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RESENHA DE TEXTO: "CIDADANIA E CLASSE SOCIAL"Série acadêmica
RESENHA do capítulo “Cidadania e Classe Social”, p. 57-87. MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e “Status”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
O autor desenvolve, no texto, o que ele chama de “hipótese sociológica”, subentendida no
ensaio do sociólogo Alfred Marshall, sobre o qual considera que “há uma espécie de igualdade
humana básica associada com o conceito de participação integral na comunidade (...) o qual
não é inconsistente com as desigualdades que diferenciam os vários níveis econômicos na
sociedade” (p. 62). A sociedade aceita a compatibilidade entre igualdade de participação na
sociedade, ou igualdade de cidadania, e as desigualdades embutidas na estrutura de classes
sociais. A relação entre essas duas variáveis é uma preocupação que permeia todo o texto.
Com o fim de se dar início ao estudo, parte-se da seguinte afirmação interrogativa: “parece
haver limites além dos quais a tendência moderna em prol da igualdade social não pode chegar
ou provavelmente não ultrapassará, (...) limites inerentes aos princípios que inspiram essa
tendência” (p. 63), que se baseia na pergunta inicialmente colocada por Alfred Marshall no
referido ensaio: “há base válida para a opinião segundo a qual o progresso das classes
trabalhadoras tem limites que não podem ser ultrapassados?” (p. 59). Para respondê-las,
Marshall faz uma remontagem do desenvolvimento da cidadania – na Europa, berço da
sociedade capitalista, em geral, e, em particular, na Inglaterra [1] – até o século XIX,
relacionando-o com seu impacto sobre as classes sociais.
A apreciação de Marshall parte de três derivações particulares do conceito de cidadania, quais
sejam, os elementos civil, político e social. O direito civil está relacionado ao exercício da
liberdade individual e suas variantes, como a liberdade de ir e vir, de imprensa, pensamento e
fé, bem como o direito à propriedade, de concluir contratos válidos e à justiça (p. 63). Assim, as
instituições que se vinculam aos direitos civis, em função da possibilidade que apresenta o
indivíduo em afirmar seus próprios direitos em termos de igualdade com os demais e devido ao
encaminhamento processual são os tribunais de justiça. O direito político, por outro lado,
remete à possibilidade de participar no exercício do poder político, seja como membro eleito de
um dos organismos integrantes do Estado ou como seu eleitor. Desta forma, tem como
instituições correspondentes, o parlamento e os conselhos do governo local. Já o elemento
social, por fim, refere-se “a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar
econômico e segurança ao direito de participar (...) na herança social e levar a vida de um ser
civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (p. 63-4). A ele estão
relacionados o sistema educacional e os serviços sociais.
Tomando a Europa como referencial analítico, Marshall sustenta que, anteriormente à era
moderna, não era possível traçar uma linha clara entre os três direitos, uma vez que as
instituições aos quais se relacionam encontravam-se misturadas. Além disso, mesmo quando
era possível identificar direitos como os sociais nas sociedades feudais, por exemplo, eles
estavam ligados a um “status” que, à época, não representava a igualdade, mas constituía-se,
ao contrário, na “marca distintiva de classe e a medida de desigualdade” (p. 64). A situação era
diferente nas cidades medievais, onde podiam ser encontrados exemplos de uma cidadania
igualitária, mas ainda restritas ao nível local.
Deste modo, o autor assinala que a evolução da cidadania nacional [2], sobre a qual pretende
jogar luz, passou por um duplo processo – de fusão geográfica, por um lado, e de separação
funcional, por outro. O primeiro, que ocorrera na Inglaterra pelo menos um século antes de sua
consolidação na Europa continental, envolveu a transformação das instituições locais em
nacionais e permitiu a passagem da análise para um nível analítico mais amplo. A separação
funcional, por sua vez, relaciona-se com o desligamento das instituições da sociedade entre si,
resultando na formação de tribunais especializados e parlamento sem funções judiciais, bem
como a “Poor Law”, uma instituição nacional de direito social, porém administrada localmente.
O processo de evolução da cidadania originou, segundo Marshall, duas consequências
importantes. Primeiramente, a separação funcional permitiu que cada um dos direitos seguisse
seu caminho, figurando-se como elementos estranhos entre si. “O divórcio entre eles era tão
completo que é possível (...) atribuir o período de formação da vida de cada um a um século
diferente – os direitos civis ao século XVIII, os políticos ao XIX e os sociais ao XX” (p. 66).
Estes períodos devem ser relativizados, evidentemente, pois há entrelaçamento,
principalmente entre os dois últimos. Em segundo lugar, houve um distanciamento das
instituições com relação aos grupos sociais que elas buscavam servir, em função do seu novo
caráter nacional, decorrendo daí a necessidade de se reconstruir o mecanismo de acesso
àquelas: cada um dos direitos ligava-se a instituição cujo mecanismo de acesso foi restituído
ao longo dos séculos mais ou menos rapidamente, reforçando o “completo divórcio” ao qual
Marshall referia-se anteriormente.
A distinção entre cidadania, ou “status”, e classe social é outro elemento essencial na
formulação de Marshall. A primeira “é um ‘status’ concedido àqueles que são membros
integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o ‘status’ são iguais com respeito
aos direitos e obrigações pertinentes ao ‘status’” (p. 76). Quer dizer, a cidadania é a relação do
indivíduo com o Estado, a partir da qual são conferidos direitos individuais num movimento em
direção à igualdade material ou à cidadania ideal. A classe social, por outro lado, “é um sistema
de desigualdade” (p. 76). Relaciona-se com a inserção do indivíduo no mercado de trabalho e,
num marco liberal, sua existência é desejável – seja para recompensar o trabalho realizado ou
como incentivo para o desenvolvimento. Dessarte, é possível assegurar que a classe social é
fundada nas desigualdades econômicas dos indivíduos, ao mesmo tempo em que subsiste
como uma reprodutora de desigualdades sociais.
