jornalismo em defesa das causas perdidas - césar diab
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, JORNALISMO E SERVIÇO SOCIAL
CURSO DE JORNALISMO
CÉSAR RAYDAN DIAB
JORNALISMO EM DEFESA DAS CAUSAS PERDIDAS:
Antagonismos do contemporâneo na narrativa da Agência Pública
Monografia
Mariana
2013
2
CÉSAR RAYDAN DIAB
JORNALISMO EM DEFESA DAS CAUSAS PERDIDAS:
Antagonismos do contemporâneo na narrativa da Agência Pública
Monografia apresentada ao curso de Jornalismo da
Universidade Federal de Ouro Preto como requisito
parcial para obtenção do título de Bacharel em
Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Reges Schwaab
Mariana
2013
3
4
AGRADECIMENTOS
À Ana, a máxima da minha vida.
Aos meus pais e meus irmãos, parâmetros da minha perseverança.
Ao Reges, meu professor e, sobretudo, grande amigo.
“A maioria das pessoas são subjetivas a respeito de si
próprias e objetivas – algumas vezes terrivelmente objetivas
– a respeito dos outros. O importante é ser-se objetivo em
relação a si próprio e subjetivo em relação aos outros”.
Søren Kierkegaard
“No século 20 nós tentamos mudar o mundo de forma muito rápida,
chegou a hora de interpretá- lo de novo, de começar a pensar”.
Slavoj Zizek
6
RESUMO
O presente texto propõe uma investigação em torno da reportagem em espaços
narrativos independentes, criados e mantidos por jornalistas no ambiente digital. Analisa um
conjunto de matérias publicadas no site da Agência Pública de jornalismo investigativo e que tratam de tensões sociais do Brasil. Para uma leitura mais apurada, são trabalhadas 11
reportagens ampliadas, produzidas em 2012, todas situadas na categoria Marcadas para morrer e que, no entendimento deste trabalho, compartilham das características foucaultianas da “reportagem de ideias”. Para produzir conhecimento a partir da análise da narrativa, a
investigação está ancorada na proposição reflexiva do filósofo Slavoj Zizek sobre os antagonismos do capitalismo atual. Além disso, problematiza a Agência Pública como lugar
não-hegemônico de jornalismo. No encontro das marcas textuais que caracterizam os modos de narrar e reconhecer o presente no espaço em questão, são discutidos alguns caminhos possíveis para o jornalismo. A cartografia da Pública permite encontrar um complexo mapa
sobre os antagonismos e emergências que caracterizam nosso tempo e os modos de narrá- lo.
Palavras-chave: narrativa; jornalismo; agência Pública, contemporâneo; novos apartheids.
ABSTRACT
This study presents an investigation about news reports in independent narrative spaces created and maintained by journalists in the digital environment . Examines a range of materials published on the agência Pública investigative journalism website and dealing with
social tensions of Brazil . For a more accurate reading , the paper enlarged 11 reports , produced in 2012, all located in category Marcadas para morrer and that the understanding of
this work , share the features of Foucault's "story ideas". To produce knowledge from the analysis of narrative, this research is anchored in the reflexive proposition of philosopher Slavoj Zizek about the antagonisms of contemporary capitalism . In addition , questions the
agência Pública as place non - hegemonic in journalism. In search of textual elements that characterize the ways of narrating and acknowledge the present in this place in question, we
discuss some possible ways for journalism. The cartography of Pública allows to find a map on the complex emergencies and antagonisms that characterize our time and ways to narrate it.
Keywords: narrative, journalism, Pública agency, contemporary, new apartheids.
7
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Análise Contextual ...................................................................................... 45
Quadro 2 – Análise da Ordem ........................................................................................ 50
Quadro 3 – Análise dos Personagens ............................................................................. 55
Quadro 4 – Análise do Narrador ..................................................................................... 59
Quadro 5 – Análise da Recomposição da Intriga............................................................ 62
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 – Diagrama de Venn: Antagonismos do contemporâneo ........................... 64
Ilustração 2 – Diagrama de Venn: Agência Pública ....................................................... 64
LISTA DE ANEXOS
Anexo I – Reportagens e site da Agência Pública .......................................................... 73
10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11
2 VIVENDO EM TEMPOS ANTAGÔNICOS ........................................................... 14
2.1 Biogenética e propriedade intelectual ........................................................................ 22
2.2 Ecologia ..................................................................................................................... 22
2.3 Novos apartheids ....................................................................................................... 23
3 NARRATIVA, JORNALISMO E REPORTAGEM ............................................... 26
3.1 Narrativas no jornalismo ............................................................................................ 30
3.2 Notas sobre a reportagem........................................................................................... 31
3.3 Do jornalismo digital ................................................................................................. 33
3.4 Agência Pública e seu engajamento no contemporâneo ............................................ 37
4 A PÚBLICA E AS TENSÕES DO CONTEMPORÂNEO ...................................... 40
4.1 Movimento analítico 1: Análise do contexto das reportagens ................................... 43
4.2 Movimento analítico 2: Análise da ordem narrativa................................................. 48
4.3 Movimento analítico 3: Análise do personagem ....................................................... 52
4.4 Movimento analítico 4: Análise do narrador e suas marcas textuais ......................... 57
4.5 Movimento analítico 5: Recomposição da intriga ..................................................... 61
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 66
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 70
ANEXOS .......................................................................................................................... 73
11
1 INTRODUÇÃO
Na atualidade, frente a um cenário marcado pelos avanços das tecnologias da informação
somado a outras possibilidades de comunicação em meios digitais, o jornalismo se atualiza
periodicamente neste novo ambiente de plataformas da Web 2.0 (ou 3.0). Tomando o jornalismo
como prática social e discursiva, é importante dizer que a diversidade dos espaços pelos quais se
pode narrar uma história também abre fronteiras sobre como tecer os fatos. Se o jornalismo é o
lugar onde mais se fala sobre a vida do outro (RESENDE, 2009), é coerente dizer que a
contingência digital cria diferentes possibilidades de mobilizar os sujeitos, lugares e espaços ao
longo da narrativa, seja pela flexibilidade organizacional, pela interatividade/interação e/ou pelo
encurtamento das distâncias oferecido por estes meios.
Concomitantemente, a reportagem jornalística, pois produto desse jornalismo, também é
afetada pela abrangência digital. Ao conceito de reportagem, soma-se não apenas a idéia de uma
notícia mais aprofundada, mas também a ideia de um produto do jornalismo que interpreta, apura
o presente, molda sujeitos no texto e abre caminhos para a subjetividade. Também se agregam a
este termo derivações desse produto jornalístico, como é o caso das Reportagens de Ideias, que,
por sua vez, reúnem informações e vozes poucas vezes - ou raramente - privilegiadas no discurso
do jornalismo. Neste caminho para a reportagem digital, encontra-se o site Agência Pública de
jornalismo investigativo (http://apublica.org), criado em 2011 por iniciativas de jornalistas com o
propósito de produzir reportagens de cunho social acerca dos problemas que afligem o Brasil.
Sob essa ótica, salientando as potencialidades do cenário digital e a possibilidade de
averiguar outros espaços para a reportagem jornalística, o problema maior que norteou este
estudo foi pensar de que forma a narrativa jornalística da Pública elucida questões do Brasil. A
partir disso, percorrendo e salientando a abrangência do problema citado, tomamos o site
nacional de jornalismo investigativo Agência Pública como um lugar jornalístico a ser estudado
12
e atuamos em suas reportagens com o objetivo de investigar que singula ridades de sua narrativa
nos permitem interpretar o mundo a partir os acontecimentos reportados.
Para chegarmos ao resultado, o presente estudo abarcou reflexões acerca da narrativa
jornalística e os usa na elaboração da metodologia capaz de entrar no corpus selecionado. Desse
modo, o estudo visou explorar o quê do contemporâneo nos é dado pela narrativa da Pública e
vice-versa, isto é, quais afetações da atualidade moldam sua narrativa. Com isso, consta tamos
que a Pública, através de sua narrativa, coloca em tensão antagonismos do contemporâneo –
problemas ecológicos, propriedade privada e novos apartheids - sob uma perspectiva dos
problemas do Brasil. Assim sendo, a amostra consiste em 11 reportagens da série
#MarcadasparaMorrer (publicadas no segundo período do ano de 2013), que tratam, a priori, de
sujeitos e suas experiências de vida, pois a intenção deste gesto investigativo é utilizar a
reportagem de ideias como um lugar receptível à representação do outro e das coisas vividas.
Parte das ideias desenvolvidas neste texto, bem como a escolha do objeto, são resultado
da nossa pesquisa de iniciação científica, PROBIC/FAPEMIG 2013/2014, intitulada Narrativas
jornalísticas e o reconhecimento das emergências do presente, sob orientação do Prof. Dr. Reges
Schwaab. Este projeto vai ao encontro de narrativas jornalísticas que possam produzir algum
tipo de ruptura sobre o contemporâneo e que se instalam em novos campos possíveis dentro do
cenário da comunicação digital.
Os estudos do campo jornalístico, usualmente, resgatam sua abrangência complexa ao
problematizar a práxis através de axiomas que tangem a tríade produção, circulação e recepção
(RESENDE, 2002, p. 2). Dentro dessas abordagens, campos interdisciplinares – Estudos
Culturais, Sociologia, Filosofia – contribuem para um alargamento das possibilidades de
interpretação e posicionamento diante das práticas midiáticas. Neste caminho, a pesquisa fez
trabalhar ideias do filósofo Slavoj Zizek (2009, 2010, 2011) com o objetivo de criar um eixo
teórico para compreensão da sociedade contemporânea e das questões sociopolíticas que
circundam nosso tempo. Em traços grossos, para Zizek, existem, hoje, pelo menos quatro
antagonismos inerentes ao capitalismo global:
a sombria ameaça da catástrofe ecológica, a inadequação da propriedade privada para a
chamada “propriedade intelectual”, as implicações socioéticas dos novos avanços
tecnocientíficos (especialmente em biogenética) e as novas formas de apartheid, os
novos muros e favelas (ZIZEK, 2012, p. 88).
13
Também, a fim de evitar amarras conceituais e ampliar o debate, resgatam-se
ponderações do sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2002), que sugere uma leitura diferente
para as emergências que marcam o presente.
Acreditamos na importância deste estudo pela necessidade de problematizar a prática do
jornalismo no contemporâneo, sondar novos espaços para o jornalismo sem, no entanto,
negligenciar o desafio de tratar as relações tácitas que atravessam o nosso tempo. Advogamos,
também, pela pesquisa, tendo em vista que, nos estudos do campo, pouco se diz sobre a
reportagem, narrativa jornalística e as emergências do contemporâneo.
14
2 VIVENDO EM TEMPOS ANTAGÔNICOS
Neste capítulo, abordaremos conceitos e reflexões teóricas que norteiam o estudo como
forma de tensionar o nosso objeto. Também, usaremos este aporte para investir no problema
central, pois, se nosso objetivo é tratar do mundo que nos cerca, acreditamos que teorias da
sociologia e filosofia contribuem para esta proposta de análise. Antes de adentrarmos nas
reflexões teóricas acerca do tempo atual, é necessário, sobretudo, citar alguns indicadores
sociais, políticos, econômicos e ambientais da atualidade como um suporte para situar os
problemas que alcançam escala global. Para isso, em primeira ordem, seguem estatísticas da
ONU (Organização das Nações Unidas) no âmbito mundial, que indicam o desenvolvimento
humano nos anos de 2012 e 2013, disponibilizadas nas categorias: saúde, fome, pobreza, água, e
meio ambiente. Posteriormente, traremos informações das mesmas categorias que retratam a
conjuntura atual do Brasil.
Hoje, a realidade nos apresenta um somatório de desastres acumulado por décadas de
injustiças onde as promessas modernas de paz, justiça, igualdade e liberdade permanecem
descumpridas ou o seu cumprimento resultou em efeitos infames (SANTOS, 2002, p.23). Apesar
dos avanços em 2012 no IDH mundial (Índice de Desenvolvimento Humano), a ONU ainda
estima que 1,57 bilhão de pessoas estão em estado de "pobreza multidimensional"1. Dentre os
30% do universo de pessoas que vivem na pobreza, mais de 800 milhões dormem famintas todos
os dias, dentre elas 300 milhões são crianças2. Entre elas, mais de 90% sofrem de subnutrição e
déficit de micronutrientes. Ainda segundo dados da Unric (Centro Regional de Informações das
Nações Unidas), a cada 3,6 segundos, uma pessoa morre de fome no mundo. Entretanto, fazendo
aqui uma comparação com o Brasil, se a área de produção de soja brasileira fosse substituída por
1 Disponível em: http://www.pnud.org.br/arquivos/FAQ-IPM.pdf. Acesso em: 16 nov. 2013
2 Disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumpro ject4.html Acesso em: 16 nov.
2013.
15
outros alimentos como milho e feijão, daria para alimentar 40 milhões de pessoas famintas.
(SANTOS, 2002, p. 24).
Países africanos ainda ocupam posições perversas nos rankings de desenvolvimento
humano mundial, todavia nem sempre tais problemas existiram no continente africano. Para se
ter noção, em 1969, a África era um grande exportador de alimentos; hoje, o continente importa
um terço dos cereais de que precisa. Mais de 40% dos africanos não têm capacidade de obter
diariamente os alimentos suficientes. E os que produzem ainda pagam pelos fertilizantes
convencionais entre três e seis vezes mais do que o seu custo no mercado mundial.
No âmago dessa escassez de alimentos, a situação da saúde ainda é mais assombrosa.
