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MANA 13(1): 119-151, 2007
AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E
A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO*
Federico Neiburg
As crises monetrias das ltimas dcadas do sculo XX tiveram entre outros
efeitos o de colocar em evidncia o carter convencional do dinheiro. Talvez
nunca antes (nem com o fim do padro ouro, no perodo entre as duas Guer-
ras Mundiais) o espao pblico tenha estado agitado como naquela poca
em funo de debates a respeito dos fundamentos do valor da moeda. Em
vrios pases, os dispositivos implementados pelos especialistas para curar ou
substituir as moedas nacionais ameaadas pela doena da inflao foram
colocados em relao s idias e s prticas monetrias das populaes s
quais estavam dirigidos. Ao ter como referncia emprica as inflaes bra-
sileira e argentina, o meu objetivo explorar esses singulares processos de
desnaturalizao pblica do valor da moeda para propor uma contribuio
antropologia do dinheiro que tenha como eixo o exame das articulaes
entre as idias e as prticas monetrias eruditas e ordinrias.
A relativa ausncia de interesse por esses assuntos por parte da literatura
deve-se ao predomnio de duas matrizes analticas que considero consti-
turem um obstculo para a compreenso dos sentidos sociais e culturais do
dinheiro. Uma a matriz analtica normativa, que prevalece em boa parte
da literatura sociolgica, tributria da prpria cincia econmica, e que
est preocupada em diagnosticar a natureza dos problemas monetrios,
distinguindo entre moedas normais e doentes. A outra a matriz que
predomina em boa parte da literatura antropolgica, que observa a moe-
da atravs das lentes da grande diviso entre as moedas modernas e as
outras. A primeira matriz no se preocupa com os sentidos ordinrios do
dinheiro e, quando o faz, com a inteno de elaborar mecanismos que vi-
sem ajust-los aos sentidos corretos, aqueles definidos pelos especialistas.
A segunda matriz enfatiza a separao entre ambos os universos, deixando
toda considerao a respeito do dinheiro moderno nas mos dos economis-
tas na verdade, supondo que o dinheiro moderno aquele descrito pelos
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO120
profissionais da economia, e esquecendo que o deles tambm um universo
de sentidos e de prticas suscetvel de ser analisado como qualquer outro
universo nativo.
Na primeira seo deste ensaio, apresentado um breve panorama
de alguns dos efeitos destas e de outras dicotomias sobre a antropologia do
dinheiro. Assim, ser possvel explicitar o ponto de vista que sustenta este
texto, situado na fronteira entre a antropologia da cincia (econmica) e a
antropologia das culturas monetrias. A hiptese mais geral do meu argu-
mento que uma melhor compreenso dos sentidos sociais e culturais do
dinheiro exige considerar ao mesmo tempo: 1. a presena dos modelos e dos
dispositivos monetrios criados pelos especialistas nos sentidos e nas prticas
ordinrias associadas com o dinheiro; 2. a presena das idias e das prticas
monetrias ordinrias nas formas atravs das quais os especialistas percebem
e agem sobre a moeda; 3. o fato de que os universos de produo de idias
e de dispositivos monetrios eruditos, isto , aqueles que esto referidos s
teorias e s polticas monetrias, so suscetveis de serem analisados com os
mesmos instrumentos que utilizamos para estudar qualquer outro universo
nativo; e 4. que esse universo de sentidos e de prticas, o que no poderia
ser de outro modo, est situado no tempo e exige uma anlise histrica.
Ao contrrio dos habitantes de outros pases que foram tambm atin-
gidos no fim do sculo XX por agudas crises monetrias (como Bolvia e
Equador, na Amrica Latina; ou Turquia, Israel e os pases surgidos do co-
lapso da Unio Sovitica), as populaes do Brasil e da Argentina conviviam
h vrias dcadas com aumentos constantes nos ndices do custo de vida e
com os dispositivos criados pelos especialistas para conceituar e enfrentar a
perda do valor das suas moedas nacionais. Esses dispositivos eram apresen-
tados como instrumentos para que as populaes pudessem se defender dos
efeitos nocivos da inflao, ou como mecanismos destinados a que tirassem
partido dela. Na segunda seo do artigo, so descritas as relaes entre
os universos da economia erudita e ordinria, examinando-se alguns usos
sociais dos ndices de medio de preos. Ao observarmos certos elementos
da sociognese da categoria custo de vida, que relaciona quantitativamente o
valor da moeda com o valor da vida humana, interessa sublinhar o seu carter
de categoria-chave da cosmologia econmica, ao mesmo tempo paradigma
de nmeros pblicos.1 De fato, os ndices que medem o custo de vida tm
se transformado em objeto de uma enorme confiana social, em boa medida
responsvel pela transformao em intelectuais pblicos dos especialistas
que os produzem e manipulam os profissionais da economia, no s
os economistas acadmicos, mas tambm os jornalistas, os funcionrios de
agncias internacionais e de governo, os operadores de mercado e, em ter-
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121AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
mos mais gerais, utilizando uma expresso de inspirao weberiana, todos
aqueles indivduos que vivem de e para a economia.
As sees seguintes do trabalho descrevem outras dimenses da in-
tensa relao que, na histria recente, brasileiros e argentinos tm mantido
com os nmeros pblicos, especialmente quando, a partir da dcada de
1960, a inflao comeou a se transformar em assunto pblico de primei-
ra grandeza, adquirindo ainda o carter de sinnimo de crise nacional.2
A generalizao do uso de indexadores (fundamentalmente no Brasil) e de
divisas estrangeiras (especialmente na Argentina) eram sintomas daquilo
que os especialistas consideravam como desajustes das principais funes
do dinheiro: a sua utilizao como unidade de conta, como meio de cmbio
(e de pagamento) e como reserva de valor. O uso de moedas paralelas, a
estruturao de modalidades singulares de consumo e de poupana foram,
todos eles, modos atravs dos quais brasileiros e argentinos lidaram com
processos inflacionrios prolongados.
Ao contrrio do que um esprito alheio a esses processos poderia
acreditar, no se trata em absoluto de assuntos abstratos. O convvio com
inflaes prolongadas, a percepo da perda diria (ou hora a hora) do valor
da moeda tm, entre outros efeitos, o de tornar instvel a identidade das
pessoas, introduzindo agudas incertezas nas perspectivas temporais dos
coletivos humanos. No plano familiar, por exemplo, isso envolve prticas e
idias relacionadas com a herana e com a poupana; a diminuio, a runa
(ou ainda a percepo do risco de runa) das economias familiares. Estes
so assuntos que argentinos e brasileiros experimentaram mais de uma vez,
tanto nos surtos de liquidez em que sobrava dinheiro sem valor, como nos
perodos de seca em que faltava dinheiro, ou ainda naqueles em que o
dinheiro foi confiscado ou ficou retido nos bancos vrias vezes na histria
recente de ambos os pases, como resultado, justamente, da aplicao de
polticas antiinflacionrias. Assim, as formas sempre criativas, e certamente
diferenciadas, associadas a trajetrias pessoais e familiares singulares, com
capitais sociais, culturais e escolares especficos, atravs das quais as pesso-
as lidam com a instabilidade monetria e com os dispositivos criados pelos
profissionais da economia para combat-la, colocam-nos diante do assunto
central deste artigo: as articulaes entre as idias e as prticas monetrias
eruditas e as ordinrias.
A economia nasceu como disciplina acadmica, concebendo-se a si
prpria como a nica verdadeira cincia social, justamente devido sua
capacidade de representar numericamente os fatos sociais, assumindo uma
ambio ao mesmo tempo descritiva e normativa a respeito do seu objeto (ver
Elias 2006 [1984] e Foucault 1994). Como a medicina, a economia procura
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO122
diagnosticar as doenas, ao mesmo tempo em que prescreve a forma de
cur-las. Assim, tratar das relaes entre as idias e as prticas monetrias
eruditas e ordinrias permite comentar um assunto que tem alcanado certa
importncia na antropologia e na sociologia da cincia nos ltimos anos:
a questo da performatividade ou, em outros termos, a questo dos efei-
tos das teorias no mundo social.
Na seo final do ensaio, explicito em que sentido o meu argumento
coloca-se por fora, e procura ser mais complexo que as duas alternativas hoje
disponveis. Por um lado, a dos tericos da performatividade, como Michel
Callon ou Bruno Latour, que consideram que a vida econmica tende a ser
cada vez mais o resultado da moldagem (ou da formatao) da disciplina
econmica (p.e., Callon 1998 e Callon & Latour 2001). Por outro lado, a
dos partidrios das teorias nativas, como Daniel Miller (p.e., 2002), que
consideram que, independente das pretenses dos economistas, as pessoas
continuam experimentando o mundo social segundo categorias ordinrias.
Diante destas posies, prope-se aqui uma anlise dinmica que rejeita
qualquer causalidade simples, alm de toda viso romntica sobre a au-
tonomia das prticas e das idias nativas que permaneceriam alheias aos
dispositivos criados pelos especialistas. Trata-se, ao contrrio, de examinar
empiricamente, e em perspectiva histrica, a dinmica complexa que conecta
os tericos e as teorias da economia com as culturas econmicas que eles
consideram nos seus modelos e que tambm contriburam para gerar.3
As moedas dos economistas, dos socilogos e dos antroplogos
A fronteira que separa um aumento de preos suportvel e sadio, que
ainda poderia estimular o crescimento econmico, de outro que merece
cuidados, e a distino entre uma simples inflao e uma crise hiperin-
flacionria so assuntos que mobilizam as paixes dos especialistas desde
que, em funo da inflao alem dos anos 1920, foram enunciadas as
primeiras formulaes com pretenses cientficas a respeito das diferenas
entre, por exemplo, as inflaes que se arrastam (creep), que trotam (trot),
ou que galopam (galop) (ver, p.e., Feldman 1993:7).
