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Na aridez do solo brotam papel e tinta: O estudo da produção de saberes sobre as secas por meio da Coleção Mossoroense numa perspectiva interdisciplinar – o caso
da obra “Secas contra a seca”, de Felipe Guerra e Teófilo Guerra.
Lindercy Francisco Tomé de Souza Lins lindercy@gmail.com
USP, UERN
Introdução
A temática das secas constitui um dos alicerces da identidade da cidade de
Mossoró, no Estado do Rio Grande do Norte, um cenário construído por meio da
produção de centenas de títulos publicados pela Coleção Mossoroense, considerada a
maior coleção de textos ecléticos do Brasil.
A Coleção Mossoroense tornou-se referência no estudo sobre as secas, tanto
pela quantidade de títulos (cerca de 900 obras), quanto pela qualidade e diversidade da
produção, uma vez que se verifica autores da gama de Câmara Cascudo, Raimundo
Nonato, Felipe Guerra, Elói de Souza, Tavares de Lira, Rômulo Argentiére, Dorian
Jorge Freire, Raimundo Soares do Brito, Jerônimo Vingt-un Rosado e muitos outros,
que, sob diversos olhares, pensaram sobre a estiagem no nordeste brasileiro, em
especial, no sertão potiguar.
Este cenário, portanto, permite o estudo das secas numa perspectiva
interdisciplinar, pois o ecletismo das obras da Coleção Mossoroense propicia várias
abordagens temáticas como: disputas políticas entre elites por recursos públicos;
debates científicos sobre as causas, efeitos e soluções para a estiagem; situação social da
população; descrição geográfica da região etc.
A coleção Mossoroense – breve trajetória
A Coleção Mossoroense, instituída em 30 de setembro de 1949, é,
indubitavelmente, uma das mais importantes coletâneas de obras acerca do Nordeste
brasileiro. Esta afirmação não se refere apenas à qualidade e à diversidade das temáticas
das obras, pois concentra o maior acervo bibliográfico de trabalhos sobre o Nordeste
seco, mas também pela quantidade de títulos publicados (mais de 4000), tornando-se
uma das maiores coleções do Brasil. Um patrimônio de Mossoró que carece de estudos
e divulgação.
Dentre os milhares de obras, cerca de 900 delas - brochuras, plaquetes e livros -
abordam a temática das secas, destaca-se, por exemplo, a publicação de “História das
Secas”, coletânea organizada em 23 volumes, financiada pelo DNOCS e Escola
Superior de Agricultura de Mossoró-ESAM - hoje Universidade Federal Rural do
Semiárido – UFERSA.
Segundo informações da própria Fundação Vingt-Un Rosado, a trajetória da
Coleção Mossoroense pode ser resumida em três etapas. Primeiramente, entre 1949 e
1973 houve colaboração da Prefeitura Municipal de Mossoró, com 293 títulos editados.
Na segunda etapa, iniciada em 1974 até 1994, a Coleção recebeu apoio da Escola
Superior de Agricultura de Mossoró-ESAM e da Fundação Guimarães Duque-FGD,
com 1.888 títulos editados. A terceira etapa, a atual, iniciou-se em 1995, sob
coordenação da Fundação Vingt-un Rosado, com mais de 1454 títulos editados.
Ao longo de 60 anos, a Coleção Mossoroense dividiu suas obras em 10 séries,
de "A" a "J", sistematizadas por assuntos e categorias assim distribuídos:
A - Folhetos de grande formato / 103
B - Plaquetas / 2.669
C - Livros / 1.439
D - Cordéis / 39
E - Periódicos / 10
F - Memorial dos Mossoroenses / 87
G - Falas e Relatórios dos Presidentes da Província do RN / 08
H - Cadernos de Areia Branca / 02
I - Cadernos de Carnaúba dos Dantas / 02
J - Ruas e Patronos de Mossoró (Dicionário) / 02
De saída, duas observações importantes devem sobressair quando nos
reportamos à Coleção Mossoroense: a primeira, seja qual for a posição diante da análise
sobre as secas nas obras da referida Coleção, é praticamente impossível discutir essa
temática sem enfrentar a questão – vide a considerável quantidade de textos, acadêmicos
ou não, publicados pela coleção - de como a estiagem foi tratada pelos autores nos mais
diversos temas; a segunda, ainda mais importante, é que a seca acabou por se constituir
como um elemento formativo da identidade de Mossoró, inserida no rol dos lugares que
se tornaram “comunidades imaginadas”, verdadeiros “países” que cultivam uma espécie
de nacionalismo, dando-se a ler como um espaço singular que se impõe diante dos
demais lugares, mesmo que, inserido na Unidade Federativa Rio Grande do Norte.
