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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
LEI DO FEMINICÍDIO E MULHERES TRANS: DIÁLOGOS ENTRE A INSTABILIDADE
DA CATEGORIA “MULHER” E O DISCURSO JURÍDICO
Marília Ferruzzi Costa1
Isadora Vier Machado2
Resumo: O presente trabalho se propõe a analisar o texto da lei brasileira n° 13.104/2015, tomando
como norte a necessidade de se trabalhar a questão do feminicídio à luz de um reconhecimento de
mulheres plurais e de uma interseccionalidade de gênero com outras categorias sociais. Para tanto,
lançamos uma problematização acerca do fato de se ter suprimido, no momento da elaboração e
aprovação do texto da referida lei, o termo “gênero feminino”, com a posterior substituição pela
expressão “condição de sexo feminino”. Consideramos que tal opção legislativa possui o escopo de
excluir do âmbito de aplicação da lei todas as mulheres que, supostamente, não estariam
enquadradas na definição hegemônica e biológica de “mulher”, notadamente as mulheres trans.
Dessa forma, entendemos que o referido texto legal institui uma conceituação fixa e essencial da
sujeita “mulher” no discurso jurídico, contribuindo para obstar o acesso de diversas mulheres aos
mecanismos legais de enfrentamento à forma mais extrema de violência de gênero. No presente
trabalho, buscamos sustentar que a categoria “mulher” não pode ser tomada como pré-definida, fixa
e estável e, dessa forma, procuramos propor uma análise da Lei do Feminicídio a partir de uma
perspectiva de gênero e de uma visão desessencializadora das identidades femininas, bem como
sustentar uma hermenêutica jurídica que possibilite a aplicação da referida lei em favor de mulheres
trans.
Palavras-chave: Feminicídio. Mulheres Trans. Gênero. Interseccionalidade.
Introdução
No ano de 2015, entrou em vigor no Brasil a Lei n° 13.104, denominada “Lei do
Feminicídio”, que alterou o Código Penal Brasileiro e instituiu nova qualificadora à figura do
homicídio, atribuindo pena de reclusão de doze a trinta anos a tal crime, se praticado “contra a
mulher por razões da condição de sexo feminino, quando o crime envolver violência doméstica e
familiar ou motivado pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Apesar das críticas lançadas à positivação da categoria “feminicídio” no ordenamento
jurídico brasileiro, seja em relação à sua necessidade ou em relação à opção de se lançar mão da
criminalização como recurso de enfrentamento às violências de gênero, é possível reconhecer que o
1 Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2016); pós-graduanda em Políticas Públicas e Justiça de
Gênero pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais; advogada do Projeto de Extensão sobre a Lei Maria da
Penha (NUMAPE/UEM), financiado pela SETI/PR, no âmbito do edital 01/2016 – USF. Maringá, Brasil. E-mail:
mariliaferruzzi@gmail.com. 2 Mestre em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (2010); doutora em Ciências
Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (2013); professora adjunta de Direito Penal da Universidade
Estadual de Maringá; coordenadora do Projeto de Extensão sobre a Lei Maria da Penha (NUMAPE/UEM), financiado
pela SETI/PR, no âmbito do edital 01/2016 – USF. Maringá, Brasil. E-mail: isadoravier@yahoo.com.br.
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“feminicídio” se constitui como forma específica de violência, impassível de ser absorvida por
qualificadoras genéricas, demandando, portanto, uma explicitação na legislação (Wiecko, 2015, p.
4-5). Embora reconheçamos a ineficácia da criminalização para a solução do problema, entendemos
que a positivação da categoria “feminicídio” na legislação penal possui não somente o efeito
simbólico de trazer reconhecimento para o fenômeno, mas também tem o potencial de surtir efeitos
concretos, na medida em que influencia as escolhas dos indivíduos e viabiliza medidas de
enfrentamento à forma mais extrema de violência de gênero (Elias; Machado, 2016, p. 15).