De fato, as desordens monetrias europias ps-Primeira Guerra
Mundial foram vistas por esses novos profissionais, que eram os economis-
tas4, como laboratrios para a imaginao de terapias monetrias. Figuras
que se tornariam clebres, como Constantino Bresciani-Turroni, Ludwig
Von Misses, Lionel Robbins ou John Maynard Keynes, devem boa parte da
sua reputao posterior s suas explicaes dos fenmenos inflacionrios e
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123AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
s suas propostas para estabilizar o valor do dinheiro. Ainda que no seja
este o lugar apropriado para examinar de perto tais formulaes, interessa
assinalar que, fora as muitas diferenas entre eles, esses grandes nomes da
disciplina econmica sempre mantiveram certo consenso sobre os efeitos
degenerativos da atividade econmica ocasionada pela inflao: para alm
de certo nvel e de determinado tempo, a perda do valor da moeda e, mais
do que isso, a incerteza sobre o seu valor futuro deveriam ser consideradas,
segundo todos eles, como sintomas de uma autntica doena.5
Como se sabe, os economistas associados s correntes ortodoxas
(ou monetaristas) tm se preocupado em explicar o valor do dinheiro como
uma funo da oferta de moeda: quanto maior o volume de circulante, menor
ser o valor de cada unidade. No entanto, as suas formulaes tm padecido
de certa ambigidade, na medida em que consideram a moeda ao mesmo
tempo como uma mercadoria igual a qualquer outra (sujeita por isso s leis
da oferta e da procura) e como a nica mercadoria que merece ser objeto de
polticas reguladoras do controle da oferta, por meio do crdito e das taxas de
juros. As correntes heterodoxas, por outro lado, tm sublinhado a dimenso
fiduciria do dinheiro, a idia de que este basicamente envolve crdito (no
sentido de crena ou confiana) e respeito da autoridade ltima que garante
o seu valor: o Estado soberano (ver especialmente Ingham 2004:50-ss).6
Para alm dessas diferenas, que suscitaram e ainda suscitam gran-
des embates tericos e polticos, economistas ortodoxos e heterodoxos tm
concentrado suas preocupaes em um mesmo assunto: os mecanismos
que fixam o preo da moeda. E tm coincidido tambm na formulao do
que deve ser visto como uma verdadeira utopia monetria, segundo a qual
uma moeda autntica ou sadia e deve ser aquela que concentra
em um mesmo objeto a capacidade de funcionar como unidade de conta,
como meio de troca (e de pagamento) e como reserva de valor. Essa teoria
(funcionalista) do dinheiro, que tem sido o suposto bsico das economias
Mainstream e que se repete em todas as definies dos manuais com
que so treinados os aprendizes como toda utopia que procura a prpria
realizao, basicamente uma teoria normativa, que pretende agir sobre a
moeda atuando sobre os usos que as pessoas fazem dela.
Recentemente, alguns autores chamaram a ateno para o fato de que
embora os economistas outorguem uma grande centralidade moeda na sua
dimenso prtica, isto , como objeto de polticas no plano macroeconmico,
eles na verdade pouco tm se preocupado em conceitu-la teoricamente
(Ingham 2004; Hart 2004; Maurer 2006; Thret no prelo; Zelizer 2003).
De fato, os profissionais da economia, a partir das bases tericas ofereci-
das pela utopia monetria que orienta as suas aes e idias, tm mantido
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO124
basicamente um interesse prtico no dinheiro, procurando as formas que
permitam a realizao do ideal de moeda normal ou sadia aquela que
tem um valor estvel, facilitando com isso os negcios, o crescimento
econmico ou a vida boa, dependendo da orientao mais ou menos
utilitarista ou humanista das perspectivas em jogo.7
Essa relativa ausncia de um interesse terico pelo dinheiro ainda mais
significativa quando se observa a falta de ateno aos fatos monetrios que
predomina tambm nas outras disciplinas sociais uma conseqncia da
diviso do trabalho que foi paralela sua autonomizao como especialida-
des universitrias, na virada do sculo XIX para o sculo XX. Como se sabe,
o cenrio no qual aconteceu essa diviso do trabalho foi o Methodenstreit,
a querela sobre o mtodo, em que se enfrentaram a Escola Histrica Alem,
de autores como Gustav Schmller e Max Weber, e a Escola Austraca de Eco-
nomia, vinculada ao nome de Carl Menger, um dos fundadores da chamada
corrente neoclssica ou marginalista (ver Schumpeter 1996 [1954]:877-ss).
A exportao dessa batalha para alm das fronteiras da lngua alem foi em
boa medida responsvel pela crescente internacionalizao do predomnio
da escola neoclssica na nascente disciplina econmica, e pelo desinteresse
pelos fatos monetrios por parte da sociologia. A moeda passou a ser vista
a partir de ento como algo prprio do domnio econmico, que deveria ser
tratado por economistas.
No entanto, esse panorama da construo do monoplio da reflexo
sobre o dinheiro pelos economistas, e sua aceitao pelos outros cientistas
sociais, exige nuances e, especialmente, a considerao de dois nomes que
tm sido referncia importante nas indagaes mais recentes sobre os senti-
dos da moeda: George Simmel e Franois Simiand, autores das primeiras
e por muito tempo as nicas obras integrais dedicadas ao assunto por
no-economistas, e que so tomados aqui menos nos aspectos substantivos
dos seus escritos, e mais como referentes dos modelos predominantes em
fragmentos significativos da literatura contempornea.
Nesse sentido, cabe notar que, apesar de em Simmel (1987 [1909]) haver
um forte argumento sobre o carter propriamente social dos laos objetivados
no dinheiro, os quais seriam a expresso de formas de sociao fundadas no
crdito e na confiana8, as leituras da sua obra tm sublinhado as idias por
ele propostas a respeito da moeda como um produto (ou como um sintoma) e,
ao mesmo tempo, como um instrumento da objetificao das relaes sociais
e da individualizao da vida humana, prprias da modernidade.9
Princpios igualmente genricos para a construo de uma sociologia
do dinheiro podem ser reconhecidos na Escola Sociolgica Francesa, em
especial em Franois Simiand que, como se sabe, foi o encarregado da seo
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125AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
de economia do Anne Sociologique (ver Steiner 2005). A tese, fielmente
durkheimiana, segundo a qual Simiand estabelece que o dinheiro antes
de mais nada um fato social total, expresso da vida coletiva de um grupo
(Simiand 1934; Mauss 1974 [1934]), encontrou ecos recentes entre os eco-
nomistas franceses ligados s escolas regulacionista e das convenes
(ver, em especial, Aglietta & Orlan 2002). Estes autores, que consideram
a moeda como um operador de totalizao (Orlan 2002), observam
as crises monetrias que colocam em questo a estabilidade do valor do
dinheiro como expresso de crises da unidade social (Orlan, no prelo)
e, ao mesmo tempo, como um campo privilegiado de estudos, dado o seu
carter revelador da prpria natureza do dinheiro (Thret, no prelo),
da normalidade monetria, coerente com uma ordem social estvel e
relativamente homognea.
Embora uma exposio sumria como esta deva necessariamente deixar
de lado mritos e nuances de correntes de pensamento e de autores, interessa
sugerir como as duas aproximaes (referidas genericamente aqui a Simmel e
a Simiand) exprimem os ideais monetrios dos especialistas, deixando pouco
espao para a pesquisa positiva sobre os sentidos ordinrios do dinheiro, e
menos espao ainda para uma indagao sobre as relaes entre os sentidos
eruditos e os ordinrios. Ambas as aproximaes pressupem realidades
humanas homogneas: o predomnio do individualismo objetificado em um
caso, a idia de totalidade social no outro. O primeiro pouco se interessa pelos
usos do dinheiro que escapam ao que descrito como a sua forma moderna
(para uma crtica a Simmel neste sentido, ver Zelizer 1994:6-11); o segundo
supe um paralelo entre desordem monetria e anomia, qualificando como
negativo o que na verdade merece ser compreendido (para uma crtica
noo de anomia, ver Elias 2000 [1976]:190-3).
No entanto, na literatura antropolgica que se podem encontrar prin-
cpios alternativos de compreenso. Quando os antroplogos comearam
a se interrogar sobre os fatos monetrios nas sociedades que eram o seu
objeto, segundo uma nova diviso do trabalho entre as disciplinas nas
quais a economia mercantil no estruturava todas as dimenses da vida
social eles descobriram caractersticas muito diferentes daquelas que
eram atribudas ao dinheiro na modernidade, de acordo com os modelos
comentados acima. Nas sociedades que mereciam a ateno dos antrop-
logos, o dinheiro possua significados mltiplos que estavam atrelados s
relaes entre as pessoas, s esferas ou aos circuitos singulares de troca
(Dalton 1967; Bohannan 1967).
