lex sportiva - puc-sp · que a globalidade do direito desportivo e sua forma vinculativa independem...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ramon de Vasconcelos Negócio
Lex sportiva
Da autonomia jurídica ao diálogo transconstitucional
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ramon de Vasconcelos Negócio
Lex sportiva
Da autonomia jurídica ao diálogo transconstitucional
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em Direito Constitucional, sob a orientação
da Prof. Dr. Marcelo da Costa Pinto Neves.
SÃO PAULO
2011
BANCA EXAMINADORA
________________________________
________________________________
________________________________
Para meus pais,
Francisco Negócio (in memorian) e Lucimarlene Costa.
RESUMO
Autor: Ramon de Vasconcelos Negócio
Título: Lex sportiva: da autonomia jurídica ao diálogo transconstitucional
Este trabalho pretende estudar o funcionamento da autonomia jurídica da lex sportiva e o seu
limite diante de outra ordem, quando presente um problema jurídico (especialmente
constitucional) comum a ambas. Após esta análise, procurar-se-ão as possibilidades de
entrelaçamento construtivo de ordens, o que permitirá novas percepções a respeito de
questões tipicamente constitucionais. Partindo das Federações Internacionais, será mostrado
que a globalidade do direito desportivo e sua forma vinculativa independem do contexto
olímpico. Contudo, com o Movimento Olímpico, a Agência Mundial Antidoping e, sobretudo,
o Tribunal Arbitral do Esporte, foi possível estabelecer maior harmonização global da ordem
jurídico-desportiva. Essa globalidade não raramente conflitou com outras ordens, o que exigia
o entrelaçamento proporcionado, destacadamente, pelos princípios constitucionais da
igualdade e da liberdade. A documentação consultada – composta por casos jurídicos,
Estatutos e legislações (nacionais, internacionais e transnacionais) – contribuiu também para
dar nova compreensão com relação à “soberania”, ao “acesso aos procedimentos
constitucionais” e à “nacionalidade”, que não apenas se limitarão ao âmbito nacional, como
também transnacional.
Palavras-chave: Lex sportiva; autonomia jurídica; transconstitucionalismo; soberania.
ABSTRACT
Author: Ramon de Vasconcelos Negócio
Title: Lex sportiva: from the legal autonomy to the transconstitutional dialogue.
This work intends to study the lex sportiva’s legal autonomy operation and its limits against
another order, when there is a legal problem (specially constitutional) which is common to
both of them. Right after this analysis, one will search for the possibilities of constructive
interlacements orders, which will allow new perceptions according to typically constitutional
questions. From the International Federations, it will be shown that the sportive law and its
binding form are independent from the olympic context. However, together with the
Olympic Movement, the World Anti-Doping Agency and the Court of Arbitration for Sport,
it was possible to establish a bigger global legal- sportive order harmonization. This global
characteristic is not rarely conflicting with other orders, which demanded the proper
interlacement of, prominently, equality and freedom constitutional principles. The
documentation analyzed – composed by legal cases, Statutes and legislations (national,
international and transnational) – contributed also to give a new comprehension regarding
“sovereignty”, “constitutional procedures access” and “nationality”, which will not only be
limited to the national scope, but also transnational.
Keywords: Lex sportiva; legal autonomy; transconstitutionalism; sovereignty.
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq, pela bolsa de estudos que viabilizou a vida em São Paulo.
Sou imensamente grato ao “rei dos mestres”, Professor Marcelo Neves. Não seria
novidade falar da sua capacidade acadêmica e de suas contribuições enquanto orientador e
professor. Por isso, agradeço por ter me aceito como orientando. Minha gratidão também se
estende à sua paciência (o que inclui a Elvira) por me receber em sua residência. Agradeço,
ainda mais, pela postura humilde nas conversas extra-acadêmicas, que envolviam música
(Cartola e Noel), cinema, teatro, política etc. Uma relação horizontal como essa só pode ser
proporcionada por alguém que “aprendeu sem se ensinar...”.
Meus agradecimentos aos professores Rodrigo Mendes, que participou da minha banca
de qualificação, sendo sempre educado em suas críticas e solícito ao indicar soluções; e ao
professor Roberto Dias, que não só participou da minha qualificação como também
presenciou toda minha vida acadêmica em São Paulo, incluindo os tempos de especialização.
Sou muito grato por sua disponibilidade no exterior para adquirir importante livro para este
trabalho.
À professora Maria Garcia, pela crença no meu potencial e pelas valiosas lições de vida.
Agradeço ao professor Luiz Alberto David Araujo, por orientar meu primeiro projeto de
mestrado. Aos professores Renato Mehanna, Luiz Guilherme e Derly Barreto, pelos
incentivos em ingressar no mundo acadêmico. Aos amigos Hélio Silveira e Imre Horst, que,
além de prestativos colegas de estudo, me foram verdadeiros mestres na vida.
Existem pessoas que, durante essa jornada, mereceriam um texto próprio. Nesse
parágrafo, reservo espaço para as pessoas que tiveram importância no campo da amizade e da
academia de forma misturada. Foi sempre importante escutar os vários conselhos, nem
sempre seguidos, do André Barros, que me amenizou o solitário segundo semestre de 2009.
Ao Octaviano Arruda, pelos cafés, pelas provocações acadêmicas e pelos debates esportivos.
Nossas conversas fizeram com que Luhmann e futebol pudessem ter o mesmo espaço. Entre
loucuras e mensagens cifradas, agradeço ao Maurício Palma pela companhia nos incertos
caminhos percorridos, que transformava um quarteirão em dez. Há, contudo, uma certeza
inquestionável: a fidelidade em nossa amizade. Com relação ao Rodrigo Cipriano, “amigo” é
uma qualidade muito fraca para definir sua importância. Posso afirmar, hoje, que ele é quase
um irmão. A gratidão – enquanto insurgência da gratuidade do dom, “da recusa a qualquer
exigência de reciprocidade” – é o sentimento que mais descreve a minha história com todos
esses amigos.
Conheci alguns grandes camaradas nessa jornada acadêmica, como o Pedro Henrique e
a galera do grupo de estudos, que foram responsáveis por encontros divertidos,
destacadamente, em bares da cidade. Agradeço, ao mesmo tempo em que peço desculpas, ao
Rui e Rafael (da PUC) e a Siméia por escutarem várias perguntas repetidas quanto a prazos e
agendamentos com o orientador. Agradeço ao Wesley (vulgo Werlim) por resolver em meu
nome burocracias na PUC, sem falar das nossas conversas no condomínio onde abrigava
nossos “flats”. É impossível esquecer o amigo Hallison, que, apesar de acreditar em justiça
enquanto prática, foi uma referência acadêmica. Ao Leonardo Sabino, minha eterna dívida
pela estadia e amizade proporcionada nos meus últimos e queridos meses em São Paulo (sim,
é possível ter saudade de São Paulo).
Sou grato aos amigos de Fortaleza, especialmente ao Filipe Jorge Ignácio Souto Maior
Moura Nogueira, Lucas Jereissati – por terem lido extratos do meu texto – e Rafael Maia –
que não só leu como também concedeu uma parte considerável da bibliografia. Acrescento
ainda os amigos Dionir Lima, Mariana Dionísio e Ticiana Nobre, que foram grandes
camaradas nas conversas da madrugada, e Nairo Régis, Thiago Alves e Tiago Gondim pelo
companheirismo nos intervalos da minha escrita. Ao Afonso Lima, por ter dado força em um
dos momentos mais críticos da minha estadia em São Paulo. Agradeço aos professores
Gustavo Liberato, por ter sido meu primeiro orientador e exemplo acadêmico, e ao professor
Evanilson, que, sem seus ensinamentos, esta dissertação seria impossível de ser feita. Aos da
minha cidade, por fim, agradeço a todos que compreenderam que, nas minhas promessas não
cumpridas de que eu ligaria para combinar algum evento social, havia um sincero “indireto
afetivo”, cujo efeito era mostrar que, mesmo na minha ausência, existia um carinho por todos.
Sou grato à minha mãe, dona Luci, que, com toques paternos e maternos, me deu
coragem para seguir a vida acadêmica. Ao meu tio Weyne, pelo apoio a nossa família. À tia
Elen, pela estadia em Brasília e por ter adquirido importante fonte bibliográfica.
Ao meu amor, Aline Medeiros, agradeço pelo calor das horas frias, pela companhia na
cidade solitária, pelas brincadeiras nas horas erradas, pelas discussões nas horas corretas, pelo
passado, pelo presente e, principalmente, pelo futuro. Minha gratidão, portanto, é por me ter
sido sempre necessária.
Por fim, sou grato ao Pablo e à Deborah por terem proporcionado o meu último
combustível para terminar este trabalho: meu sobrinho José Hugo (Zé Uguim).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1
1 DA VONTADE DE PERFORMANCE À FEDERAÇÃO INTERNACIONAL.................5
1.1 Vontade de performance e Direito como características do esporte...................................5
1.2 A Federação Internacional como resultante das vontades nacionais................................12
1.2.1 Características da federação e da confederação.....................................................12
1.2.2 “Federação” Internacional?...................................................................................15
1.3 A produção jurídica nas Federações Internacionais ........................................................20
1.3.1 Autorregulação.........................................................................................................22
1.3.2 Autoadministração...................................................................................................23
1.3.3 Julgamento de suas próprias causas........................................................................24
2 O MOVIMENTO OLÍMPICO............................................................................................27
2.1 Origem..............................................................................................................................27
2.2 Comitê Olímpico Internacional........................................................................................28
2.2.1 Papel central............................................................................................................30
2.2.2 Organização interna do COI e seus mecanismos regulatórios................................34
2.3 Jogos Olímpicos e Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos (COJO)...........................37
2.4 Federações Internacionais e Comitês Olímpicos Nacionais: autonomia e função...........40
3 AGÊNCIA MUNDIAL ANTIDOPING.............................................................................44
3.1 Origem..............................................................................................................................44
3.2 Código Mundial Antidoping e sua aplicabilidade............................................................47
3.3 Função e composição da AMA.........................................................................................50
3.4 Reconhecimento internacional e a previsão do TAS como órgão julgador......................53
4 TRIBUNAL ARBITRAL DO ESPORTE: O CENTRO DA ORDEM DESPORTIVA....56
4.1 Origem e organização.......................................................................................................56
4.2 O Tribunal como centro da ordem jurídico-desportiva e a eficácia de suas decisões......60
4.3 Padrões interpretativos próprios.......................................................................................67
4.4 Princípios gerais de direito revisitados.............................................................................74
5 LIMITES DA AUTONOMIA JURÍDICA E O TRANSCONSTITUCIONALISMO.......80
5.1 O transconstitucionalismo................................................................................................81
5.2 A ordem internacional e a lex sportiva.............................................................................85
5.3 O país sede como limitador da Lex sportiva.....................................................................88
5.4 Autonomia da lex sportiva perante as ordens nacionais...................................................93
5.5 A força do direito comunitário.......................................................................................102
6 A SOBERANIA JURÍDICA: DA LOCALIZAÇÃO À DESLOCALIZAÇÃO..............111
6.1 Soberania jurídica...........................................................................................................111
6.2 Cidadania e o acesso aos procedimentos constitucionais...............................................118
6.3 Nacionalidade e um terceiro critério...............................................................................123
CONCLUSÃO........................................................................................................................126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................129
ABREVIATURAS
ACNO: Associação dos Comitês Olímpicos Nacionais
AIBA: Associação Internacional de Boxe Amador
ASOIF: Associação das Federações Internacionais Olímpicas de esporte de verão
AIWF: Associação das Federações Internacionais Olímpicas de inverno
AMA (ou WADA): Agência Mundial Antidoping
CAAD: Comissão de Apelação e Arbitragem do Desporte
CMA: Código Mundial Antidoping
CNCDD: Comitê Nacional de Competição e Disciplina Desportiva
COI: Comitê Olímpico Internacional
COJO: Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos
CON: Comitê Olímpico Nacional
FEI: Federação Eqüestre Internacional
FFC: Federação Francesa de Ciclismo
FI: Federação Internacional
FIA: Federação Internacional de Automobilismo
FIBA: Federação Internacional de Basquete
FIFA: Federação Internacional de Futebol e Associação
FIG: Federação Internacional de Ginástica
FIJ: Federação Internacional de Judô
FILA: Féderation Internationale de Luttes Associées
FINA: Federação Internacional de Natação
FMF: Federação Mexicana de Futebol
FN: Federação Nacional
IAAF: Federação Internacional de Atletismo
ICAS: Conselho Internacional de Arbitragem em matéria de Esporte
IIHF: Federação Internacional de Hóquei no Gelo
ISU: International Skating Union
ITU: International Triathlon Union
LDIP: Lei Federal sobre Direito Internacional Privado
RFEC: Real Federação Espanhola de Ciclismo
TAS: Tribunal Arbitral do Esporte
TF: Tribunal Federal (suíço)
TJCE: Tribunal de Justiça das Comunidades Européias
UCI: União Ciclista Internacional
UEFA: União Européia de Futebol e Associação
UNESCO: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
WFK: Federação Mundial de Karatê
1
INTRODUÇÃO
Enquanto aguardava o resultado final de uma acusação por doping – por alto teor de
testosterona exógena – em 2006 no troféu José Finkel, a atleta Rebeca Gusmão conquistou
duas medalhas de ouro nos jogos Pan-Americanos de 2007, realizados no Rio de Janeiro.
Após a condenação pela Federação Internacional de Natação (FINA) – que resultou na
suspensão da atleta – as amostras coletadas no Pan-Americano mostraram dois DNA‟s
diferentes; isto é, uma das amostras não correspondia ao seu DNA. Em face disso, o
Ministério Público entrou com uma denúncia contra a atleta por falsidade ideológica, mesmo
havendo um recurso da atleta sendo julgado junto ao Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), a
última instância esportiva. A atleta foi inocentada na ordem jurídica brasileira, mas foi
considerada culpada pela ordem desportiva1.
Situações como essa ocorrem com certa freqüência, mas, com a mesma freqüência,
passam despercebidas, inclusive, nos meios acadêmicos jurídicos. A riqueza do caso
proporciona a inversão de uma lógica de enxergar os problemas jurídicos: ao invés de se
investigar o direito a partir da teoria geral clássica para entender as ordens jurídicas, estuda-se
a ordem jurídica transnacional para entender as mudanças na Teoria Geral do Direito. Na
atual conjuntura, essa é, possivelmente, a melhor forma de se entender a lex sportiva.
No final do século XIX e início do século XX, o esporte tornava-se uma atividade de
pretensão globalizante. Havia uma intenção de unir todos os povos, deixando de lado toda e
qualquer diferença entre eles. A idéia de retornar a um passado, isto é, ao significado olímpico
que existia na Grécia Antiga, servia como argumento fundamental para essa união. Se isso
não aconteceu, pelo menos serviu como um germe para trazer autonomia e estabilizar regras
do jogo em boa parte do mundo. O contexto atual nada se parece com aquele discurso antigo.
A autonomia do esporte – o respeito às regras do jogo – ganha novos atores que tentam influir
no discurso que meramente busca a performance: contratos publicitários e de direitos de
transmissão, salários de atletas, venda de produtos esportivos etc. O esporte, como atividade
completamente globalizada e meio que gera bilhões de dólares anuais, também configura um
1 Sentença nº 2008/A/1572; 2008/A/1632; 2008/A/1659, de 13 de novembro de 2009 – Gusmão c/ FINA.
2
forte instrumento de política internacional de reconhecimento e afirmação de um país. Dessa
forma, a autonomia do esporte requer órgãos que possam defendê-la de intromissões de outros
sistemas sociais, desenvolvendo um Direito com critérios próprios para a resolução de
conflitos.
Atuando de forma mais independente desde 1993, o TAS desenvolveu padrões
interpretativos de decisão que vão desde a não-intervenção nas regras do jogo até o banimento
de atletas. O crescimento da complexidade nos julgados esportivos é resultado de uma maior
complexidade de problemas lá desenvolvidos, como no caso do doping: atletas,
independentemente de idade e sexo, podem ser proibidos, por um órgão não-estatal, de
exercer sua atividade remuneratória, se recorrentes no uso do doping. Esse fato vai tocar em
várias áreas do saber jurídico. Desde já, o fenômeno do direito desportivo transnacional – lex
sportiva – merece maiores considerações pelas doutrinas de Teoria Geral de Direito e Direito
Internacional, da mesma forma ela merece considerações do Direito Constitucional. Os
problemas constitucionais, nesse contexto, emancipam-se do Estado para ganhar novas
aplicações de Tribunais fora do plano estatal. O poder de vinculação da lex sportiva – ordem
jurídica sem Constituição – aos seus atores traz uma nova visão no que tange à soberania
jurídica do Estado, principalmente quando a decisão dela se sobrepõe a algum órgão estatal.
De forma dependente, outras situações aparecem, como a limitação ao Poder Judiciário e a
nova significação à nacionalidade e à cidadania.
Tão importante quanto identificar esses problemas constitucionais é estabelecer os
limites da lex sportiva. Muitas vezes, notar-se-á que a justificativa da ordem transnacional em
se declarar competente para decidir eficazmente é de caráter constitucional, principalmente,
quando confrontadas com ordens estatais. Contudo, a lex sportiva não se encontra isolada no
sistema jurídico em relação a outras ordens. É importante verificar as situações que exigem
estabelecer os limites e possibilidades para o diálogo quando mais de uma ordem encontra-se,
especialmente, envolvida em problemas constitucionais. Mesmo que fragilmente, o sistema
jurídico exige maior consistência e integração de seus atores constitucionalmente envolvidos.
Diante dessas notas introdutórias, buscar-se-á, pois, desenvolver pesquisa que responda
aos seguintes questionamentos:
1 Como a lex sportiva desenvolve sua autonomia jurídica?
2 Quais são os limites da lex sportiva frente a outras ordens?
3
3 Que tipo de problemas jurídicos, especialmente constitucionais, aparecem,
simultaneamente, à lex sportiva a à outra ordem jurídica, exigindo o entrelaçamento delas?
4 Quais problemas constitucionais passam a ganhar novas perspectivas a partir da lex
sportiva?
No primeiro capítulo, serão tratadas as características das Federações Internacionais.
Partir-se-á das características do esporte, ressaltando que a vontade de performance e o direito
são características intrínsecas desta atividade. Posteriormente, serão analisados os aspectos
federativos desta organização, mostrando que também existem atributos de confederação. Por
fim, estudar-se-á como essas organizações produzem direito na autorregulação,
autoadministração e no julgamento de suas próprias causas.
No segundo capítulo, o Movimento Olímpico será objeto de investigação. Ao examinar
com atenção sua origem, será facilitada a compreensão de como foi possível a construção de
uma instituição que se tornou global em função de sua grandiosa competição. Serão estudadas
as características do Comitê Olímpico Internacional: seu papel central administrativo diante
de outras instituições desportivas; e sua organização interna, isto é, como são eleitos seus
representantes e como funcionam seus mecanismos regulatórios. Associado ao Movimento
Olímpico, estudar-se-á também o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos, que servirá como
entidade que intermedeia os interesses estatais da cidade sede e do COI sobre os Jogos
Olímpicos. Finalizando o tema relacionado ao Movimento, serão estudadas a autonomia e
função das Federações Internacionais e os Comitês Olímpicos Nacionais dentro do contexto
olímpico.
Após ter sido analisado o Movimento, notar-se-á este tem o importante papel de
harmonizar o direito desportivo transnacional. O que reforça tal afirmativa é a imposição do
Código Mundial Antidoping, sob a fiscalização da Agência Mundial Antidoping. Tomando
por base as primeiras legislações antidopings e suas difíceis execuções em âmbito global, o
terceiro capítulo terá a finalidade de examinar a aplicabilidade do CMA e a função e
composição da AMA, enquanto instrumentos que possibilitaram um discurso harmonizado
mundialmente. Neste capítulo, mostrar-se-á a importância do reconhecimento internacional da
Agência e seu Código, mas sem nunca lhe tirar a proeminência transnacional, também em
razão da previsão recursal junto ao Tribunal Arbitral do Esporte.
O quarto capítulo trata da elaboração do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS). Será visto
nele a contribuição para a identificação de uma diferenciação interna da ordem jurídico-
4
esportiva transnacional, declarando a licitude e ilicitude na ordem desportiva, sob o amparo de
um programa próprio. Com participação de várias legislações esportivas, estudar-se-á como,
diante de tantas diferenças, o Tribunal produz jurisprudência e padrões interpretativos. Da
mesma forma, serão investigados os usos dados aos princípios gerais de direito pelo TAS.
Serão examinadas, também, como suas decisões possuem eficácia transterritorial. Associado
aos capítulos anteriores, o quarto terá a pretensão de mostrar o funcionamento estrutural da
lex sportiva. Restará, então, compreender como esse funcionamento se dará ao conflitar com
outra ordem.
O quinto capítulo examinará os limites da ordem desportiva em face das outras ordens
jurídicas. Dando preferência aos conflitos de ordem constitucional, estudar-se-á o
transconstitucionalismo, que servirá tanto como identificação problemas constitucionais
comuns a mais de uma ordem, quanto uma proposta que tenta tornar praticável os vínculos
construtivos horizontalizados, possibilitando o aprendizado e influência recíproca entre
ordens jurídicas. Nesse contexto, será analisado o comportamento da lex sportiva diante das
ordens nacionais, internacional e comunitária, sempre procurando identificar até que ponto
suas decisões conseguirão ser eficazes diante de outra ordem.
O sexto capítulo buscará identificar alguns problemas constitucionais que ganharão
novas perspectivas a partir da lex sportiva. O debate a respeito da soberania jurídica será
revisitado com o intuito de se localizar criticamente, e a partir de casos, onde fica a soberania
da ordem jurídico-desportiva transnacional no contexto atual. A partir disso, verificar-se-á
como o acesso aos procedimentos constitucionais, enquanto característica da cidadania,
tomará outros rumos, inclusive, deslocalizados. Finalmente, a nacionalidade, também ligada
ao novo ponto de vista sobre soberania, será mostrada como ela pode ser objeto de um
terceiro critério: o transnacional.
5
1 DA VONTADE DE PERFORMANCE À FEDERAÇÃO
INTERNACIONAL
O primeiro componente a ser estudado, dentro de um contexto jurídico-esportivo, é a
Federação Internacional. Ela controla, inicialmente, todas as competições internacionais que
digam respeito ao seu respectivo esporte. A partir dessa informação, cabe, preliminarmente,
fazer duas observações a respeito dos objetivos deste capítulo: a primeira é que se terá a
preocupação de mostrar que existe uma produção jurídica inicial, a começar da estrutura da
Federação Internacional; a segunda trata de evidenciar, como preocupação maior, a coerência
do funcionamento das Federações, originado por uma solidariedade interna, que permite
admitir ou punir membros. Foram estudados nove Estatutos das mais diversas Federações
Internacionais. A escolha de cada Estatuto teve por base a relevância mundial do esporte, o
reconhecimento olímpico e a existência (quando existiu) de mais de um órgão regulador do
mesmo esporte. Para ser mais específico, a FIFA e a FIA, enquanto FI‟s de grande relevância
mundial, seja pelo espaço midiático, seja pelo número de Federações Nacionais federalizadas
(a primeira é reconhecida pelo COI, a segunda, não); FIG, FIJ, IAAF, FIBA, FINA
(vinculadas ao Movimento Olímpico, representadas nos Jogos Olímpicos de Verão) e a IIHF
(representada nos Jogos Olímpicos de Inverno); e a WFK (como uma representante dentre
várias sobre o esporte Caratê, mas que ainda não possui reconhecimento do Movimento
Olímpico). Através de seus Estatutos, pretendeu-se apresentar algumas semelhanças na forma
das Federações manterem sua solidariedade. É evidente que existirão diferenças profundas em
várias legislações. Sabe-se que é impossível estudar todas as Federações Internacionais. Por
isso, justifica-se, de antemão, que o capítulo tem o intuito dar um olhar geral a essas
Federações, na tentativa de mostrar que existe uma lex sportiva anterior ao contexto olímpico.
1.1 Vontade de performance e Direito como características do esporte
Aos quarenta e um minutos do segundo tempo, na final do campeonato carioca de
futebol de 1978, Zico cobra o escanteio, quando, de surpresa, o zagueiro do Flamengo,
Rondinelli, cabeceia a bola marcando o gol do título. O defensor rubro-negro não utilizou as
6
mãos ou empurrou qualquer adversário para conseguir êxito no seu feito por um motivo
óbvio: as regras do jogo proíbem tal conduta.
O exemplo acima pode soar banal, mas pode servir para compreender inicialmente o
funcionamento de uma estrutura que possui regras, árbitros e sanções. É que “existe uma
gratuidade essencial à atividade esportiva”, isto é, “não responde a alguma utilidade que lhe
seja exterior para pressupor regras”. Isso permite dissipar a aparência do arbitrário, ou do sem
sentido. Aos praticantes, árbitros – cuja presença se deve para assegurar o respeito às regras –
e espectadores, pressupõe o conhecimento dessas regras2, ou seja, é necessário nutrir
expectativas normativas de um determinado comportamento esportivo.
Antes de adentrar na estrutura jurídica do esporte, é fundamental exprimir que existe
uma característica que motiva a organização esportiva e a produção de regras: a performance.
A performance é o produto mais característico da atividade esportiva, porque, ao contrário de
outras atividades humanas, como o trabalho, não produz bens ou serviços. Porém, se o
trabalho visa produzir algo, o esporte visa produzir performance. A vontade de performance é
o que transforma em ato; é o que coloca o esporte em movimento. A sua motivação pode ser
um recorde a ser batido ou uma valoração maior de uma performance comparada à de outro
atleta3.
Para uma melhor caracterização do esporte, é possível fazer uma comparação deste os
comportamentos do cotidiano. Contrariamente ao comportamento ordinário, a performance,
como medida de valor esportivo, é valorizada em razão dos obstáculos. No cotidiano, busca-
se não chegar perto de obstáculos para concluir mais rápido seu objetivo. No esporte, o
obstáculo é um componente próprio da atividade ao qual o atleta se opõe deliberadamente4.
A vontade de performance, acompanhada de seus obstáculos, é concretizada nas
competições. É na competição o espaço onde se pode afirmar superioridade sobre o
adversário5. Com isso, já é possível diferenciar o esporte da mera atividade física. Se, por
exemplo, é possível realizar uma competição de futebol, não é possível realizar uma
competição da simples caminhada na praia. Esta não possui, primariamente, a vontade de
performance, tornando impossível verificar um comparativo entre atletas, que, somado à
2 Simon, 1990, pp. 1-2.
3 Ibidem, pp. 20 e 22-23.
4 Ibidem, pp. 21-22.
5 Ibidem, pp. 23-25.
7
ausência de espaço para a concretização performática, confirma a falta de caracterização desta
atividade como esporte.
Para que seja possível a realização da competição, é necessário que haja previamente
um acordo das vontades competitivas. Apresenta-se como um acordo contratual que é
formado pela troca das vontades dos competidores, que se reúnem para definir as regras da
disputa. Sua execução, que é o desenrolar da competição, deve possuir correspondência com
as condições fixadas previamente pelas “partes”. Mais do que para prevenir ou encerrar um
conflito, o acordo das vontades competitivas elabora, como singularidade, o conceito de
conflito. Ou seja, a competição é o resultado de um consenso para que se possa desenvolver a
concorrência6.
Ao contrário das guerras, a concorrência nas competições se caracteriza em não haver
formas destrutivas de eliminação do adversário, mesmo nas mais agressivas. O caráter
pacífico é outra condição intrínseca do esporte, porque, sem ela, haveria a destruição do
sentido de rivalidade competitiva7. Nessa condição, afirma Simon:
[...] a competição combina nela esses dois elementos aparentemente contraditórios,
mas absolutamente recíprocos um ao outro, a cooperação e a oposição, não somente
o afrontamento dos adversários não destrói o pacto inicial, mas é precisamente na
oposição mesma que este se realiza.8
No esporte, o paradoxo da relação entre cooperação e oposição serve como combustível
para a inexistência das conquistas definitivas, eis que um vitorioso jamais será um
proprietário de um título, mas um detentor provisório. Isso é possível porque, uma vez
derrotado, o adversário terá outra chance de vencer em uma próxima competição. A
reprodução desse paradoxo contribui na perpetuação das competições9.
Além da contribuição da relação entre cooperação e oposição, cabe destacar que a
perpetuação das competições depende da institucionalização das vontades competitivas10
. É
necessário criar órgãos pelos quais defenderão essa perpetuação da competição e suas regras,
resultadas de acordos de vontades competitivas. Portanto, para que exista esporte, é necessário
que haja direito. Não se nega que a produção de performances gere uma apreciação estética.
Além da performance ser um fim em si mesma, isso pode aproximar o esporte da arte11
.
6 Ibidem, pp. 26-27.
7 Ibidem, p. 28. O Estatuto da FIBA assegura, em seu art. 4º, C, a busca por um esporte justo e competitivo.
8 Ibidem, p. 27.
9 Ibidem, p. 29.
10 Ibidem, p. 31.
11 Welsch, 2005, pp. 137 e 145.
8
Contudo, o ponto importante que vai diferenciar o esporte da arte é a presença do direito.
Apesar de regular a performance (e não determiná-la)12
, o direito aparece no esporte como um
elemento necessário, o que não se verifica necessariamente na arte. A atividade esportiva se
desenvolve efetivamente em aplicação de uma regulamentação, adotada pelas instituições
responsáveis de cada esporte. O meio esportivo é de caráter jurídico na medida em que boa
parte dos gestos esportivos se qualifica pela relação com alguma regulamentação técnica. Isso
permite afirmar que no esporte a regra de Direito reveste-se de um aspecto original, “em que
as regras do jogo, próprias de cada esporte, conferem direitos e deveres relativos ao
desenvolvimento da prova. Assim, toda infração incorre uma sanção”13
.
Diante desse aspecto jurídico constituinte do esporte, torna-se necessário explicar as
funções do direito, para, desde já, afastar a possibilidade de redução destas ao enquadramento
hierárquico das Constituições estatais14
. O direito possui dimensões para que o
comportamento social, em um mundo altamente complexo e contingente, exija a “realização
de reduções que possibilitem expectativas comportamentais recíprocas e que são orientadas a
partir das expectativas sobre tais expectativas”. A dimensão temporal estabiliza as estruturas
de expectativas contra frustrações através da normatização, o que, frente à crescente
complexidade social, “pressupõe uma diferenciação entre expectativas cognitivas (disposição
à assimilação) e normativas, além da disponibilidade de mecanismos eficientes para o
processamento de desapontamentos”. Na dimensão social, “essas estruturas podem ser
institucionalizadas, ou seja apoiadas sobre o consenso esperado a partir de terceiros”. Na
dimensão prática, “essas estruturas de expectativas podem ser fixadas externamente através
de um sentido idêntico, compondo uma inter-relação de confirmações e limitações
recíprocas15
”.
Em razão dessas três dimensões, que devem ser consideradas em conjunto, é possível
afirmar que se criam possibilidades de para que exista uma generalização de expectativas:
Dessa forma a normatização dá continuidade a uma expectativa, independentemente
do fato de que ela de tempos em tempos venha a ser frustrada. Através da
institucionalização o consenso geral é suposto, independentemente do fato de não
existir uma aprovação individual. A identificação garante unidade e a inter-
dependência do sentido, independentemente das diferenças objetivas entre as
expectativas. Dessa forma a generalização gera uma imunização simbólica das
12
Ibidem, p. 146. 13
Latty, 2007, p. 25. 14
Com o mesmo propósito de afastamento, Teubner, 1997a, p. 157. 15
Luhmann, 1983, p. 109.
9
expectativas contra outras possibilidades; sua função apóia o necessário processo de
redução ao possibilitar uma indiferença inofensiva16
(grifos do autor).
O direito, assim, não se apresenta, primariamente, como um ordenamento coativo, mas
como um alívio para as expectativas, isto é, “na disponibilidade de caminhos
congruentemente generalizados para as expectativas, significando uma eficiente indiferença
inofensiva contra outras possibilidades, que reduz consideravelmente o risco da expectativa
contrafática”17
. Portanto, em razão do que acima foi exposto, a função do direito deve ser
definido como “estrutura de um sistema social que se baseia na generalização congruente de
expectativas comportamentais normativas18
” (grifos do autor).
O direito existente no esporte não pode ser comparado com um mero costume. O
conhecido exemplo de costumes praticados na Igreja, como o de não entrar com chapéu no
recinto, não pode ser igualado ao estabelecimento de regras esportivas. É certo que somente a
especificação da função do direito não é suficiente para mostrar que há direito no esporte19
.
Este depende de estrutura. É fundamental apontar para o código que orienta o direito. Ao
distinguir os lados opostos que o do código do direito promove, nota-se que eles se
caracterizarão pela diferença lícito/ilícito (um valor positivo, quando o assunto coincide com
as normas do sistema; um valor negativo, quando infringe as normas do sistema20
). Este
código binário, sob a forma da biestabilidade, garante que o sistema pode ligar suas operações
seguintes, tanto na declaração de licitude, quanto na ilicitude21
. Dessa forma, o código utiliza
ambas as possibilidades para confirmar a si mesmo, rechaçando código de outros sistemas
funcionais22
. Contudo, o código em si não oferece nenhuma possibilidade de adaptação do
sistema ao ambiente e não produz informação23
. A solução para este problema é a formação
de uma distinção interna entre codificação e programação, sendo o primeiro condição de
possibilidade de condicionamentos que “regulam qual de ambos os valores se aplicará
adequadamente”, enquanto que o segundo serve como critério de determinação dos valores do
código binário24
, isto é, há o preenchimento da codificação com conteúdo. Relacionado com a
função de estabilização de expectativas, os programas dão direção semântica, determinando
16
Ibidem, p. 110. 17
Ibidem, p. 115. 18
Ibidem, p. 121. 19
Mendes, 2010, p. 79, a respeito da insuficiência da explicação do direito somente a partir da função. 20
Luhmann, 2005, p. 236. 21
Ibidem. 22
Ibidem, p. 238. 23
Ibidem, p. 246. 24
Ibidem, p. 248.
10
de antemão o comportamento aceitável juridicamente, mas, ao mesmo tempo, condicionado
por um código25
.
No campo do jogo do esporte, essa óptica sobre o direito se confirma. Não somente no
plano funcional da estabilização de expectativas, como também a declaração de uma
“licitude/ilicitude” dos atos de campo. No âmbito esportivo, existem regras institucionalizadas
através de códigos, que determinam ao juiz (ou comissão julgadora) qual é o comportamento
dentro do campo de jogo que é permitido ou não. Exemplificando, um juiz de futebol não
pode declarar que houve falta sem que haja uma correspondência com as regras
institucionalizadas em seu código desportivo. Não há, portanto, arbitrariedade na validação
das regras. Da mesma forma, elas não podem ser consideradas meros convencionalismos
sociais. A presença do direito – não somente reduzida à sua função – no esporte é marcante a
tal ponto que, sem ela, o esporte seria impraticável. Vale ressaltar, por fim, que esta presença
é necessária, mas não pode ser comparada à complexidade de uma ordem jurídica estatal, por
exemplo. No campo, ao contrário das ordens estatais, as decisões são tomadas sem uma
profunda discussão do fato, isto é, sem uma densa operacionalização do contraditório (por
mais que as tecnologias tenham aumentado, gerando maior espaço para contestação/reforma
da decisão tomada, como é o caso no tênis). Isso, porém, não representa que não haja direito
no esporte, senão um direito menos complexo.
O esporte – enquanto movimento unitário e coerente – só consegue assegurar sua
concretização nas contínuas e regulares competições através da unificação de regras
esportivas institucionalizadas, que são criadas, observadas, aplicadas e executadas por
instituições específicas para isso26
. Além da garantia de permitir o jogo pacífico, quando, por
exemplo, codificam o fair-play, as instituições devem garantir da mesma forma a igualdade
esportiva e a incerteza do resultado final. A igualdade esportiva é a garantia inicial de que
todos os atletas terão as mesmas condições de conquistar a vitória, permitindo a
“confrontação equilibrada das forças que dá plenamente seu sentido à comparação das
performances”27
. É possível que algum atleta, em razão da qualificação, consiga uma melhor
posição no momento da competição, o que lhe facilitaria a vitória. Todavia, essa condição
benéfica só pode ser conquistada em função de uma condição jurídica inicial igualitária. Sem
igualdade esportiva, dificilmente poderia vislumbrar a incerteza do resultado final. Este
25
Ibidem, p. 251, 256 e 258. 26
Simon, 1990, p. 3-4. 27
Ibidem, p. 89.
11
aspecto, que deve ser garantido pelas instituições, permite que não haja a intromissão de
outros elementos estranhos ao esporte que garantam a certeza do resultado. Fica mais fácil de
ser vislumbrada quando se tomam medidas em que dois clubes de futebol diferentes não
podem ter o mesmo dono ao disputarem o mesmo campeonato28
.
Inicialmente, as instituições esportivas começam no âmbito territorial. São geralmente
oriundos da reunião de clubes locais, que formam uma federação para organizar eventos. Essa
instituição pode tomar corpo, crescendo em dimensões nacionais, quando somadas às outras
instituições localizadas que tratam da mesma matéria. O resultado desse processo é a
Federação Nacional. As regras ganham domínio nacional, sendo cumpridas pela totalidade de
seus membros, dada a solidariedade necessária para se fazer parte desse contexto. Ou seja,
para que se possa participar de competições nacionais, os membros terão de cumprir as regras
formuladas pelas instituições do mesmo âmbito29
.
Essa mesma lógica também servirá para a construção de Federações Internacionais
esportivas (FI), que servirão de mote para a construção de uma solidariedade transnacional.
Esta, para se afastar de um contexto politizado ou meramente localizado, terá como formação
uma produção privada na institucionalização de regras e órgãos. Isso tudo para garantir que a
identificação de sentido global das regras esportivas possa ser realizada nas competições
internacionais, tendo em vista que existirão órgãos que produzirão e resguardarão as regras,
aplicando sanções aos que tentarem burlá-las. É possível, nesse sentido, que as ordens
desportivas enxerguem os programas jurídicos de forma diferente do Estado. Tudo isso para
que, de fato, se possa garantir a igualdade e a incerteza do resultado final nas competições.
Nesse sentido, Teubner afirma:
Nos regimes privados globais, ocorre uma eficaz autodesconstrução do direito,
capaz de tornar simplesmente ineficazes os princípios básicos do direito estatal, a
saber: a dedução da validade das normas jurídicas a partir de um modelo hierárquico
de fontes normativas, a legitimação do direito por uma constituição politicamente
posta, o processo legislativo em instâncias parlamentares, a segurança conferida por
instituições, processos e princípios do Estado de direito e a garantia de espaços de
liberdades individuais pelos direitos fundamentais politicamente conquistados30
.
Com o processo de globalização do esporte, globalizou-se, também, o seu Direito31
.
Seria impossível dissociar o Direito do esporte, dado que, para o esporte ser o que é, é
28
Cf. Sentença nº 98/200, de 20 de agosto de 1999 – AEK Athens and SK Slavia Prague c/ Union of European
Football Associations (UEFA). 29
Latty, 2007, p. 50. 30
Teubner, 2005, p. 111. 31
De forma semelhante, Teubner, 2005, p. 108-09.
12
necessário que possua direito em sua constituição. Com o crescimento da complexidade do
esporte, muito em função de interesses diversos sobre a matéria (farmacêuticos, médicos,
políticos, econômicos etc.), as instituições esportivas se viram compelidas a criar uma carga
argumentativa mais forte. Assim, para garantir a solidariedade interna no plano transnacional
esportivo, foi organizada uma lex sportiva que fosse além das regras do jogo para que pudesse
garantir a manutenção de aspectos fundamentais em face de atores externos, como a
autonomia do esporte global, a igualdade e a incerteza do resultado final.
O termo lex sportiva pode ser considerado como o direito transnacional esportivo. Não
se deve limitar seu campo a só jurisprudência do Tribunal Arbitral do Esporte, pois o
fenômeno engloba regras e decisões de outras organizações esportivas transnacionais. Através
da lex sportiva, não se quer reforçar um discurso “independente” para inventar uma
autonomia do direito transnacional esportivo desligada de influências de outras ordens
jurídicas. Também é condenável a postura oposta, que, ao negar a existência ou minimizar a
eficácia jurídica da lex sportiva, comparam-na a “um contra-poder dos Direitos estatais”. A
idéia, aqui, é entender como a noção de direito transnacional consegue ser aplicada no campo
esportivo32
.
Para que a compreensão de direito transnacional possa ser compreendida, é essencial
estudar a estrutura organizacional da lex sportiva, seu funcionamento e como se processa a
unidade, resultante da solidariedade interna dos componentes da ordem. A seguir, o primeiro
ator a ser focado nessa estrutura transnacional será as Federações Internacionais.
1.2 A Federação Internacional como resultante das vontades nacionais
As Federações Internacionais esportivas (FI) são fruto da reunião das vontades
nacionais competitivas. É possível notar que a afirmativa anterior possui uma proximidade
com o conceito de federalismo, tão estudada pela Teoria Geral do Estado. Porém, no caso
esportivo, não haverá uma pureza do conceito federalista nessas instituições esportivas,
havendo proximidades também com o conceito de confederação. Sob o olhar desta, um estudo
geral sobre federação e confederação facilitará o conhecimento das FI‟s.
1.2.1 Características da federação e da confederação
A federação “é uma união permanente, baseada no livre convênio, e ao serviço de uma
estrutura comum da auto-conservação de todos os membros, mediante a qual se altera o total
32
Latty, 2007, pp. 36-39.
13
status político de cada um dos membros em atenção ao fim comum”33
, representando uma
ausência no direito de secessão. Dessa forma, não se terá uma união de Estados soberanos, eis
que, dentro de uma óptica federalista, a soberania é única do Estado Federal. Há, assim, o
nascimento de um novo Estado e, conseqüentemente (em regra), uma nova cidadania e
nacionalidade com o advento da Federação34
.
Por não se falar em soberania dos entes federativos, falar-se-á, no plano interno, de
autonomia destes. Essa autonomia há de estar prevista na Constituição do país, de forma
oposta ao que ocorre na confederação, em que os poderes são expressos em um tratado.
Delineiam-se, na Constituição, todas as competências que cada ente terá (repartição de
competências). A necessidade de divisão constitucional das competências é importante para
“determinar as atribuições e impedir a sua mudança ao bel-prazer dos mesmos”35
.
Para a manutenção e reforço da descentralização, mostra-se necessário que as
competências estejam descritas para o real exercício da autonomia que cada ente possui. A
respeito da definição de autonomia, Baracho entende que “A autonomia constitui uma
pluralidade de ordenamentos. Por isso, sua mais elevada realização, no domínio da forma do
Estado, encontra naquela pluralidade inconfundível36
”. Essa autonomia necessária aos entes
federativos dividir-se-á em política, legislativa, administrativa e financeira.
A autonomia política refere-se ao autogoverno, e a legislativa, à liberdade de se
produzir leis conforme as necessidades locais, regionais ou nacionais. Já a autonomia
administrativa “permite que as comunidades federadas conservem, cada uma, certa
independência, que lhes permite efetuar a gestão de seus negócios37
”. Todas sempre hão de
respeitar os ditames da Constituição. Não adianta, contudo, o ente federativo possuir
competências nominalmente se não possui meios para colocá-los em prática. Sendo assim, os
tributos são as representações maiores da efetividade da autonomia financeira.
Os doutrinadores colocam como sustentáculo do federalismo, além da autonomia, o
princípio da participação38
. Pode a participação ser direta ou indireta. A primeira prevê
participação do ente federativo, além da União, no processo revisional da Constituição. Em
sentido mais amplo, Zippelius expressa:
33
Schmitt, 2003, p. 348. 34
Dallari, 2005, p. 260. 35
Liberato, 2005, p. 310. 36
Baracho, 1986, p. 50. 37
Ibidem. 38
Ibidem.