Assim, os habitantes de Mossoró e das regiões do semiárido têm ciência de
seus conterrâneos e se imaginam como parte de uma comunidade de anônimos,
compartilhando experiências das dificuldades de convivência no sertão – como também
na leitura dos livros da Coleção Mossoroense - no mesmo tempo vazio e homogêneo,
“em que a simultaneidade é, por assim dizer, transversal, cruzando o tempo, marcada
não pela prefiguração e pela realização, mas sim pela coincidência temporal, e medida
pelo relógio e pelo calendário” (ANDERSON, 2008: 54).
Deste modo, a Coleção Mossoroense torna a cidade de Mossoró sede de uma
espécie de “capitalismo editorial” potiguar, baseada nas concepções de Benedict
Anderson, ou seja, um dos fundamentos da experiência nacionalista, que deita em papel
projetos e estratégias de uma elite política envoltos em atmosfera mitológica, na qual
passado e presente se confundem na manutenção de características que se pretendem
atemporais (ANDERSON, 2008: 51-70), à semelhança das configurações nacionais,
esse “capitalismo editorial”, que também pode ser entendido como um capital cultural a
serviço da esfera político-econômica, é preciso entender a dimensão e o papel da
Coleção Mossoroense.
Essa monumental coleção, de vocação multidisciplinar, tem mais de 4000
títulos. Sua trajetória revela uma profunda capacidade de se reinventar, adaptando-se às
temperaturas contextuais, mantendo pois, o ethos da Coleção Mossoroense que é o
estudo sobre o nordeste.
Para tanto, é mister a identificação do máximo de fios em ramificação que se
espalham a partir dessa ideia-núcleo, seja temática, institucional ou politicamente,
afinal, a cultura nunca esteve apartada das questões sociais, sendo ela mesma um
componente da tessitura social e das disputas de poder. E os estudos culturais
desenvolvidos no campo da história possuem aportes suficientes para tamanha tarefa
(ver em: WILLIAMS, 2000, 2011; CHARTIER, 1990; De CERTEAU, 1982, 1995,
2011; GINZBURG, 2001).
Apesar de sua importância, é notório que boa parte da população norte-rio-
grandense, incluindo estudantes universitários e demais estudiosos das secas,
desconhece a totalidade das obras da Coleção Mossoroense, e, por conseguinte, aspectos
da história local e regional. Isto se efetiva, sobretudo, pela falta de acesso às obras, bem
como da produção científica sobre o acervo da Coleção, o que prejudica a qualidade dos
trabalhos acadêmicos sobre o passado potiguar. Tal desconhecimento ressente a
comunidade de historiadores pela ausência das discussões tanto sobre o tema das secas
quanto da história local nos cursos de história da UERN e região oeste potiguar.
Uma sociedade - como asseverou a Maria Célia Paoli (1992:25) - destituída de
um passado comum, de informações que integrem uma identidade local é refém dos
ditames do poder, perde a capacidade de união e reivindicação de direitos coletivos, pois
não toma conhecimento dos processos de disputa que ocorreram em tempos passados,
desvinculando-se do diálogo possível entre “os mortos e os vivos”, ou seja, entre
passado e presente, uma das funções da história, como apontou Marc Bloch (2002).
Assim, o projeto em andamento, cujos primeiros resultados são divulgados
neste texto, detém dupla tarefa: fomentar o conhecimento da localidade, a partir da
temática das secas, na busca da identidade regional e reafirmar o passado como
elemento fundamental na compreensão da função social dos sujeitos históricos, pois
conhecer o passado, além de ser uma tarefa constante da consciência humana, para
lembrar David Lowenthal (1999: 64-65), é uma das etapas da concretização da
cidadania. É a partir do passado que as gerações tomam ciência de sua atuação, dos
laços que as unem aos antecessores, elemento relevante à preservação das tradições e da
memória social. Neste sentido, uma das contribuições cidadãs do conhecimento
histórico é impedir uma atitude ingênua em relação às realidades postas e aos projetos
de futuro.