Ao contrrio de um sentido nico, significados mltiplos; diferentemente
de uma moeda, no singular, moedas plurais; em lugar de coletivos humanos
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO126
homogneos, mundos sociais diferenciados. Mas isso tudo era atribudo s
outras sociedades, no s modernas sociedades de mercado. Apesar das
questes cruciais que suscita, durante longo tempo tal modelo no alcanou
o mundo em que vivem os antroplogos. Assim, seguiu-se ao p da letra a
formulao de Karl Polanyi (1957) a respeito da oposio entre moedas para
usos especficos, encontradas nas formas sociais tradicionais, e moedas
para usos mltiplos, as moedas modernas. Qualquer indagao sobre o
dinheiro moderno ficou restrita s mos dos economistas e dos socilogos,
aceitando-se assim seu monoplio sobre os fatos monetrios. No fim das
contas, as nossas moedas no mereciam maiores atenes, elas seriam
regidas pela utopia dos especialistas relativa estabilidade do seu valor, e
ficariam sujeitas, claro, s terapias orientadas para corrigirem desajustes
e curarem doenas.
Alguns dos trabalhos mais instigantes e influentes realizados por an-
troplogos nos ltimos anos delatam os efeitos negativos da permanncia
dessa dicotomia. Maurice Bloch e Jonathan Parry (1989), por exemplo, de-
monstraram de forma muito sutil como a introduo do dinheiro moderno
em sociedades tradicionais no teve o efeito de dissolver os laos sociais,
produzindo a diviso radical entre pessoas e coisas que seria prpria do ca-
pitalismo.10 Embora Bloch e Parry tivessem sugerido que o papel do dinheiro
como unidade de medida abstrata e puramente quantificadora uma teoria
nativa ocidental (ver a respeito Maurer 2006), eles no se dedicaram em
momento algum a observar como de fato essa teoria nativa opera na prtica,
no mundo que ela supostamente descreve.
O problema dos antroplogos com o dinheiro nos seus prprios univer-
sos sociais aparece mais claramente ainda em trabalhos como os de David
Akin e Joel Robbins (1999), que propuseram uma sugestiva sofisticao das
noes de esfera de troca e de moedas de usos mltiplos. Acontece, no
entanto, que o modelo elaborado por estes autores para compreender a lgica
social e cultural das moedas locais na Melansia baseia-se em supostos no
explicitados nem problematizados a respeito do funcionamento das moedas
ocidentais, ou das Western notions about Money (1999:3). Akin e Robbins
no se interrogam sobre os contedos prticos dessas Western notions,
assimilando-as aos sentidos eruditos, prprios dos especialistas, e implici-
tamente deixando para eles a reflexo sobre o dinheiro moderno.
Ao identificarem a natureza do dinheiro no Ocidente com os senti-
dos que ele tem para a cincia econmica, estes e tantos outros antroplogos
no enxergaram a possibilidade de interrogar as relaes que entrelaam as
prticas eruditas e as ordinrias, ou a lgica prtica que sustenta a elaborao
de teorias e de dispositivos monetrios por parte dos especialistas. como
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127AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
se no plano da economia e do dinheiro a lente da grande diviso entre ns
e os outros tivesse tido entre os antroplogos uma fora maior do que em
outros planos da vida social.
Acontece, porm, que aquilo que essa lente enxerga o nosso dinhei-
ro, supostamente homogneo e que remeteria a quantidades puras, distinto
dos outros dinheiros, estes sim, diferenciados e relativos s relaes entre os
sujeitos contradiz boa parte da prpria experincia dos antroplogos com
o dinheiro. Ora, o nosso dinheiro sempre qualificado. Todos ns operamos
com sentidos do dinheiro bom e do ruim; do fcil e do difcil; do forte e do
fraco; do virtual e do real. Tambm, como querem os especialistas, operamos
com noes de dinheiro robusto (ou sadio) e doente; na conta do banco ou
em espcie; aplicado ou no aplicado; dinheiro devido ou no bolso; sujo ou
limpo. Ao olharmos nossa volta, descobrimos sem dificuldade que o dinheiro
no existe de forma puramente homognea; que a sua realidade mltipla;
que as moedas so plurais; que o dinheiro singularizado, marcado para
fins especficos. Um olhar minimamente atento permite-nos observar a ns
mesmos e aos nossos prximos, outorgando sentidos diferentes ao dinheiro
trocado dentro de casa (com nossos filhos, esposos ou amantes), e tambm
ao que intercambiado em outros muitos contextos, menos familiares, com
desconhecidos, em situaes mais ou menos fugazes.
A percepo da pluralidade dos fatos monetrios e da qualidade dife-
rente das moedas especialmente aguda para os habitantes de pases com
dinheiro fraco ou, justamente, com moedas doentes. Eles aprendem a lidar
com hierarquias monetrias, a tirar proveito das diferenas entre moedas
nacionais e moedas paralelas, entre o dinheiro vivo e o dinheiro que ago-
niza. O tempo passa a ser um elemento crucial de qualificao quando, por
exemplo, preciso se desfazer velozmente do dinheiro no momento em que
ele perde o seu valor, antes de j no servir para comprar quase nada.
Ao olhar rapidamente para fatos como esses, resulta ainda mais impres-
sionante que tenhamos tido que esperar at o final dos anos 90 para que
autores como Viviana Zelizer (1994) chamassem a ateno para a dimenso
qualitativa do dinheiro entre ns. Acredito que essa desateno, que essa
posio confortvel de boa parte dos antroplogos na grande diviso entre
ns e os outros no plano monetrio (quando ela j era objeto de um
questionamento acirrado em outras reas da disciplina), tenha a ver tam-
bm com nossas prprias ambivalncias em relao ao dinheiro; ao fato de
que ele evoca imagens ambguas de poder e potncia, e tambm aspectos
extremamente sombrios da vida coletiva, associados ao interesse e ao lucro.
Evoca tambm questes acentuadamente ntimas, como a gesto das nossas
economias, assuntos rduos de serem pesquisados, que ocasionam incmodo
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO128
e dificilmente so abertos para os melhores amigos, mas que estruturam as
vidas individuais e coletivas.11
como se, afinal, apesar de todas as evidncias que pudessem esti-
mular a nossa reflexividade a respeito do dinheiro, ns nos curvssemos s
representaes eruditas sobre as moedas modernas. Segundo elas, tudo o
que fosse capaz de ser qualificado em relao ao dinheiro no seria mais
do que epifenmeno (ideologia, superestrutura), alguma coisa externa aos
fatos propriamente monetrios, que seriam antes de mais nada numricos
e totalizantes a noo de externalidade, cunhada pela economia neo-
clssica, sublinha justamente isto: o carter artificial das qualidades e das
singularidades em face dos fatos econmicos. Voltamos assim ao foco deste
texto dedicado ao exame das articulaes entre as idias e as prticas mo-
netrias dos especialistas e as formas de experimentar e de dar sentido ao
dinheiro na vida ordinria.12
Nmeros pblicos e culturas monetrias
Qualquer leitor de jornal, ou freqentador do noticirio televisivo, est acos-
tumado a dormir e a acordar com indicadores de preos, convive diariamente
com o vocabulrio que descreve situaes e tendncias que apelam para uma
sucesso de siglas e expresses (como IPC, IGP, prvia do ms, quadrise-
mana, entre tantos outros), seguidas sempre de percentagens e previses.
Ele, ou ela, perceber com naturalidade o fato de que variaes de dcimos
nessas percentagens possam ser objeto de debates apaixonados, nos quais
personagens pblicas, revestidas de uma singular autoridade, discorrem
sobre o bem-estar de uma populao ou sobre o futuro de uma nao.
Essa curiosa meteorologia que est entre ns aparentando sempre ter
estado aqui, como um fato da natureza, possui, no entanto, uma histria
singular. E igualmente singular a histria da transformao dos ndices
de custo de vida (essas cifras que correlacionam o valor do dinheiro com o
da vida humana) em categorias-chave da cosmologia econmica moderna,
objeto de crena e de confiana pblica.
A idia de que a vida tem um custo, e que ele pode ser quantificado,
isto , traduzido em uma quantidade de moeda, em um preo, foi formulada
talvez pela primeira vez na Inglaterra, no incio do sculo XVIII.13 Algumas
dcadas mais tarde os clculos de nvel de preos, associados definio de
uma cesta bsica de bens, ganharam sofisticao nas mos dos legisladores
de Massachussets, interessados em definir uma retribuio justa para os
soldados envolvidos na Guerra de Independncia norte-americana. Pouco
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129AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
depois, j no contexto da Guerra Civil, a prpria noo de seguro de vida
comeou a ser formulada, envolvendo toda uma srie de operaes desti-
nadas mensurao monetria do valor da vida humana.14
No entanto, s se falaria de nmeros ndice (index numbers) algumas
dcadas depois quando, no contexto da revoluo neoclssica, a representao
numrica dos fatos sociais se transformaria em uma ferramenta bsica para o
estabelecimento da economia como uma cincia autnoma do comportamento.