14
Na mesma direção aponta também a reivindicação democrática de, através de uma
descentralização política e democrática, assegurar ao indivíduo a maior participação
possível na formação da vontade comunitária e na regulação das tarefas públicas. As
oportunidades de uma participação democrática e responsabilidade cívica do
indivíduo são tanto maiores quanto mais poder de decisão for depositado nos níveis
organizativos mais baixos39
.
Outro elemento importante do federalismo é a delimitação territorial do ente. A
delimitação territorial está intimamente ligada ao exercício da autonomia e até onde ela pode
ser exercida. Pode soar óbvio o presente aspecto, porém, ao se falar de intervenção federal, o
caráter territorial soa necessário. Nessa perspectiva, destaca-se:
Se garante, pois, dentro da Federação o status quo político. No sentido da existência
política. A isto corresponde também normalmente a garantia do status territorial.
Não pode ser privado nenhum membro federal, contra sua vontade, de uma parte de
seu território, e muito menos pode ser suprimido contra sua vontade em sua
existência política. Não quer dizer-se com isso que toda garantia da existência
política ou de um status de possessão territorial signifique já um pacto federal.
Porém, o contrário, a toda Federação corresponde essa garantia, que resulta tanto da
finalidade de auto-conservação como do conceito de permanência, essencial à
Federação (grifos originais)40
.
A existência de um Tribunal Constitucional é também requisito importante para a
consecução de uma federação. Há a necessidade de um órgão neutro que atue nos conflitos de
competência entre os diversos entes federativos41
, sendo necessário o controle de
constitucionalidade.
Existe a exigência da previsão da intervenção para a manutenção da federação. É uma
medida excepcional, pois, por meio dela, um dos entes federativos fica autorizado a intervir
em outro, suspendendo-lhe a autonomia de que gozava, nos termos da Constituição42
. Isso
ocorre quando há algum ato desrespeitoso à conservação da Federação. Exemplo típico é a
luta pela separação de um Estado-membro, na luta por sua soberania.
Não é possível determinar com critérios absolutos se um país é ou não uma Federação,
pois esta é uma construção social e histórica43
. Já se foi mostrado que, em vários países
unitários, há mais descentralização regionalizada que em alguns países que se proclamam
federais44
. Além disso, se todos os critérios fossem tidos como absolutos, seria impossível
encontrar uma federação no mundo. Não significa, porém, que não se possam abstrair
algumas características comuns ou ideais que se vislumbrem a construção de uma federação.
39
Zippelius, 1997, p. 506. 40
Schmitt, 2003, p. 350. 41
Tavares, 2007, p. 963. 42
Ibidem, p. 964. 43
Bercovici, 2003, p. 146 44
Pontes de Miranda, 1960, pp. 177-179.
15
Ao contrário da federação, a confederação “é a aliança de dois ou mais Estados
soberanos que, mesmo unidos para a consecução de objetivos comuns, conservam a liberdade
de se autogovernarem”45
. A confederação liga-se a fins, enquanto que a federação é uma
realização estrutural. Ela nasce de um tratado entre Estados independentes e ainda soberanos
que “deferem ao órgão central algumas atribuições, tendo em vista a defesa comum, a
segurança de suas liberdades, a manutenção do bem-estar de seus habitantes etc.”46
Há uma permanente relação jurídica internacional, cujos Estados são independentes e
não dão origem a um novo Estado. A confederação apenas cria “um sistema de coordenação
de vontades políticas, cuja base contratual assenta visivelmente sobre uma limitação
consentida da soberania de cada Estado-membro para consecução de fins comuns”47
. Na
confederação, não se fala em cidadania ou nacionalidade distinta das já existentes, visto que
não se possui, nesse caso, território próprio. É uma simples união. Com isso, há de se
reconhecer o direito de secessão, eis que cada Estado possui soberania, matéria intacta em
uma Confederação. Tem-se o direito de denunciar o tratado ou retirar-se da Confederação48
.
Nessa união de Estados soberanos existe um corpo deliberante denominado Dieta. É
composto por embaixadores e Chefes de Estados, que, por maioria, podem vetar decisões,
além de diminuir ou aumentar os poderes dessa união de Estados. Vale ressaltar que todas
essas modificações hão de passar pelo crivo dos governos dos Estados componentes49
. Por ter
caráter eminentemente internacional, as ações unitárias expressam-se, em regra, na política
externa, ditadas pelas razões que justificam a sua existência.
Essas características, comuns em estudos doutrinários, têm grande importância como
elemento crítico das federações e confederações ou como base comparativa de institutos que
conservam sua unidade fundamentada em elementos de teorias sobre as duas. É o caso da FI,
que absorve características de ambos os institutos.
1.2.2 “Federação” Internacional?
As Federações Internacionais constituem agrupamentos de organizações nacionais
esportivas. Da mesma forma que uma federação, convive-se com a combinação entre
liberdade de ação dos associados e unidade da união entre eles. Significa que existe uma
45
Carrazza, 2005, p. 130. 46
Ibidem. 47
Bonavides, 2006, p. 179. 48
Ibidem, p. 180. 49
Ibidem, pp. 180-81.
16
tentativa eterna de conciliar as tendências contraditórias entre a autonomia dos entes e a
hierarquização da comunidade global que agrupa todas as unidades elementares50
. Essa
construção federativa será possível por três motivos: o monopólio sobre o tema esportivo; o
controle sobre a competição internacional; e a coerência interna das regulamentações
federativas.
Os Estatutos das FI‟s apresentam os objetivos fundamentais da união entre os membros.
Entre os objetivos estatuídos está a afirmação de que a FI é responsável pela regulação,
fiscalização, aplicação e execução das regras que englobam o mundo no que tange à sua
matéria esportiva, conforme expressa o artigo 4.1, do Estatuto da Federação Internacional de
Basquete (FIBA)51
. O aspecto de fiscalização do cumprimento das regras é comum em
praticamente todas as FI‟s, mesmo que não expressas em Estatuto. O artigo 3.6 da Federação
Internacional de Atletismo (IAAF) afirma que é obrigação desta “supervisionar e fazer
cumprir as obrigações dos membros”, servindo, como será mais à frente analisado, de
condição para a participação do contexto esportivo específico. Existem objetivos secundários,
como “melhorar a qualidade do ensino de Judô” ou “promover e encorajar o desenvolvimento
de relações internacionais”52
. O que de mais importante há nos objetivos principais das FI‟s é
a afirmação de que possui o domínio global em sua matéria, “pois, sem a existência de um
poder capaz de estabelecer e de impor uma regulamentação se aplicando a todos os países
interessados, não seria possível dar na prática esportiva uma dimensão universal”53
. Portanto,
na FI, é possível enxergar uma característica com respeito a fins, aproximando-se dos
atributos das confederações
O monopólio federal é condição lógica da organização do sistema esportivo no que diz
respeito a uma vontade unitária54
. As razões da manutenção no tempo do monopólio federal
se devem à vontade de independência, notadamente em face dos poderes públicos, e por “um
tipo de mentalidade de „primeiro ocupante‟ na constituição das disciplinas, cujos responsáveis
federais atuais se sentem herdeiros”. Para os dias atuais, essa explicação ainda é digna de
registro, mas não é sustentável por si só. A razão de sua manutenção “reside nos mecanismos
50
Latty, 2007, p. 123. 51
No mesmo sentido, está previsto nos artigos 2º da AIBA, da FIFA e da IIHF, artigo 5º da FINA, artigo 3.5 da
IAAF. 52
Artigo 2º da FIJ, e C-5.3 da FINA. 53
Simon, 1990, p. 46. 54
Cf. Silance, 1998, p. 16.
17
internos que seu funcionamento prova eficácia”55
. Vale ressaltar que o monopólio sobre a
matéria esportiva tem sido diluído. A criação de federações esportivas profissionais tem feito
migrar atletas de uma federação à outra. É o caso do boxe, cuja matéria esportiva é regulada
por mais de uma Federação Internacional. No caso, a Associação Internacional de Boxe
Olímpico (AIBA) divide atenção com outras Federações, como a World Professional Boxing
Federation. Da mesma maneira, a FIBA por muitos anos recusou a participação em suas
competições de atletas que jogassem na NBA. A criação de Federações profissionais
esportivas se deve ao crescimento de interesses econômicos na matéria. A migração de atletas
se dá, muitas vezes, por razões econômicas, não mais técnicas. Além disso, por situação como
essa, corre-se o risco de o entretenimento ser mais importante que a performance e suas
regras, resultando na “espetacularização” do esporte, provocando mudanças no jogo para, em
nome da estética, satisfazer quem “consome” o esporte.
O controle das competições é o fator principal que permite a manutenção da unidade e
coerência interna das FI‟s. Os interesses de Federações Nacionais (FN) e atletas girarão em
torno de uma competição, representados pelas vontades competitivas. Quanto mais FI‟s
controlarem algum esporte mundialmente, mais opções de competições e regramentos
federativos um atleta poderá se submeter. A conseqüência do reagrupamento das vontades
competitivas é a separação entre a instância federal e seus diferentes membros. A federação
aparecerá pelos seus efeitos, pelos seus poderes, pela autoridade manifesta sobre a disciplina
esportiva, “como um „ser‟ distinto e superior às individualidades e grupos que ela emana”.
Assim como na teoria clássica do federalismo, a reunião dessas vontades competitivas faz
nascer uma entidade distinta dos órgãos que a compõem: a Federação Internacional. Ela
aparece como a estrutura ideal de resolução do paradoxo do acordo das vontades
competitivas, porque representa este conjunto de vontades sobre uma mesma disciplina,
sendo, ao mesmo tempo, parte integrante do sistema competitivo da qual constitui peça
essencial. Representa a vontade coletiva e unitária das competições, assegurando o
funcionamento delas56
. Porém, essas funções exercidas pela FI só poderão se concretizar caso
haja previsão em um Estatuto federal.
Nesse processo de traçar paralelos entre as características do federalismo (e da
confederação) e as FI‟s, depara-se com as semelhanças entre a Constituição e os Estatutos
federais. Se a Constituição é fundamento escrito da unidade federativa, o Estatuto serve como
55
Simon, 1990, pp. 57-58. 56
Ibidem, pp. 40-42.
18
representação da união entre vontades nacionais esportivas. Não se quer, contudo, afirmar que
o Estatuto de uma FI seja uma “Constituição civil”57
, mas uma regulamentação de caráter
privado que possui características parecidas com algumas funções exercidas por uma
Constituição Federal. Assim como esta, existe uma preocupação por parte dos Estatutos em
manter a unidade federativa. Para tanto, porém, existem instrumentos regulatórios que
prevêem critérios de admissão e exclusão de seus membros58
, gerando uma situação paradoxal
no âmbito de uma dita federação: para manter sua unidade estrutural, usa de meios típicos de
uma confederação.
A admissão como membros das associações esportivas nacionais é fruto da
representação, a título esportivo, do conjunto dos praticantes, de dirigentes, de treinadores etc.
da disciplina esportiva nacional59
. A conseqüência “do reconhecimento é o de dar à FN a
qualidade para representar a disciplina considerada sobre o território nacional”60
. A
admissão, submetida ao reconhecimento da FI, requer a obediência ao Estatuto, gerando
algumas obrigações, que, descumpridas, podem gerar a exclusão do membro. Se em uma
federação comum existe o instituto da intervenção federal como elemento garantidor da
unidade, nas FI‟s existe a exclusão de um membro como instrumento protetor da unidade. Na
intervenção federal, há, provisoriamente, a suspensão de autonomia do membro, assim como
a sua capacidade representativa na Federação. A exclusão do membro tem objetivo
semelhante, mas lida com a perda de autonomia e capacidade representativa, não com sua
suspensão. Isso, como afirmado, aproxima-se de uma característica de confederação ao invés
de federação. O artigo 15 do Estatuto da FIFA exprime bem esse instrumento de manutenção
da unidade quando prevê a possibilidade de expulsão de algum membro que não cumpre com
suas obrigações financeiras (o que garante, em parte, a autonomia financeira da FI em relação
a outros órgãos estranhos à organização); do membro que viola o Estatuto, regulações ou
decisões; ou quando se perde o status de uma associação representativa do futebol em seu
país. Cria-se a expectativa de que todos os membros da Federação Nacional seguirão o
Estatuto. A expulsão torna-se a pena mais forte para quem foge dessa expectativa, garantindo
a submissão ao direito transnacional da FI‟s. Ou seja, da mesma forma que as regulações da
57
Teubner, 2005, pp. 123-24. 58
Isso não significa que as Constituições possuam critérios de admissão ou exclusão de membros. O que se quer
ressaltar é a função de manutenção da unidade como característica constitucional, a partir do momento em que
há a união de membros federativos. 59
Simon, 1990, p. 35. Artigo 6 do Estatuto da AIBA; artigo 6.1 da FIBA; e artigo 3 da FIA. 60
Ibidem, p. 59.
19
“União” encontram ressonância nos outros membros federativos, as regulações das FI‟s
encontram ressonância nas FN‟s.
As regras das FI‟s não têm por destinatários apenas as FN‟s. Elas visam algo maior e
mais importante: atingir diretamente os atletas em qualquer lugar do mundo. Afiliando-se a
uma FN, um atleta encontra-se, por efeito cascata (pela simples afiliação de sua FN à FI),
submetido aos regulamentos da FI61
. Vale ressaltar que o atleta não tem opção de não se filiar
a uma FN, eis que a filiação é uma imposição por parte das FI‟s, subordinando à deliberação
das licenças para a disputa de uma competição internacional. Por um lado, a licença dá o
direito de competir; por outro, o dever de se submeter ao poder federal62
.
Embora haja um grande poder das FI‟s em face das FN‟s, estas ainda possuem espaço
de autonomia, compreendendo certa liberdade na organização das entidades federadas. Isso,
porém, é variável entre as FI‟s quando se compara o Estatuto da FINA com o da FIBA. O
artigo C-8 da FINA pouco fala sobre as liberdades das FN‟s. Ao contrário, o Estatuto da
FIBA prevê em seu artigo 7º, além da participação nas políticas internacionais, a possibilidade
de administrar suas próprias competições, que, de forma geral, é o principal exercício de
autonomia que uma FN pode ter. No âmbito geral, as Federações Internacionais tendem ao
centralismo. Uma das possíveis razões para isso é o forte poder da maioria dos esportes
globalizados, cuja popularidade contribui no enquadramento estrito do exercício das
competências de seus membros nacionais. A pressão exercida sobre as FN‟s conhece uma
intensidade que restringe a sua autonomia63
. Isso, contudo, não representa, necessariamente,
uma hierarquização entre legislações. A sobreposição da legislação transnacional tende a
acontecer em casos de envolvimento de competições internacionais, ao passo que nas
competições nacionais o exercício da autonomia das FN‟s permite que as regras nacionais
tenham maior voz perante as outras.
Mesmo diante desse centralismo, as FI‟s e FN‟s são regidas por repartições verticais e
horizontais. Estas ocorrem quando, por exemplo, se tem em vista a regulamentação da
organização das competições nacionais (FN) e internacionais (FI). Existe, ao mesmo tempo,
um compartilhamento vertical na implementação de regras transnacionais no respeito das
formas e procedimentos ou aplicação direta das regras antidoping transnacionais64
. Cabe
61
Latty, 2007, pp. 85 e 125-128. 62
Simon, 1990, p. 35 e 109-115. 63
Latty, 2007, p. 129-133; e Simon, 1990, p. 43. 64
Latty, 2007, p. 137; e artigo 4º do Estatuto da AIBA.
20
ressaltar que existe uma preocupação com a autonomia dos entes nacionais por parte das FI‟s,
principalmente com relação a atores estranhos ao esporte. O artigo 17 do Estatuto da FIFA
prevê que os membros devem agir de forma independente, excluindo a influência de terceiros.
O sucesso dos ditames transnacionais está ligado à autonomia que uma FN deve exercer sobre
terceiros estranhos, pois só assim as regras de uma FI serão concretizadas no plano nacional.
Assim, a FN se impõe às autoridades públicas como o interlocutor representativo da
disciplina65
.
O principal ponto que se propôs trabalhar no presente tópico foi o paralelo da unidade
estrutural do federalismo, somada às finalidades de uma confederação, e a unidade das FI‟s,
com sua “soberania”, espaço de autonomia dos entes federativos membros e finalidades
esportivas. Existem outras características que servem como paralelo, principalmente, na teoria
federativa, mas que, por razões metodológicas, serão discutidas no tópico seguinte. Tais
características referem-se à autorregulação, autoadministração e ao julgamento de suas
próprias causas, que poderiam ser discutidas no plano da autonomia “política” e
“administrativa”. Porém, elas também são características da produção jurídica nas FI‟s.
Assim, o próximo tópico pode ser encarado também como extensão desse paralelo.
1.3 A produção jurídica nas Federações Internacionais
A lex sportiva, como toda ordem jurídica, visa regrar comportamentos e estabelecer as
condições para que isso possa ocorrer. Pôde-se verificar que há uma vasta compreensão
normativa em razão da matéria, limitada pelas metas perseguidas pelas FI‟s; em razão da
pessoa, visando FN‟s, clubes e atletas; em razão do lugar, que, apesar das ordens
transnacionais não serem fundadas na territorialidade, as FN correspondem os espaços
territoriais onde se concretiza o direito transnacional66
. Existe uma estrutura que possibilita
prever quais comportamentos devem ser regrados e a forma pela qual devem sê-los. Abre-se
espaço para aproximar tal estrutura com os estudos de Kelsen e Hart. Não se pretende igualar
o que foi o estudado pelos autores. Pretende-se, a partir das FI‟s, mostrar o fenômeno da lex
sportiva – embora em um contexto de multiplicidade de identidades do direito para além do
Estado67
– pode ser compreendido dentro de uma revisitação da perspectiva tradicional do
direito.
65
Simon, 1990, p. 59-60. 66
Latty, 2007, pp. 146-152. 67
Teubner, 1997b, p. 766.
21
Hart afirma que o caráter autovinculativo da legislação tem de acrescentar a noção de
regra que defina o que tem de ser feito para legislar, diferenciando os legisladores na
qualidade de oficial e pessoa68
. Existem, assim, regras de cunho primário, que impõem
deveres; e de cunho secundário, que asseguram a aplicação daquela, atribuindo poderes e
garantindo a criação ou alteração de deveres e obrigações69
. A forma mais simples de remédio
para a incerteza das regras primárias é a “regra de reconhecimento”, especificando aspectos
de uma regra do grupo que deve ser apoiada pela pressão social que a exerce. O crucial é o
reconhecimento do texto dotado de autoridade, que pode ter sido oriundo de legislação ou,
até, por decisão judicial. Além disso, um critério de superioridade serve como solução em
possível conflito de critério de identificação. Um texto dotado de autoridade, além de um
sistema, traz a idéia de validade jurídica70
. Já as “regras de alteração” são remédios que
evitam o caráter estático das regras primárias e conferem poder de criação de novas regras,
especificando quem legisla e o seu processo71
. A “regra de julgamento”, por sua vez, atribui
poderes e um estatuto especial às declarações judiciais, tornando-as regras de
reconhecimento72
. Essas regras estão no centro do sistema jurídico e contribuem para uma a
apreciação de comportamentos, mas, por si só, não iluminam todos os problemas73
.
Em Kelsen, a norma jurídica é válida por ser criada por outra norma superior, que, em
uma escala, chega à norma fundamental, formando uma unidade74
. A Constituição, nível mais
alto no Direito nacional, no sentido formal (não é essencial e é característica das Constituições
escritas), é um conjunto de normas que pode ser modificado apenas com prescrições
especiais; no sentido material (essencial e, no caso do Direito consuetudinário, não há
diferença das leis ordinárias e constitucionais), são as regras que regulam a criação de outras
normas jurídicas gerais75
. Em Kelsen, as “fontes” de Direito não apenas designam métodos de
criação de Direito, mas caracterizam o fundamento de validade do Direito e o fundamento
final. A “fonte” do Direito está sempre no próprio Direito76
. Destarte, a criação de Direito é a
sua própria aplicação (inclusive na função judicial), pois a criação de uma norma é
“aplicação” na criação de outra – fazendo da primeira Constituição ser considerada aplicação
68
Hart, 1994, 98-99. 69
Ibidem, p. 91. 70
Ibidem, p. 104-105. 71
Ibidem, p. 105-106. 72
Ibidem, p. 106-107. 73
Ibidem, p. 109. 74
Kelsen, 2000, p. 181. 75
Ibidem, p. 182-183. 76
Ibidem, p. 191-192.
22
da norma fundamental77
. A decisão judicial é constitutiva não só quando ordena uma sanção,
mas por averiguar os fatos condicionantes da sanção, passando a existir dentro da esfera
jurídica. Nesse caso, apenas a confirmação pelo órgão competente tem relevância jurídica78
.
O Estatuto tem a função de ser o nível mais alto na estrutura da FI que condiciona todas
as outras regulações. O artigo 17.3 do estatuto da Federação Mundial de Caratê (WFK) afirma
que todas as regras ou regulações devem ser conformes aos princípios do Estatuto. Assim
como a maioria das Constituições, o Estatuto precisa de quorum especial para que possa ser
modificado. O artigo 26.1 do Estatuto da Federação Internacional de Judô prevê o quorum
especial de dois terços das FN‟s para que possa ser aprovada uma modificação. Se
anteriormente foi possível verificar a existência de regras no âmbito “primário” ou “formal”,
será igualmente verificável a existência de regras “secundárias” ou “materiais” nos Estatutos
federais, principalmente na previsão de órgãos e condições para se criar, administrar e julgar
tais regras.
1.3.1 Autorregulação
Comumente conhecido como “Congresso” entre as FI‟s, o órgão que regula a FI tem
como composição membros, em especial, as FN‟s79
. Seu principal poder é adotar regras
técnicas (regras do jogo) para o desenvolvimento das competições80
. Compete também ao
Congresso adotar e modificar o Estatuto federal; decidir a introdução de novas competições e,
em alguns casos, determinar o país cede de competições internacionais; aprovar as contas e
votar o orçamento; aprovar a agenda de governo; eleger o Presidente; nomear os membros de
determinadas comissões; examinar e aprovar os relatórios; ratificar decisões; decidir pela
expulsão dos membros; e declarar a dissolução da administração81
. Não cabe aqui afirmar que
existe democracia nas estruturas de federações esportivas82
. Contudo, vale ressaltar que as
FN‟s, dentro dessa dinâmica institucional, conseguem trazer questões localizadas do
desenvolvimento esportivo que merecem modificações no plano global. Quando, por
exemplo, uma FN procura demonstrar os males à saúde de se jogar em lugares de altitude
elevada, tenta modificar a regulamentação global do esporte. Assim, a FN representa
transnacionalmente os interesses daqueles que a apóiam: Federações locais, clubes e atletas. É
77
Ibidem, p. 193-194. 78
Ibidem, p. 196-199. 79
Conforme exprime o artigo 5.11 do Estatuto do IAAF. 80
Latty, 2007, pp. 59 e 75. 81
Nesse sentido, artigo 14 do Estatuto da FIBA. 82
Sobre uma releitura da democracia, Cf. Neves, 2008, pp. 136-157.
23
como se um parlamentar trouxesse ao debate questões necessárias de modificação da
legislação, conforme o interesse daqueles que votaram nele.
Há uma semelhança com a estrutura legislativa parlamentarista. O estabelecimento do
governo depende da base parlamentar, em que os grupos políticos necessitam organizar-se de
forma mais coesa, em razão da existência de uma condição indispensável para a manutenção
ou conquista de poder83
. A possibilidade de o Parlamento destituir o Gabinete ou destituir
ministros demonstra bem essa idéia. Nessa estrutura, é possível afirmar que o Legislativo
no sistema parlamentarista ocupa posição sobranceira de poder, legislando e
fiscalizando a ação do Estado, governando efetivamente, ao passo que no
presidencialismo é ele presidente quem conduz por determinação popular a ação do
Estado. O Presidente da República não é deposto a não ser por impeachment84
.
É comum que o papel regulatório, assim como no parlamentarismo, se divida com a
função Executiva da FI, não só limitada à Presidência, mas somada às comissões
especializadas. Mesmo quando sua competência só é consultiva, elas são trazidas a uma
competência regulamentar própria85
. O artigo 15 do Estatuto da FIBA prevê que o Comitê
Central regulará a transferência de jogadores e técnicos, além de aprovar qualquer regulação
referente à matéria. Quantitativamente, o direito federal transnacional provém, de maneira
geral, de fontes derivadas dos órgãos executivos, incluindo as comissões especializadas.
É visível que há uma produção endógena às FI‟s, autônoma de fontes externas.
Internamente, é visível a presença de modos organizados e hierarquizados na formação do
direito86
, que parte do Estatuto. Desse modo, mais do que prever quem e como se deve
produzir regras próprias, o Estatuto determina como elas devem ser administradas.
1.3.2 Autoadministração
A função executiva é responsável pelo controle e pela supervisão das atividades da FI,
por toda a gestão de disputa, pela política geral e pela política esportiva da FI; é o órgão que a
governa. Por isso, o executivo detém poderes compreendidos em matéria regulamentar ou
disciplinar, poder de gestão de finanças, de organização do Congresso e de executar decisões
tomadas pelas FI‟s87
. Além de presidir as reuniões dos principais órgãos da FI, o Presidente
83
Figueiredo, 1987, pp. 188-192. 84
Ibidem, p. 193. 85
Latty, 2007, p. 78. 86
Ibidem, p. 81. 87
Latty, 2007, pp. 61-62; e artigos C-17.12 do Estatuto da FINA, 15 e 16.6 da FIBA, 7º da IAAF, 37 e 38 da
AIBA.
24
representa-a legalmente, seja frente à Justiça, seja nas relações comerciais88
. Isso permite, por
exemplo, a manutenção da independência econômica em função da utilização e venda dos
direitos de transmissão do esporte agregado à imagem da FI.
Uma importância em especial da função executiva das FI‟s é o controle da matéria
esportiva nas competições. A competição é uma atividade submetida ao controle do seu
desenvolvimento até o fim das provas. Um vasto campo de aplicação dos controles é fundado
na natureza própria das competições que necessita uma observação contínua da organização e
do desenvolvimento dos reencontros. O controle assegura a universalidade das performances
e a credibilidade dos resultados89
, muito em função de ser ele quem registra o resultado das
melhores performances e os recordes.
Os comitês são órgãos importantes para o auxílio das funções administrativas.
Geralmente, as FI‟s comportam comitês jurídicos, médicos, de finanças, de marketing, uma
ou muitas comissões técnicas. A função dos comitês é, antes de tudo, consultiva, mas que
podem também auxiliar o comitê executivo no exercício de suas funções90
, como expresso no
artigo 21.4 do Estatuto da FIFA. Esses comitês conseguem filtrar, institucionalmente, valores
de outras esferas do saber para que o esporte possa melhor adequar-se às modificações
sociais. Isso é verificável quando as ciências médicas comprovam que o uso de determinada
substância pode falsear o rendimento de um atleta ou prejudicar sua saúde.
Existem Comitês que não se ligam estritamente às funções consultivas da função
Executiva. Sua característica principal é julgar as causas, geralmente, em última instância
interna das FI‟s. Isso significa que existem órgãos que se assemelham à função Judicial, mas
que nem sempre serão independentes de interesses diversos dos juridicamente estabelecidos.
1.3.3 Julgamento de suas próprias causas
Existe uma intensidade repressiva no mundo esportivo que se explica pela
multiplicidade e a precisão das regras esportivas. Ela permite a igualdade dos competidores e
a autenticidade das performances. O respeito à regra deve ser absoluto, sendo seu desrespeito
sistematicamente sancionado. Nessa estrutura que é composta por funções Executivas e
Legislativas, há espaço para instâncias disciplinares federais, merecendo o nome de Justiça
88
Ibidem, pp. 62-63. 89
Simon, 1990, p. 139-141. 90
Latty, 2007, pp. 64-65.
25
desportiva91
. Um dos fatores que reforça tal denominação é a possibilidade de afastar a
participação das Cortes ordinárias (estatais) nas decisões tomadas pelas FI‟s. O artigo 64.2 da
FIFA proíbe qualquer recurso a essas Cortes, a não ser que as regulações prevejam tal
possibilidade. Para que isso possa se realizar, o artigo 64.3 determina que os membros devem
estipular tal proibição em seu Estatuto ou regulações que abranjam as ligas e seus membros,
clubes, jogadores, árbitros e outros dirigentes, devendo impor sanções aos seus componentes,
caso não seja respeitada essa previsão.
Encontra-se, em algumas FI‟s, espaço grande para decidir sobre litígios esportivos,
quando, em seu artigo 29.1 do Estatuto da FIJ, prevê a competência de seu Tribunal de
Arbitragem para julgar as lides resultantes de conflitos entre seus membros; de índole
desportiva; ou para dar sua interpretação sobre a aplicação das regras desportivas ou
estatutárias decretadas pela FIJ. A composição do mesmo Tribunal é desvinculada da relação
com os órgãos Administrativos ou Legislativos, sendo apenas vinculado ao reconhecido saber
jurídico, conforme prevê o artigo 29.2. Recorrentemente, encontra-se nos Estatutos a previsão
de que o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS)92
tomará a decisão final, em especial, para
questões disciplinares.
A função de julgar suas próprias causas é, por vezes, divida entre órgãos que compõem
as outras funções. O artigo 15, “e” e “m”, do Estatuto da FIBA, prevê que o órgão Executivo
é o responsável para suspender uma FN e de resolver disputas relacionadas a competições
internacionais, assim como o Congresso é responsável por decidir a expulsão de um membro,
conforme o artigo 14, podendo ser encarado como um sistema primitivo de checks and
balances93
. Esse sistema pode ser encarado positivamente na estrutura desportiva, mas o não
cumprimento das regras disciplinares por parte da FI, em razão de motivos que não são
jurídicos, é um ponto negativo para a consistência do próprio Direito, assim como um
desrespeito ao princípio da igualdade. O caso a seguir mostra bem isso.
O cubano Javier Sotomayor sustentou o recorde mundial de salto em altura por ser o
único homem a saltar oito pés. Em 1992, tornou-se um ícone em seu país por conquistar a
medalha de ouro nas Olimpíadas de Barcelona. Atualmente, é também um membro da
Comissão de Atletas da IAAF, dado o exemplo em excelência que fora o atleta. Todavia,
91
Simon, 1990, pp. 149-152. 92
Em capítulo especialmente dedicado ao TAS, mostrará como é o funcionamento desse instituto, com sua
independência e autonomia. 93
Latty, 2007, p. 83.
26
mesmo com o brilhantismo que foi sua carreira, após sua vitória nos Jogos Pan-americanos,
Sotomayor testou positivo para cocaína. Ele negou o uso. A força de sua imagem fez com que
o Presidente cubano, Fidel Castro, sugerisse que alguém quis manchar o programa esportivo
do país. A Turma decisória nacional livrou-o das acusações. A Turma de arbitragem da IAAF
julgou e afastou os argumentos levantados pela Federação Cubana de Atletismo (FCA) – que
incluíam argumentos procedimentais, alegações de amostras corrompidas, e um ataque na
credibilidade do laboratório de Montreal – sustentando que foram “meros argumentos sem
nenhuma prova”. A Turma concluiu que Sotomayor se dopou e, reformando a decisão da
Turma decisória da FCA, tornou-o inelegível para competir por dois anos. O Conselho da
IAAF, órgão responsável por funções administrativas, reduziu a suspensão para 1 ano de
inelegibilidade, e Javier competiu nos Jogos Olímpicos de Sidney, conquistando medalha de
prata. A anulação da decisão da Turma arbitral invocou artigo de regulamento que permitia
um atleta ser reintegrado de uma punição quando ocorressem circunstâncias excepcionais. O
presidente da IAAF, Lamine Diack, disse que acreditava que o atleta merecia um maior
suporte e que poderia dar-lhe a possibilidade de competir novamente, por se tratar de um ser
humano que podia errar. A base para a redução parece ter sido seu histórico limpo de drogas e
trabalhos humanitários. Alguns afirmaram que a decisão da IAAF ia de encontro com suas
próprias regras, pois prevê que apenas verdadeiras circunstâncias excepcionais poderão
justificar qualquer redução94
. Apesar da importância de Sotomayor, não era justificável afastá-
lo de alguma pena, enquanto que outros atletas eram punidos sob o cometimento da mesma
infração.
Situações, como a narrada, são cada vez mais excepcionais por causa de ações da
Agência Mundial Antidoping (AMA ou WADA) e por julgamentos do Tribunal Arbitral do
Esporte, que são autônomos e afastados das influências não-jurídicas das FI‟s. Para que essa
estrutura pudesse lograr êxito junto às FI‟s, houve uma luta por parte do Comitê Olímpico
Internacional (COI) com o intuito de centralizar o debate jurídico-desportivo, através da
condição de participação da principal competição internacional do mundo: as Olimpíadas.
Portanto, antes de estudar os dois primeiros institutos, é fundamental o estudo mais
aprofundado do Movimento Olímpico.
94
Caso analisado por McLaren, 2001, pp. 387-388.
27
2 O MOVIMENTO OLÍMPICO
Em torno da administração da maior competição esportiva do mundo, encontra-se o
Movimento Olímpico. É ele quem vinculará uma porção de atores, atribuindo-lhes
responsabilidades, sob observação e reconhecimento do COI. Contudo, o papel mais
importante do Movimento é estreitar as possibilidades de discussão de problemas jurídico-
desportivos. O presente capítulo terá como objetivo investigar a origem, os órgãos e
legislação que coordena o Movimento Olímpico.
2.1 Origem
Nascido no século XIX, Pierre de Coubertin, aristocrata francês, buscou melhorar o
sistema educacional de seu país. Para isso, fez viagens à Grã-Bretanha, Estados Unidos e
Canadá para entender seus métodos educacionais. Fascinou-se com o modo enfático dado à
educação física como um importante fator de desenvolvimento global e, especialmente, ficou
encantado com os empreendimentos atléticos que supostamente melhorariam o espírito das
pessoas95
.
Coubertin tratou de estudar a Grécia antiga e os seus Jogos Olímpicos, acreditando em
ensinamentos similares, simbolizada pelos dizeres conhecidos “uma mente sã em um corpo
são”. Apaixonou-se pela idéia dos antigos Jogos Olímpicos e, por isso, passou desenvolver
um movimento que pudesse enfatizar esportes internacionais em um grande festival
retrospectivo: os Jogos Olímpicos modernos. Publicamente, sugeriu pela primeira vez a idéia
dos Jogos Olímpicos modernos em um encontro de signatários do esporte em Sorbonne em
1892, mas nada veio dali. Nesse encontro, todavia, proferiu seu apelo comparando a
competição entre atletas estrangeiros com o livre comércio do futuro: um mundo único que
abriria espaço para a paz. Em 1894, ele promoveu outra conferência, em que Coubertin
tornou a discutir a ressurreição dos Jogos Olímpicos. Encontrou ressonância entre os
candidatos, e os Jogos Olímpicos modernos, sob a organização do Comitê Olímpico
95
Mallon e Buchanan, 2006, p. XCIV.
28
Internacional (COI), começaram dois anos depois em Atenas, Grécia, tendo sido um
sucesso96
.
Nascia ali o Movimento Olímpico, juntamente com seus valores, isto é, o “Olimpismo
moderno”. É possível reconhecer a centralidade dos Jogos em qualquer narrativa relacionada
aos esportes internacionais pela simbologia da união entre países, mas afastando o
envolvimento primariamente político e militar destes. O sentido de “mundo único” carrega a
ideia de troca cultural pacífica entre nações e ganha contornos “desterritorializados”. Tal
característica faz empresas transnacionais, junto com os órgãos de imprensa, associarem-se
para difundir os Jogos e serem difundidos através deles97
. Da mesma forma, os Estados tiram
algum proveito quando vendem e fortalecem sua imagem pelo esporte, ou, simplesmente,
como demonstração de aceitação na comunidade internacional98
. Porém, essas participações
empresariais e estatais possuem limites que a Carta Olímpica estabelecerá, justamente para
afirmar sua autonomia.
Adotada pela primeira vez em 1908, a Carta Olímpica prevê, nos Princípios
fundamentais, que o Olimpismo “é uma filosofia de vida, exaltando e combinando em um
conjunto equilibrado das qualidades do corpo, da vontade e do espírito”, tendo como base os
princípios éticos fundamentais universais. O Movimento Olímpico será definido como “a
ação concertada, organizada, universal e permanente, exercida sob a autoridade suprema do
COI, de todos os indivíduos e entidades inspiradas pelos valores do Olimpismo”99
, tendo seu
ponto culminante os Jogos Olímpicos. Para pertencer ao Movimento, exige-se que se respeite
a Carta Olímpica e o reconhecimento do COI. Pode-se concluir que o aspecto institucionalista
do Movimento corresponde a um reagrupamento das organizações esportivas sob a autoridade
do COI100
. Passa-se a dar maior atenção aos principais atores componentes desse
reagrupamento.
2.2 Comitê Olímpico Internacional
O primeiro e principal órgão do Movimento Olímpico a ser analisado é o COI. Antes de
estudar sua autoridade interna junto aos outros membros do Movimento, procura-se entender
como essa organização se apresenta externamente, ou seja, o seu valor jurídico junto ao
96
Ibidem, pp. XCIV-XCVI; Cf. Raber, 1998, p. 79. 97
Tomlinson, 2005, pp. 43-46. 98
Allison e Monnington, 2005, pp. 5-6. 99
Cf. Nuzman, 2007, p. 52. 100
Latty, 2007, pp. 161-169.
29
direito estatal e internacional. Embora o direito internacional seja primariamente concernido
nas organizações internacionais de governo, as Organizações Não Governamentais (ONG‟s)
são parte importante do quadro internacional, tendo algumas reconhecido status legal sob
algum arranjo internacional. A personalidade legal internacional envolve a capacidade de
realizar atos no plano internacional101
, o que permite um reconhecimento internacional à
transnacionalidade, como no caso do COI.
Embora o COI tenha feito alterações em sua Carta Olímpica, em 1991, que o
definissem como uma ONG com status de uma pessoa legal, o Conselho Federal Suíço, o
mais alto órgão executivo do país, publicou em setembro de 1981 um decreto afirmando,
nacionalmente, seu status de pessoa internacional. O Conselho Federal decidiu expressamente
reconhecer a importância e a vocação universal do COI no esporte, beneficiando-lhe, através
de estatuto especial, dos direitos e liberdades do direito suíço também pelo fato de que está
estabelecido no país desde 1915. A defesa que o decreto do Conselho Federal fez às funções
do COI, como organização de atividade universal, reforçou a submissão de atores nacionais e
atletas que participam das competições sob os regramentos do Comitê102
.
Em 1982, o COI procurou reconhecimento mundial quando pediu às Nações Unidas
para aceitar sua personalidade internacional. Havia o receio que ações internacionais
prejudicassem o Movimento Olímpico. Uma das propostas primárias da Declaração foi
explicitar que as Regras da Carta Olímpica constituiriam regras de direito internacional. As
Nações Unidas demonstraram uma tendência para confirmar o caráter legal e internacional da
Carta Olímpica, transformando o COI como uma ONG capaz de estabelecer regras jurídicas
no âmbito internacional. Todavia, as autoridades olímpicas deixaram de lado o plano em
1983. Aparentemente, o COI temia que o clima político daquele ano causasse sua perda de
controle, uma vez que alcançaria o terreno da Assembléia Geral, incorrendo no risco de tornar
o esporte como figura secundária em face de questões políticas internacionais. Diante dessas
dificuldades de reconhecimento internacional, o COI se viu na obrigação de olhar para si
mesmo, isto é, reforçando a solidariedade interna entre os membros para garantir a
universalidade de seus regramentos103
. Esse instrumento era a Carta Olímpica. Com ela,
consolidava o sucesso de sua condição jurídica (exceto no plano internacional), eis que há o
reconhecimento do país sede, Suíça, e da própria instituição se nomeando uma ONG, sem fins
101
Ettinger, 1992, pp. 101-102. 102
Ibidem, pp. 102-104. 103
Ibidem, pp. 108-109.
30
lucrativos, de duração ilimitada104
. O sucesso, contudo, no reconhecimento de sua autonomia
não fecha os olhos para o fato de que o COI não é um instituto igual à Cruz Vermelha, pois
não contém cláusulas garantindo a inviolabilidade de seus locais e arquivos. Não se beneficia,
também, de imunidade de jurisdição e execução, nem mesmo para os seus dirigentes105
. Isso
mostra que, apesar da autonomia, ela não se configura autárquica, necessitando de um diálogo
com a ordem sede. Mesmo nesse contexto, a Carta Olímpica ainda é a principal força sobre
seus principais atores esportivos.
A introdução da Carta Olímpica expressa sua autodenominação como a
[...]codificação dos Princípios fundamentais do Olimpismo, das regras e dos Textos
de aplicação adotados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Ela rege a
organização, as ações e o funcionamento do Movimento Olímpico e fixa as
condições da celebração dos Jogos Olímpicos. Por essência, a Carta Olímpica tem
três objetivos principais: a) A Carta Olímpica, como um instrumento básico de uma
natureza constitucional, fixa e recorda os princípios fundamentais e os valores
essenciais do Olimpismo; b) A Carta olímpica serve igualmente de estatuto ao
Comitê Internacional Olímpico; c) Além disso, a Carta Olímpica define os direitos e
as obrigações recíprocas das três principais partes constitutivas do Movimento
Olímpico, seja o Comitê Internacional Olímpico, as Federações Internacionais e os
Comitês Olímpicos Nacionais, assim como os Comitês de organização dos Jogos
Olímpicos, que devem todos se conformar à Carta Olímpica.
Da mesma forma que os Estatutos das FI‟s, a Carta Olímpica possui suas regras
primárias e secundárias. A Carta não só fixa regras de pretensão hierárquica maior (tendo em
vista a participação nos Jogos) como também estabelece os critérios para modificar-se e criar
novos regramentos. No que toca à possibilidade de alterar seus ditames consagrados na Carta,
ela possui um quorum especial de dois terços para que seus princípios fundamentais ou as
Regras da Carta ou em outros casos previstos nela possam ser modificados106
. A Carta
Olímpica, como uma fonte legítima de determinação das funções e condições de existência de
todos os membros, estabelece o COI como o responsável por fortalecer a unidade e proteger a
independência do Movimento Olímpico107
. Para exercer tal responsabilidade, o COI
coordenará através de suas decisões, que em boa parte são definitivas, e reconhecerá os
membros ou candidatos que visem a participar do Movimento Olímpico108
.
2.2.1 Papel central
104
Regra 15.1 da Carta Olímpica. 105
Latty, 2007, 438-439. 106
Ibidem, pp. 195-196; e Regra 18.6 da Carta Olímpica. 107
Regra 2.3 da Carta Olímpica. 108
Regra 15.4 da Carta Olímpica.
31
O prestígio dos Jogos reuniu a maior parte do movimento esportivo, favorecendo a
criação de comitês nacionais olímpicos e reagrupando, sob a “autoridade suprema” do COI109
,
as FI‟s e outras instituições transnacionais de cunho esportivo. O COI exerce uma vasta
competência, em prol da integração no Movimento através do reconhecimento, porque não é
suficiente para uma organização se ocupar do esporte, nem mesmo proclamar sua anexação ao
ideal olímpico, para fazer parte do Movimento e, assim, participar de uma competição
olímpica. É o reconhecimento oficial pelo COI que lhe permite integrar os membros em um
conjunto organizado110
.
O reconhecimento do COI encontra-se no 6º Princípio Fundamental da Carta Olímpica,
tal como na Regra 3.1, que condiciona o pertencimento ao Movimento à aceitação. Os
Comitês Olímpicos Nacionais (CON) e as FI‟s são os principais órgãos a serem reconhecidos
pelo COI, pois são eles que vinculam os outros possíveis reconhecidos no Movimento, como
as associações continentais ou mundiais de CON‟s e, também, árbitros e atletas111
. Dessa
forma, o respeito à Carta, primeira condição de reconhecimento do COI112
, supõe
conformidade dos Estatutos federais e dos CON‟s (que também devem ter status de pessoa
jurídica), o que, conseqüentemente, vincula diretamente outros membros, árbitros e atletas.