Todos os anos morrem no mundo aproximadamente seis milhões de crianças por subnutrição
antes mesmo de completar cinco anos. O equivalente à população da cidade do Rio de Janeiro. A
cada 30 segundos, uma criança africana morre devido à malária3, isto é, mais de um milhão por
ano. Mais de 40% da população mundial carece de saneamento básico e mais de 1 bilhão
utilizam água não potável para consumo. Apesar do aumento significativo da população mundial,
a decrescente fertilidade dos solos, bem como a sua degradação, acarretou uma diminuição da
produção de alimentos per capita de 23% nos últimos 25 anos. Pensando nos efeitos da pobreza
nas mulheres, mais de 40% das africanas não têm acesso ao ensino básico. Uma mulher da áfrica
subsaariana4 tem uma possibilidade em 16 de morrer durante a gravidez ou o parto. Na América
do Norte, o risco é de 1 a cada 3.700 casos5
Apesar da centralidade desses dados em países antes chamados de terceiro mundo, a
Europa, considerada distante dos excessos do sistema global, sofre com alarmantes números de
desemprego, resultado da crise financeira de 2008 – a pior desde 1929 . Resultado, um período
de recessão econômica nos países capitalistas onde o antídoto para a crise é seu próprio veneno,
isto é, mais cortes de gastos, demissões e dívidas. A zona do Euro enfrenta, atualmente, índices
consideráveis de desemprego entre os jovens. O índice é de 62%. Dados da OIT (Organização
Internacional do Trabalho) apontam que, no mundo inteiro, ainda são necessárias 30,7 milhões
de vagas para que o emprego retome o nível pré-crise.
3 Disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumproject4.html . Acesso em: 16 nov.
2013. 4 Região do continente africano a sul do do Deserto do Saara, isto é, aos países que não fazem parte do norte da
África. 5 Disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/MDGs/millenniumproject4.html . Acesso em: 16 nov.
2013.
16
Tendo em vista esse panorama, não podemos negligenciar o fato de que o Brasil, em
comparação aos países mais frágeis ou em relação à sua história, obteve um considerado avanço
no índice de desenvolvimento humano desde o início deste século, principalmente no que se
refere aos indicadores de mortalidade infantil. Em 20 anos, o IDH das cidades brasileiras
avançou 47,5% e a mortalidade infantil caiu 77% entre 1990 e 2012. 6 Deve-se dizer que o país
mudou muito em pouco tempo.
Conforme outros índices, no entanto, vários problemas ainda persistem. Segundo o IBGE
de 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a porcentagem de brasileiros que
possuem algum tipo de insegurança alimentar caiu de 34,9 para 30,2 entre 2004 e 2009 7.
Entretanto, aproximadamente 11,2 milhões de pessoas passam fome no país, com grande maioria
no Norte e Nordeste, mais que a população inteira de Portugal. Ainda é motivo de extrema
preocupação o crescimento das favelas nas cidades brasileiras. De acordo com o último censo do
IBGE, existem mais de 11 milhões de favelados no Brasil8. Outro índice que assusta é o número
de pessoas morando nas ruas. Só na capital São Paulo são 14.478 moradores de rua, dos quais
sete mil recebem assistência social e seis mil são desprovidos de qualquer auxílio do Estado.
Em âmbito geral, ainda de acordo com o IBGE, 58,4% dos brasileiros apresentaram pelo
menos um tipo de carência em quatro itens, como atraso educacional, qualidade dos domicílios,
acesso aos serviços básicos e acesso à seguridade social. Lançando um olhar para a questão
ambiental, as estatísticas mostram um futuro pouco confortável. O Brasil, pelo terceiro ano
seguindo, é o país que mais consome agrotóxicos do mundo. Em média, cada brasileiro consome
cinco quilos de agrotóxicos por ano. A fauna e flora brasileira têm mais de mil espécies
ameaçadas, 544 só na Mata Atlântica.9
De acordo com IBGE, conclui-se que o total de terras destinadas à agropecuária
representa um montante de 330 milhões de hectares, equivalente a 36% de todo o território
nacional do Brasil. Desses 330 milhões de hectares, cerca 141,9 milhões de hectares são
latifúndios. Acrescenta-se o fato: do total de terras do país, metade está em situação irregular.
6 Disponível em: http://www.pnud.org.br/ODM4.aspx. Acesso em: 16 nov. 2013.
7 Disponível em: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=1763. Acesso em: 16
nov. 2013 8 Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/aglomerados_subnormais/agsn2010.pdf. Acesso em
17 nov. 2013 9 Disponível em: http://www.ecodebate.com.br/2012/06/19/fauna-e-flo ra-no-brasil-tem-mais-de-mil-especies-
ameacadas-544-so-na-mata-at lantica/. Acesso em 17 nov. 2013
17
Conclui-se, então, que a distribuição agrária no país ainda encontra-se de maneira bastante
concentrada e monopolizada. Não é a toa que o país ocupa a triste segunda pior distribuição de
renda segundo estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico).
Apesar de os dados e estatísticas serem ausentes de rostos, a enumeração de índices
fornece pistas em abundância para refletir e criticar o andamento da organização da nossa
sociedade, bem como questionar suas instituições e buscar soluções diferentes às já tentadas no
decorrer dos anos. Alguns são problemas que se tornaram históricos e, portanto, se repetem. Mas
é bom lembrar que se tais problemas são casuais, podem até se repetir, mas – parafraseando Karl
Marx (2011) - primeiro como tragédia, depois como farsa. Porém nosso objetivo aqui não é
especular soluções às questões acima, muito menos culpar os países de terceiro mundo e seus
líderes pela desordem mundial. O que queremos é expor um pouco mais a teia complexa que
circunda as emergências do presente e defender que o jornalismo - mais especificamente, a
reportagem – enquanto prática social é afetada por essas questões e, principalmente, o contrário.
Sob essa ótica de tencionar o contemporâneo, indo para além dos números, recorremos
aqui a dois pensadores que olham para tais descompassos, resgatam e problematizam a
conjuntura social, econômica e política dos tempos recentes. Pretendemos reunir apontamentos
teóricos a fim de sinalizar um mapa de conflitos que caracterizam o tempo presente.
Atento aos problemas listados, o sociólogo Boaventura Santos (2002) se questiona sobre
a razão de hoje ser tão difícil construir uma teoria crítica num mundo repleto de coisas a serem
criticadas. Santos levanta questões efêmeras do nosso milênio - com as quais justifica a
necessidade de uma reflexão acerca dos assuntos mundanos. São impasses existentes que geram
desassossegos, rompem a passividade do conformismo e criam ambientes propícios para teorizar
superações. O autor subdivide os problemas que nos causam desconfortos a partir de quatro
grandes promessas da modernidade, questões que dizem respeito à promessa da igualdade entre
os países, da liberdade do ser, da paz eterna, da dominação e equilíbrio do ecológico:
No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21% da
população mundial controlam 78% da produção mundial de bens e serviços e
consomem 75% de toda a energia produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do
setor têxtil ou da eletrônica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e
da América do Norte na realização das mes mas tarefas e com a mesma produtividade.
(...) (SANTOS, 2002, p. 23).
18
A seguir, Santos questiona a promessa de paz e liberdade no sistema atual:
No que respeita à promessa da liberdade, as violações dos direitos humanos em países
vivendo formalmente em paz e democracia assumem proporções avassaladoras. Quinze
milhões de crianças trabalham em reg ime de cativeiro na Índia; a violência policial e
prisional atinge o paroxis mo no Brasil e na Venezuela, enquanto os incidentes raciais na
Inglaterra aumentaram 276% entre 1989 e 1996 (...). (SANTOS,2002, p . 23).
Para o sociológo, a destruição do meio ambiente também denota uma falha da sociedade
em conviver em equilíbrio com a natureza
Promessa da dominação da natureza fo i cumprida de modo perverso sob a forma de
destruição da natureza e da crise ecológica. Nos últimos 50 anos o mundo perdeu cerca
de um terço da sua cobertura florestal. Apesar de a floresta tropical fornecer 42% da
biomassa vegetal e do oxigênio, 600.000 hectares de floresta mexicana são destruídos
anualmente. As empresas multinacionais detêm hoje direitos de abate de árvores em 12
milhões de hectares da floresta amazônica. (SANTOS, 2002, p. 23).
Santos designa tais promessas descumpridas que enfrentamos como alimento para criação
de uma teoria crítica pós-moderna que não mais se ancora nas dicotomias da modernidade
determinação/contingência ou estrutura/ação, ou seja, no conhecimento crítico produzido na
modernidade . Para o autor, as ideias dessa nova teoria, para que dê conta da complexidade do
tempo atual, precisam validar a dinamicidade das estruturas e de suas ações bem como a
anulação das questões filosóficas entre determinação e indeterminação. Heranças, segundo autor,
da teórica crítica moderna. Santos sugere ainda que, para enfrentar os desencontros atuais,
devemos centrar na dualidade entre a ação conformista e a ação rebelde para elaborarmos um
conhecimento-emancipação – ligado à sociologia, essencialmente. A primeira refere-se ao
conformismo subjetivo que se cria na pluralidade e multiplicidade do capitalismo atual,
principalmente ao domínio do consumo, onde a substituição relativa de bens e serviços do
mercado se confunde com livres escolhas e autonomias do sujeito. Entretanto, essa própria
fronteira cria contexto para que a ação conformista passe para a segunda, a ação rebe lde, e
portanto, molde “subjetividades inconformistas e capazes de indignação” (SANTOS, 2002, p.
33). Mas dessa autonomia de escolhas e suas fragilidades em se concretizar através de ação, pode
emergir a fragilidade e facilidade de se indignar e transformar esse sentimento em um
conformismo alternativo. Assim, subjetividades rebeldes, motivadas pelo descrédito ancorado
nesta revolta, conformam-se perante as condições que as envolvem.
19
Em outra corrente, embora não muito inversa, de se pensar – do ponto de vista filosófico
– o atual período e a problemática que subjaz o funcionamento do mundo nos dias atuais, o
filósofo Slavoj Zizek (2009, 2011, 2012) sugere que o endossamento de hoje do capitalismo se
deu após o sistema englobar os discursos contrários ao capital nos tempos de resistência (ênfase
na década de 60). Para além de Santos, onde a pluralidade e fragmentação do capitalismo criam
limites a serem rompidos pela “ação rebelde”, Zizek encontra na própria resistência ao capital o
triunfo do sistema. Em outras palavras, o capitalismo através de sua própria negação atualmente
é visto com forma política e econômica aceita globalmente, impassível de ser questionada. Para
ele, apesar da rejeição ao sistema, o capitalismo superou os protestos da modernidade adquirindo
um novo espírito que perpassa as estruturas e se instala nas atitudes e subje tividades do ser. Ou
seja, hoje “o capitalismo liberal-democrático é aceito como a fórmula finalmente encontrada da
melhor sociedade possível, e tudo o que se pode fazer é torná- la mais justa, tolerante etc.”
(ZIZEK, 2009, p.2). Partindo dessa afirmação, ainda conforme o filósofo, a pergunta que se cria
é: “nós endossamos essa naturalização do capitalismo ou o capitalismo global de hoje contém
antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reprodução?” (ZIZEK, 2009, p. 2).
No âmago do conflito, Zizek, principalmente, situa quatro antagonismos que subjazem as
ambivalências de nosso tempo, ecologia, propriedade intelectual, impasses da biogenética e
novas formas de apartheid:
(...) o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalíptico. Seus quatro
cavaleiros do Apocalipse são a crise ecológica, as conseqüências da revolução
biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual,
a luta vindoura por matéria -prima, comida e água) e o crescimento exp losivo das
divisões e exclusões sociais. (ZIZEK, 2012, p. 11).
O filósofo salienta, ainda, a diferença qualitativa entre os quatro antagonismos. A
biogenética, a propriedade intelectual e a ecologia tratam de questões da sobrevivência (física,
econômica e antropológica). Os novos apartheid tratam de uma questão de justiça, perpassam a
existência de todos os outros antagonismos e expõem as relações de classe entre eles. Co m isso,
em termos gerais, os problemas supracitados podem supor soluções viáveis, ainda que a
diferença entre as divisões sociais aumentem e novos muros sejam criados. Essa ideia será
melhor desenvolvida no decorrer do capítulo.
Zizek atribui a causa desses antagonismos não só à perpetuação do capitalismo, mas
também à proliferação global do consumo e da produção inesgotável de bens-materiais, bem
20
como a apropriação individual daquilo que se enquadra na ordem do comum, seja na esfera
pública ou privada. Esse somatório, acredita o filósofo, cria paradigmas dos bens comuns, tanto
do ecológico quanto do sociopolítico e fazem de nosso tempo um período imprescindível de
revisão do comportamento sobre como tratar do atual e seus devires.