O caso da obra Secas contra a seca
A titulo de exemplo, comentar-se-á sobre uma das obras disponíveis na
Coleção Mossoroense - “Secas contra a seca”, um dos mais relevantes estudos acerca
desse fenômeno. Publicada pela Tipografia Cruz Coutinho, Rio de Janeiro, a primeira
edição de Secas contra a seca: secas e invernos. Açudagem, irrigação. Vida, costumes
sertanejos, data de 1909. A edição mais recente, a terceira, da qual trata este prefácio,
foi publicada em versão fac-similiar pela Coleção Mossoroense, em convênio com a
Fundação Guimarães Duque e impressa na gráfica do Senado Federal, em 1980.
Curiosamente, nessa edição há várias correções manuscritas, tanto na grafia de palavras
quanto no acréscimo de informações, cuja autoria é desconhecida.
A terceira edição do livro, em termos de materialidade, não foge às
características das obras impressas pela Coleção Mossoroense: versões fac-similares;
papel branco comum; capa sem diferenciação do restante da obra; estilo
monocromático, sem elementos catalográficos; ausência de índice (este fora,
posteriormente, impresso em forma de plaquete) e de elementos pré e pós-textuais.
A primeira edição de Secas contra a seca data no mesmo ano da criação da
Inspetoria de Obras Contra as Secas - IOCS pelo Presidente Nilo Peçanha, cuja ação era
combater a seca por meio da criação de um sistema de barragens, açudes e poços que
pudesse acumular água em tempos de chuva para ser usada em tempos de escassez”
(NEVES, 2000: 86). Mesmo com essa medida governamental incipiente, na época da
publicação do livro, a seca não entrava no rol das principais ações do poder público,
“pelo menos, as cidades e as instituições modernas de poder, estruturadas neste mesmo
período, estavam a salvo das aguras da seca” (NEVES, 2000: 77).
Um elemento relevante na história da feitura do livro foi a trajetória de vida do
autor, que se assemelhou a de muitos outros nortistas na época. Nascido em território
norte-rio-grandense, em 26 de maio de 1867, no município de Augusto Severo, ainda
criança, com seis anos, mudou-se com o pai a Ouro Preto, onde morou por treze anos. O
jovem Felipe Neri de Brito Guerra, em férias escolares, costumava visitar sua terra
natal. Numa dessas ocasiões, em 1885, no sertão de Timbaúba – região limítrofe entre
os Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte – ele testemunhou sua primeira seca, em
que horas e horas de caminhada sertão a dentro não levaria ao encontro de qualquer
vestígio d´água. Essa triste realidade despertou nele sentimentos difusos. A reação
inicial foi de medo frente àquela situação calamitosa e, imediatamente, compaixão pelo
homem que sobrevivia naquele árido do sertão. Com o tempo, esses sentimentos se
transformaram em admiração pela abnegação do sertanejo em vencer as adversidades.
Bacharel em Direito e Magistrado no Poder Judiciário, Felipe Guerra tentou, a
seu modo, ajudar a modificar aquela situação, seja por meio do magistério em várias
comunidades no interior do Rio Grande do Norte, como em Caicó e Mossoró, seja pela
atuação parlamentar – eleito deputado em 1891 e 1892 no primeiro e segundo
Congresso Constituinte do Estado do RN – por meio de discursos e projetos de lei
propostos, como o que concedia incentivos à açudagem particular (GUERRA, 1992: 5)
assim como na produção intelectual, com a publicação de artigos e livros até o fim de
sua vida. Sua vasta obra destaca-se: Ainda o Nordeste, 1927; A seca de 1915 – crônica
documentada, 1947; Nordeste semiárido, 1980; Seca do Nordeste – resumo histórico
desde 1558 a 1948, 1951 sintetiza a luta em defesa do ideal da açudagem como salvação
do sertão potiguar.
A importância de Secas contra a seca reside na primazia de sua publicação no
Estado. Sagra-se como uma das primeiras obras representativas da estiagem no Rio
Grande do Norte e, provavelmente, foi utilizada como reforço do discurso para obtenção
de verbas públicas para o combate à seca, embora a intenção de Felipe Guerra fosse
denunciar a seca com propósito de obtenção de soluções contra a estiagem por meio da
construção de açudes particulares – o autor, seguindo o espírito liberal da época, era
contrário à construção de açudes públicos (salvo em casos excepcionais) – conhecida
como “solução hidráulica”.