Portanto, estes também estão submetidos à aprovação do COI, mesmo que a aceitação do
compromisso não tenha sido feita diretamente por eles113
.
A Carta Olímpica exige que se respeitem os Princípios Fundamentais como forma de
reconhecimento. O respeito aos princípios éticos universais, por mais que possa soar abstrato
ou tendencioso com a exclusividade de valores ocidentais, possui alguma capacidade de se
concretizar, quando associada à proibição de qualquer forma de discriminação114
. Foi assim
que ocorreu quando o COI retirou o reconhecimento do CON da África do Sul e países que
permitiram contatos esportivos (como a Nova Zelândia) em razão da discriminação racial
institucionalizada115
. Enquanto durou o Apartheid, não houve o reconhecimento do COI. É
curioso que temas como esse possui em olhar específico no âmbito do direito internacional. A
“Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas discriminação racial”, de
1968, trata desse tema entre Estados. Contudo, no âmbito esportivo, é necessária a regulação
109
3º Princípio Fundamental do Olimpismo. 110
Latty, 2007, p. 169 e 174. 111
Nesse sentido, Regra 3.2. 112
Regra 1.2, 2.5 e 26 da Carta Olímpica. 113
Latty, 2007, p. 175 e 181; Regra 3.2 da Carta. 114
1º e 5º Princípio fundamental e Regra 2.10 da Carta Olímpica; Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, p. 52 115
Allison e Monnington, 2005, p. 6.
32
interna como legitimadora de tais ações por parte do COI, enfocando o fim de políticas
discriminatórias.
Por mais que existam Tratados que fundamentem os Direitos Humanos, na tentativa de
construir uma semântica globalizada, verifica-se que existem múltiplas visões sobre o mesmo
tema em diferentes ordens. A semântica dos direitos humanos possui múltiplos usos em
função da multiplicidade de atores participantes. O debate universalismo versus relativismo
dos direitos humanos perde um pouco seu foco nesse novo contexto116
. Não que ele deixe de
existir, eis que é ainda válido em um mesmo território, onde existam múltiplas culturas
regidas por um mesmo ordenamento117
. O que se quer deixar claro é que existem outros atores
além do Estado que tratam de problemas semelhantes a eles, assim como possuem capacidade
de fundar novos direitos humanos, quando na Carta Olímpica se apregoa, em seu 4º Princípio
Fundamental, que “a prática do esporte é um direito humano[...]”. Nessas situações, a ordem
desportiva parece afirmar-se como ordem autônoma, ao passo que não fecha os olhos para
problemas comuns da sociedade mundial118
.
Ao mesmo tempo em que os Princípios Fundamentais da Carta Olímpica podem
restringir a participação de um país em razão de sua política discriminatória, o COI não aceita
a intromissão política e econômica nos assuntos esportivos de cada membro. O 5º Princípio
Fundamental estabelece que a organização, a administração e a gestão do esporte devem ser
controladas pelas organizações esportivas independentemente. O suporte dessa interpretação é
a Regra 28.6 da Carta que dispõe que os CON‟s devem preservar sua autonomia e resistir a
todas as pressões. Podem, até, cumprir as ordens sem que, todavia, se restrinjam às pressões
de ordem política, jurídica, religiosa ou econômica que impeçam de se conformar à Carta
Olímpica. Existiram alguns exemplos mais antigos de grande intromissão política na esfera
esportiva, como foi o caso da União Soviética119
.
O COI se obriga a só reconhecer uma só FI por esporte e um CON por país120
, o que
contribui em grande parte a assegurar o monopólio das ditas organizações. O valor das
116
Em outra vertente sobre o universalismo dos direitos humanos, Cf. Parekh, 1999, pp. 150 e 158. 117
Como a proibição do uso de qualquer símbolo religioso nas escolas públicas francesas. 118
No capítulo cinco, ter-se-á uma visão mais detida das limitações impostas do direito internacional sobre a
ordem transnacional esportiva. 119
Latty, 2007, pp. 176-178. 120
Os critérios de reconhecimento de representação nacional nas competições internacionais não são,
necessariamente, seguidas conforme o critério do COI. Enquanto que nas Olimpíadas existe a participação do
Reino Unido, na Copa do Mundo de futebol, competição organizada pela FIFA, pode haver a participação do
País de Gales, Irlanda do Norte, Escócia e Inglaterra. Vale ressaltar que existem situações políticas que
33
Olimpíadas contribui para que só uma FI ou um CON reconhecido possa agir em seu
propósito. Caso haja um segundo ator que lide com a matéria de um desses membros e não
seja reconhecido pelo COI, dificilmente ele conseguirá algum espaço de relevância no plano
mundial121
, como também não obterá êxito na produção de concorrência sobre o assunto122
.
Isso fica claro quando se tem, como exemplo, a Federação Mundial de Caratê (WKF), que
não é a única a se intitular como organização mundial de Caratê123
. O artigo 1.9 de seu
estatuto expressa que “a WFK fará todos os esforços possíveis para que o Caratê seja aceito
nos Jogos Olímpicos e todos os outros Jogos do ciclo Olímpico”. Tais “esforços” parecem
buscar maior credibilidade em comparação com outras FI‟s de mesmo esporte.
Em razão do poder sobre os seus membros, o COI conseguiu forçar a implementação
do Código Mundial Antidoping (CMA) em 2004 a todos, em especial as Federações
Internacionais, sob condição de reconhecimento. A Regra 44 da Carta Olímpica afirma que o
Código Mundial é obrigatório a todo o conjunto do Movimento Olímpico, tornando-se um
fator importante para o combate uniforme e universal ao doping. Nesse sentido, conforme a
Regra 59 da Carta, a submissão dos membros às decisões do Tribunal Arbitral do Esporte
(TAS) 124
, no que se refere às lides relacionadas aos Jogos Olímpicos (JO), é também ligada à
condição de reconhecimento125
. Reforça essa perspectiva o fato de que o “Texto de Aplicação
da Regra 45”, 6º ponto, da Carta exprime que, para participar dos Jogos, o participante deve
reconhecer a jurisdição do TAS. Nesse contexto, o participante é representação nacional do
CON, da mesma forma que é representação esportiva da FI. Essa vinculação direta do atleta
ao COI demonstra um caráter contratual dessa relação, em que se elege foro desvinculado do
Estado126
. Demonstra, também e acima de tudo, a importância do COI na construção de uma
lex sportiva harmonizada, independentemente de esporte ou nacionalidade127
.
Mesmo que o pretendente a membro preencha todas as condições, o reconhecimento
procede de um ato discricionário do COI, não sendo, inclusive, suscetível a recurso128
. A
influenciam no reconhecimento de um país. Com o fim da Iugoslávia, Montenegro foi reconhecido pelo COI em
2008. 121
Exceto no caso de alguma Federação esportiva profissional, como as que tratam do boxe profissional. 122
Latty, 2007, p. 179; Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, p. 26. 123
Há também Federações que tentam se diferenciar pela matéria (Shotokan ou tradicional) ou pela tentativa de
governar mundialmente, como a Associação Internacional de Caratê (IKA). 124
Mais detalhes sobre a Agência Mundial Antidoping e o TAS nos próximos capítulos. 125
Latty, 2007, pp. 176-181. 126
Nesse caso, assemelha-se com a lex mercatoria. 127
Foster, 2005, p. 61. O importante papel do COI na uniformização da legislação e de decisão dos litígios não
exclui do conceito de lex sportiva das FI‟s que não participam desse contexto olímpico. 128
Latty, 2007, p. 181.
34
Regra 3ª e seus incisos são claros na terminologia de que o COI “pode” reconhecer, não
significando que “reconhecerá”. O reconhecimento pode ser, segundo Regra 3.6, provisória
ou definitiva, não garantindo, todavia, participação nos Jogos. Independentemente de qual
seja a modalidade do reconhecimento, a investidura esportiva amplia o número de obrigações
e direitos a serem considerados por seus membros. Ou seja, mesmo antes do reconhecimento,
o pretendente a membro precisa se condicionar aos ditames do COI antecipadamente, abrindo
mão de parte de sua autonomia.
No capítulo primeiro, foi possível notar que as FI‟s têm uma existência independente do
COI para ser eficaz. De maneira contrária, os CON‟s só existem como tais se houver
reconhecimento pelo COI. A autoproclamação não possui nenhum sentido no plano Olímpico,
pois isso não lhe dá direito de participar em uma competição organizada pelo COI129
. Pode-se
concluir que, na sua função principal de harmonizar as mais diversas regulações em direção
de um Movimento esportivo, o COI necessita de órgãos que elaborarão e julgarão tais regras.
Internamente, ele possuirá alguns órgãos que exercerão parte da função regulatória.
2.2.2 Organização interna do COI e seus mecanismos regulatórios
A composição do COI é formada por um sistema de pessoas julgadas qualificadas pelos
membros já estabelecidos. Anteriormente, o COI foi composto por uma maioria de
aristocratas, escolhidos por Coubertin para assegurar o prestígio e a independência financeira
da instituição. Por mais de um século, o COI viveu uma situação particular de ser central na
organização, mas ter muito pouca representação do seu conjunto, isto é, o Movimento
Olímpico. Havia um número grande da representação de ex-atletas, em detrimento da
representação de dirigentes das organizações reconhecidas. Após a perda de prestígio
internacional, causada por corrupção na seleção de Salt Lake City em 1998 para sediar os
Jogos Olímpicos de Inverno, o COI promoveu algumas mudanças na sua composição, dando
maior participação às suas organizações componentes. Maior, mas ainda não adequada.
Segundo a Regra 16, especificamente no ponto 1.1, o “número de membros do COI não pode
exceder um total de 115” representantes. O ponto 1.1.1 prevê membros cuja qualidade não
está ligada a uma função ou posição específica, não podendo exceder um total de 70
representantes. O restante é composto por atletas ativos, que não excedem 15 representantes
(ponto 1.1.2); Presidentes ou pessoas que ocupem função executiva ou dirigente do mais alto
nível dentro da FI, de associações de FI ou de outras organizações reconhecidas pelo COI, não
129
Ibidem, pp. 184-185
35
ultrapassando 15 (ponto 1.1.3); e de presidentes ou pessoas que ocupem uma função executiva
ou dirigente no mais alto nível do CON, ou de associações mundiais ou continentais do CON
que representem um país cada, não ultrapassando 15 membros. Essa composição ainda aponta
para uma maioria significativa de membros desvinculados das organizações representativas
do Movimento, o que deixa de lado os aspectos esportivos em função de interesses outros130
.
Vale ressaltar que cada membro será eleito para um mandato de oito anos, podendo ser
reeleito para um ou mais períodos iguais, como representante na Assembléia Geral131
. Isso
dificulta a renovação principalmente de atores desvinculados das FI‟s e CON‟s, dada a
desvinculação de representatividade externa aos outros órgãos esportivos. A baixa presença
de representantes da FI‟s e CON‟s significa uma baixa resposta adequada no plano esportivo
daqueles que tratam materialmente ou localizadamente o Movimento Olímpico. Portanto, esta
estrutura não possui justificativa plausível para se manter, eis que é sobrevivente de um
passado que não possui as mesmas justificativas para sobreviver no presente, isto é, a
necessidade de financiamento externo ao esporte. Esses membros têm a importante função de,
conforme Regra 16.2, participar da Assembléia Geral; dos trabalhos das comissões do COI
em que foi nomeada; e controlar em seu país ou na organização que representa no Movimento
a aplicação dos programas do COI. Nessa estrutura representativa, formam-se, internamente,
os órgãos componentes do COI.
A Assembléia Geral é o órgão supremo do COI, tendo suas reuniões solicitadas pelo
Presidente ou, pelo menos, um terço de seus membros. Compete à Assembléia Geral adotar e
modificar a Carta; eleger os membros do COI, o Presidente de Honra, os Membros
Honorários e os Membros de Honra; eleger a cidade sede dos Jogos Olímpicos; eleger o
Presidente, Vice-Presidente e todos os demais membros; aprovar o relatório e as contas anuais
do COI; nomear os auditores do COI; decidir sobre a concessão ou retirada do
reconhecimento definitivo de um CON, das associações de CON, das FI‟s, das associações de
FI‟s e de outras organizações; excluir membros; resolver e decidir todas as outras questões
que são atribuídas pela lei ou pela Carta132
. Portanto, a função primária da Assembléia é
legislar, mas, secundariamente, fiscalizar e decidir sobre causas relacionadas a outros
membros, quando retira da FI o direito de promover o esporte nos Jogos, ou quando retira o
130
Latty, 2007, pp. 188-90. 131
Regra 16.1.7 da Carta Olímpica 132
Nuzman, 2007, p. 54; e Regra 18 e incisos.
36
direito de organizar os Jogos Olímpicos133
. O órgão, assim, é o registro mais próximo de
representação dos membros.
Composto pelo Presidente, quatro Vice-Presidentes e por dez outros membros, a função
do Comitê Executivo é assegurar a boa aplicação do direito, tendo como missão controlar o
respeito à Carta134
. Isso ocorre, por exemplo, quando examina a conformidade dos estatutos
das organizações com a Carta ou quando envia um relatório de mudança da legislação135
. Esse
órgão exerce função fiscalizatória quando estabelece e supervisiona a admissão e a seleção
dos candidatos a organizadores dos Jogos Olímpicos136
. Ele também resolve algumas lides
como previsto na Regra 42.2, no que se refere à determinação do país que um concorrente
pode representar nos Jogos137
. Ele é também um órgão que aplica sanções, como a retirada de
uma disciplina esportiva; a suspensão ou a retirada do reconhecimento provisório de um
CON, FI ou qualquer outra organização participante do Movimento138
.
O Comitê de Ética do COI está encarregado da definição e atualização de um quadro de
princípios éticos, incluindo um Código de Ética fundado sobre os valores e princípios
defendidos na Carta Olímpica. Ele também investiga denúncias de violação destes princípios
éticos e as violações do Código de Ética, podendo propor as sanções para o Comitê Executivo
do COI139
. Portanto, o Comitê de Ética do COI não detém poder de sanção, sendo de
competência da Assembléia Geral140
. Depois das denúncias de corrupção dos seus membros
na seleção de Salt Lake City para sediar os Jogos Olímpicos de Inverno, o Comitê de Ética
ganhou maior importância, quando passou proibir o recebimento de remuneração ou presentes
por parte de seus integrantes; defender a transparência do uso de suas verbas; e proibir a
revelação de informação confidencial validada pelos interessados olímpicos141
.
Eleito pela Assembléia Geral, sob votação secreta, por oito anos, renovável uma vez
por mais quatro, o Presidente do COI tem como responsabilidade representar a instituição
permanentemente sobre todas as suas atividades. Essa atividade é de grande importância para
afirmar e defender a autonomia do Movimento Olímpico, pois é ele quem vai negociar com
133
Regra 23.1.2 e 1.6. 134
Regra 19.3.1 da Carta Olímpica. 135
Regra 19.3.2 e 3.4 da Carta Olímpica. 136
Regra 19.3.6 da Carta Olímpica. 137
Latty, 2007, pp. 203-204; e Nuzman, 2007, p. 54. 138
Regra 23.1.2-1.8 da Carta Olímpica. 139
Regra 22 da Carta Olímpica. 140
Latty, 2007, p. 205. 141
Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, p. 159-60.
37
chefes de Estado ou empresas as condições para a ocorrência dos Jogos ou as transmissões
dos eventos esportivos. Além disso, suas ações servem como representação junto às
instituições internacionais, como a UNESCO142
. Pode-se defender que sua atividade evita a
politização do esporte, da mesma forma que limita a sua espetacularização diante de
interesses midiáticos. O Presidente também tem o poder de criar comissões permanentes ou
temporárias, estabelecendo seus termos sempre que for necessário. Elas terão a função de
aconselhar a Assembléia, o Comitê Executivo e o Presidente para casos que lhes dão razão de
existir, como questões jurídicas143
.
Após ter analisado a estrutura interna do COI, é importante estudar mais
especificamente como funcionam os principais componentes do Movimento, ou seja, as FI‟s,
CON‟s e Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos (COJO). No capítulo anterior, ficou claro
que as Federações Nacionais tinham como obrigação garantir a concretização das regras
transnacionais estabelecidas pelas FI‟s, sob o risco de não haver o reconhecimento mundial
para a participação em competições esportivas. O mesmo raciocínio servirá no contexto
Olímpico para os seus membros.
2.3 Jogos Olímpicos e Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos (COJO)
Os Jogos Olímpicos144
são competições entre atletas, em provas individuais ou por
equipes, e não entre países. Aqui é possível entender que existe uma pretensão de não se
encarar os Jogos como uma afirmação política sobre outro Estado – como ocorreu em 1936
nos Jogos de Berlim e nos confrontos entre EUA e União Soviética durante a guerra fria145
.
Isso também significa que os Jogos dizem respeito somente aos atletas, excluindo a
participação das soberanias dos países, juntamente com suas legislações sobre temas comuns,
como, por exemplo, o doping. Os Jogos podem ser objeto de conflito entre soberanias, quando
Estados ameaçam boicotar os Jogos. Tal fato rondou recentemente os Jogos de Pequim em
2008, na ocasião em que, dados os problemas diplomáticos entre China e Tibete,
representantes de Estados condicionaram tal fato à sua presença na abertura das Olimpíadas.
O argumento levantado era de que a China não respeitava os Direitos Humanos,
principalmente, dos cidadãos tibetanos. Esse conflito mostra que as Olimpíadas servem como
142
No próximo capítulo, isso vai ficar mais claro na ação do Presidente do COI para construir a Agência
Mundial Antidoping. 143
Nuzman, 2007, pp. 54-55; Regras 20 e 21 da Carta Olímpica. 144
Inclui também os Jogos Olímpicos de Inverno, praticado na neve ou no gelo, como expressa a Regra 6.2 da
Carta. 145
Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, p. 79.
38
objeto de um conflito entre as legislações esportivas e internacionais, tendo os Estados de se
posicionar diante disso146
. Por isso, os Jogos afastam os Estados e reúnem atletas selecionados
por seus CON‟s respectivos147
, cujas inscrições foram aceitas pelo COI, sendo a direção
técnica coordenada pelas FI‟s constituídas148
. Nesse âmbito conflituoso, é compreensível que
a participação dos Jogos esteja condicionada à aceitação do Código Mundial Antidoping
(CMA) e ao respeito ao espírito do Fair-Play e à não-violência149
.
Participar dos Jogos é o principal efeito do reconhecimento do COI. No contexto
olímpico, a maioria das legislações e organizações gira em torno das Olimpíadas. As sanções
mais pesadas têm como objeto limitar ou excluir a participação no evento. Conseqüentemente,
os Jogos são garantidos pela concretização de boa parte dos programas e critérios
estabelecidos na legislação olímpica, sendo em função deles que se mantém a solidariedade
interna e a autonomia perante atores externos. Qualquer tentativa de intervenção estatal na
autonomia do Movimento, por via de seu Comitê Olímpico Nacional, serve como causa de
exclusão do CON na participação dos Jogos, excluindo, conseqüentemente, a representação
do país.
Apesar de o COI exercer um poder além de seu território sede, as competições precisam
se realizar em algum espaço físico. A eleição da cidade a se realizar a competição é
prerrogativa da Assembléia Geral, seguindo o procedimento criado pelo Comitê Executivo150
.
Dado o crescente número de candidaturas, o COI foi obrigado a elaborar um rigoroso
procedimento. Antes de tudo, exigem um dossiê dos candidatos, baseado em detalhadas
especificações e organizado em vinte capítulos151
. Cada cidade candidata fornecerá garantias
financeiras ao Comitê Executivo, que determinará se as garantias devem ser fornecidas
somente pela cidade ou por todo poder público, incluindo o poder regional e nacional, ou por
terceiros, como a participação de empresas152
. A escolha das cidades sedes é comparável ao
procedimento licitatório. Nessa comparação, são invertidos os papéis: enquanto no processo
146
Latty, 2008, pp. 16-18. 147
Na verdade, de acordo com a Regra 28.3 da Carta, os CON‟s são obrigados (não é uma opção) a enviar atletas
a participar dos Jogos, afastando a possibilidade de boicote. 148
Regra 6.1 da Carta Olímpica. 149
Regra 41 da Carta Olímpica. 150
Regra 34, pontos 1 e 2 da Carta. 151
Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, p. 86. 152
Texto de aplicação da Regra 34, ponto 2.4 da Carta Olímpica.
39
licitatório o Estado chama o particular para fazer uma obra, são entidades privadas que
chamam os Poderes Públicos para apresentar a melhor proposta para sediar os Jogos153
.
Não basta, porém, somente a garantia financeira para a eleição da cidade sede, mas
também a garantia que a autonomia dos órgãos e a legislação transnacional serão respeitadas,
independentemente das previsões legais nacionais. Para que isso possa ocorrer, o governo
nacional da cidade sede se submeterá a um instrumento legal vinculante, pelo qual o dito
governo aceitará e garantirá que o país e suas autoridades públicas cumprirão e respeitarão a
Carta Olímpica154
. Após a escolha da cidade, assinarão o contrato da Cidade sede, todas as
partes envolvidas155
, especialmente, COI, CON e Poderes Públicos. A assinatura do contrato
obrigará a criação de um órgão temporário, isto é, o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos
(COJO), que fiscalizará o cumprimento das obrigações estabelecidas entre COI e cidade sede.
Portanto, a organização dos Jogos é confiada pelo COI ao CON do país da cidade sede, assim
como a própria cidade sede. O CON será responsável para estabelecer o COJO que, desde seu
início, prestará contas ao Comitê Executivo do COI156
.
A autonomia dos COJO tem limites previstos pela Carta: o COJO deve ser dotado da
personalidade jurídica (Texto de Aplicação da Regra 36.1); seu órgão executivo é composto
por membros do COI do país concernido (nacionais que foram eleitos membros do COI), o
presidente e o secretário geral do CON e ao menos um representante designado pela cidade
sede (Texto de Aplicação da Regra 36.2). O COJO tem a obrigação de conduzir todas suas
atividades conformes à Carta olímpica, ao contrato concluído entre o CIO, o CON e a cidade
sede, da mesma forma que todo outro regulamento ou instrução do Comitê Executivo do COI
(Texto de Aplicação da Regra 36.3). O COI tem como poder, para garantir o respeito à Carta,
a possibilidade de retirar a organização dos Jogos, sem prejuízo de reparação de todo dano
153
Na reportagem de Daniela Pinheiro para a revista Piauí, nº44, de maio de 2010, pp. 42-49, o poder das
instituições esportivas sobre os Estados que organizarão eventos esportivos é tão grande, que eles muitas vezes
vão de encontro com suas próprias Constituições e planejamentos urbanos para desenvolver uma competição aos
moldes da Federação Internacional ou do COI. A África do Sul serviu de exemplo, quando sacrificou parte da
maior reserva natural do continente para construir um estádio para a Copa do Mundo de futebol. Havia o
interesse inicial para que se construísse nas imediações de uma região humilde, com o intuito de revigorá-la, mas
foi logo barrado tal projeto, sob a ameaça de não mais organizar esse evento. Se submeter a tal poder, que impõe
gastos que dificilmente são recuperados no próprio evento, é explicável sob o aspecto imaterial de que o Estado
consegue se promover internacionalmente ou desconstruir uma imagem estabelecida, além de levantar o orgulho
nacional ou local da população. Foi assim que a China conseguiu se apresentar ao mundo como um país aberto
ao capitalismo, e foi dessa maneira que a Alemanha pôde se mostrar como um país aberto à diferença entre
culturas através da Copa do Mundo de futebol de 2006. 154
Regra 34.3 da Carta Olímpica. 155
Texto de Aplicação da Regra 34, ponto 3.3, da Carta Olímpica. 156
Regra 36 da Carta Olímpica.
40
causado (Regra 23.1.6 e 37.2)157
. A esse respeito, vale ressaltar que o CON, o COJO e a
cidade sede são conjunta e solidariamente responsáveis por todos os contratos individuais ou
coletivos relacionados à organização dos Jogos, sendo que o COI não possui nenhuma
responsabilidade financeira (Regra 37.1).
Compreendida a importante função dos Jogos e de seu Comitê na harmonização da
legislação desportiva mundial e na vinculação de seus atores, cabe agora estudar o papel de
seus dois principais componentes: CON e FI.
2.4 Federações Internacionais e Comitês Olímpicos Nacionais: autonomia e
função
A missão do CON é desenvolver, promover e proteger o Movimento Olímpico em seu
país, o que inclui a promoção do esporte e dos valores consagrados pela Carta Olímpica. A
principal característica dos CON‟s é ter competência exclusiva de representar seu país nos
Jogos Olímpicos e nas competições compostas por vários esportes regionais, continentais ou
mundiais patrocinados pelo COI158
. Segundo a Carta, em sua Regra 31.1, a expressão “país”
significa “um Estado independente reconhecido pela comunidade internacional”, o que, na
prática, são aqueles reconhecidos pelas Nações Unidas159
. O CON também é obrigado a
assegurar a Carta Olímpica, como, igualmente, deve adotar e aplicar o Código Mundial
Antidoping160
. O CON possui um curioso duplo papel: é a representação nacional em
competições mundiais, ao mesmo tempo em que é a representação transnacional nos
territórios nacionais. Nesse raciocínio, é aceitável que ele seja o responsável por decidir sobre
a inscrição dos atletas propostos por suas FN‟s respectivas. Tal seleção pode, inclusive, não
ser fundada somente em performances esportivas, mas também em função da atitude de servir
de exemplo para os jovens atletas de seu país161
. Daí que se pode afirmar que há uma
importante posição em transferir o atleta como sujeito de direitos e obrigações nacionais para
se tornar sujeito de direitos e obrigações transnacionais olímpicas. A obrigatoriedade dos
CON‟s em participar dos eventos como representação nacional e de proteção da legislação
157
Latty, 2007, p. 230. 158
Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, p. 49; e Regra 28, pontos 1 e 3 da Carta Olímpica. A jurisdição territorial
de um CON deve coincidir com os limites do seu país no qual se estabelece e tem sua sede, conforme previsto na
Regra 29.5 da Carta Olímpica. 159
Ibidem. 160
Regra 28, pontos 2.2 e 2.6, da Carta Olímpica. 161
Ponto 2.2.1 do Texto de Aplicação das Regras 28 e 29 da Carta Olímpica.
41
transnacional contribui para a continuidade do evento esportivo, que agrega todos os
diferentes atores, sem que tenham a pretensão de aniquilação do adversário.
Com o intuito de cumprir sua missão, o CON pode desenvolver uma relação
harmoniosa com órgãos governamentais (e não-governamentais), não se associando a
nenhuma atividade contrária à Carta. Essa relação é condicionada a não responder a pressões
políticas, religiosas ou econômicas que possam impedir de se conformar à Carta162
. Portanto,
os CON‟s devem se preservar autônomos frente a outros atores. Isso não quer dizer que a
relação entre CON e Estado seja igual em todos os países. Em países como Áustria,
Dinamarca e Alemanha, a “configuração missionária” trata o movimento esportivo como
voluntário, com largo espaço de autonomia e pouca participação do Estado. Na “configuração
burocrática”, as autoridades públicas predominam em países como França, Grécia e Finlândia.
Na “empresarial”, só diz respeito a interessados privados, como na Grã-Bretanha. Por fim, a
“configuração social” compreende o movimento esportivo com agentes sociais, com
autonomia, mas com certa participação do Estado, como na Holanda e, apesar da
configuração privada, no Brasil163
.
Em uma possível candidatura para ser sede das Olimpíadas, o CON é o responsável
exclusivo pela escolha de sua cidade candidata164
. Por mais que haja a contribuição do Estado
na assinatura do contrato com o COI, a competência para selecionar a candidata à cidade sede
para os Jogos é do CON, o que reforça a postura de instituição autônoma frente ao Estado.
Todavia, a autonomia frente o COI é limitada pela Carta Olímpica.
A Carta prevê que a composição do CON são todos os membros do COI de seu país
(tendo o direito de voto nas assembléias gerais do CON, somado ao fato de que devem ser
membros do órgão executivo); todas as FN‟s ligadas à FI, que se encontra no programa dos
Jogos Olímpicos, ou seus representantes (sendo estes a maioria votante); e dos atletas ativos
ou antigos que participaram dos Jogos165
. É surpreendente notar que a exigência de uma
significativa representação esportiva das FN‟s dentro dos CON‟s não é semelhante à
162
Regra 28, pontos 5 e 6, da Carta Olímpica. 163
Chappelet ; Bousigne; Cohen, 2008, p. 12. No caso brasileiro, existe a autonomia, mas o Estado contribui
com algumas participações financeiras, mais claramente com a destinação social da arrecadação da Mega-Sena,
com 1,7% para o COB. 164
Regra 28.4 da Carta Olímpica. 165
Regra 29, pontos 1.1-1.3 e 3, da Carta Olímpica. Esta Regra coloca como obrigatória a participação destes
membros, mas a Carta, na Regra 29, pontos 2.1 e 2.2, permite o reconhecimento de outros membros, mas não é
obrigatória.
42
representação das FI‟s junto ao COI. Ou seja, há uma preocupação com a representação das
FN‟s no plano territorial, ao mesmo tempo em que subjuga as FI‟s no plano mundial.
Somada às indicações de quem deve compor a FN, a Carta limita ainda mais qualquer
possibilidade de haver diferenças internas entre os CON‟s, ao uniformizar a forma de
reconhecimento através das condições impostas pelo Texto de Aplicação das Regras 28 e 29
da Carta. O CON deve provar que as FN‟s membros exercem atividade esportiva específica,
real e durável em seu país e no plano internacional, nas ocasiões em que organizam e
participam de competições. Um CON não reconhecerá mais de uma FN por esporte, regida
por uma FI membro do COI. Cada CON deve possuir ao menos cinco FN com esportes
inclusos no programa dos Jogos166
. Além disso, como já afirmado anteriormente, o estatuto do
CON candidato deve ser aprovado previamente pelo Comitê Executivo do COI, sendo seu
estatuto conforme a Carta. Esta prevalece sobre o estatuto em caso de dúvida ou conflito167
. A
necessidade de reconhecimento para a sua existência e a grande limitação da Carta Olímpica
sobre os assuntos olímpicos nacionais fazem do CON uma entidade mais parecida com um
órgão de representação territorial do COI do que de um membro autônomo federativo.
As disposições da Carta atestam a menor autonomia dos CON‟s comparada às FI‟s. O
conjunto destas organizações se move livremente em torno de si, desde que elas respeitem o
direito olímpico. Toda transgressão deverá ser repreendida pelo COI168
. A Regra 26 dispõe
que o COI pode reconhecer as organizações internacionais não governamentais que
administrem um ou mais esportes no plano mundial, e que compreendam as organizações que
administram esses esportes no nível mundial. Não há um número que precise às FI‟s a
quantidade e sua representatividade geográfica que devam atender para serem dadas como
organizações169
. O fundamental é compreender que as FI‟s são a representação esportiva do
Movimento Olímpico170
.
As FI‟s têm poderes “monopolistas” sobre as FN‟s afiliadas. Sem reconhecimento da
FN, um atleta não pode participar de uma competição. A FN, conforme Regra 30 da Carta,
tem de ser filiada, simultaneamente, ao respectivo CON de seu país. Essa dupla afiliação nem
sempre é automática: as FI‟s tendem a aceitar o maior número de FN‟s possíveis para
aumentar sua cobertura geográfica, enquanto que os CON‟s preferem restringir o número de
166
Ponto 1.1.2 do Texto de Aplicação das Regras 28 e 29. 167
Ponto 1.1.3 do Texto de Aplicação das Regras 28 e 29. 168
Latty, 2007, p. 232 169
Ibidem, pp. 179-80. 170
Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, p. 59.
43
FN‟s por questões particulares (como o direito de voto) e econômicas (divisão de subsídios
governamentais)171
. O papel das FI‟s no Movimento é estabelecer e implementar regras
relativas à prática de seus esporte, assegurando o desenvolvimento em todo o mundo. Elas são
responsáveis pela admissão de atletas para a participação nos Jogos, assumindo a
responsabilidade do controle e da direção técnica de seu esporte nesse evento172
.
Cada vez que uma FI tenta ser membro do Movimento Olímpico, mais ela tende a abrir
mão de sua autonomia. É esse sacrifício que faz haver uma tendência centralizadora na ordem
desportiva. Isso não é ruim, porque possibilita uma coerência maior entre os esportes. Ainda
existem duas instituições que contribuirão com esse papel de dar coerência ao Movimento
Olímpico: o TAS e a AMA. O primeiro se apresenta como um órgão julgador de boa parte
dos litígios; e a segunda tem como função fiscalizar se há o cumprimento do Código Mundial
Antidoping. Embora nasçam no espaço olímpico, ambos vão além, agindo em instituições
esportivas que não se encontram ligadas ao COI, ao mesmo tempo em que contribuem com a
harmonização da lex sportiva. Por isso, merecem capítulos próprios.
171
Ibidem, p. 70. 172
Regra 27 e 47, e seus pontos, da Carta Olímpica.
44
3 AGÊNCIA MUNDIAL ANTIDOPING
A luta contra o doping possui olhares e discursos diferentes sobre o tema. O presente
capítulo possui, primordialmente, um: o jurídico. Mesmo ele possui diversas maneiras de ser
analisado, como, por exemplo, os fatos que são incididos por regras antidopings. Aqui, não é
este o caso. O principal enfoque do capítulo é entender como foi possível elaborar uma
instituição autônoma de combate ao doping e o seu papel no fortalecimento da solidariedade
interna da lex sportiva. O doping teve início, espaço e atores que o determinaram como
problema social. Então, é importante verificar a origem do problema para entender a
construção da Agência Mundial Antidoping.
3.1 Origem
O uso de substâncias para melhorar performances deve ser mais antigo que o próprio
esporte. Há tempos, milhões de pessoas tomam uma grande variedade de pílulas para
melhorar desempenhos cotidianos. Contudo, na esfera esportiva, isso não ocorre. O Doping –
definição contemporânea para aplicação ilegal de estimulantes que visem ao aumento de
rendimento – começou a emergir como um problema durante a década de 50. A criação de
uma Comissão Médica se deu um ano depois pelo COI da morte de um ciclista dinamarquês
em 1960, nos Jogos de Roma, muito embora tenha permanecido inativa durante alguns anos.
Após a morte de outro ciclista em 1967 na Volta da França, o Príncipe Alexandre de Mérode,
membro do COI da Bélgica, foi indicado como o responsável pela Comissão Médica que
tentaria manter da lisura da competição. Foram elaborados princípios que protegessem a
saúde do atleta, a defesa ética do esporte e a igualdade entre os atletas173
. Ele começou seu
trabalho em 1968 nos Jogos Olímpicos de Inverno de Grenoble e nos Jogos da Cidade do
México. Transformou o COI na primeira entidade a intervir no problema do doping em nível
global. Todavia, essas medidas se restringiam ao período dos Jogos, não acompanhando o
crescimento das substâncias desenvolvidas a cada nova edição. Além disso, não havia o
devido acompanhamento das instituições desportivas na punição das novas substâncias. O
clamor olímpico no combate ao doping proporcionou a difusão da ideia entre as FI‟s. Muitas
173
Boyes, 2001, p. 168.
45
começaram a seguir o exemplo do COI em suas próprias competições gradualmente, mas com
muita relutância interna, dada a crença que o teste arranhava a imagem da instituição quando
o controle era positivo174
. Alguns países, de forma independente, começaram a estudar o
problema e produziram leis sobre o assunto, como a Áustria (1962), Bélgica (1965), França
(1965), Itália (1971) e Turquia (1971). Em 1966, o Conselho da Europa adotou Resolução
contra o Doping, denunciando o uso de medicação para o melhoramento de performance. No
ano de 1978, em uma Conferência de Ministros do Esporte, elaboraram-se algumas
recomendações para o combate antidoping. Quase que simultaneamente, algumas das maiores
FI‟s, tais como a IAAF, também começaram a implementar o controle antidoping. Em 1981,
no Congresso Olímpico em Baden-Baden, os atletas convidados idealizaram uma sanção
extremamente séria (e, conforme será visto, ainda perdura) para aqueles que se dopam, isto é,
a desqualificação para a vida175
.
Em 1984, o Conselho da Europa, em razão das diversas leis estatais que regulavam
sobre o doping, adotou uma Carta Antidoping para o Esporte baseado nos resultados obtidos
pela administração do Príncipe de Mérode. Houve, pela primeira vez (mesmo que modesta) a
cooperação entre o Movimento Olímpico e governos europeus. A Carta foi então reconhecida
pela Associação Geral das Federações Internacionais Esportivas, a Associação do Comitê
Olímpico Europeu, Comissão Européia, Organização Mundial da Saúde e a UNESCO. Com a
pretensão de tornar essa parceria em um status legal além do território europeu, em Junho de
1988, todos esses esforços levaram à adoção de uma Carta Antidoping Internacional, durante
conferência realizada em Ottawa, numa parceria co-presidida pelo governo canadense e o
COI. Em outubro do mesmo ano, uma resolução foi adotada na segunda Conferência
Internacional de Ministros e Altos Funcionários Responsáveis pela Educação Física e Esporte
organizada pela UNESCO, recomendando que a Carta Antidoping fosse aplicada pelos seus
Estados membros176
.
Em 1989, o Conselho da Europa converteu a Carta Antidoping, que era um conjunto de
intenções, em uma Convenção (que perdura ainda hoje), sendo progressivamente ratificada
pela maioria dos seus estados membros, inclusive os da Europa oriental. Outros Estados além
da Europa se juntaram, tal como Austrália, Canadá e Tunísia. Todo esse esforço se dava com
174
Segundo Boyes (2001, p. 169), algumas Federações Internacionais mais fortes, como FIFA e IAAF
conseguiram aplicar regras próprias sobre o doping, diferentes das regras do COI. 175
Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, pp. 132-133. 176
Ibidem, pp. 133-134.
46
o intuito de harmonizar a legislação antidoping. Todavia, o grande problema nesses institutos
em frear o doping, outra vez, era a rapidez da elaboração de técnicas e drogas para o
melhoramento de performances. A ciência, com sua técnica, era mais rápida que os poderes
públicos, com suas medidas políticas, transformando ineficazes as medidas estatais nesse
combate177
.
Na década de 90, o COI, na tentativa de unificar o sistema de penalidades aplicadas
pelas FI‟s, começou a desenvolver uma rede de laboratórios cadastrados para o controle
antidoping ao redor do mundo. Essa rede de laboratórios limitava a possibilidade da produção
de provas, não aceitando como fato qualquer exame feito por outro sem credenciamento. Essa
década ficou marcada pela tentativa de afastamento da participação estatal, pois países como
Rússia e China pareciam facilitar o acesso ao doping. Com o escândalo do esquema de doping
na Volta da França em 1998, somado ao problema da corrupção na eleição da cidade de Salt
Lake City para abrigar os Jogos, o COI foi alvo de ataques governamentais quanto à sua lisura
em resolver problemas esportivo-disciplinares. Então, resolveu tratar do problema com mais
veemência, mas envolvendo diálogo. Promoveu uma conferência formada pelo Movimento
Olímpico, governos e outras organizações intragovernos. Esse grupo criou a “Declaração de
Lausanne”, que colocava como pontos fundamentais a criação de uma lista de substâncias
proibidas e a criação de uma agência internacional independente que resolveria tais problemas
relativos ao doping. Tal agência seria financiada e estruturada por esse grupo. Assim, foi
criada a Agência Mundial Antidoping (AMA ou WADA) no dia 10 de novembro de 1999178
.
O período que antecede a AMA mostra que existiam alguns discursos jurídicos que
tentavam supremacia no confronto com outros. Havia um discurso de cunho independente que
almejava a não participação estatal nas questões esportivas, da mesma maneira que havia uma
idéia estatal de que o doping estava ligado a um problema de saúde, devendo ser controlada e
punida pelo próprio Estado179
. A criação da AMA foi um passo importante para o diálogo
entre poder público e organizações esportivas, fazendo com que a igualdade esportiva e a
saúde dos atletas fossem reguladas por um órgão que legitimaria o poder transnacional do
TAS. Isso evitava a estatatização da igualdade esportiva, em que haveria a amenização da
pena e a utilização de premissas jurídicas diversas da esportiva considerando a cidadania de
seu atleta. Evitava, da mesma maneira, a “esportização” da saúde do cidadão-atleta,
177
Ibidem. 178
Ibidem, pp. 134-36. 179
Foster, 2001, pp. 183-184.
47
reconhecendo que o Estado tem interesse tão primário na matéria quanto à ordem desportiva.
A AMA, portanto, pode ser considerada como o órgão que harmoniza poder público e
privado, da mesma forma que harmoniza a lex sportiva em um conjunto além do contexto
Olímpico180
.
Por um lado, a criação da AMA é promissora no processo de harmonização do direito
desportivo – o que não significa que não existam legislações estatais que punam
territorialmente, inclusive com banimento, atletas pegos no exame antidoping, como é o caso
da China; por outro, pode ser a representação do último suspiro de um moribundo: a luta
contra o doping tem se mostrado de difícil, senão impossível, vitória. A AMA já admite que
não consegue acompanhar a velocidade com que os fraudadores se apropriam das novidades
farmacêuticas. A promessa do “doping genético” faz crer que a batalha está perdida por
antecipação. Há quem acredite que a melhor forma de manter a igualdade esportiva é a
liberação de todas as substâncias dopantes sob supervisão médica181
. Se isso ocorrer, será
difícil sustentar a pertinência da AMA. Tudo isso ainda são hipóteses. Porém, não se devem
fechar os olhos para um horizonte tão incerto.
3.2 Código Mundial Antidoping e sua aplicabilidade
A declaração de Lausanne comporta seis parágrafos sobre a educação, a prevenção e os
direitos dos atletas; sanções; Agência Internacional Antidoping; responsabilidades do COI,
FI‟s, CON‟s e TAS. O ponto, porém, principal dessa declaração é a previsão de que seria
elaborado um código mundial antidoping. O Código “é aceito como base na luta contra o
doping que é definida como o uso de artifício, seja de substância ou método, potencialmente
perigosos a saúde/ ou capaz de melhorar sua performance, ou a presença no corpo do atleta de
uma substância, ou a determinação do uso de um método na lista anexada pelo Código
Antidoping do Movimento Olímpico”, sendo aplicado aos “atletas, treinadores, instrutores,
dirigentes” e para qualquer um da área da saúde que trate ou participe dos treinamentos ou da
organização sob a estrutura do Movimento Olímpico (§ 2º).
O Código Antidoping do Movimento Olímpico foi ratificado pela 109ª Sessão do COI,
entrando em vigor no dia 1º de janeiro de 2000. Não se diferenciava do código antidoping do
Movimento Olímpico. Apenas atualizava-o. Ainda não era o que se conhece por “Código
Mundial Antidoping”, mas serviu de “guia interpretativo” para a Turma arbitral do TAS,
180
Latty, 2007, p. 362. 181
Em reportagem disponível no sítio da revista Piauí, edição 23, o jornalista Dorrit Harazim traz mais detalhes
dos grandes desafios da condenação por doping.
48
apesar da não aceitação de determinadas FI‟s182
. Somente no dia 5 de março de 2003,
aprovado por unanimidade pelo Conselho de fundação da AMA, foi aprovado o Código
Mundial Antidoping (CMA), aceito como o fundamento contra o doping no esporte de escala
mundial183
. O CMA foi dividido em quatro partes. Na primeira, contém provisões
relacionadas ao controle antidoping. A expressão “doping control” cobre toda parte do
processo que determina se o doping ocorreu, incluindo os resultados, audiências e recursos.