A paternidade dos index numbers dilui-se entre vrios dos primeiros economistas
acadmicos (Laspeyres, Jevons, Edgeworth, Marshall), mas reconhece um dos
seus mais clebres formuladores no matemtico e economista norte-americano
Irving Fisher. Foi na poca de Fisher, por volta de 1920, que pela primeira vez
foi elaborado, nos Estados Unidos, um ndice nacional de custo de vida.15
Fisher no se notabilizou apenas pelos desenvolvimentos tericos
e tcnicos relativos medio dos preos. Ele tambm contribuiu para
transformar os prprios index numbers em mercadoria, dando assim passos
decisivos para a sua converso em nmeros pblicos. Criou, por exemplo,
uma das primeiras empresas de consultoria, que distribua entre seus
clientes folhas impressas com dados sobre a variao de alguns dos princi-
pais preos da economia, introduzindo assim no espao pblico econmico
norte-americano um novo tipo de informao que no demoraria a mudar a
agenda dos jornais de comrcio. Pouco antes da crise de 1929, a agncia de
Fisher colocou pela primeira vez no mercado ttulos indexados variao
dos ndices de preos.16 Iniciava-se, dessa maneira, uma mecnica que teria
um longo percurso: o mesmo instrumento (o index number), que servia como
termmetro para medir o valor do dinheiro, servia tambm para proteger
as pessoas das perdas ocasionadas pela doena da moeda, estimulando
ao mesmo tempo o aumento dos preos. Essa circularidade entre teorias e
prticas econmicas que est na base da popularizao dos indicadores e da
sua transformao em nmeros pblicos justamente o tipo de fenmeno
sobre o qual me interessa chamar a ateno neste artigo.
Na segunda metade do sculo XX, brasileiros e argentinos conviveram
intensamente com a instabilidade do valor do dinheiro e com outros fen-
menos decorrentes das crises monetrias, como a repetida substituio das
moedas nacionais, a proliferao de moedas paralelas, ou o uso intensivo nas
transaes correntes de divisas estrangeiras ou de moedas locais (emitidas
por entidades subnacionais, como as provncias, ou at por grupamentos
de pessoas, clubes e associaes).17 Conviveram tambm intensamente com
mecanismos de indexao, como os inventados por Fisher.
A transformao dos ndices de custo de vida em verdadeiros disposi-
tivos culturais, que circulam para alm do restrito mbito dos especialistas,
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO130
envolve mudanas nas disposies temporais dos agentes sociais, que pas-
sam a enxergar atravs desses nmeros o mundo social e principalmente
as suas relaes com objetos e bens cujo valor mensurado monetariamente,
isto , transformado em preo. As poucas descries sobre os processos
inflacionrios (realizadas mais por literatos do que por cientistas sociais)
acentuam justamente essa dimenso temporal da experincia inflacionria.18
No caso que at agora mereceu maior ateno da literatura, o da Alemanha
dos anos 20 (por exemplo, Richard 1983; Feldman 1993; Widdig 2001),
acentuam-se dois elementos ausentes nas inflaes brasileira e argentina:
os efeitos da guerra, e o contraste entre a crise inflacionria e a certeza
anterior a respeito da estabilidade do valor da moeda. Aps a derrota na
Primeira Guerra Mundial coincidem em apontar os comentadores os
alemes descobririam aquilo que at ento era tido como inabalvel: a perda
do valor do marco alemo.
Ao contrrio, brasileiros e argentinos foram longamente educados na
instabilidade monetria, interiorizando a idia de que o valor das suas moe-
das depende de situaes transitrias, produto de convenes que resultam
de condies polticas singulares. A repetida substituio de uma moeda
nacional por outra foi, nesse sentido, particularmente pedaggica: entre a
dcada de 1960 e o presente, houve na Argentina cinco moedas nacionais
diferentes (Pesos Moeda Nacional, Pesos Lei, Austrais, Pesos Convertveis,
Pesos), e no Brasil, oito (Cruzeiro, Cruzeiro Novo, Cruzeiro, Cruzado, Cru-
zado Novo, Cruzeiro, Cruzeiro Real, Real).
Na verdade, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e especialmente
a partir dos anos 50, a pergunta sobre a natureza e as origens da inflao
ganhou um lugar central entre os economistas latino-americanos, ou entre os
estrangeiros interessados na regio. No o caso de me estender aqui sobre
os debates da poca (entre estruturalistas e monetaristas, por exemplo).
O fato que a densidade desses debates contribuiu para a conformao de
um campo de profissionais da economia relativamente autnomo em diversos
pases do subcontinente, com instituies prprias de formao e difuso
de teorias e polticas. No entanto, apesar de toda a ateno dada por esses
profissionais ao desequilbrio monetrio, o certo que, como constatou
duas dcadas mais tarde Albert Hirschman (1984 [1981]:247), a inflao na
Amrica Latina acabou se tornando onipresente, prolongando-se por um
perodo extenso, aparecendo para as pessoas como alguma coisa familiar
e quase normal19.
Justamente, em um longo perodo de tempo que abrangeu vrias gera-
es, ao debaterem sobre a natureza da inflao e ao criarem mecanismos
para lidar com ela, os especialistas desenvolveram uma verdadeira pedago-
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131AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
gia da instabilidade monetria; ensinaram os sentidos dos dispositivos que
permitiram s populaes (do seu ponto de vista, os agentes econmicos)
aprenderem a conviver com a perda do valor da moeda, a se defenderem
de seus efeitos nocivos e, tambm, a aproveitarem as oportunidades abertas
por ela.20
Uma nota de etnografia autobiogrfica ilustra esse ponto.21 Quando
em agosto de 1988 sa de Buenos Aires para comear o meu doutorado em an-
tropologia social no Rio de Janeiro, havia pouco tinham comeado a circular
na Argentina as notas de Austral, a nova moeda que substitua o Peso (este
tinha sido colocado em circulao pouco mais de dez anos antes). Quando
desembarquei no Brasil e troquei alguns dlares, recebi uma mistura de
novos Cruzados e de antigos Cruzeiros. Alguns meses depois, os Cruzados
novos seriam substitudos por novssimos Cruzeiros. Era inevitvel sentir
no Brasil certo ar familiar em relao s questes monetrias. No Rio de
Janeiro, como em Buenos Aires, as pessoas investiam uma enorme parcela
de tempo e de energia ouvindo falar e falando em dinheiro, lidando com
assuntos monetrios, trocando umas moedas por outras, e trocando compul-
sivamente dinheiro por outros objetos: comprando. As pessoas pensavam e
manipulavam intensamente nmeros.
A paisagem das filas nos supermercados e o barulho das mquinas de
marcao de preos (antes da existncia dos sistemas digitais hoje correntes)
reforavam a sensao de que como diziam os mais idosos, que lembra-
vam tempos menos preocupados obsessivamente com o valor do dinheiro
agora nada tem preo. A paradoxal intensificao do consumo, prpria dos
processos inflacionrios que, por sua vez, estimula o desabastecimento que
alimenta o aumento dos preos, tinha vrios correlatos, inclusive na dispo-
sio espacial dos lares. Nas salas dos apartamentos de algumas famlias
das classes mdias, por exemplo, generalizava-se a utilizao dos freezers
e das geladeiras suplementares para facilitar a estocagem.22
Mas, aos meus olhos, educados na inflao argentina, os brasileiros
pareciam conviver de uma forma mais ordenada em relao vertiginosa
perda do valor do dinheiro. A palavra-chave dessa ordem, que eu escutei pela
primeira vez no Rio de Janeiro, era correo monetria como foi muito
acertadamente batizado no Brasil o dispositivo da indexao, inventado por
Fisher, uma figura certamente desconhecida por mim e, claro, por meus
interlocutores na poca.
A correo monetria fazia com que os salrios dos meus professores, e
a minha bolsa inclusive, duplicassem o seu valor a cada 90 dias. Da mesma
forma, eram reajustados os aluguis: como muitos outros contratos, a cada
trs meses eles dobravam o seu valor nominal. Assim, se tinha a sorte de
-
AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO132
receber o reajuste da minha bolsa no ms anterior ao reajuste do aluguel,
ficava na minha mo um montante de dinheiro quente, que podia ser tro-
cado (e devia ser trocado rapidamente) por outros bens. Ou, seno, eu devia
correr at o banco para aplicar o dinheiro. Uma das coisas que mais me
impressionavam era a freqncia com que meus amigos brasileiros iam ou
telefonavam para os bancos. Estudantes como eu, que viviam basicamente
de uma bolsa de estudos no estou falando de grandes investimentos
lidavam com contas bancrias, cartes e tales de cheques, com enorme
habilidade e parcimnia, movimentando o dinheiro que seria utilizado para
chegar at o final do ms entre aplicaes diversas, num jogo que eles pa-
reciam dominar perfeio. Acontece que o dinheiro no banco era tambm
corrigido, indexado, convertido em uma outra moeda, transformado em
um ndice. Este era um assunto em relao ao qual, nesse perodo de intensa
desvalorizao da moeda, os brasileiros podiam utilizar um conhecimento
acumulado durante trs dcadas.