O período em que Secas contra a seca foi escrito reforça o sentido da obra,
pois ocorreu num hiato de onze anos na carreira jurídica de Felipe Guerra, época em que
ele fora aposentado da magistratura compulsoriamente, em 1898, com vencimentos
reduzidos (GUERRA, 1992: 6). Sem recursos para viver na cidade, ele se mudou com
sua esposa e quatro filhos ao sítio Brejo do Apodi, onde desempenhou atividade
agrícola até o retorno à magistratura.
Diferente de alguns autores, que instalados na paisagem urbana das capitais
escreveram sobre a estiagem, Felipe Guerra vivenciou a seca in loco, acompanhou a
angústia de quem perdera safras por falta d´água, expressando na sua escrita tanto o
sentimento de impotência frente à natureza quanto no desencantamento com o Estado,
como retratado na seguinte passagem:
Já estou cansadíssimo de tanto começar a vida em bases de fortuna que, com a mesma insistência ou teimosia, desaparecem como por encanto, com essas malditas secas. A que ora prossegue já reduziu-me ao extremo estado de pobreza... Sou dos que não contam com os recursos dados ou prometidos pelo governo federal. Em nada nos servirão eles agora, porque, quando aqui chegarem, já não encontrarão mais vivos. Além disso bem sabemos, é regra que os socorros dados pelo governo, sirvam mais para deixar lucros aos felizardos do
que alívio aos desgraçados. Aqui também já não temos muita garantia para a segurança individual, nem para a prosperidade (GUERRA & GUERRA, 1980: 72-73).
Como visto, há crítica aguda ao descaso do poder público para com os
sertanejos. A época sendo um deles, Felipe Guerra sentiu na pele o desamparo do
Estado frente às calamidades, reforçando, portanto, seu discurso pela prática, ou seja, a
fala é de quem sentiu, mesmo não sendo da mesma maneira que um flagelado, as
mazelas da estiagem. Assim, o autor torna-se um dos primeiros “porta-vozes do espaço
sofredor” (ALBUQUERQUE Jr, 2009: 72-73) do sertão norte-rio-grandense, tendo
vivenciado a seca ao demonstrar a ideia de verdade no livro, a partir duma crônica de
quem presenciou as secas, “como forma de ganhar credibilidade e dividendos
simbólicos” (VALE NETO, 2006: 29-30).
Grande parte dos textos de Secas contra a seca não era inédita. Trata-se de
compilações de artigos publicados na imprensa de Natal e Mossoró, principais veículos
da difusão do discurso da aridez do sertão. Desse modo, o livro propiciou aos leitores de
jornal uma visão retrospectiva da calamitosa situação do sertão, relembrando que a seca
era fenômeno corriqueiro no Rio Grande do Norte, e, por isso, deveria ser enfrentada
efetivamente.
O leitor, ao folhear Secas contra a seca, mergulha na imaginação da escrita de
Felipe Guerra e acompanha, com certa comoção, a triste situação dos conterrâneos
potiguares flagelados pela seca; viaja – sem sair de casa – a lugares nunca antes vistos
por meio das descrições socioespaciais da região oeste do Rio Grande do Norte e se
revolta com a situação de penúria descrita pelo narrador.
Assim, transpondo a ideia andersoniana de comunidades imaginadas
(ANDERSON: 2008) a um aspecto regional, a formação da identidade norte-rio-
grandense como imaginada perpassa a noção de territorialidade, pois seus membros,
apesar de não se conhecerem, têm ciência de seus conterrâneos e se imaginam como
parte de uma comunidade de anônimos, compartilhando experiências – como a leitura
do jornal - no mesmo tempo vazio e homogêneo, “em que a simultaneidade é, por assim
dizer, transversal, cruzando o tempo, marcada não pela prefiguração e pela realização,
mas sim pela coincidência temporal, e medida pelo relógio e pelo calendário”
(ANDERSON, 2008: 54).
A obra de Felipe Guerra se alinha com a produção intelectual do período. É
possível estreitar os escritos de Secas contra a seca aos livros de Rodolfo Teófilo,
História da seca do Ceará, publicado em 1883, e de Thomaz Pompeu de Sousa Brasil,
Memória sobre o clima e secas do Ceará, lançado em 1877. Pelo caráter científico
“para os padrões da época, sendo pioneiros na análise detalhada das condições de clima
e pluviosidade [...] como índices de referência sobre as secas” (VALE NETO, 2006:
34). Os três autores defendiam a açudagem e a construção de estradas como soluções no
combate à seca.