As organizações que podem aceitar o Código são referidas como Signatários ou organizações
antidoping. A segunda parte refere-se às funções educativas e de pesquisa dos signatários. A
terceira parte prevê as responsabilidades dos signatários e indivíduos vinculados ao Código. A
quarta parte contém disposições relativas à forma como os signatários aceitam e aplicam o
CMA, como a observância com a operação do Código será monitorada pela AMA, as
conseqüências da não observância e o processo pelo qual o Código será monitorado e
modificado, além de critérios interpretativos do CMA184
. Os propósitos do código são
“proteger o direito fundamental do atleta em participar de atividades livres do doping,
fomentando a saúde e garantir desta forma a eqüidade e a igualdade no esporte para todos os
atletas”; e “velar pela harmonização, a coordenação e a eficácia dos programas contra o
doping no nível internacional e nacional com respeito à detecção, dissuasão e prevenção do
doping”185
.
A Introdução do CMA explicita que todas as disposições são obrigatórias, devendo ser
cumprida por todas as organizações ligadas à AMA, não substituindo ou eliminando a adoção
de regras mais específicas sobre o tema. O Código acaba admitindo que os Estados podem
manifestar-se através de leis que proíbam ações, no âmbito penal, que sirvam, por exemplo,
de tráfico de substâncias proibidas no jogo. Ainda no ponto introdutório do Código, as normas
antidopings definem as condições para se praticar o esporte, sendo condição de participação
de alguma competição a aceitação do CMA. Cada signatário deverá garantir que seus
membros sejam informados das normas antidopings vigentes pelas organizações esportivas
correspondentes.
182
Latty, 2007, pp. 377-383. 183
Ibidem, p. 387; e no capítulo “Propósito, âmbito de aplicação e organização do programa mundial antidoping
e do código” e subtítulo “O Código” do CMA. 184
David, 2008, pp. 41-42. 185
Capítulo “Propósito, âmbito de aplicação e organização do programa mundial antidoping e do Código” do
CMA.
49
O artigo 1º e 2º definem o doping, além de obrigar o atleta ou outra pessoa envolvida no
meio a conhecer as substâncias e métodos proibidos que se encontram na lista. A partir de oito
situações diferentes, o doping é definido pela “presença de uma substância proibida ou de
seus metabólitos ou marcadores na amostra de um atleta” (art. 2.1); “uso ou tentativa de uso
por parte de um atleta de uma substância proibida ou de um uso proibido” (art. 2.2); “a
negativa ou resistência, sem justificação válida, a uma coleta de amostra” que segue as
normas antidoping aplicáveis, “ou evitar qualquer coleta de amostras” (art. 2.3); “transgressão
dos requisitos sobre a disponibilidade do atleta para a realização de controles fora de
competição” (art. 2.4); “falsificação ou tentativa de falsificação de qualquer parte do
procedimento de controle do doping” (art. 2.5); “posse de substâncias proibidas e métodos
proibidos” (art. 2.6); “tráfico ou tentativa de tráfico de qualquer substância proibida ou
método proibido” (art. 2.7); “administração ou tentativa de administração durante a
competição a um atleta” (art. 2.8).
Todas essas previsões que definem o doping, lista de substâncias (art. 4º),
procedimentos (art. 5º ao 9º) e sanções (art. 10 ao 12), são aplicáveis aos seus signatários,
sendo os principais o COI, as FI‟s, CON‟s, organizações nacionais antidoping, comitês
organizadores de competições e a AMA. A lista de substâncias é publicada tantas vezes
quanto necessária e ao menos uma vez por ano, entrando em vigor para cada entidade
participante três meses após a publicação186
. O CMA reafirma, em seu procedimento, que a
análise da presença de substância proibida somente poderá ser efetuada por laboratórios
credenciados pela AMA. De certa forma, tal disposição veio apenas consagrar o que já tinha
sido decidido pelo TAS: a não aceitação de método divergente de um outro laboratório que
questione a certeza dos resultados obtidos pela metodologia dos credenciados. Afastava, com
isso, a argumentação de presunção de inocência187
. O Código também traz princípios para a
realização de um “julgamento justo”. “Uma audiência em prazo razoável”, “um tribunal de
especialistas justo e imparcial”, “o direito de ser representado por um advogado” e o “direito a
uma decisão fundamentada” são alguns desses princípios que condicionam os procedimentos
arbitrais188
.
186
Artigo 4.1 do CMA. 187
JDI, 2003, pp. 329-337, com extratos e comentários de Gérald Simon. Sentença nº 2002/A/358. – 24 de
setembro de 2002. – União ciclista internacional (UCI) c/ Z. e Real federação espanhola de ciclismo (RFEC). 188
Artigo 8.1 do CMA.
50
As determinações do código ou qualquer recomendação da AMA necessita que o
Código seja previamente aceito nas legislações internas ou Estatutos que legitimem seu poder.
Não há aplicação direta sem que exista aceitação dos seus signatários189
, o que mostra a
ausência do efeito cascata das regulações das FI‟s sobre seus membros e atletas, já que neste
último caso não precisa a declaração de aceitação da regulamentação para que tenha de ser
eficaz globalmente.
O artigo 20 estabelece as funções e responsabilidades a esses signatários. De forma
geral, as responsabilidades são quase todas comuns entre todos os que adotam o CMA, como
a adoção e aplicação de “políticas e normas antidoping” nas competições internacionais (art.
20.1.1 e 2.3.1). O CMA condiciona o reconhecimento ou financiamento de instituições
subordinadas e componentes dos seus signatários (o COI aos CON‟s e FI‟s; as FI‟s às FN‟s e
atletas), sempre sob o pretexto de participação nas competições190
. Todos esses participantes
estão sob a fiscalização da AMA. O que poderia ser um mero órgão do Movimento Olímpico
subordinado ao COI, a AMA vai além, demonstrando que o problema do doping no contexto
desportivo terá a participação de Estados em um problema comum, colocando todos (Estados
e atores privados desportivos) sob sua fiscalização. Isto representará a autonomia do instituto,
como se verá a seguir.
3.3 Função e composição da AMA
A AMA é uma fundação de direito privado que segue os artigos 80 a 89 do Código
Civil Suíço, tendo como sede a cidade de Lausanne. Isso não impede de ter outras sedes ou de
se mudar de sua origem em algum momento, desde que haja um acordo com a autoridade de
supervisão191
. A composição interna da AMA é uma de suas características mais
interessantes. O órgão de decisão suprema é o Conselho da Fundação, que é composto
igualmente por representantes do Movimento Olímpico e dos Governos, possuindo não mais
que 40 membros (são 38 atualmente), eleitos para um período de três anos, com a
possibilidade de serem reeleitos por um mesmo período. Além de órgão decisório, o Conselho
serve como fiscalizador do Comitê Executivo, órgão de decisão política, semelhante à
estrutura parlamentarista. O Conselho de Fundação é constituído, no máximo, por 18
membros do Movimento Olímpico, sendo que, desses, ao menos quatro serão atletas. Outros
18 membros são indicados por organizações intergovernamentais, autoridades públicas ou
189
Latty, 2007, p. 394. 190
Artigos 20.1.2 e 20.3.2 do CMA. 191
Artigos 1º e 2º do Estatuto da AMA.
51
outro órgão público envolvido na luta contra o doping. O restante dos membros será indicado
pelo Conselho de Fundação, mediante proposta paritária entre Movimento Olímpico e
autoridades públicas. Os membros do Movimento Olímpico são indicados da seguinte forma:
quatro representantes do COI; quatro da Associação dos Comitês Olímpicos Nacionais; três
da Associação das Federações Internacionais Olímpicas de Verão; um da Sportaccord; um da
Associação das Federações Internacionais Olímpicas de Esportes de Inverno; quatro da
Comissão de Atletas do COI; um do Comitê Internacional Paraolímpico. A escolha dos
representantes governamentais é feita pelo Grupo Consultivo Intergovernamental
Internacional Antidoping no Esporte, criado em 1999, que escolhe três representantes da
África, quatro da América, quatro da Ásia, dois da Oceania e cinco da Europa, em que três
são designados pela União Européia e dois pelo Conselho da Europa192
.
O Conselho da Fundação é auto-organizado. Tem como função eleger entre seus
membros, ou fora de sua própria estrutura, um Presidente e Vice-Presidente por um período
de três anos, sendo de posição voluntária e alterna entre governo e Movimento Olímpico. Eles
são eleitos por maioria absoluta dos membros presentes. Depois de eleitos, estes se tornam
membros do Conselho193
. Além de terem o poder de eleger seu Presidente, o Conselho tem o
poder inalienável de propor, principalmente, emendas ao Estatuto, nomear o órgão de
fiscalização do Conselho e nomear o Comitê Executivo194
. O artigo 4º do Estatuto da AMA
determina como principais objetivos do Conselho: estabelecer, adaptar, modificar e atualizar a
lista de substâncias e métodos proibidos na prática esportiva (inciso 3º); desenvolver,
harmonizar e unificar padrões técnicos de procedimentos de análise e equipamentos,
incluindo a homologação de laboratórios, criando um laboratório de referência (inciso 5º);
promover regras harmonizadas, procedimentos disciplinares, sanções e outros sentidos de
combate ao doping no esporte, contribuindo para a sua unificação (inciso 6°).
Possuindo doze membros e escolhidos pelo Conselho, o Comitê Executivo é também
composto de forma igual entre Movimento Olímpico e Governo (cinco membros
representantes de cada um, mais o Presidente e Vice). O Comitê é competente para tomar
qualquer decisão que não seja reservada ao Conselho de Fundação, o que representa que ele é
responsável pela direção da gestão prática, da implementação das atividades e da
192
Artigo 6º e incisos do Estatuto da AMA; Artigo 2º da Declaração de Copenhague; Chappelet e Kubler-
Mabbott, 2008, pp.136-142. Cf. http://www.wada-ama.org/en/About-WADA/Governance/ 193
Artigo 7º do Estatuto da AMA. 194
Artigo 9º do Estatuto da AMA.
52
administração dos fundos da Agência. Por fim, vale ressaltar que o Presidente e Vice da AMA
possuem o mesmo cargo no Comitê195
.
O fenômeno da AMA apresenta uma nova feição à lex sportiva, na medida em que ela
não é concebida sem qualquer participação do Estado. A AMA sai da esfera da autorregulação
do Movimento Olímpico para a “corregulação” na luta antidoping196
. O procedimento de
revisão do Código confirma, passando por uma consulta das organizações esportivas e dos
governos (art. 23.6.2 do CMA), antes a aprovação de emendas por uma maioria de dois terços
do Conselho de Fundação da AMA, contanto que dentro do setor público e do Movimento
olímpico uma maioria seja favorável (Art. 23.6.3). O CMA não pode prosseguir sem
encontrar a aceitação majoritária das forças do Movimento olímpico e dos poderes
públicos197
. A participação comum na produção normativa da Agência se justifica a partir do
momento em que o problema do doping ultrapassou os limites da igualdade no esporte para
atingir questões de saúde, protegida pelo Estado. A AMA pode ser encarada como uma
Parceria Público-Privada (PPP) de âmbito global. Existe uma diferença fundamental com o
conceito tradicional de PPP: ao invés de haver a “privatização” do serviço público, há
“hibridização” de um serviço privado, no que se refere à igualdade esportiva, e de um serviço
público, no que tange à saúde dos atletas. Com isso, a AMA, com sua singularidade, consegue
implementar em âmbito público interesses eminentemente esportivos, como a preservação e
proteção do espírito esportivo; da mesma maneira que implementa no âmbito privado direitos
estatalmente protegidos, como os direitos fundamentais do atleta, a proporcionalidade das
sanções e imparcialidade nos julgamentos198
. Parece haver uma forma nova de produzir
critério jurídico em que participação igualitária na regulação do doping lhe dá um caráter
misto, refletindo nos âmbitos públicos e privados que envolvem o esporte199
. Ainda assim, sua
aparência não é contrária ao verdadeiro direito transnacional, posto que sua corregulação, por
vezes, vai de encontro com a legislação nacional ou internacional, prevalecendo sobre ambas
em conflitos esportivos.
O artigo 20.7 do CMA prevê as funções e responsabilidades da AMA. Diferentemente
do Estatuto desta, o Código generaliza a responsabilidade da Agência como um todo, não
relatando a responsabilidade de seus órgãos internos (Conselho de Fundação ou Comitê
195
Artigo 11 do Estatuto da AMA; Latty, 2007, p. 285. 196
Latty, 2007, p. 393. 197
Ibidem, p. 390. 198
Casini, 2009, p. 437 e 445. 199
Ibidem, p. 439.
53
Executivo). Por isso que a visão prévia do Estatuto contribui para saber quem, internamente, é
o responsável pelas atribuições previstas no CMA. Os incisos desse artigo (1º ao 8º)
expressam as seguintes responsabilidades da AMA: adotar e por em práticas políticas e
procedimentos que atendam ao disposto no Código; verificar se os signatários do Código
estão cumprindo seus ditames; aprovar as normas internacionais aplicáveis para a execução
do CMA; credenciar laboratórios; desenvolver e aprovar modelos de boas práticas; fomentar e
coordenar a investigação antidoping; organizar um programa eficaz de observadores
independentes; realizar controles antidopings autorizadas por outras organizações antidopings
e colaborar com agências e organizações nacionais e internacionais relacionadas, facilitando
as investigações.
Em síntese, a AMA possui, após a entrada em vigor do Código, cinco objetivos:
implementar, apoiar, fiscalizar e monitorar a observância do CMA; educar e informar os
signatários do CMA, governos, atletas e o pessoal de apoio sobre os perigos e conseqüências
do uso do doping; conduzir, coordenar e apoiar um efetivo programa científico, laboratorial e
pesquisa da mais alta qualidade; aumentar a capacidade das organizações antidoping para
implementar regras e programas antidoping e assegurar a observância com o Código; ser uma
organização mundial que incorpora atividades que refletem padrões internacionais da melhor
prática200
. Portanto, é possível concluir que a AMA é um órgão que intermedeia o controle
estatal da saúde e a garantia de igualdade esportiva, sob a égide da co-regulação prevista no
CMA.
Após a compreensão interna de como se compõe a AMA, é fundamental entender o
argumento internacional para a aceitação da instituição, assim como a assimilação da
transnacionalidade de sua jurisdição desportiva. Isto servirá como uma introdução
compreensiva da convivência entre lex sportiva e ordens jurídicas estatais.
3.4 Reconhecimento internacional e a previsão do TAS como órgão
julgador
A declaração de Lausanne, de 4 de fevereiro de 1999, foi o primeiro instrumento
internacional que propunha a corregulação no combate ao doping. Tinha-se em vista uma
parceria que incluiria a criação da AMA, do CMA e de uma política conjunta para a educação
200
Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, p. 147.
54
e prevenção contra o doping. A criação desses institutos foi apenas a concretização dessa
declaração, mas ainda faltava uma maior publicidade dessa parceria no âmbito internacional.
A convenção internacional contra o doping no esporte adotado em 19 de outubro de
2005 pela Conferência geral da UNESCO oficializou, sob uma forma juridicamente
obrigatória, o engajamento dos Estados em favor do CMA. Pela Convenção, os Estados-Parte
se obrigam a adotar as medidas que sejam conformes aos princípios do CMA no nível
nacional e internacional (art. 3º, § 1), o que não impede que os Estados-Parte de adotarem
medidas adicionais ou complementares ao Código (art. 4º, § 1) . A Convenção coloca os
Estados sob a autoridade do CMA, dando um caráter inédito ao seu instrumento. Se
compreendermos que o CMA não é obrigatório, ao menos não faltam instrumentos jurídicos
que lhe faça produzir efeitos201
. O artigo 22 do CMA reforça a idéia de que os governos
devem respeitar o Código ao afirmar que está coberto pela ratificação e promulgação da
Convenção da UNESCO, ao mesmo tempo em que se autodenomina como um “documento
independente e autônomo, e não com referência a leis ou estatutos existentes no países dos
signatários ou governos” (art. 24.3). Até o fim de 2007, a Convenção foi ratificada por 74
membros (fora as 191 assinaturas). Desde 1º de janeiro de 2010, aceitação da Convenção
ganhou um reforço, já que, para uma cidade ou país poder se candidatar a ser sede de um
campeonato mundial ou dos Jogos Olímpicos, há a condição prévia de aceitação da
Convenção202
. Isso tende a mostrar a influência das organizações esportivas sobre os Estados
na produção normativa de suas leis.
A Convenção abre espaço para que as instituições esportivas atuem (ou mesmo sejam
auxiliadas) nos territórios de cada país, com o intuito de fazer o controle antidoping (art. 12,
“a” ao “c”), assim como reconhecer os procedimentos de controle e gestão de resultados por
parte dos laboratórios credenciados pela AMA (art. 16, “g”). A Convenção também prevê o
financiamento em conjunto da AMA, isto é, 50% das obrigações para os Estados e 50% para
as organizações esportivas (art. 15).
O ponto inovador da Convenção é, de fato, acatar o Código Mundial Antidoping, o que,
em si, carrega uma conseqüência inédita: a aceitação da jurisdição do Tribunal Arbitral do
Esporte, conforme exposto no artigo 22.3 do CMA. As decisões que imputem punição relativa
ao doping estão sujeitas a recurso junto ao TAS, desde que tenham se esgotado todas as
201
Latty, 2007, p. 398. 202
Chappelet e Kubler-Mabbott, 2008, p. 146 ; art. 20.1.8 do CMA.
55
formas de revisão de tal punição, mas que não se estende à AMA, que pode recorrer em
qualquer momento203
. Nem todas as FI‟s aceitaram o CMA. A FIA informou à AMA que
implementaria todos os aspectos, mas não poderia aceitar as disposições relativas ao recurso
junto ao TAS204
. Isso, contudo, não retira do TAS o poder de abrir um novo tipo de
contencioso na arbitragem esportiva205
, impondo, sob proteção de instrumentos
internacionais, suas decisões independentemente de territorialidade. De certa forma, a
corregulação na luta contra o doping reforçou ainda mais a transnacionalidade da lex sportiva,
dando maior eficácia às decisões transnacionais provindas do centro de sua ordem, isto é, do
TAS. Essa ideia fica ainda mais evidente quando se verifica a aplicação do CMA pelo
Tribunal, mesmo quando conflitam com ordens alheias ao contexto esportivo206
.
O Programa mundial antidoping e a previsão de que o TAS é o órgão julgador de seus
litígios se aproximam ainda mais da uniformização e harmonização dos programas e boas
práticas antidoping no nível nacional e internacional, suprimindo disparidades que
prejudicariam a eficácia da luta antidoping entre as diversas ordens jurídicas207
. Resta analisar
como o TAS se apresenta como alternativa possível para resolver litígios desportivos e
produzir padrões interpretativos de forma independente.
203
Artigos 13.1 e 13.1.1 do CMA. 204
Latty, 2007, pp. 395-396. 205
Ibidem, p. 399. 206
Sentenças como a nº 2006/A/1119. – União ciclista internacional (UCI) c/ L. e Real Federación Española de
Ciclismo (RFEC) demonstram bem essa nova conjuntura proporcionada pelo CMA. Mais à frente, essa decisão
será analisada sob a ótica do transconstitucionalismo. 207
Latty, 2007, pp. 399-400.
56
4 TRIBUNAL ARBITRAL DO ESPORTE: O CENTRO DA
ORDEM DESPORTIVA
O presente capítulo busca entender qual é a posição do Tribunal Arbitral do Esporte no
contexto da lex sportiva. A partir da compreensão da localidade do Tribunal, poder-se-á
entender como é possível a concretização das normas jurídicas oriundas de suas decisões.
Haverá a elaboração de uma jurisprudência que possibilitará a construção de padrões
interpretativos próprios. Estes, ao lado da utilização de princípios gerais de direito, servirão
como institutos de afirmação da autonomia da ordem. Portanto, uma idéia mais profunda do
que é a lex sportiva passa pela obrigatoriedade de entender o que é o TAS.
4.1 Origem e organização
Em função da ausência de uma autoridade independente que pudesse julgar causas entre
atores esportivos de mais de uma nação, habilitada a tomar decisões vinculantes, encorajou as
mais altas instâncias a olhar sobre a questão da resolução dos litígios esportivos. Após a
eleição de Juan Antonio Samaranch para presidência do COI, foi emitida a idéia de instituir
uma jurisdição específica para o esporte em 1981, tendo o Juiz Kéba Mbaye, membro do COI
e então juiz da Corte Internacional de Justiça de Haia, como diretor de um grupo de trabalho
encarregado de preparar o estatuto desse que se tornaria o “Tribunal Arbitral do Esporte”
(TAS). Além de criar uma autoridade especializada, capaz de decidir os litígios
internacionais, ofereceu-se um procedimento rápido e flexível conforme a exigência
esportiva, além de pouco oneroso. Tal instituto incluía previamente uma tentativa de
conciliação prévia. Apesar do intuito global, a jurisdição do TAS não se imporia aos atletas ou
às federações, senão estaria à livre disposição das partes. Em 1983, o COI aprovou
oficialmente o estatuto do TAS que entrou em vigor em 30 de junho de 1984, tornando-se
operacional desde essa data208
.
O primeiro Estatuto do TAS estabelecia a sua composição em sessenta membros
designados pelo COI, as FI‟s, os CON‟s e o Presidente do COI (15 membros cada). O
208
Reeb, 2001, p. 235; Karaquillo, 2004, 108 Cf. Mclaren, 2002.
57
Presidente do COI designava os membros dos organismos mencionados. Porém, a
modificação de Estatuto e os gastos para funcionamento do TAS eram suportados pelo COI,
exceto pelos litígios contratuais de caráter pecuniário. Isso mostra que a existência deste
órgão era condicionada ao suporte do COI. Havia apenas um procedimento contencioso que
independia de natureza e acompanhava a convenção de arbitragem. O procedimento arbitral
era iniciado em caso de falha na tentativa da primeira conciliação entre as partes209
.
A contar de 1991-1994, vários eventos foram importantes na aceleração para a aceitação
global do TAS. Em 1991, a publicação do Guia de arbitragem colocou nos estatutos de
entidades esportivas cláusula que excluía todo recurso em qualquer tribunal ordinário. Essa
cláusula criava um procedimento recursal diferente para os litígios provindos de decisões
tomadas pelas sociedades esportivas. Com a aparição da cláusula de recurso arbitral, as suas
decisões, que até aquele momento tratavam de temas como nacionalidade dos atletas,
contratos de trabalho, cessão de direitos de retransmissão televisionado, patrocínio ou de
concessão de licença, ganhou maior complexidade com os numerosos recursos relativos ao
doping, dado que exigiu a construção de critérios únicos para a aplicação em casos de
esportes diversos, forçando a busca de coerência interpretativa independentemente de qual FI
regulasse o caso210
.
Caminhando a passos lentos, o TAS passou por sua primeira provação no que se refere
à sua autonomia em fevereiro de 1992, quando um cavaleiro de nome Elmar Gündel recorreu
de decisão da Federação Eqüestre Internacional (FEI), que afirmava a ocorrência de doping
no cavalo do atleta. Com a decisão, houve a desqualificação, suspensão e uma multa ao
cavaleiro. A decisão recursal reduziu a suspensão de três meses para um. Ainda insatisfeito
com a decisão, o cavaleiro recorreu junto ao Tribunal Federal suíço, contestando, antes de
tudo, a validade da sentença, eis que foi tomada por um tribunal que não preenchia as
condições de imparcialidade e de independência, requeridas para ser considerado um
verdadeiro tribunal arbitral. O Tribunal Federal (TF) reconheceu ao TAS a qualidade de
verdadeiro tribunal arbitral. Reconheceu também sua autonomia e independência na medida
em que, por não ser um órgão da FEI e não receber instruções desta, ele apenas colocava à sua
disposição três árbitros dos sessenta membros que o compõe. Contudo, o TF destacou as
209
Reeb, 2001, p. 236. 210
Reeb, 2001, p. 236; Karaquillo, 2004, pp. 109-110.
58
estreitas ligações que existem entre o TAS e o COI (acima mencionadas), o que traria sérios
problemas à independência do TAS quando o COI fosse parte211
.
Essa decisão do caso Gündel foi responsável por uma importante reforma do TAS,
forçando o acatamento das recomendações do Tribunal Federal e, consequentemente,
tornando-o independente do COI. No dia 22 de novembro de 1994, a reforma do TAS
consolidou-se no “Código de Arbitragem em matéria de Esporte”. Com a proposta de
substituir o COI no financiamento e gestão do TAS, a reforma fazia nascer o “Conselho
Internacional de Arbitragem em matéria de Esporte” (ICAS). A reforma criou, também, duas
turmas de arbitragem (ordinária e recursal), determinando claramente a separação entre os
litígios julgados pelo TAS, isto é, enquanto instância única e recursal212
. A partir “Convenção
de Paris” (instrumento, anterior ao Código, assinado pelas principais instituições esportivas
globais que possibilitava a criação do ICAS), assegurou-se os direitos das partes frente ao
TAS, assim como a nomeação dos primeiros membros do ICAS. Isso permitiu que a quase
totalidade das FI‟s e dos CON‟s inserissem uma cláusula de arbitragem em seus estatutos
delegando poderes ao TAS213
. Ainda houve algumas FI‟s bastante representativas que
resistiram por algum tempo, como a IAAF. Entretanto, mesmo esta, em 2001, passou a acatar
as decisões do TAS214
.
O Código de Arbitragem é dividido em duas partes: o Estatuto dos órgãos concorrendo
no regulamento dos litígios em matéria de esporte (art. S1 a S26) e o Regulamento de
procedimento (art. R27 a R69)215
. O artigo S1 explicita que os dois órgãos responsáveis por
garantir o respeito ao Código são o ICAS e o TAS, o que faz com que estes julguem e
coordenem os litígios de órgãos esportivos, na medida em que seus Estatutos ou regulamentos
aceitem tal jurisdição. O mesmo artigo afirma que a sede do TAS e do ICAS é em Lausanne,
dando abertura para que a autonomia seja parcialmente delimitada por regulações suíças216
.
O art. S2 coloca o ICAS como protetor dos direitos das partes e da independência do
Tribunal, posto que também assegura a administração e o financiamento do TAS. O ICAS
possui vinte membros especializados em questões jurídico-desportivas. São indicados da
seguinte forma: quatro dos membros são pelas FI‟s – três pela Associação das Federações
211
Reeb, 2001, p. 237; Anderson, 2000, pp. 123-125. 212
Reeb, 2001, p. 237; Kane, 2003, p. 616 213
Reeb, 2001, pp. 237-238. 214
Mclaren, 2002, p. 102. 215
Reeb, 2001, p. 238. 216
No próximo capítulo, isso será desenvolvido mais especificamente.
59
Internacionais Olímpicas de esporte de verão (ASOIF) e um pela Associação das Federações
Internacionais Olímpicas de Inverno (AIWF); quatro pela Associação dos Comitês Olímpicos
Nacionais (ACNO); quatro são indicados pelo COI; quatro são designados pelos doze
membros acima listados do ICAS, que visem assegurar os interesses dos atletas; quatro, pelos
dezesseis acima listados, que sejam independentes das autoridades acima. Ao serem
designados, os membros do ICAS devem se declarar independentes, exercendo suas funções
com objetividade dentro de um mandato de quatro anos, renovável por mais quatro (art. S5).
Acrescenta-se que eles não podem intervir procedimento frente ao TAS, tanto como árbitro ou
como conselheiro de uma parte217
.
O ICAS exerce funções enumeradas no artigo S6 tais como a indicação da lista dos
árbitros e mediadores e administração financeira do TAS. Certas funções podem ser
delegadas, mas outras não, como, por exemplo, a modificação do Código de arbitragem em
matéria de esporte, só pode ser pelo ICAS reunido em pleno e, mais precisamente, por uma
maioria de dois terços de seus membros (art. S6.1 e S8). O ICAS elege seu Presidente –
também o Presidente do TAS (art. S9) – assim como seus dois vice-presidentes, o Presidente
da Turma da arbitragem ordinária, o Presidente da Turma arbitral de recurso e os suplentes
dessas duas últimas218
.
São cento e cinquenta árbitros, no mínimo, que estão a serviço para auxiliar o exercício
das funções do TAS (art. S13), com a ajuda da secretaria do TAS, dirigido pelo Secretário
geral. O TAS possui duas Turmas: uma “Turma de arbitragem ordinária”, para os litígios
submetidos ao TAS em qualidade de instância única; e uma “Turma arbitral de recurso”, para
os litígios de decisão tomados em última instância pelas organizações esportivas (art. S3),
sendo dirigida por um Presidente de cada Turma, podendo ser chamado a tomar posição sobre
requisição de medidas provisórias ou de efeito suspensivo e intervir na constituição das
Turmas de árbitros (art. R37)219
.
Os árbitros do TAS possuem um mandato de quatro anos, renovável por mais quatro
pelo ICAS (art. S13). Os árbitros do TAS são nomeados sobre proposição do COI, das FI‟s,
dos CON‟s, do próprio ICAS e outras figuras esportivas importantes dispostas no art. S14. As
Turmas do TAS são compostas seja por um só árbitro, seja por três, dependendo da
complexidade do caso (art. R40.1). Todos os árbitros são obrigados a manter de
217
Reeb, 2001, p. 238. 218
Ibidem. 219
Ibidem, p. 239.
60
confidencialidade, não devendo revelar alguma informação relacionada às partes, ao litígio ou
ao procedimento, salvo se todas as partes consentem ou se o Presidente da Turma decide (art.
R43)220
. A institucionalização de arbitragem permite uniformizar procedimentos e
desenvolver uma jurisprudência harmoniosa perante conflitos esportivos comuns221
.
Existem dois tipos de litígios, em geral, que são submetidos ao TAS: os litígios de
natureza comercial e os litígios de natureza disciplinar. Os primeiros reagrupam
essencialmente os litígios que conduzem a execução de contratos. Essas questões ditas
comerciais, na maioria dos casos, são tratadas pelo TAS na qualidade de instância única; os
disciplinares representam o segundo grupo de litígios submetidos ao TAS222
. Os casos
disciplinares apresentam-se ao TAS na forma recursal, eis que são oriundos de condenações
anteriores que partem dos outros membros esportivos.
Existem três escritórios descentralizados ligados ao TAS, criados pelo ICAS, sendo dois
deles responsáveis em receber e notificar todos os atos procedimentais, facilitando o acesso ao
TAS pelas partes domiciliadas na Oceania ou na América, e um que também julga causas
relativas às lides esportivas. Em relação a esta, desde 1996, por criação do ICAS, há uma
Turma ad hoc do TAS, que decide em 24 horas, e sem recurso, os litígios referentes aos Jogos
Olímpicos através de um procedimento especial elaborado para essa ocasião223
. Essa Turma
ad hoc é composta por dois co-presidentes e doze árbitros presentes na vila olímpica durante
toda a duração dos Jogos. Essa boa idéia fez com que a Union Européenne de Football
Association (UEFA) solicitasse ao TAS a criação de uma turma ad hoc por ocasião do
Campeonato Europeu de Futebol. O sucesso dessas Turmas ad hoc contribuíram em dar
publicidade ao TAS perante a outros atores esportivos, mesmo fora do contexto olímpico. Isso
constitui uma etapa importante para o TAS, na perspectiva de fortalecer ainda mais sua
pertinência na família esportiva e independência perante o COI224
. Diante do exposto sobre a
organização do TAS, resta entender como esse órgão, enquanto centro da ordem jurídico-
desportiva, consegue dar eficácia às suas decisões em tal estrutura.
4.2 O Tribunal como centro da ordem jurídico-desportiva e a eficácia de
suas decisões
220
Ibidem; Kane, 2003, pp. 617-618. 221
Latty, 2007, p. 262-263. 222
Reeb, 2001, pp. 239-240. 223
Cf. sentença nº 02/005 – 18 de fevereiro de 2002 – T. Billington c/ Federação Internacional de Bobsleigh e
Toboggaining (FIBT). JDI, 2003, pp. 276-286, com extratos e comentários de Éric Loquin 224
Reeb, 2001, p. 240.
61
Para que possa haver uma diferenciação de um sistema social em relação a outro, é
necessário que exista o desenvolvimento simultâneo de uma diferenciação interna. Nesse
sentido, o sistema jurídico não é exceção. O termo “diferenciação interna” se entende como
“forma pela qual as relações entre os sistemas parciais (subsistemas) expressam a ordem do
sistema total”225
. A diferenciação interna também expressa tudo aquilo que pertence ao
sistema o que é seu entorno, sendo restringidas pelas disposições que ordenam as relações
entre os sistemas226
. Portanto, é importante saber qual é o posicionamento dos tribunais no
sistema jurídico, obtendo uma primeira referência na distinção legislação/jurisprudência –
distinção que serve para a autodescrição do sistema227
. Por muitos anos, as idéias de soberania
jurídica e soberania política se fundiam, mas tal concepção cedeu lugar para a diferenciação
entre legislar e julgar228
. A partir disso, o juiz aplica as leis, obedecendo as recomendações do
legislador. Este, ao mesmo tempo, não tem noção de como as novas leis se integrariam no
conjunto das premissas de decisão dos tribunais. Isso permite uma relação circular em que o
juiz deve procurar entender o que foi intentado pelo legislador ao observar o mundo, e,
simultaneamente, o legislador deve imaginar como a lei deverá ser trabalhada pelos
tribunais229
. A vinculação à lei se volta a si mesma quando se torna objeto de interpretação
dos tribunais, decidindo até que ponto podem resolver os casos a partir de sua interpretação, o
que estabelece os limites do próprio Direito na denegação de justiça e na exigência de que
devem decidir sobre todos os casos que lhes sejam apresentados230
. Gera-se a tríade produtora
do direito na necessidade de que se decida e a liberdade que surge ao buscar razões para
chegar a uma decisão, que resultam restringidas pelos pontos de vista da justiça. Quanto mais
legislação, mais competência judicial231
. A conseqüência disto se apresenta na relação circular
entre legislar e julgar: restrição recíproca do espaço de decisão232
.
Nota-se que há uma hierarquia entrelaçada entre julgar e legislar, ou seja, não existe a
sobreposição de um sobre o outro, mas uma relação de circularidade. Trazendo a reflexão da
separação do Poderes para o contexto da lex sportiva, “O procedimento jurisdicional deve
cumprir e aplicar a lei, mas é através dele que o texto legal toma um sentido normativo”. A
partir disso, “a própria validade daquilo a que se subordina a jurisdição depende da definição
225
Luhmann, 2005, p. 359. 226
Ibidem, p. 360. 227
Ibidem, p. 361. 228
Ibidem, p. 363. No último capítulo, o tema “soberania” será objeto de maior estudo. 229
Ibidem, p. 364. 230
Ibidem, p. 365. 231
Ibidem, p. 366. 232
Ibidem, p. 367.
62
jurisdicional”233
. Assim, a legislação esportiva (Estatutos, CMA, Carta Olímpica, contratos,
etc.) determina que o TAS é competente em aplicar suas disposições. Ao mesmo tempo, o
TAS está condicionado a aplicar a legislação a partir do que se encontra nela.
Essa relação de circularidade entre legislar e julgar contribui para a compreensão dos
limites da própria ordem. O TAS já proferiu sentença que afastava a possibilidade de se
aplicar o processo investigatório de outra ordem, tendo em vista à sanção de um atleta. Na
sentença nº 2007/O/1381, de 23 de novembro de 2007 – Real Federação Espanhola de
Ciclismo (RFEC) & V. c/ União Ciclista Internacional (UCI)234
, depois de uma operação
organizada pela guarda civil espanhola que visava combate ao doping, que terminou na prisão
de um médico próximo de ciclistas profissionais, um ciclista espanhol contestou um
procedimento disciplinar contra ele, diligenciado pela UCI, em razão de que certas peças da
instrução penal mostravam que o corredor estava ligado aos atos de doping. Embora a
Federação Espanhola de Ciclismo recusasse a abertura do procedimento – invocando que a
justiça espanhola proibira o uso de um dossiê penal com fins administrativos, a UCI decidiu
proibir a participação do ciclista nos campeonatos mundiais. A RFEC e o atleta contestaram
essa decisão junto ao TAS, alegando que, em primeiro lugar, a medida proibitiva só pode ser
tomada em razão de procedimento disciplinar aberto pela FN e, em segundo lugar, não foi
respeitado o direito de ser ouvido do atleta. A UCI argumentou que a sua regulamentação
condiciona a abertura de instrução desde a recepção de um relatório de análise, de um dossiê
de outra organização antidoping ou de outra peça ou informação de uma possível violação
antidoping, possibilitando que a FI pudesse proibir a participação do atleta em competições
mundiais. O TAS, por sua vez, decidiu que as federações devem agir no quadro de seus
regulamentos e que as decisões contrárias à regulamentação federal devem ser anuladas,
fundamentando-se no princípio geral da legalidade235
. Destarte, anula-se toda e qualquer
sanção disciplinar pronunciada com ausência de texto. O TAS afirmou que a decisão tomada
pela UCI feria, também, o princípio da igualdade, já que esta não existe na ilegalidade. Por
fim, “o conceito de impor as sanções disciplinares sobre a base de uma suspeita, que vai mais
longe que a admissão de uma responsabilidade objetiva, deve ser manuseado com muita
233
Neves, 2008, p. 191. 234
JDI, 2009, pp. 218-239, com extratos e comentários de Éric Loquin. Em sentido semelhante, sentença nº
2002/A/379 e 2002/A/382 – de 24 de junho de 2002. JDI, 2003, pp. 321-328, com extratos e comentários de
Gérald Simon. 235
Em tópico específico se analisará com maior profundidade o princípio da igualdade na lex sportiva.
63
prudência”236
, isto é, a reputação das provas mundiais e a serenidade da competição são
menores que os direitos fundamentais do atleta.
Essa decisão do TAS, como não poderia deixar de ser, é rica em detalhes que
mereceriam tópicos próprios, como, por exemplo, o conflito entre direitos fundamentais do
atleta e a serenidade da competição. Porém, neste momento, restringe-se, apenas, a mostrar
que os limites de sua decisão estão em sua periferia, ou seja, da legislação possível
encontradas nas regulamentações das FI‟s, especialmente. Além de decretar o que é
validamente jurídico nessa decisão, o TAS delimita as possibilidades de regulamentação das
FI‟s, assim como as FI‟s delimitam as possibilidade de decisão do TAS.
A finalidade do ato de decidir pode ser encarada como a absorção de insegurança, que
“transforma incompatibilidades indecidíveis em alternativas decidíveis”: não se elimina o
conflito, criando harmonia e consenso, mas transforma o conflito, absorvendo sua
insegurança. Ao contrário do Legislativo, existe um abrandamento das conseqüências das
decisões do Judiciário237
. A decisão judicial filtra das relações sociais conflitivas os aspectos
jurídicos, tornando-se um exercício controlado, que domestica as relações sociais de poder, o
que diminui a carga emocional da violência do direito, indo além da vingança, para uma força
simbólica de ameaça, como representação socialmente esperada238
. Aqui, a função de filtrar as
relações conflitivas é muito mais restrita, dado que envolve apenas atores esportivos. Mesmo
assim, as legislações que se encontram na periferia determinam qual problema exige a solução
do Tribunal enquanto centro da ordem.
O ponto de vista semiótico do ordenamento jurídico contribui para enxergar em que
contexto da centralidade do TAS na lex sportiva se encontra. Não se quer promover uma
mistura entre teorias com a introdução do pensamento semiótico, mas sim dar um enfoque
diverso que mostre como é possível a centralidade do TAS. No aspecto sintático, cujo
interesse é nas as interconexões entre signos normativos, o TAS, por exemplo, em sua
sentença nº 2002/O/373, de 18 de dezembro de 2003, C.O.A. & B. Scott c/ COI, reconhece
que a Carta Olímpica é o parâmetro hierárquico superior das regras administradas pelo
COI239
. A dimensão semântica “diz respeito à relação entre o signo normativo e sua
236
JDI, 2009, p. 231. 237
Ferraz Jr., 2008, pp. 289-290. 238
Ibidem, pp. 322-23. 239
Comentários em Latty, 2007, p. 200. O mesmo raciocínio para os conflitos entre FN e FI, prevalecendo a
última, conforme expõe sentença nº 2002/A/401 – de 10/01/2003 – IAAF c/ USATF. JDI, 2004, pp. 318-336,
com extratos e comentários de Dominique Hascher.
64
significação (aspecto conotativo), ou à relação entre o signo normativo e os objetos ou
situações objetivas a que se refere (aspecto denotativo)”240
. Por fim, a “pragmática evidencia
o relacionamento dos signos normativos com os seus utentes, ou seja, os emitentes e
destinatários das mensagens normativas, revelando o aspecto discursivo-dialógico da
linguagem jurídica”241
. Em relação a esses dois últimos aspectos, toda e qualquer decisão do
TAS, referente a situações previstas em legislação competente, trará conseqüências
especificamente aos atores do contexto da lex sportiva (árbitros, atletas, treinadores, clubes,
patrocinadores etc.) e não mais que eles. Mais do que decidir, o TAS se apresenta como um
estruturador da lex sportiva242
.
O TAS é encarado com seriedade, porque suas decisões tornam as regulações eficazes,
isto é, possui capacidade de produzir os efeitos que são próprios das regulações243
, o que
significa que é possível verificar a observância, aplicabilidade, exigibilidade ou
executoriedade da norma jurídica244
. Deixando de lado a observância para fixar-se nos outros
aspectos da eficácia da norma, “a execução em sentido estrito consiste numa atividade
impositiva de fato”, ao mesmo tempo em que “a aplicação normativa pode ser conceituada
como a criação de uma norma concreta a partir da fixação do significado de um texto
normativo abstrato em relação a um caso determinado”, acrescentando “não só a produção da
„norma de decisão‟ (individual) do caso, mas também a produção da „norma jurídica‟ (geral)
aplicável ao caso”245
. O TAS está inserido nessa totalidade da concretização das normas
jurídico-desportivas. Cabe, então, compreender como funciona o processo de concretização
das normas a partir de Müller, mas alertando que se irá além do plano estatal e constitucional
da metódica estruturante.
Nessa teoria, o teor literal é aquilo que serve para a formulação do programa da norma.
Ao mesmo tempo, o âmbito da norma é o recorte da realidade social na sua estrutura básica,
que o programa criou para si como âmbito de regulamentação. O âmbito da norma apresenta
componentes gerados ou não pelo direito, sendo um nexo formulado em termos de
possibilidade real de elementos estruturais destacados da realidade social pelo programa da
240
Neves, 1998, pp. 21-22. 241
Ibidem. Tal aspecto será melhor visto no próximo tópico, em que se perceberá a construção de padrões
interpretativos construídos pelo TAS. 242
Para maiores explicações a respeito da relação entre semiótica e validade da decisão, Cf. Ferraz Jr., 2006, pp.
93-112. 243
Carvalho, 2006, 54-61. 244
Neves, 2007, p. 43. 245
Ibidem, p. 45.
65
norma. A normatividade, por sua vez, designa a qualidade dinâmica de uma norma, tanto para
ordenar a realidade, quanto para ser condicionada por ela. Dessa forma, afirma-se que o teor
literal não é tudo na construção da norma, pois o conteúdo depende, também, da realidade,
colocando os elementos “normativos” e “empíricos” em interdependência e em igual
hierarquia246
.
O esforço da metódica é interligar a ciência jurídica com a teoria da comunicação, que
faz da decisão uma orientação futura de atuação. Os fatores tipológicos da estrutura da norma
e das condições distintas da concretização são: a peculiaridade do âmbito material; a
confiabilidade do texto da norma na formulação do programa da norma; a prescrição do
programa da norma formulado no teor literal da prescrição por ocasião do âmbito da norma do
âmbito material; o grau e o estado do tratamento de uma área de regulamentação dentro e fora
da ciência e da práxis jurídicas; a posição normativa da prescrição jurídica a ser
concretizada247
. No que se refere à interpretação do teor literal, ela é um dos mais importantes
elementos, mas é só um elemento. Ela contribui a “pré-compreensão” da ciência jurídica e do
fato da concretização estar referida ao caso. Assim, não se pode reduzir o papel da
concretização a um procedimento meramente cognitivo, pois a normatividade comprova-se na
regulamentação de questões jurídicas concretas, sendo exigida somente no processo de tais
regulamentações e só com isso adquire eficácia. Acrescenta-se que só se interpreta uma
norma porque ela deve ser aplicada a um caso. Portanto, a norma jurídica (núcleo
materialmente circunstritível da ordem normativa) não está concluída substancialmente. Ela é
concretizada com a norma de decisão no caso individual248
.