No entanto, a substituição do termo “gênero feminino”, apresentado no Projeto de Lei
original (Brasil, 2013), pelo termo “sexo feminino”, constante no texto atual da lei, representa uma
manobra legislativa para excluir da aplicação da lei todas as mulheres que, supostamente, não
estariam enquadradas no conceito biológico de “mulher”, notadamente as mulheres trans (Elias;
Machado, 2016, p. 15).
Nos itens seguintes, sugerimos uma leitura da Lei do Feminicídio a partir de uma
perspectiva de gênero e de uma visão não limitadora e nem universalizante das identidades e papeis
sociais. A partir de tal perspectiva, propomos uma hermenêutica que torne possível a aplicação da
Lei do Feminicídio às mulheres trans.
A categoria identitária “mulheres” e uma proposta de leitura interseccional da Lei do
Feminicído
As discussões a respeito da categoria feminicídio surgem no Brasil em ambiente inspirado
pela Lei 11.340/2006. A denominada Lei Maria da Penha só se tornou possível a partir de
reinvindicações e mobilizações feministas, estudos promovidos por organizações e uma maior
representatividade de mulheres no Congresso Nacional. Essa importante lei permitiu que houvesse
um deslocamento discursivo em relação às mulheres como “sujeitas”.
A Lei Maria da Penha, seguindo a crítica feminista ao essencialismo em relação à categoria
analítica “mulher”, procura apresentar uma desconstrução de uma identidade feminina universal,
acatando um conceito diverso e plural de “mulher”, de forma a entrecruzar o gênero com outras
categorias como raça/etnia, geração e sexualidade.
Em seu artigo 2o, a referida lei contempla o “princípio da não discriminação para o gozo dos
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”, não permitindo que nenhum marcador, como
classe, etnia, sexualidade e identidade, impeçam o exercício desses direitos fundamentais (Campos,
2011, p. 176).
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Ademais, ao utilizar o conceito de gênero para definir a violência doméstica praticada contra
as mulheres, a Lei Maria da Penha não restringe sua aplicação à mulher enquanto ser biológico.
Portanto, “as mulheres ‘trans’ são protegidas pela Lei. Essa proteção não se limita a identidade
sexual, mas engloba também a identidade de gênero” (Campos, 2011, p. 179).
Com efeito, Scott (1995, p. 86), em sua definição de “gênero”, aponta que um dos elementos
constitutivos de tal conceito é a dimensão subjetiva, que diz respeito aos elementos da identidade
subjetiva dos sujeitos e sujeitas, que interagem com as relações sociais. Como a identidade de
gênero também diz respeito à autopercepção e à forma como pessoas se expressam socialmente,
fica claro que mulheres trans também se encontram incluídas no conceito de “mulher”, para efeitos
da Lei Maria da Penha, já que “entende-se que a vivência de um gênero (social, cultural)
discordante com o que se esperaria de alguém de um determinado sexo (biológico) e uma questão
de identidade (...)” (Gomes de Jesus, 2012, p. 8). Não restam dúvidas, portanto, quanto à aplicação
da Lei Maria da Penha aos casos de violência doméstica praticadas contra mulheres trans, já que as
mesmas se enquadram, subjetivamente e socialmente, na definição de gênero feminino.
No entanto, não se pode negar que os deslocamentos discursivos propostos pela teoria
feminista e conquistados pela Lei Maria da Penha são constantemente objeto de disputa política
(Campos, 2011, p. 6). Apesar de ter surgido em um contexto influído pela Lei Maria da Penha, a
Lei do Feminicídio traz consigo um retrocesso em relação às mulheres enquanto sujeitas do direito
à vida livre de violências, ao dispor que a pena do crime de homicídio é aumentada quando este é
praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Tal substituição da categoria
“gênero” pela categoria “sexo” não representa somente uma falta de técnica na elaboração do texto
da lei, mas constitui-se como verdadeira manobra legislativa para restringir a aplicação da norma
aos homicídios praticados apenas contra mulheres enquanto seres biológicos (Elias; Machado,
2016, p. 14).