Apesar da adaptabilidade do lucro no capitalismo – na qual uma ameaça catastrófica
poderia facilmente gerar investimentos e concorrência – o risco identificado hoje não se
enquadra em um patamar globalizante gerador de frutos futuros para o desenvolvimento e
fortalecimento do mercado, pois o capitalismo funciona em condições sociais claras em que se
subentende a confiança no mecanismo objetivo da mão invisível do mercado que, como uma
espécie de Artimanha da Razão, garante que a competição entre egoísmos individuais sirva ao
bem de todos (ZIZEK, 2011, p. 416-417). Ou seja, Zizek atribui aos diveres dos antagonismos a
possibilidade da degradação do capital, pois, segundo ele, vivemos uma mudança radical onde a
possibilidade de um evento catastrófico no horizonte ameaça, mais do que nunca, a lógica da
mão invisível e, sobretudo, a ideia salvaguarda de que “seja o que fazemos ou deixamos de fazer,
a história continuará” (2011, p. 417). Portanto, nas trilhas do filósofo, os antagonismos que
apontam no horizonte, traduzem situações efêmeras de nosso tempo por serem capazes de
produzirem uma queda irreversível do capitalismo ou, no mínino, alterar radicalmente sua lógica
de funcionamento. O terreno que subjaz tais ponderações messiânicas e criam credibilidade está
muito imbricado no funcionamento da ideologia no tempo presente. Por outras palavras, as ideias
de Zizek (2009, 2011) se sustentam em sua maneira de olhar e criticar a ideologia que nos
envolve. Embora o estudo da ideologia possua grande peso no trabalho do autor, traremos breves
inferências sobre o assunto, pois se trata de um exercício filosófico de fôlego e dar conta de toda
sua complexidade desviaria o foco do nosso estudo.
Zizek (2011) ressalta a ideia difundida hoje, de que vivemos em uma sociedade pós-
ideológica frutos do período pós-político, onde não estamos “mais presos ao fardo das grande
causas e das narrativas ideológicas” e, portanto, temos liberdade para fazermos nossas próprias
escolhas, sem interferir no jogo político, deixando que ele o faça por conta própria. Assim, não
precisamos mais nos agarrar a pensamentos críticos para interferimos no fluxo das coisas.
Entretanto, o filósofo defende o ponto de vista crítico a essa ideia. Para ele, podemos entender
esse pensamento conformista como sintoma de que “o poder não precisa mais de uma estrutura
ideológica consistente para legitimar seu domínio; pode se dar ao luxo de afirmar diretamente a
21
verdade óbvia: a busca do lucro, a imposição violenta dos interesses econômicos.” (ZIZEK,
2011, p. 298). Sob essa ótica, defender o pós- ideológico aparece como uma crença ainda mais
ideológica. Isto é, dizer que ultrapassamos o poder da ideologia significa que estamos claramente
no centro dela, na ideologia da negação. Por exemplo, pensando nos antagonismo, nega-se a
existência catastrófica destes, ou mesmo que creiamos em seu devir destrutivo, agimos contra
tais ameaças – como a crise ecológica, por exemplo, e ainda assim defendemos que tais atos
precisam ser moderados, sem uma necessária revolução no sistema, pois no fim das contas, a
catástrofe de fato não acontecerá.
O autor investe nas relações precedentes aos antagonismos e que os tornam aceitáveis em
escala global. Para ele, o melhor modo de compreendermos como tais relações se propagam é
trabalhar e explorar a ideologia em voga. Por outras palavras, tensionado a ideologia que nos é
apresentada conseguimos mapear as razões pelas quais o capitalismo se impõe e se justifica na
contemporaneidade. Levantamos a noção de ideologia predominante hoje com aquilo que fixa,
ou naturaliza, através de um processo histórico, não apenas os problemas atuais, mas as suas
soluções para os mesmos. Portanto, “é ver as coisas como dinâmicas e parte de um processo
histórico” (ZIZEK , 2011, p. 401).
Entretanto, Zizek argumenta, se ver as coisas como plurais e fragmentadas faz parte da
ideologia hegemônica deveríamos, ao contrário, perguntar – desafiando as condições ideológicas
– o que há hoje que permance imóvel e constante. Em resposta a esse ponto, podemos ler o
capitalismo e suas atividades como parte dessa estabilidade. Mas o irônico aqui é o que se
perpétua como igual é o próprio meio pelo qual se fomentam as mudanças, pois a maior e mais
marcante característica do capitalismo é sua capacidade dinâmica de se adaptar a novos tempos,
como uma autorevolução constante (ZIZEK, 2011, p. 401). Para tanto, o filósofo não se precipita
ao dizer que, hoje, a ideologia hegemonia difunde a ideia de que o capitalismo liberal
democrático chegou para ficar e qualquer mudança – por mínima que seja – nesta lógica política
econômica soa como perversa e inalcancável. Neste aspecto, o capitalismo triunfa novamente em
suas formas de resistência.
Tomada essa problematização acerca do contemporâneo, enquadramos como sendo esse
o lugar (uma realidade marcada por fortes antagonismos globais) no qual o jornalismo da
Pública se instala. Intricado na possibilidade de enquadrar as emergências do presente em
antagonismos intrínsecos ao capitalismo, nesta etapa do texto, descrevemos cada um deles.
22
2.1 Biogenética e Propriedade Intelectual
Os resultados sócioéticos dos novos desenvolvimentos científicos e tecnológicos como a
biogenética colocam em xeque a relação com o aquilo que se entendia por natureza. A principal
conseqüência dos avanços científicos na biogenética é o fim do que entendemos por natureza.
Uma vez que sabemos as regras de sua construção, os organismos naturais são transformados em
objetos passíveis de manipulação. Além disso, as empresas de biogenética investem em
desenvolvimento de genes dos quais eram, ao menos em essência, à certos indivíduos e neste
instante o material já possui seu copyright e pertencem a terceiros (ZIZEK, 2009, p. 417).
O problema que gira em torno da propriedade privada atualmente, com ênfase na
propriedade intelectual, é descobrir como ganhar dinheiro na indústria digital a ponto da empresa
conseguir manter e gerir seus negócios. Se tratando dos direitos de uso, se parece até com a
questão das indústrias de biogenética.
2.2 Ecologia
No seio de um consumo global e da produção incontrolável de bens-materiais, bem
como a apropriação individual daquilo que se enquadra na ordem do comum, seja na esfera
pública ou privada, nos deparamos com um somatório de delitos ambientais irreversíveis até
então. Extinção da fauna e flora, esgotamento de combustíveis fósseis, aglomeração de lixo
tóxico, emissão de gases poluentes, trazem ao nosso tempo um compromisso inescapável de
revisão do comportamento sobre como tratar a ecologia. Na possibilidade de ruptura com o
capitalismo e os novos lugares que redefinem a perspectiva revolucionária, a ecologia, então, se
coloca como um antagonismo intrínseco. Apesar da aceitação do sistema vigente, o filósofo
investiga nas brechas da reprodutibilidade complexa do capitalismo, lugares que redefinem a
capacidade de mudança nas atuais condições. Brechas essas geradas pelo próprio capitalismo em
sua “base substancial que medeia e gera os excessos (favelas, ameaças ecológicas etc.) que criam
locais de resistências” (ZIZEK, 2011, p. 415-416).
Apesar dos problemas ambientais, Zizek examina a maneira pela qual a causa sustentável
ecológica em voga tornou-se, hoje, uma forma de suprimir a existência da nocividade do capital
23
e seus efeitos colaterais. Para ele não se resolve a questão ecológica através do desenvolvimento
sustentável ou com atitudes consideradas “verdes”. Ao contrário, o discurso de sustentabilidade
permite que as empresas poluidoras – legitimadas por nossa economia - transfiram sua culpa não
só aos consumidores de seus produtos, mas a todos. O filósofo ainda especula dizer –
parafraseando a famosa colocação de Karl Marx sobre a religião – que a ecologia é candidata a
ser um novo ópio do povo (2011), no sentido de remediar as massas pelos danos ambientais de
hoje e negligenciando, assim, os efeitos pouco modestos do sistema em outros âmbitos globais:
O mes mo truque ideológico é usado hoje pelas injunções que nos bombardeiam de
todos os lados para reciclar nosso lixo, jogar garrafas, jornais etc. em lixeiras separadas
e adequadas... Assim, culpa e responsabilidades são personalizadas, não é a organização
da economia que é culpada, mas nossa atitude subjetiva é que deve mudar. (ZIZEK,
2010, p. 36).
Subjacente a essa constatação, é possível identificar duas formas políticas distintas que
fazem uso do desequilíbrio ecológico e do suposto devir desastroso. Uma seria a política do
terror emancipatório; a outra, no entanto, diz respeito à política do medo. Esta utiliza a ecologia
com base no medo em sua forma mais crua, na qual a repulsa e o pavor pela catástrofe ambie ntal
e sua possibilidade de fim faria com que nós, indivíduos sociais, finalmente, encontrássemos a
solução para os problemas e agiríamos em prol da espécie humana. Isso seria ignorar o real
problema, segundo Zizek, pois tenta enganar com a potencial ameaça e se espera secretamente
que nada seja tão ruim quanto se teme. A primeira, mais utópica (no bom uso do termo),
encontra nas vias catastróficas uma possibilidade de mudança, uma política onde questões
ambientais não sejam apenas tratadas e resolvidas como problema de desenvolvimento
sustentável ou excesso de consumo, mas que o mau uso da natureza e sua degradação, em geral,
sejam impossíveis.
2.3 Novos apartheids
Falar de apartheid é tratar do conflito entre os indivíduos, instituições, leis e organizações
econômicas que oprimem aqueles que estão à margem da sociedade. Em outras palavras é uma
forma de segregação, latente ou disfarçada, na qual excluem certos indivíduos e os proíbem da
cidadania, dos direitos fundamentais do homem, em suma, do convívio social em todas as
24
instâncias. Aqui, como já vimos, a relação incluído versus excluídos emerge nos interesses de
cada classe. Exemplos de novas formas de apartheid podem ser lidas no aumento das favelas ao
redor do mundo, ódio entre países e etnias, fortalecimento do racismo como problema de
tolerância10ascensão de partidos anti- imigrantes na Europa. Além disso, “novos muros surgir por
toda parte: entre Israel e Cisjordânia, em torno da União Européia, na fronteira entre Estados
Unidos e México e até no interior de Estados-nações.”(ZIZEK, 2009, p. 17-18)
(...) nenhum outro lugar as formas de apartheid são mais palpáveis do que nos ricos
Estados produtores de petróleo do Oriente Médio: Kuwait, Arábia Saudita, Dubai.
Escondidos nos subúrbios, muitas vezes por trás do muro, há dezenas de milhares de trabalhadores imigrantes invisíveis, que fazem i trabalho sujo, da manutenção até a
construção civil, separados de suas famílias e sem nenhum priv ilég io. Isso claramente
acrescenta à situação um potencial explosivo que hoje é explorado pelos
fundamentalistas e deveria ser canalizado pela esquerda na luta contra a exploração e a
corrupção. Uma forma mais comum de exclusão inclusiva são as favelas, grandes áreas
não inseridas nos mecanis mo estatais de governança. Embora sejam sobretudo um
campo em que gangues e seiras religiosas disputem o controle, as favelas abrem espaço
para organizações políticas radicais, como na Índia, onde o movimento maoísta dos
naxalitas vem organizando um amplo espaço social alternativo. (ZIZEK, 2009, p. 11).
Sob essa perspectiva, este antagonismo se mostra como o mais elementar entre todos os
outros pois, sem a relação excluídos versus incluídos, extrai-se o viés subversivo dos outros
antagonismos, onde a ecologia se transforma em problema de desenvolvimento sustentável, a
propriedade intelectual em desafio jurídico complexo, e a biogenética em questão ética (ZIZEK,
2011). Sem a relação oprimidos e opressores, podemo persistir na ideia opressora de que se deve
lutar pelo meio ambiente culpando os excluídos poluidores, eliminando os agricultores pobres e
disciplinando os países de “Terceiro Mundo”. É possível, ainda, tratar das questões genéticas
sem entrar no âmbito de classes, pois com os avanços da manipulação de genes anuncia no
horizonte a possibilidade haver não somente uma distinção entre classes social, mas também
corporal. Pode-se continuar excluindo aqueles que precisam ter acesso ao conhecimento de
forma gratuita, em prol da propriedade privada do conhecimento.
Não se pode negar que a globalização encadeou um entrelaçamento entre as questões que
acabamos de ver por todo o mundo. Junto a isso, houve um generoso alargamento entre as
formas de olhar e agir para o problema, no entanto, conforme Santos (2007, p. 20), “nos falta um
conhecimento tão global como a globalização”.
10
Para Zizek (2011), tratar problemas de segregação pelas vias da tolerância é esconder as reais soluções para o
apartheid. Pois, segundo o filósofo, ao tratar a exclusão como problema de tolerância, retira-se da questão a culpa da
política, justiça e da econômia, o que, na verdade, são os eixos que realmente causam o problema.
25
Esse breve percurso pelas adversidades do tempo pós-moderno nos possibilita ir atrás de
conteúdos – além da filosofia e sociologia – que produzem algum tipo de ruptura sobre o nosso
tempo e colocam em conflitos os diferentes interesses socioeconômicos. Ao fazerem isso,
trabalhamos na hipótese de que nesses conteúdos encontraremos informações capazes de mapear
lugares onde tais antagonismos ganham forma e projetam incertezas no futuro.
Pensando a reportagem como um espaço privilegiado de enunciação sobre os
acontecimentos do mundo, o estudo na próxima etapa desloca a problematização acerca dos
espaços complexos que medeiam nossa organização político-social para a atividade jornalista e
sua narrativa pensando qual é o lugar dessa atividade midiática no presente e como suas
narrativas operam nesse mundo pré-concebido, até então.
26
3 NARRATIVA, JORNALISMO E REPORTAGEM
O filósofo Walter Benjamin, em sua famosa crítica à obra de Leskov, foi pioneiro ao
problematizar e associar a narrativa com o jornalismo, chegando anunciar até que ela estava em
vias de extinção. Para o filósofo, narrar está essencialmente relacionado à tradição oral, e mesmo
que ela seja escrita, as melhores são as que mais se parecem com a fala. Ou seja, narra-se uma
história quando o narrador dialoga diretamente com o receptor e, nessa troca de vivência, a
imaginação de ambos seria exercitada, as experiências compartilhadas; e emoções, desejos e
valores seriam agregados à intriga. Assim, toda a grandeza da narrativa se mantém inalterada.