De fato, trata-se de uma histria que nos situa na vspera do golpe de
Estado de 1964, quando a demanda por mais e melhores estatsticas comeou
a ser insistentemente veiculada na imprensa por alguns dos que pediam o fim
do governo de Joo Goulart devido, justamente, sua suposta incapacidade
para controlar os preos. Resulta fantstico observar com os nossos olhos do
presente, educados em uma percepo quantitativa da inflao, o debate da-
queles anos. No Brasil, no havia ento ndices nacionais de preos. O que
merecia mais crdito, por exemplo, segundo algumas dessas usinas golpistas,
era o ndice de preos do estado da Guanabara, que tinha uma abrangncia
somente estadual. Isto acentuava o paradoxo: aqueles que discutiam o proble-
ma e denunciavam o descontrole do tigre da inflao, ou os efeitos insupor-
tveis do flagelo do aumento dos preos, utilizavam para fundamentar essa
denncia no nmeros, mas um repertrio de frmulas qualitativas, o qual
revelava sua suposta incapacidade para conceituar o fenmeno. Para tratar
um mal vagamente percebido atravs dessas categorias que prescindiam
de quantidades (finalmente, dizia-se, todo cidado brasileiro podia sentir a
doena no bolso), seriam necessrios instrumentos precisos de diagnstico,
cuja fabricao era vista ao mesmo tempo como o princpio da cura.23
A correo monetria foi inventada nessa poca, imediatamente aps
o golpe. O Programa de Ao Econmica do governo militar criou uma srie
de moedas virtuais que serviam para a cotao e para o reajuste de todos os
contratos da economia, inclusive os salrios. primeira dessas moedas, a
ORTN (Obrigaes Reajustveis do Tesouro Nacional), seguiu-se uma legio
de siglas semelhantes, como a URP, que regulava o aluguel e a minha bolsa
quando cheguei ao Brasil.
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133AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
No ps-Segunda Guerra, e muito mais intensamente ainda a partir da
dcada de 60, o Brasil experimentou uma verdadeira proliferao de indica-
dores. Esse processo de indexao da vida social e de convvio intenso com
os nmeros pblicos teve como base, em larga medida, a prpria expanso do
campo dos profissionais da economia. Formados nas ento numerosas facul-
dades de economia (tambm em algumas de sociologia com vis estatstico
e, depois, nas de jornalismo), e recrutados por um nmero cada vez maior de
instituies patrocinadas pelos governos (federal, estaduais e municipais), por
sindicatos de patres e de trabalhadores, eles concorriam no mercado de idias
e de polticas, elaborando e vendendo index numbers. Estes eram logo consu-
midos na esfera pblica econmica, j bastante povoada pelos laboratrios
que os elaboravam, por boletins de empresas e de associaes, por revistas
de grande circulao, por jornais e sees informativas especializadas, o que
ampliava, por sua vez, o mercado de trabalho dos profissionais.24
Um dos eventos mais significativos desse processo de indexao do
debate pblico brasileiro ocorreu aps uma denncia sobre a manipulao,
por parte do governo, dos indicadores que serviam para a correo dos sa-
lrios referentes ao ano de 1973. A denncia tinha sido encaminhada pelo
Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Scio-Econmicos
DIEESE que, pouco depois da sua criao, na dcada de 1950, havia come-
ado a elaborar indicadores de custo de vida. Mas ela ganhou legitimidade
pblica s em meados de 1977, aps a divulgao de um documento sigiloso
de uma misso do Banco Mundial que encampava os nmeros do DIEESE
e alertava para a tergiversao dos dados produzidos pela Fundao Getlio
Vargas que, naquela poca, era o laboratrio de produo de indicadores
oficiais para o sistema da correo monetria.
A partir da, seguiram-se meses de debate pblico, nos quais os pro-
fissionais da economia tiveram uma participao estelar: eram chamados a
explicar os mecanismos de elaborao das frmulas e a discorrer sobre o valor
cientfico da sua atividade tanto na imprensa e no Congresso Nacional (foi
criada a Comisso Parlamentar de Inqurito dos ndices), como tambm
nas ruas. Alguns economistas e socilogos compareciam a manifestaes e
a comcios para os quais eram convidados a discursar. A representao nu-
mrica dos fatos sociais e o uso de percentagens estavam to estabelecidos
como a forma legtima de olhar para o mundo social que os coordenadores
do Movimento do Custo de Vida, criado naquela poca, regozijavam-se
publicamente por terem superado em 15% a meta de 1 milho de assina-
turas para o manifesto de denncia sobre a falsidade dos indicadores25.
Trs dcadas depois desses fatos, foi inventado o ltimo dos tais nmeros
pblicos. Ele assumia o seu duplo papel de coeficiente de reajuste dirio dos
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO134
preos e de unidade de conta nas transaes correntes: era a URV (Unidade
Real de Valor), lanada em 1993 com a finalidade de se transformar em uma
nova moeda, o Real, at hoje a moeda nacional do Brasil. Alguns dos ideali-
zadores do Plano Real eram economistas que tinham obtido certa reputao
como autores de uma teoria a respeito das causas da inflao a chamada
teoria da inflao inercial que considerava justamente o papel desses
dispositivos na longa instabilidade monetria do pas.26 A nica sada para
conseguir terminar com a doena da moeda, segundo esses especialistas,
era transformar um desses indexadores em moeda corrente. E foi assim que
o convvio com a nova moeda foi ensinado populao, que durante alguns
meses aprendeu a calcular os preos dos objetos e dos contratos por meio
de uma unidade de conta mbil, a URV (cujo valor variava diariamente), e
em Reais. Esta ltima era inicialmente uma moeda apenas virtual, at que
a URV gradativamente foi se extinguindo, segundo uma tabela diria de
variao com a qual era confrontado todo cidado que manipulava dinheiro
nos pagamentos correntes e tambm nos contratos, a comear pelos salrios
e pelos aluguis, por exemplo.
Como os brasileiros, os argentinos tambm aprenderam a conviver com
os indexadores, mas em uma intensidade e em uma escala sensivelmente
menor. Pelo menos dois elementos gravitaram decisivamente em funo dessa
diferena.27 Um desses elementos a menor escala relativa do campo dos
profissionais da economia na Argentina, e tambm a intensidade menor da
concorrncia entre os laboratrios produtores de nmeros, da qual um dos
efeitos foi, justamente, a popularizao dos indicadores. O outro elemento
a generalizao, entre os argentinos, do uso do dlar norte-americano como
moeda paralela, em um longo processo que se iniciou nos anos 60. De fato,
para os argentinos, o dlar foi aos poucos se convertendo em um equivalente
daquilo que, para os brasileiros, eram os coeficientes de indexao. J no
incio da dcada de 60, o preo com que se contrastava o valor da moeda
nacional na Argentina era o do dlar. A taxa de cmbio transformou-se muito
cedo em um assunto de interesse para amplas camadas da populao. Folhas
com a cotao das divisas estrangeiras eram produzidas e distribudas s
centenas pelas casas de cmbio da city portenha.28
Naquela poca, generalizou-se entre as camadas mdias argentinas
em ascenso a prtica da poupana em dlar (para a maioria, no colcho,
e para alguns privilegiados, em contas no exterior). O debate pblico sobre
a gerao de um mercado de capitais nacionais, inclusive a tentativa de
criar uma cultura da poupana em moeda nacional por parte dos bancos,
denota a preocupao com o uso cada vez mais generalizado do dlar como
meio de entesouramento. A criao de mercados de bens especficos em
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135AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
dlar (notadamente de bens imveis) foi uma decorrncia natural desse
processo. Ainda hoje os argentinos pensam sempre no valor das moradias
em dlar; as propriedades so avaliadas por meio da divisa estrangeira,
igual ao preo publicado nos avisos classificados, e as transaes so feitas
em dlar usando sempre dinheiro vivo, o que envolve uma logstica e
uma ritualstica especial, relativa aos meios de transporte das notas e aos
lugares adequados para as transaes o que resulta extremamente extico
para os observadores estrangeiros.
Os elaboradores de polticas de estabilizao monetria na Argentina
tambm reconheceram cedo essa dolarizao das mentes nacionais29. De
fato, o primeiro ensaio de dolarizao geral aconteceu no pas em dezem-
bro de 1978, com a instituio da chamada tablita (tabelinha), que permitia
prever a desvalorizao diria do peso em relao ao dlar. Esperava-se
que a regulao de um preo (o do dlar) servisse para orientar todos os
outros preos da economia. Realmente, durante vrios meses, os argenti-
nos pensaram as suas relaes (mediadas pelo dinheiro) com os objetos e
com as pessoas calculando os coeficientes estabelecidos pela tablita. Mas
a dolarizao aconteceria na verdade pouco mais de dez anos depois, aps
a crise hiperinflacionria que marcou o fim do Austral e a instituio do
regime da Conversibilidade tecnicamente um sistema de currency board
que estabelecia por lei a paridade de 1 peso = 1 dlar. Esse sistema fez com
que os cidados pudessem utilizar indistintamente em qualquer transao,
mesmo nas de mais baixo valor, como comprar cigarros ou pagar um txi,
notas de Pesos Conversveis ou de dlares, acostumando-se a manusear
cotidianamente, e ao mesmo tempo, ambas as moedas. Naquela poca, a
institucionalizao da dolarizao na Argentina abriu um debate em vrias
outras partes do mundo. Nele foram discutidas as relaes entre estabilida-
de monetria e soberania. Alguns dos autores do Plano Real, por exemplo,
posicionaram-se claramente contra essa alternativa para o Brasil, argumen-
tando que os brasileiros confiavam ainda na sua moeda, e lembrando que os
mecanismos da indexao tinham tido justamente a vantagem de manter
as cabeas brasileiras voltadas para um horizonte de equivalncias basi-
camente nacional.30
Concluses
Em um estudo iluminador sobre os debates a respeito da natureza e do fu-
turo da moeda que se seguiram ao fim da Guerra Civil nos Estados Unidos,
Bruce Carruthers e Sarah Babb (1996) demonstraram a utilidade da anlise
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO136
das situaes de crise para que se compreendessem os sentidos pblicos do
dinheiro. Ao seguir as idias de Mary Douglas (1986) a respeito da relao
entre a naturalizao e a estabilidade das instituies sociais, Carruthers e
Babb colocaram em evidncia como em contextos inflacionrios a natureza
da moeda deixa de ser taken for granted; a sua reproduo como lao social
fundado na confiana e na continuidade do seu valor no mais vista como
no-problemtica; o preo da moeda (ou a quantidade de dinheiro que deve
ser trocada por outros bens ou servios) transforma-se em uma questo que
preocupa os espritos no s dos especialistas que discutem alternativas
para a estabilizao, mas tambm das pessoas que lidam com dinheiro nas
suas transaes cotidianas.