Entendemos que houve, com a aprovação da Lei do Feminicídio, uma regressão discursiva,
consubstanciada em uma tentativa de afirmar que a violência praticada contra as mulheres estaria
ligada intrinsecamente aos cromossomos e à anatomia genital tradicionalmente entendida como
feminina, reforçando uma ideia universal, binária e globalizante das identidades e papeis sociais.
Retornando ao conceito de gênero proposto por Scott, é possível afirmar que a dimensão
normativa também figura como um dos componentes do gênero enquanto elemento constitutivo das
relações sociais. Os conceitos normativos, expressos fortemente pelas teorias jurídicas, assume
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tipicamente a “forma de uma oposição binária que afirma de forma categórica e sem equívoco o
sentido do masculino e do feminino” (Scott, 1995, p. 86).
Para trabalhar as relações do direito com as questões de gênero, assumimos como norteadora
a concepção defendida por Smart, segundo a qual “o direito tem gênero”. Dizer que o Direito tem
gênero significa admitir que o Direito atua muito mais que um regulador de identidades de gênero
pré-constituídas, funcionando também como próprio criador dessas identidades. Segundo a autora,
adotar tal concepção significa abandonar a procura por fixar as identidades de gênero “a sistemas
rígidos de significados” e compreender que tais identidades são criadas através de discursos, dentre
os quais figura o discurso jurídico (Smart, 2000, p. 38-49). Dessa forma, deve-se entender que não
há um “sujeito” anterior à lei que o representa, mas sim sujeitos criados pelo próprio poder jurídico.
(Butler, 2003, p. 18-19).
Nesse sentido, é importante assumir o papel ativo do Direito não somente na construção de
um conceito de “mulher” em contraposição ao “homem”, mas também na construção discursiva de
um “tipo de mulher”. Assim, no discurso jurídico, além de se constituírem como um dos lados de
uma diferenciação binária anterior (homem e mulher), as mulheres representam também outros
dualismos, que se apresentam, por exemplo, como “bondosa e assassina”, “adorável e virtuosa”, ou
mesmo a “mulher legítima e a mulher não legítima”. Observa-se, portanto, que o Direito pode
contribuir para definir e perpetuar estereótipos de gênero, já que atua como regulador de identidades
que são criadas e adotadas pelos indivíduos por meio do discurso jurídico (Smart, 2000, p. 40-43).
Dessa forma, mesmo quando concebido como instrumento de enfrentamento à violência de gênero,
o Direito muitas vezes é construído e aplicado visando a proteção apenas de um segmento de
mulheres, ou seja, aquelas que se enquadram no conceito de “mulher” apontado como modelo em
uma sociedade.
No caso da Lei 13.104, é possível observar exclusão e discriminação na própria elaboração
da lei, já que as/os legisladora/es optaram por substituir o termo “gênero feminino” por “sexo
feminino”, em uma clara tentativa de excluir da proteção da lei as mulheres trans que, teoricamente,
não pertenceriam à categoria de sujeitas do sexo feminino. Vislumbra-se, nesse caso, a construção
de um dualismo entre “mulher legítima” e “mulher ilegítima” por parte do Direito, ou seja, uma
divisão entre “tipos de mulheres” que podem ou não figurar como vítimas de feminicídio (Smart,
2000, p. 43).
É importante que lancemos uma crítica a respeito do caráter limitador da própria definição
tradicional de feminicídio, segundo a qual as mortes de mulheres devem ser vistas como violência
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“universal e estrutural, que fundamenta-se no sistema de dominação patriarcal presente em
praticamente todas as sociedades do mundo ocidental” (Russel e Redford apud Pasinato, 2011, p.