Neste aspecto, Benjamin compara o trabalho do narrador ao trabalho de um artesão – pois assim
como a narrativa, o artesão molda seu objeto a partir dos seus gostos e desejos para, ao final,
expor ao público o resultado esperado. Entretanto, o filósofo argumenta com pessimismo que as
novas formas lingüísticas – em meados do século 20 – vêm na contramão das narrativas. Ele
enfatiza que o romance, na ficção, estaria destruindo a narrativa, pois trancafiavam o poder da
experiência em relatos simplistas, cujo foco econômico e tecnicista excluía, na recepção, a
possibilidade do envolvimento com os efeitos da tradição oral.
É a experiência de que a arte de narrar está em v ias de extinção. São cada vez mais raras
as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre
alguma coisa, o embaraço se genraliza. É como se estivéssemos privados de uma
faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar
experiências. (BENJAMIN, 2000, p. 198).
Benjamin atribui este olhar pessimista sobre o futuro da narrativa às informações e
notícias que chegavam até ele. .
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em
histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de
27
explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa,
e quase tudo está a serviço da informação [...] (2000, p. 207).
Na obra, A Modernidade e os Modernos, Benjamin investe mais uma vez contra o
jornalismo e em prol da narrativa, só que agora, sob outro ponto de vista:
Se a imprensa se propusesse agir de tal forma que o leitor pudesse apropriar-se das
informações como parte de sua experiência, não alcançaria, de forma alguma, seu
objetivo. Mas seu objetivo é outro, e o alcança. Seu propósito consiste em exclu ir,
rigorosamente, os acontecimentos do âmbito no qual poderiam atuar sobre a experiência
do leitor. Os princíp ios da informação jornalística (novidade, brevidade, inteligib ilidade
e sobretudo ausência de qualquer conexão entre notícias isoladas) contribuem para este
efeito, tanto como a paginação e o estilo lingüístico (Karl Kraus demonstrou infati-
gavelmente como, e até que ponto, o estilo lingüístico dos jornais paraliza a imaginação
dos leitores). (BENJAMIN, 2000, p. 36).
As reflexões de Benjamin sobre a narrativa são marcantes e possuem um lugar
considerável na narratologia e nos estudos da linguagem. No nosso Campo, atualmente, esse
ponto de vista negativo da narrativa não é mais adotado pelos estudiosos de jornalismo.
Devemos reconhecer e valorizar as reflexões de Benjamin, principalmente, sem negligenciar o
período histórico do qual o filósofo escrevia, no auge da sociedade industrial pós-guerras. Mas
defendemos aqui que essa ótica pessimista sobre a narrativa ainda ecoa no jornalismo tradicional,
principalmente, no estilo que presume brevidade e objetividade do texto. Em contrapartida, nos
deparamos, hoje, com produções jornalísticas que favorecem a conexão entre narrativa e
jornalismo. Por exemplo, a oferta de livros reportagens nos dias atuais surge, também, para
preencher essa lacuna entre a informação não-ficcional, o literário, e o relato histórico em busca
de uma boa história. Antes de aprofundarmos no tema, discutiremos em torno dos conceitos de
narrativa e, em seguida, faremos a ligação entre eles e o jornalismo.
Narrar não é apenas relatar acontecimentos experimentados em forma textual. Muito
além disso, narrar é “estabelecer um modo de compreensão do mundo, de configurar
experiências e realidades, de comunicar-se com o outros”. (LEAL, 2013, p. 3). É o meio que
encontramos para tornar a vida vivível (RESENDE, 2009) onde as atualizações do tempo são
organizadas, e, nas trilhas de Genette (1995), é o lugar em que se instalam modos, sujeitos e os
contextos. Narrativizar, então, é dar a conhecer um mundo caracterizado por suas ambivalências
e marcas do tempo que ultrapassa a memória do homem, intercalando experiências entre sujeitos
(BENJAMIN, 1994) e, sobretudo, atribuindo sentidos e valores a essas vivências, tendo na
28
imaginação sua fonte criadora. Conforme Carvalho (2012) ao citar o filósofo Paul Ricoeur,
narrar:
[...] é tornar humano o tempo, assim como a forma por excelência de guardá-lo, de
preservá-lo, é um ato que não se limita às narrativas literárias ou históricas, assim como
se espraia para dimensões das atividades humanas que podem alcançar a arquitetura, o
cinema, as artes plásticas e uma série de outras ações dos homens, dentre elas, as
modalidades de contar os acontecimentos acionadas pelo jornalismo. (CARVALHO,
2012, p. 183).
Somando a essa definição, nas palavras de Ricoeur (1996, p. 70), “ela é uma obra de
síntese: pela virtude da intriga, objetivos, causas, acasos, são reunidos sob a unidade temporal de
uma ação completa e total”. Em suma, se narrativa é tornar humano o tempo, vivível a vida,
configurar experiências e discernir pelo espírito, as narrativas no jornalismo exploram
acontecimentos que colocam o “mundo diante de si” (GROTH, 2001) elencando sujeitos no
tempo. Esta postura nos oferece uma realidade marcada por suas contradições, que são capazes
“de nos fazer ver, a partir da singularidade, as conexões mais amplas com o particular e com o
universal” (CARVALHO, 2012, p. 181).
Um elemento primordial na narrativa é a intriga. Ao contar uma história, nós elencamos
elementos no narrar que seguem uma lógica na qual colocamos em ordem os eventos, lugares e
sujeitos no mundo (LEAL, 2013). Por exemplo, quando contamos uma experiência nossa a
alguém, selecionamos fatores iniciais – como dia, hora, lugar – acrescentamos sujeitos e
características do mundo que predominaram nessa experiência, atribuindo valores, sentimentos,
profundidade e sensibilidades - mais para algumas coisas, menos para outras. Estabelecemos
também equilíbrios e desequilíbrios para chegarmos a um final escolhido. Nessa série de fatores
que influenciam na maneira como contamos uma história, a intriga, o tempo, a heterogeneidade,
a unidade, a ação e o tempo subjazem todos eles, ou seja, é através de tais elementos que
perpassam e dão coerência todos os outros modos de narrar (LEAL, 2013).
Se quisermos contar uma vivência sobre algum parente refugiado de guerra, no exemplo,
tratamos de elencar que tempo foi esse, de que modo as ações dos sujeitos aparecem na história,
a existência das diferentes situações e, fundamentalmente, a intriga dos fatos. Valoriza-se esta
última, pois narrar é compor intrigas e isso se dá quando os fatos são ditos, lembrados,
mencionados e articulados entre si, ou seja, agenciados. Dessa agenciação, escolhemos o que
entrará no narrativo com base em valores e o que deixará de ser dito, pois narrar implica uma
29
síntese e não há espaço suficiente para totalizar a gama de informações que constituem num
acontecimento. Entretanto, entendemos a intriga não como sinônimo de trama, pois
caracterizamos esta como uma estrutura imóvel na narrativa, onde todos os outros elementos da
narrativa obedecem a sua lógica e, ela em si, faz sentido independentemente do tom narra tivo.
Em contrapartida, a idéia de intriga aqui defendida, conforma Ricouer, refere-se a um conceito
muito mais dinâmico, que depende da historia contada, dos modos e apelos que ela suscita, e que
emana situações mais complexas por tratar da demanda do meio e da interatividade entre
emissor/receptor. Por outras palavras, tratar da intriga não significa falar de um enredo específico
que funciona como um eixo imóvel aonde os elementos narrativos são organizados para se tornar
inteligível. A ideia aqui é pensar a intriga como um conceito móvel, passível de modificações a
partir dos elementos resgatados pela memória em relação ao conhecimento de mundo e ao
receptor, envolvendo questões culturais, éticas, sociais de um determinado sujeito e espaço
(LEAL, 2013).
Assim, a intriga sofre influências nas intercalações complexas que precedem o ato
narrativo, e no desenrolar da história, onde não há um fim em si mesmo. Ou seja, a narrativa não
se fecha à medida que seu fim se aproxima. Ela afeta, inclusive, a forma pela qual o ouvinte,
leitor agirá na sua vida, como ela atribui valores para as co isas e criam desejos. Voltando à
história do parente refugiado de guerra que precisou mudar de sua terra natal: após o fim da
narrativa onde as experiências desse sujeito foram intercaladas, efeitos poderão ser provocados
neste receptor sobre como ele concebe, a partir dessa história, o país desse personagem, a guerra
enfrentada por ele, e como ele olhará para este sujeito sempre que o mesmo for resgatado pela
memória. Isso vale não somente para o receptor da narrativa, mas também para o emissor que
organizou vivências em seu dizer, pois quem fala algo não fala apenas para o outro, mas também
para si próprio. Portanto, dessa forma, entende-se que a narrativa ecoa, também, nas
subjetividades daqueles que fazem parte da intriga e que a contam e recebem a história narrada.
Exploraremos brevemente, na seqüência, reflexões que cercam o conhecimento sobre a
narrativa no jornalismo para aplicar o seu conceito e criar subsídios para entrarmos no corpus
deste estudo, pois a metodologia aqui construída e defendida pretende, fundamentalmente,
analisar as narrativas jornalísticas da Agência Pública.
30
3.1 Narrativas no Jornalismo
O jornalismo molda sua enunciação sob regras e valores sociais definidos por uma
conduta que dita práticas específicas de dizer e tratar do agora, porém sempre atreladas ao
interesse público. As pretensas normas do Campo, apóiam-se na crença na verdade, que pode ser
lida nas coordenadas epistemológicas e nas diretrizes formuladas por manuais de redação com as
quais padronizam o texto jornalístico e instrumentalizam maneiras de dizer. Autores como
Traquina (2002) e Lage (1985) exemplificam essas fórmulas e moldes sobre como um texto deve
se portar para ser considerado material jornalístico. Fatores como brevidade, objetividade,
impessoalidade são imprescindíveis neste modo de fazer jornalismo e reverberam não apenas na
construção da notícia, mas também nos demais gêneros como crônica, reportagem, etc.
Este viés não só acarretou na padronização de ser do texto, mas, sobretudo, implicou na
ideia de que outras formas, que rompem com esse modus operandi, apresentam fragilidades e são
passíveis de questionamento, como se o texto hegemônico estivesse isento de resistência. Aqui, o
argumento da defesa pelo padrão se consolida na noção da credibilidade, ou melhor, a vinculação
com o real. Não obstante, este lugar no qual se instala o fazer jornalístico, suas técnicas de
sondagem da verdade irredutiva, denota problemas justamente com aquilo que a neutralidade que
o Campo propõe, pois “na ânsia de respeitar o dever da verdade, deixamos de lado, muitas vezes,
o dever da imprensa que, no quadro atual, mais do que nunca, talvez seja o de apresentar as
várias versões do que se pretende que seja verdade” (RESENDE, 2012, p. 162). Vale lembrar
que a questão do ritmo veloz e o curto tempo para aprovação das matérias também são fatores
que interferem na apuração da notícia. Deste modo, a predominância da postura metódica no
conteúdo jornalístico cria narrativas enclausuradas, pois, de acordo com Resende, “partem do
princípio de que sua construção depende exclusivamente de normas/regras previamente
estabelecidas que, uma vez aplicadas ao texto jornalístico, são capazes de explicar os
acontecimentos do mundo”.
Ainda de acordo com as normas padrão do jornalismo, existe a ideia de que pluralidade
de informação, vozes e lugares fazem parte da essência do conteúdo jornalístico. E isso não
exclui o texto não-hegemônico das diferentes possibilidades reconhecidas e aceitas pelo Campo.
Entretanto, se a pluralidade é permitida, acima de tudo, exigida, as formas pelas quais o
jornalismo se insere não precisam fechar as portas para o plural.
31
Hoje, muita coisa é produzida – e considerada jornalismo – de forma transgressora, como
nos alerta Leal: “a informação jornalística neste século XXI vêm assumindo cada vez mais uma
postura que dê valor às formas criativas das reportagens e livros não ficcionais de jornalismo”
(2013, p. 6). Embutido nesse caminho, que cria terreno fértil para potencializar o tratamento da
informação, as reflexões a cerca da narrativa jornalística merecem atenção, pois partimos do
pressuposto que o real produto do jornalismo nos chega sob forma de narrativas (CARVALHO,
2012). Entendemos que olhando para o que há de narrativo neste devir, abrem-se trajetórias
possíveis para tencionar a energia dessas formas criativas do jornalismo que apontam no
presente.
Voltando aos conceitos protótipos do Campo, resgatamos aqui a idéia que tais fórmulas
surgem atreladas aos valores, tendência e normas adquiridas com o tempo pelo jornalismo e
defendido como correto e útil por parte da academia, das empresas midiáticas e manuais de
redação. Dessa angulação, o conceito de narrativa emerge nos estudos e manuais de técnicos
como uma das modalidades da prática jornalística, isto é, como uma ferramenta disponível ao
jornalista quando há necessidade de contar uma história mais a fundo ou detalhada. Porém, como
nos lembra Leal (2013), a narrativa tratada como técnica “perde seu vínculo com as realidades
histórico-culturais específicas [da história] que dão sentido à sua adoção e uso” (p. 25). Ainda
segundo Leal (2013), é como se a maneira de fazer estivesse mais atrelada aos interesses
daqueles que gerem o jornalismo, do que às necessidades e vontades do próprio trabalho do
repórter.