Para a construção da norma de decisão, a norma jurídica não deve se descolar do caso
jurídico, nem o contrário. Os dois fornecem de forma complementar os elementos necessários
à decisão jurídica. Isso reforça a idéia de que a norma só faz sentido com vistas a um caso a
ser solucionado. Daí a se afirmar que a concretização da norma jurídica em norma de decisão
e do conjunto de fatos, juridicamente ainda não decidido, em caso jurídico decidido devem
comprovar a convergência material de ambos, publicá-la e fundamentá-la. Nesse contexto, a
concretização não é “reelaboração” de valorações legislativas. É fundamental o papel da pré-
compreensão jurídica, pois a dogmática, a teoria e a metódica do direito devem disponibilizar
fundamentos para os meios especificamente jurídicos desse caráter de pré-julgamento e pré-
246
Müller, 2000, pp. 53-58. 247
Ibidem, pp. 58-60. 248
Ibidem, pp. 61-62.
66
compreensão normativa e materialmente referida do universo jurídico, colocando uma nova
perspectiva à teoria clássica das fontes249
. Além do caráter atualizador, fornecedor de critérios
e efetivador da concretização, ela assegura a garantia da legalidade e a preservação da
legitimidade de que é aceito o conteúdo como correto pelos atores sociais envolvidos, que só
podem ser mantidas pela ordem. A metódica estruturante serve como elo de compreensão da
concretização estruturada e as tarefas das funções individuais da práxis jurídica, o que permite
falar em elementos do processo de concretização, não em “estágios” de interpretação250
.
Para que esse processo de concretização possa ocorrer, existe na lex sportiva uma rede
atores esportivos completamente vinculados às decisões do TAS, por causa das regulações
que condicionam à participação na vida esportiva. O art. R27 do Código de Arbitragem
expressa que o procedimento arbitral se aplica quando as partes convencionam se submeter ao
TAS um litígio relativo ao esporte, fruto de uma cláusula arbitral inserida em um contrato ou
um regulamento de uma convenção de arbitragem ulterior ou dizem respeito a uma decisão
tomada por algum órgão esportivo, quando previsto em seus estatutos a convenção particular
recursal de arbitragem. Com relação a esta última parte, referente à previsão recursal, ela está
mais detalhada no art. R47, que prevê que a parte que pretende recorrer tem de esgotar todos
os recursos antes de se dirigir ao TAS. Cabe ressaltar que, segundo o art. R37, após a
homologação do recurso, o TAS é a única autoridade competente para ordenar medidas
provisórias e de proteção. A jurisprudência suíça basicamente reconhece a exclusividade do
TAS, podendo este, inclusive, requerer a assistência de um juiz suíço para impor alguma
medida provisória e protetiva, caso as partes não cumpram voluntariamente, conforme
expresso, em legislação suíça, no artigo 183(2) da Lei federal sobre o direito internacional251
.
Esses artigos mencionados do Código de Arbitragem contribuem para que haja um efeito
cascata das decisões do TAS, possibilitando que do fenômeno da deslocalização da decisão
do TAS se chegue à concretização multilocalizada das várias FN‟s252
.
A sentença nº 2005/A/952 – Cole c/ FAPL 24 – de 24 de janeiro de 2006253
demonstra
essa necessidade para que haja eficácia nas decisões do TAS. Um jogador de futebol
profissional inglês, Ashley Cole, sob contrato com o Arsenal FC, teve um encontro com
representantes do Chelsea, tendo em vista a negociação de um contrato de trabalho com este
249
Ibidem, pp. 63-66. 250
Ibidem, pp. 68-70. 251
Vetter, 2008, pp. 5-6. 252
Em sentido próximo, Latty, 2007, p. 523. 253
JDI, 2007, pp. 202-207, com extratos e comentários de Éric Loquin.
67
clube. O jogador violou as disposições da regra K5 do regulamento da Football Association
Premier League (FAPL), que proíbe qualquer jogador, sob contrato, de negociar com outro
clube. O jogador foi sancionado pela Comissão de disciplina da liga, aplicando-lhe uma
multa, que foi reduzida posteriormente. Ainda insatisfeito com a multa, o jogador recorreu
desta última decisão junto ao TAS. Contudo, à época, TAS afirmou que
O estatuto da FIFA não contém regras obrigando uma federação nacional ou uma
liga a reconhecer um direito de recorrer de suas decisões junto ao TAS. Os artigos
59-61 do estatuto da FIFA e a circular da FIFA de 12 de dezembro de 2002 não
podem ser interpretados como prevendo qualquer direito de recurso254
.
No momento do recurso, o estatuto e os regulamentos da FALP não faziam nenhuma
referência à possibilidade de um recurso de suas decisões junto ao TAS. Nem mesmo os
regulamentos da FIFA obrigavam à FALP a se submeter ao TAS. Após o recebimento da
causa, mas antes da decisão do Tribunal, a FIFA emendou seu estatuto reconhecendo a
jurisdição do TAS, com aplicação a partir de 1º de dezembro de 2005. Para situações como
esta, o TAS aplica o princípio do “perpetuatio fori”, que determina que a jurisdição
competente é determinada no momento em que a demanda é proposta. Desse caso, pode-se
concluir que as decisões do TAS só são eficazes com o reconhecimento de seus atores
esportivos, especificamente, com o reconhecimento do TAS em sua legislação. Contudo, um
atleta licenciado por uma FI para participar de prova internacional não pode alegar que não
aceitou cláusula de atribuição de competência do TAS. Isso mostra que existe cláusula de
arbitragem por referência no âmbito do Tribunal Arbitral do Esporte, isto é, “a cláusula
inserida em um documento não assinado pelo atleta (regulamento federal) ao qual retorna um
documento assinado pelo atleta, a licença federal”255
. Mais do que eficazes, as decisões do
TAS produzem algo igualmente importante na afirmação de sua autonomia: o
desenvolvimento de padrões interpretativos, a partir de seus precedentes.
4.3 Padrões interpretativos próprios
Toda decisão tem sempre relação com uma alternativa, em que há um ou mais caminhos
elegíveis – alguns, resultados de acontecimentos e de subseqüentes decisões que nasceram de
uma primeira decisão. Estas decisões subseqüentes são previsíveis dentro de margem muito
restrita256
. Essa margem de previsibilidade das decisões vai abrir espaço para a construção de
254
Ibidem, p. 202. 255
Sentença nº 2002/A/431 – de 2 de maio de 2003 – Union Cycliste Internationale c/ Fédération française de
cyclisme. JDI, 2005, pp. 1309-1312, com extratos e comentários de Éric Loquin. 256
Luhmann, 2005, p. 369.
68
uma jurisprudência, mesmo em Tribunais arbitrais. A questão é importante para a criação de
padrões interpretativos ou princípios gerais de direito formulados por tais Tribunais257
.
A jurisprudência arbitral apresenta singularidades que a distinguem da jurisprudência
judiciária estatal. A jurisprudência arbitral se exprime fora de quase toda autoridade
reguladora, não sendo submetidas ao poder de revisão de mérito do juiz estatal. Segundo
Loquin, nem mesmo a Convenção de Nova York e as legislações estatais sobre a arbitragem
internacional permitem ao juiz revisar as questões de fundo da sentença258
.
Ao contrário da lex mercatoria259
, a jurisprudência TAS se mostra homogênea e
próspera, dada presença de autoridades com posição monopolista, como as FI‟s, a AMA e o
COI, que regulam, orientam e impõem. Embora provindas de entidades privadas, essas regras,
muitas vezes, vão possuir características administrativa e, até, criminais260
. Mesmo havendo
uma compactação da rede de atores esportivos, os árbitros se vêem cada vez mais na
necessidade de utilizar os precedentes arbitrais com o intuito de dar coerência e
previsibilidade às soluções de casos semelhantes261
, o que, para a autora Kaufmann-Kohler,
isso está ligado à “obrigação moral” daqueles que decidem, possibilitando a construção de
precedentes262
. Discordo dessa análise, acreditando que esse fenômeno, sob o enfoque
jurídico, se deve à realização do princípio da igualdade, que, em tópico específico, será mais
bem analisado.
As fortes semelhanças dos diversos estatutos das FI‟s, somadas ao desenvolvimento das
normas centrais no Movimento olímpico e a criação do Código Mundial Antidoping, mostram
uma tendência à harmonização da lex sportiva, suscitando uma jurisprudência unitária, eis que
o TAS é trazido a se pronunciar sobre a validade das normas no conjunto de regras jurídico-
desportivas, o que trará a sensação de que há um teor global nas interpretações do TAS263
. A
tendência unitária da jurisprudência do TAS é reforçada pela utilização de padrões
interpretativos, oriundo de precedentes, que alimenta a consistência de sua ordem jurídica.
Serve, portanto, como critério jurídico de decisão, merecendo, por si só, maiores comentários.
Apesar de acreditar-se que o termo mais preciso é o de “critério”, em detrimento do termo
257
Em sentido semelhante, mas ligado à lex mercatoria, Loquin, 2009, p. 153. 258
Ibidem, p. 155. 259
Ibidem, p. 161-162. 260
Kaufmann-Kohler, 2007, p. 376. 261
Loquin, 2009, p. 164. 262
Kaufmann-Kohler, 2007, p. 374-375. 263
Latty, 2007, p. 267.
69
“fonte”, ainda assim parece ser importante debater que a jurisprudência e seus padrões
interpretativos servem como fundamento uma decisão (ao contrário do que pensa Ferraz Jr.).
Para Ferraz Jr.264
, a consistência e completude do ordenamento apontam para o
problema dos centros produtores de normas e sua unidade, pois é possível afirmar que existem
conflitos normativos. Isso tudo é escondido nas discussões das fontes do direito. Formou-se
uma concepção de fontes formais e materiais do direito, trazendo um critério para os centros
produtores do direito e sistematizava-os coerentemente, mas dificultava a tarefa de ter o
ordenamento como unidade. Atualmente, a expressão fonte do direito exige critérios para a
qualificação jurídica de condutas sociais. A teoria das fontes mostra-se como reguladora do
aparecimento contínuo e plural de normas de comportamento, gerando regras estruturais.
Assim, a dogmática analítica utiliza o termo fonte para descrever os modos de formação das
normas jurídicas. O autor coloca como fontes formais a Constituição, legislação, Tratados
Internacionais, etc., mas a jurisprudência no sistema romanístico caracteriza-se por não
vincular juízes inferiores aos superiores, nem mesmo às suas próprias decisões – apesar de
não se negar as interpretações uniformes, ou em casos de lacunas (formando norma). O autor
julga que ela nesse sistema não chega a ser fonte do direito.
Não se ignora a importância das “fontes formais” como critérios e programas do sistema
jurídico. Porém, conforme Alf Ross265
demonstra, as fontes do direito são aquelas que
oferecem relevância argumentativa no processo decisório da autoridade. A diferença entre
fontes formais e materiais não é, sempre, tão nítida, o que reforça a ideia de que o termo
adequado é o de “critérios”, pois o que se valerá é a estrutura que se põe ao convencimento.
Em razão disso, a jurisprudência é um forte critério do direito, principalmente, desportivo,
quando, a partir dela, se busca “congruência com outras soluções no interior do sistema”266
.
A sentença nº 2004/A/605 – Pamesa Valencia c/ Euroleague Basketball – de 12 de maio
de 2005267
reflete bem a construção da jurisprudência arbitral e o seu uso como critério. Ela é
oriunda de um recurso contra uma decisão da Euroleague em razão da recusa de um clube em
jogar em Israel, em função do momento político, em março de 2004. A condenação foi com a
derrota de 0 a 20 e a indenização dos organizadores da competição responsáveis pela partida
não jogada, assim como o pagamento de multa prevista em regulamento disciplinar. Essa
264
Ferraz Jr.,2008, pp. 190-214. 265
Ross, 2003, pp. 101-134 266
Neves, 2008, p. 208. 267
JDI, 2007, pp. 250-254, com extratos e comentários de Dominique Hascher.
70
sentença retorna a um problema idêntico tratado na decisão nº 2002/A/388 – Ulker Sport c/
Euroleague – de 10 de setembro de 2002268
. Trazendo os argumentos desta decisão, o TAS
afirmou:
É lamentável que no mundo moderno muitos lugares de tempos em tempos tornam
focos de crise aguda... Terrorismo é a praga da nossa época... Nessa medida, o
Recurso levantou uma matéria de importância geral no mundo esportivo... Mas, se
possível, o esporte, como a vida, deve seguir em frente. Apesar da violência em
Israel, não há exemplo de atletas sendo alvos ou vítimas. Outros times visitaram
Israel no tempo da questão e retornaram ilesos269
.
Como não houve, por parte do recorrente, uma “justificativa adequada”, o TAS manteve
a decisão punitiva da Euroleague. Conseqüentemente, desta sentença, conclui-se que
prevalece a utilização dos precedentes, o que favorece a harmonização das soluções jurídico-
desportivas270
. Essa congruência de precedentes proporciona a construção e reutilização de
padrões interpretativos do TAS.
O fair play, como um padrão interpretativo, foi criado a partir de legislações esportivas.
Dado o crescimento da complexidade das competições e a dificuldade de garantia de
honestidade da competição, criou-se, em forma de princípio, o fair play, que abarcaria
situações mais amplas que as regras jurídicas poderiam inicialmente imaginar. Porém,
somente com as decisões do TAS que o princípio saiu da abstração e ganhou forma em função
dos novos casos que apareciam. Ou seja, o princípio precisava se tornar uma regra para que
pudesse se concretizar. Depois de percorrido esse caminho, foi possível verificar a construção
do padrão interpretativo a respeito do fair play. A sentença da Turma ad hoc (JO Nagano
1998) 004-005, de 18 de fevereiro de 1998 – CON da República Tcheca, CON da Suécia e S.
c/ Federação Internacional de Hockey sobre o Gelo (IIHF)271
ilustra como foi possível regrar
sobre tal princípio.
Esta sentença refere-se à presença de um jogador na equipe nacional sueca de hockey
sobre o gelo, que perdera, em 1995, a nacionalidade sueca, resultado da sua naturalização
americana. A lei sueca não admite nessa hipótese a dupla nacionalidade. Esse jogador
participara dos três primeiros jogos disputados pela seleção sueca, com duas vitórias de sua
equipe. Ao tomar conhecimento do fato, a IIHF decidiu eliminar o jogador da competição,
268
Tal sentença está disponível no JDI, 2004, pp. 336-340, com extratos e comentários de Dominique Hascher. 269
JDI, 2007, p. 252. 270
Em posicionamento semelhante, a sentença da Turma ad hoc de 5 de fevereiro de 2002 – S. Prusis c/ COI e
Federação Internacional de Bobsleigh e de Luge. JDI, 2003, pp. 263-271, com extratos e comentários de Éric
Loquin. 271
JDI, 2001, pp. 259-268, com extratos e comentários de Éric Loquin.
71
mas não penalizou a equipe sueca. O Comitê Olímpico Tcheco, e não os CON‟s das equipes
que foram batidas pela equipe sueca, contestou tal decisão. O argumento levantado foi que a
equipe tcheca esperava enfrentar nas quartas-de-final do torneio um adversário menos capaz,
e que isso seria possível, caso a equipe sueca fosse sancionada pela perda de seus dois
primeiros jogos. A demanda do Comitê tcheco fundava-se no artigo 204(7) do regulamento do
IIHF, que prevê que, se a não-qualificação de um ou mais jogadores é demonstrada no curso
do campeonato, os jogos realizados com os jogadores devem ser considerados como perdidos.
Contudo, a perda dos jogos vencidos pela equipe sueca traria conseqüências à competição
Olímpica272
. Nessa complicada situação, o TAS recorreu ao princípio do fair play:
Com relação ao Comitê Olímpico tcheco, este está singularmente mal fundado em
insistir sobre a aplicação de uma regra nas circunstâncias em que sua equipe não foi
ao menos afetada pela infração, não tendo mesmo jogado na divisão da Suécia. A
equipe tcheca deseja ser tratada como aqueles que alcançaram um resultado melhor
nas partidas da primeira rodada, enquanto que a Rússia [classificada em primeiro no
grupo da República Tcheca e que não questionou a decisão da IIHF] seria privada
dos frutos de sua vitória. A Turma estima que essa atitude contraria o ideal olímpico
do fair play273
.
Ponderando que a equipe tcheca não foi, nem de perto, a maior prejudicada, o TAS
coloca à frente o princípio do fair play ligado ao “ideal olímpico”. O princípio é oriundo da
Carta Olímpica e afirmado como norma fundamental que rege as provas olímpicas. Tal
princípio permite rejeitar a interpretação estrita do regulamento da IIHF, descartando esta
regra para as competições olímpicas, pois falsearia a sinceridade dos resultados finais e uma
melhor adequação. No direito esportivo, é fraudulento utilizar uma regra para obter um
resultado que fira o princípio do fair play. No caso, havia um paradoxo: uma regra destinada a
assegurar a sinceridade das competições estava servindo de argumento perverso que falsearia
os resultados adquiridos no campo de jogo pelas equipes não culpadas274
. O TAS preferiu
afastar a regra, aplicando o princípio. Em conseqüência disso, criou um padrão
interpretativo275
.
A responsabilidade estrita é outra criação interpretativa do TAS. Ao contrário do fair
play, a responsabilidade estrita não possuía, inicialmente, um correspondente legal específico
que a justificasse. Posteriormente, algumas FI‟s consagraram-no em suas legislações, mas foi
no CMA que possibilitou maior visibilidade e contribuição na uniformidade276
. A sentença nº
272
Ibidem, pp. 266-267. 273
Ibidem, p. 265. 274
Ibidem, pp. 267-268. 275
Cf. Foster, 2005, pp. 4-5. 276
Artigo 2.1 do CMA.
72
95/141, de 22 de abril de 1996 – C. c/ Federação Internacional de Natação Amadora
(FINA)277
expõe como funciona esse instrumento. Depois de um exame antidoping, foi
encontrada no corpo da nadadora C. substância proibida na legislação da FINA. Já na
legislação previa que “a só presença do produto proibido no corpo do atleta constituía uma
violação da proibição do doping e que [...] a só absorção de estimulantes justificava uma
sanção imediata”278
. A consagração da responsabilidade estrita afasta a existência de culpa do
atleta para que a pena seja aplicada. A recorrente criticou esse sistema de responsabilidade
sem culpa. Todavia, o TAS afirmou que a aplicação literal do princípio geral Nulla poena sine
culpa “poderia ter conseqüências nefastas sobre a eficácia das medidas antidoping”, pois as
“federações esportivas deveriam provar o caráter intencional do ato (vontade de se dopar para
melhorar performances) para poder aplicar sanção”279
. Nessa situação, o TAS acredita que a
responsabilidade estrita deve prevalecer, principalmente, quando a igualdade esportiva está
em jogo. Para o Tribunal, C. não reuniu o conjunto de provas formais que pudesse reverter a
presunção de culpa. Porém, o recurso foi parcialmente aceito, porque a sanção pronunciada
não é proporcional às circunstâncias da causa, tendo em vista os depoimentos que apontam
para uma excelente moralidade e comportamento exemplar da atleta. Assim, a pena da atleta
foi reduzida de dois anos de suspensão para a possibilidade imediata de competir a partir da
sentença280
. Nota-se que, mesmo excluindo a análise da existência de culpa, não é automática
a aplicação da pena sob o argumento da responsabilidade estrita281
.
A responsabilidade estrita é encarada como fundamental para que se concretize a
igualdade esportiva. O resguardo desta é grande o suficiente para reinterpretar a presunção de
inocência. Na sentença nº 98/214, de 17 de março de 1999 – B. c/ Federação Internacional de
Judô (FIJ)282
, o TAS assim se pronunciou sobre o tema:
Todo atleta se beneficia da presunção da inocência até que a presença de uma
substância proibida em seu organismo seja encontrada. A prova dessa presença
incumbe à organização esportiva responsável do controle antidoping. Segundo a
jurisprudência constante do TAS, o sistema da responsabilidade objetiva deve
prevalecer quando a igualdade esportiva está em jogo. A presença de uma substância
proibida no corpo do atleta tem duas conseqüências. A primeira, é que o atleta está
desqualificado da competição à ocasião da qual o controle antidoping teve seu lugar.
Essa sanção intervém pela igualdade esportiva em face de outros atletas que
277
JDI, 2001, pp. 282-291, com extratos e comentários de Gérald Simon. 278
Ibidem, p. 283. 279
Ibidem, p. 286. 280
Ibidem, p. 288. 281
Sobre temática semelhante e que reforça a ausência de penas automáticas, Cf. sentença nº 00/011 Andreea
Raducan c/ Comitê Olímpico Internacional, de 28 de setembro de 2000, da divisão ad hoc do TAS. 282
JDI, 2002, pp. 336-340, com extratos e comentários de Gérald Simon.
73
participaram da competição. A segunda conseqüência é que a presença da substância
proibida influencia uma presunção de culpabilidade que pode ser revertido pelo
atleta.283
Assim como na presunção de inocência, na sentença nº 2001/A/317 A. c/ Fédération
Internationale de Luttes Associées (FILA), de 9 de julho de 2001, o TAS afasta também a
aplicação do princípio geral in dubio pro reo sob o argumento de que “as relações entre
Federação Internacional e atleta são de natureza civil e não deixa espaço para a aplicação de
princípios de direito penal”. Afastar a aplicação deste princípio é possível na ordem
desportiva, mas não sob esse argumento, eis que o próprio TAS utiliza vários dos princípios
gerais do direito penal para justificar sua decisão, como mais à frente se demonstrará. O que
se quer deixar claro, apesar desta argumentação, é que o in dubio pro reo é desconsiderado,
também, em função da igualdade esportiva, ou seja, a igualdade de chances para vencer uma
competição.
O TAS é capaz de auto-limitar sua competência em julgar quando estabelece a não-
intervenção nas decisões dos esportes oficiais, dando outro sentido, assim, ao controle sobre
as “regras do jogo”. Apesar de defender que essas regras são meramente técnicas e não
jurídicas, esse é o pressuposto para não intervir nas decisões tomadas no campo de jogo. A
sentença da Turma ad hoc do TAS (JO Atlanta 1996) nº 006, de 1º de agosto de 1996 – M. c/
Associação Internacional de Boxe Amador (AIBA) 284
– relata o caso do atleta que se dirigiu
ao TAS para requerer a vitória no ringue. Alegou que foi atingido por golpes baixos por outro
atleta na competição de boxe dos Jogos Olímpicos. Trazendo elementos da doutrina, do
direito comparado esportivo e da própria jurisprudência, o TAS afirmou que se controlasse as
regras do jogo estaria no campo do arbitrário ou do ilegal. Nesse contexto, o TAS justificou:
No caso, a decisão do árbitro, confirmada pela AIBA, é uma decisão puramente
técnica [...]. A aplicação dessa regulamentação não pode ser revista pela Turma ad
hoc. Essa limitação é particularmente importante que, longe do curso da ação, a
Turma ad hoc é pior localizada para decidir que o árbitro do campo ou os juizes de
ringue; a limitação sub-mencionada deve se fixar às decisões ou normas técnicas; ela
não se aplica quando tais decisões são tomadas em violação da lei, as
regulamentações sociais ou dos princípios gerais do direito, que não é o caso em
espécie285
.
Como o atleta não comprovou má-fé ou abuso dos árbitros, o TAS rejeitou seu recurso.
Em decisão semelhante, a sentença nº 02/007, de 23 de fevereiro de 2002 – Comitê Olímpico
283
Ibidem, p. 336. 284
JDI, 2001, pp. 268-282, com extratos e comentários de Gérald Simon. 285
Ibidem, p. 270.
74
Coreano c/ International Skating Union (ISU)286
– o TAS rejeitou a idéia de assistir o vídeo
demonstrando que houve erro ou abuso do árbitro, sob o risco de embarcar em uma revisão
puramente técnica do campo de jogo. Para o Tribunal, o erro faz parte do jogo, seja pelos
atletas ou por juízes. Porém, nem todo erro pode ser revisto, não dando abertura para que o
atleta conteste uma decisão porque ele concorda ou não com o juiz287
.
Em decisão diferente sobre o mesmo tema, a sentença nº A/340, de 19 de março de
2002 – S. c/ Federação Internacional de Ginástica (FIG)288
– trata do caso em que foram dadas
notas desproporcionais às performances apresentadas. O relatório que apresentava essa
aplicação absurda de notas foi confirmado por testemunhas, além de ter sido objeto de críticas
da imprensa especializada. A recorrente fazia parte do júri que foi punido pela Federação
Internacional. Descartando o princípio da presunção de inocência, o TAS considerou que
houve abuso por parte do júri e que a recorrente administrou condenavelmente a prova e não
observou as obrigações decorrentes do código de pontos da FIG. Com isso, o recurso foi
rejeitado.
Foram apresentados alguns dos principais preceitos interpretativos construídos pelo
TAS. Foi possível notar que os mais diversos esportes, regidos pelos mais diversos Estatutos,
possuíram observações semelhantes levando em conta problemas jurídico-desportivos
comuns. Contudo, o TAS faz uso de outro instrumento que possibilita uma maior
harmonização da lex sportiva sem sair do contexto jurídico: os princípios gerais de direito.
4.4 Princípios gerais de direito revisitados
Constituindo reminiscência do direito natural, os princípios gerais de direito
apresentam-se como regras estruturais do sistema jurídico. São na verdade máximas que se
consolidaram nas ordens jurídicas do ocidente, podendo ser compostas por vezes princípios e
regras. Adquirindo o caráter de norma geral, os princípios gerais, em sua forma indefinida,
colaboram na coesão entre normas como um todo. Contribuem com a imperatividade total do
sistema e servem de metalinguagem para as demais fontes289
. Os princípios gerais são
constituídos de regras preexistentes, de origem expressa ou induzida das diversas ordens
jurídicas, principalmente em casos de omissão ou lacunas da lei. No primeiro caso, trata-se de
286
JDI, 2003, pp. 303-308, com extratos e comentários de Gérald Simon. 287
Ibidem, p. 306. 288
Ibidem, pp. 308-321, com extratos e comentários de Gérald Simon. 289
Ferraz Jr., 2008, p. 213; Neves, 2010, p. 9. Em Bobbio, 1999, p. 158, existe uma diferença com o autor
mencionado. Apesar de considerar uma norma geral, afirma que os princípios gerais se apresentam como
normas, o que no primeiro não é admitido.
75
autointegração; no segundo, heterointegração. Na proposta de estruturar, a sua utilização
recorrente reforça a construção de uma jurisprudência arbitral290
. Além disso, o que tornam os
princípios gerais de direito um ponto interessante de estudo sob a óptica da lex sportiva é o
fato de serem utilizados a partir da heterointegração, mas sempre com toques transformadores
da sua utilização original.
Uma parte importante dos princípios gerais de direito declarados pelo TAS demonstra
forte inspiração nas ordens estatai. Todavia, na maior partes das decisões, os princípios gerais
aplicados pelo TAS não são tirados de uma ordem estatal identificada. Certas Turmas
demonstram que o princípio “é compartilhado por uma pluralidade de ordens jurídicas
nacionais, o que justifica sua aplicação ao esporte internacional”291
. Na decisão nº 98/200, de
20 de agosto de 1999 – AEK Athens e SK Slavia Prague c/ Union of European Football
Associations (UEFA)292
, o Tribunal afirma que, “dado o caráter transnacional das
competições esportivas, os efeitos da conduta e os atos das Federações Internacionais se
fazem sentir em toda a comunidade esportiva de vários países”. Os atos das FI‟s não podem se
reduzir a sua própria legislação e aos condicionamentos jurídicos dos países sedes. Portanto,
os princípios gerais de direito, “elaborados a partir da leitura de um denominador comparativo
ou comum de várias ordens jurídicas nacionais”, tornam mais consistente a argumentação
jurídica na lex sportiva, servindo, também, como elemento de conexão com as outras ordens.
O processo de abstração do princípio sucede a consideração de sua própria ordem. Ou
seja, ela deve ser capaz de ser adaptável à ordem transnacional desportiva, sendo compatível
com as necessidades desta. Isso explica a postura do TAS em recusar a aplicação do princípio
geral de direito da nulla poena sine culpa. O princípio precisa de adaptação à ordem,
ganhando, por vezes, novas significações não pensadas inicialmente. É o caso dos princípios
gerais oriundos de matérias penais das ordens estatais, que, na lex sportiva, ganha outro modo
de ser observado, isto é, se desnacionaliza e se adapta ao ambiente transnacional293
. Essa
transposição parece mais uma “irritação jurídica”, pois
Institutos jurídicos não podem ser simplesmente retirados de um contexto e
introduzidos em outros, como se faz com a transferência de uma peça de uma
máquina para outra. Institutos jurídicos são tecidos delicados, que devem ser
290
Loquin, 2009, pp. 173 e 174. 291
Latty, 2007, 305-306. 292
Com extratos e comentários de Latty, 2007, p. 306. 293
Latty, 2007, pp. 310-311.
76
plantados com muita cautela e ser cuidados em seu novo ambiente com bastante
zelo294
.
Quando um instituto estrangeiro à ordem esportiva é imposta para promover uma
mudança, “ela atua como uma irritação, uma dolorosa perturbação do mecanismo jurídico que
redunda numa cadeia de novos e inesperados acontecimentos”295
. Diante dessa irritação,
compreende-se porque se busca adequar na ordem transnacional desportiva, por exemplo, o
doping aos princípios gerais de direito referentes a matérias penais, aproximando tal ato a uma
postura criminal. Porém, ao mesmo tempo, esta conduta induz a princípios gerais que
estruturarão maiores possibilidades de defesa ao autor.
A sentença da Turma ad hoc (JO Nagano 1998) 002, de 12 de fevereiro de 1998 – R. c/
Comitê Olímpico Internacional (COI)296
– faz bom uso da utilização do princípio da
legalidade. Após ter sido descoberta a utilização de maconha na urina de um atleta, a
comissão executiva do COI, com indicação da comissão médica, decidiu retirar a medalha de
ouro que tinha sido atribuída na prova de que o atleta participara. O atleta recorreu da decisão,
alegando que não havia base legal para a imposição de tal pena. O TAS acatou a interpretação
do recorrente. Afirmou que reconhecia que, do ponto de vista médico e ético, o uso de
maconha é uma preocupação social séria, mas que “não é um tribunal penal e não pode nem
promulgar, nem aplicar as leis penais”. Assim, “o TAS deve decidir sob o contexto do direito
esportivo, não podendo inventar proibições ou sanções quando elas não existem”297
.
Em situação e esporte diversos, mas com argumentação parecida, o TAS, em decisão nº
2009/A/1935, de 12 de novembro de 2009 – Federação Real Marroquina de Futebol c/
FIFA298
– reforçou a legalidade da estrutura esportiva ao declarar a necessidade princípio da
nulla poena sine lege. Nas eliminatórias da Copa do Mundo de futebol, um jogador da
seleção do Togo recebeu dois cartões amarelos em duas partidas seguidas. A FIFA confirmou
à FN que o atleta estava suspenso automaticamente do jogo seguinte contra o Gabão. No
entanto, o jogador participou deste jogo e de mais outro, contra Marrocos. A Federação
marroquina reclamou que, como ele não cumprira sua punição, deveria cumprir no jogo entre
Marrocos x Togo, concluindo que esta seleção deveria perder esse jogo pelo placar de 3x0. A
294
Teubner, 2005, p. 156. 295
Ibidem, p. 157. 296
JDI, 2001, pp. 291-297, com extratos e comentários de Gérald Simon. Em sentido semelhante, JDI, 2002, pp.
335-340, com extratos e comentários de Gérald Simon da decisão nº 99/A/230, de 20 de dezembro de 1999 – B.
c/ Federação Internacional de Judô (FIJ). 297
Ibidem, p. 291. 298
JDI, 2010, pp. 260-278, com extratos e comentários de Éric Loquin.
77
FIFA informou que não aplicava a suspensão ao jogo seguinte por falta de previsão legal.
Diante da negativa da FIFA em dar-lhe os pontos da partida, a Federação marroquina recorreu
ao TAS299
. Não entrando no mérito se os cartões amarelos eram ou não justificáveis (regras
do jogo), o TAS se fixou na questão se o jogador era qualificável para o jogo contra
Marrocos300
. Para preservar os direitos elementares do indivíduo perseguido disciplinarmente,
o TAS considera importante o princípio da nulla poena sine lege, sendo impossível considerar
uma sanção aplicável fundando-se em um artigo que não prevê expressamente ou indica a
data à qual essa hipotética suspensão deve ser realizada301
. Com isso, rejeitou o recurso
proposto pela FN marroquina.
A sentença nº 2000/A/289, de 12 de janeiro de 2001 – União Ciclista Internacional
(UCI) c/ C. & Federação Francesa de Ciclismo (FFC) retrata a utilização do princípio geral do
lex mitior. Antes de terem sido criados a AMA e o CMA, a UCI criou um regulamento
antidoping, que compreendia a lista de substâncias, métodos e as provas esportivas que iriam
ser objeto do exame antidoping. O atleta C., francês, havia declarado em entrevista, em abril
de 2000, que fez uso de substâncias proibidas, inclusive, em competição de 1996, quando foi
campeão mundial. Sua confissão, segundo ele, tinha o intuito de chamar a atenção para o
fenômeno do doping. Em maio de 2000, o presidente da comissão antidoping da FI pediu à
Federação francesa que abrisse um processo disciplinar contra C., nos termos da legislação da
FI. Em junho, a Federação Francesa condenou a um ano acompanhado de sursis, uma multa e
a desqualificação de seu título mundial. Em agosto de 2000, a UCI recorreu do sursis
concedido a C. por causa de sua violação ao regulamento da FI. Contudo, segundo o TAS, o
regulamento da época da infração deveria ser aplicado, pois era mais benéfico ao atleta. No
caso, isso configurava a aplicação do princípio da lex mitior:
Segundo esse princípio, igualmente aplicado em matéria penal e regularmente
adotado pelo TAS segundo uma jurisprudência constante, a autoridade encarregada
de sancionar deve aplicar lei nova, se esta é mais favorável ao réu, mesmo quando os
fatos incriminados tenham ocorrido antes da entrada em vigor.
A aplicação desse princípio teve em vista “o caráter quase penal das sanções
disciplinares que elas permitem infligir”. Assim, o TAS decidiu diminuir o prazo de
suspensão, mas com três meses de sursis, e manteve as outras penas de multa e
desqualificação do título vencido. É possível notar que, em determinados momentos, o TAS
299
Ibidem, p. 261. 300
Ibidem, p. 276. 301
Ibidem, p. 278.
78
se aproxima do direito penal, apesar de se afirmar como um Tribunal não-penal – o que é
verdade – mas sem negar as proximidades entre as sanções disciplinares e o direito penal.
O TAS até admite o princípio do non bis in idem, mas os casos relatados não serviram
de aplicação ao princípio. Na decisão nº 2004/A/ 549, de 27 de maio de 2004 – D. & Real
Federacion Española de Gimnasia c/ Fédération Internationale de Gymnastique (FIG), o atleta
recorrente achava que estava sendo punido no mesmo período duas vezes, pela Federação
Nacional e a FI. Afirmou que tal fato incorria no princípio mencionado. Todavia, o TAS
afirmou que o princípio não poderia vingar no caso, considerando que as sanções que lhe
foram aplicadas tinham um objeto diferente. Não havia a punição duas vezes pelo mesmo
fato, senão por fatos diferentes que incorriam em sanções semelhantes.
Apesar de, em determinadas circunstâncias, o TAS afastar o princípio do in dubio pro
reo, como acima demonstrado, o Tribunal é capaz de recorrer ao mesmo princípio para
justificar a inocência do recorrente. A decisão nº 98/222, de 9 de agosto de 1998 – B. c/
International Triathlon Union (ITU) – descreve o caso em que o atleta foi punido pela FI,
porque foi encontrado em seu organismo substâncias proibidas. Porém, foram encontradas
baixas concentrações da substância, encontrando-se no âmbito da incerteza científica, isto é,
na “zona cinza”, podendo ser também de produção endógena. Não negando a
responsabilidade estrita como elemento importante para a lex sportiva, nesses casos de
incerteza, faz-se valer do princípio in dubio pro reo, principalmente, porque a outra parte deve
provar os fatos alegados com certeza. A aplicação do tal princípio, quando o caso se encontra
na “zona cinza”, não colidia com as disposições legais da época.
Decorrente da responsabilidade estrita, o TAS interpreta o princípio da
proporcionalidade de forma a negar que todas as condutas possuam a mesma pena. Na
sentença nº 97/180, de 14 de janeiro de 1999 – P. & consortes c/ Federação Internacional de
Natação Amadora (FINA)302
, apesar de ter confirmado a pena da FINA aos nadadores que
foram pegos no exame antidoping, o TAS afirmou que “a sanção pode ser atenuada
proporcionalmente às circunstâncias do caso concreto”303
. Embora haja previsão legal que
limite a possibilidade de aplicação da pena, o Tribunal pode, em função do caso concreto,
aplicar pena menor que a prevista, como ocorrido na sentença nº 95/141, de 22 de abril de
302
JDI, 2002, pp. 340-342, com extratos e comentários de Gérald Simon. 303
Ibidem, p. 341.
79
1996 – C. c/ Federação Internacional de Natação Amadora (FINA). Tal postura obrigou
mudanças na legislação antidoping, chegando a influenciar o CMA posteriormente304
.
Existem outros princípios gerais que são comuns a mais matérias, não se reduzindo à
estrutura penal305
. O TAS declarou o respeito aos direitos de defesa a toda pessoa que sofreu
sanção, em especial, o direito de ser ouvido306
(“a comissão jurídica da FEI violou o princípio
jurídico geral previsto pelo Estatuto, do direito de ser ouvido”), o direito de apresentar
testemunhas307
(“[a recusa de testemunhas] não é, em si, constitutiva de uma violação dos
direitos de defesa, desde que a recusa em ouvir testemunhas não tenha sido arbitrária e seja
objetivamente justificada”) e a igualdade das partes308
(“É permitido demandar se, nessas
circunstâncias, o princípio da igualdade das partes foi respeitado”).
Nota-se que os princípios gerais de direito cumprem seu papel de estruturação e
conexão entre ordens, eis que é comum a quase todas elas. Vários desses princípios
encontram-se, atualmente, previstos nas mais diversas Constituições. Nesse processo de
conexão entre ordens, nem sempre os princípios gerais de direito serão suficientes para
justificar uma decisão, quando esta conflitar com outra ordem. Nesse sentido, existirão
problemas jurídicos de característica constitucional comuns a diversas ordens, mas com
soluções diversas para esses mesmos problemas. A lex sportiva, em algumas situações,
precisará se afirmar perante outras ordens, através da eficácia de suas decisões, configurando
um problema constitucional relativo à soberania jurídica. Problemas como esse possibilitarão
a verificação de quais são os limites da autonomia da ordem desportiva. Nesse contexto, o
transconstitucionalismo aparece como um promotor da horizontalização do debate.
304
Cf. artigo 10 e 11 do CMA. 305
Cf. Latty, 2007, pp. 319-323. 306
Sentença nº 91/53, de 15 de janeiro de 1992 – G. c/ FEI, com extratos de Latty, 2007, p. 318. 307
Sentença nº 2000/A/290, de 2 de fevereiro de 2001 – A. Xavier & Everton F.C. c/ UEFA, com extratos de
Latty, 2007, p. 318. 308
Ibidem, p. 319.
80
5 LIMITES DA AUTONOMIA JURÍDICA E O
TRANSCONSTITUCIONALISMO
Nos capítulos anteriores, foi mostrado como é possível a lex sportiva regular-se,
administrar-se e julgar suas causas. Notou-se que toda a estrutura condiciona a participação
ou não de seus membros nas competições esportivas organizadas pelas FI‟s. Mesmo nas
causas em que o TAS flerta em construir um direito trabalhista peculiar ao direito
desportivo309
, o pano de fundo que as compõem é a participação nas competições. Porém,
questões como essa tocam outras ordens jurídicas, que podem julgar-se competentes para a
resolução de tais lides, mostrando que a “autonomia de uma ordem jurídica não significa
nulamente uma autarquia absoluta”310
. Refletir sobre as possíveis relações entre ordens, diante
de problemas jurídicos comuns, é entender os limites da autonomia de uma ordem311
.
O simples fato de a ordem desportiva se encontrar assentada em algum país impõe que
esta se condicione a algumas regulamentações nacionais. Ao mesmo tempo, esses
condicionamentos não podem inutilizar a lex sportiva, a ponto de negar a existência de uma
outra forma de pensar o próprio direito. Verifica-se que é fundamental que haja o diálogo
entre soberanias jurídicas, com a perspectiva de que exista uma horizontalização entre ordens.
Da mesma forma, nota-se que, ao se falar de soberania, se entra em outra esfera do debate que
traz à tona aspectos constitucionais. Apesar de ser uma ordem privada, boa parte da afirmação
da autonomia da lex sportiva vai tangenciar problemas constitucionais.
O presente capítulo tem por objeto estabelecer os limites da autonomia da lex sportiva
quando confrontada com estruturas jurídicas diversas, isto é, a ordem nacional, do país sede,
internacional e comunitária. Para a melhor compreensão de seus limites, será objeto desse
capítulo, sempre que possível, a transformação de conceitos constitucionais operada pela lex
sportiva. Do mesmo modo, identificar-se-ão os problemas de ordem transconstitucional e as
309
Cf. sentença nº 2008/O/1643, de 15 de junho de 2009 – Vladimir Gusev c/ Olympus SARL – JDI, 2010, pp.
251-260, com extratos e comentários de Dominique Hascher. 310
Latty, 2007, p. 416. 311
Ibidem.
81
possibilidades de entrelaçamento entre ordens para sua solução. Para que isto seja
compreensível, inicia-se esclarecendo o que é o transconstitucionalismo.
5.1 O transconstitucionalismo
Problemas de direitos fundamentais (e humanos) e de controle e limitação do poder têm
se tornado cada vez mais relevantes para mais de uma ordem, incluindo, também, as que não
possuem participação do Estado. Esses problemas chamam as ordens para se manifestar,
“implicando uma relação transversal permanente entre ordens jurídicas em torno de
problemas constitucionais comuns”. Apesar de ter origem no Estado, o direito constitucional
mostra que cada vez mais se emancipa dele, “tendo em vista que outras ordens jurídicas estão
envolvidas diretamente na solução dos problemas constitucionais básicos, prevalecendo, em
muitos casos, contra a orientação das respectivas ordens estatais”312
.
Em seu trabalho Transconstitucionalismo, Marcelo Neves trata desses problemas,
partindo do nascimento da sociedade moderna enquanto sociedade mundial, o que implica a
desvinculação da formação social das organizações políticas territoriais e, conseqüentemente,
ultrapassando fronteiras territoriais313
. O que reforça esta idéia é a capacidade de
determinados sistemas não dependerem da segmentação territorial, como, por exemplo, a
economia. A política, ao contrário, depende desta segmentação, porque suas decisões,
coletivamente vinculantes, dependem de seus processos que se desenvolvem no plano
regional314
. Uma sociedade moderna multicêntrica, espelhada nos mais diferentes modos de
comunicação com pretensão de autonomia, necessita de mecanismos que possibilitem
“vínculos construtivos de aprendizados e influência recíproca entre as diversas esferas
sociais”315
.
O autor percebe que o conceito de “razão transversal”, proposto por Welsch, tem espaço
na construção de vínculos construtivos. Diferentemente do acoplamento estrutural (mas sem
negar afinidade), há uma “complexidade preordenada” de um sistema posto à disposição do
outro de forma acessível, possibilitando o “intercâmbio construtivo de experiências entre
racionalidades parciais diversas”316
. Fala-se, portanto, de uma razão que “está envolvida com
entrelaçamentos que lhe servem como „pontes de transição‟ entre heterogêneos”317
. Essa
312
Neves, 2009, p. XXI. 313
Ibidem, p. 26. 314
Ibidem, pp. 30-31. 315
Ibidem, pp. 34-35. 316
Ibidem, pp. 37-38. 317
Ibidem, p. 39.