230). Conforme observa Pasinato (2011, p. 237), no cenário atual de violência contra as mulheres, é
possível que observemos uma rede de opressão muito mais complexa, onde as relações de gênero
são tidas como formas de circulação de poder na sociedade, o qual, por sua vez, se expressa através
das mais diferentes relações sociais. Assim, “é necessário que essas relações de gênero sejam
consideradas como dinâmicas de poder, e não mais como resultado da dominação de homens sobre
mulheres, tomadas como posições fixas, estáticas, polarizadas” (Pasinato, 2011, p. 230).
Além disso, não é possível se atribuir um significado fixo ao “feminicídio” com a pretensão
de que tal significado se amolde a todas as mortes de mulheres ocorridas em diversas situações e em
diferentes locais do mundo. Também não é possível que utilizemos apenas o “gênero” como
categoria de análise dos feminicídios, deixando de lado fatores importantes como classe social,
nacionalidade, raça e etnia (Pasinato, 2011, p. 232).
Há uma latente necessidade de uma discussão sobre interseccionalidade entre gênero e
outros marcadores sociais, já que existem diferentes experiências de ser mulher e a própria noção de
“gênero” não pode ser separada das intersecções com tais marcadores (Butler, 2003, p. 20). Dessa
forma, devemos lançar mão de uma análise da categoria legal que evite generalizações que excluem
a realidade vivida por diferentes mulheres.3 Afinal, conforme sugere Butler (2003, p. 18), a
“mulher” enquanto “sujeito” não é mais compreendida em termos estáveis ou permanentes.
Assim, mesmo que seja possível identificar um traço comum entre todos os feminicídios,
qual seja, o fato de serem resultado da desigualdade de poder entre os gêneros e do controle sobre a
vida e os corpos das mulheres (Brasil, 2016, p. 35), é ainda preciso evitar que seja atribuído um
conceito universalizante à categoria feminicídio, levando-se em conta as particularidades e os
diferentes marcadores sociais que estão presentes em cada um dos locais e contextos onde ocorrem
as mortes de mulheres.
Por uma proposta hermenêutica de aplicação da Lei do Feminicído às mulheres trans
3 Nesse sentido, é importante observar que o documento “Diretrizes Nacionais Feminicídios” (2016, p. 35), elaborado
pela Secretaria de Políticas para Mulheres e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, em parceria com a ONU
Mulheres, também traz como necessária a análise da interseccionalidade para identificar e compreender a situação de
risco em que as vítimas de feminicídio se encontram.
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A opção das/dos legisladoras/es pelo termo “sexo feminino” na definição legal do
feminicídio tem provocado incertezas na comunidade jurídica, bem como o surgimento de diversas
posições acerca da possibilidade, ou não, de incidência da qualificadora do feminicídio em casos de
mortes de mulheres trans. Pretendemos realizar, neste tópico, a partir de um estudo da interpretação
da norma penal, uma defesa da possibilidade de que tais mulheres também sejam contempladas pela
lei n° 13.104.
Importante assinalar que a interpretação da norma jurídica, enquanto meio de “concreção do
preceito jurídico”, pode ser realizada através de diversos métodos ou processos (Prado, Carvalho,
Carvalho, 2014, p. 149).
O método filológico, literal ou gramatical consiste em buscar a real vontade da norma, ou
seja, a ratio legis, por meio da análise dos vocábulos utilizados na lei escrita (Prado, Carvalho,
Carvalho, 2014, p. 149-150). Portanto, deve-se voltar, de início, ao principal significado literal da
expressão “sexo feminino” constante na redação da Lei do Feminicídio, qual seja, “conformação
particular que distingue o macho da fêmea, nos animais e nos vegetais, atribuindo-lhes um papel
determinado na geração e conferindo-lhes certas características distintivas”. Observa-se, ainda, nas
consultas aos dicionários, que o termo “sexo” pode ser utilizado não somente para classificar as
pessoas entre “macho” e “fêmea”, mas também como sinônimo dos próprios órgãos genitais
externos dessas pessoas (Ferreira, 2010, p. 1927).