A particular desnaturalizao pblica da moeda nesses momentos pode
ser observada nos esforos realizados por aqueles que esto afastados das
crises para poderem compreender o que ali se passa. Assim, por exemplo,
nos primeiros meses do ano 2002, a rede britnica BBC publicou no seu
site da Internet um Dictionary of Argentine Crisis com a finalidade de
ajudar os leitores a entenderem os sentidos das questes que envolviam
termos como conversibilidade, bnus, pesificao, dolarizao ou
corralito. Enquanto as pessoas no familiarizadas com os acontecimentos
que naquele momento comoviam o pas podiam informar-se atravs desse e
de outros meios sobre o que ali estava ocorrendo, os argentinos debatiam
a crise nas ruas, em passeatas e assemblias, ao mesmo tempo em que os
intelectuais de maior renome no pas apareciam reiteradamente na mdia
discutindo os destinos da nao alguns perguntavam-se, inclusive, se a
Argentina continuaria a existir depois da crise.
Nessa poca, no vizinho Brasil, o fantasma da argentinizao apare-
cia nos debates pblicos sobre o futuro da economia e da poltica. No era
a primeira vez que se invocavam os riscos da contigidade, aparentemente
sempre to afins com a dimenso internacional do desequilibro financeiro
cerca de vinte anos atrs, difundiram-se algumas expresses que descreviam
a perda sbita do valor das moedas nacionais em termos de contgio (como
a teoria do efeito Orloff, segundo a qual dizia-se no Brasil, a Argentina
de hoje o Brasil de amanh).31
Como vimos, o desequilbrio monetrio no era novidade para ar-
gentinos e brasileiros. H muito tempo, as populaes de ambos os pases
conviviam com fenmenos semelhantes, aprendendo a identificar a perda
do valor das suas moedas com momentos fortes no debate pblico a respeito
da crise e do destino da nao. Qualquer um que tenha vivido no Brasil ou
na Argentina nas ltimas dcadas do sculo passado e nos primeiros anos
deste sculo no ter dificuldade em lembrar os repetidos anncios, em ca-
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137AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
deia nacional de rdio e televiso, de congelamentos de preos, poupanas
foradas e mudanas de denominao das moedas correntes, seguidos de
feriados bancrios em que os assalariados, os devedores, os locatrios, enfim,
a maior parte dos cidados era exposta aos novos dispositivos concebidos
para salvar a coletividade da peste da instabilidade monetria: novas moedas,
desgios, tabelas de converso, indexadores. A intensidade das formas rituais
que envolvia os anncios e a implantao desses dispositivos sublinhavam
o carter extraordinrio do tempo das moedas doentes.32
No este o lugar para descrever em detalhes a construo da iden-
tificao entre crise da moeda e crise nacional; nem a dinmica ritual que
envolve a utilizao de metforas naturais que falam de sade e doena, e que
tm nos profissionais da economia, transformados em intelectuais pblicos,
um dos seus principais oficiantes.33 Interessa, sim, chamar a ateno para os
enormes efeitos pedaggicos desses longos perodos de instabilidade mone-
tria, de dinheiro selvagem, na feliz metfora de Cris Gregory (1997).
Isto refora uma das idias gerais deste texto, que indica a utilidade
da reconstruo do longo e lento processo de cultivao econmica para a
compreenso dos comportamentos individuais e coletivos nos momentos de
crise ou hiperinflao. Certamente, esses momentos so privilegiados para
o exerccio da pedagogia da economia, mas s na condio de que neles
possam tambm ser mobilizadas disposies j incorporadas em perodos
de relativa estabilidade e bem-estar.
Volta-se, assim, questo das relaes entre as teorias e os dispositi-
vos monetrios construdos pelos especialistas e aqueles presentes na vida
ordinria. Dessa forma, possvel concluir este artigo com um comentrio
a respeito da questo da performatividade, de como ela passou a ser lida a
partir da publicao, em 1998, do livro de Michel Callon, The laws of the
market uma abordagem que, alis, influenciou no s os estudos sociais
da economia, mas tambm a chamada Action Network Theory, que tem como
principal foco os Science and Technology Studies.
Ao remeter-se vagamente teoria de John Austin (1972) sobre os atos
de fala e dialogando implicitamente com as idias de Pierre Bourdieu (1981)
sobre os efeitos da teoria na vida social, Callon formula, na introduo desse
volume, uma hiptese segundo a qual a teoria econmica teria o efeito de
moldar as prticas econmicas o fato de que, segundo suas palavras, a
vida econmica (a economy) est embebida no na sociedade (como diria
Karl Polanyi), mas na economics, na teoria econmica (Callon 1998:30).34
A proposta de Callon, independente de ter o mrito de chamar a aten-
o para um assunto crucial, mereceu at agora duas crticas principais.
A primeira delas refere-se menos ao contedo da hiptese e mais s evi-
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO138
dncias apresentadas. Segundo MacKenzie e Millo (2003), por exemplo,
o processo de formatao, a performatividade, ainda estaria espera de
demonstraes empricas plenamente convincentes.
A outra crtica a Callon, explicitada em especial por Daniel Miller
(2002), questiona um ponto central da hiptese: a prpria idia de que a
teoria econmica produza um efeito de purificao (ou desentanglement)
da vida econmica, particularmente das transaes, formatando-as segundo
o ideal do mercado auto-regulado. No que parece ser uma nova edio do
antigo debate entre partidrios de interpretaes formais ou substantivas
da economia (debate que agitou, como se sabe, a chamada antropologia
econmica nos anos 1950 e 1960), pessoas como Miller, que estaria do lado
substantivista, digamos assim, tm procurado mostrar que uma tal purifi-
cao nunca se produz realmente; ou que, em todo caso, os dispositivos de
formatao econmica fabricados pela teoria, passam, eles mesmos, a ser
capturados e misturados nas transaes, que seriam sempre algo a mais e
algo diferente do que transaes puramente econmicas. Neste sentido,
preciso concordar com Miller: Callon no teria feito mais do que reproduzir
a viso (otimista) que os prprios economistas tm sobre os efeitos das suas
teorias sobre a vida social.35
Creio, no entanto, que apesar dos seus vrios aspectos produtivos, esse
debate no atingiu ainda alguns pontos cruciais das relaes entre as teo-
rias econmicas eruditas e as prticas econmicas ordinrias. Para concluir,
gostaria de chamar a ateno sobre trs desses pontos, em relao aos quais
a minha proposta de antropologia do dinheiro atravs da histria cultural
da inflao busca oferecer uma viso diferente.
O primeiro ponto exige substituir uma noo unificada da teoria
econmica compartilhada por Callon e por seus crticos que atribui
homogeneidade e agency teoria (tratada sempre no singular), por uma
viso nuanada das relaes de interdependncia e de concorrncia entre
as teorias (no plural) e, mais importante, entre os seus produtores e divul-
gadores. A discusso sobre performatividade parece esquecer dos sujeitos
que produzem as teorias que performatizam, sempre atentos, alis, aos
efeitos prticos das suas investigaes. Eles, os cientistas (neste caso, os
profissionais da economia), costumam justamente provar a excelncia de
uma interpretao atravs da eficcia com a qual, no plano microeconmico,
por exemplo, os preos de uma determinada mercadoria convergem para
um novo indicador ou, no plano macroeconmico, por meio da diminuio
das taxas de inflao ocasionadas por um novo plano de estabilizao.
Creio que o caminho para transcender a viso que os prprios profissionais
tm sobre o poder dos seus modelos , como sugeri neste artigo, a anlise
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139AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
histrica e comparativa da produo das teorias e dos processos de cultivo
econmico de populaes diversamente relacionadas com os dispositivos
implementados pelos especialistas.
O segundo ponto tem a ver com os efeitos no desejados da teoria
econmica algo que at agora parece ter merecido pouca ateno por
parte dos socilogos e dos antroplogos da economia, embora costume
ser considerado pelos especialistas quando denunciam, por exemplo, as
conseqncias nocivas, ou os erros, de determinada poltica ou tecno-
logia produzida por seus colegas. A viso aqui proposta sobre o papel dos
profissionais da economia como verdadeiros pedagogos da instabilidade
monetria (produzindo dispositivos e categorias para conceituar o dinheiro
e para que os agentes econmicos possam lidar eficazmente com a perda do
seu valor) sugere at que ponto os profissionais da economia contriburam
para a construo da doena que eles mesmos, enquanto money doctors,
tentaram mais de uma vez remediar.36
O ltimo ponto diz respeito prpria noo de efeito e teoria da
causalidade subjacente idia de performatividade. Um exame mais de-
talhado das complexas relaes entre os dispositivos para curar as moe-
das eliminando a inflao, as disposies e as prticas dos agentes a eles
submetidos permite iluminar outra dimenso at agora no considerada no
tratamento de tal questo. Na dupla qualidade dos nmeros que medem o
valor do dinheiro, como os indicadores de custo de vida e os indexadores,
podemos reconhecer um tipo de magia presente em outros dispositivos se-
melhantes: ao mesmo tempo em que procuram descrever o comportamento
emprico de agentes econmicos no passado, reclamam o poder de organizar
o comportamento futuro.