82
perspectiva pode ser compreendida na Constituição do Estado com suas racionalidades já
processadas, isto é, na política, a democracia, e no direito, o princípio da igualdade318
.
Após uma delimitação semântica do termo “Constituição”, o autor contrapõe com uma
iniciativa inflacionária deste, não concordando com a utilização, sobretudo, na condição
transnacional do termo. Colocando como exemplo a lex mercatoria, o autor salienta que esta
ordem encontra uma autonomia deficiente diante de processos econômicos globais,
proporcionando fenômenos tipicamente de um “direito corrupto”. É, antes de tudo, um
instrumento econômico a serviço da eficiência do sistema. Portanto, defende que é mais
adequado compreender os entrelaçamentos que existem entre ordens jurídicas diante dos
diferentes tratamentos aos problemas constitucionais na sociedade mundial319
. Para tanto, o
autor reconhece que existe a “proliferação de ordens jurídicas diferenciadas, subordinadas ao
mesmo código binário, isto é, „lícito/ilícito‟, mas com diversos programas e critérios”,
resultando uma “diferenciação no interior do sistema jurídico” 320
. A multiplicação de relações
entre essas ordens ganha maior relevância quando se nota a existência de “pontes de
transição” desenvolvidas a partir dos respectivos juízes e tribunais321
. Daí que o centro de uma
ordem jurídica (os juízes e tribunais) servirá, nessa situação, como periferia de outro,
desenvolvendo uma relação de aprendizado, sem que haja “o primado definitivo de uma das
ordens, uma ultima ratio jurídica” 322
.
É oportuno abrir um breve parêntese sobre o último parágrafo. Concorda-se com essa
observação sobre Constituição que o autor traz à tona, mas fazem-se, aqui, algumas ressalvas
no que toca à lex sportiva. A Constituição é delimitada pelo acoplamento de dois sistemas,
sendo que a política não se encontra presente na esfera esportiva. A idéia de que a lex sportiva
é um instrumento esportivo a serviço da eficiência do sistema, incorrendo no risco de
corrupção do direito, é mais facilmente verificável nas estruturas federativas ou nos órgãos de
decisão do COI, conforme notado em caso relatado no primeiro capítulo. Contudo, com a
criação do TAS, somada à utilização de padrões interpretativos próprios e de princípios gerais
de direito, foram mitigados os interesses da performance, da estética e do potencial
econômico-midiático em face do direito desportivo. Não se percebe no TAS a utilização de
interesses fora do plano jurídico que justifiquem suas decisões.
318
Ibidem, p. 62. 319
Ibidem, p. 113. 320
Ibidem, pp. 115-116. 321
Ibidem, pp. 116-117. 322
Ibidem, p. 117.
83
Retornando à visão de que um tribunal pode servir de critério para outro, o autor não
nega que essa “conversação” possui um caráter virtual de disputa sobre o objeto ao qual
incide, não havendo uma cooperação permanente, dada as perspectivas jurídicas diversas323
.
Ele também ressalta que o entrelaçamento não é reduzido na relação entre tribunais (apesar de
ser o principal), eis que a incorporação de sentidos normativos de outras ordens pode ser
constatada na relação informal “entre legislativo, governo e administrações de diversos
países”. Contudo, no que diz respeito ao transconstitucionalismo, o que importa é a
“conversação constitucional”, não cabendo falar de hierarquia estrutural entre ordens, senão
de “incorporação recíproca de conteúdos”, implicando uma “releitura de sentido à luz da
ordem receptora”. Esse aspecto assemelha-se com o fenômeno da “irritação”, tratada por
Teubner ao se receber conteúdo de ordem alheia324
, havendo desarticulação e articulação do
sentido estrangeiro em relação à ordem receptora, sendo possível o contrário325
. Nesse
contexto, ao citarem-se reciprocamente, as cortes vão se dispor ao aprendizado construtivo326
.
Neves expõe que o constitucionalismo – enquanto respostas para a efetivação de direitos
e garantias fundamentais, assim como a limitação e controle do poder estatal – ganhou
contornos normativos e transterritoriais que levam à “necessidade de abertura do
constitucionalismo para além do Estado”327
, deixando “de ser um privilégio do direito
constitucional do Estado, passando a ser enfrentado legitimamente por outras ordens jurídicas,
pois passaram a apresentar-se como relevantes para essas”328
. Assim, no
transconstitucionalismo, o importante é identificar “que os problemas constitucionais surgem
em diversas ordens jurídicas, exigindo soluções fundadas no entrelaçamento entre elas” 329
.
Tendo como base o código binário lícito/ilícito comum a todas as ordens jurídicas, o
aprendizado transconstitucional entre as ordens possibilita afirmar que existe uma abertura
normativa, que “pode ocorrer em face da solução de casos jurídicos nos quais duas (ou mais)
ordens estejam envolvidas”330
. Não há a negação dos programas e critérios próprios. O que
323
Ibidem, pp. 117-118. 324
Em capítulo passado, foi estudado este fenômeno sob o enfoque dos princípios gerais de direito. 325
Neves, 2009, p. 118. 326
Ibidem, p. 119. 327
Ibidem, p. 120. 328
Ibidem. 329
Ibidem, p. 121. 330
Ibidem, pp. 126.
84
ocorre, à luz do problema, é que “os conteúdos normativos se transformam no processo
concretizador, possibilitando o convívio construtivo entre ordens”331
.
Diante do contexto apresentado, o autor afirma que o que caracteriza o
transconstitucionalismo, enquanto entrelaçamento que serve à racionalidade transversal332
, “é,
portanto, ser um constitucionalismo relativo a (soluções de) problemas jurídico-
constitucionais que se apresentam simultaneamente a diversas ordens” 333
. Quando questões
constitucionais se submetem “ao tratamento jurídico concreto, perpassando ordens jurídicas
diversas, a „conversação‟ constitucional é indispensável”334
, mas sempre tendo a necessidade,
para o desenvolvimento pleno, da presença, em cada ordem, de princípios e regras que levem
a sério os problemas básicos do constitucionalismo335
.
Ao projetar uma metodologia ao transconstitucionalismo, Neves expõe que seu início
encontra-se na “dupla contingência”, sobretudo entre tribunais336
, em que uma ordem conta
com a possibilidade de que a ação de outra seja diversa daquela que projetou e vice-versa337
.
Uma das mais importantes conseqüências da dupla-contingência é o surgimento da confiança
ou desconfiança338
. Nessa situação, uma ordem, pela impossibilidade de enxergar bem um
problema, tem a possibilidade de vivenciar o relato privilegiado de outra. Para que isso
ocorra, a ordem, primeiramente, deve considerar sua identidade para não incorrer no risco de
perder a diferença com seu ambiente. Quando confrontadas com problemas constitucionais
comuns a diversas ordens, “impõe-se que seja considerada a alteridade”339
, inclusive as que
não se abrem ao diálogo340
. Este, portanto, é o ponto de partida do transconstitucionalismo341
.
Após a explicação do significado do transconstitucionalismo no contexto jurídico
contemporâneo, cabe localizar os limites da autonomia da lex sportiva, quando confrontada,
especialmente, com problemas constitucionais comuns a mais de uma ordem. O primeiro
passo é investigar esses limites diante do contexto da ordem internacional.
5.2 A ordem internacional e a lex sportiva
331
Ibidem. 332
Ibidem, p. 130. 333
Ibidem, p. 129. 334
Ibidem. 335
Ibidem, p. 130. 336
Ibidem, p. 270. 337
Ibidem, p. 271. 338
Ibidem, p. 272. 339
Ibidem, p. 272. 340
Ibidem, p. 276. 341
Ibidem, p. 275.
85
De certa forma, as relações entre lex sportiva e direito internacional possuem certa
estabilidade. Não é marca registrada a interferência entre ordens. A criação da AMA, do
CMA e a Convenção da UNESCO, de 2005, que reforçava a luta contra o doping, servem
como ilustração dessa relação, de certa forma, harmoniosa. Todavia, existem episódios
pontuais em que a ordem desportiva foi limitada por determinação de órgãos internacionais,
assim como ordem desportiva já se deparou com questões relativas às Convenções
Internacionais.
A década de 90 ficou marcada pelo conflito armado na antiga Iugoslávia. A tentativa de
determinadas regiões se tornarem independentes foi motivo de uma guerra que resultou em
intervenção internacional. A Resolução 757 (1992) do Conselho de Segurança das Nações
Unidas recordava a “responsabilidade primária pela Carta das Nações Unidas para a
manutenção da paz e segurança”342
, decidindo, em seu § 8º, que os Estados membros tomarão
“as medidas necessárias para impedir a participação em eventos esportivos sob sua cobertura
territorial de pessoas ou grupos que representem a República Federativa da Iugoslávia”343
.
As organizações esportivas não foram mencionadas nessa resolução, o que induz a crer
que a ordem desportiva não seria atingida. Porém, o que mais importa na ordem desportiva
são suas competições, que sempre serão territorializadas. Ao proibir a expressão nacional de
determinado país em um evento esportivo, a resolução limitou a autonomia da lex sportiva
sobre seus atores.
À época, existiam duas competições de grande escalão que teriam a participação efetiva
da antiga Iugoslávia: Eurocopa de futebol e as Olimpíadas. A FIFA e a UEFA (União das
Federações Européias de Futebol) resolveram voluntariamente suspender a federação daquele
país344
. O COI, por sua vez, resolveu buscar outra solução. Como os Jogos seriam realizados
em Barcelona, as autoridades espanholas eram obrigadas a impedir a participação desses
atletas, recusando acesso em seu território. A fim de garantir a universalidade dos Jogos, o
COI se baseou no que é hoje a Regra 6.1 da Carta Olímpica (“Os Jogos Olímpicos são
competições entre atletas [...] e não entre países”) para criar uma equipe independente
formada por atletas Iugoslavos, Macedônios e da ex-União Soviética345
. Foi dessa forma que
342
Resolução nº 757, p. 14. 343
Comentários sobre essa resolução, Latty, 2007, pp. 666-669. 344
Ibidem, p. 667. 345
Ibidem, p. 668.
86
o COI conseguiu garantir a participação desses atletas sem que houvesse maiores estragos da
ordem internacional.
As questões constitucionais ficam mais como pano de fundo diante dessa situação. A
Resolução declara as penas em função do desrespeito da antiga Iugoslávia em não permitir
acesso à ajuda humanitária, como previa a Resolução 752 (1992). Havia uma discussão que
enveredava para o desrespeito dos direitos humanos, mas o Conselho de Segurança não levou
em consideração a soberania e a nacionalidade segundo a ordem desportiva. Por um lado,
embora os atores sejam apenas os países vinculados ao Conselho, tomar uma decisão de
representatividade esportiva, sem ter em conta a ordem jurídica desta, é desprezar a
alteridade; por outro, a ordem desportiva, por parte do COI, conseguiu reinterpretar as
obrigações internacionais para que os atletas não se prejudicassem. É interessante notar que a
ordem desportiva vai dar novos significados ao sentido de nacionalidade num âmbito que
também envolve o contexto internacional346
. Este primeiro exemplo merece destaque, mas se
reconhece que ele fica mais no plano político, ricocheteando questões jurídicas. O caso que
mostraremos a seguir terá um ambiente eminentemente jurídico, isto é, o TAS que julgará
sobre um assunto que diz respeito também a direitos humanos.
No caso nº 2008/A/1480, de 16 de maio de 2008 – Pistorius c/ IAAF – uma importante
questão constitucional foi tratada com relação às pessoas com deficiência. O atleta Oscar
Pistorius, cidadão sul-africano e competidor dos 100, 200 e 400 metros rasos, recorreu de
decisão tomada pela IAAF que o proibira de competir contra atletas sem deficiência. Ele não
possuía ambas as pernas e utilizava duas próteses, que, segundo a IAAF na Regra 144.2(e),
lhe fazia ter maiores vantagens com relação aos seus adversários. O caso mostra que o atleta
vinha em uma crescente em seus resultados a ponto de conseguir tempos próximos de atletas
de níveis olímpicos sem deficiência, o que o credenciava a deixar de competir com as pessoas
com deficiência. Sob a alegação de que se beneficiava das próteses, o Conselho da IAAF
resolveu proibi-lo de competir.
No recurso, algumas questões foram levantadas, mas o que chama a atenção foi ter sido
levado à discussão a “Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência”. O recorrente
alegou que a IAAF negara seus direitos humanos fundamentais, incluindo os princípios e
valores olímpicos. Tendo como base para a resolução de conflitos o regulamento da IAAF e,
para as questões de fundo, a ordem jurídica de Mônaco (país sede da IAAF), a Turma
346
No próximo capítulo, o tema será retomado.
87
verificou se Convenção era ou não aplicável ao caso. Ela verificou que a Convenção não foi
ratificada e promulgada em legislação do Principado. Embora, de início, já afastasse a
aplicação da Convenção, o TAS fez questão de analisar se as previsões da Convenção
poderiam ser aplicadas ao caso, tomando como exemplo o artigo 30.5, que dispõe que os
Estados Partes deverão encorajar e promover a participação das pessoas com deficiência nas
atividades em todos os níveis com vista a permitir-lhes participar em igualdade de condições
às atividades esportivas. A Turma interpreta a Convenção como se ela requeresse que um
atleta, como o recorrente, fosse permitido a competir nas mesmas condições que outros
atletas, sendo esta a questão a ser decidida. Ou seja, se ele está ou não competindo em uma
base igual com outros atletas que não utilizam a sua prótese. Assim, conforme declarou, se a
Turma decidisse que o atleta ganhava alguma vantagem sobre os outros competidores, a
Convenção não o assistiria no presente caso.
O TAS acatou o recurso do atleta. Porém, o argumento foi de que a IAAF, sendo a
responsável pelo ônus da prova, não conseguiu demonstrar que aquela prótese desigualava as
condições entre competidores. A Turma deixou em aberto a questão, caso alguma nova
pesquisa conseguisse provar que ele era beneficiado desigualmente. A Turma rejeitou a
argumentação baseada na discriminação ilegal. Sobre este fato, existe um ponto de discussão
com potencial conflitivo constitucional.
A igualdade de acesso das pessoas com deficiência possui uma das características do
princípio constitucional da igualdade. Este princípio possui duas perspectivas inseparáveis,
sendo uma referente “à neutralização de desigualdades fácticas na consideração jurídico-
política de pessoas e grupos”347
e outra em que “procedimentos constitucionais apresentem-se
como sensíveis ao convívio dos diferentes e, dessa maneira, possibilitem-lhes um tratamento
jurídico-político igualitário”348
. A Convenção no artigo 30.5 prevê que “Para que as pessoas
com deficiência participem, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de
atividades recreativas, esportivas e de lazer, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas
[...]”. Esta perspectiva de igualdade da Convenção, mais ligada à segunda perspectiva do
princípio, “concerne ao direito a ser tratado como um igual ou ao direito de igual respeito e
consideração”349
.
347
Neves, 2008, p. 170. 348
Ibidem. 349
Ibidem, p. 171.
88
Nesse caso, sob o ponto de vista da lex sportiva, pode-se verificar que essa noção do
princípio da igualdade apresentada pela Convenção ganha uma nova significação. A
igualdade esportiva tem o sentido de que todos os atletas terão a mesma chance de conquistar
a vitória, sendo, a melhor performance, a premiada. A “igualdade de oportunidades” referida
na Convenção ganha o sentido de “mesma chance de conquistar a vitória” no direito
desportivo. Assim, “o direito de ser um igual”, no âmbito internacional, só possui concretude
na esfera esportiva se visada a igualdade de chances na competição. A condição de pessoa
com deficiência não é encarada da mesma maneira que um “atleta com deficiência” no plano
esportivo. Portanto, o TAS nota que esse conceito precisa de uma adequação conforme sua
ordem, tendo em vista a coerência que se encontra ao redor de seus eventos, mesmo que isso
acarrete novos olhares sobre o direito constitucional350
.
Verificou-se nesse tópico que os limites da lex sportiva, quando diante da ordem
internacional, não tendem a ser conflitantes. No máximo, é possível notar uma forma de
aprendizado a partir de conceitos alheios à periferia do TAS. Não se encontram conflitos entre
tribunais internacionais e o TAS. A forma mais completa de verificação de problemas e
formas de aprendizado transconstitucionais está quando mais de um tribunal se depara com
problemas constitucionais comuns. Se isto, até o momento, é algo raro no plano internacional,
no contexto estatal e supranacional isso, é comum e conflitante.
5.3 O país sede como limitador da Lex sportiva
O país sede do TAS, do COI e de algumas FI‟s é a Suíça. A necessidade de se
estabelecer em algum território faz com que estas organizações se condicionem a alguns
dispositivos legais estatais. Estas condições possibilitam, em certos casos, a intervenção
estatal em alguma decisão da ordem desportiva. Neste tópico, estes dispositivos e exemplos
de intervenção serão focados, tendo como base a Suíça.
O artigo 23 da Constituição suíça é o primeiro dispositivo a estabelecer que a “liberdade
de associação está garantida”, acrescentando que toda “pessoa tem o direito de criar
associações, de aderir ou de pertencer e participar das atividades associativas”. O artigo 60,1
do Código civil suíço reforça esta idéia de autonomia de atividades associativas em seu
território quando prevê que as “associações políticas, religiosas, científicas, artísticas, de
beneficência, de recreação ou outros, que não têm uma meta econômica, adquirem a
350
No capítulo 6º, investigaremos o fenômeno da “dupla cidadania”. Situações como a desse caso refletem bem
esse fenômeno, isto é, a presença de uma cidadania esportiva, que é além da estatal.
89
personalidade desde que elas exprimam em seus estatutos a vontade de serem organizadas
corporativamente”.
A associações não possuem autonomia absoluta. O artigo 75 do código civil expressa
que “Todo societário é autorizado por lei a se dirigir à Justiça em um mês a contar do dia em
tomou conhecimento, das decisões aos quais não aderiu e que violam as disposições legais ou
estatutárias”. Delimitando, agora, para as associações de âmbito internacional, mais
especificamente “o tribunal arbitral que se encontre na Suíça” (art. 176,1 da Lei Federal sobre
Direito Internacional Privado - LDIP), o artigo 190,2 fixa algumas condições para que suas
decisões sejam questionadas judicialmente. Essas condições são possíveis quando o “árbitro
foi irregularmente designado ou o tribunal arbitral foi irregularmente composto”, “quando o
tribunal é declarado incompetente”, “quando o tribunal arbitral decidiu além das alegações ou
quando omitiu de se pronunciar sobre um dos pontos da demanda”, “quando a igualdade das
partes ou seu direito de ser ouvido em procedimento contraditório não foi respeitado”, ou, por
fim, “quando a sentença está incompatível com a ordem pública”. O artigo 192,1 acrescenta
que se as partes “não têm domicílio, nem residência habitual, nem estabelecimento na Suíça,
podem, por uma declaração expressa na convenção de arbitragem ou um acordo escrito
ulterior, excluir todo recurso contra as sentenças do tribunal arbitral” (grifo meu).
Esses preceitos citados estão protegidos pelo artigo 29 da Constituição suíça, que, em
seu inciso 1º e 2º, expõe, respectivamente, que “Toda pessoa tem o direito – em um
procedimento judiciário ou administrativo – que sua causa seja tratada igualmente e julgada
em um prazo razoável” e “As partes têm o direito de ser ouvidas”. Contudo, mesmo havendo
essa soma entre a previsão constitucional e a Lei federal suíça, o estatuto do TAS não prevê
nenhuma possibilidade de recurso aos tribunais suíços, excluindo até as exceções
mencionadas anteriormente em legislação nacional, pois o artigo R46 exprime que
A sentença notificada pela Secretaria do TAS é definitiva e executória. Ela não é
suscetível de nenhum recurso na medida em que as partes não têm nem domicílio,
nem residência habitual, nem estabelecimento na Suíça e renunciaram
expressamente ao recurso na convenção de arbitragem ou em um acordo concluído
ulteriormente, notadamente no início do processo.
O Tribunal Federal Suíço, considerando seu ordenamento, foi importante na
modificação das regras do TAS, conforme mostrado no capítulo passado. A decisão
mencionada351
também foi importante em declarar, pela primeira vez, o ponto de vista do
Tribunal Federal sobre a lex sportiva, quando afirmou que um controle jurídico livre e
351
BGE 119 II 271 – GÜDEL c/ Federação Eqüestre Internacional e Tribunal Arbitral do Esporte.
90
independente “pode ser confiado a um tribunal arbitral, desde que esse tribunal constitua uma
verdadeira autoridade judiciária e não o simples órgão da associação interessada no destino do
litígio”. Com relação ao caso (mas fazendo algumas restrições), o Tribunal Federal
reconheceu essa qualidade de autoridade judiciária do TAS. Porém, foi na decisão 129 III
445 – A e B c/ COI, Federação Internacional de Esqui e TAS – que o Tribunal Federal
reconheceu a total independência do TAS frente a todos os seus atores, podendo as decisões
tomadas por esse órgão ser “consideradas como verdadeiras sentenças, assimiláveis aos
julgamentos de um tribunal estatal”. Afirmou, também, que o “sistema da lista de árbitros
satisfazia às exigências constitucionais de independência e de imparcialidade aplicáveis aos
tribunais arbitrais”. Dessa forma, o Tribunal Federal, mais do que reconhecer a independência
da ordem e a eficácia de suas decisões, traz uma nova maneira de se interpretar o princípio
constitucional da acessibilidade à Justiça. Apesar de reconhecer a autonomia do TAS, isso não
significa que o Tribunal Federal fecha os olhos para decisões que sigam o caminho diverso de
suas disposições constitucionais.
A decisão BGE 133 III 235 – Cañas c/ ATP Tour e Tribunal Arbitral do Esporte – foi a
primeira que anulou uma decisão do TAS. No caso, o atleta, no dia 21 de fevereiro de 2005,
forneceu uma amostra de urina, que revelou a presença de substância proibida. Embora o
atleta alegasse que a substância em seu corpo era fruto de um remédio que combatia gripe, o
TAS decidiu pela suspensão por 15 meses, perda dos resultados obtidos e restituição de seus
ganhos financeiros oriundos do torneio. No dia 22 de junho de 2006, Cañas interpôs um
recurso de direito público, no sentido de obter uma sentença que anulasse a decisão do TAS,
reclamando que fora violado o seu direito de ser ouvido. Em resposta, o TAS afirmou que o
atleta renunciara ao direito de recorrer. Apoiando-se em decisão anterior do Tribunal Federal,
Cañas afirmou que a vontade de renunciar deve ser feita por ato expresso.
O Tribunal Federal considerou que a renúncia era ineficaz porque teria sido assinada
sob coação, na acepção da jurisprudência construída a partir da Convenção para a Proteção
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. O Tribunal afirmou também que a
“pseudo-renúncia” de um jogador consagraria uma distorção ao art. 192 da LDIP. Por fim, em
matéria de luta contra o doping, a única maneira de aplicar o artigo 192 LDIP, respeitando o
princípio da igualdade, consistiria em negar todo alcance a uma renúncia antecipada ao
recurso. Para o Tribunal, isso ocorre porque o atleta, que deseja participar de uma competição
organizada sob o controle de uma FI, só logrará êxito se aceitar previamente cláusula arbitral
91
prevista em Estatuto. Sendo essa sua profissão, o atleta está obrigado a aceitar essa cláusula.
Além disso, por não possuir domicílio, residência ou estabelecimento na Suíça, há a exclusão
da possibilidade recursal das decisões do TAS. Portanto, um dos pontos decisivos para a
questão era saber se o atleta poderia se recusar a assinar a declaração de renúncia recursal
contra eventuais sentenças do TAS, conservando a possibilidade de se inscrever nas
competições organizadas pela Federação esportiva. O Tribunal Federal reconhece que “nada
impediria os jogadores e organizadores de criarem um circuito paralelo a este da ATP”.
Contudo, isso não significa que o atleta teria outra opção, senão a de excluir o recurso contra
decisões do TAS. Como a ATP reúne todos os melhores jogadores de tênis profissionais
masculinos e as mais lucrativas competições, ficaria difícil imaginar que o atleta teria outra
opção.
A título principal, o atleta alegou que foi violado seu direito de ser ouvido, pois o TAS
não teria examinado certos argumentos pertinentes e essenciais para tomar a decisão. O
Tribunal Federal estende o direito ao domínio da arbitragem internacional, incluindo a
esportiva. Entende que o direito de ser ouvido é violado quando, por inadvertência ou mal-
entendido, o tribunal arbitral não leva em consideração os fatos alegados, argumentos, provas
e ofertas de prova apresentadas por uma das partes e importante para a decisão. Foi esta a
atitude do TAS alegada pelo atleta recorrente. O TAS podia demonstrar que os elementos
omitidos não eram pertinentes para resolver o caso concreto, não havendo violação do direito
de ser ouvido, mesmo no sentido constitucional do termo. No caso, o recorrente disse que o
TAS não analisou o argumento de que não houve culpa de sua parte na ingestão do
medicamento, sendo, inclusive, prejudicial à sua performance o uso do remédio. Para o atleta,
levar em consideração tais questões poderia modificar o resultado do julgado.
Levando em consideração que esse era o único meio recursal do atleta (excluindo o
argumento de que não era domiciliado no país), somada à ausência de menção do conjunto de
circunstâncias que levaram o TAS a aplicar o princípio da proporcionalidade nos quinze
meses de suspensão, o Tribunal Federal entendeu que a Turma arbitral descartou
implicitamente os argumentos subsidiários do recorrente. Dessa forma, decidiu pela anulação
da sentença arbitral.
Essa decisão merece algumas considerações no âmbito transconstitucional. O Tribunal
Federal reconhece que o TAS é um verdadeiro tribunal, o que reorienta a perspectiva do
princípio constitucional do acesso à Justiça. Por conseqüência disso, o Tribunal suíço admite
92
a soberania das suas decisões, logo, a autonomia de sua ordem. Todavia, para garantir que sua
decisão seja definitiva, a ordem desportiva exclui a possibilidade recursal em outra ordem.
Esta atitude, verificada no caso, desrespeitou previsões constitucionais do direito de ser
ouvido e de direitos humanos. Dessa forma, não significa que o TAS é a ultima ratio em
assuntos que tocam a constitucionalidade. O TAS não pode, assim, privar do acesso à Justiça
suíça. A anulação da sentença do TAS pode parecer que a ordem suíça não teve em
consideração a ordem desportiva. De fato, é difícil para o Tribunal suíço entender o princípio
da responsabilidade estrita, aplicada aos casos de doping no esporte. Nele, o argumento do
atleta de que não teve culpa no doping é afastado recorrentemente pelos precedentes arbitrais.
Essa é a forma que a lex sportiva tem de garantir a igualdade esportiva. Todavia, a decisão do
Tribunal Federal não é revisora, senão rescisória, o que mostra um comportamento de
contenção de si próprio. É evidente que houve uma interferência no modo de agir do TAS,
mas a revisão não invade o mérito do TAS em perceber o direito. Marcelo Neves, a esse
respeito, considera:
E, mesmo nos casos em que o Tribunal Federal Suíço insista em assumir
competência revisora ou rescisória contrariando as normas reguladoras do TAS,
resta às instituições do direito esportivo transnacional transferir a sua sede para um
país que se disponha a admitir a autonomia da ordem jurídica transnacional dos
esportes. Esse poder de mobilidade das entidades jurídico-esportivas
“deslocalizadas”, junto com sua competência para excluir determinados Estados das
competições ou torneios internacionais, torna a respectiva ordem jurídica
transnacional “soberana” perante os Estados e, portanto, em concorrência com as
ordens jurídicas estatais, levando à emergência de problemas transconstitucionais352
.
De fato, no dia em que não for conveniente à lex sportiva manter-se fixada em um país,
nada obsta que ela transfira sua sede para algum país que aceite com maior liberdade sua
autonomia. O COI foi exemplo de situação semelhante a essa quando, por conveniência,
transferiu sua sede para um país neutro. Ele tinha a sede na França, mas, ao anunciar que os
Jogos Olímpicos seriam realizados em Berlim, em 1916, preferiu se mudar para a Suíça.
Considerava que havia fortes conflitos políticos provenientes da Primeira Guerra Mundial
entre França e Alemanha, sendo, assim, conveniente evitar qualquer chance de politizar os
assuntos esportivos353
.
A concretização “multilocalizada” da lex sportiva também gera conflitos de
características transconstitucionais com outras ordens. Tais conflitos são mais numerosos que
os exemplos do país sede, sem, contudo, serem menos importantes. Cabe, portanto, em
352
Neves, 2009, p. 206. 353
Latty, 2007, p. 427.
93
próximo tópico analisar esses conflitos e soluções, principalmente, transconstitucionais entre
ordens estatais e lex sportiva, o que, por conseqüência, explicitam os limites da autonomia
desta.
5.4 Autonomia da lex sportiva perante as ordens nacionais
Embora existam países que vêem no esporte valores merecedores de seu controle, as
regras transnacionais do direito desportivo se sobrepõem, em regra, ao controle estatal quando
estão envolvidas medidas disciplinares que visam ao bom desenvolvimento da competição
internacional. Tais medidas podem tocar em questões como nacionalidade354
, contratos
trabalhistas, saúde, além de questões econômicas, como a comercialização do esporte355
.
Todas essas questões, em um primeiro contato, remetem a assuntos essencialmente
constitucionais.
Isso se realiza porque os Estados não possuem o controle sobre as competições
esportivas internacionais. Assim sendo, as ordens esportivas, deslocalizadas, conseguem
desvincular um representante de um país da participação de uma prova, independentemente da
manifestação contrária da ordem estatal. Um dos poucos casos em que o direito desportivo
sofreu várias conseqüências da ordem estatal é o de Reynolds c/ IAAF356
. Após uma
competição em Monte Carlo em agosto de 1990, Harry “Butch” Reynolds testou positivo por
haver traços de uma substância proibida pela IAAF. O atleta foi suspenso por dois anos das
competições internacionais, sendo impossibilitado de competir nos Jogos Olímpicos de 92. O
órgão nacional dos EUA de atletismo, chamado de Congresso de Atletismo, ofereceu uma
audiência para Reynolds. Como não obteve êxito em todas as esferas administrativas e
arbitrais americanas, Reynolds acionou o Distrito do Sul de Ohio, alegando que houve quebra
contratual do devido processo, difamação e interferência nas relações negociais. Reynolds
pediu uma indenização pelos danos sofridos e uma autorização temporária para competir em
solo americano. A IAAF negou que a Corte distrital tivesse jurisdição e não compareceu à
audiência. Reynolds obteve sentença favorável em primeira instância. Diante disso, a IAAF
ameaçou impedir a participação dos Jogos daqueles atletas que competissem com Reynolds
nas provas em solo americano. Posteriormente, o Comitê Olímpico norte-americano fez um
acordo para que isso não ocorresse. Porém, a IAAF não queria permitir a participação do
354
Esse tema será melhor explorado no próximo capítulo. 355
Latty, 2007, pp. 423-424. 356
Sentença de 17 de maio, da Corte de apelação, 6º Circuito, com extratos e comentários de Bitting, 2008, pp.
660-662.
94
atleta nos Jogos e, então, acrescentou mais dois anos de suspensão como penalidade por
competir nos EUA357
.
Na ação de danos monetários, a IAAF se recusou a aparecer novamente. A Corte de
Ohio condenou a IAAF a 27,4 milhões de dólares de danos morais, em que mais de 20
milhões eram a título punitivo, estimando que a FI agiu de má-fé e com espírito de vingança
contra Reynolds. Quando Reynolds começou um processo de penhora em 1993 contra os
patrocinadores americanos da IAAF e em função de lei inglesa que permitia demandar as
reparações pecuniárias ao presidente da IAAF, a FI finalmente apareceu perante a Corte
distrital para argüir a falta de jurisdição. Quatro anos depois, a sentença final concordou com
o argumento de falta de jurisdição e dispensou do pagamento da multa358
. Em função desse
processo, a IAAF resolveu mudar de sede para Mônaco, o que reforça o exemplo do tópico
anterior sobre a conveniência de estar em um país sede. Portanto, é possível afirmar a
“organização pode tirar proveito da concorrência das soberanias estatais para encontrar uma
terra de acolhimento mais hospitaleiro”359
, induzindo ao fenômeno da “mundialização”. A
mudança de sede de um Estado para outro, sem nada mudar em suas estruturas ou seu
funcionamento360
, reforça o poder de sua transnacionalidade.
Como afirmado logo no início, a regra é que o direito transnacional esportivo prevaleça
sobre a ordem nacional. A Sentença nº 2005/A/983 e nº 2005/A/984, de 12 de julho de 2006 –
Club Atlético Peñarol c/ Carlos Heber Suarez, Cristian Gabriel Rodriguez Barroti e Paris
Saint-Germain361
– expressa essa predominância. No caso, dois jogadores de futebol
uruguaios firmaram contrato de trabalho com o Peñarol, clube de futebol, submetidos ao
Estatuto do Jogador de futebol uruguaio. Os jogadores se recusaram a assinar os contratos
propostos pelo clube, o que, na legislação uruguaia, permitia ao empregador prolongar
unilateralmente o contrato de trabalho dos jogadores sem troca de condições financeiras do
contrato. Privados de seus salários e da liberdade de treinar em seu clube, os jogadores foram
considerados “rebeldes”, na forma da lei uruguaia, pelo recorrente por se recusarem a assinar
os contratos362
. Embora ainda existisse o conflito com o Peñarol, os jogadores assinaram um
contrato de trabalho com o clube francês Paris Saint-Germain. A Federação uruguaia recusou
357
Ibidem. 358
Ibidem. 359
Latty, 2007, 473. 360
Ibidem. 361
JDI, 2010, pp. 200-225, com extratos e comentários de Éric Loquin. 362
Ibidem, p. 204.
95
liberar o certificado internacional de transferência dos dois jogadores, considerando-os ainda
ligados ao Peñarol. Este recorreu ao órgão competente da FIFA para que os jogadores não
fossem registrados, mas ela, ao contrário, autorizou o registro em seu novo clube. Foi, então,
que o Peñarol se viu obrigado a recorrer ao TAS em duas causas conjuntas, sob o argumento
de que os contratos de trabalho dos jogadores declarados rebeldes ainda estavam em vigor,
dado que foram renovados unilateralmente363
.
Sobre o direito a se aplicar, o TAS admite que pode ser utilizado o direito suíço, em
especial a Lei de direito internacional privado (LDIP), com o motivo de que o litígio é
internacional e a sede da arbitragem é a Suíça. O art. 176,1 declara que a lei é aplicável desde
que uma das partes, ao menos, não tenha, no momento da arbitragem, nem seu domicílio ou
residência habitual na Suíça. O TAS lembra que o art. 187 da mesma lei estabelece que a
decisão seja tomada segundo as regras de direito escolhidas pelas partes, mas que, na sua
falta, a decisão será tomada segundo as regras de direito, cuja causa apresenta as ligações
mais estreitas. Portanto, o TAS resumiu que as regras aplicáveis ao caso era, a título principal,
o Regulamento da FIFA; a título supletivo, as disposições do direito suíço; em complemento,
as normas nacionais, cujo Regulamento da FIFA faz referência. A Turma arbitral ressalta que
o esporte é um fenômeno que transcende fronteiras, sendo indispensável que as regras que
regem o esporte tenham um caráter uniforme e largamente coerente no mundo inteiro364
.
Assim, “a meta do regulamento da FIFA é de instaurar as regras uniformes valendo para
todos os casos de transferência internacionais e aos quais o conjunto de atores da família do
futebol é submetido”365
. Não é concebível que as “regras nacionais possam afetar as partes
não submetidas ao direito desse país”, só podendo encontrar aplicação se conformes às regras
da FIFA, nunca contrários366
.
O TAS afirma que a incompatibilidade do sistema uruguaio com os princípios do
Regulamento da FIFA “decorre da possibilidade reservada ao clube de transformar de
maneira obrigatória uma relação contratual inicial de curta duração em uma relação muito
longa de duração”367
, isto é, prolongar o contrato de um jogador com as adaptações de salário
até que ele atinja 27 anos não é compatível com o Regulamento da FIFA, que prevê duração
363
Ibidem, pp. 205-206. 364
Ibidem, pp. 207-212. 365
Ibidem, p. 200, (grifo meu, tendo como propósito discutir mais a frente o princípio da igualdade). 366
Ibidem. 367
Ibidem.
96
máxima de cinco anos368
. Além disso, o sistema uruguaio de prolongamento unilateral é
contrário aos princípios fundamentais do direito suíço do trabalho, pois as regras uruguaias
beneficiam o clube de tal maneira que o jogador não possui nenhuma forma de escapar desta
regulamentação. Um sistema deste tipo, por proporcionar ao trabalhador a arbitrariedade do
empregador, “é imoral e incompatível com os valores fundamentais da ordem jurídica
suíça”369
. Ao rotular o jogador de rebelde, impossibilitando a discussão de um salário e o
exercício seu ofício, constitui tal atitude como rescisão contratual de fato dessa relação
trabalhista por ato do clube. O mecanismo da “rebelião” é “inaceitável e aberrante”, indo de
encontro com os princípios mais fundamentais da ordem jurídica suíça370
. Portanto, diante
dessas conclusões, o TAS rejeitou o recurso do clube recorrente, confirmando a decisão da
FIFA371
.
Fica evidente, nessa decisão, que o TAS busca estabelecer critérios para que haja
coerência nas relações de trabalho envolvendo a lex sportiva. Ao fazer referência a três ordens
diferentes, verifica-se o envolvimento delas em problemas constitucionais da autonomia
contratual e de direitos sociais. Apesar de haver a primazia do direito transnacional esportivo,
o TAS não se limitou apenas a justificar sua decisão através do princípio constitucional da
igualdade, como também trouxe da ordem suíça soluções para um problema jurídico que
limitava a liberdade do atleta. Foi dessa forma que o Tribunal justificou a impossibilidade de
implementar a regulação trabalhista nacional uruguaia ao caso, ao mesmo tempo em que deu
novos significados aos direitos sociais do trabalho, a partir de outras ordens. Partindo do
pressuposto que há a primazia da ordem transnacional e, simultaneamente, a liberdade da
ordem de se transferir de território quando lhe for conveniente, cabe enxergar tal forma de
solução, agregando o direito suíço, uma maneira importante de integração entre ordens para a
identificação e solução de problemas relativos aos direitos sociais.
Quando existem conflitos entre a lex sportiva e outra ordem, é comum o TAS se
manifestar em prol da ordem desportiva através do princípio constitucional da igualdade.
Além da perspectiva do igual acesso, o princípio da igualdade exige que os casos sejam
tratados igualmente. Isso se liga à regularidade da aplicação normativa, isto é, do princípio da
legalidade372
. A legalidade, aqui, não significa aplicação da lei no sentido estatal, senão no
368
Ibidem. 369
Ibidem, p. 201. 370
Ibidem. 371
Ibidem, p. 220. 372
Neves, 2008, p. 169.
97
sentido da aplicação dos regulamentos privados (e do CMA) dos atores esportivos. Cabe,
portanto, ao TAS aplicá-los regularmente aos casos iguais. Não foi exceção a sentença nº
2006/A/1119, de 10 de dezembro de 2006 – União Ciclista Internacional (UCI) c/ L. e Real
Federação Espanhola de Ciclismo (RFEC)373
.
Após exame antidoping positivo realizado por um laboratório credenciado pela AMA, a
UCI condenou o atleta e, em seguida, determinou, com base nesses dados, que a Federação
espanhola seguisse procedimento disciplinar, nos termos de seu regulamento antidoping. Por
intermédio do Comitê Nacional de Competição e Disciplina Desportiva (CNCDD) – órgão
disciplinar nacional constituído por lei –, o ciclista profissional teve o benefício da dúvida
concedido, porque, segundo o órgão, o processo estava incompleto por não se conformar a
todas as exigências legais aplicáveis, o que não garantiria totalmente o resultado. Pela
previsão existente no CMA, a UCI recorreu ao TAS com o intuito de reverter tal decisão. O
atleta sustentava que o TAS era incompetente, pois o direito espanhol prevê que, em casos de
recursos, a competência é do CNCDD, cujas decisões podem ser objeto de um recurso frente
um tribunal administrativo espanhol. Em lei espanhola, também era proibido sustentar recurso
à arbitragem em matéria de doping. Recorrer ao TAS, segundo o atleta, contrariava o direito
inalienável de acesso à Justiça, reconhecido em sua Constituição374
. Soma-se a isso o fato de
que ele alegava não ter consentido a se submeter à arbitragem do TAS.
O TAS afirmou que somente as autoridades internacionais podem gerir juridicamente
suas competições esportivas, pois tende a submeter todos os atletas a um tratamento
igualitário, assegurando que certas FN‟s não sejam passivas em face das violações cometidas
por seus atletas. A ordem jurídico-esportiva tem por objetivo assegurar o respeito à
sinceridade das competições e a igualdade dos competidores. Foi, então, que o TAS justificou
a eficácia da própria ordem a partir do princípio constitucional da igualdade, pois se confiasse
às “leis nacionais o cuidado de reger as condições nas quais se devem desenvolver as
competições internacionais terminaria em um sistema incoerente e inigualitário”375
. Se isso
ocorresse, haveria uma corrida pela legislação menos repressiva no que se refere ao doping.
Para que isso não ocorra, é necessário que uma mesma disciplina esportiva seja submetida às
mesmas regras para todos os que participam dos eventos esportivos. O TAS não negará a
soberania nacional, mas delimita-a ao próprio território. Se houvesse, em detrimento da
373
JDI, 2008, pp. 234-258, com extratos e comentários de Éric Loquin; e de Neves, 2009, pp. 198-201. 374
JDI, 2008, p. 236. 375
Ibidem, p. 233 e 242; Neves, 2009, 199.
98
autoridade esportiva, a interferência estatal nas competições internacionais, isso seria,
teoricamente, concebível. Contudo, tal comportamento contrariaria a luta contra o doping,
além de poder resultar na exclusão do país nas competições internacionais376
.
O TAS rejeitou o argumento constitucional do atleta de que havia o desrespeito ao
direito inalienável de acesso à Justiça e aos tribunais, porque ele se declarava competente,
enquanto autoridade transnacional, a julgar tais causas. O Tribunal afirmou que há uma
relação de complementaridade entre ordens, dado que um mesmo comportamento pode ser
sancionado penalmente, sem que leve a uma sanção do ciclista de nível internacional. Da
mesma maneira, um atleta pode ser excluído, mas não ser sancionado penalmente. Tal postura
acaba sendo coerente com duas decisões do próprio Tribunal, quando, na sentença nº
2007/O/1381, de 23 de novembro de 2007 – Real Federação espanhola de Ciclismo & V. c/
União ciclista internacional (UCI)377
–, a FI tentou utilizar processo penal para suspender
atleta, assim como a decisão nº 2008/A/1572 ; /1632 ; /1659, de 13 de novembro de 2009 –
Gusmão c/ FINA – em que a atleta queria ser absolvida esportivamente, após ter sido
absolvida penalmente.
A sentença rejeitou o recurso da UCI, acatando as argumentações contrárias ao
procedimento irregular que o atleta levantou. Porém, é fundamental, para efeito de
transconstitucionalismo, entender como foi articulado o conflito entre os princípios da
soberania e do acesso à Justiça, de um lado, e do princípio da igualdade, de outro. Se no
recurso o atleta alega que o TAS não é competente em decorrência das normas constitucionais
de seu país, gera-se uma colisão entre princípios constitucionais de ordens diversas. Ao
mesmo tempo, ao afirmar que existem esferas diversas para tratar do mesmo tema, o TAS se
dispõe a enxergar que o doping pode ser punido por outras ordens, sem que fira sua soberania.
Destarte, “a complementaridade e a tensão entre ordem jurídica transnacional e ordem jurídica
estatal manifestam-se simultaneamente em torno de problemas constitucionais, sem que
nenhuma das duas possa ter a priori a primazia, ou seja, seja detentora da ultima ratio”378
.