A relação indissociável comumente feita entre “sexo” e características biológicas dos seres
não se limita aos conceitos trazidos pelos dicionários. Em muitos dos estudos feministas, por
exemplo, observa-se comumente uma dissociação necessária entre os termos “sexo” e “gênero”, na
qual o primeiro é empregado para se referir a características biológicas, enquanto o segundo é
utilizado para definir as expressões sociais daquelas decorrentes. De acordo com Koyama, essa
separação entre sexo e gênero foi uma poderosa retórica utilizada para desconstruir os papéis de
gênero compulsoriamente determinados. No entanto, essa divisão fez com que as feministas de
outrora questionassem apenas parte do problema, permitindo que a naturalização de uma “essência”
masculina ou feminina continuasse se perpetuando. Por outro lado, parte das teóricas feministas
sustentam que tanto o sexo quanto o gênero são socialmente construídos e que a própria distinção
entre sexo e gênero é definida de acordo com critérios de conveniência (Koyama, 2003, p. 4).
A construção social do sexo biológico é mais que uma observação abstrata: é uma realidade
vivida por muitas pessoas intersexo. Pela sociedade não prever a existência de pessoas
cujas características anatômicas não se encaixam em masculino ou feminino, essas pessoas
são constantemente mutiladas por profissionais da medicina e manipulados a viver
conforme o sexo determinado (KOYAMA, E., 2003, p. 4, tradução livre).
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Fausto-Sterling aponta que as discussões públicas e científicas que tendem a considerar o
sexo como algo real e o gênero como algo construído, na realidade, estão reproduzindo falsas
dicotomias. A autora afirma que o sexo também é construído socialmente, e também cita como
prova disso a manipulação médica dos próprios marcadores mais visíveis e exteriores do gênero,
quais sejam, os órgãos genitais. Ela observa, ainda, que a pesquisa científica em torno da natureza
envolve um processo de construção do conhecimento, de forma que os cientistas definem seus
argumentos e instrumentos de forma particular, influenciando socialmente na forma do debate e da
análise, de modo que estes são inteiramente limitados socialmente (Fausto-Sterling, 2002, p. 77-78).
Haraway (2000, p. 91-96), ao considerar os organismos biológicos como dispositivos de
comunicação e os corpos como mapas de poder e identidade, entende que elementos como gênero, a
sexualidade, quanto a corporificação, são elementos reconstituídos na história.
Com efeito, Butler (2003, p. 24-26) questiona a necessidade de uma base biológica para se
afirmar a existência do gênero, afirmando, para tanto, que o caráter imutável do sexo é contestável.
Segundo a autora, “talvez o próprio construto do ‘sexo’ seja tão culturalmente construído quanto o
gênero”, já que o gênero designa também a própria produção dos conceitos de sexo. Dessa forma, o
sexo não é apenas causa, mas também efeito do gênero. A autora em questão critica a ideia de tomar
o corpo como um meio passivo onde se insere significados culturais, já que o corpo, em si mesmo, é
também uma construção (Butler, 2003, p. 27).
Portanto, mostra-se plenamente possível uma discussão (e desconstrução) a respeito da
suposta diferenciação de conceito entre os termos “sexo” e “gênero”. Ao se borrarem as fronteiras
entre os dois termos, surge a possibilidade de que mulheres trans possam estar inseridas no conceito
filológico ou literal do próprio termo “sexo feminino”, presente na redação da Lei 13.104.
Mesmo que se entenda que os termos “sexo” e “gênero” são essencialmente distintos, e que,
portanto, não pode haver uma fungibilidade entre eles, ainda é possível lançar mão de outras formas
ou métodos interpretativos para se concluir que as mulheres trans também estão incluídas na Lei do
Feminicídio.