3.2 Notas sobre reportagem
O jornalismo é uma prática social que representa por meio da linguagem os
acontecimentos da vida por meio de notícias, dados, reportagens, etc. É coletar, redigir, averiguar
- utilizando artifícios lingüísticos próprios do Campo - interrupções factuais da sociedade
escolhidas pelos profissionais da área através de valores que determinam o que é produto
jornalístico. Esse juízo em escolher o que se transformará em notícia, informação e pauta é
consequência de um conjunto de pensamento, opiniões e costumes compartilhados por um grupo
de pessoas ou instituição que geram conformidades sobre assuntos, e que sempre são de seus
32
interesses. Portanto, assegura-se que o jornalismo atua na sociedade e retira dela o seu propósito,
se sustenta e é sustentado pela ideologia com a qual o meio é interpelado
Além do cuidado e preocupação em selecionar os fatos a serem publicados, a projeção do
efeito transmitido pelo veículo também é importante nessa área específica dos meios. Efeito esse
que possui grande proximidade com crença de veracidade daquilo publicado por parte do
emissor. Em outras palavras, podemos dizer que a pretensão do jornalismo de narrar os “reais”
fatos (ou próximo ao real) de um acontecimento precisa de credibilidade para se afirmar como
um veículo de informação não-ficional. Isto é, o capital simbólico do jornalismo – o tratado que
o mantém existente - é a estrita relação com a verdade, pois sem tal concordância os assuntos
tratados pelas notícias, reportagens, informações não criam o efeito desejado pelo emissor.
No decorrer do século XX, o jornalismo também se modernizou, outros gêneros, além da
notícia, foram agregados - como a crônica, artigo, entrevista, resenhas, colunas e reportagens. A
mudança estilística sofrida significou, também, um alargamento das possibilidades de se fazer
jornalismo, tanto dos dispositivos, bem como das maneiras de tecer o real. Consequência disso,
o jornalismo faz trabalhar outras vertentes e se subdividiu em categorias que compartilham sua
essência: esportivo, investigativo, literário, internacional, sindical entre muito outros.
Concomitantemente, atenuaram pela linguagem outras realidades e formas de vida na qual
extrapolam fronteiras do padrões do campo. Podemos, aqui, salientar a reportagem como um dos
principais gêneros que não somente alargou os espaços da notícia, mas construiu um dizer
específico de tratar do contemporâneo (MAROCCO, 2009). Ela, muito mais que um
acontecimento, precisa de uma história para ser lida, ouvida, sentida e/ou visualizada.
O estudo da reportagem atravessa dois modos, um mais específico que, na área dos
gêneros, “se descola da notícia e se desdobra em um sem- fim de tipos” (MAROCCO, 2009, p.
173), e outro abriga as práticas e o modo de objetivação jornalística, nas técnicas de investigação
e coleta de dados, redação e estilo que supõe. (MAROCCO, 2009). Mais que uma apuração
detalhada sobre um fato, esse gênero trabalha rupturas com o cristalizado texto noticioso,
buscando em textos mais soltos brechas para a utilização de artifícios da literatura, do romance,
onde a profundidade da apuração alia-se ao uso de sujeitos e lugares sem, no entanto,
desvencilhar da pretensa relação com a verdade. Como bem lembrou Medina:
As linhas do tempo e do espaço se enriquecem: enquanto a notícia fixa o aqui, o já, o
acontecer, a grande reportagem abre o aqui num círculo amplo, reconstitui o já no antes
33
e depois, deixa os limites do acontecer para um estar acontecendo atemporal ou menos
presente. Através da contemplação de fatos que situam ou explicam o fato nuclear (...) a
reportagem leva a um quadro interpretativo do fato. (...) Foge-se aí das fórmulas objetivas para formas subjetivas, particulares e artísticas. (...)
Nesse momento, só se diferencia do escritor de ficção pelo conteúdo informativo de sua
narração, por isso narração noticiosa (MEDINA, 1978, p. 134).
É certo dizer que essa ruptura entre reportagem e notícia nasce do desejo de buscar maior
aprofundamento no fato, de uma narrativa que dê conta das relações complexas que antecedem e
precedem o acontecimento. A possibilidade alcançável da reportagem em expandir normas
estilísticas do campo, criar narrativas que não somente sejam feitas de certezas, mas, também de
dúvidas, foram fortemente influenciadas pelas inquietações políticas e sociais dos anos 60
(FARO, 2013). Ou seja, não só pela forma a reportagem do newjournalism se consolidou, mas
sobretudo, das afetações culturais que permearam os processos jornalísticos, propriamente dito.
3.3 Do jornalismo digital
O jornalismo de internet é visto como uma recente prática no campo comparado a outros
suportes e sofre modificações aceleradas na medida em que os avanços da digitalização ganham
adesão e facilitam o acesso aos seus usuários. Gradim nos lembra que essas mudanças não vêm
de hoje, pois “as profissões jornalísticas, ligadas à produção de conteúdo noticioso difundido por
meios de comunicação de massas, sempre estiveram sujeitas a velozes mutações tecnológicas”
(2005, p. 81).
A Web 2.0, segunda geração de comunidades e serviços da internet, marcou esse espaço
singular de fazer jornalismo. Podemos citar como exemplo a não finitude do texto em páginas
na internet, o que permite um alargamento dos espaços de criação, bem como a interatividade,
isto é, a possibilidade do leitor de participar da construção das pautas, notícias, reportagens.
Somam-se a essas características do jornalismo para a Web diversos conceitos que ocupam um
importante lugar na modificação de sua prática: a customização de conteúdo – configuração de
produtos jornalísticos de acordo com interesses e desejos dos usuários –, hipertextualidade –
conectar ao texto links, replicações exteriores ao seu conteúdo – e multimidialidade –
convergência de imagem, som e texto na narrativa (MIELNICZUK, 2005). A adesão desses
34
elementos ecoam, também, nos conceitos que denominam esta forma de se fazer jornalismo.
Como exemplo, alguns dos termos encontrados são ciberjornalismo, jornalismo eletrô nico,
jornalismo online, jornalismo digital, jornalismo hipertextual (MIELNICZUK, 1998). Utilizamos
aqui o termo jornalismo digital, pois entendermos que a abrangência desta definição e sua
capacidade de reunir todas as outras noções, flexibiliza o uso do conceito ao longo do trabalho.
Hoje, passados 30 anos da criação da Word Wide Web (www), considera-se o jornalismo
digital estando em sua terceira geração. Esta definição, como nos lembra Mielniczuk (2005, p.
2), refere-se ao “uso de recursos avançados da informática para o desenvolvimento os quais
permitem a exploração das características oferecidas pelo suporte” (PALACIOS, 2002). Isto é,
enquanto na segunda e primeira geração a internet era uma rede tímida, com pouco domínio por
parte do público, hoje, na terceira geração, encontramos uma grande expansão da web e no
número de usuários. Isso acarretou um alargamento das fronteiras do jornalismo digital cujos
leitores encontram-se disponíveis à tecnologia e à fácil acessibilidade através dos custos da
internet.
Na flexibilização do suporte nas narrativas jornalísticas, encontramos em blogs, redes
virtuais, sites independentes dizeres que diferem daqueles atrelados aos tradicionais meios de
comunicação de massa. É coerente dizer que dessa pluralidade impulsionada pela internet – do
conteúdo ao suporte - modifica também conceitos dos gêneros jornalísticos (SEABRA, 2002).
Uma dessas modificações se refere à modificação na pirâmide invertida - norma padrão do texto
jornalístico - para a vertical. Isto é, delega-se à pirâmide invertida uma postura de disposição das
informações no texto que obedece a lógica de “relevância”. Nessa ordem, aparecem nos
primeiros lugares as informações mais importantes – na base da pirâmide -, e as menos
relevantes ocupam um espaço secundário, terciário, aproximando-se do topo. O primeiro
parágrafo, chamado lead, então, é o que contém os informes de maior valor na matéria.
Faz parte do jornalismo digital construir notícias que tratam do instante, do tempo
imediato. Esse tratamento veloz da informação aparece atrelado a espaços textuais não finitos
proporcionado pelo suporte online. Diante disso, a postura textual descrita acima vem sendo
questionada por jornalistas e estudiosos da comunicação por não suprir as necessidades
demandadas pelo suporte. Parte desse descrédito advém da possibilidade do digital de abalar essa
estrutura ao propor uma ordem que desprivilegia a importância das informações, em detrimento
da quantidade de informação. Como sugere, Canavilhas:
35
a quantidade (e variedade) de informação disponibilizada é a variável de referência, com
a notícia a desenvolver-se de um nível com menos informação para sucessivos níveis de
informação mais aprofundados e variados sobre o tema em análise (CANAVILHAS,
2005).
Essa nova arquitetura da informação precede a relevância qualitativa da pirâmide
invertida, optando pelos diferentes níveis de informação com os quais se efetivam pela
hipertextualidade. Dessa forma, podemos dizer que a pirâmide nas matérias do jornalismo digital
pode ser horizontalizada.
O jornalismo digital, apesar disso, conserva vários aspectos do jornalismo em outros
suportes, especialmente o impresso, pois limitações editoriais e temporais fizeram com que as
empresas utilizassem conteúdos já produzidos pelos meios tradicionais. Isso se reflete no grande
número de portais de notícias de empresas jornalísticas já consolidadas pelos formatos
tradicionais (impresso, rádio e televisão). Entretanto, a facilidade econômica e jurídica de criar
meios jornalísticos na Web flexibilizou caminhos para novos espaços de narrar, exclusivamente
digitais, geridas de maneira coletiva ou individual, motivadas pelos descontentamentos com o
jornalismo hegemônico e/ou pela possibilidade de independência administrativa, editorial. A
rigor, seus criadores moldam suas enunciações jornalísticas de acordo com seus anseios
respeitando, ou não, fundamentos do jornalismo cristalizados por sua história. Desse
desprendimento com a forma e conteúdo das mídias corporativas que a Web possibilita, nota-se
um maior participação de agentes engajados que tendem a privilegiar fatos negligenciados pelas
grandes agências de notícia (MATOS, 2011).
Vemos, também, uma implicação desse engajamento (para além do suporte) nas pautas
de cunho social, denunciativo e humano, às vezes negligenciadas pelos jornais de grande
circulação. Com outras palavras, assuntos que deixaram de ser noticiados por interesses
econômicos, empresariais ou por desconhecimento, pode ter voz nas mídias exclusivas digitais.
Assim, pode-se dizer que a mídia (hegemônica) não fala mais sozinha11.
Se falamos do jornalismo hegemônico, ou melhor, da dita grande mídia, é importante
criar um olhar crítico sob como os grandes jornais conduzem seus negócios no âmbito político e
econômico. Resgatamos, então, os interesses comerciais do jornalismo hegemônico. Oliveira
(2009), ao citar Biondi e Charão (2008), nos lembra da necessidade de expor o funcionamento
desse jornalismo:
11
Devo essa ideia à professora Hila Rodrigues.
36
não se pode deixar de pensar nos grupos de míd ia como empresas, jogando o jog o do
capital, avançando e retrocedendo com os mercados, empresas que, claramente, lidam
com um capital simbólico que, certamente, mult iplica o seu peso nas economias e
políticas nacionais. (BIONDI E CHARÃO, 2008, p. 2).
Entretanto, nosso objetivo aqui não é problematizar as afetações, perversas ou não, do
mercado no jornalismo. De forma menos pretensiosa, o que buscamos nestas reflexões foi pensar
numa forma midiática onde tais influências não existem, ou pelo menos não de maneira tão
incrustada. Para tanto, o jornalismo digital vai ao encontro da chance em desvencilhar a relação
acima tratada. A própria alternativa que aponta no horizonte de jornalistas serem donos,
criadores e administradores de seu próprio veículo caminha na contramão da interferência
mercadológica no conteúdo das notícias.
Das breves reflexões feitas acerca do jornalismo digital, pontuam-se três primordiais para
o nosso estudo: (1) possui uma linguagem potencializada pelo suporte que, no entanto, conversa
práticas análogas ao jornalismo tradicional, (2) cria possibilidade de trabalhar pautas alternativas
aos padrões reiterando vozes silenciadas pela grande mídia, (3) dá condições de funcionamento
do veículo adversos à relação mercadológica contida nas empresas midiáticas. Essas três
reflexões recaem em nosso objeto de estudo, Agência Pública (http://apublica.org), por ser um
meio restrito à web onde se mesclam linguagens próprias do jornalismo digital, permitir material
jornalístico que trata de minorias e direitos humanos, e, sobretudo, ter sido crida e mantida
através de iniciativas de jornalistas (essas ideias serão melhor explicitadas no capítulo seguinte).
O método construído neste estudo abarcou as pontecialidades em torno da narrativa –
tornar o mundo inteligível, encadear sujeitos, lugares, sentimentos, valores ao longo da trama,
possibilidade de desencadear efeitos para além da história – ao olhar para as reportagens de
nosso objeto e refletir acerca delas. Antes de explicar de que maneira essa construção se deu,
iremos, na próxima etapa, descrevem mais detalhadamente nosso objeto e suas peculiaridades.
Esse movimento é importante para recompor onde essa narrativa vai entrar, entendendo essa
como uma característica de análise, pois, como vimos, a narrativa, ao criar sentido e tornar as
coisas inteligíveis, não se desvincula de seu lugar de materialização.