Por situação semelhante passam as FN‟s francesas que são, simultaneamente, órgãos de
representação das FI‟s e órgãos nacionais. Respondem, portanto, pela legislação nacional
francesa e a legislação transnacional das FI‟s. A sentença nº 2002/A/431, de 2 de maio de
376
Ibidem, p. 234; Neves, 2009, 199. 377
JDI, 2009, 218-239, com extratos e comentários de Éric Loquin. 378
Neves, 2009, pp. 200-201.
99
2003 – UCI c/ R & Federação Francesa de Ciclismo (FFC)379
– mostra, mais uma vez, a
ordem desportiva diante de questões constitucionais. Um ciclista profissional foi solicitado na
França para um controle antidoping, na véspera de uma competição, por um inspetor e um
médico da UCI. O teste foi positivo, o que fez a UCI solicitar à FFC a instaurar procedimento
disciplinar contra o atleta. A FFC não condenou o atleta, porque as condições da imposição
feriam a ordem pública francesa. Além do fato de que “o artigo 3632 do Código francês de
saúde pública prevê que sobre o território francês os controles antidopings devem ser
efetuados pelo pedido do Ministro dos Esportes ou por uma FN aprovada ou pelo Conselho de
prevenção e de luta contra o doping”. Se uma FI quiser fazer o controle, deverá fazê-lo por
intermédio da FN. Qualquer ato operado de forma diferente é contrário ao direito francês. Tal
medida visava “proteger a liberdade individual fundamental dos atletas contra os controles
que não seriam diligenciados sobre o território francês pelas autoridades públicas francesas ou
as federações nacionais que são suas delegatárias”380
.
Preliminarmente, o TAS afirma sua competência no caso através da cláusula
compromissória por referência, o que vincula o atleta à sua decisão, além da vinculação
francesa à Declaração de Copenhague que visa a uniformização das regras antidoping. Os
árbitros afirmam que o problema do doping deve ser combatido em conjunto, não
separadamente embaraçando as regras do esporte internacional381
. A reserva da ordem pública
deve permitir que não se forneça proteção às situações que firam de maneira chocante os
princípios mais essenciais da ordem jurídica e os valores reconhecidos nos Estados de direito.
Portanto, recorrendo ao princípio da igualdade para garantir a homogeneidade da aplicação de
suas regras e tendo em vista que foi constatada a presença de quatro substâncias proibidas, o
TAS não notou uma violação da ordem pública invocada pela FFC a ponto de “ser uma
ameaça real e suficientemente grave que afete um dos interesses fundamentais da sociedade”.
Como o atleta era reincidente, o Tribunal reformou a decisão da FFC, aplicando-o a pena de
quatro anos de suspensão382
.
O TAS afastou qualquer argumento de que a ordem desportiva feriria as liberdades
individuais e a ordem pública francesa. A proteção da ordem pública não se sustentaria
meramente diante da nacionalidade do atleta e da entidade que controla o doping. Se a
379
JDI, 2005, pp. 1309-1312, com extratos e comentários de Éric Loquin. 380
Ibidem, 1309-1310. 381
Ibidem, p. 1311. 382
Ibidem, p. 1312.
100
finalidade do Estado é preservar a saúde dos cidadãos franceses, a decisão da FFC não se
manteria diante da presença de quatro substâncias proibidas no organismo do atleta. As
argumentações de caráter constitucional levantadas pelo atleta não se confirmam diante da
necessidade da aplicação jurídica igualitária aos casos semelhantes. Diante do conflito inicial
em torno de tantos problemas constitucionais comuns às duas ordens, quais sejam o da
nacionalidade, liberdade, da ordem pública e igualdade, a situação requer o aprendizado e o
intercâmbio transconstitucional entre ambas as ordens, “especialmente quando a diversidade
de interpretação das normas de competência leve a uma colisão sobre o próprio órgão
legítimo para decidir”383
. O TAS não se limita a aplicar o princípio da igualdade: reinterpreta
o respeito à ordem pública com vistas ao seu propósito, afastando a visão meramente
nacionalizada. Em conseqüência de decisões como essa, o governo francês passou a aceitar
que as FI‟s fizessem os controles antidopings por ocasião das competições internacionais.
A sentença nº 2006/A/1149 e nº 2007/A/1211, de 16 de maio de 2007 – WADA c/
Federação Mexicana de Futebol (FMF)384
– remete ao caso de um jogador que participava do
campeonato mexicano de futebol, condenado por doping após uma análise realizado por um
laboratório credenciado pela AMA (WADA). Os resultados foram comunicados ao clube
empregador e à FMF, mas não ao atleta. O clube alegou que a função de notificar o resultado
do laboratório era da FMF. Sendo ele reincidente por fatos idênticos, a Comissão Disciplinar
da Federação Mexicana de Futebol, juntamente com seu órgão recursal ligado ao Ministério
dos Esportes mexicano – a Comissão de Apelação e Arbitragem do Desporte (CAAD) –,
decidiu não aplicar a sanção prevista no Código disciplinar da FIFA, que prevê o banimento
do atleta. Essa decisão foi fundada na ausência da notificação do resultado ao jogador, que foi
privado de verificar a análise da segunda amostra nas quarenta e oito horas após a
comunicação. Isso levaria à presunção absoluta de aceitação do resultado. A Comissão se
enganou ao acreditar que a amostra B fora destruída, o que impossibilitava retificar o erro
procedimental. Contudo, a amostra fora congelada e estava apta a ser analisada. A FIFA,
então, solicitou à AMA que recorresse ao TAS da decisão da FMF, conforme Regulamento da
FIFA. A AMA se dirigiu contra a FMF, requerendo ao TAS que banisse o atleta por toda
vida.
Apesar de o jogador afirmar que lei mexicana obrigava que o recurso fosse julgado pelo
CAAD, o TAS negou que a decisão tomada por este órgão fosse definitiva. Novamente, o
383
Neves, 2009, p. 201. 384
JDI, 2008, pp. 259-272, com extratos e comentários de Éric Loquin; e Neves, 2009, pp. 201-203.
101
TAS afirma a coexistência entre autoridade nacional e internacional em matéria de doping,
justificando a prevalência da ordem desportiva nesses casos pelo princípio da igualdade. O
atleta apresentou uma análise negativa de resultado de um laboratório mexicano que não era
credenciado pela AMA. Argumentou que a dúvida criada deveria conduzir a uma absolvição.
O TAS desconsiderou tal prova, pois somente as análises realizadas pelos laboratórios
reconhecidos, que respeitam os protocolos instituídos, possuem valor probante para a lex
sportiva. Dada a reincidência no doping, o atleta foi banido do esporte por toda a vida.
Observa-se nesse caso “o problema potencial de uma colisão entre o princípio constitucional
da igualdade [...] e o princípio da ampla defesa, baseado na ordem interna do Estado de direito
e alegado de maneira implícita pelo jogador”385
. A situação, de fato, se enquadra no contexto
transconstitucional, exigindo conversação entre ordens.
Até aqui, foram observados alguns casos em que a lex sportiva demonstra sua
autonomia perante outras ordens, ao mesmo tempo em que reelabora conceitos constitucionais
quando questionada sua atuação. Observaram-se, também, conflitos entre ordens –
especialmente seus tribunais – diante de problemas jurídicos comuns, promovendo soluções
constitucionais diversas sobre estes. Sem negar a alteridade, isto é, a co-regulação de
problemas comuns, a lex sportiva possui uma justificativa forte, através do princípio da
igualdade, para impor suas decisões perante as estatais. Essas situações enquadram-se na
exigência de um entrelaçamento entre ordens visando à solução de problemas e aprendizado
constitucional, o que, de certa forma, não foi possível notar de forma ampla nos casos
estudados por meio da conversação entre tribunais. Levanta-se, então, a seguinte questão: em
que situação é possível verificar um entrelaçamento construtivo de ordens na solução de
problemas constitucionais comuns? Para que essa pergunta seja respondida, a ordem
supranacional entrará em cena.
5.5 A força do direito comunitário
A facilidade com que a lex sportiva conseguiu concretizar boa parte de suas decisões
nas mais diversas ordens territorialmente delimitadas não será encontrada no plano do direito
comunitário. Esta ordem possuirá grande força para influenciar modificações na ordem
esportiva, assim como possibilitará um novo olhar sobre problemas jurídicos. Isso ocorre
pelas seguintes razões:
385
Neves, 2009, p. 203.
102
Comparando essa força do direito comunitário perante o direito esportivo
transnacional, observa-se que a União Européia tem uma postura de maior
autonomia perante as federações esportivas transnacionais do que os Estados, pois
não há federações esportivas no plano da Europa, cujo desenvolvimento e
manutenção sejam fatores relevantes de legitimação da União. Ao contrário, os
Estados, em cujo âmbito territorial as federações estão primariamente vinculadas às
federações transnacionais, tornam-se muito dependentes dessas para fins do
desenvolvimento dos desportos no plano interno, que é um dos fatores de
legitimação386
.
A força do direito da União Européia está longe de ser destrutivo para a ordem
desportiva. Ela “tem desempenhado um importante papel de intermediação
transconstitucional entre as ordens jurídicas estatais dos seus Estados-membros e a ordem
jurídica transnacional dos esportes”387
. A decisão C-415/93 do Tribunal de Justiça das
Comunidades Européias (TJCE), do caso Union royale belge des sociétés de football
association ASBL e outros c/ Jean-Marc Bosman e outros, exemplifica bem o funcionamento
de situações conflituosas entre ordem desportiva e comunitária.
Em maio de 1988, Jean-Marc Bosman, atleta belga, assinou um contrato com um clube
da primeira divisão belga, SA Royal Clube Liégeois (RC Liège). Seu contrato com o clube
garantiu um salário de 75 mil francos belgas por mês, até o dia 30 de junho de 1990. Em seu
contrato, foi acordado que ao término, natural ou prematuro, o clube poderia reter seu passe
(registro ou domínio). Qualquer transferência futura do jogador no fim de seu contrato deveria
ser regulado pelas regras da Associação Belga de Futebol. Em abril de 1990, dois meses antes
do fim do contrato, o clube ofereceu ao jogador um contrato de um ano de 30 mil Francos
Belgas. Bosman rejeitou os novos termos. Porém, com base no artigo 46 da Associação
Belga, sobre transferências de jogadores, o clube colocou-o na lista de “transferência
compulsória” pelo preço de mais de 11 milhões de Francos Belgas. Isso significava que se o
jogador e o clube interessado concordassem com o pagamento da transferência e da taxa, a
transferência poderia seguir mesmo sem aceitação do clube fornecedor. Entretanto, nenhum
clube se mostrou interessado no atleta. No dia 1º de junho, o período de transferência
compulsória chegou ao fim e o período em que o jogador pode ser negociado livremente, com
a concordância do clube fornecedor, começou. Bosman tentou definir sua própria saída do
clube, assinando contrato com um clube da segunda divisão francesa, a Union Sportive Du
Littoral de Dunkerque (US Dunkerque) que ofereceu ao jogador a quantia de 90 mil Francos
Belgas por mês. No dia 27 de julho de 1990, US Dunquerque e RC Liège acordaram por uma
transferência temporária do jogador por uma temporada, pelo pagamento de um milhão e
386
Ibidem, p. 244. 387
Ibidem.
103
duzentos mil Francos Belgas, com a opção de contratá-lo em definitivo por quatro milhões e
oitocentos mil. O contrato entre jogador, clube belga e francês foram estabelecidos pelas
regras da Associação Belga. Com receio de que o clube francês não fosse solvente, o clube
belga não enviou o certificado internacional da Associação Belga. Com isso, os contratos
firmados ficaram sem efeito. No dia 31 de julho de 1990, RC Liège suspendeu Bosman,
impedindo-o de jogar durante toda a temporada388
.
No dia 8 de agosto de 1990, Bosman interpôs uma demanda ante o Tribunal de primeira
instância de Liège contra seu clube. Paralelamente à demanda principal, apresentou uma
demanda com relação a questões provisionais, que tinham por objeto, principalmente, proibir
que obstaculizassem a liberdade de contratação de seus serviços, o que levantava questão
prejudicial ao TJCE. No dia 9 de novembro, o juiz de medidas provisionais condenou ao
clube belga e sua federação a pagar ao atleta uma quantia de 30 mil Francos Belgas e os
ordenou a não obstaculizarem sua contratação. Além disso, levantou questão prejudicial ao
TJCE com relação à livre circulação de trabalhadores (antigo artigo 48 e atual artigo 39 do
Tratado que institui a Comunidade Européia). Apesar da condição suspensiva dada pelo juiz
das medidas provisionais, verificava-se que atleta foi objeto de boicote por parte de todos os
clubes europeus que poderiam contratá-lo.
No dia 28 de maio de 1991, a Corte de apelação de Liège revogou a medida provisional
do Tribunal de primeira instância de Liège na medida em que levantava questão prejudicial ao
TJCE (o que fez, também, este ser revogado). Isso não impediu que condenasse o clube a
pagar uma quantia mensal ao atleta e à Federação a colocar o atleta à disposição de qualquer
clube que quisesse obter seus serviços, sem que fosse obrigado a pagar nenhuma
compensação. Bosman, em 20 de agosto de 1991, pediu para que a União das Associações
Européias de Futebol (UEFA) participasse do litígio iniciado por ele contra o clube e a
Federação belga, dirigindo-se diretamente contra ela uma ação baseada na responsabilidade
na adoção dos regulamentos que o prejudicou. Em 9 de abril de 1992, Bosman modificou seu
pedido inicial, ampliando sua demanda contra a UEFA. Somado ao pedido de pagamento dos
prejuízos sofridos, solicitou que declarasse que não eram aplicáveis as regras da UEFA
relativas às transferências, nem as cláusulas de nacionalidade, o que servia de objeto de
invocação ao TJCE de questão prejudicial. A Corte de Apelação de Liège, após impugnação
das partes contrárias, admitiu as ações do atleta contra a UEFA e a Federação belga,
388
Cf. extratos e comentário em Parrish, 2003, pp. 92-98.
104
principalmente no que se refere ao desrespeito aos (atuais) artigos 39 (livre circulação de
trabalhadores, abolindo qualquer discriminação em função da nacionalidade), 81 (proibição
de medidas que impeçam a liberdade de concorrência) e 82 (proibição de medidas tomadas
por empresas que explorem de forma abusiva uma posição dominante no mercado comum).
Para que o TJCE se pronunciasse, tais artigos do Tratado de Roma foram contextualizados
pela Corte de Apelação nas seguintes questões: um clube de futebol pode exigir e perceber o
pagamento de uma quantidade pecuniária com motivo da contratação de um de seus
jogadores, ao término de seu contrato, por parte de um novo clube empregador? As
associações ou federações esportivas nacionais e internacionais podem estabelecer em suas
regulamentações determinadas disposições que limitem o acesso dos jogadores estrangeiros
cidadãos da Comunidade Européia às competições que organizam? A primeira questão diz
respeito às regras de transferência da UEFA em que um clube vendedor pode receber uma
compensação pelo passe do jogador, justificado pelo fato de este ter se desenvolvido e
treinado no clube, mesmo que não esteja com contrato em vigor. A segunda se refere à
limitação do número de comunitários por clube pela regra do 3+2, isto é, os clubes não podem
ter mais que três não-nacionais e dois “assimilados”, que jogaram no país por cinco anos
consecutivos389
.
Diante das questões levantadas, o TJCE considerou que a prática do esporte está
regulada pela ordem comunitária, na medida em que constitui uma atividade econômica,
como nos casos dos jogadores de futebol profissionais ou semi-profissionais, pois efetuam
atividade que tem seus serviços retribuídos. Não é, assim, necessária a condição de empresa
do empregador para a aplicação dessas disposições. O Tribunal afirmou que as normas que
regem as relações econômicas entre os empresários de um setor estão incluídas no âmbito de
aplicação das disposições comunitárias relativas à livre circulação, quando afetam as
condições de emprego dos trabalhadores. Esse é o caso das regras de transferência de
jogadores entre clubes de futebol, pois as relações econômicas entre eles afetam, através da
obrigação imposta aos clubes empregadores de pagar compensações ao contratar um jogador
de outro clube, as possibilidades dos jogadores de encontrar um emprego. O TJCE admite a
autonomia das organizações privadas, mas não aceita que elas firam os limites do exercício do
direito de livre circulação, conferido pelo Tratado. Para o caso, não serve o argumento de que
as regras são “puramente internas e, por isto, não estão incluídas no âmbito do Direito
389
Parrish, 2003, p. 94.
105
comunitário”. Portanto, a regra do “passe do atleta” fere o direito da livre circulação dos
jogadores que desejam exercer sua atividade em outro Estado-membro. Para o TJCE, não é
legítimo afirmar que tal regra seja o meio adequado a alcançar o equilíbrio financeiro e
desportivo entre os clubes e a busca de jogadores de talento e a formação de jovens jogadores,
porque isso não impede que os clubes mais ricos consigam os serviços dos melhores
jogadores, “nem que os meios econômicos disponíveis sejam um elemento decisivo na
competição esportiva e o equilíbrio entre os clubes se veja consideravelmente alterado por tal
fator”. Por fim, o Tribunal afirmou que a regra do “3+2” não respeita o princípio da proibição
da discriminação em razão da nacionalidade. Tal regra não pode ser considerada como
inerente ao esporte ou como manutenção da igualdade e a incerteza do resultado (como foi
alegado pelas partes contrárias), pois nada impede que os times com maior poder aquisitivo
contrate os melhores jogadores. Dessa forma, o TJCE decidiu acatar as reivindicações do
atleta e afastar a legislação desportiva.
O argumento esportivo reunia na igualdade de oportunidades e a incerteza do resultado
sua grande força. Tal perspectiva foi afastada pelo TJCE, que justificou a aplicação do
Tratado porque a legislação esportiva feria dois preceitos de característica constitucional: a
liberdade e a nacionalidade. A função do TJCE é fundamental no contexto esportivo para que
se garanta alguma possibilidade de relação transconstitucional, por causa do comportamento
da ordem esportiva em ignorar, no caso, uma sentença de tribunal estatal ao fazer com que os
clubes boicotassem a contratação do atleta. Para que a ordem estatal, que pensa diferente,
pudesse ter voz, a nacionalidade sai da esfera territorial do país para encorpar um sentido
europeu, o que permitia bater de frente com legislação esportiva contrária às regulações
europeias. A liberdade de circulação dos trabalhadores e a liberdade de concorrência também
terão papel importante, pois, somada à questão da nacionalidade, influirão nas ordens estatais
que estão fora do contexto europeu. Como exemplo, a Lei 9.615/98, conhecida popularmente
como “Lei Pelé”, pertence ao ordenamento brasileiro, tendo como principal objetivo instituir
o “passe livre”, ou seja, após o fim do contrato entre clube e jogador, este estará livre para
firmar contrato com qualquer outro time que esteja interessado em seus serviços.
O caso Bosman causou o efeito de suprimir as regras declaradas contrárias ao direito
comunitário pela Corte. A UEFA abriu mão de suas cláusulas de nacionalidade e de restrição
a jogadores estrangeiros. Neste último caso, alguns países possuem leis que restringem o
106
número de jogadores estrangeiros, exceto os comunitários390
. No plano transnacional referente
a outros esportes, a FIBA aprendeu com a decisão e autorizou a livre circulação dos jogadores
no mundo inteiro391
. Todavia, por mais que os efeitos jurídicos da decisão do caso Bosman
tenham trazido aspectos positivos nas mais diferentes ordens jurídicas392
, cabe ressaltar um
perigo aparente: o direito comunitário europeu, limitado ao seu número de países, pode atuar
de forma imperial em todas as FN‟s393
, inclusive as que se encontram fora da Europa,
negando a autonomia da ordem desportiva. Esse risco é, de fato, aparente, pois, como se verá,
a ordem europeia admite a autonomia da lex sportiva.
A decisão C-51/96 e C-191/97, de 11 de abril de 2000 – Christelle Deliège c/ Liga
francófona de judô e disciplinas associadas (LFJ), Liga belga de judô (LBJ), União européia
de judô e François Pacquée (Presidente da LBJ) – relata o conflito entre, de um lado, as regras
esportivas que prevêem quotas nacionais nos processos de seleção das FN‟s para a
participação de torneios internacionais e, de outro, as regras da Comunidade Européia da livre
prestação de serviços e de concorrência aplicáveis às empresas. A atleta questionava que as
regras desportivas que limitavam o número de atletas por nação e as que impunham a
necessidade de autorização federal para a participação de competições individuais constituíam
entraves ao livre exercício de uma prestação de serviço de caráter econômico e à liberdade
profissional. As instituições desportivas discordavam da atleta ao expressar que não havia
entraves econômicos em suas regras, mas sim entraves objetivos que visavam a participação
do atleta com melhor performance.
Reconhecendo a importância social do esporte, o TJCE recordou que as disposições do
Tratado, no que tange à matéria da livre circulação de pessoas, não se opõem a
regulamentações ou práticas que excluam os jogadores estrangeiros da participação de
encontros desportivos, desde que não sejam por motivos econômicos, senão por razões
inerentes à natureza e ao contexto específico destes encontros, interessando exclusivamente
ao esporte. Dessa forma, as regras de seleção “não determinam as condições de acesso ao
mercado de trabalho de desportistas profissionais, nem incluem cláusulas de nacionalidade
que limitem o número de nacionais de outros Estados-Membros que podem participar numa
390
Latty, 2007, p. 723. 391
Ibidem, p. 728-729. 392
Em Latty, 2007, p. 730, o autor traz algumas das características negativas da visão econômica do esporte
oriundas dessa decisão, como a “multiplicação das transferências”, a “internacionalização das equipes locais”, a
“explosão dos salários”, etc. 393
Cf. Latty, 2007, p. 729.
107
competição”. O Tribunal conclui que, embora as regras de seleção tenham por efeito limitar o
número de participantes num torneio, “tal limitação é inerente ao decurso de uma competição
desportiva internacional de alto nível, que implica forçosamente a adoção de certas regras
ou de certos critérios de seleção” (grifo meu). Portanto, tais regras são justificáveis ante a
restrição à livre prestação de serviços proibida pelo Tratado.
No caso C-176/96, de 13 de abril de 2000 – Jyri Lehtonen, Castors Canada Dry Namur-
Braine c/ Fédération royale belge des sociétés de basketball (FRBSB), com intervenção da
Liga Belga – o TJCE tomou decisão semelhante à anterior. Trata-se de um caso em que o
jogador de basquete que jogou por duas equipes diferentes em uma mesma temporada,
1995/1996. Por causa disso, a equipe belga, segundo time do atleta nesta temporada, foi
punida pela FRBSB, aplicando-lhe a derrota nas partidas em que o jogador fora inscrito,
conforme regulamentação esportiva da FIBA. O atleta, juntamente com o clube, recorreu ao
TJCE questionando o obstáculo à livre circulação de trabalhadores. O Tribunal justificou que
a fixação de prazos para as transferências de jogadores “pode responder ao objetivo de
garantir a regularidade das competições esportivas”, o que, sendo feito tardiamente, poderia
“alterar sensivelmente o valor desportivo de uma ou de outra equipe durante o campeonato,
pondo assim em causa a comparabilidade de resultados entre as equipes envolvidas neste
campeonato e [...] à boa realização do campeonato no seu conjunto”. Visando o princípio da
iguadade, a igualdade esportiva e a incerteza do resultado, o Tribunal abre exceção à regra
que proíbe obstáculos à livre circulação de trabalhadores, quando existem razões objetivas,
inerentes ao esporte, que justifique esta diferença de tratamento.
Quando o assunto é doping, o TJCE tem o mesmo posicionamento dos dois últimos
casos, conforme sentença C-519/04 P, de recurso de decisão do Tribunal de Primeira
Instância, de 18 de julho de 2006, dos atletas David Meca-Medina e Igor Majcen. O Tribunal
de Primeira Instância negou provimento ao recurso destinado a obter a anulação da decisão da
Comissão das Comunidades Européias. Esta rejeitou denúncia apresentada contra o COI e a
FINA em que se questionavam certas práticas relativas ao controle antidoping. Para os
recorrentes, essas práticas iriam de encontro às regras comunitárias de concorrência e de livre
prestação de serviços. Em decisão, o Tribunal afirmou que regulamentação antidoping tem
por objetivo “combater o doping, tendo em vista um desenrolar leal da competição
desportiva, e inclui a necessidade de assegurar a igualdade de oportunidades dos atletas, a
sua saúde, a integridade e a objetividade da competição, bem como os valores éticos no
108
desporto” (grifo meu). O Tribunal afirmou que a limitação à concorrência é inerente ao bom
desenvolvimento da competição esportiva. O caráter repressivo da regulamentação antidoping
produz efeitos negativos na concorrência, quando “as sanções se revelem infundadas”,
podendo “levar à exclusão injustificada do atleta das competições e, como tal, falsear as
condições do exercício da atividade em causa”. Portanto, as regras antidopings devem
“limitar-se ao necessário para assegurar o bom desenrolar da competição”. Como não ficou
provado o caráter desproporcional da regulamentação antidoping, o Tribunal rejeitou recurso.
Os casos mencionados denunciam “uma confluência de problemas transconstitucionais
complexos”, implicando, muitas vezes, a “contenção de órgãos estatais competentes e a
expansão da competência e atuação de órgãos supranacionais e transnacionais em torno de
questões direta ou indiretamente constitucionais”394
. Os institutos europeus da “livre
circulação de trabalhadores, sem discriminação de nacionalidade”, da “proibição de medidas
que impeçam a liberdade de concorrência” e da “proibição de medidas que explorem de forma
abusiva uma posição dominante no mercado comum” se sobrepõem à lex sportiva; exceto em
ocasiões nas quais as regras inerentes da ordem desportiva possam vir a limitá-las. Mais do
que uma contenção da ordem supranacional, tal afirmativa revela uma postura que possibilita
um entrelaçamento construtivo com a lex sportiva. Assim, partindo da percepção do TJCE
sobre o problema da liberdade, o TAS irá se manifestar para a solução de caso específico.
A sentença nº 2004/A/708, de 11 de março de 2005 – Jogador X c/ FIFA e clube Z395
–
trata do caso em que um jogador profissional francês firmou contrato de trabalho em 2000
com um clube de mesma nacionalidade que expiraria na temporada de 2004/2005. No ano de
2002, as duas partes pactuaram pela prorrogação daquele contrato até o fim da temporada
2005/2006, prevendo um aumento salarial. As partes acordaram também que se uma das
partes decidisse colocar fim ao contrato ao término da temporada 2004/2005, em função de
uma transferência para outro clube, o atleta se beneficiaria de uma participação na
indenização de transferência. Contudo, tal disposição caducaria em caso de transferência do
jogador antes do término da temporada, salvo decisão unilateral do clube. Em junho de 2004,
a contragosto de seu clube, o atleta assinou um contrato de trabalho por quatro temporadas
com um clube estrangeiro, sem que houvesse uma compensação financeira ao time francês.
Este, então, recorreu à Turma interna da FIFA, que julga problemas de rescisão contratual
entre clube e jogador. A Turma afirmou que o jogador rompera unilateralmente seu contrato
394
Neves, 2009, p. 245. 395
JDI, 2005, pp. 1329-1337, com extratos e comentários de Éric Loquin.
109
de trabalho sem justo motivo durante o período de estabilidade – período de três anos de
contrato aos jogadores que possuem até vinte oito anos, sendo proibidas as rupturas
unilaterais antes do fim das temporadas – definido pelo artigo 23 do Regulamento da FIFA de
2001, que regula a transferência de jogadores de futebol. Esse regulamento implementa um
regime obrigatório nas relações de trabalho entre os clubes e jogadores, tendo por finalidade
assegurar a estabilidade das relações contratuais, com vistas a se manter a lealdade e a
integridade das competições. A FIFA suspendeu o jogador da participação de competições
durante seis semanas. O jogador recorreu dessa decisão junto ao TAS, defendendo a tese de
que não estava no período de estabilidade previsto pelo Regulamento de 2001 da FIFA, pois o
período não se aplicava em caso de prorrogação de contrato, pois não era um novo contrato,
mas sim o antigo prorrogado. Para o jogador, transferir-se para outro clube não era irregular
nessa circunstância.
Apesar da relação ter se iniciado em 2000, os árbitros aplicaram o Regulamento de 2001
fundado em dois argumentos. O TAS lembrou que o TJCE considerara o Regulamento de
1997 contrário ao direito europeu, e que as partes previram expressamente a aplicação da
versão de 2001. Os árbitros também afirmaram:
[As limitações] à resilição unilateral do contrato de trabalho pode constituir um
entrave à liberdade de circulação dos jogadores, mas esse entrave pode ser
justificado por um objetivo legítimo reconhecido pelo TJCE no caso Lehtonen –
assegurar a estabilidade das equipes a fim de garantir a regularidade das
competições e a integridade do campeonato. (Grifos meus).
No presente caso, o TAS considera correta a aplicação da cláusula de estabilidade às
hipóteses de extensão da duração dos contratos de trabalho com respeito ao direito europeu,
sendo justificada pelo princípio da regularidade das competições e por ser uma medida
proporcional na relação entre o empecilho à livre circulação de trabalhadores e a legitimidade
da exceção inerente aos assuntos esportivos. Assim, o TAS considerou que a extensão da
duração de um contrato de jogador profissional faz automaticamente correr um novo período
de estabilidade para o jogador. Isso, conseqüentemente, fez o TAS rejeitar o recurso do atleta
e confirmar a decisão da FIFA.
O importante dessa decisão é a forma como se entrelaçou com a ordem supranacional.
A ordem desportiva não buscou dar uma “última palavra” quando envolvida num problema
constitucional da liberdade. Tentou buscar o diálogo com o TJCE, colocando este em sua
110
periferia, o que fez emergir uma “fertilização constitucional cruzada”396
. Em torno de um
problema constitucional comum, foi reforçada a aplicação do princípio da igualdade.
Observa-se que ambas as ordens lidaram com “problemas substantivos e institucionais
comuns”397
, aprendendo “uns com os outros a partir de suas experiências e razões” e
cooperando “diretamente para resolver disputas específicas”398
. Essa cooperação só conseguiu
se realizar, porque foram reduzidas as assimetrias entre ordens399
, mesmo que em casos
determinados, para que se pudesse levar em consideração um diferente modo de pensar e agir
sobre o mesmo problema. Situações como essas apresentam o transconstitucionalismo como
uma interessante contribuição para integrar as ordens, em princípio fragmentadas, “sem que
leve a uma unidade hierárquica última”400
.
A “promoção de inclusão generalizada” do transconstitucionalismo – permitindo “a
redução da exclusão primária crescente, especialmente em relação ao direito, no contexto de
uma estrutura heterogênea e diferenciada de comunicações”401
– também vai permitir que os
conceitos jurídico-constitucionais ganhem novos significados a partir da ordem desportiva
transnacional. Há uma relação circular: não são somente os conceitos constitucionais que
servirão de critério para a ordem desportiva; os novos significados dados pela lex sportiva aos
conceitos constitucionais servirão de critério para os estudos em direito constitucional. Como
“o Estado deixou apenas de ser um locus privilegiado de solução de problemas
constitucionais”402
, merecerão maiores considerações as transformações constitucionais das
noções de “soberania”, “acesso à Justiça” (e aos procedimentos constitucionais enquanto
característica da cidadania) e “nacionalidade” promovidas pela lex sportiva.
396
Neves, 2009, p. 119, citando Slaughter, 2003, p. 194. 397
Slaughter, 2003, p. 193. 398
Ibidem. 399
Neves, 2009, p. 286. 400
Ibidem, p. 288. 401
Ibidem, p. 293. 402
Ibidem, p. 297.
111
6 A SOBERANIA JURÍDICA: DA LOCALIZAÇÃO À
DESLOCALIZAÇÃO
O presente capítulo poderia ser apenas um tópico do capítulo anterior. O tema também
se encaixa em uma percepção transconstitucional. Contudo, este espaço, a partir de casos,
servirá para novas percepções constitucionais oriundas da temática “soberania”. Ao mostrar
que este tema tem nova contextualização, outros, como a nacionalidade, cidadania e acesso ao
judiciário, também terão. Os estudos constitucionais sobre esses temas deverão ter contornos
que obriguem um olhar para fora da própria ordem estatal para que se torne possível uma
melhor compreensão de outros atores, como são os relacionados ao esporte. Neste capítulo,
será dado, quando possível, um enfoque à ordem brasileira dentro dessa problemática. Vale
ressaltar que qualquer ordem poderia ser estudada diante desses problemas, mas a escolha da
ordem nacional como objeto preferencial, além de contribuir com os estudos em área
esportiva, mostra que o Brasil não está fora de uma discussão transnacional sobre o tema. É
interessante, de início, mostrar um pouco do debate envolvendo Kelsen e Schmitt para,
posteriormente, chegar a um conceito diferenciado de soberania, isto é, soberania jurídica.
6.1 Soberania jurídica
Para Schmitt, soberano é quem decide em um caso limítrofe, isto é, em um Estado de
exceção403
. É por isso que se discute que o conceito de soberania deve imaginar o que não
está descrito na ordem jurídica vigente, sendo, no máximo, descrito como “extrema
necessidade”, mas não como um pressuposto legal404
. Reforça, com essa postura, que a ordem
jurídica repousa em uma decisão e não em uma norma405
. A decisão nessa situação liberta-se
de qualquer vínculo normativo e “torna-se absoluta em sentido real”. No Estado de exceção,
há a suspensão do Direito em prol da autoconservação406
. O autor não nega a normalidade
fática, vendo até sua importância. Porém, é somente o soberano que decide, definitivamente,
sobre se tal situação “normal é realmente dominante”, tendo, portanto, o monopólio da última
403
Schmitt, 2006, p. 7. 404
Ibidem, p. 8. 405
Ibidem, pp. 10-11. 406
Ibidem, p. 13.
112
decisão407
. A soberania estatal, juridicamente definida, ganha status de “monopólio
decisório”, havendo a tendência jurídico-estatal apenas de descrever que o “direito suspende a
si mesmo em um estado de exceção”408
. Consagra, portanto, que a vinculação do poder
supremo fático e jurídico é o “problema principal da soberania”409
. Assim, “a realidade
jurídica depende de quem decide, mas surge do aspecto juridicamente concreto”410
.
Kelsen, ao contrário de Schmitt, pensa que o Estado só pode ser considerado soberano
quando se tem a ordem jurídica como ponto de partida411
. Para o autor “apenas uma ordem
normativa pode ser „soberana‟, ou seja, uma autoridade suprema, o fundamento último de
validade das normas que um indivíduo está autorizado a emitir como „comandos‟ e que os
outros são obrigados a obedecer”412
. Isto significa que acima da ordem jurídica nacional não
há nenhuma outra413
. O poder factual não pode estabelecer o que deve-ser: o Estado enquanto
conceito jurídico está separado do Estado como conceito sociológico414
. A validade (objeto do
dever-ser) só pode ser derivada de uma norma acima, até a norma hipotética fundamental,
sendo o Estado dependente disto. Nesta óptica, “soberania” é apenas uma forma de dizer que
a ordem legal é válida415
.
Koskenniemi vê relevância no debate entre os dois autores quando expressa que a
rejeição total à ênfase realística de Schmitt faria a doutrina parecer utópica, falhando em dar
proteção aos Estados que assumiram liberdade e independência inicial; enquanto que a total
rejeição ao argumento kelseniano pareceria apologista ao falhar em distinguir entre a decisão
real e a decisão legítima, além de não conseguir proteger a igualdade de outros Estados e de
não explicar a restrição externa ao poder do Estado416
. Apesar de ver relevância ainda nesse
confronto teórico no âmbito estatal, o debate pode ganhar nova forma e ir além desse espaço
territorialmente definido. Para tanto o conceito de soberania tende a ser “reduzido à dimensão
normativo-jurídica, enquanto não-subordinação da ordem ou instituição jurídica”417
.
407
Ibidem, pp. 13-14. 408
Ibidem, p. 14. 409
Ibidem, p. 18. 410
Ibidem, p. 32. 411
Kelsen, 2000, p. 544. 412
Ibidem, p. 545. 413
Ibidem. 414
Koskenniemi, 2005, pp. 226-27. 415
Ibidem. 416
Ibidem, pp. 228. 417
Neves, 2008, p. 157.
113
Isso ocorre em função da crescente inserção do Estado na ordem internacional,
supranacional e transnacional. Tais ordens conduziram a uma crise conceitual de soberania. O
foco inicial será entender os sentidos e funções que a soberania tomará com relação ao Estado
Democrático de Direito, sob óptica dos sistemas político e jurídico. Por um lado a soberania
será compreendida como “autonomia funcional condicionada e territorialmente determinada
do sistema político” como forma de proteção a outras interferências, como as religiosas,
estamentais e jurídico-positivas418
. Por outro lado, a soberania significará “a autonomia
operacional do sistema jurídico”419
. A Constituição poderá ser definida como “mecanismo da
soberania do Estado enquanto organização central ou centro de observação de dois sistemas
estruturalmente acoplados, a política e o direito”420
. Assim, a Constituição
institucionaliza a condicionalidade política da soberania ou da positividade jurídica
(o fato de que o estabelecimento e a alteração permanente e continuada do direito
dependem de decisões políticas) e a vinculação da política estatal soberana ao direito
(“lícito/ilícito” como segundo código do poder). Essa desparadoxização resulta
inclusive em “hierarquias entrelaçadas” na relação entre soberania política e
soberania jurídica do Estado.
Com a fragmentação do sistema jurídico em ordens para além dos territórios, isto é,
incluindo linhas setoriais da sociedade421
, a soberania, agora jurídica, não sentirá necessidade
de território para possuir sentido. Se assim o fosse, dificilmente seria explicada a eficácia das
decisões de ordens transnacionais. O pluralismo legal global, assim, nem sempre vai seguir
“fórmulas de unidade legal, nem de ideal teórico de uma norma hierárquica”422
. Da mesma
forma, também não será resultado de um pluralismo político423
, como mostram as ordens
jurídicas transnacionais. A soberania jurídica será global, fragmentada e, por vezes, autônoma
ao Estado. É assim que ocorre com a lex sportiva.
Foi visto durante este trabalho várias sentenças arbitrais, cuja eficácia se sobrepôs ou
conviveu em conjunto com outras decisões (geralmente estatais), sem que fossem sobrepostas
por estas. No Brasil, ocorreu uma situação que não se difere daquelas analisadas. Na
introdução deste trabalho, foi também vista parte da sentença nº 2008/A/1572 ; /1632 ; /1659.
– 13 de novembro de 2009. – Gusmão c/ FINA, que apresenta o exemplo de banimento de
uma atleta por toda a vida nas competições internacionais esportivas. Esta sentença vai
418
Ibidem, p. 159. 419
Ibidem, p. 160. 420
Ibidem, p. 161. 421
Teubner, 2004, p. 999. 422
Ibidem, p. 1003. 423
Ibidem, p. 1004.
114
mostrar uma percepção diferente sobre o mesmo problema quando existem duas ordens
jurídicas soberanas interessadas: a lex sportiva e a ordem jurídica brasileira.
A atleta brasileira Rebecca Braga Gusmão era de nível internacional e afiliada à
Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA). A atleta recorreu de três decisões
da Turma de análise dos casos de Doping da FINA (DP), que determinou violação das regras
antidoping. Duas delas se referem à presença de uma substância proibida encontrada na
amostra coletada da atleta nos testes antidoping conduzidos em 25 e 26 de maio de 2006
(TAS/A/1632) e em 13 de julho de 2007 (TAS/A/1572), respectivamente. A terceira violação
de regra alegada refere-se à adulteração do controle conduzido em 12 de julho de 2007 e outro
conduzido em 18 de julho de 2007 (TAS/A/1659).
Durante o campeonato de natação em 2006 a atleta foi submetida a um teste feito pela
CBDA em 25 e 26 de maio de 2006. As amostras foram enviadas para um laboratório
credenciado pela AMA em Montreal, Canadá. A amostra do dia 26 de maio apresentou
resultado anormal, com testosterona de origem exógena. A FINA recomendou que a CBDA
prosseguisse no caso – mesmo após ter sido recomendado pela diretora médica que não havia
bases suficientes para sanção da atleta, a partir da primeira amostra. Em audiência perante a
CBDA em maio de 2007, a atleta confirmou que todas as amostras foram corretamente
coletadas e não houve nenhuma objeção sobre o procedimento. Tendo em conta o desacordo
entre CBDA e FINA sobre a interpretação dos resultados do laboratório, a Turma julgadora da
CBDA decidiu não suspender o Atleta. A FINA requereu ao laboratório a análise da amostra
B (contraprova), que confirmaram os resultados consistentes de testosterona de origem
exógena. Baseado nos resultados, a FINA requereu à CBDA que organizasse prontamente
uma audiência para considerar esse resultado adverso e para emitir uma decisão final o mais
rápido possível. Mesmo após a amostra B, a CBDA manteve sua posição, por ser impossível
assegurar que houve o doping, não podendo, assim, punir a atleta. A FINA recorreu ao TAS,
que se recusou em julgar, pois as próprias esferas da FINA não foram exauridas.
A FINA, através de sua Turma antidoping, promoveu uma audiência. A atleta nomeou o
Dra. de Castro para ser ouvido como testemunha especialista. Na sua decisão, a Turma
antidoping da FINA decidiu que a atleta cometeu uma violação na forma da presença de uma
substância proibida. De acordo com essa Turma a presença de testosterona exógena foi
provada de forma convincente, condenando a atleta a ser inelegível para competir por 2 anos,
115
a partir do dia 17 de julho de 2008. A atleta recorreu junto ao TAS no dia 12 de agosto de
2008.
A atleta participou das competições de natação no Jogos Pan-Americanos do Rio de
Janeiro entre os dias 13 e 29 de julho. Na ocasião, ela foi submetida a dois testes antidoping
no dia 12 e 18 de julho de 2007, que deu razão ao recurso TAS/A/1659. As amostras foram
enviadas ao laboratório credenciado em Montreal, Canadá para a análise. No dia 30 de julho
de 2007, o laboratório constatou que as amostras possuíam testosterona de origem exógena.
Isso resultou no aviso da FINA que a atleta estaria provisoriamente suspensa a partir do dia 2
de novembro de 2007, no aguardo da audiência da Turma Antidoping da FINA. Após o
anúncio da punição, a atleta se apresentou a uma audiência junto à Turma Antidoping da
FINA, e no dia 12 de março, foi decidido que a atleta violou as regras antidoping, punindo-a
com 2 anos de inelegibilidade. Contudo, com o processo anterior correndo, essa poderia ser a
segunda punição, resultando na inelegibilidade para toda a vida, o que fez a Turma esperar o
resultado do processo anterior para pronunciar se a pena seria para toda a vida.
No Pan-Americano, a atleta disputou as provas dos 50 metros livre, 100 metros livre,
revezamento 4x100 livre e medley. Ela foi submetida a um teste fora da competição
conduzido pelo Comitê Organizador dos Jogos. As amostras enviadas ao laboratório,
credenciado pela AMA, atestaram negativos para as amostras coletadas no dia 12 de julho. O
laboratório informou que apesar de claras indicações de uma elevada alteração, eles evitaram
dar uma conclusão analítica adversa, mas sugeriu que uma avaliação mais profunda deveria
ser feita. Um observador internacional da AMA informou à FINA que as circunstâncias do
controle antidoping e os resultados dos testes dão origem a suspeitas em relação às amostras.
O observador requereu ao laboratório o perfil das amostras coletadas nos dias 12 e 18 de julho
de 2007, revelando ser de diferentes pessoas.
No dia 27 de outubro de 2007, o laboratório SONDA, credenciado pela Justiça
brasileira para examinar análises de DNA para a Polícia Federal, relatou à Comissão médica
da organização dos Jogos que as amostras eram de diferentes doadores. Uma audiência foi
realizada em 27 de julho de 2008, e no dia 3 de setembro de 2008, a Turma decidiu que ela
era inelegível por toda a vida em razão da segunda ofensa às regras antidoping.