Como bem observa Prado (2012, p. 219), o processo interpretativo, ainda que literal, não
pode ignorar a ratio legis. Pelo contrário, tal processo deve ser sempre realizado com o fim de
desvendar a finalidade almejada pela norma. Toda lei é posta com a finalidade de satisfazer
determinadas necessidades, e a melhor interpretação é aquela feita no sentido de atender a esses
desígnios.
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Dessa forma, vale resgatar a ideia de que a Lei do Feminicídio surge, incialmente, por meio
do Projeto de Lei do Senado no 292, de 2013, proposto pela Comissão Parlamentar de Inquérito
instaurada para investigar a situação da violência contra as mulheres no Brasil. Tal proposta por
parte da CPMI surge diante da constatação de que havia um alarmante número de mulheres mortas
por violência de gênero no país, e havia uma omissão, por parte do Estado, a respeito do problema.
A gênese da proposta que defende a inclusão do feminicidio no Código Penal Brasileiro, como uma
nova qualificadora, descreve-o como forma extrema de violencia de genero que resulta na morte das
mulheres.
Portanto, a partir de uma interpretação teleológica e histórica, é possível se concluir que a
Lei do Feminicídio é proposta com a vontade e com a finalidade de enfrentar a forma máxima de
violência de gênero observada no Brasil, qual seja, a morte dessas mulheres. É nesse cenário de
violência resultante da dominação e ódio para com as mulheres, pelo fato de serem mulheres, que a
Lei do Feminicídio encontra sua razão de ser.
Além disso, conforme trabalhado no item anterior, a Lei do Feminicídio surge em um
contexto influenciado pela Lei Maria da Penha, a qual expressa a vontade de não excluir nenhuma
mulher de seu âmbito de aplicação, buscando garantir o direito de que todas as mulheres vivam sem
violência de gênero. Nesse sentido, por meio de uma interpretação sistemática, pode-se concluir
que, ao restringir as vítimas de feminicídio às mulheres do “sexo feminino”, a Lei do Feminicídio
estaria indo de encontro ao conceito amplo de “mulher” inserida pela Lei Maria da Penha em nosso
ordenamento jurídico. Se o ordenamento jurídico garante o direito de viver sem violência a todas as
pessoas do “gênero feminino”, mas, por outro lado, restringe esse direito às pessoas do “sexo
feminino” quando se trata especificamente das mortes causadas por razões de gênero, há um claro
desrespeito à unidade conceitual de tal ordenamento.
Portanto, a partir de uma interpretação lógico-sistemática, é possível se concluir que a Lei
do Feminicídio deve expressar uma vontade que esteja de acordo com o sistema de normas a qual
ela integra. Afinal, é a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) quem oferece o conceito normativo de
violência doméstica resgatado pela Lei 13.104/15 (Lei do Feminicídio) e que, ao mesmo tempo,
institui uma interpretação normativa do conceito de mulher que se sobressai à lógica descritiva do
Direito Penal. Dessa forma, a Lei do Feminicídio não pode apresentar restrições e retrocessos em
relação às disposições já positivadas no ordenamento jurídico a respeito da violência contra as
mulheres. Conclui-se, mais uma vez, que a vontade da Lei do Feminicídio é qualificar as mortes de
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mulheres praticadas em razão do gênero feminino, em conformidade com os direitos trazidos pela
sua precursora Lei Maria da Penha.
Pode surgir o argumento de que nada do que está na lei pode ser desconsiderado, e que foi a
vontade legítima dos legisladores que o termo “gênero”, presente no projeto de lei original, fosse
substituído pelo termo “sexo”. Contudo, a esse respeito, deve-se levar em conta que, atualmente,
prevalece a teoria objetiva da interpretação da lei, segundo a qual deve ser buscada, durante o
processo interpretativo, “não a vontade pessoal de um indivíduo, mas a vontade geral da
comunidade, consubstanciada na lei”. Uma vez promulgada, a lei “destaca-se do legislador e passa
a ter existência própria e consistência autônoma” (Prado, 2012, p. 220).