Cidadania e classe social, para Marshall, por divergirem-se fortemente quanto aos fins,
tomaram a forma de conflito entre princípios opostos. A observância de que, no século XX,
cidadania e sistema de classe capitalista encontram-se em guerra foi o que trouxe ao autor a
preocupação em investigar os impactos de uma sobre outra, e eventualmente entrever algum
tipo de compatibilidade. Ainda assim, os termos continuam a carecer de definições mais
concretas.
Marshall ocupa-se em realizar uma diferenciação entre dois tipos de classe social que são
importantes para o seu estudo. Ele ressalta que o primeiro deles é a classe que “se assenta
numa hierarquia de ‘status’ e expressa a diferença entre uma classe e outra em termos de
direitos legais e costumes estabelecidos que possuem o caráter coercivo essencial da lei” (p.
76), sendo uma instituição, emergida naturalmente, em seu próprio direito. Trata-se, de certa
forma, do sistema de classes do feudalismo medieval, e o autor aponta incisivamente a
incompatibilidade deste sistema com as aspirações de cidadania, quando afirma: “Uma justiça
nacional e uma lei igual para todos devem (...) enfraquecer e, eventualmente, destruir a justiça
de classe, e a liberdade pessoal, como um direito natural universal, deve eliminar a servidão”
(p. 77).
O segundo tipo de classe social, já brevemente tratado acima, não é tanto um produto derivado
de outras instituições sociais, mas particularmente dos “fatores relacionados com as
instituições da propriedade e educação e a estrutura da economia nacional” (p. 77). Permite-se
a mobilidade social, que está relacionada com a participação do indivíduo na economia – via
mercado de trabalho – e a possibilidade de sucesso material. A existência desse tipo de classe
gera um tipo de desigualdade social “necessária e proposital” (p. 77), ainda que possa se tornar
destrutivamente excessiva. Entretanto, sua necessidade sugere que, a princípio, ela não seja
incompatível com aspirações igualitárias via “status”. Neste sentido, o autor faz referência a
Patrick Colquhoun, que aceita explicitamente a pobreza, apesar de deplorar os indigentes ou
os destituídos: “Sem uma grande proporção de pobres não poderia haver ricos, já que os ricos
são o produto do trabalho (...). A pobreza, portanto, é um ingrediente indispensável e por
demais necessário da sociedade, (...)” (p. 78). O desejo por cidadania e o despertar da
consciência social, que acarretaram a – favorável – diminuição da influência das classes, não
constituiu um ataque ao sistema de classes, tornando-o, ao contrário, menos vulnerável. Além
disso, e particularmente, quando o núcleo da cidadania residia nos direitos civis, a concessão
de direitos era necessária para a manutenção de um mercado competitivo e gerador de
desigualdades.
Outrossim, os direitos políticos de cidadania “estavam repletos de ameaça potencial ao sistema
capitalista” (p. 85), uma vez que Marshall reconhece a importância do exercício do poder
político para demandar e se assegurar direitos sociais. Contudo, o que se observou na
Inglaterra foi a transferência da reivindicação social da esfera política para a civil da cidadania,
via sindicalismo ou “aceitação do direito de barganha” (p. 86).
Tem-se, portanto, que até o início do século XX, momento em que os direitos sociais começam
a se efetivar, o desenvolvimento da cidadania tenha exercido pouca influência direta sobre a
desigualdade social (p. 87). A ampliação dos direitos sociais constituiu-se num papel decisivo
na relação com o sistema de desigualdade, ainda que seu objetivo aparente não tenha sido
atacar a desigualdade de renda, mas sim promover a igualdade de “status”.
Por fim, julgam-se importantes dois aspectos da análise proposta por Marshall. Em primeiro
lugar, a essencialidade de sua definição de cidadania, em geral, e de sua tipologia dos direitos,
em particular. Ainda que o empreendimento do autor não chegue a se constituir numa teoria
específica, apesar de certas e dispersas generalizações quanto ao surgimento da cidadania na
Europa, suas formulações fornecem ferramentas importantes para a compreensão de
fenômenos sociais ao longo da história. Um segundo aspecto a se acentuar é a relação crucial
estabelecida por Marshall entre busca por igualdade, por meio da universalização da cidadania,
e manutenção de um sistema de desigualdades, produzido pelo próprio desenvolvimento de
uma economia de mercado. Ele demonstra que a convivência entre ambos é desejável e
necessária dentro da lógica capitalista vigente. Nesse sentido, vale destacar a atualidade de
certas questões por ele levantadas, embora a análise tenha sido realizada há seis décadas.
________________________________
[1] A Revolução Gloriosa, de 1689, e as guerras civis antecedentes, com conteúdos políticos, sociais, econômicos e religiosos, aplainaram o caminho para a Revolução Industrial na Inglaterra, um século antes da parte continental europeia.[2] Ao se referir à cidadania “nacional”, acredita-se que Marshall esteja pensando unicamente em termos de configuração territorial. Será desconsiderado, portanto, o “anacronismo” de Marshall, adotando sua visão de nacional como sinônimo de “estatal” para fins deste trabalho.Postado por Marcos Ticiano Sousa às 10:58
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