A atleta alegou que devido à extrema diluição e degradação bacterial das amostras A,
elas deveriam ser dispensadas, pois afetaram o resultado. Portanto, o método utilizado não é
confiável a fim de estabelecer a presença de testosterona exógena. Além disso, a condição
116
patológica da atleta explicaria a alteração. A atleta também alegou desvios procedimentais. As
análises não deviam ser conduzidas, porque a CBDA era a autoridade nacional responsável
pelas análises. Não houve um procedimento confidencial, porque o laboratório informou que
a terceira amostra A pertencia à mesma pessoa. A presença de testosterona não foi
suficientemente provada pelo laboratório e o ônus da prova retrocede à FINA. Com relação à
violação antidoping fora da competição, houve uma quebra de procedimento confidencial,
porque o laboratório realizou um teste sem a requisição especial da FINA. Conseqüentemente,
alguém provavelmente instruiu o laboratório a submeter as amostras da atleta. A cadeia de
custódia não foi mantida quando o laboratório foi mudado para um novo prédio. A atleta
sustentou que o laboratório de Montreal, quando analisou as amostras B, não era credenciado.
A atleta afirmou que o presidente do comitê médico dos Jogos fez demonstrações públicas
que o mostraram informado sobre os resultados positivos da análise das amostras, quebrando
o caráter confidencial. Por fim, foram submetidas cinco amostras durante os Jogos, quatro em
que foram testadas negativo pelo laboratório credenciado pela AMA, mas apenas a amostra
tomada no dia 13 de julho foi mandada pelo laboratório de Montreal e testado positivo. A
atleta afirmou que é nulo o resultado em razão do laboratório SONDA não ser credenciado
pela AMA. Além disso, o direito do atleta para uma análise da amostra B no laboratório
SONDA foi desrespeitado. A atleta alegou uma falta de informação sobre a alegação da
custódia quando as amostras foram enviadas ao laboratório SONDA. Por fim, a atleta alega
que a justiça penal brasileira, ao investigar um possível crime de falsidade ideológica, não
encontrou nenhuma culpa da atleta.
Analisando os méritos, a Turma do TAS concluiu que a análise é confiável e de origem
exógena da testosterona. Isso significa que a diluição e degradação bacterial não exclui a
aplicação da análise. Após consultar entendedor da área de análise de amostras, ficou
esclarecido que é comum serem informados que várias amostras pertençam ao mesmo doador,
o que explica o fato de o laboratório ser informado que as amostras foram da mesma pessoa,
mas não a identidade da pessoa. Não vendo nenhum problema procedimental, a Turma acatou
a tese de que ela cometeu uma violação a uma regra antidoping.
A Turma defendia que baseado em estudos científicos o método para diferenciar a
testosterona endógena e exógena é confiável. A contraprova é conclusiva em provar a
presença de substâncias proibidas. Os laboratórios credenciados são responsáveis na condução
de amostras e procedimentos custodiais de acordo com os padrões internacionais de análise.
117
Todavia, essa presunção poderia ser refutada se fosse mostrado que um desvio realmente
ocorreu. Porém, a atleta fez meras alegações, ao invés de provar os desvios procedimentais,
pois não se verificou nenhuma comprovação que incidisse em desvios proibidos em legislação
especial. Nem mesmo houve, segundo o TAS, quebra de confiabilidade nas afirmações, eis
que a informação já havia sido publicada pela CBDA no dia 5 de novembro de 2007. O fato
das quatro amostras não confirmarem positividade, não significa que haveria impacto na
confiabilidade no resultado do laboratório de Montreal. Portanto, nessa situação, houve
violação às regras com a presença de substância proibida.
Em um laboratório credenciado da AMA, revelou-se que as amostras coletadas da
mesma atleta, em diferentes ocasiões, não foram da mesma pessoa. Investigações
concernentes de não-identificados doadores podem ser feitos por laboratórios não
credenciados. Em um conflito de interesses, a médica da CBDA era também responsável pelo
controle antidoping dos Jogos Pan-Americanos. A substituição da amostra da atleta por uma
amostra de uma pessoa diferente só poderia ocorrer com a participação dela. A atleta
confirmou que o procedimento foi normal. A presença da urina de outrem não podia ser
explicada por nenhum caminho que não fosse com a colaboração da atleta. O TAS decidiu
que houve adulteração do controle antidoping cometido pela atleta.
O TAS afirmou que as investigações da polícia brasileira não tem nenhum efeito
vinculante ou prejudicial. De acordo com o artigo R58 do código do TAS a Turma tem de
aplicar as regras da FINA, incluindo as regras e padrões de prova que a Turma aplica em sua
decisão. A Justiça brasileira, em carta enviada à Turma, afirmou que não existia evidência
suficiente para convicção para prosseguir com a acusação contra a atleta. A Turma não podia
aceitar a decisão da Justiça brasileira. Essa conclusão não colocou em questão a dita decisão.
A corte brasileira, sob o direito penal brasileiro, aplicou diferentes regras para se chegar a tal
conclusão.
Na soma de todas as sanções, a Turma decidiu a atleta deveria ser banida por toda a vida
do esporte. Nessa sentença, percebe-se a coexistência de duas soberanias jurídicas sobre o
mesmo problema. Embora houvesse uma decisão penal que inocentasse a atleta, o TAS fez
uso de sua soberania jurídica e não se viu vinculado ao que foi decidido pela Justiça brasileira.
Para tanto, não excluiu o que foi decidido como se fosse impertinente. Ele dividiu os planos
da matéria a serem decididas, ou seja, a Justiça brasileira até poderia condenar a atleta sob os
argumentos penais, mas não esportivos. Mesmo entendendo existir pertinência na decisão
118
brasileira, o que reforça a soberania jurídica da lex sportiva é a possibilidade de aplicar uma
pena de caráter perpétuo à atleta, muito embora a Constituição brasileira, em seu art. 5º,
XLVII, “b”, a proíba. Ou seja, em razão de sua soberania jurídica, é fundamental aplicar a
legislação transnacional ainda que exista previsão constitucional contrária. Conclui-se que
antes de se buscar uma horizontalidade entre Estados, é fundamental encontrar uma relação
horizontal entre ordens jurídicas, dada as suas respectivas soberanias, que, de fato, não podem
ser ignoradas na eficácia de suas decisões.
6.2 Cidadania e o acesso aos procedimentos constitucionais
A cidadania possui vários significados. Ela é ambígua na sua conceituação. Neste
trabalho, a leitura que lhe será dada é a de “inclusão de toda a população na „prestação dos
sistemas sociais‟”424
. A cidadania está vinculada “à auto-referência dos sistemas político e
jurídico”425
, sendo ela “incompatível com ingerências bloqueantes e destrutivas de
particularismos políticos e econômicos na reprodução do Direito”426
.
Esse conceito tem como núcleo o princípio da igualdade enquanto “mecanismo jurídico-
político de inclusão social”, apresentando-se “em uma pluralidade de direitos reciprocamente
partilhados e exercitáveis contra o Estado”427
. A crescente constitucionalização de exigências
integrativas dos sistemas políticos e jurídicos na sociedade428
é fruto de três fases: o
surgimento da semântica de direitos humanos, orientado na construção e na ampliação
generalizada dos direitos de cidadania; o reconhecimento e incorporação estatal da semântica
dos direitos humanos em sua Constituição como direito fundamental; por fim, “a
concretização das normas constitucionais referentes aos direitos fundamentais”429
.
O fundamental à cidadania é o “acesso generalizado aos procedimentos
constitucionalmente estabelecidos e aos benefícios sistêmicos deles decorrentes nos diversos
setores da sociedade”430
. A cidadania deriva da esfera pública para os sistemas jurídico e
político, e retorna destes para aquela. Portanto, é possível afirmar:
[...] de um lado, a pluralidade de direitos que constitui a cidadania relaciona-se com
a diferenciação sistêmico-funcional da sociedade; de outro, com a heterogeneidade
424
Neves, 1994, p. 259. 425
Ibidem. 426
Ibidem. 427
Idem, 2008, p. 175. 428
Ibidem, p. 179. 429
Ibidem, p. 182. 430
Ibidem, p. 183.
119
de expectativas, valores e interesses que circulam por diversas formas discursivas na
esfera pública e exigem tratamento equânime nos procedimentos constitucionais431
.
Uma das características da cidadania, especialmente no Brasil, é o acesso ao Judiciário.
Diante da ordem transnacional desportiva, ela não será mitigada, senão deslocado a um
tribunal desvinculado de qualquer Estado. Não somente sob esta óptica, a sentença nº
2007/A/1370 e 2007/A/1376, de 11 de setembro de 2008 – FIFA & WADA c/ Superior
Tribunal de Justiça & Confederação Brasileira de Futebol & Mr. Ricardo Lucas Dodô,
também contribuirá na compreensão da organização e funcionamento da ordem jurídico-
desportiva brasileira.
No dia 14 junho de 2007, o atleta Dodô foi selecionado para exame antidoping no
Campeonato Brasileiro de Futebol, após a partida entre Botafogo e Vasco da Gama. O teste
revelou a presença de substância proibida (Fenproporex), sendo um forte estimulante e
precursor da anfetamina. O jogador já havia sido testado antes e depois desse resultado,
sempre com resultados negativos. Após a amostra B (contraprova) confirmar a presença da
substância proibida, o STJD, em 9 de julho de 2007, suspendeu provisoriamente o atleta por
30 dias. O atleta e seu clube trouxeram um parecer do laboratório da USP comprovando que
havia a substância proibida em capsulas de café que o atleta alegava ter tomado. Embora isso
fosse confirmado, o laboratório não se responsabilizava pela origem do material analisado.
Tal substância foi indicada pelo médico, o que, por si só, não haveria de ter dúvidas sobre os
diversos produtos que regularmente são administrados por ele. Em 24 de Julho de 2007, a
Comissão Disciplinar lhe impôs uma suspensão de 120 dias, estatuindo que a explicação do
jogador era implausível, especialmente a luz dos fatos que nenhum outro jogador do Botafogo
foi testado positivo em qualquer outro jogo. O jogador recorreu ao STJD, que, no dia 2 de
agosto de 2007, decidiu por maioria que o argumento do jogador era válido, sendo ele vítima
de contaminação e que não fora negligente. Dessa forma, a decisão da Comissão de suspensão
do atleta foi reformada.
Após serem notificadas da decisão pela CBF, a FIFA e a AMA recorreram da decisão
do STJD junto ao TAS. A FIFA requereu suspensão imediata do atleta. O atleta contestou a
jurisdição do TAS e requereu que este decidisse preliminarmente. O atleta se opôs à FIFA
com relação à aplicação de medidas provisionais contra ele. Preliminarmente o TAS decidiu
que tinha jurisdição para regrar sobre o caso, como também não acatou o pedido de suspensão
provisória do atleta. Ainda antes da audiência, se manifestando por carta, o STJD confirmou
431
Ibidem, p. 185.
120
sua posição e afirmou que o TAS não tinha jurisdição rationae personae sobre o tribunal
nacional, embora aceitando que tinha jurisdição rationae materiae sobre o caso.
Já na audiência, mesmo reconhecendo a independência do STJD, a FIFA e a AMA
reforçaram que o TAS tem jurisdição para julgar o caso, dado que em seu artigo 61 de seu
estatuto mais atualizado prevê essa possibilidade, sendo seus membros obrigados a
incorporarem em suas regulações as provisões de administração do doping e que, em caso de
exame positivo para a substância proibida, a primeira ofensa exige o cumprimento da pena de
2 anos de suspensão. De acordo com o CMA, o jogador não podia meramente alegar, sem
provas, que houve contaminação para se eximir da pena. A AMA não viu nenhuma indicação
da origem das capsulas de cafeína que foram submetidas a teste pelo laboratório da USP.
Além de não conhecer os padrões aplicados pela farmácia de manipulação, esta também nega
que tenha contaminado o produto. Entendendo que o jogador falhou em comprovar sua
inocência e confirmando que a culpa do jogador não foi insignificante (porque tal substância
melhora a performance e não foi mencionado o uso de qualquer suplemento ou medicamento
no exame antidoping), pediram para que o atleta fosse suspenso por dois anos do futebol.
A CBF mostrou falta de interesse na causa, pois não foi ela quem decidiu o caso do
Dodô, senão o STJD, que é um órgão externo independente. A CBF não seria afetada pela
decisão do TAS, ainda mais porque negou a jurisdição do TAS sobre casos envolvendo-a. O
STJD, por sua vez, argumentou que, apesar de considerar que existe jurisdição rationae
materiae sobre o caso, não há jurisdição rationae personae sobre si e que não deveria sido
convocado como uma parte nesse procedimento arbitral, porque não possui interesse legal na
disputa; não tem poder de aprovar ou alterar as regras e regulações da administração esportiva
brasileira; não tem poder de executar as penalidades que o TAS impõe; e sua decisão foi
expressa com base no Código Disciplinar da FIFA.
O atleta Dodô negou que o TAS tivesse jurisdição sobre seu caso. Afirmou que o
Código Brasileiro de Justiça Desportiva não menciona o TAS como um órgão recursal, mas
estabelece que a decisão do STJD são finais, vinculantes e não sujeitas a recurso. O jogador
ressaltou a independência do STJD, que não tem nenhuma conexão legal com a CBF
conforme previsto no artigo 217 da Constituição Brasileira, que garante o STJD como um
tribunal de esporte autônomo e independente, e a Lei Pelé. Alegou que não há previsão
recursal no estatuto da CBF e do STJD para a competência do TAS. Além disso, alegou que o
artigo 13 do CMA, no Brasil, não era efetiva no tempo da alegada ofensa de doping. Expôs
121
que não teve culpa alguma na ingestão das capsulas, eis que ingeriu as capsulas indicadas pelo
médico da equipe; ele não questionou a origem das capsulas, pois havia utilizado dos serviços
da companhia durante dois anos. Foi demonstrado que existiu a contaminação através do
exame toxicológico no laboratório da USP. O atleta afirmou que a pena de dois anos é
desproporcional sob as circunstâncias dele, pois não houve culpa. Mesmo no caso de pouca
significância de culpa, em um pior cenário, a sanção máxima é de 360 dias, possivelmente
reduzida pela metade para o caso de preferência do Código Disciplinar da FIFA.
Para decidir definitivamente sua competência sobre todos os atores envolvidos, o TAS
afirmou que a CBF adere aos regulamentos da FIFA conforme seu próprio estatuto. O
Estatuto da FIFA prevê que, quando exauridos todos os recursos internos, a FIFA e a AMA
são competentes para recorrer ao TAS contra decisões envolvendo o doping adotados pelos
membros da FIFA. Isso torna a CBF legalmente ligada a uma decisão do TAS. Contudo,
tendo em vista o Direito brasileiro e as regras esportivas brasileiras, a Turma arbitral tem a
opinião que o STJD é um órgão de justiça que, embora independente em sua atividade de
julgar, deve ser considerado parte da estrutura organizacional da CBF. Ao observar o direito
brasileiro, observou-se que o artigo 217, §§ 1º e 2º, da CF menciona que a Justiça comum só
tem competência caso tenha exaurido todos os procedimentos. O art. 217 da CF não
especifica como os órgãos da justiça desportiva devem ser estruturados e nem se eles são
independentes e montados interna ou externamente a estrutura organizacional das federações
esportivas. O art. 217 deixa a regulação ordinária para tais detalhes ao direito ordinário.
Citando o art. 69-71 do estatuto da CBF e art. 23, I, da Lei Pelé, (“Os estatutos das entidades
de administração do desporto, elaborados de conformidade com esta Lei obrigatoriamente
regulamentar, no mínimo: I- instituição do Tribunal de Justiça Desportiva, nos termos desta
Lei”), o TAS entendeu que o STJD é um órgão de Justiça independente e autônomo. Nem por
isso o STJD não está obrigado a cumprir as regulações da FIFA de aplicação universal.
Citando o art. 50, §4º, da Lei Pelé (“compete às entidades de administração do desporto
promover o custeio do funcionamento dos órgãos da Justiça Desportiva que funcionem junto
a si”), a Turma notou que o art. 70, §1º, do Estatuto da CBF confere ao Presidente da CBF o
poder formal de nomear nove juízes do STJD. Conforme o art. 55 da Lei Pelé, tal nomeação é
feita sob indicação da CBF (dois juízes), pelos clubes participantes do campeonato
profissional de topo (dois juízes), pelos advogado do Brasil (dois juízes), pelos juízes (um
juiz) e pelos jogadores (dois juízes). Portanto, sete juízes de nove são designados pela própria
122
CBF ou por órgãos ou indivíduos que operam sob olhar da CBF, sendo clubes, jogadores e
juízes. Segundo secretário geral da CBF, o STJD não tem sua própria personalidade legal. É
apenas um órgão da CBF. Tal como um órgão da CBF, o STJD não constitui um órgão
governamental. Apesar disso, o artigo 52 da Lei Pelé atribui autonomia organizacional e
independência nas tomadas de decisão da CBF para o STJD.
Embora admirado com a separação de funções na CBF que respeitavam os julgados do
STJD, isso não altera o fato de que este é instituído pelo Estatuto e dependente de
financiamento administrativo da Confederação Brasileira de Futebol. O TAS, ao contrário,
não depende da existência, por exemplo, do COI para existir: não depende financeiramente,
nem esportivamente, podendo existir somente com a presença de outras FI‟s. Dessa forma, o
TAS conclui que qualquer decisão do STJD deve ser considerada como decisão da CBF, o
que a torna responsável em face da FIFA, mesmo pelas decisões de seu Tribunal. A Turma
tem a opinião de que o STJD não tem nenhuma personalidade legal autônoma e não pode ser
considerada como demandada em um recurso arbitral ao TAS; consequentemente, a Turma
tem jurisdição rationae materiae sobre a decisão recorrida, mas não tem jurisdição rationae
personae contra o STJD.
É importante fazer uma reflexão sobre o que foi decidido sobre a jurisdição do TAS e a
jurisdição desportiva brasileira. A interpretação do TAS é acertada nesse ponto, eis que a
representação jurídica na Justiça comum de uma decisão do STJD é feita pela própria CBF.
Outro ponto que merece consideração sobre a Justiça desportiva brasileira é que, atualmente,
não há um só órgão responsável pelo julgamento de todos os esportes nacionais, mas sim de
forma fragmentada pelo esporte representado. A única coisa que dá algum parâmetro
procedimental, de âmbito nacional, a todos esses tribunais é o Código Brasileiro de Justiça
Desportiva – Resolução nº 29 do Conselho Nacional do Esporte; a Lei Pelé – Lei 9.615/98; e
a Constituição Federal. Isso implica que as mais diversas legislações transnacionais dos
diferentes esportes terão outros tipos de regras recursais que nem sempre seguirão os
parâmetros nacionais. Assim, o Código Brasileiro da Justiça Desportiva, conforme o próprio
TAS, só é relevante no nível nacional. Mesmo não sendo importante para a fundamentação de
sua competência, acrescenta o Tribunal Arbitral do Esporte que a Lei Pelé, em seu artigo 1º,
§1º, expressa que a prática desportiva é objeto das regulações nacionais e internacionais. É
também por isso que o TAS se afirmou competente a julgar o atleta, dado que ele é registrado
pela CBF e, ao assinar seu contrato, sabe explicitamente que se obriga a cumprir suas
123
obrigações constantes no seu contrato de trabalho registrado na CBF e seus aditamentos, bem
como respeitar o regulamento dessa entidade.
Aplicando primariamente as regras esportivas internacionais e, subsidiariamente, as
regras nacionais, o TAS acatou as razões das entidades transnacionais e acrescentou que o
jogador é o responsável pela presença da substancia proibida em seu corpo, não sendo
necessária a comprovação de culpa ou intenção ou consciência de uso do jogador para
estabelecer uma violação antidoping. Como não foi mostrada a ausência de culpa ou culpa
insignificante, aplicou-se a pena de dois anos de suspensão ao atleta, não se estendendo aos
clubes pelos quais defendeu.
É de se concluir que o acesso generalizado aos procedimentos constitucionais, como
característica da cidadania, é deslocado à esfera transnacional, quando referente ao acesso ao
Judiciário. Esse deslocamento, uma verdadeira deslocalização, por um lado, limita o
conhecimento da Justiça comum de recursos oriundos da Justiça desportiva (art. 217, §1º) –
reforçada pela proibição das FI‟s – o que também dificulta a aplicação de preceitos
constitucionais aos casos nacionais; por outro lado, a deslocalização permite a garantia
constitucional, em âmbito global, da concretização multilocalizada do princípio da igualdade,
tendo em vista que os casos, principalmente disciplinares, terão considerações iguais. Se não
há uma transnacionalização da cidadania432
, seu caráter de acesso aos preceitos
constitucionais parece cada vez mais ganhar a qualidade de “espessuras insuspeitas”, ou, mais
especificamente, de materialidade não prevista em estudos tradicionais.
6.3 Nacionalidade e um terceiro critério
A nacionalidade é um tema que recebe considerações das ordens jurídicas nacionais, da
mesma forma como na ordem internacional (principalmente em temas que tocam na condição
do refugiado). Nas ordens nacionais, a nacionalidade vai se diferenciar da cidadania, posto
que esta absorverá, fundamentalmente, o direito de participação política, enquanto que aquela
se restringirá à ligação jurídica que a pessoa possui com o Estado, não necessariamente
incluindo a participação política. A determinação da nacionalidade válida para a participação
de eventos esportivos de grande porte tem sido um dos grandes desafios a serem enfrentados
pela lex sportiva. Nos últimos anos, foi possível presenciar uma crescente naturalização de
atletas que apenas visavam a participação em competições internacionais. Da mesma forma,
432
Mostrando uma tendência desse fenômeno (apesar de possuir uma visão diferente de cidadania),
BOSNIAK, 2000.
124
havia interesse dos Estados em naturalizar atletas com o intuito de angariar melhores
resultados nas competições. Com tantas regras diferentes sobre o tema, era necessário ir mais
adiante do que as regras nacionais e internacionais para delimitar o espaço esportivo.
Na sentença da Turma ad hoc (J.O. Sydney) nº 00/001, de 13 de Setembro de 2000,
United States Olympic Committee (USOC) and USA Canoe/Kayak c/ International Olympic
Committee (COI), o atleta Angel Perez, que nascera em Havana e competiu por Cuba em
1992 nos Jogos Olímpicos de Barcelona, não retornou ao seu país após uma competição no
México em 1993. Ao fugir para os Estados Unidos, pediu asilo sob o direito norte-americano
e nunca retornou a Cuba desde então. Em 1994, casou-se com uma cidadã norte-americana,
com quem teve um filho em 1995. No mesmo ano, ganhou o status de “Estrangeiro residente”
nos EUA.
Respeitando as regras da FI de Canoagem, competiu pelos EUA no mundial de 1997,
1998 e 1999. Neste ano de 1999, o atleta obteve a cidadania norte-americana. Em agosto de
2000, Comitê Olímpico dos EUA requereu que o COI garantisse o direito de participação do
atleta nos Jogos Olímpicos de Sydney. O COI negou sob os seguintes argumentos: o atleta já
representou Cuba; foram menos de três anos desde que o atleta se tornou um nacional dos
EUA; e o CON de Cuba não concorda em reduzir o período de três anos referidos na
legislação da Carta Olímpica.
Os requerentes alegaram que a qualidade de “nacional” e “cidadão” poderiam ser
igualados como demonstrado pelo direito de imigração dos EUA, que definia um nacional
como um cidadão dos EUA, ou uma pessoa que, embora não fosse um cidadão dos EUA,
devia permanente fidelidade ao país. Os demandantes argüiram que desde que o atleta
abandonou seu país, seus direitos como um nacional cubano se tornaram nulos.
O TAS em suas considerações, afirmou que o demandante não provou que conseguiu o
status de nacional por um período de três anos: a condição de “estrangeiro residente” não é
suficiente para tal caracterização, pois ele somente obteve a condição de nacional após a
obtenção da cidadania em 1999. Afirmou que, em casos assim, o TAS deve olhar para além
dos dois direitos nacionais e decidir qual é a nacionalidade predominante. Embora perceba
que a distinção entre nacionalidade e cidadania é correta, o Tribunal declarou que apenas
ocorreu o estabelecimento de fato da nacionalidade, mas não jurídica. Trazendo para o
contexto transnacional, os demandantes não conseguiram provar que seus fundamentos foram
definidos pela Carta Olímpica, ou sob o direito internacional, ou sob a ordem norte-
125
americana. A Turma não quis produzir uma regra nova, tendo em vista a existência de uma
regra clara. Acrescentou, por fim, que não existem argumentos de “justiça”, para ser derivado
da Carta Olímpica, como o reconhecimento que a prática do esporte é um direito humano
fundamental, que deveria ser sob tais circunstâncias ser criado um limite de tempo exterior de
inelegibilidade olímpica. Para o TAS, esse tipo de caso não merece uma readequação da regra
a partir de “valores” estabelecidos em Carta Olímpica.
Embora o tema não seja necessariamente constitucional em todas as nações, ele se
comporta sob o domínio da soberania jurídica. Esta permite a promoção de uma terceira via
desnacionalizada e deslocalizada no que se refere à determinação da nacionalidade. O intuito
disso não é negar os critérios das ordens estatais, mas permitir que um preceito fundamental
das ordens desportivas seja possível: a sinceridade das competições desportivas. A idéia,
portanto, é evitar que a competição esportiva seja um mero instrumento de promoção de
Estados “vencedores”, que, por vezes, compram a nacionalidade do atleta visando seu alto
padrão de performance esportiva. A deslocalização desses critérios não visa a medalha como
fruto do país que compra a nacionalidade de um atleta, senão como fruto do atleta,
representando regularmente o seu país.
126
CONCLUSÃO
Este trabalho teve como intenção investigar a autonomia e limites da lex sportiva, da
mesma forma que focou nos problemas constitucionais comuns a esta ordem jurídica e outras,
exigindo o entrelaçamento entre elas. Partiu-se do princípio que a lex sportiva é uma ordem
transnacional que não possui a participação essencial do Estado, senão de atores privados que
ultrapassam os limites territoriais e vinculam aqueles que participam de sua lógica. O
interesse central que possibilita uma vinculação global é a possibilidade de participação em
eventos internacionais. São estes os responsáveis pelo nascimento das Federações
Internacionais. Estes organismos abrem o conceito de lex sportiva como instituições que
produzem normas jurídicas. Dessa forma, a lex sportiva não necessariamente está vinculada
ao Movimento Olímpico.
O Movimento Olímpico reúne vários atores esportivos em torno do principal evento
esportivo: as Olimpíadas. Neste trabalho, notou-se como o Comitê Olímpico Internacional faz
cumprir a Carta Olímpica, o que implica na aceitação ou não de FI‟s (representação esportiva)
e os Comitês Olímpicos Nacionais (representação nacional). Da mesma forma, o COI mantém
os atletas vinculados aos ditames olímpicos, pois, caso queiram participar dos Jogos, terão de
assinar declaração de que aceitam a legislação olímpica e os julgamentos do Tribunal Arbitral
do Esporte.
A Agência Mundial Antidoping, juntamente com o Código Mundial Antidoping,
participa de um âmbito maior que o olímpico, mas contribui com a harmonização da lex
sportiva. A harmonização não se confere somente no plano interno de sua ordem – isto é,
exigindo cumprimento das normas, fiscalização e exames antidoping em vários esportes –
como também no plano externo, utilizando da participação das ordens nacionais e
internacional, seja para haver uma conformação interna da legislação antidoping através de
Tratado Internacional, seja para participar como representante estatal (metade da estrutura),
regrando sobre a matéria. Isso permite a conformação de interesses transnacionais, nacionais e
internacional. Há, de um lado, a garantia da igualdade e sinceridade das competições, e, de
outro, a saúde dos atletas. A estrutura, porém, não dá oportunidade à politização da matéria,
127
eis que o CMA, reforçado por todos os instrumentos internacionais que legitimam este
Código, exige que todas as questões referentes ao doping podem ser recorridas ao TAS.
A idéia de um órgão decisório central na esfera esportiva foi idealizada sob a
perspectiva de tornar possível um discurso autônomo e de âmbito internacional. Como o
contexto dos anos oitenta não permitia arriscar uma aceitação internacional do discurso
desportivo sem intervenção de agentes externos, o nascimento do Tribunal Arbitral do Esporte
se concretizou com apenas a aceitação dos órgãos desportivos, que, com o seu
desenvolvimento, aumentou o número de aceitações em função, principalmente, da condição
de participação nas competições internacionais. O ponto mais interessante do TAS foi a
produção de uma jurisprudência que possibilitou a construção de padrões interpretativos
próprios. Tudo isso tendo em vista a argumentos que valessem a todos os esportes,
possibilitando o fortalecimento da harmonização da lex sportiva. O poder de juridicidade do
Tribunal foi reforçado pela aplicação de princípios gerais de direito, mesmo que de forma
“irritada”, isto é, modificada para a aplicação de uso jurídico-desportivo. Mais do que um
órgão de decisão deslocalizado, o TAS é o responsável pelas decisões que terão
concretizações multilocalizadas.
A autonomia da lex sportiva não significa uma “autarquia”. Diante de problemas
jurídicos comuns a mais de uma ordem jurídica, foi mostrada a importância de diálogo entre
soberanias jurídicas, visando uma horizontalização entre ordens. Quando existe o
envolvimento de mais de uma ordem em algum problema de cunho constitucional, o
entrelaçamento entre elas é uma necessidade. Afirmando sua autonomia a partir de soluções
constitucionais (principalmente com o princípio da igualdade), a lex sportiva, mesmo sendo
uma ordem privada, se viu em uma rede constitucional que ultrapassava os limites territoriais.
Isso exigia uma prática transconstitucional de identificação e solução de problemas jurídicos.
A lex sportiva readequou em sua ordem certos direitos fundamentais, freando-os ou
reafirmando-os com vista a uma lógica própria de sua ordem. Se por vezes conseguiu se
afirmar diante das ordens nacionais, a ordem desportiva transnacional teve dificuldades com
relação à ordem comunitária. Em razão de sua não participação nas competições, torna-se
inviável receber a imposição das decisões do TAS. Nem por isso a ordem comunitária impôs
dependência à lex sportiva, dado que a ordem comunitária soube de sua importância ao
afirmar autonomia nas questões disciplinares. Assim, nota-se que a relação transconstitucional
128
envolvendo a lex sportiva é uma rica fonte de compreensão das possibilidades de
horizontalidade entre estruturas jurídicas diversas.
Por fim, foi visto que a percepção sobre soberania enquanto estudo constitucional
merece uma divisão de sua observação, isto é, uma separação entre soberania política e
jurídica. Dessa forma, verificou-se que entender a soberania jurídica, como autonomia
operacional do sistema jurídico, permite dar um lugar coerente às ordens jurídicas na
sociedade mundial. Isso, igualmente, autoriza novos olhares a respeito de temas dependentes,
como o acesso ao Judiciário, a característica cidadã do acesso aos procedimentos
constitucionais e o critério de determinação da nacionalidade. Todos esses temas partem de
uma premissa localizada para chegar a uma conclusão deslocalizada. Portanto, reforça-se a
necessidade de como um terceiro critério, no caso, privado, pode ser relevante para a
determinação de temas originariamente estatais. A conceituação clássica desses temas não
permite a inserção de atores transnacionais. Ao compreender que os atores transnacionais
estão inseridos na solução desses problemas, os conceitos clássicos tendem a se readequar.
Este é apenas um ponto de partida para uma temática que ainda possuirá vários desafios
futuros. Algumas perguntas que poderão merecer maiores reflexões dos juristas: quem deverá
julgar causas futuras de corrupção em instituições transnacionais esportivas – como ocorreu
na escolha da cidade de Salt Lake City para sede das Olimpíadas de Inverno? Como fiscalizar,
julgar e executar ou, até mesmo, declarar nulidade dos contratos entre entidades desportivas e
Estados promoventes de um evento internacional? Como esclarecer os critérios de escolha de
uma cidade sede para um evento esportivo? São várias perguntas e poucas respostas. No fim,
o que resta preservar são a sinceridade e certo caráter lúdico das competições esportivas, sem
que isso bloqueie outras ordens. Sempre terão outros pontos de vista, outras decisões. O
enfoque não foi dar razão à lex sportiva, senão compreender suas razões de agir em face de
outras ordens. O jornalista Armando Nogueira afirma que “no esporte, como na vida, não
existem vitórias nem derrotas definitivas”. Tal frase pode servir como inspiração conclusiva
para afirmar que no direito, como na vida, não existem decisões últimas definitivas.
129
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(FIJ), pp. 335-340, com extratos e comentários de Gérald Simon.
- Sentença nº 98/214, de 17 de março de 1999 – B. c/ Federação Internacional de Judô (FIJ),
pp. 336-340, com extratos e comentários de Gérald Simon.
- Sentença nº 97/180, de 14 de janeiro de 1999 – P. & consortes c/ Federação Internacional de
Natação Amadora (FINA), pp. 340-342, com extratos e comentários de Gérald Simon.
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- Turma ad hoc de 5 de fevereiro de 2002 – S. Prusis c/ COI e Federação Internacional de
Bobsleigh e de Luge, pp. 263-271, com extratos e comentários de Éric Loquin.
134
- Sentença nº 02/005. – 18 de fevereiro de 2002. – T. billington c/ Federação Internacional de
Bobsleigh e Toboggaining (FIBT), com extratos e comentários de Éric Loquin, pp. 276-286.
- Sentença nº 02/007, de 23 de fevereiro de 2002 – Comitê Olímpico Coreano c/ International
Skating Union (ISU), pp. 303-308, com extratos e comentários de Gérald Simon.
- Sentença nº A/340, de 19 de março de 2002 – S. c/ Federação Internacional de Ginástica
(FIG), 308-321, com extratos e comentários de Gérald Simon.
- Sentença nº 2002/A/379 e 2002/A/382. – 24 de junho de 2002. – V. c/ Royale Ligue
Velocipédique Belge (RLVB) e União Ciclista Internacional (UCI) c/ V. e RLVB, com
extratos e comentários de Gérald Simon, pp. 321-328.
- Sentença nº 2002/A/358. – 24 de setembro de 2002. – União ciclista internacional (UCI) c/
Z. e Real federação espanhola de ciclismo (RFEC), com extratos e comentários de Gérald
Simon, pp. 329-337.
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sentences arbitrales”. In : Journal du Droit International Clunet, nº 1/2004. Paris :
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- Sentença nº 2002/A/401 – de 10/01/2003 – IAAF c/ USATF, pp. 318-336, com extratos e
comentários de Dominique Hascher.
- Sentença nº 2002/A/388 – Ulker Sport c/ Euroleague – de 10 de setembro de 2002, pp. 336-
340, com extratos e comentários de Dominique Hascher.
HASCHER, Dominique ; LOQUIN, Eric. “Tribunal Arbitral du Sport: Chronique des
sentences arbitrales”. In : Journal du Droit International Clunet, nº 4/2005. Paris :
LexisNexis/JurisClasseur, pp. 1301-1337:
- Sentença nº 2002/A/431 – de 2 de maio de 2003 – Union Cycliste Internationale c/
Fédération Française de Cyclisme, pp. 1309-1312, com extratos e comentários de Éric
Loquin.
- Sentença nº 2004/A/708, de 11 de março de 2005 – Jogador X c/ FIFA e clube Z, pp. 1329-
1337, com extratos e comentários de Éric Loquin.
HASCHER, Dominique ; LOQUIN, Eric. “Tribunal Arbitral du Sport: Chronique des
sentences arbitrales”. In : Journal du Droit International Clunet, nº 1/2007. Paris :
LexisNexis/JurisClasseur, pp. 191-254:
- Sentença nº 2005/A/952 – de 24 de janeiro de 2006 – Cole c/ FAPL 24, pp. 202-207, com
extratos e comentários de Éric Loquin.
- Sentença nº 2004/A/605 – de 12 de maio de 2005 – Pamesa Valencia c/ Euroleague
Basketball, pp. 250-254, com extratos e comentários de Dominique Hascher.
LOQUIN, Eric. “Tribunal Arbitral du Sport: Chronique des sentences arbitrales”. In : Journal
du Droit International Clunet, nº 1/2008. Paris : LexisNexis/JurisClasseur, pp. 233-309 :
135
- Sentença nº 2006/A/1119, de 10 de dezembro de 2006 – União Ciclista Internacional (UCI)
c/ L. e Real Federação Espanhola de Ciclismo (RFEC), pp. 234-258, com extratos e
comentários de Éric Loquin; e de Neves, 2009, pp. 198-201.
- Sentença nº 2006/A/1149 e nº 2007/A/1211, de 16 de maio de 2007 – WADA c/ Federação
Mexicana de Futebol (FMF), pp. 259-272, com extratos e comentários de Éric Loquin; e
Neves, 2009, pp. 201-203.
HASCHER, Dominique ; LOQUIN, Eric. “Tribunal Arbitral du Sport: Chronique des
sentences arbitrales”. In : Journal du Droit International Clunet, nº 1/2009. Paris :
LexisNexis/JurisClasseur, pp. 217-331:
- Sentença nº 2007/O/1381 – 23 de novembro de 2007 – Real Federação espanhola de
Ciclismo & V. c/ União ciclista internacional (UCI), com extratos e comentários de Éric
Loquin, pp. 218-239.
HASCHER, Dominique ; LOQUIN, Eric. “Tribunal Arbitral du Sport: Chronique des
sentences arbitrales”. In : Journal du Droit International Clunet, nº 1/2010. Paris :
LexisNexis/JurisClasseur, pp. 199-278:
- Sentença nº 2005/A/983 e nº 2005/A/984, de 12 de julho de 2006 – Club Atlético Peñarol c/
Carlos Heber Suarez, Cristian Gabriel Rodriguez Barroti e Paris Saint-Germain, pp. 200-225,
com extratos e comentários de Éric Loquin.
- Sentença nº 2008/O/1643, de 15 de junho de 2009 – Vladimir Gusev c/ Olympus SARL, pp.
251-260, com extratos e comentários de Dominique Hascher.
- Sentença nº 2009/A/1935, de 12 de novembro de 2009 – Federação Real Marroquina de
Futebol c/ FIFA, pp. 260-278, com extratos e comentários de Érico Loquin.
Sentença nº 91/53, de 15 de janeiro de 1992 – G. c/ FEI, com extratos de Latty, 2007, p. 318.
Sentença nº 98/222, de 9 de agosto de 1998 – B. c/ International Triathlon Union (ITU).
Sentença nº 98/200, de 20 de agosto de 1999 – AEK Athens and SK Slavia Prague c/ Union
of European Football Associations (UEFA), com extratos e comentários de Latty, 2007, p.
306.
Sentença da Turma ad hoc (J.O. Sydney) nº 00/001, de 13 de Setembro de 2000, United
States Olympic Committee (USOC) and USA Canoe/Kayak c/ International Olympic
Committee (COI).
Sentença nº 00/011 Andreea Raducan c/ Comitê Olímpico Internacional, de 28 de setembro
de 2000, da divisão ad hoc do TAS.
Sentença nº 2000/A/289, de 12 de janeiro de 2001 – União Ciclista Internacional (UCI) c/ C.
& Federação Francesa de Ciclismo (FFC).
136
Sentença nº 2000/A/290, de 2 de fevereiro de 2001 – A. Xavier & Everton F.C. c/ UEFA,
com extratos de Latty, 2007, p. 318.
Sentença nº 2001/A/317 A. c/ Fédération Internationale de Luttes Associées (FILA), de 9 de
julho de 2001.
Sentença nº 2002/O/373, de 18 de dezembro de 2003, C.O.A. & B. Scott c/ COI, com extratos
e comentários de Latty, 2007, p. 200.
Sentença nº 2004/A/ 549, de 27 de maio de 2004 – D. & Real Federacion Española de
Gimnasia c/ Fédération Internationale de Gymnastique (FIG).
Sentença nº 2008/A/1480, de 16 de maio de 2008 – Pistorius c/ IAAF.
Sentenças nº 2007/A/1370 e 2007/A/1376, de 11 de setembro de 2008 – FIFA & WADA c/
Superior Tribunal de Justiça & Confederação Brasileira de Futebol & Mr. Ricardo Lucas
Dodô.
Sentença nº 2008/A/1572; 2008/A/1632; 2008/A/1659, de 13 de novembro de 2009 – Gusmão
c/ FINA.
Tribunal Federal Suíço
Disponível no sítio http://www.bger.ch/fr/index/juridiction/jurisdiction-inherit-
template/jurisdiction-recht/jurisdiction-recht-leitentscheide1954.htm (visto no dia
18/09/2010):
BGE 119 II 271 – Güdel c/ Federação Equestre Internacional (FEI) e Tribunal Arbitral do
Esporte (TAS), de 15 de março de 1993.
BGE 129 III 445 – A e B c/ COI, Federação Internacional de Esqui e TAS.
BGE 133 III 235 – Cañas c/ ATP Tour e Tribunal Arbitral do Esporte.
Tribunal norte-americano:
Reynolds c/ IAAF, de 17 de maio, da Corte de apelação, 6º Circuito, com extratos e
comentários de Bitting, 2008, pp. 660-662.
Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE):
Disponível no sítio http://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/ (visto no dia 8 de outubro de 2010).
C-415/93 do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE), do caso Union royale
belge des sociétés de football association ASBL e outros c/ Jean-Marc Bosman e outros.
C-51/96 e C-191/97, de 11 de abril de 2000 – Christelle Deliège c/ Liga francófona de judô e
disciplinas associadas (LFJ), Liga belga de judô (LBJ), União européia de judô e François
Pacquée (Presidente da LBJ).
C-176/96, de 13 de abril de 2000 – Jyri Lehtonen, Castors Canada Dry Namur-Braine c/
Fédération royale belge des sociétés de basketball (FRBSB).
137
C-519/04 P, de recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância, de 18 de julho de 2006,
dos atletas David Meca-Medina e Igor Majcen.
Dispositivos legais:
Legislação desportiva:
Estatutos das Federações Internacionais:
AIBA –www.aiba.org
FIA – disponível no sítio www.fia.com
FIBA – disponível no sítio www.fiba.com
FIFA – disponível no sítio www.fifa.com
FIJ – disponível no sítio www.intjudo.eu
FINA – disponível no sítio www.fina.org
IAAF - disponível no sítio www.iaaf.org/
IIHF – disponível no sítio www.iihf.com
WKF – disponível no sítio www.wkf.net
Comitê Olímpico Internacional:
Carta Olímpica – disponível no sítio www.olympic.org
Agência Mundial Antidoping:
Disponível no sítio http://www.wada-ama.org/en/World-Anti-Doping-Program/Sports-and-
Anti-Doping-Organizations/The-Code/
Código Mundial Antidoping.
Estatuto da Agência Mundial Antidoping.
Tribunal Arbitral do Esporte:
Disponível no sítio http://www.tas-cas.org/statutes (visto no dia 8 de outubro de 2010).
Estatuto dos litígios em matéria do esporte.
Legislação suíça:
Constituição Suíça – 1999 – disponível no sítio http://www.admin.ch/ch/f/rs/101/ (visto no
dia 17/09/2010).
138
Código Civil Suíço – disponível no sítio http://www.admin.ch/ch/f/rs/c210.html (visto no dia
8/10/2010).
Lei Federal sobre o direito internacional privado disponível no sítio
http://www.admin.ch/ch/f/rs/c291.html (visto no dia 8/10/2010).
Ordem internacional:
Conselho de segurança da ONU – disponível no sítio http://www.un.org/documents/scres.htm
(visto no dia 8 de outubro de 2010):
Resolução nº 757.
Resolução 752 (1992).
Declaração de Lausanne sobre o doping, de 1999 – disponível no sítio
http://www.sportunterricht.de/lksport/Declaration_e.html (visto no dia 12/07/2010).
Declaração de Copenhague sobre a criação da AMA – disponível no sítio www.wada-
ama.org/rtecontent/document/copenhagen_en.pdf (visto no dia 8/10/2010).
Convenção Internacional contra o Doping – disponível no sítio
http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001425/142594por.pdf (visto no dia 8/10/2010).
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