3.4 Agência Pública e seu engajamento no contemporâneo
37
Impulsionados pela importância de se olhar para a narrativa, entendendo que sua
abrangência nos permite investigar características, modos e estratégias do texto jornalístico
propriamente dito, neste capítulo descrevemos as peculiaridades jornalística de nosso objeto,
Agência Pública.É importante sublinhar novamente que nossa expectativa nesta averiguação foi,
não só responder, mas problematizar de que forma a narrativa jornalística da Pública elucida as
questões do Brasil. Antes mesmo de expormos a metodologia construída, bem como a análise
feita, abarcaremos nos próximos parágrafos informações sobre o site de jornalismo, A Pública, e
seu funcionamento específico. Consideramos essa atenção ao meio citado, pois faz-se
fundamental alcançar os espaços que excedem o nosso corpus para facilitar o entendimento deste
estudo, visto que a Pública possui pouco tempo de existência e ainda é um meio desconhecido
por muitos.
Diante do horizonte onde há outro espaço para o jornalismo e, concomitantemente, uma
possível outra escrita do jornalismo, nosso objeto empírico se insere em um ambiente lido aqui
como um lugar diferenciado de fala, em especial, por se configurar em um espaço narrativo
digital criado por iniciativa de jornalistas, mantido por organizações independentes, com certa
autonomia econômica e editorial. Estes fatores são fundamentais para enquadrarmos aqui a
Agência Pública como parte do jornalismo não-hegemônico, pois, como veremos a seguir, se
trata de um espaço narrativo mantido, pensado e elaborado inteiramente por jornalistas.
A Agência Pública (http://apublica.org) foi criada em 2011 pelas jornalistas Marina
Amaral e Natalia Viana. É um projeto independente, financiado por fundações internacionais,
como Ford Foundantion e Open Society Foundantions, sem qualquer vinculação comercial e
sem interferência de seus financiadores no conteúdo produzido. Algumas de suas produções e
projetos são financiadas através do Catarse, (catarse.me) um site de financiamento coletivo que
agrega valores monetários através de doações online feitas por qualquer pessoa e instituição. A
Pública disponibiliza todo seu material jornalístico através da licença Creative Commons,
através da qual permite a reprodução do seu material - desde que seja citada (ao menos) a autoria
- por qualquer pessoa, instituição ou organização sendo ela jornalística ou não. Nos moldes de
uma agência de notícias, o site financia bolsas e microbolsas para elaboração de reportagens
investigativas por jornalistas residentes no Brasil. Soma-se a isso o fato de a Pública ser uma das
38
principais reprodutoras das informações da organização, WikiLeaks12 na América Latina com as
quais também pautam diversas matérias confeccionadas pela Agência. Vale lembrar, ainda, que a
Pública opera em uma lógica com a qual permite ao leitor acessar todas as bases documentais
utilizadas nas reportagens. Assim,
[...] a veicu lação dessas bases constrói um caráter de transparência da agência, sendo
que o leitor pode ter acesso aos documentos utilizados na construção da reportagem,
além d isso, pode revisitá-los e ressignificá-los cruzando as informações com outros
contextos. O leitor torna-se aqui peça chave para a significação da narrativa
(SCHWAAB et al, 2013, p. 3).
Dos assuntos investigados pelo site, priorizam-se relatos que trazem desequilíbrios
sociais, ou até mesmo em lugares onde esse desequilíbrio e a ausência de direitos humanos são
permanentes e constantes (DIAB, 2013, p.8). Na descrição que a Pública faz de si, há muito
destes aspectos: “Nossa missão é produzir reportagens de fôlego pautadas pelo interesse público,
sobre as grandes questões do país do ponto de vista da população – visando ao fortalecimento do
direito à informação, à qualificação do debate democrático e à promoção dos direitos humanos”.
A Pública trabalha dentro de uma lógica jornalística organizada por 22 categorias de
investigações indicadas por hashtag (#), que reúnem matérias dentro de uma mesma temática.
Do montante, destacam-se como de maior produção as investigações: #Wikileaks, que tratam das
informaçaões vazadas pelo site Wikileaks; #AmazôniaPública, sobre os diversos problemas que
afetam a floresta e sua população; #Microbolsas, destinada às produções de jornalistas
escolhidos, porém não vinculados a Pública; além da editoria especial #CopaPública, que tange
assuntos sociais e ambientais da Copa do Mundo 2014 no Brasil.
Encontram-se na plataforma, outros formatos e conteúdos que convergem nas
reportagens contidas no site. É recorrente a utilização de infográficos, fotografias e vídeos no
decorrer das matérias, sempre dialogando com o assunto relatado na investigação. Esse
tratamento da informação é nítido na categoria #JornalismoDeDados, espaço destinados
especialmente à interação do conteúdo com o leitor. Na aba, Documentos, localizam-se as bases
documentais utilizadas nas confecções das reportagens pela Agência. São arquivos digitalizados,
disponíveis ao acesso, mesclado entre dossiês, ações civis e públicas, documentos legais,
projetos, contratos, relatórios, depoimentos, etc.
12
WikiLeaks (http://wikileaks.org/ ) é uma organização sem fins lucrativos que publica na plataforma digital
postagens de fontes anônimas sobre informações sigilosas de governo e empresas.
39
Um dos focos da Pública, se tratando de conteúdo, são as tensões ocorridas no norte do
Brasil, para ser específico, a floresta Amazônia e todo território que a envolve – os nove estados
brasileiros, Amazônia, Acre, Pará, Maranhão, Roraima, Amapá, Tocantins, Rondônia, Mato
Grosso. Os conflitos socioambientais dessa região estão contidos, mais abundantemente, na
categoria #AmazôniaPública, e também nas séries #GuaraniKaiowá, #CréditosDeCarbono,
#Futuro da Amazônia, #JornalismoDeDados, #BNDESnaAmazônia, #ViolênciaNaAmazônia e
#MarcadasParaMorrer. Esta última investigação e suas 11 reportagens - uma das mais recentes
feitas pela Agência, entrou neste estudo como nosso recorte metodológico a fim de observamos
seu grau narrativo para, a partir disso, mapearmos de que maneira as questões que afligem o
Brasil no presente são colocadas pela Pública.
40
4 A PÚBLICA E AS TENSÕES DO CONTEMPORÂNEO
A intenção que impulsionou a pesquisa é averiguar de que forma a narrativa jornalística
da Pública elucida questões do Brasil. Essas questões, conforme vimos possuem aspectos de
dimensão global, bem como nacional, fundamentais para problematizarmos o mundo que nos é
dado pelo site. Por isso, o estudo tencionou as ideias de Slavoj Zizek acerca dos antagonismos da
atualidade, procurando expandir algumas fronteiras para pensar tais impasses. E se é através da
narrativa que o jornalismo torna o mundo compreensível, a construção do modo de alcançar esse
jornalismo na pesquisa tomou tal viés como norte.
A intenção foi construir um método coerente para olhar e tensionar a narrativa de nossa
amostra, sem fixar em alguma estrutura impermeável e inflexível, onde fossem permitidas as
nossas interpretações sob o recorte e que dessem conta da complexidade que os estudos da
narrativa demandam. Embora estes estudos estejam buscando formas de construir uma
metodologia de fato, ousamos utilizar conceitos e ponderações da narratologia - área que
pesquisa as narrativas, embora mais ligadas à literatura ficcional - e mesclar com a análise de
conteúdo do jornalismo, muito embora, trazendo especificidades da análise pragmática narrativa
desenvolvida por Luiz Gonzaga Motta (2005).
O procedimento adotado para a construção do método se deu através da disposição de
cinco perguntas sobre as reportagens que se desdobraram em movimentos de análise. A primeira
pergunta foi pensar que intriga que perpassa cada reportagem, a saber, em que situação, lugar,
cenário a trama aparece e qual antagonismo a reportagem suscita. Com isso, criamos o
movimento de análise (1) Análise do contexto. A segunda pergunta buscou responder de que
forma as informações das reportagens aparecem no texto e como as matérias são organizadas.
Portanto, desenvolvemos o movimento (2) disposição dos elementos no texto. Procurando saber
como os sujeitos são utilizados pelo autor, criamos o critério (3) análise dos personagens para
compreendermos modos de aparecimento de cada sujeito, sua valorização moral na versão, e o
espaço de voz dentro do texto. Também questionamos a maneira pela qual o narrador, por sua
vez, conduziu as reportagens. Assim, construímos o movimento (4) análise do narrador
41
buscando suas intenções e marcas contidas na narrativa. De forma mais ampla que as demais
perguntas, tratamos de investigar quais temas em comum subjazem todas as reportagens. A partir
disso, questionamos o que desse tema tratado no interior das matérias pode ser trazido ao exterior
do jornalismo. Por outras palavras, averiguamos o que se pode dizer do contemporâneo a partir
da intriga relatada pela Pública. Desta forma, elaboramos o movimento (5) recomposição da
intriga. Nesta etapa, exclusivamente interpretativa e d issertativa, trouxemos a contribuição de
Zizek sobre o mundo pós-moderno (antagonismo do tempo presente) a fim de sondar em o quê
da visão do filósofo pode ser lido na intriga das reportagens.
Escolhemos como material empírico as reportagens da série de investigação
#MarcadasparaMorrer. A escolha se deu pela exclusividade dessas produções, que tratam de
sujeitos e suas histórias de vida, sem perder o tom jornalístico e denunciativo das informações.
Também foi critério selecionar um material que traduz a parte pelo todo, isto é, que representa as
peculiaridades do texto publicado na Pública e, além disso, o conteúdo com o qual nosso site
trabalha, ou seja, emergências sociais no contemporâneo brasileiro. Já que muito se fala da
atualidade neste estudo, queríamos trabalhar em cima de reportagens recentes que lançam luz às
situações efêmeras do presente. A partir dessas premissas, entramos nas reportagens que
constituem a série, a fim de perceber o que nelas servem de exemplo para se pensar como a
narrativa da Pública traduz os problemas efêmeros do contemporâneo.
No recorte para esse estudo, selecionamos 11 reportagens de fôlego da Pública, escritas
pelo repórter Ismael Machado – Agência Pública e Diário do Pará - relacionadas às histórias de
mulheres ameaçadas de morte por questões agrárias, ambientais e sociais, todas elas publicadas
neste ano. São mulheres do Estado do Pará, Norte do Brasil, que lutam por sua comunidade,
reforma agrária e pelas terras de sua família. Como consequência disso, convivem com a fa lta de
sossego ocasionado por conflitos constantes com latifundiários e estão à mercê da negligência
jurídica e política do Governo do Estado e da União. Como este estudo se pauta no
contemporâneo, faz-se coerente tratar de um material recente. Ainda no momento da escolha,
mapeamos textos em que novos apartheids são, essencialmente, lugares dimensionais que
conduzem as emergências e o terreno em que os conflitos sociais aparecem no tempo atual.
Foram trazidas para análise pautas que valorizam não somente o diferenciado uso das fontes,
mas também o interesse humano nas apurações e investigações do site. Nas onze reportagens da
Agência, analisaremos seu conteúdo, tendo como premissa que suas narrativas centralizam
42
experiências do cotidiano das fontes e se apresentam como sendo aquelas mais sensíveis e
humanas, trazendo histórias pessoais de sujeitos subjacentes ao tom denunciativo do evento
perpassados por elas.
O recorte constitui: a) Essa é Maria Raimunda, líder do MST no Pará, ameaçada de
morte13; b) Presa e ameaçada de morte, testemunha ainda teme pela vida14; c)“Tu sabes que se
a gente perder a terra, tu vais perder a vida15”; d) Graciete carrega na carne a bala dos
assassinos de seu pai16; e) Nicinha e o sindicato rural dirigido apenas por mulheres17; f) Cleude,
com medo, tenta pegar na mão de Deus18; g) Ameaçada desde 1996, Regina sonha viver em
paz19; h) Maria do Carmo luta por sua comunidade e pela floresta20; i) Maria Joel da Costa
herdou a luta e as ameaças de morte21; j) Laísa luta pela terra e pela memória da irmã22 e k)
Elas, marcadas para morrer23. Esta última reportagem entrará apenas no primeiro movimento de
análise, pois é uma descrição das reportagens que estariam por vir, e não uma reportagem que
trata dos personagens propriamente dito. Para tanto, enquadramos as outras dez reportagens em
cinco quadros de análise, um que engloba todo o material a fim de perceber as relações entre
elas, do que dizem e por qual viés, e outros quatro que tensionam cada reportagem isoladamente
recortando trechos, organizações, dizeres do texto e interpretações nossas perante o fragmento
estudado.