Neste sentido, a escrita de Felipe Guerra se assemelha ao fazer historiográfico
de Rodolfo Teófilo, que “encontra-se impregnado daquilo que Manoel Salgado analisou
como ‘cultura histórica oitocentista’, na qual a afirmação do projeto rankeano de
apresentar aos vivos os fatos pretéritos imbricava o alinhamento das pretensões
científicas da disciplina com os interesses nacionais” (VALE NETO, 2006: 34).
Secas contra a seca foi escrita a quatro mãos, é dividida em três partes. Na
primeira, introdução, escrita por Felipe Guerra, há estudo científico de previsibilidade
da seca em contraponto às práticas populares de adivinharia desse fenômeno. Das
práticas populares, destacam-se as que se baseiam em chuvas ao longo de meses
específicos ou em datas religiosas como a véspera de Natal; domingo de carnaval e o
tradicional dia de São José, celebrado em dezenove de março. Outras experiências
narradas se baseavam no célebre lunário perpétuo para a previsão do tempo, bastava
identificar o dia da semana que se iniciava o ano com respetivo planeta desse dia,
número áureo, ciclo solar e a letra dominical. O Lunário, aliás,
durante dois séculos, foi o livro mais lido nos sertões do Nordeste, diz Câmara Cascudo. Era um livrinho editado em Portugal desde 1703, de autoria do matemático espanhol Jerônimo Cortez, expurgado pela Santa Inquisição, e traduzido em português. Lunário é um calendário que divide o tempo pelas fases da lua. Perpétuo, porque os seus prognósticos eram tidos como eternos, para todos os reinos e províncias, como se o conhecimento fosse algo imutável. (MIRANDA, 2012).
Ainda são descritas outras práticas baseadas na observação da natureza como o
traçado das formigas, as colmeias, as florações do Juazeiro, Oiticica e Carnaubeira e a
ovação de peixes. Tais relatos eram esforço na busca por uma 'lei das secas', ou seja, a
tentativa de captar alguma tendência desse fenômeno no tempo por meio de estudos de
matemática e astronomia.
A segunda parte, escrita por Teófilo Guerra, revisada e complementada pelo
irmão Felipe Guerra, traz uma cronologia das estações climáticas de 1723 a 1908. Boa
parte do texto é composta de uma compilação dos diários do bisavô paterno dos irmãos
Guerra, Manoel Antônio Dantas Correia, e também do pai deles, Luiz Gonzaga de Brito
Guerra, o Barão de Assu, em que são narradas as condições climáticas no sertão da
região do Seridó norte-rio-grandense, de 1723 a 1845, sendo os relatos das secas de
1723, 1744 e 1766 obtidos via tradição popular. A estiagem de fins do século XVIII é
narrada com detalhes, como se observa na passagem:
O povo, alguma família mais pesada e apossada, se retiraram para beira-mar, onde com o seu ter passaram com fartura; e os que ficaram cá não sentiram fome este primeiro ano; mas como seguindo-se o ano de 92 em que faltou a chuva geralmente por todos os sertões, a morrinha em gados foi geral, de sorte que os que tinham botado os seus gados para os sertões vizinhos, voltaram sem coisa nenhuma, deixando o que tinham conduzido, o que era de fôlego, morto, e mesmo o trem que haviam levado por não ter em que o carregar. Ora, vamos ao povo. Acabados os meses de inverno sem nenhuma chuva, acabados os mantimentos e o gado juntamente foi um geral clamor; ver famílias inteiras a pé, em busca dos agrestes da beira-mar, distante 50 léguas, morrendo à fome pela estrada; enterrando se pelos matos com filhinhos e trem às costas; isso por decurso de meses. Falar deste seu sertão: os que ficaram e não se retiraram, entraram a descobrir raízes e frutas de plantas agrestes para seu sustento; bem como o xique-xique que é uma planta bem brava por ser cercada de espinhos, o miolo da vergôntea servindo de bom sustento, posto que alguns que o tratavam mal, findaram as vidas; outros usaram de couros crus, torrados ao fogo, para sustento. Chegou a fome a tanto extremo que foi visto um viandante cozinhado os nervos duros do gado que havia morrido para comer, que tanto era a necessidade que padecia (GUERRA & GUERRA, 1980: 15).
As narrativas do sofrimento do sertanejo e suas táticas de sobrevivência
parecem atemporais. A fome, o Cavaleiro portador da balança, montado no Cavalo
Negro, profetizado pelo apóstolo João, ataca de maneira célere e atroz,
independentemente da época e região, como pode ser lido na cronologia da estiagem de
Secas contra a seca.
As descrições das estações climáticas do Seridó, Apodi e Mossoró, de 1840 a
1908, são mais completas, em que se observa, além das chuvas e secas do período, o
relato de preços das mercadorias e das terras no sertão potiguar, cenas da paisagem
rural, a economia das cidades, inventários de bens, fluxos migratórios, circulação dos
produtos, bem como a configuração da rede de comunicação dos habitantes das regiões
sertanejas, na qual se sabia, por exemplo, onde chovia e, consequentemente, um
possível local de abrigo em caso de calamidade.
A seca de 1877, por se tratar do maior e mais traumático fenômeno até então,
recebeu uma narrativa mais abrangente, mostrando o drama da população e as medidas
governamentais no socorro às vítimas, como visto na cidade de Mossoró.
Existiam em Mossoró, no fim de dezembro, cerca de... 25.000 pessoas, cuja ocupação única era terem fome, e morrerem de miséria ou de peste a tudo expunham-se para receber um litro de farinha. Dessa população adventícia, rara era a pessoa que vestia uma camisa sã, ou vestido sem remendos; muitos, que antes eram possuidores de média abastança, estavam agora ali esmolando de porta em porta, por haverem atingido a máxima miséria; e vão caindo mortos em seus casebres improvisados, ou pelas ruas e calçadas, donde são levados para o cemitério, para a vala comum, por homens pagos para o transporte, e que com o cadáver atado a uma vara, sobre o ombro de dois carregadores, seguem a cantarolar, no desempenho da lúgubre missão (GUERRA & GUERRA, 1980: 38).
Essa cronologia das estações climáticas propiciou ao autor a criação de quatro
categorias da seca: a primeira, considerada a mais grave, completa e prolongada seca,
em que há ausência de chuvas em toda a região; seguida pela seca em que há completa
ausência de chuvas num período menor e não em toda a região; o terceiro grau seria de
chuvas insuficientes; e por fim, o repiquete, inverno curto e tardio, o menos grave tipo
de estiagem.
Intitulada contra a seca, a terceira parte do livro, redigida por Felipe Guerra, é
composta por uma coletânea de textos sobre a seca publicados nos jornais Diário de
Natal e Comércio de Mossoró, de 1907 a 1909. Há também dois memoriais, um
dirigido, em 1904, ao engenheiro José Matoso Sampaio Correia, chefe da Comissão de
estudos e construção de obras contra as secas no Rio Grande do Norte e outro, em 1907,
destinado ao engenheiro Antônio Olinto dos Santos Pires, superintendente de estudos e
obras contra os efeitos das secas. Como o próprio autor define, o objetivo é elaborar a
propaganda da açudagem ao poder público como a forma de minorar os efeitos das
secas no interior do Rio Grande do Norte. Na posição de homem de ciência, Felipe
Guerra observava experiências internacionais no combate as secas, sobretudo nos EUA
e Egito, e tentava aplicar esses modelos no Rio Grande do Norte, como a proposta de
construção de açude da Passagem Funda, na região do Apodi, onde acumularia, pelos
cálculos do autor, dez vezes mais água que o açude de Quixadá, considerado o "mais
importante do país", a um custo mais baixo que o reservatório cearense.
Felipe Guerra demonstrou, a partir do estudo da situação do açude Livramento
– próximo a cidade de Caraúbas, região oeste do Rio Grande do Norte – que a
construção de grandes reservatórios d´água traria extensos benefícios ao
desenvolvimento do Estado, tendo em vista que tais obras hídricas movimentariam
vários segmentos econômicos, como a diversificação da agricultura, pecuária e
comércio. Para ele, assim como para intelectuais do porte de Euclides da Cunha e
Monteiro Lobato, a civilização – no caso para Guerra, representada pela açudagem e
pela ferrovia – deveria ser levada ao interior, ao sertão (ALBUQUERQUE Jr, 2009: 67).
O sertanejo, destinatário final das obras hídricas, não é visto como rude e
preguiçoso, mas sim como um lutador não instruído, sendo, portanto, necessário ao
desenvolvimento da região não apenas à construção de açudes, mas também ao fomento
à criação de escolas no sertão, como se observa no seguinte trecho:
Pois bem: acima da açudagem colocamos a instrução e a educação do povo. Educado e instruído, o sertanejo saberá colocar-se ao abrigo das secas; saberá preparar o solo para lutar contra a calamidade; terá consciência do seu valor; saberá associar-se para debelar o mal; desterrará seus preconceitos; conhecerá que essa entidade 'governo' só é um animal daninho e voraz porque esse mesmo povo, que é o seu fator, o seu gerador e o seu sustentáculo, não se preocupa em corrigi-lo, em formá-lo, em amparar conforme suas necessidades, seus interesses e destinos (GUERRA & GUERRA, 1980: 208).
Considerações finais.
A leitura de Secas contra a seca propicia pelo menos dois matizes
interpretativos. O primeiro deles diz respeito às imagens do Rio Grande do Norte. Como
boa parte do território potiguar se localiza no ambiente do semiárido, o retrato do sertão
seco – em que se observa epidemias de fome, perdas de safras, morte de pessoas e
animais, migração e desesperança – se configura no livro não como uma crítica ao
sertanejo que nele habita ou um retrato exógeno do território. É, na verdade, uma
denúncia ao descaso das autoridades frente ao problema das secas. Para Felipe Guerra, a
realidade do interior do Rio Grande do Norte não deveria ser naturalizada, a questão
deveria ser resolvida com investimentos em obras de açudagem. O autor, inclusive, faz
extensa descrição geográfica do interior potiguar, sobretudo a hidrografia, onde se
localizariam possíveis fontes de captação e armazenamento d'água. Secas contra a seca
se propõe a realizar um planejamento econômico e social do Estado a partir do sertão,
ou seja, do interior à capital. Felipe Guerra apontava, em 1892, que o desenvolvimento
do Rio Grande do Norte se efetivaria pelo tripé: poços artesianos, açudagem e ferrovias
no sertão (GUERRA & GUERRA, 1980: 267).
A segunda maneira de ler a obra é perceber o sentido da fala, do local de
emissão e endereçamento do discurso. Apropriando-se do pensamento de Michel de
Certeau, (CERTEAU, 1982: 81-82) percebe-se que Felipe Guerra, advogado e político,
discorreu sobre a seca a partir da imprensa, e que suas ações se limitavam à fala, a
preleção. Daí a função de Secas contra a seca: documentar os textos de propaganda da
açudagem do autor, publicados na imprensa, a fim de cristalizar e monumentar sua luta
em defesa das obras hídricas no Nordeste, particularmente, no Rio Grande do Norte.
O discurso da açudagem de Secas contra a seca é destinado ao leitor do jornal
da capital e da maior cidade do interior do estado, Natal e Mossoró, respectivamente.
Sua argumentação busca inserir o sertão, mormente a região Oeste Potiguar, na pauta
política norte-rio-grandense. Tendo a seca (pelo mal que ela representa) como o mote
para a obtenção de recursos à consecução de obras hídricas.
Atribui-se a Felipe Guerra a primazia na ideia da promoção da açudagem ao
poder público, o que aparenta uma mudança em sua concepção de construção de açudes
por particulares. O açude, para Guerra, é tratado como um “núcleo de vida e de
atividade social”, por ser fixador da população, garantidor dos meios de subsistência das
pessoas e animais de criação e da maior oferta de serviços. Secas contra a seca é
apontado por vários estudiosos como referência no entendimento do nordeste brasileiro.
Sem dúvidas, inaugurou uma tradição de obras do gênero no Rio Grande do Norte e, por
essa razão, influenciou uma visão do Estado, sobretudo no olhar dos intelectuais do
sertão.
Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outra artes. São Paulo: Cortez, 2009.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1990.
De CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
DE DECCA, Edgar. Memória e Cidadania. In: SÃO PAULO (cidade) Secretaria Municipal de Cultura Departamento do Patrimônio Histórico (DPH): O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania/DPH São Paulo: DPH, 1992
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
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