Dessa forma, ainda que os legisladores tenham alterado o texto da Lei do Feminicídio, ela
continua a expressar sua vontade autônoma, a qual, conforme demonstrado através de uma
interpretação teleológica, histórica e lógico-sistemática, consiste em enfrentar a forma mais extrema
de expressão da violência de gênero.
Portanto, utilizando-se do recurso da interpretação jurídica pelos meios teleológico, lógico-
sistemático e histórico, é possível concluir que a finalidade buscada pela Lei do Feminicídio foi a de
qualificar os homicídios praticados em um contexto de violência de gênero contra as mulheres.
É possível, ainda, que o entendimento de que as mulheres trans se encontram incluídas na
Lei do Feminicídio seja alcançado sob uma perspectiva de interpretação extensiva. As formas de
interpretação da norma podem ser classificadas, ainda, em relação a seus resultados, como
declarativa, restritiva ou extensiva.
A interpretação extensiva busca “harmonizar o texto legal com a sua finalidade”, ampliando
o alcance da norma jurídica. Afinal, como aponta Bitencourt, “nem sempre é feliz a expressão
usada pelo legislador. Acontece algumas vezes que ele diz menos ou mais do que pretendia dizer”
(Bitencourt, 2013, p. 196).
Insta esclarecer, aqui, que a interpretação extensiva não se confunde com analogia,
tampouco com interpretação analógica. Esta última, também chamada de “argumento analógico”, é
uma espécie de interpretação extensiva e consiste em um meio indicado pela própria norma para
que seu preceito normativo seja estendido a situações semelhantes. A interpretação analógica se dá,
portanto, através expressões ampliativas presentes no próprio texto da lei. Já a analogia é forma de
integração diz respeito a estender a aplicação de uma norma a casos análogos que não estejam
contemplados no texto legal, já que “nenhuma legislação, por mais abrangente e completa que seja,
é capaz de contemplar todas as hipóteses que a complexidade da vida social pode apresentar ao
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longo do tempo”. Sendo assim, ao surgir um fato novo, não contemplado legalmente, o aplicador da
lei deve se utilizar do recurso da analogia para suprir a lacuna legal (Bitencourt, 2013, p. 197). Para
que haja a analogia, portanto, é necessário que haja uma hipótese de ausência de vontade da lei, que
precisa ser integrada. No processo de interpretação extensiva, por outro lado, não há ausência de
vontade, pelo contrário, a vontade da lei existe, mas precisa ser buscada e revelada pelo intérprete
da lei (Prado, Carvalho, Carvalho, 2014, p. 155).
A analogia é vedada na hipótese de aplicação de lei penal incriminadora. Isto porque, em
respeito ao princípio da legalidade, é inadmissível que sejam definidos novos crimes e novas penas
por outros meios que não sejam a lei penal. Assim, costuma-se dizer que o recurso da analogia só
pode ser utilizado em bonam partem, isto é, para integrar as lacunas com normas que sejam mais
benéficas ao réu. Já a interpretação extensiva pode ser aplicada a “todas as espécies de normas,
inclusive as de caráter penal”, já que visa tão somente reintegrar a vontade legislativa já existente
(Prado, Carvalho, Carvalho, 2014, p. 154).
Portanto, não deve ser considerado válido o argumento de que a aplicação da Lei do
Feminicídio às mulheres trans se constitui como uma analogia in malam partem e, que, por isso,
deve ser considerada ilegal. A extensão da aplicabilidade da qualificadora do feminicídio para as
mortes praticadas contra qualquer mulher em razão do gênero feminino pode ser realizada através
de uma simples interpretação extensiva da norma. Não se trata de aplicar a norma a um caso
análogo não previsto em lei, mas sim estender o alcance da norma de acordo com sua própria
vontade, por meio de um processo interpretativo.
É importante que se faça a ressalva de que, mesmo os processos meramente interpretativos
da norma devem ser realizados dentro do limite da legalidade. Não se deve transpor os limites
assinalados pela lei, e sim fazer um exercício de interpretação para se chegar até eles. No entanto,
apesar de o abandono do teor explícito da norma se constituir, potencialmente, como um perigo
para a segurança jurídica, uma reinterpretação e extensão desse teor é justificável “em face de mal
maior, comprovado: o de uma solução contrária ao espírito dos dispositivos examinados em
conjunto” (Maximiliano apud Prado [et. Alie], 2014, p. 150).
Sendo assim, a inadequação da expressão “sexo feminino”, ante os objetivos buscados pela
Lei do Feminicídio, justificam que a norma deva ser objeto de uma correção interpretativa.
Entende-se a readequação do termo não se constituiria como perigo para a segurança jurídica, pois
seria justificável em face do mal maior em que estão inseridas as mulheres trans, qual seja, o de
serem mortas por violência de gênero e enfrentarem a invisibilidade de tais mortes em nosso
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ordenamento jurídico. Deixar de aplicar a qualificadora do feminicídio a esses homicídios seria dar
uma solução contrária ao espírito do ordenamento jurídico, já que este prevê o dever de prevenir e
coibir a violência de gênero praticada contra todas as mulheres.
Conclusão
Foi possível observar que a supressão do termo “gênero” do texto da Lei do Feminicídio,
além de representar uma manobra legislativa para limitar o alcance da lei a apenas um “tipo de
mulher”, também significou um retrocesso legal e discursivo em relação ao conceito de violência de
gênero praticada contra as mulheres, positivada originalmente pela Lei Maria da Penha.
No entanto, ao contrário da definição limitadora e excludente de “feminicídio” trazida pela
redação da lei n° 13.104, entendemos que a categoria em questão deve ser trabalhada a partir de
uma perspectiva de gênero, que traga para o debate as diferentes circunstâncias e contextos em que
as mulheres se encontram, bem como os diversos marcadores sociais que as atravessam.
Por fim, sustentamos que, a partir de um exercício de interpretação teleólogica, lógico-
sistemática e histórica da Lei do Feminicídio, é possível se chegar à conclusão de que a real vontade
da norma é qualificar os homicídios praticados contra as mulheres em um contexto de violência de
gênero. Sendo assim, entendemos que a Lei 13.104/2015 deve incidir nos casos de feminicídios
praticados com violência de gênero contra mulheres trans.
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Femicide Law and trans women: dialogues between the instability of the category "woman"
and the juridical discourse
Astract: The paper is proposed to analyze the text of the Brazilian law no 13.104/2015, taking as a
basis the necessity to work on the matter of feminicide in the light of a recognition of plural women
and gender intersectionality with other social categories. For this purpose, this work examine the
problematization of the fact that the term "female gender" was deleted from the law’s original text,
with the subsequent replacement by the term "female sex". It is held that this legislative option has
the aim to exclude from the scope of aplication of the law all the women who, supposedly, would
not be targeted in the hegemonic and biological definition of "woman", those who are commonly
denominated as trans women. In this way, it is understood that this legal text establishes a fixed and
essential conceptualization of the subject "woman" in the legal discourse, contributing to prevent
the access of several women to the legal mechanisms intended to cope the most extreme form of
gender violence. The intention in this work is to sustain that the category "woman" cannot be taken
as predefined, fixed and stable. The proposal is the analysis of the Femicide Law from a gender
perspective and a not-essencial view of feminine identities. And, as a consequence, to support a
legal hermeneutics that allows the application of the law in favor of trans women.
Keywords: Femicide. Trans Women. Gender. Intersectionality.
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