Apesar das significativas diferenas que, por exemplo, envolviam a
histria social do uso generalizado dos indexadores no Brasil e do dlar
na Argentina, ambos cumpriam perfeitamente uma das propriedades mais
instigantes do dinheiro, e que foi descrita por Simmel (1987 [1909]): a sua
circularidade, o fato de ele ser uma modalidade particular de representa-
o normativa que se submete s suas prprias normas (1987:113), um tipo
singular de objeto que , ao mesmo tempo, efeito de determinadas correntes
culturais e causa eficiente dessas mesmas correntes (:181). Exemplos
extremos de instrumentos que simultaneamente descrevem e prescrevem,
esses nmeros pblicos encerram toda a dinmica das relaes entre teorias
econmicas e culturas econmicas que a teoria da performatividade deixa
de observar, isto em funo da noo simplificada de causalidade que ela
supe sempre de uma teoria sobre os fatos. Produto da dinmica de
relaes de interdependncia e de concorrncia interna no campo dos pro-
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AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO140
fissionais, instrumentos como os indicadores, as moedas virtuais, as tabelas
de converso entre moedas e indicadores ou a prpria correo monetria
procuram interpretar e acompanhar mecanismos culturais preexistentes,
ao mesmo tempo em que se transformam, eles mesmos, em dispositivos
culturais com efeitos mais amplos e distintos dos originalmente previstos
por seus fabricadores alcanando ainda a prpria teoria econmica e os
dispositivos criados com base nela.
Assim, compreende-se melhor o objetivo final deste artigo: assinalar
a rentabilidade de modelos explicativos mais plsticos, que permitam
compreender, de forma nuanada e atravs de uma perspectiva histrica
e comparada, dimenses significativas das relaes entre as economias
eruditas e as economias ordinrias, perguntando-se sobre as relaes dos
dois sentidos que a palavra economia possui na linguagem ordinria: um
conjunto de teorias sobre a sociedade um saber especializado e um
conjunto de prticas e idias um domnio que ao se apresentar est, ou
deveria estar, relativamente separado dos outros.
Recebido em 08 de fevereiro de 2007
Aprovado em 15 de maro de 2007
Federico Neiburg professor do PPGAS (Museu Nacional, UFRJ); pesquisador do CNPq e da FAPERJ; e coordenador do Ncleo de Pesquisas em Cultura e Econo-mia (NuCEC, www.cultura-economia.org). .
Notas
* Este artigo baseia-se na conferncia pronunciada no Instituto de CinciasSociais da Universidade de Lisboa, em 7 de abril de 2006. Agradeo especialmente aos meus anfitries nessa ocasio, Joo de Pina Cabral e Joo Vasconcelos, pela sua hospitalidade e pela generosidade dos seus comentrios. Agradeo tambm aos mem-bros do Ncleo de Pesquisas em Cultura e Economia (NuCEC), em cujo seminrio foram discutidas verses preliminares, especialmente, Carla Ramos, Csar Gordon, Diana Lima, Eugnia Motta, Fernando Rabossi, Jos Renato Baptista, Mariana Ca-valcanti, Pedro Braum de Azevedo Silveira e Ricardo Cruz. Por fim, sou grato tambm a Alexandre Roig e Bruno Thret por suas crticas e sugestes.
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141AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO
1 A construo social da confiana pblica nos nmeros, na segunda metade do scu-lo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX, nos Estados Unidos, associada, por exemplo, legitimao de algumas profisses como a engenharia ou a contabilidade (e inveno dos clculos de custo/ benefcio), foi sugestivamente analisada por Porter (1995).
2 Independente do fato de que as categorias que servem para medir os aumentos de preos so parte do fenmeno que elas descrevem como pretendo argumentar ao longo deste ensaio preciso mencionar alguns nmeros para ilustrar a dimenso do fenmeno: durante quase toda a segunda metade do sculo XX, no Brasil e na Argentina, houve aumentos anuais de preos superiores a 100%. Nos anos 80 e 90, as moedas nacionais de ambos os pases desvalorizaram-se por longos perodos a taxas de 1% ao dia, mais do que 100% ao ms, chegando a nveis anuais de 1000%. Na Argentina, em 1989, houve um surto de 5000%; no Brasil, em 1994, de 3000%. Mais adiante, a singularidade destes processos ser melhor observada atravs de alguns contrastes com outras inflaes que mereceram grande ateno na histria monetria contempornea, como a hiperinflao alem dos anos 20 (que alcanou em 1923 os fantsticos 75 bilhes %), ou a inflao norte-americana dos anos 70 que, apesar de nunca superar a marca anual (comparativamente modesta) de 17%, transformou-se em assunto pblico de grande relevncia, contribuindo para o renascimento do interesse dos especialistas pelos processos de desvalorizao monetria.
3 Nesse sentido, esta abordagem diferencia-se da interessante proposta de Stephen Gudeman e Alberto Rivera (1990), orientada para observar as possveis con-versaes entre a economia dos textos e a economia dos camponeses colombianos, junto aos quais eles trabalharam. Ao contrrio da inteno de Gudeman e Rivera, de serem eles mesmos os mediadores entre as categorias tericas dos especialistas e as categorias prticas dos seus interlocutores que, segundo eles esclarecem, no leram as obras dos especialistas, no campo apontado neste artigo abre-se a possibilidade de uma reconstruo emprica fina das relaes estabelecidas pelos prprios agentes sociais, mais ou menos eruditos, mais ou menos leigos (no limite, colocando-se em questo a prpria distino entre esses dois universos).
4 A economia como disciplina universitria autnoma um fenmeno do s-culo XX. Nas ltimas dcadas do sculo XIX, foram fundados os pioneiros cursos e cadeiras de economia. A primeira delas, a cargo de Alfred Marshall, foi estabelecida na universidade de Cambridge em 1890.
5 Ver, por exemplo, Keynes (1963 [1919-31]).
6 Em um artigo j clssico, Keith Hart (1986) mostrou que o convvio tenso entre estas duas explicaes a respeito da natureza do dinheiro (uma que enfatiza a dimenso quantitativa, e a outra, os aspectos polticos, ligados confiana no poder soberano que emite, garante e regula o valor da moeda) um fenmeno mais geral, que pode ser encontrado em outros contextos histricos e culturais, no s entre as teorias nativas do dinheiro moderno, como as teorias econmicas acadmicas aqui referidas, mas tambm, por exemplo, nas teorias trobriandesas do valor, descritas por Malinowski, no contraste entre os objetos kula e gimwali.
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7 A fora da utopia monetria da economia ortodoxa, coerente com a utopia do mercado auto-regulado, to bem descrita por Karl Polanyi (2002 [1944]), tem sido responsvel, em boa medida, pela falta de ateno dada pela teoria econmica s desordens monetrias, vistas to somente como desvios de curto prazo de uma ten-dncia ao equilbrio que deveria se verificar a longo prazo (ver Ingham 2004:152).
8 De fato, Simmel (1987 [1909]) procurava um ponto intermedirio entre a escola histrica e a neoclssica, aceitando desta ltima a idia de que as trocas e, em boa medida, o valor dos objetos resultam do jogo de preferncias subjetivas, mediadas pelo smbolo neutral do dinheiro.
9 Neste ponto, Simmel aproxima-se efetivamente da idia de alienao de Marx. So deste ltimo (Marx 1980 [1844]:177-9) afirmaes fulminantes, como O dinheiro o objeto por excelncia [] o poder alienado da humanidade. Vale a pena notar, ainda no que diz respeito sociologia alem, que embora Max Weber no tenha escrito nenhuma obra especfica sobre o dinheiro, nas passagens dedicadas gnese dos bancos sugere relaes entre o uso da moeda como unidade de conta e a gnese social do clculo e a abstrao racional (ver p.e. Weber 1991 [1921]:259-88).
10 Como mostrou Louis Dumont (1977), essa forma de relacionar (separando) pessoas e coisas constitui um dos pilares da ideologia individualista moderna que se exprime nas teorias econmicas. Pode-se acrescentar que ela , de fato, um dos pilares das utopias monetrias s quais estou aqui me referindo.
11 Para um argumento semelhante sobre as dificuldades em tornar essas di-menses do dinheiro objeto de pesquisa antropolgica, ver Hart 2004; Zelizer 1994, o nmero 45 (2005) da revista Terrain, dedicado a Largent en famille; e Baptista(neste mesmo nmero de Mana). Ver tambm Maurer (2006) para um panorama da incipiente literatura anglo-saxnica recente que trata do dinheiro em antropologia. Para observar algumas das significativas pontes entre essa problemtica associada ao dinheiro e a antropologia da quantificao, ver em especial Weber (2002), e tambm Zaloom (2003).