Em suma, o método de investigação que se deu pela construção de cinco movimentos
analíticos da narrativa jornalística, tratou de mapear as relações textuais da Pública com aquilo
que é exterior ao texto, isto é, nas trilhas da não finitude da narrativa, o mundo possível de ser
13
Disponível em: www.apublica.org/2013/07/essa-e-maria-raimunda-lider-mst-para-ameacada-de-morte/ Acesso
em: 20 nov. 2013. 14
Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/presa-ameacada-de-morte-testemunha-ainda-teme-pela-vida/
Acesso em: 20 nov. 2013. 15
Disponível em: www.apublica.org/2013/07/tu-sabes-se-gente-perder-terra-tu-vais-perder-v ida/ Acesso em: 20
nov. 2013. 16
Disponível em: www.apublica.org/2013/07/graciete-carrega-na-carne-bala-dos-assassinos-de-seu-pai/ Acesso em:
20 nov. 2013. 17
Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/nicinha-sindicato-rural-dirig ido-apenas-por-mulheres/ Acesso
em: 20 nov. 2013. 18
Disponível em: www.apublica.org/2013/07/cleude-medo-tenta-pegar-na-mao-de-deus/ Acesso em: 20 nov. 2013. 19
Disponível em: www.apublica.org/2013/07/regina-sonha-viver-em-paz/ Acesso em: 20 nov. 2013. 20
Disponível em: http://www.apublica.o rg/2013/07/maria-carmo-luta-pela-sua-comunidade-pela-floresta/ Acesso
em: 20 nov. 2013. 21
Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas-para-morrer-maria-joel-da-costa-herdou-luta-
ameacas-de-morte/ Acesso em: 20 nov. 2013. 22
Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas-para-morrer-laisa-luta-pela-terra-pela-memoria-da-
irma/ Acesso em 20 nov. 2013. 23
Disponível em; http://www.apublica.org/2013/07/marcadas -para-morrer/ Acesso em: 20 nov. 2013.
43
mapeado e problematizado à luz da narrativa jornalística. Buscamos, assim, aquilo que a
narrativa diz sobre os dias atuais, no processo dinâmico comunicacional, muito embora sem
desprezar as relações textuais internas de qualquer narrativa (LEAL, 2013).
4.1 Movimento analítico 1: Análise do contexto das reportagens
Uma das principais funções do analista é recompor o contexto que medeia a construção,
estrutura e execução do material jornalístico a ser analisado. Notícias e reportagens, embora
pareçam ser destoantes entre si, específicas e isoladas, possuem, sim, um grau de similaridade,
seja no acontecimento ou nos assuntos que giram em torno do evento. Elas caracterizam-se num
dizer específico sobre a atualidade, moldam personagens, lugares e dizeres conforme uma trama,
conflito num texto futuro.
Voltando às peculiaridades da narrativa, vemos que a intriga tem papel fundamental no
funcionamento de qualquer ato narrativo. Diferentemente da trama, a intriga não aparece
cristalizada e imóvel dentro da narrativa. Ela é imóvel e permuta conforme os efeitos relacionais
emissor/receptor. À vista disso, este quadro cujo objetivo é reconstruir a intriga que perpassa no
conteúdo analisado, abre caminho para nossa interpretação acerca dos caminhos possíveis da
narrativa para os antagonismos que Zizek nos apresenta. Para tanto, destinamos uma categoria,
dentre as sete, para verificar quais antagonismos são tratados em cada reportagem de nosso
recorte metodológico. As demais trataram de recompor a intriga que subjaz o montante
escolhido. Quem narra tem algum propósito ao narrar, nenhuma narrativa é ingênua. A análise
deve, portanto, compreender as estratégias e intenções textuais do narrador, por um lado, e o
reconhecimento (ou não) das marcas do texto e as interpretações criativas do receptor, por outro
lado. (MOTTA, 2005)
Explicaremos cada uma delas:
● Trama Relatada: Como visto no capítulo sobre as narrativas, trama não é sinônimo de
intriga. Essa refere-se a uma categoria fixa, que existe independente das potencialidades
pré e pós narrativo. A trama se refere ao sentido das ações narradas pelo autor em cada
acontecimento.
● Cenário: Refere-se aos locais que são tratados na trama. Aqui, trata-se mais
especificamente das regiões brasileiras trazidas pelas reportagens
44
● Sujeitos/ Vozes: Menos que uma análise dos personagens, esta categoria trata quem são
os sujeitos que fazem parte do acontecimento e suas funções na versão.
● Conflitos: Nessa parte, tratamos de colocar em oposição os interesses embutidos no
material jornalístico, pois, conforme Motta (2005), há sempre pelo menos dois lados em
confronto em quase todo acontecimento jornalístico. Há sempre interesses contraditórios,
algo que se rompe a partir de algum equilíbrio ou estabilidade anterior e que gera tensão.
● Partes envolvidas: Dialogando com os conflitos, essa categoria descreve quais são as
partes envolvidas na história como um todo. Isto é, quais são os sujeitos que fazem parte
das tensões, que lugares eles ocupam sem entrar nos interesses individuais de cada grupo.
● Entidades envolvidas: Semelhante à categoria acima descrita, enumeramos aqui quais
são as instituições, órgãos, entidades, comissões que aparecem na narrativa jornalística. O
objetivo é ampliar o entendimento das relações que medeiam o conflito.
● Antagonismos: Como dito, essa etapa traduz a nossa interpretação sob o contexto das
reportagens. Buscamos inferir quais dos quatro antagonismos (biogenética, propriedade
privada, ecologia, apartheid) são latentes e provocam tensões em cada reportagem
relatada.
45
Trama
RelatadaCenários
Sujeitos/
VozesConflitos
Partes
envolvidasEntidades Envolvidas Antagonismos
29.07.13 Essa é
Maria Raimunda,
líder do MST no
Pará, ameaçada de
morte
Líder do MST
sofre ameaça
de morte por
latifundiário
Marabá,
sudoeste do
Pará
Assentamento
do MST
Maria
Raimunda
Ocupações de terras
e assentamentos do
MST (Pará) X
Latifundiáriose
pistoleiros
Ativistas, policiais,
fazendeiros
MST, Polícia Militar do Pará,
Governo do Pará
Apatheid, Propriedade
Privada
29.07.13 Presa e
ameaçada de morte,
testemunha ainda
teme pela vida
Agricultora
ameaçada de
morte por
testemunho em
julgamento
Santana do
Araguaia,
Fazenda Nobel
Késsia Furtado ;
Nádia Pinho, a
principal líder
dos acampados
Ocupações e
acampamentos em
terras x
Fazendeiros;
Depoimento judicial
moradores ,
pistoleiros,
fazendeiros,
Sindicato dos
trabalhadores rurais
Ouvidoria Agrária; Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de
Santana do Araguaia
Apartheid, Propriedade
Privada
29.07.13 “Tu sabes
que se a gente
perder a terra, tu
vais perder a vida”
Lider rural
convive com
ameaças
constantes de
morte
Santana do
araguaia,
Fazenda Ouro
Verde, olônia
Verde-Bandeira
Nádia Pinho
Silva, Líder
rural;
Posseiros, liderança
rural x fazendeiros,
pistoleiros
lider rural, posseiros,
pistoreiros,
fazendeiros, ouvidor,
polícia
PM de Belém; Ass. dos
Trabalhadores Sem Terra Brasil
Novo, Comissão Pastoral da Terra;
Sindicato dos Trab. Rurais de
Santana do Araguaia; Incra
Apartheid, Ecologia,
Propriedade Privada
22.07.13 Graciete
carrega na carne a
bala dos assassinos
de seu pai
Filha de líder
social, sofre
com bala
alojada no
corpo que teria
como destino o
pai.
Breu Branco –
Pará
Graciete
Machado
Fazendeiros X
ocupações agrárias
no Pará
Posseiros, ativista,
fazendeiros Incra
Apartheid,
Propriedade Privada
22.07.13 Nicinha e o
sindicato rural
dirigido apenas por
mulheres
Líder de
Sindicato Rural
e ameaças
sofridas ao
longo do
mandato. Rondon do Pará
Zuldemir dos
Santos de
Jesus, a
‘Nicinha’,
Sindicalistas Rurais
X Fazendeiros
Lideranças
Sindicalistas Rurais,
fazendeiros,
pistoleiros
Programa Nacional de Proteção aos
Defensores dos Direitos Humanos;
Sindicato dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais de Rondon do Pará, Propriedade Privada
22.07.13 Cleude,
com medo, tenta
pegar na mão de
Deus
Líder de
ocupação,
Cleude sofre
ameça de
morte
Itupiranga,
municípios ao
sudeste do Pará.
Fazendas da
União:
Bandeirantes e
Potiguar
Cleude
Conceição;
Maria da Ajuda
70 famílias de
ocupações agrárias
X Fazendeiros
Lideranças Rurais X
Fazendeiros
Incra, Justiça Federal de
Marabá, MST
Apartheid, Ecologia,
Propriedade Privada
15.07.13 Ameaçada
desde 1996, Regina
sonha viver em paz
Ameaçada de
Morte, Líder
Sindical convive
com o perigo
Eldorado dos
Carajás
Maria Regina
Gonçalves
Famílias x
Fazendeiros que
apropriam terra da
reforma agrária
Famílias, Sindicato
Rural X Fazendeiros,
Latinfundiários
Sindicato dos Trabalhadores
e Trabalhadoras Rurais de
Eldorado dos Carajás, Incra
Ecologia, Propriedade
Privada
15.07.13 Maria do
Carmo luta por sua
comunidade e pela
floresta
Ameaçada de morte,
Du Carmo trabalha
para sobrevivência de
sua comunidade com
a preservação da
floresta amazônica
Comunidade
Lago Verde,
conhecida como
Transcametá,
em Baião.
Maria do
Carmo Pinheiro
Chaves, a “Du
Carmo”
Preservação da
floresta Amazônica
X Destruição da
floresta e Tráfico de
Drogas
Caçadores,
Traficantes X
Comunidades da
floresta
Ministro da Pesca, Associação
dos Pequenos Produtores e
Agricultura Familiar de Lago
Verde
Ecologia, Propriedade
Privada
Laísa luta pela terra
e pela memória da
irmã
08.07.13
Após
absolvição de
mandante da
morte da Irmã,
Laísa sofre
ameaças
Marabá, cidade
no sudeste do
Pará
Laísa Santos
Sampaio
Assentamentos
familiares x
Fazendeiros
Famílias rurais,
madereiras,
carvoeiros,
proprietários de
terra
Grupo de Trabalhadores
Extrativistas; Universidade de
São Paulo; Ibama
Apartheid, Ecologia,
Propriedade Privada
Re
po
rtagen
s
An
alisadas
Análise de Contexto das Reportagens
Federação dos Trabalhadores na
Agricultura (Fetagri) em Marabá,
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Rondon do Pará, Comissão Pastoral da
Terra ,Programa de Defensores de
Direitos Humanos, Organização dos
Estados Americanos (OEA), Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da
OEA, ONG Justiça Global
Após morte do
marido, Joelma
coordena
sindicato dos
trabalhadores e
corre risco de
vida
Ativistas, posseiros,
pistoleiros, trabalho
escravo, sindicalistas
Famlías sem terra X
Donos de Terra
Maria Joel Dias
da Costa,
conhecida
pelos amigos
como Joelma
Ecologia, Propriedade
Privada
08.07.13 Maria Joel da
Costa herdou a luta e
as ameaças de morteRondon do Pará,
46
O movimento de leitura feito sugere que, do montante de reportagens analisadas, todas
tratam exclusivamente das histórias de mulheres brasileiras residentes no Estado do Pará. Elas
estão atreladas, em algum grau, com questões ambientais e agrárias do Estado e arredores da
Floresta Amazônica. Também foi constatado em todas elas, as frequentes ameaças de morte
sofrida por essas mulheres que possuem pouca (ou nenhuma) terra. Ameaças feitas por parte dos
fazendeiros e latifundiários resultado de insatisfações com as lutas dos movimentos ligados a
ocupações de terra, assentamentos agrários, movimentos sociais da terra e sindicatos rurais. Vale
lembrar que as reportagens não tratam apenas da relação ameaçada versus ameaçadores. É
decorrente nas reportagens, o apelo do narrador em envolver entidades e instituições – ligadas à
terra, ou não – na construção da história.
A luta dessas mulheres pela sobrevivência não traz somente interesses pessoais e egoístas
em torno da distribuição agrária. Muito diferente disso, vemos que é comum suas lutas estarem
relacionadas às famílias de outras pessoas, bem como trabalhadores que compartilham dos
problemas agrários brasileiros. Na reportagem Maria do Carmo luta por sua comunidade e pela
floresta, a personagem na versão luta contra qualquer dano causado à floresta e, fazendo isso,
briga pela integridade de sua comunidade. Isso transparece o deslocamento do problema em
contexto para interesses que excedem aos tratados pelas mulheres das reportagens. Por exemplo,
reivindicar e combater pelo meio ambiente traduz um movimento que perpassa à lógica da
propriedade privada. Quando Maria do Carmo decide proteger a floresta, ela não reivindica um
espaço particular seu, mas sim um lugar de conservação que é de todos.
Voltado aos resultados, o quadro nos disse que apesar das reportagens tratarem de
assuntos distintos, muitas delas se entrecruzam em alguns pontos. Como é o caso das
reportagens: Presa e ameaçada de morte, testemunha ainda teme pela vida e Tu sabes que se a
gente perder a terra, tu vais perder a vida. Uma reportagem relaciona-se com a outra, pois
tratam do mesmo caso, na mesma região, envolvendo as mesmas pessoas, entretanto sob pontos
de vistas e angulações diferentes. No que se diz respeito ao uso das vozes, o quadro aqui é
enfático: todas as reportagens trazem relatos das mulheres ameaçadas de morte. Não houve lugar
para o outro lado em conflito, ou seja, dos fazendeiros e latifundiários. A postura assumida pelo
narrador foi considerar exclusivamente as histórias dessas mulheres. Essa constatação dialoga
bastante com a intenção das matérias descrita pelo seu autor na reportagem que abre a
sequências: Elas, marcadas para morrer.
47
Nos assentamentos, acampamentos, periferias dos municípios, nas entidades sindicais,
uma dezena de mulheres segue sua vida, à espera do assassino, cumprindo pena forçada.
É a história delas que a Pública, em parceria com o jornal Diário do Pará, conta a partir
dessa semana (MACHADO,2013).24
Percebemos também que em todas elas tiveram o nome inteiramente publicado, isto é,
recusaram o anonimato. Na última aba, estabelecemos critérios específicos para relacionar os
antagonismos do tempo atual, com as emergências evocadas nas reportagens. No que tange aos
problemas da propriedade privada, buscamos sondar espaços onde a relação posse de terra x sem
terra perpassa por toda trama reportada. Com isso, constatamos que é unânime o número de
reportagens que se enquadra nesse patamar. Tratar de sem terras e latifundiários é
intrinsecamente abordar as questões de propriedade. Por outro dizer, é tratar de uns poucos com
muito e muitos com tão pouco. No que se diz à ecologia, e de acordo com Zizek, este
antagonismo suscita os danos irreversíveis causados pela destruição da fauna e flora mundial.
Fazendo uma ponte com o conteúdo analisado, seis reportagens tratam de cenários na região da
Floresta Amazônica. A relação ecológica faz-se mais presente na reportagem Maria do Carmo
luta por sua comunidade e pela floresta, onde o conflito subjacente é a relação destruidores
versus defensores da natureza.
O antagonismo Apartheid, entre todos, é o mais inteligível. Portanto, com o exame das
reportagens, podemos enfatizar na dualidade excluídos X incluídos as condições latentes nas
matérias. Isto é, no âmago do contexto, as ameaças de morte traduzem os interesses entre os
donos de grandes fazendas e os que lutam por um pedaço de terra e, sobretudo, pela vida. Zizek
(2011) nos lembrou da importância deste antagonismo, pois, segundo o filósofo, ele subjaz todos
os outros. Nessa ótica, o mesmo ocorre nas reportagens acima. Inerente aos conflitos ecológicos
e da propriedade privada, estão os de pano de fundo, os conflitos que segregam os sem terras dos
proprietários. As frequentes ameaças e assassinatos pelos excluídos respaldam o ódio dos
privilegiados, e a estes resta a última alternativa para manter seus interesses, eliminar os mais
frágeis e justos. Também é válido ressaltar o teor dos direitos humanos nas matérias, bem como a
ausência de interesse do Estado e da Justiça nas relações conflitantes no norte do país.
24
Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas -para-morrer/ Acesso em: 20 de nov. 2013
48
4.2 Movimento analítico 2: Análise da ordem narrativa
Neste segundo quadro, analisamos as estratégias do narrador no texto e como a ordem
das informações foram configuradas, dividindo em quais parágrafos na estrutura da matéria as
características narrativas aparecem. Partindo da premissa de que quem narra, narra com algum
propósito e nenhuma narrativa é ingênua, (MOTTA) é de grande importância analisar quais as
intenções em organizar sua narrativa e transformá-la num produto jornalístico. Dispomos nove
categorias para averiguar quais estruturas narrativas são utilizadas, se o texto da lógica
(RESENDE, 2002) do campo foi seguido ou rompido e, também, apontar com que intensidade o
autor conduz no texto as tensões, expectativas, vitórias e punições intrínsecos a qualquer história
a ser contada. Vale lembrar que apesar de serem categorias distintas, nada impede que uma ou
mais apareçam no mesmo parágrafo do texto. A punição e o clímax, por exemplo, podem vir
juntas no primeiro parágrafo da narrativa jornalística. O que queremos com esse quadro é chamar
a atenção sobre quais estruturas textuais são obedecidas no texto, sublinhar suas ordens e
aparecimentos, pensando nas maneiras pelas quais as reportagens rompem com o modelo de
escrita padrão da reportagem
● Equilíbrio: Refere-se a uma situação estável na história. Geralmente no equilíbrio,
histórias de vida são articuladas juntamente com descrições de cenários, personagens,
tempo e espaço.
● Complicação: Designa-se ao período de rompimento com o equilíbrio na história. Aqui,
os conflitos começam a ser recompostos e os problemas que subjazem o acontecimento
são expostos.
● Clímax: Nesta etapa, o conflito em questão atinge seu ponto máximo. Segundo Motta
(2005), na narrativa jornalística é normal a história começar pelo seu clímax, um corte
repentino in media res na situação estável.
● Punição: Sob a ótica do conflito, refere-se a alguma das partes prejudicadas. Uma
condenação, castigo, repreensão que afeta algum personagem na história.
● Resolução: Retomando o conflito central da situação, aqui veremos se o acontecimento
foi resolvido, ao menos para alguma das partes da tensão.
● Vitória: Designa, no fim do conflito, o que se ganhou ou o que se perdeu com o
desenrolar da história.
49
● Recompensa: Apesar de estar atrelada à vitória, na recompensa não importa o resultado
final do conflito. O que se atenta é o que a parte envolvida ganhou ao longo da trama,
mesmo se no desfecho, a situação seja desfavorável.
● Desfecho: Trata-se de averiguar se a história teve fim. Isto é, houve ou não finalização do
conflito pelas partes envolvidas.
50
Equilíbrio Complicação Clímax Resolução Vitória Desfecho Punição
29.07.13 Essa é
Maria Raimunda,
líder do MST no
Pará, ameaçada de
morte
Quarto ao oitavo
parágrafo
Primeiro e
terceiro
parágrafo
Terceiro
parágrafo
Último
parágrafo
Décimo, décimo
primeiro e
penúltimo
parágrafo
29.07.13 Presa e
ameaçada de morte,
testemunha ainda
teme pela vida
Quarto
Segundo, nono
parágrafo,
décimo
Primeiro
parágrafo
Quinto, sexto e
sétimo parágrafoÚltimo parágrafo
Terceiro, décimo
primeiro
29.07.13 “Tu sabes
que se a gente
perder a terra, tu
vais perder a vida”
Segundo parágrafoQuinto, nono,
décimo
Primeiro
parágrafoQuarto parágrafo Último parágrafo
Sexto, sétimo,
oitavo
22.07.13 Graciete
carrega na carne a
bala dos assassinos
de seu pai
TerceiroQuarto, sexto,
sétimo, oitavo
Primeiro e
segundo
parágrafo
Penúltimo e
antepenúltimo
Quinto, nono,
décimo
22.07.13 Nicinha e o
sindicato rural
dirigido apenas por
mulheres
Quarto, décimo
primeiro
Primeiro,
terceiro, quinto,
parágrafo
Segundo e
último (rever)Penúltimo
Sexto, sétimo,
oitavo, nono
22.07.13 Cleude,
com medo, tenta
pegar na mão de
Deus
Primeiro, segundo
quarto,quinto,
sétimo, oitavo,
novo, décimo,
décimo primeiro
Terceiro
parágrafoÚltimo parágrafo Sexto
15.07.13 Ameaçada
desde 1996, Regina
sonha viver em paz
Oitavo ao décimo
terceiro, décimo
sexto
Primeiro,
terceiro, quarto,
quinto, sexto,
sétimo
Segundo , Último e penúltimo
parágrafo
décimo quarto,
quinto, décimo
dezoito, nono,
vigéssimo
15.07.13 Maria do
Carmo luta por sua
comunidade e pela
floresta
Segundo, terceiro
Quarto, sexto,
décimo, décimo
primeiro, décimo
segundo
Primeiro Último parágrafo Sétimo, Oitavo
Laísa luta pela terra
e pela memória da
irmã
08.07.13
Primeiro
Terceiro, quarto,
sexto, sétimo,
oitavo,
penúltimo
Segundo Último
quinto, nono ,
décimo, décimo
primeiro
C
a
s
o
c
u
r
i
o
s
Ocorrem diversas punições ao longo da trama distribuida desigualmente pelo
Segundo
Primeiro, décimo
sexto, décimo
sétimo, vigéssimo
terceiro (diretor
sindicato),
vigéssimo quarto
08.07.13 Maria Joel da
Costa herdou a luta e
as ameaças de morte
Primeiro, nono,
décimo, décimo
primeiro, décimo
segundo, décimo
terceiro, décimo
quarto, décimo
quinto, vigésimo,
vigéssimo
segundo
Re
po
rtagen
s
An
alisadas
Último
Terceiro,
quarto,quinto,
sexto, sétimo,
oitavo,
Vigéssimo
primeiro
Décimo
oitavo,
décimo nono
Análise da ordem e estratégias narrativas
Recompensa
Oitavo parágrafo
Terceiro parágrafo
Décimo
Quinto, nono
Vigéssimo quinto,
vigéssimo sexto
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É comum no jornalismo o clímax das notícias aparecer no primeiro parágrafo. Assim,
cumpre-se a lógica do lead cujo objetivo é ordenar as informações mais importantes logo no
primeiro parágrafo do texto. Entretanto, conforme nossa análise, em seis histórias o clímax deixa
de aparecer no lead, criando um descompasso na ordem de importância das informações. Pode-
se dizer, então que o narrador mescla o lead, ou se desfaz dele, propondo uma ruptura com a
forma concebível de se iniciar o texto jornalístico. Como exemplo, vejamos os dois primeiros
parágrafos do trecho a seguir da reportagem, Cleude, com medo, tenta pegar na mão de deus:
Não é fácil encontrar Cleude Conceição. É preciso enfrentar a poeira e os buracos da
rodovia Transamazônica, saindo de Marabá e indo em d ireção a Itupiranga, municíp ios
ao sudeste do Pará. São 27 km vencidos com dificu ldade até se alcançar um travessão
que liga à localidade de Jovem Creane. A partir daí são mais 22 km em uma estradinha
de terra estreita e tortuosa, marcada por pequenas pontes. Quando a reportagem chega ao pequeno vilarejo, quase quatro horas depois de ter saído
de Marabá, precisa esperar ainda por Conceição, que está pescando. Ela chega uma hora
mais tarde, trazendo duas pequenas piranhas e um surubim, resultado da pescaria. Aos 30
anos, é uma mulher magra, pequena, negra, de natureza desconfiada. (MACHADO,
2013).
O recorte da reportagem indica o abandono do ritmo que se espera de um relato
jornalístico, no qual as informações mais relevantes são dispostas nos primeiros parágrafos, isto
é, no lead. O leitor, para se ambientar ao texto precisa fazer o caminho temporal da apuração
jornalística, no qual as informações aparecem de acordo com a sequência linear do fato (DIAB,
2013, documento eletrônico).
Do desfecho, todas apresentam um fim no relato do personagem, mas é primordial
sublinhar que a trama continua em aberto, isto é, o futuro das mulheres ameaçadas de morte é
incerto. É como se a reportagem terminasse com questões e dúvidas. Vejamos a seguir o trecho
final da mesma reportagem.
Junto ao pai, Cleude Conceição passou a sofrer ameaças. “Já veio recado dizendo que
todas as lideranças estavam na mira”, revela. O processo que vai definir a situação das
fazendas ainda está correndo na Justiça. Por três vezes os agricultores ocuparam a terra e
foram despejados. “Uns desistem, outros não. A gente continua lutando. É difícil e eu
vou dizer, não tem como pegar na mão de Deus quando a bala manda recado”.
(MACHADO,2013)
Aqui, fica evidente como o desfecho da reportagem não apresenta um final permanente
da história. A última frase, um relato da personagem, indica a continuidade da trama no tempo e,
dessa forma, os resultados da intriga permanecem em aberto. Isto é, na reportagem, não há um
52
fim em si mesma, o que é comum em reportagens. Mas, o que chama atenção é a ausência total
das instituições – Estado, Justiça, Polícia - em procurar resolver, ou ao menos dar explicações
sobre os casos.
Ainda sobre a ordem das reportagens, enxergamos um período de equilíbrio em nove das
dez matérias observadas. Eles estão, em maioria, nos primeiros parágrafos ou após as
complicações, pois elas estão intimamente ligadas às histórias de vida e descrições iniciais do
personagem relatado. Dessa análise da estrutura narrativa, podemos ver as sucessivas
intercalações entre punição e complicação ao longo da história. Essa alternância temática entre
parágrafos nos levou a ver as inúmeras punições pertencentes a uma mesma história acarretadas
por complicações diversas, entretanto, com poucos sinais de recompensas e vitórias (esta aparece
apenas três vezes). E quando falamos em vitória, estamos dizendo do lado que sofre ameaças, e
não daqueles que a versão nos mostra como criminosos. As tímidas recompensas percebidas
surgem após punições na trama, porém, outras punições são agregadas no decorrer do enredo.
4.3 Movimento analítico 3: Análise do personagem
Após a reconstrução da intriga e da ordem narrativa, obtemos o reconhecimento dos
episódios, as afetações neles implicadas e as tensões dispostas pelo narrador. Seria uma atitude
incoerente deixar de olhar para aqueles que funcionam como substância para a narrativa
jornalística, as fontes. Nessa específica série de reportagens, toda construção do narrador existe
de acordo com a história de vida do personagem retratado. Ou seja, o depoimento da fonte é o
lugar essencial que dá lucidez à vida narrada pelo repórter.
Em sequência, construímos outro quadro cuja pesquisa gira em torno das personagens
que fazem parte da história. Este movimento visa reconhecer que atores são esses e quais funções
eles realizam na progressão dos episódios. (MOTTA, 2005). Desse modo, buscou-se encontrar
marcas narrativas nas quais caracterizam os personagens, seus papéis, se possuem lugares de fala
ou não, a distribuição dentro do texto e qual atribuição moral lhe foi concedida no desenrolar do
conflito. Este quadro foi fundamental para investigarmos como aparecem os sujeitos nas
reportagens da Pública, quando o faz e de que modo. Para isso, escolhemos seis categorias:
● Personagens: Refere-se à forma pela qual o personagem foi nomeado pelo
narrador. