idem, p. 601).
Analisaremos assim o que filosofia na obra mxima do filsofo que, com ele ou contra
ele, talvez seja o filsofo mais influente de toda a histria da filosofia.
Ainda preciso observar que, segundo Pierre Hadot, as palavras da famlia
philosophia surgiram apenas no sculo V a.C. e o termo s foi definido filosoficamente
no sculo IV a.C. por Plato (HADOT, 1999, p. 27). Assim, vamos encontrar no
Fedro: A palavra sbio, Fedro, parece demasiadamente sublime. Ela convm somente
ao divino; j a expresso amigo da sabedoria ou outra semelhante mais adequada.
(PLATO, Fedro, 278 d).
E na Repblica Plato faz ntida distino entre amigos da opinio e amigos
da sabedoria (idem, Rep. 480 a). O amigo da opinio, para Plato, aquele das
anlises superficiais ligadas transitoriedade da matria e percepo pelos sentidos. J
o filsofo aquele que procura ver alm dos sentidos, buscando o sentido real naquilo
que as coisas so em si mesmas, ou seja, no seu aspecto verdadeiro, belo e justo em si.
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Assim como Plato apresenta o ser humano essencialmente como uma alma
dividida em suas partes, em seus aspectos diferenciados, a prpria filosofia no deixaria
de se apresentar em sua obra em seus aspectos mltiplos, a saber, teolgico, poltico,
esttico, tico, potico, todos esses aspectos inter-relacionados, mas tambm preciso
verificar como a filosofia se caracteriza com as possibilidades dessa coisa humana que
o pensar que se manifesta atravs de um discurso.
A filosofia talvez seja o conjunto das tentativas mximas, em termos de
linguagem, do ato de pensar sobre o prprio ato de pensar e de tudo o que afeta o
pensamento; e tambm o pensamento sobre tudo o que possa dar margem a pensar,
dando aquela conexo convincente a esse prprio pensamento, o que chamaramos de
uma maneira racional de articular o pensamento. Essas idias surgirem dessa forma
porque em Plato, a filosofia no se d somente pelo raciocnio dialtico, o lgos
propriamente dito assim racional. Para Plato, o mundo da inteligibilidade se d
tambm por imagens, poderamos dizer, pelo uso da imaginao. Pensar, ento,
dialeticar, dialogar, colocar o pensamento em combate, mas tambm deix-lo fluir,
imaginar. O discurso tambm se desdobra na produo de imagens.
Dessa forma, a filosofia se d tambm com aquilo com o que a mente capaz de
visualizar. Ela, a mente, produz cenas, porque tambm vivemos num mundo de cenas,
ou seja, a filosofia est tambm dentro deste cenrio, de um cenrio, como um teatro ou
um cinema. A filosofia em Plato se forma, como a sua obra, por personagens, dilogos
e lugares aonde acontecem as cenas; personagens que inventamos baseados na
realidade. A realidade , ento, o que nos serve de base para alarmos voos mais
altos.
Plato elabora assim seus dilogos, colocando na boca de um filsofo que se
chamava Scrates talvez palavras que ele nunca teria sido capaz de ter dito: Dizem
que Scrates, ouvindo Plato ler o Lsis, exclamou: Por Heracls! Quantas mentiras
esse rapaz me faz dizer! Com efeito, Plato atribui a Scrates no poucas afirmaes
que este jamais fez. (LARTIOS, 1988, p. 93).
Isso nos leva a pensar at que ponto, a partir de Plato, na filosofia de Plato,
realidade e fico no se confundem. Ou at mesmo at que ponto filosofia e fico no
se confundem. A realidade suprema, a verdade, todos os conceitos que saem da obra
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platnica no se aproximam, ento, disso que chamamos de literatura, poesia? Sabemos
que literatura no , mas no podemos deixar de ver as aproximaes da filosofia com a
fico. A Repblica, como os dilogos platnicos em geral, revela a aproximao da
filosofia com a poesia. Atacando os poetas consagrados, Plato salva a poesia.
Incorreto ver abismos entre prosa e poesia, no exame da literatura platnica. Na escrita
de Plato, prosa e poesia confluem. Consideramos sinnimos fingimento, fico e
poesia. Poderamos legitimamente proceder de outro modo? (SCHLER, 2001, p.18).
A fico tambm no uma possibilidade do pensamento, s alturas, alm das
alturas? No tambm uma maneira de interpretar a realidade? E a filosofia tambm
no uma maneira diferente da fico, mas como ela, de interpretar a realidade? E
quantas so as nossas possibilidades de interpretao diante do espetculo de uma obra
viva ou literria que se apresenta sobre ns?
A Filosofia antes, uma palavra, que se nos aparece, que apareceu na Grcia e
nos fez seus herdeiros. A palavra guarda um conceito e por isso mesmo nos escapa. Ns
vamos assim no rastro dessa palavra na Repblica e com ela nos achar e com ela nos
perder, pois essa palavra carrega um sentido, melhor, vrios sentidos. que todo
conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra dos seus componentes. por
isso que, de Plato a Brgson, encontramos a idia de que o conceito questo de
articulao, corte e superposio. (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p. 27). Cortar,
articular, superpor filosofia prpria filosofia para fazer aparecer e at desaparecer
como queria Plato com os conceitos dos sofistas: sobrepor um conceito sobre outro.
Para Deleuze e Guatarri, o filsofo inventa e pensa o conceito (idem, idem, p.
11). O amor, o valor, o bem, o mal, o conhecimento, a cincia, por exemplo,
so conceitos inventados. Os gregos, como bons filsofos, inventaram tambm o
conceito de amizade e de sabedoria, e a partir deles, descontentes que eram,
inventaram tambm o de filosofia. E como no h conceito simples, (...) como ele
uma multiplicidade (...) Todo conceito ao menos duplo, ou triplo, etc. (idem, idem, p.
27), a filosofia tambm se duplica, triplica-se e multiplica-se conceitualmente. Essa
multiplicidade nos leva a pensar na filosofia tambm como um fenmeno esttico,
artstico, teatral. Leva-nos tambm a uma outra pergunta: Qual o jeito certo para se
fazer filosofia? Existe o jeito correto de se fazer filosofia? A filosofia no o lugar que
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exatamente ou inexatamente deve permitir o escape, o espanto, e que, ao mesmo tempo,
deve se familiarizar com o desfamiliar, assim como habitante da caverna tem que se
familiarizar com a luz que no conhecia?
Pensemos somente na palavra que define, aquela mesma pela qual se d a
significao as coisas: Lgos. Quantos significados podemos encontrar para isso que em
grego palavra, dito; revelao divina, resposta de um orculo; mxima, sentena;
exemplo; deciso, resoluo, condio, promessas; pretexto; argumento; ordem;
meno; notcia que corre; conversao; relato; matria de estudo ou de conversao;
razo, inteligncia; senso comum; a razo de uma coisa; motivo; juzo, opinio; estima,
valor que se d a uma coisa; justificao; explicao; a razo divina (ISIDRO, 1998, p.
350)?
Por quantos caminhos poderamos ir atrs do lgos filosfico e por quantos
caminhos no podemos seguir? Comearamos, assim, pela palavra, sua etimologia;
passaramos pelo orculo e, quem sabe por ali no decifraremos uma revelao divina?
Veramos o que esse conceito de filosofia em Plato tem de exemplo, de moral, de
tico; e quem sabe, ao final, nos sintamos mais inteligentes, mais iluminados, ou
encontremos o motivo mesmo que nos leva a perseguir os conceitos, ou pelo menos, nos
satisfaamos com uma opinio, com uma opinio correta, ou melhor, com muitas
opinies. Ao final, esse texto no deixar de ter sido uma conversa, um dilogo: do
personagem que l com o personagem Plato; do personagem que escreve com ele
mesmo.
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2- FILOSOFIA COMO POSSIBILIDADE E LIMITE DE CONHECIMENTO.
Na alegoria da caverna temos um algum que se liberta das correntes que o
prende a um mundo limitado. Temos ali dentro da caverna, ento, um mundo restrito e,
fora dali, um mundo ilimitado. Essa metfora representa, entre outras coisas, a limitao
daquilo que ns conhecemos para a infinitude daquilo que ainda no conhecemos.
Infinitude no o termo propriamente adequado porque, em Plato, o conhecimento
chega a um lugar o conhecimento do Bem. Em todo caso, poderamos, a partir da
leitura de Plato, rondar o terreno dos limites ou do rompimento dos limites do
conhecimento.
Tomando como parmetro a alegoria da caverna, o que limitado sem luz, ou
seja, obscuro, confuso. Essa falta de luz, essa falta de uma viso ntida das coisas,
seguindo o pensamento de Plato, carrega nosso olhar de preconceitos e revela nossa
ignorncia, pois, estar no mundo da caverna estar preso, por correntes; ficar
amarrado no mundo das suposies, das imagens difusas; no mundo da ignorncia que
se liga ao mundo dos sentidos. As sombras desse mundo escuro representam nossas
opinies, crenas e preconceitos. A coisa fica mais ou menos assim dita: isso que
conhecemos pouco.
Ento, aquilo que conhecemos, aquilo com o qual j estamos habituados, de
alguma forma, est ligado a nossa falta de sabedoria, e a sabedoria uma abertura para
o que no se conhece, o que se d, a princpio, admitindo-se o no-saber. Por isso, o
filsofo aquele que admite que no sabe para ir em busca do que no sabe, para as
possibilidades infinitas do mundo que est por abrir. Plato nos apresentou uma
filosofia que uma ferramenta para abertura de cavernas, rompimentos de cadeados.
Diz Gilles Delleuze:
os homens no deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traam um firmamento e escrevem suas convenes, suas opinies; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga at o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar, numa luz brusca, uma viso que aparece atravs da fenda. (...) Ento, segue a massa dos imitadores, que remendam o guarda-sol, com uma pea que parece vagamente com a viso. (...) Ser preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as necessrias destruies, talvez cada vez maiores, e restituir assim, a seus predecessores, a incomunicvel novidade que no mais se podia ver. (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p. 261)
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E o filsofo no tem isso do artista e do poeta? o filsofo platnico que nos
apresentou essa imagem sem a qual dificilmente Deleuze poderia ter feito tal referncia,
da qual a filosofia abre a fenda da sombra do guarda-sol, das cavernas, trazendo-nos a
novidade, a boa-nova de conhecer o que no conhecamos.
Poderamos, assim, dizer que o limitado mundo dos sentidos se liga ignorncia
tanto quanto seu contraponto, o ilimitado mundo das idias, liga-se sabedoria que, por
sinal, tem a ver menos com o que conhecemos e mais com o que ainda no conhecemos,
ou seja, com aquilo que ainda est por se descortinar. Essa idia, em Plato, aproxima-
se muito do significado etimolgico prprio de filosofia que pressupe a amizade pela
sabedoria, mas no a sapincia em si. A filosofia mira o no-saber, aquilo que no
sabemos, para isso preciso se colocar na posio sempre de que no sabemos, pois
quem sabe das coisas so os deuses, ou seja, a filosofia tem a ver com o
desconhecimento, o no-saber, o que muito diferente da ignorncia. O ignorante o
que fica; o filsofo o que caminha, melhor, rompe barreira para subir s alturas.
A idia da sabedoria como uma recusa dela mesma foi trazida para a filosofia
por Scrates. sabido de todos que ele foi mestre de Plato, que o fez interlocutor da
verdade; verdade essa que no est no conhecimento, mas no no-saber, pois Scrates
o mais sbio por ter a conscincia de que no sabe. Nas palavras de Scrates: quem
sabe apenas o deus. (...) Eis por que ainda hoje continuo procurando e investigando
segundo a palavra do deus se h algum entre os cidados ou estrangeiros que possa ser
considerado sbio e, como me parece que nenhum o seja, venho em ajuda ao deus
demonstrando que no existe nenhum sbio. (PLATO, Apologia, 18 a)
Mas at quando poderamos avanar no que desconhecemos? Ser que podemos
lidar com o fato de sempre no sabermos nada ainda que galguemos andares superiores
na escada do conhecimento? Elevar a razo ao ilimitado deparar-se com o caos, e o ser
humano no d conta do caos, a razo s consegue lidar com o que tem ordem. A
primeira ordem da razo colocar as coisas na ordem das palavras, da linguagem. A
sim, poderemos filosofar a partir do lgos, curiosa palavra que significa
simultaneamente palavra e razo, levando-nos a crer que uma para outra, que
nasceram juntas, ou melhor, as outras lnguas separaram isso que era um, ou seja,
conhecimento, isso que se d dentro da ordem da linguagem, s possvel dentro de
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limites, a comear, pelo da palavra. Fora dele, do lgos, da ordem, talvez o ser humano
perca a dimenso dele mesmo, talvez ele passe a se desconhecer. E ser que sabemos
lidar com o fato de desconhecermos a ns mesmos? No entraramos, indo assim to
longe, nos terrenos do desconhecimento, na loucura? Assim se pronunciam, enquanto
filsofos, Deleuze e Guattari: Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger
do caos (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p. 259).
Ainda assim, a razo faz suas tentativas para ir alm dos seus prprios limites,
mas somente em termos de tentativas, com o mito. Plato estava muito envolvido com a
razo para no perceber os limites e os problemas dela mesma, por isso fazia uso das
alegorias e dos mitos: O mito procura um esclarecimento no lgos, e o lgos um
complemento no mito. fora da f que se explicita no mito, Plato confia fora do
mito a tarefa, no momento em que a razo alcanou seus limites extremos, de superar
intuitivamente esses limites e de coroar e completar esse esforo da razo, elevando o
esprito a uma viso ou, ao menos, a uma tenso transcendente. (REALE, 1994, p. 41)
Ainda assim, o mito uma imagem dentro de uma ordem.
Ento, de um modo ou de outro, precisamos de uma ordem. prefervel o
conhece-te a ti mesmo ao desconhece-te a ti mesmo, mais seguro. Ainda que, de vez
em quando seja preciso desconhecer-se, desconstruir-se, para depois termos noo,
talvez, do que sejamos. a que Plato lana as suas fichas, fazendo o esforo at onde
a razo conseguir de ordenar o ser humano, e com ele, aquilo que dele se desdobra, a
saber, a poltica, a educao, a religio, e todas as suas outras formas ou tentativas de
organizao da vida como um todo. Dessa forma, Plato vai tentar construir a forma
mais organizada de se viver em sociedade, viver na plis, a sua Politia. Ela a cidade
da ordem, organizada pelo filsofo, conforme a sua ligao dom os deuses. O filsofo,
convivendo com o que divino e ordenado, tornar-se- ordenado e divino at onde
possvel a um ser humano (PLATO, Repblica, 500 d).
Mas se o filsofo tem uma natureza divina, ento, claro que ele o portador de
uma divindade ou como um enviado dos deuses para reorganizar a cidade de acordo
com o modelo deles, os deuses. E uma cidade organizada segundo o modelo dos deuses
tem que ser perfeita. O filsofo vai construir uma cidade que tem, portanto, uma origem
no no plano da poltica, da plis do mundo dos sentidos, mas uma plis com uma
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origem no plano das idias, em um plano divino. Assim ser a Politia, como uma
cidade de theios (), em grego, de origem divina, consagrado aos deuses.
Organizar uma cidade segundo um modelo divino organizar a cidade segundo
o csmos. E o cosmos a ordem dos deuses, o modo como os deuses organizaram as
coisas, os planetas, as estrelas, o movimento de tudo, da vida, o modo como eles
organizaram o que existe. Ksmos (K) significa ordem, boa ordem; decncia,
convenincia; disciplina, organizao, constituio, ordem do universo; universo, cu,
astros (ISIDRO, 1998, p. 331). Se o modelo dos deuses o modelo csmico,
perfeitamente organizado, nossa forma de organizao deve seguir o modelo deles.
A Repblica um todo ordenado. Assim como no Banquete . Diz assim Schuler
sobre o Symposium platnico:
Plato, recusando flautistas e a algazarra de vozes desencontradas, privilegia
no symposion (a palavra grega para banquete) o prefixo syn (sym), que indica
a participao ordenada. Como Symposium, o banquete um kosmos, um
todo articulado, um logos, disposio inteligente de objetos, palavras,
homens. A ordem textual significa a apreenso ordenada do sentido.
Manifesto est o projeto: converter textualmente o caos em cosmo.
(SCHLER, 2001, p.19)
Assim, o homem vai ligando o divino, essa ordem csmica, e a sua natureza
humana physis, que a Natureza assim com um N maisculo. E toda aquela tradio
da filosofia que comeou com os filsofos da physis, tambm por isso, no se perde em
Plato. que os gregos tiveram o senso inato do que significa natureza. O conceito
de natureza, elaborado por eles em primeira mo, tem indubitavelmente origem na sua
constituio espiritual. Muito antes de o esprito grego ter delineado esta idia, eles j
consideravam as coisas do mundo numa perspectiva tal que nenhuma delas lhes
apareceria como parte isolada do resto, mas sempre como um todo ordenado em
conexo viva, na e pela qual tudo ganhava posio e sentido. (JAEGER, 2003, p. 11)
A filosofia vai se constituindo, ento, como um instrumento, instrumento da
razo, a servio da arte de dar sentido s coisas, o sentido correto, e a arte de organizar -
uma administrao. Isso se desdobra, na Repblica, em dois pontos: administrar a
cidade e administrar a si mesmo.
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Administrar a si mesmo o ponto central, mas pensar em administrar o prprio
ser humano uma tarefa difcil, ento, Plato se lana tarefa de ver como pode ser,
como deve ser uma cidade organizada e, depois, traar o paralelo para ver como se d o
ser humano organizado, o ser humano csmico, o ser humano ligado ou religado ao
divino.
Religado porque sabemos que igualmente verdadeiro que Plato no o
metafsico abstrato: a metafsica das idias tem tambm um profundo sentido religioso
(REALE, 1994, p. 45). nesse campo que entra o conceito fundamental de justia. O
homem justo o homem ligado a uma justa medida que provm de uma ordem divina,
aquele que no se escapa a si mesmo, que fica conectado natureza csmica e ao
mesmo tempo sua prpria natureza. O justo no se desvia, no atropela o que est a
sua frente nem atrapalha quem est atrs. O ser humano justo o que tem conhecimento
de ser uma parte no todo, um planeta no sistema solar. O justo o que permanece dentro
dos limites da sua prpria natureza seja ele arteso, guerreiro at mesmo filsofo (mas o
filsofo tem limites? J vimos que sim o da razo). O ser humano justo uma estrela
no espao, e s tendo essa noo csmica, do todo, de ele que pequeno diante de um
todo, de que ele no sabe, ou seja, resignado dentro de sua humildade, ele pode brilhar
como ser humano.
E dentro das naturezas humanas, aquele que pode atingir, pela razo, o mximo
da contemplao da ordem divina do cosmos o filsofo. Os filsofos so aqueles que
so capazes de atingir aquilo que se mantm sempre do mesmo modo (PLATO,
Repblica, 484 b). Nesse sentido, a filosofia se esfora em conhecer alguma coisa, em
ser instrumento da razo para conhecer at onde seja possvel, na ambio de conhecer a
verdade at onde seja possvel: O filsofo uma planta divina, um homem em
consonncia com a virtude e regulado pela sua cadncia na perfeio, at aos limites do
possvel, em actos e em palavras e, ao mesmo tempo, daqueles em que se procura
esforadamente a verdade, de todas as maneiras, pelo desejo de a conhecer (idem,
idem, 498-e 499-a). E conhecer a verdade contemplar aquela ordem mxima do
cosmos, o conhecimento que a ordem suprema que mantm a ordem de tudo, ao
contrrio daquilo que mutvel, como as opinies. A verdade, em Plato, se associa a
algo firme, completamente seguro, longe de todos os perigos, dos acidentes, das quedas
humanas.
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Ento, a significao de filosofia, a princpio, se configura como uma busca do
que no se sabe, admitindo-se o no saber como se mostra no livro I: Mas meu
excelente amigo repliquei como que uma pessoa h-de responder, em primeiro
lugar sem saber, e declarando no saber. (idem, idem, 337 e). E, como nos dilogos
socrticos, o livro I termina sem uma definio sobre o que justia, levando-nos
aquela noo de o que o importa no tanto o saber, mas saber que no se sabe:
Tambm eu, antes de descobrir o que procurvamos primeiro - o que a justia largando esse assunto, precipitei-me para examinar, a esse propsito, se ela era um vcio e ignorncia, ou sabedoria e virtude, depois, como surgisse novo argumento que mais vantajosa a injustia do que a justia no me abstive de passar daquele assunto para este, de tal maneira que da resultou agora para mim que nada fiquei a saber com esta discusso. Desde que no sei o que a justia, menos ainda saberei se se d o caso de ela ser uma virtude ou no, e se quem a possui ou no feliz. (PLATO, Repblica, 534 c)
Mas, na Repblica, o filsofo vai deixando de ser aquele que no sabe, e comea
a se apresentar como aquele que de fato possui um saber. Scrates passa a definir com
todas as letras o que , por exemplo, a justia: a posse do que pertence a cada um e a
execuo do que lhe compete constituem a justia. (idem, idem, 434 a). Assim, a
filosofia j no pode mais ser considerada como uma abertura para o no saber, ela quer
agora tomar posse, no s do Estado, mas tambm do conhecimento, do conhecimento
como um todo, da verdade. A filosofia uma educao para a aquisio da verdade e
agora, portanto, os filsofos no so mais amigos, mas os amantes do espetculo da
verdade (idem, idem, 575 e).
este o aspecto sob o qual Plato expe o que a filosofia dentro do Estado. Em alguns poucos traos elabora um catecismo da Filosofia no qual determina a sua essncia por meio do objeto do seu saber. O filsofo o homem que no se entrega multiplicidade das impresses sensoriais, nem se deixa arrastar durante a vida inteira pelo vaivm das simples opinies, mas orienta o seu esprito para a unidade do que existe. S ele possui um conhecimento e um saber no verdadeiro sentido destas palavras; por meio da variedade e individualidade dos fenmenos v a imagem fundamental, universal e imutvel, das coisas: a idia. (JAEGER, 2003 p. 841-842).
Sim, a contemplao mxima, a possibilidade mxima do conhecimento que o
filsofo h de conhecer a idia do bem. A idia do bem a mais elevada das
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cincias (PLATO, REPBLICA, 505 a). ela a causa do saber e da verdade
(idem, idem 508 e).
Dessa forma, Plato leva as possibilidades do conhecimento no ao infinito com
o qual, talvez, transpassando para alm da razo e do mito, ou das imagens, entraramos
no caos; mas a um limite inteligente, a um fim que no exatamente chegar a um ponto
final, mas circular. que a dialtica um modo de pensar circular, um ir e vir sem
cessar. O modo grego de pensar , em geral, afirmativo, mas no linear e sim, digamos,
dialtico, ou seja, caracterizado por um modo dualista de pensar. Foi a tradio
pitagrica, cultura da idia do tempo cclico (...) que o concebeu desse modo.
(SPINELLI, 2006, p. 141).
Desse modo, sair em busca do conhecimento at o limite de onde a razo possa
suportar atingir retornar causa dele: a idia do bem. O conhecimento, que o esforo
filosfico tem que mirar, tem um lugar a chegar o Bem. Plato dirige nosso olhar
para a meta, para o cume escarpado que temos de escalar. Esta meta que at agora s
tinha sido mencionada em termos genricos como a maior lio, no seno a idia do
Bem, isto , aquilo em virtude de que tudo o que justo, belo, etc., proveitoso e
salutar. (JAEGER, 2003, p. 867)
E essa meta filosfica, que o conhecimento do Bem, curiosamente no pode
ser explicada nos termos da nossa lgica, da nossa linguagem, que o esforo dialtico
chegou. Ao chegar ao Bem no podemos definir o Bem, o que coloca Plato no terreno
da mstica, no territrio do silncio, sobre o qual no se pode falar, mas sim vivenciar.
Como nos confirma Jaeger: Plato tambm no procura, no que se segue, definir em
sentido rigoroso a natureza do Bem-em-si. Em nenhuma de suas obras o faz, apesar da
freqncia com que elas, no final da investigao, conduzem a este ponto. (idem, Idem,
p. 869).
Como foi dito, a filosofia para Plato no se d apenas pela razo, pela dialtica,
mas pelas imagens. assim que uma alegoria plstica, em que a mxima fora potica
conjuga-se com a sutileza plstica do traado lgico, descobre repentinamente o lugar e
o sentido da idia do Bem, como princpio supremo da filosofia platnica (JAEGER,
2003, p. 870).
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Para filosofar, Plato sempre nos convida a lanarmos mo de um recurso que
nos prprio, a imaginao. Essa palavra imagem percorre a sua obra: Mas observa
ainda melhor a imagem do Bem (PlATO, Repblica, 509 b); imagina, pois, que
acontece uma coisa desta espcie (idem, idem 488 a); depois disso prossegui eu
imagina a nossa natureza, (...) (idem, idem, 514 a). Desse modo, poderamos dizer que,
a filosofia comea com imagens difusas, fractrias e ilusrias das opinies e retorna a
uma imagem segura, slida, do bem, mas que ao mesmo tempo, no pode ser dito com
as letras, com todas as letras, uma imagem. a que Plato, para termos uma noo do
que o bem, apresenta-nos a alegoria do sol.
O sol que representa para o mundo fsico a luz e que d origem e sustenta a vida
o correspondente do Bem no mundo das idias. O Bem , assim, a origem essencial de
tudo o que bom e ele mesmo transcende a tudo o que podemos conhecer, pois o bem
no uma essncia, mas est acima e para alm da essncia (PLATO, Repblica, 509
b). a essa origem de tudo o que bom, belo e ordenadamente justo; modelo para a
qual toda a nossa forma de organizao, de Estado, de ser humano, de educao, etc.,
tem que estar alinhada. O eternamente bom, diz-nos, manifesta a sua essncia no seu
filho, o supremo deus visvel do cu, Hlios, o Sol. (JAEGER, 2003, p. 870)
A partir da alegoria do sol, Plato nos apresenta um novo olhar sobre o que
filosofia: a arte de ver bem. A viso o mais nobre de todos os sentidos do homem
(PLATO, Repblica, 507 c) e os olhos precisam do princpio luminoso (o sol) que
vem do cu, de Deus, para conhecer a vida, ou melhor, para contemplar o Ser, o Bem.
Contemplar no s vivenciar, experimentar, saborear, mas tambm ver. E a idia do
Bem que ao conhecido confere carter de verdade e ao conhecente fora para conhecer.
certo que , assim como o nosso olhar v o Sol, ns conhecemos tambm aquela idia,
causa do conhecimento e da verdade. (JAEGER, 2003, p. 872). Foi assim que Plato
nos apresentou uma espcie de frmula que deve caracterizar a filosofia:
Isso que eu no via, agora vejo.
At aonde puder ir nosso olhar, com os recursos da razo e da imaginao, at
l aonde poder ir nossa filosofia. assim que Plato, abrindo as fendas das cavernas,
quer retirar a filosofia dos buracos da terra e lanar-nos no ar. a partir de Plato que
podemos pensar que a filosofia tambm aquilo at aonde nossa mente for capaz de
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voar, e contemplar do lugar mais alto possvel, que nossa mente e nossa imaginao
permitir, como se d o movimento vivo de tudo o que existe, o porqu e a causa das
coisas, dando-nos aquela viso do todo.
A dialtica o esforo at samos da caverna, mas a partir da sada, entramos em
outro terreno, areo, etreo. No sero mais nossas pernas pesadas do jogo da lgica que
nos permitir abrir nossos olhos e se espantar com a beleza que h, mas a entrega
contemplativa que nos lana no voo que possibilita a maravilha de ver o que no se via,
no se sabia, de ser espectador panormico da beleza em sua amplido.
Em Plato, sabemos bem, aquilo que pertence ao mundo fsico est suscetvel s
transformaes do tempo, degenera-se, desfalece-se e no pode ter tanto valor quanto
aquilo que eterno. O conhecimento do verdadeiro Ser representa ainda a passagem do
temporal ao eterno. A ltima coisa que na regio do conhecimento puro a alma aprende
a ver, com esforo, a idia do Bem. (JAEGER, 2003, p. 885)
A filosofia um convite que, ao final, assim como Bem, no para exatamente
definir ou ser definvel, mas para encontrar-se com ela, com algo, que em Plato o
Bem. Como nos diz Jaeger a respeito da obras platnicas: Todas essas obras
perseguem a mesma finalidade, quando indagam a essncia das diversas virtudes
estudadas nelas: no tratam de definir as distintas virtudes, mas sim de se elevar ao
princpio do Bem-em-si, que na Repblica se revela como a causa ltima (arqu) divina
de todo o Ser e de todo o pensar. (idem, idem, p.878)
Poderamos dizer, enfim, de tanto gostar de saber, de tanto querer conhecer, de
tanto querer avanar, com as maiores boas e puras intenes, vamos chegar a algum
lugar, esse lugar o Bem. Mas no sabemos exatamente o que o Bem, consola-nos
saber que ele no o Mal, porque supremo e divino. Estamos diante dele e sob ele.
Da filosofia talvez possamos dizer que um caminho seguro, firme, correto,
certo, para um ponto que no se sabe exatamente o que . Um caminho para o divino,
encontrar o divino, sempre aberto para a surpresa do que pode ser o divino em si. Parece
que isso no sai de ns, mas vem dele, do Bem. o divino que nos revelaria, ento,
sobre aquilo que no sabemos. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscvel que
se avista, a custo, a idia do Bem, e uma vez avistada, compreende-se que ela para
todos a causa de quanto h de justo e belo; que, no mundo visvel, foi ela quem criou a
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luz. Da qual senhora da verdade e da inteligncia, e que preciso v-la para se ser
sensato na vida particular e pblica. (PLATO, Repblica, 517 c).
Assim, podemos ainda dizer que a filosofia comea na Idia, porque dela
provm tudo o que bom, como a amizade e a sabedoria, e termina na Idia.
O que preciso se ter, ento, para Plato, para se fazer filosofia? Ter uma boa
idia, investigar essa prpria idia at onde seja possvel, construindo assim um edifcio
seguro, que uma idia organizada.
A idia do Bem, auge da pesquisa filosfica, o ordenamento supremo,
parmetro para ordem individual e do indivduo na polis. Depois de verem o bem em
si, us-lo-o como paradigma para ordenar a cidade, os particulares e a si mesmos, cada
um por sua vez, para o resto da vida, mas consagrando a maior parte dela filosofia
(idem, idem 540 a).
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3- A FILOSOFIA COMO PROCESSO DE EDUCAO PARA A LIBERDADE DA
ALMA
esse Scrates, aquele que desconhece, que movimenta a construo de uma
cidade ideal, e mais do que isso, as possibilidades de um modelo de vida ideal, pois que
a discusso no deriva, mas sobre a regra de vida que devemos adotar (PLATO,
Repblica, 351 e-352 a).
Para Plato, ainda perseguindo a alegoria da caverna, existem dois modos de ser:
prisioneiro e liberto. E a filosofia vai se mostrando como aquela capaz de apresentar
essa realidade, ou essas realidades, e que, ao mesmo tempo, um instrumento com essa
finalidade libertria.
Assim, aquele algum que se liberta das correntes algum como um filsofo,
como um Scrates que, em primeiro lugar, admite o no saber, deseja aquilo que no
conhece. Podemos dizer, ento, que aquele que se desprendeu teve uma atitude
filosfica, sendo descontente com aquilo que tem, inconformado com o que v, infeliz
com o que conhece, pois esse conhecimento to limitado quanto as paredes de uma
caverna.
preciso observar que o comeo para a nova vida no mrito do habitante da
caverna. A alegoria narra que ele solto por um algum, uma fora exterior e, a partir
dali, forado a tomar uma nova postura, aquela que aponta para a luz. logo que
algum soltasse um deles e o forasse a endireitar-se de repente a voltar o pescoo, a
andar e a olhar para a luz. (idem, idem, 316 c). Isso que dizer que os habitantes da
caverna precisam de um educador que liberta, de um educador que endireita, que
corrige, que deixa o ser humano correto, reto para a luz.
A caverna representa o oposto de um lugar iluminado, o buraco, uma priso. Ser
da caverna ser prisioneiro, estar imerso, dentro, completamente dentro disso que a
terra (mundo dos sentidos) e tudo o mais que possa estar associada a ela, que grossa,
mas que, ao mesmo tempo, faz germinar. A terra faz a planta nascer para ganhar o
espao do ar, e receber nas suas folhas a luz. Ento, uma vez que nascemos nesse
mundo, uma vez que somos desse mundo, temos que, ajudados por uma fora superior,
aprender a crescer para nos libertarmos dele, dela.
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assim que Plato nos apresenta a filosofia e a atitude de filosofar como o
alimento para esse crescimento. Isso inflama primeiramente uma negao,
primeiramente, como dissemos, uma negao do no saber e depois a negao do
mundo, que tambm negao da ignorncia. Assim, nesse primeiro momento, ficamos
entre a ignorncia e o saber. Seremos philodxos, amigos da opinio. preciso cortar o
cordo umbilical com o mundo, neg-lo para querer algo melhor do que ele est sendo.
Comea, ento, o descontentamento com o mundo que se tem. Plato demonstra na
Repblica todo esse descontentamento para onde se volta seu olhar. Para o sistema
poltico, o sistema de governo vigente na Grcia Antiga - a democracia. Assim, a obra
de Plato pode ser entendida tambm como uma longa reflexo sobre a decadncia da
democracia ateniense (CHAU, 1994, p. 2); a educao dos sofistas no adequada; a
influncia dos poetas, como Homero, no boa. Dessa forma, as pessoas desse mundo
grego esto dominadas por formas de pensamento que no libertam o indivduo para
uma vida superior, pelo contrrio, a vida, diramos, no organizada para a liberdade,
mas o que existe uma desordem de tal maneira que os habitantes da plis se
escravizam a um tipo de vida pequena.
Em Plato, a partir da alegoria da caverna, surge na filosofia o significado de
rompimento. preciso romper para se elevar: romper com democracia de Atenas, com a
injustia, enfim, com tudo o que provm da ignorncia e com a ignorncia mesma. E
esse rompimento para a liberdade. os nossos guardies, isentos de todos os outros
ofcios, devem ser os artfices muito escrupulosos da liberdade do Estado, e de nada
mais se devem ocupar que no diga respeito a isso, no ho de fazer ou imitar qualquer
outra coisa (PLATO, Repblica, 394 d).
E, na Repblica, tambm, essa liberdade para a felicidade do ser, ou seja, o
modo de vida da polis, tal como existe na democracia ateniense, gera indivduos
infelizes. Assim, a filosofia para a liberdade que para a felicidade. Mas a relao
entre a filosofia e a felicidade ser abordada no captulo seguinte.
Dessa forma, a filosofia se apresenta como um modelo de educao para o
processo de formao do ser no sentido de torn-lo uma alma aproximada ao modelo
dos deuses, ou seja, livre e completa.
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Mas como se libertar do que nos prende para termos acesso ao ilimitado? Qual o
instrumento que a filosofia ou o filsofo utiliza no processo de libertao do que
aprisiona?
A razo claro o instrumento-guia. O exerccio racional da dialtica o
instrumento com o qual o filsofo faz a sua escalada ao verdadeiro. nesse exerccio
filosfico de perguntar e responder, em um livro que todo de perguntas e respostas,
que nos remete necessidade primeira e contnua para ser filsofo: perguntar sempre, e
tentar responder, e perguntar de novo, e, se for preciso, de novo perguntar. Assim
tambm nasce a filosofia para Plato, em uma frase com reticncias: Eu me
pergunto...
Sobre esse ponto nos diz Jaeger: O dilogo socrtico de Plato uma obra
literria indubitavelmente baseada num sucesso histrico: no fato de Scrates ministrar
os seus ensinamentos sob a forma de perguntas e respostas. que ele considerava o
dilogo a forma primitiva do pensamento filosfico e o nico caminho para chegarmos
a nos entender com os outros (JAEGER, 2003, p. 501).
Assim, a filosofia se compe como um eterno perguntar. Eu me pergunto sobre a
vida, sobre a poltica; eu me pergunto se eu entendo realmente disso que eu acho que
entendo; eu me pergunto sobre o destino da alma e, talvez, a pergunta mais importante:
eu me pergunto sobre o meu modo de viver no mundo.
Segundo Digenes Larcios, foi Plato que deu filosofia essa conotao.
Plato foi o primeiro a introduzir a discusso filosfica por meio de perguntas e
respostas (LARCIO, 1988, p. 90). A filosofia, podemos dizer, ento, pela primeira
vez, aparece como dialtica, visto que a dialtica a arte da discusso com o objetivo
de refutar ou aprovar uma tese por meio de perguntas e respostas dos interlocutores
(idem, idem, p.96). O que, na opinio de Digenes Larcio, foi elevar a filosofia
perfeio: A filosofia primeiro dedicou-se unicamente natureza; depois, com
Scrates, introduziu a tica como segundo assunto, e com Plato a dialtica como
terceiro, levando assim a filosofia a sua perfeio (idem, idem, p. 98).
A filosofia, pela dialtica, vai formando o ser educado para a liberdade.
Plato o grande filsofo educador que a Grcia legou ao Ocidente, a ponto de um seu estudioso chegar mesmo a afirmar que seus dilogos no contm
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proposies de Plato, mas apenas retratos de pessoas se tornando e falhando ao se tornarem filsofos. Uma tal afirmao implica aceitarmos a filosofia como uma prtica de ensino e aprendizagem, um fato educativo em que os jovens so educados para a busca da idia esclarecedora, a verdade, por meio do mtodo dialtico, uma herana de Scrates, para todos ns (Oliveira, 2003, p.135).
A educao, ento, pressupe a prtica de exerccio, e o exerccio da mente
pensante para o raciocnio correto a dialtica. E consoante Plato, o filsofo o
dialtico treinado. Um exerccio (melet) assim corresponde ao esforo (pnos) que a
filosofia demanda (idem, idem, p. 136).
Esse esforo vai fazer o aprendiz escalar as alturas. As perguntas e as respostas
vo compondo, como degraus, a escada que leva para o conhecimento verdadeiro. E se
o filsofo aquele ser incansvel que sobe at o ltimo degrau da ltima resposta, a
resposta final, ele chega, enfim, s respostas verdadeiras, ele contempla a verdade. Ele
chega, portanto, em lugar seguro, estvel: (...) os filsofos so aqueles que so capazes
de atingir aquilo que se mantm sempre do mesmo modo. (PLATO, Rep. 484 b). E
ele, o filsofo, atinge esse lugar e s atinge esse lugar porque ele aprendeu a recusar o
que no serve para aperfeioamento de si (as iluses sensoriais) e aceitar, pelo exerccio
da confrontao dialtica, aquilo que est de acordo com sua natureza filosfica:
Concordemos, relativamente natureza dos filsofos, em que esto sempre
apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essncia que existe sempre,
e que no se desvirtua por ao da gerao e da corrupo (idem, idem 485 a-b).
Por isso mesmo, Plato inicia a Repblica com um homem virtuoso que tem a
admirao de Scrates, Cfalo, ou seja, aquele homem que no cedeu aos sentidos, que
no foi seduzido pelo lado das injustias que lhe poderiam lhe trazer vantagens. Ele,
ao contrrio, um homem moderado, ou seja, possui a virtude da temperana. Apesar de
rico, no apaixonado pela riqueza, mas via nela um auxlio para no cometer
injustias; era um homem comedido e prudente (idem, idem 331 a), que procurou
levar uma vida de uma maneira justa e santa e que, por isso, goza da paz de
conscincia da velhice. Esse lugar, que d a tranqilidade da alma o lugar seguro que
s aquele que segue a vida com retido de carter pode alcanar. Por isso o exemplo da
maturidade da velhice importante, pois ele tambm traz a noo de o que mais
experiente tem a melhor noo da vida e dela como um todo e que no se prende s
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iluses da juventude. Isso se assemelha ao velho Scrates da Apologia que dizia: No
fao outra coisa, em verdade, com este meu andar, seno persuadir a vs, jovens e
velhos, que no deveis cuidar nem do corpo, nem das riquezas, nem de qualquer outra
coisa antes e mais que da alma, para que ela se torne tima e virtuosssima, e que das
riquezas no nasce virtude, mas da virtude nascem as riquezas. (PLATO, Apol. 17 a)
E assim, o filsofo apresentado na Repblica como aquele que tem a melhor
viso, o melhor campo de viso, ele o piloto de um navio. Cabe a ele, portanto, o
papel de manter as coisas nos seus devidos lugares, ou seja, no lugar seguro. A
Repblica um lugar seguro, existe uma vigilncia para o sistema no ruir. Talvez a
principal vigilncia no sentido de educar cada ser, a viver de acordo com sua natureza,
sem excessos, ou seja, sem querer transbordar ou transpor os limites do seu prprio ser,
da sua prpria alma. A alma precisa ser educada para o que . E se filosofia cabe o
papel da educao cabe a ela tambm o poder de comando.
E, dessa forma, a filosofia se configura como prtica educacional para a
liberdade da alma, pois A Repblica platnica , antes de tudo, uma obra de formao
humana. (JAEGER, 2003, p. 837). Essa formao destina-se para o conhecimento da
verdade e o conhecimento da norma suprema, que o filsofo abriga na sua alma, o
fecho da cpula do sistema do Estado educacional platnico.
O Estado platnico o estado governado pelos reis-filsofos, portanto, dizer que
o Estado dominado pela filosofia, dizer que a filosofia no s mantm a ordem
divina do funcionamento do Estado, mas educa os cidados para o Bem. Isso o que d
sentido ao que Plato coloca no Eutidemo de que a filosofia o uso do saber em
proveito do homem (PLATO, Eut. 288 a), em proveito da educao do Ser.
A esse respeito insiste Jaeger: Jean-Jacques Rousseau soubera aproximar-se
bem mais do Estado platnico, ao declarar que a Repblica no era uma teoria do
Estado, como pensavam aqueles que s julgavam os livros pelos ttulos, mas sim o mais
formoso estudo jamais escrito sobre educao (JAEGER, 2003, p. 752).
E ainda: A Repblica platnica , antes de tudo, uma obra de formao
humana. (idem, idem, p. 837). E tudo o que atrapalhar a educao para a liberdade
deve ser retirado da cidade ideal, como a poesia:
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Palavras como estas e todas as outras da mesma espcie, pediremos vnia a Homero e aos outros poetas, para que no se agastem se as apagarmos, no que no sejam poticas e doces de escutar para a maioria, mas, quanto mais poticas, menos devem ser ouvidas por crianas e por homens que devem ser livres, e temer a escravatura mais do que a morte. (PLATO, Rep. 387 b).
Ao que parece, o prprio sentido de cidado (poltes) na Grcia, j pressupunha
um sentido de liberdade. Sentido sobre o qual Hannah Arendt comenta: O que
distingue o convvio dos homens na polis de todas as outras formas de convvio humano
que eram bem conhecidos dos gregos, era a liberdade. (...) Ser livre e viver-numa-plis
eram, num certo sentido, a mesma e nica coisa." (ARENDT, 2004, p. 47)
Plato vai estabelecer todos os quesitos, as matrias a serem estudadas que, a
princpio, so a msica e a ginstica; seguem as provas, ou seja, todo um sistema
educacional que vai selecionar os guardies, plantas divinas que devem ter o cuidado
para crescerem e terem a alma livre. Em Plato, a filosofia , em um sentido, educao
do esprito, em termos platnicos, da alma, ou seja, a filosofia educao da alma que
liberta da fria das iluses, das paixes: Quando as paixes cessam de nos repuxar e
nos largam, acontece exactamente o que Sfocles disse: somos libertos de uma hoste de
dspotas furiosos. (PLATO, Rep. 329 c)
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4- FILOSOFIA COMO MODO DE PRODUO DA FELICIDADE
A filosofia se divorciou da cincia ao indagar com qual conhecimento da vida e do mundo o homem vive mais feliz. Isso aconteceu nas escolas socrticas: tomando o ponto de vista da felicidade, ps-se uma ligadura nas veias da investigao cientfica o que se faz at hoje. Friedrich Nietzsche
De todas as perguntas que a filosofia possa vir a fazer, para Plato, segundo a
herana socrtica, a pergunta mais importante aquela que se volta sobre si mesmo.
Voltar uma pergunta sobre si mesmo questionar-se de modo a verificar: isso que eu
sou, isso que eu penso, isso que eu fao faz de mim uma pessoa feliz?
que o nosso exame diz respeito ao que h de mais importante, a felicidade ou
a infelicidade na vida (PLATO, Rep. 578 c). Se toda a discusso da Repblica para
o que h de mais importante, ento a discusso filosfica para o encontro da felicidade
().
Sobre este termo o professor Mrcio Petrocelli Paixo explica:
O termo grego original traz nuanas incompreensveis pela expresso portuguesa felicidade, visto que traz implcitas as idias de eu, na qual se encontra implcita a noo de bem, e , gnio, deus, divindade. Coincide, porm, de certo modo, com qualquer termo anlogo, uma vez que se trata justamente daquilo que constitui uma busca de todo homem. Seja esta busca qual for, sempre chamada felicidade. A associao desta busca humana universal a algo divino uma marca do ideal da tradio grega: a melhor vida para os gregos, mesmo a dos prazeres, esteve sempre ligada a uma concepo do divino. (Paixo, 2002, p. 31)
A concepo grega para a divindade, a concepo das culturas religiosas, de
que a vida divina a vida melhor porque a vida feliz. E a vida dos deuses a vida
feliz. O bem maior dos deuses talvez seja a de que eles no sofrem, no sentem dor, no
morrem, pois eles mesmos so a causa de tudo o que bom, e no do mal. O bem no
causa de tudo, mas causa de bens (PLATO, Rep. 379 b).
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A humanidade precisa de quem os salve da misria de vida em que eles, os
mortais, se colocam. E Plato v na filosofia a tbua de salvao, pois apresenta a
soluo para os mais candentes problemas da sociedade humana. (JAEGER, 2003,p.
843). Para Plato, portanto, a filosofia tem o propsito de salvao, ou seja, salvar o
homem de uma mal, ou do mal que a desarmonia, o desarranjo, a injustia.
A cidade que desordenada, que no respeita a natureza humana, melhor ainda,
a natureza dos tipos humanos, s pode produzir seres humanos infelizes. claro que a
inferncia que a Atenas de Plato vista por ele como uma cidade infeliz. Mas o ser
humano para a luz da divindade e a luz da divindade o Bem. O Bem representa no
mundo das idias o que o sol representa no mundo dos sentidos. Assim, a vida no Bem,
com o Bem, a contemplao do Bem, passvel de se viver nele, nos torna parceiros do
Bem, amigos do Bem. O filsofo amigo da Benevolncia. Ento, preciso remodelar
o mundo e o ser humano para que ele possa alcanar a contemplao do Bem, estar com
o Bem, estar de bem consigo, ser feliz.
Quem carrega essa misso divina o filsofo. Ora, presentemente estamos a
modelar, segundo cremos, a cidade feliz, no tomando parte um pequeno nmero, para
os elevar a esse estado, mas a cidade inteira. (PLATO, Repblica, 420 c). Eis que a
politia a cidade da felicidade porque a cidade de Deus, a cidade ao modelo dos
deuses. No lugar da democracia, do governo do demos, Plato prope uma nova forma
de governo, ou seja, o governo do rei-filsofo. Ele chega a afirmar, na Repblica que
no haver estados felizes enquanto os filsofos no forem reis e os reis no forem
filsofos. (idem, idem, Rep. 499 d -500 a). Mas se o filsofo tem uma natureza divina,
ento ele o portador de uma divindade, ou o enviado dos deuses para reorganizar a
cidade de acordo com o modelo deles, os deuses. Os deuses tm assim uma mensagem
para os homens atravs do filsofo: tornem-se felizes.
Uma cidade que tem, portanto, uma origem no no plano da poltica, da polis do
mundo dos sentidos, mas uma plis com uma origem no plano das idias, no plano dos
deuses. A Politia que, por ser perfeita, tem que ter a ligao com theios (), com o
que vem dos deuses, de origem divina. (Isidro, 1998, p. 263). Ela mesma
consagrada aos deuses (idem, idem, idem). A Politia a cidade de origem divina,
organizada por aquele que tem origem divina, o rei-filsofo, que a consagra aos deuses.
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E no pode haver cidade de deus com males, os habitantes desta cidade s podem ser,
todos, sem exceo, felizes. E quando toda a cidade tiver aumentado e for bem
administrada, consentir a cada classe que participa da felicidade conforme a sua
natureza. (PLATO, Rep. 421 c). Assim, ainda que a humanidade seja composta por
seres de naturezas diferentes, apesar das diferenas, ningum ser privado da felicidade.
Assim que eu entendo que , e no como tu expuseste de incio. Se os justos
tm uma vida melhor e so mais felizes. (idem, idem, 352 d). Dessa forma, a discusso
principal sobre a felicidade humana e a justia o que a garante na plis. Saber sobre
levar uma vida justa saber qual modo de vida se deve levar de tal forma que essa vida
seja a mais feliz, pois o homem justo feliz, e o injusto desgraado (idem, idem 354
a). Para Plato, s possvel fazer uma cidade feliz, governar uma cidade para que ela
seja feliz e mant-la em tal estado de felicidade se aqueles que governam so felizes de
fato, a saber, os filsofos. Pois, diz-nos Plato, esta raa deve ser feliz de fato (idem,
idem, 420 b).
O que feliz no mais aquele ser miservel, acorrentado s aparncias e aos
prazeres das sensaes:
Aquele que verdadeiramente gosta de saber tem uma disposio natural para lutar pelo Ser, e no se detm em cada um dos muitos aspectos particulares que existem na aparncia, mas prossegue sem desfalecer nem desistir da sua paixo, antes de atingir a natureza de cada Ser em si, pela parte da alma qual dado atingi-lo pois a sua origem a mesma -; depois de se aproximar e de se unir ao verdadeiro ser, e de ter dado luz a Razo e a Verdade, poder alcanar o saber e o viver e alimentar-se de verdade, e assim cessar seu sofrimento (PLATO, Repblica, 490 a- b).
Ao cessar o sofrimento, o homem no luta mais consigo, aprendeu a colocar o
elemento racional no governo dos elementos desejantes da alma, adquirindo um bem-
estar. A virtude ser, ao que parece, uma espcie de sade, beleza e bem-estar da
alma. (idem, idem, 444 e). Se a justia para a felicidade, ento, feliz aquele que
ajusta seu modo de viver sua natureza, o que faz dele um ser saudvel, virtuoso.
Dessa forma, o homem virtuoso feliz, aquele que busca a verdade, os
verdadeiros prazeres, aquele que vive o verdadeiro prazer da vida filosfica. a
felicidade superior do homem que vive segundo a poltica do Estado perfeito, isto ,
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vive a vida filosfica, aparece tambm a partir de consideraes ulteriores em torno ao
prazer (...). A felicidade no pode consistir seno na forma mais alta do prazer, que o
da parte racional da alma. Esse prazer tambm o mais verdadeiro, alis, o nico
verdadeiro, porque o objeto que o causa o objeto mais verdadeiro, o ser e o eterno
contemplados pela alma (REALE, 1994, p. 271).
Enfim, se o fim para o qual a filosofia est destinada para a contemplao do
Bem, ento ela o para a plena realizao da felicidade, pois para Plato o Bem e a
felicidade so uma e a mesma coisa. E para o pensamento religioso dos gregos a
felicidade o mais importante dos atributos da divindade (JAEGER, 2003, p.877).
assim que todo esse esforo para o alto, seguiremos sempre para o alto (PLATO,
Repblica, 621 c), no qual o cume a vida feliz.
E se essa busca final da filosofia pela resposta final, em Plato, na Repblica,
ela tem a palavra final: felizes. com essa palavra no plural que Plato encerra a
Repblica: felizes. Porque, na Politia, no basta que eu seja feliz, no basta que um
ou outro seja feliz. preciso que todos ns sejamos felizes. Esse o prmio que ho de
receber todos aqueles que so justos, que lutam para levar uma vida justa, conforme os
preceitos dos deuses: a felicidade.
Seguiremos sempre o caminho para o alto, e praticaremos por todas as formas a justia com sabedoria, a fim de sermos caros a ns mesmos e aos deuses, enquanto permanecermos aqui; e, depois de termos ganho os prmios da justia, como vencedores dos jogos que andam em volta a recolher as prendas da multido, tanto aqui como na viagem de mil anos que descrevemos, havemos de ser felizes. (PLATO, Rep. 621 d)
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5- FILOSOFIA COMO FENMENO ESTTICO, TICO, POLTICO E
TEOLGICO.
Precisamos de incio destacar que assim como nunca houve entre os filsofos
gregos qualquer distino entre tica e poltica (SPINELLI, 2006, p.142), da mesma
forma, um conceito de filosofia na Repblica perpassa, e se desdobra, e se inter-
relaciona esttica-tica-poltica e teologicamente.
Se a pergunta principal a pergunta pela felicidade, se essa pergunta se volta
sobre o ser mesmo que a pergunta, esse movimento quer modificar o ser que pergunta.
Plato quer modificar o ser, produzindo um novo ser, tendo o modelo dos deuses para
tal. A filosofia apresenta a esttica do divino, fazer da vida humana uma vida divina, a
identidade divina, a filosofia divina.
Portanto, a perspectiva correta de leitura da Repblica, (...) permanece a que
acima foi indicada: Plato quer conhecer e formar o estado perfeito para conhecer e
formar o homem perfeito. (REALE, 1994, v. II, p 243). E quem o homem perfeito?
O homem perfeito o homem virtuoso? E quem o homem virtuoso? aquele que
segue o modelo dos deuses, as orientaes dos deuses, assim como Scrates na
Apologia.
possvel ser um homem perfeito, ou melhor, possvel educar os homens de
modo que se tornem perfeitos. Para isso, eles precisam seguir o caminho da justia,
aquele em que as virtudes esto acima de tudo, caminho que eleva os homens aos
deuses: efetivamente, os deuses nunca descuidam de quem quiser empenhar-se em ser
justo e em se igualar ao deus, at onde isso possvel a um homem, na prtica da
virtude. (PLATO, Repblica, 613 a-b). Vemos isso tambm no trecho: Recordemos
a nossa conversa a partir do ponto em que analisvamos as qualidades naturais que tem
de se ter para vir a ser um homem perfeito (idem, idem 490 a).
Desse modo, tendo o modelo da perfeio divina, Plato quer remodelar o
homem, mais ainda, a alma humana. E nem numa atitude primariamente terica que
Plato se situa diante do problema da alma, mas antes numa atitude prtica: na atitude
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do modelador de almas (JAEGER, 2003, P. 751). E essa modelao no para
qualquer forma, mas para a forma bela.
Plato insiste na harmonia do esprito e do carter e por isso que, resumindo
tudo o anterior, apelida concisamente o seu filsofo de kaloskagathos (idem, idem, p.
849). Kals significa belo, coisas belas, elegncia, nobre, bem, virtude, puro, perfeito,
preciso, apto, hbil; J kalokagatheo a prtica da virtude; kalokagatha a
honestidade perfeita, probidade completa. Assim, o belo no s aquele que elegante,
nobre, mas tambm o apto para, hbil para, por exemplo, governar.
O homem perfeito o que possui a perfeita beleza, e a perfeita beleza a possui
quem pratica a virtude completa, em resumo, o mais belo o mais iluminado, o que
conhece a verdade (o Bem), aquele que mais pratica o que mais virtuoso, enfim, o
mais educado, o mais sbio: Como que quem o mais sbio, meu caro, no h de ser
o mais belo? (Plato, Protgoras, 309 c).
Essa uma herana socrtica, em Plato, a filosofia tem que estar associada a
um modo de vida. Segundo Pierre Hadot, aps a morte de Scrates, sua influncia foi
fundamental no somente em Plato, mas na escola cnica, de Antstenes; na escola de
Cirene, de Aristipo, e na escola de Megara. Em todo caso, um ponto parece comum a
todas essas escolas: com elas aparece o conceito, a idia de filosofia, concebido (...)
como um discurso vinculado a um modo de vida e como um modo de vida vinculado a
um discurso (HADOT, 1999, p. 49).
Se a filosofia uma amizade pela sabedoria, a sabedoria na Antiguidade,
inclusive em Plato, um modo de ser. O modo de ser justo o modo sbio, visto que
justia virtude e sabedoria (PLATO, Repblica, 350 d). A filosofia no , em
Plato, como alguns autores colocam, uma filosofia do saber pelo saber, mas uma busca
pelo saber para um modo de ser:
A sabedoria considerada em toda a antiguidade um modo de ser, um estado no qual o homem radicalmente diferente dos outros homens, no qual uma espcie de super-homem. Se a filosofia a atividade pela qual o filsofo prepara-se para a sabedoria, esse exerccio consistir necessariamente no s em falar e em discorrer de certa maneira, mas em ser, agir, e ver o mundo de certa maneira. (HADOT, 1999, p. 313)
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Em Plato, na Repblica, a esse modo de ser de certa maneira uma maneira
certa de ser. E maneira certa tem, por um lado, um vis com o divino teolgico e, por
outro lado, a partir dessa referncia, uma maneira de se comportar no mundo, uma
poltica. assim que a tica, a esttica, a teologia e a poltica so multiplicaes
conceituais do que filosofia na Repblica.
Se, para Jaeger a Repblica, a obra mxima platnica (...) um Tractatus
theologico-politicus no sentido mais prprio do termo (JAEGER, 2003, p. 518), a
noo de filosofia tem que, necessariamente, transpassar entre esses vieses, o teolgico
e o poltico.
Assim, se a discusso filosfica sobre a regra de vida que se deve adotar (uma
conduta tica) a filosofia, ento, que uma atitude para um mundo maior, para o mais
alto, tem que estar, ao mesmo tempo, a servio de uma transformao do ser, para
elevao do ser. Essa transformao do ser , em um sentido, para com ele mesmo, a
justia que se processa no indivduo, o ser que se investiga a si mesmo, dialoga consigo
mesmo para harmonizar-se a si mesmo; e, em outro sentido, uma transformao do ser
na polis, do ser que s acontece na plis, s existe na plis.
Quando o filsofo desce do plano da contemplao at a plis ele traz algo novo.
A filosofia, sabemos ento, tem que apresentar o novo, a novidade e abrir o ser para
adotar uma novidade e, consequentemente, modificar as relaes no mundo, para uma
transformao do mundo, um mundo novo que precisa nascer. Mas, mais ainda do que a
novidade, a filosofia deve apresentar, na Repblica, a novidade da verdade que vem da
contemplao do Bem e deve descer ao mundo da plis para tentar modific-lo. Quem
incorpora o papel de governante, mas governante no seu aspecto divinizado, o revelador
da verdade, da boa nova, o rei-filsofo.
O discurso platnico alcana, pois, a mxima clareza desejvel, proclamando a suprema Idia do Bem, ou seja, o Bem em si como modelo supremo ou paradigma do qual o filsofo deve servir-se para regular a prpria vida e a vida do Estado. Com isso, Estado platnico alcana sua plena definio: ele pretende a entrada do Bem na comunidade dos homens por meio daqueles poucos homens (justamente os filsofos) que souberam elevar-se contemplao do Bem. (REALE, 1994, p. 259)
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E o filsofo quem vai descer das alturas da verdade e anunciar a boa-nova
multido, da qual um dia ele participou. O fato de a multido no acreditar no que se
disse no motivo nenhum de espanto. Com efeito, nunca viram realizado1 o que agora
foi anunciado (PLATO, Repblica, 498 d), ou seja, nunca viram acontecer isso que
se aparece e se anuncia. Em primeiro lugar, uma vida diferente da vida que se tem na
caverna. E depois, a anunciao que implica dizer: a vida que vocs levam pequena,
venham ser uma coisa diferente do que vocs esto sendo. Dessa forma, para que haja
uma adeso ao filsofo que anuncia, preciso que acreditem nele de algum modo.
Tarefa difcil, porque preciso muita coragem para despojar-se do que se . A multido
tem que se convencer, acreditar nisso que ele anuncia e que no v. preciso
argumentar at que aparea a crena. Mas a crena fruto de argumentao? preciso,
ento, nascer uma f. O filsofo tem que produzir uma f na multido. S a partir dessa
f que poder haver um movimento em relao ao que se anuncia. A partir do
nascimento da f, da adeso quilo que no se v, a plis comea a se movimentar. A
filosofia, e a teologia, e a poltica, e uma nova esttica acontecem: anunciao,
argumentao, f, adeso, recusa, transformao, renovao, ascenso. O Divino torna-
se, assim, alm de fundamento do ser e do cosmo, e da vida privada dos homens,
tambm o fundamento da vida dos homens na dimenso poltica, o eixo fundamental
verdadeiro da polis. (REALE, 2003, p. 259).
a filosofia que tem o dever de fazer nascer um novo mundo, na figura
divinizada do filsofo que deve se tornar rei: Para Plato, a tese do reinado dos filsofos nasce da conscincia de que a Filosofia a fora construtiva deste novo mundo em gestao, isto , precisamente aquele esprito que o Estado pretende destruir na pessoa de Scrates. S ela, a fora que criou o Estado perfeito no mundo do pensamento, capaz de coloc-lo em prtica, se lhe derem o poder necessrio para o fazer. (JAEGER, 2003, p. 839).
No entanto, em Plato, essa fora tem que literalmente forar. Plato quer forar
essa situao da ligao da filosofia com o poder de comando, o poder poltico. Ao
contrrio de Scrates, que procurava esvaziar o ser humano de suas verdades sem
uma preocupao em preencher o vazio que fica, pois Scrates no tinha uma verdade
socrtica para impor, Plato quer forar uma verdade no interlocutor.
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Primeiramente, no momento em que vai sair da caverna, o prisioneiro forado
a se endireitar: logo que algum soltasse um deles, e o forasse a se endireitar de
repente (PLATO, Repblica, 515 c). E j que essa verdade se impe, ento, ela no
acontece naturalmente, no vem de dentro, uma fora que vem de fora: forados pela
verdade (idem, idem 499 b).
E tambm assim que, num segundo momento, por imposio da verdade, o
filsofo forado a ocupar-se do Estado. assim que Plato, confirmando Digenes
Larcios, vai colocando na boca de Scrates palavras que ele talvez nunca pudesse ter
dito. Diz, ento, o personagem Scrates da Repblica:
Por tais motivos disse eu- e com esta preocupao, que ento dissemos, apesar do nosso receio, mas forados pela verdade, que no h Estado, nem governo nem sequer um indivduo que do mesmo modo possa jamais tornar-se perfeito, antes que a esses filsofos pouco numerosos a que agora chamam, no perversos, mas inteis, a necessidade, sada das circunstancias, os force, quer queiram quer no, a ocupar-se do Estado, e que este lhe obedea. (PLATO, Repblica, 499 a-b)
por uma poltica que comea numa imposio que Plato v a soluo para os
problemas humanos, pois No cessaro os males para o gnero humano antes de
alcanar o poder a raa dos verdadeiros e autnticos filsofos. (PLATO, Repblica,
509 b-509 d).
Vamos seguir o roteiro da filosofia em Plato na Repblica. Ela envolve uma
reeducao do ser aprisionado, por uma fora mstica superior; exige uma nova tomada
de postura diante da vida, do visvel, procurando mirar a luz e, em seguida, o esforo
para se chegar ao mundo iluminado. Um esforo em busca por algo maior, mais
completo, mais bonito; depois, a contemplao desse algo mais belo e, em seguida,
fazer dessa contemplao, um modo de transformao daquilo mesmo que o fez
filosofar, ou seja, o mundo limitado, o mundo da ignorncia. aquele movimento de
subida e descida, ou seja, do mundo da polis sai o ser que no vai mais se contentar com
o mundo pobre das iluses, elevando-se at contemplao da verdade e, assim como
ele foi obrigado a se endireitar para subir, agora ele obrigado a descer de volta ao
mundo das sombras, para a ao poltica da mudana. mais ou menos assim um
roteiro: libertao educao a uma norma ascenso contemplao descida
prxis libertao.
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A filosofia com Plato s tem significado se a ela est associada a essa idia
circular de ir e vir, pois o ir e vir que renova. Essa idia que, inclusive, est implcita
na doutrina da transmigrao porque a transmigrao da alma um ir e vir, mas cada
vez que se volta, volta-se diferente do que se era. Portanto, de novo, a idia de mudar a
forma de ser para uma nova. E o ir e vir pressupe uma liberdade. preciso ser livre
para despojar-se de um ser para seguir rumo ao um novo ser, ou ao Ser platnico.
Assim, a vida como se operava na Grcia de Plato, o sistema poltico, o sistema
educacional e o cultural (a msica, a poesia de Homero) fazem parte daquelas formas
difusas de um mundo, segundo Plato, que no ajuda o esprito para o conhecimento do
que verdadeiro ou da verdade. Ter o conhecimento verdadeiro estar de posse, como
os filsofos, do conhecimento na sua totalidade e s pode estar de posse do
conhecimento na sua totalidade um esprito livre, aquele que se libertou das correntes.
E assim que a filosofia torna-se paradoxalmente o caminho para o verdadeiro
poder. (JAEGER, 2003, p. 840). Sim, pois a filosofia que de incio era uma amizade,
uma busca, um seguir, poderamos dizer, seguir pistas, melhor ainda, a filosofia sempre
estava mais associada ao caminho, agora, na Repblica ela a chegada, a verdade, e no
mais s a busca, mas a posse. Sim, pois ela tem que possuir o Estado, ela tem que ter a
posse do Estado. que parece que as relaes de poder pressupem uma dominao,
uma posse. Na Repblica, a filosofia tem que estar associada ao poder: Enquanto o
poder poltico e o esprito filosfico no coincidirem, Plato julga impossvel uma
soluo construtiva do problema grego da formao do Homem, em sentido socrtico, e,
portanto da superao dos males da sociedade presente. (idem, idem, p. 839).
E no uma amizade pelo saber que vai estar no alto comando, mas o
conhecimento da verdade que deve ocupar o trono do Estado reconstrudo. (...) O
conhecimento da norma suprema, que o filsofo abriga na sua alma, o fecho da cpula
do sistema do Estado educacional platnico (Idem, idem, p.844)
Com todo o debate que se inicia na polis, a dialtica filosfica deve chegar agora
no lugar do conhecimento verdadeiro. A realizao da filosofia acontece na libertao
dos indivduos. A poltica a forma culminante da filosofia, um compromisso tico
para o prisioneiro liberado que consegue escapar da caverna. (KOHAN, 2003, p.31)
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Lembremos que Scrates pensava numa transformao que deixava transparecer
o que viesse do ser do indivduo. Scrates instigava uma verdade que sasse de dentro
do interlocutor, uma maiutica. J Plato, na Repblica, sugere um ordem que vem do
filsofo, da sua conexo com o alto, com o divino.
No tanto que a poltica deva acontecer pela imposio da lei que vem do alto
comando do Estado, mas pelo reconhecimento consciente de todos de que o filsofo
tem um saber que os outros no tm. E nada pode ser mais inquestionvel do que a
verdade que o filsofo abriga em si.
Precisamos sempre pensar at que ponto isso no possa vir a ser um modo de
estar preso a uma verdade que vem de fora, apesar de no ser possvel de deixar de
admitir que Plato pensa em termos polticos, de uma ordem para a cidade, ordem essa
que difcil pensar sem um comando central superior.
Fica a questo de saber, ento, se os deuses de Plato impem a verdade ou
deixam o homem percorrer caminhos? Na Repblica, enquanto representante do divino,
o filsofo interlocutor de uma voz que vem dos deuses. nesse sentido que acontece a
filosofia poltica de Plato na sua conexo com a teologia, com a palavra de Deus, com
o verbo divino. O filsofo aquele que vai pr em discurso a verdade que desce do
Olimpo.
Ainda assim, precisamos tambm pensar se ser livre uma espcie de ser
humano totalmente autntico ou se isso simplesmente estar ligado a uma ordem
divina. Talvez estar livre trazer essa dimenso divina para dentro do ser, e isso um
coisa que inferimos a partir da leitura da Repblica. O que nos faz retornar ao ponto de
que a filosofia na Repblica um fenmeno esttico, e tico, e poltico, ligado sempre
ao teolgico. A filosofia, portanto, tambm uma busca por um modo divino de estar
no mundo, de se viver.
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6- CONSIDERAES FINAIS
A filosofia na Repblica encerra uma questo? Ela pe um ponto final na
discusso sobre a justia, a felicidade, o conhecimento verdadeiro?
Sabemos que a Repblica no um dilogo socrtico como, por exemplo, o
Crtilo, que termina com um retorno ao que foi discutido, um convite para repensar o
que foi debatido. Ao final do dilogo, diz Crtilo: Assim seja, Scrates, mas tu
procura tambm pensar novamente essas coisas. (PLATO, Crtilo, 440 e).
Na Repblica, dilogo da fase da maturidade de Plato, ao contrrio, Scrates
quem pe fim ao dilogo com seu longo discurso. Ele, o filsofo, pede que acreditem
nele, ou seja, que acreditem que ele diz a verdade para exercer o papel de condutor dos
outros: Se acreditarem em mim, (...) seguiremos sempre o caminho para o alto.
(PLATO, Repblica, 621 c).
Assim, apesar de terminar em um ponto final, percebe-se que o conceito de
filosofia na Repblica se apresenta mais como um caminho, um meio para se atingir um
fim que no finaliza em si. Como vimos, o caminho da filosofia platnica circular.
Sair em busca do conhecimento verdadeiro retornar a causa daquilo que gerou esse
conhecimento: a idia do bem. Para entendermos o que filosofia na Repblica
precisamos ter em mente esse sentido circular e menos pontual. Assim, para fazer
filosofia preciso sair da caverna para a luz e retornar caverna; sair da lgica para a
contemplao mstica e imagtica do Bem e retornar ao logos.
Essa caminhada circular rompe limites do conhecimento, exatamente por no
parar em um lugar, mas essa continuao do jogo dialtico do ir e vir que nos
possibilita ver melhor aquilo que se via de uma maneira imperfeita. A viso um
sentido especial nessa obra de Plato, e o conceito de filosofia se envolve
completamente com essas possibilidades de ver, de como ver as coisas, de como ver
alm, de como ver melhor.
Essa caminhada filosfica circular tem uma motivao. Essa motivao est
descrita na ltima palavra da Repblica: felizes. A felicidade uma meta, no como
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fim, mas uma conseqncia do estar sendo justo, de estar circulando dentro de uma
ordem prpria com a natureza de cada ser humano.
O que ento a filosofia na Repblica? Se pudssemos resumir, poderamos
ensaiar uma resposta no sentido de que a filosofia um meio para se atingir a felicidade.
Para alcanar essa felicidade preciso seguir o filsofo que pede para que os outros
acreditem nele e, assim, havemos de ser felizes (PLATO, Repblica, 621 d).
Para atingir essa meta, de fazer com que todo ser humano se torne um pessoa
feliz, a filosofia trabalha com o conhecimento, mais propriamente com o conhecimento
verdadeiro, aquele que leva o filsofo a contemplar o Bem supremo. S na
contemplao desse conhecimento que do alto, que exige esforo para alcan-lo, ser
possvel a harmonia que faz bem a todo ser humano, longe dos males da desarmonia da
injustia.
Plato, com a idia do Bem, eleva a filosofia a uma espcie de mxima
contemplao, s alturas do pensamento. um caminho ascendente que precisa ser
realizado para a filosofia acontecer. E, de novo, para a filosofia para continuar a ser
filosofia preciso que ela faa um caminho de volta no sentido de conect-la a uma
prxis, a um modo de vida, poltica.
Desse modo, reforamos esse ponto, de que estaremos mais de acordo com a
filosofia de Plato e com o modo grego de conceber as coisas se pensarmos em um
conceito de filosofia que seja mais circular, com seu caminho de ascenso e descida, e
menos de uma maneira retilnea que chega a um ponto final.
Assim, a filosofia atinge, na atitude contemplativa, uma conexo com o que
divino. E, depois, no seu aspecto prtico cumpre um papel de colocar as coisas nos seus
devidos lugares. A filosofia deve ordenar as coisas, conforme a natureza de cada coisa,
conforme essa conexo divina da natureza das coisas. Dessa forma, a filosofia cumprir
seu papel de harmonizar o ser no mundo e o ser com ele mesmo.
por isso que o conceito de filosofia na Repblica est invadido pelo conceito
de teologia, pois o filsofo aquele ser divino e sensato (PLATO, Repblica, 590c)
que ensina que preciso olhar para o alto e ver a luz divina, a perfeio divina. Esse
aspecto extremamente importante do divino conflui o conceito de filosofia com o de
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teologia, da divindade e, ainda, da perfeio da divindade. Nesse sentido, a filosofia, na
Repblica, tambm uma busca pela perfeio.
Essa busca exige uma educao da alma, talvez seja melhor dizer, uma
reeducao da alma para ver alm das aparncias. Assim, a filosofia ser uma educao
para a liberdade das iluses, um liberdade da alma para um mundo que se descortina
muito mais belo, muito mais completo, muito mais verdadeiro.
Dentro desse processo de educao da alma, necessrio um processo de
autoconhecimento. Conhecer a verdade tambm conhecer a verdade sobre si prprio,
de modo que a busca pelo verdadeiro faz o homem reconhecer sua prpria natureza e se
colocar no lugar que lhe prprio, assim como os astros no cu. A partir dessa
compreenso, o ser humano passa a conhecer tambm uma liberdade, pois, para Plato,
estar no seu devido lugar ser livre, e estar fora dele estar perdido, ou seja, em
desacordo com a sua prpria natureza.
Acrescentemos, ento, ao nosso conceito que a filosofia na Repblica o
caminho da educao correta para a liberdade da alma rumo felicidade.
Seguir esse caminho filosfico estar de acordo, ento, com uma educao
perfeita, no esforo tambm por uma postura tica, por um modo correto de estar no
mundo. dessa maneira que a filosofia um grande conceito que deve englobar os
outros conceitos da teologia, pedagogia, poltica, tica, mas sendo sempre ela, a
filosofia a conduzir os outros no caminho da verdade.
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