12 Estas consideraes explicam tambm por que, para o argumento deste tex-to, os termos moeda e dinheiro podem ser tomados como sinnimos, da mesma forma que eles so utilizados na linguagem ordinria em portugus ou em espanhol. Nesse sentido, no interessam aqui as distines estabelecidas por alguns autores que escrevem em lngua inglesa sobre money e currency, reservando o primeiro termo s moedas modernas, oficiais, dos estados nacionais, e o segundo, s moedas territoriais, locais (p.e., Akin & Robbins 1999, ou Helleiner 2003). Para uma reflexo bem informada sobre a gnese e o uso dessa distino em lngua alem (Geld/Mnze), ver o comentrio de Alban Bensa (1992) obra de Bernhard Laum, Heiliges Geld(1924). Ver tambm Thret no prelo: nota 32.
13 Ver, por exemplo, Hoppit (2006).
14 Ver Zelizer (1983).
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15 Os ndices de custo de vida so uns entre os vrios index numbers, criados por um tipo de economistas com forte formao matemtica e estatstica, que tm sido um instrumento central para fundar uma interpretao, segundo esses especialistas, cientfica (porque quantificadora) do comportamento humano e da vida social. Os nmeros relativos s contas nacionais, como os que medem o PIB ou aqueles que servem para medir pobreza e desigualdade, so tambm exemplos de index num-bers. Embora a histria social e cultural desses nmeros esteja ainda por ser feita, possvel ver a respeito, por exemplo, Diewert (2003: cap.1), e Porter (1986:261-269). A prtica de elaborar ndices nacionais de custo de vida difundiu-se de modo desigual entre os pases da Europa Ocidental e da Amrica Latina, mas s se generalizaria bem depois da Segunda Guerra Mundial.
16 A trajetria de Fisher e suas inovaes tericas e tecnolgicas merecem uma investigao parte. Basta mencionar o fato de que sua mentalidade sistemtica (como gostam de frisar os bigrafos) produziu tambm outras invenes com as quais convivemos cotidianamente, como o sistema de cartes para organizar dados, conhecido como kardex, que sobrevive ainda hoje em muitas bibliotecas. Fisher foi scio-fundador da Rand-Kardex Co., origem da empresa Remington, fabricante de mquinas de escrever e calculadoras. Sobre Fisher, ver Tobin (2005) e a biografia do seu filho, Fisher (1956). Sobre os ttulos indexados, Shiller (2005).
17 Sobre a generalizao do uso de moedas paralelas na Argentina, ver Luzzi(2005). Para uma viso mais ampla sobre o fenmeno, em termos comparativos, ver Blanc (2000).
18 Inspirado em Reinhard Kosseleck, Claudio Lomnitz (2003) utilizou de forma sugestiva a expresso saturao de presente para descrever a percepo temporal das classes mdias mexicanas da crise dos anos 1970 e 1980. De acordo com essa perspectiva, h a caracterizao de Bernd Widdig (2001) (motivada na anlise da crise alem de 1923, proposta por Canetti [1984]) de que a inflao manifesta, do ponto de vista cultural, uma modernidade fora de limites [out of bounds] na inter-relao entre a exacerbao da circulao, a massificao e a depreciao do valor dos objetos (Widdig 2001:23). Raros exemplos de des-cries de corte etnogrfico dos processos inflacionrios argentino e brasileiro esto em Spitta 1988; DaMatta 1993; Sigal & Kessler 1997; e ODougherty 2002. Entre as referncias originadas no ensaio ou na literatura (todas relativas ao caso alemo), vale mencionar Thomas Mann 1975 [1942]; Stefan Zweig 1943; e Elias Canetti 1984.
19 Sobre o contraste com a inflao alem, deve considerar-se a profundidade temporal, tanto das sries que descrevem a depreciao do valor da moeda, quanto da prpria construo da inflao, como assunto pblico de primeira grandeza. Na Alemanha, as sries que mostram a depreciao do marco comearam na PrimeiraGuerra, isto , 15 anos antes da exploso hiperinflacionria de 1923, qual se se-guiu uma imediata estabilizao. No Brasil e na Argentina, o perodo inflacionrio e a discusso pblica do problema da perda do valor do dinheiro estenderam-se por mais de 50 anos.
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20 Para uma anlise geral sobre as relaes entre as teorias econmicas e as culturas da inflao, que considera a dinmica diferencial do campo dos economistas no Brasil e na Argentina, ver Neiburg (2006a).
21 A expresso etnografia autobiogrfica de Eduardo Archetti (2003:16).
22 Ver a sugestiva descrio da intensificao, naquela poca, do consumo entre as classes mdias brasileiras proposta por ODougherty (2002).
23 Ver, por exemplo, Jornal do Brasil, de 01/01/1964, p.1.
24 Alguns dados gerais sobre a expanso do campo dos economistas no Brasilpodem ser vistos em Loureiro (1997), e sobre o jornalismo econmico, em Abreu (2003). As primeiras medies de preos apontando para o clculo de indicadores de inflao foram realizadas a partir de 1939 pela FIPE (Fundao Instituto de Pes-quisas Econmicas) para o municpio de So Paulo; a partir de 1944, a Fundao Getlio Vargas comeou a produzir o indicador de variao de preos do estado da Guanabara; e em 1955, o recm-criado Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Scio-Econmicos (DIEESE) comeou a produzir um outro indicador de custo de vida, referido a trabalhadores sindicalizados do estado de So Paulo. Ainda hoje podem ser encontrados bons exemplos dessa dinmica de indexao da vida social associada proliferao de laboratrios de fabricao de nmeros: a Fundao Ge-tlio Vargas, um dos principais desses laboratrios no Brasil, anunciou recentemente a divulgao pela primeira vez de um ndice de preos para jovens que podero, junto com os seus pais, calcular melhor o valor justo das suas mesadas. H neste momento tambm uma equipe da mesma fundao trabalhando na elaborao de um ndice para idosos, que visa subsidiar o debate pblico a respeito do valor justo das aposentadorias. Enfim, so os nmeros uma afirmao quantitativa do valor do dinheiro, agindo de modo crucial nas relaes entre as geraes.
25 Folha de S. Paulo, de 27/08/1978, p.31. Para uma descrio detalhada dessa polmica pblica a respeito dos nmeros, associada ao processo de proliferao dos indicadores e dos laboratrios de indexao e expanso do campo dos profissionais da economia, ver Neiburg (no prelo).
26 Para um exame da dinmica de produo e legitimao das teorias da inflao inercial, ver Neiburg (2006a:621-25).
27 Evidentemente, trata-se de condies necessrias, mas no suficientes para dar conta do contraste. Uma descrio da dinmica dessas diferenas, isto , uma explorao mais aprofundada da dimenso comparativa na pesquisa da qual este trabalho um resultado ainda preliminar, exige considerar-se uma pluralidade de elementos que excedem os objetivos deste artigo. Tentativas de construir os parmetros dessa comparao podem ser vistas em Neiburg (2004 e 2006b).
28 Algumas figuras, como Julio Nudler e Daniel Muchnik, em entrevistas a F. Neiburg em 2/10/2003 e 30/10/2003, relataram a experincia na produo e na
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distribuio, nos anos 60, dessas folhas com a cotao do dlar como o incio do processo da sua converso em jornalistas econmicos, o que s aconteceria uma dcada depois.
29 A expresso de Domingo Cavallo, presidente do Banco Central e depois Ministro da Fazenda, em duas ocasies.
30 As atas do Frum sobre dolarizao na Amrica Latina, promovido pelo FMIem 1999, ilustram o tom desse debate, no qual os especialistas faziam aparecer de modo crucial as suas interpretaes a respeito das culturas monetrias dos seus co-nacionais (ver IMF, 1999).
31 A teoria era uma generalizao do slogan utilizado na poca pela campanha publicitria da conhecida vodka Orloff, em que um personagem, referindo-se aos efeitos colaterais positivos (contra a ressaca) da bebida, advertia (antes de tomar): Eu sou voc amanh. O uso de bebidas alcolicas para falar do contgio da do-ena monetria se generalizaria pouco depois, com os efeitos tequila, vodka, caipirinha etc.
32 A utilizao da imagem da doena visando lidar com o valor da moeda tem uma longa histria. Ela recua at os incios da reflexo propriamente moderna sobre o dinheiro, no contexto do processo de homogeneizao e centralizao monetrias iniciado no sculo XV, quando se estabeleceu tambm, por exemplo, a distino ainda hoje vigente entre os economistas, de moedas autnticas e moedas esprias ou quase-moedas (ver, p.e., Kaye 1988). A atualidade da relao entre doena e ins-tabilidade monetria pode ser verificada observando-se os objetivos dos modernos Bancos Centrais: o primeiro deles sempre cuidar da sade da moeda.
33 Ver Neiburg (2005). Ver tambm Dixon (1998:47-60) e Lebaron (2000:176-81), respectivamente, para Gr-Bretanha e Frana. Sobre o uso de metforas naturais na legitimao pblica da cincia econmica, ver Mirowski (1994).
34 Callon baseia a sua demonstrao em um extenso comentrio do trabalho de Marie-France Garcia (1986), em que ela reconstri empiricamente, em um caso concreto, o processo atravs do qual se realiza o ideal do mercado perfeito.
35 Sobre esse debate, ver tambm Callon (2005) e Aspers (2005).
36 A expresso money doctor generalizou-se na Amrica Latina j no fim do sculo XIX (Drake 1994).
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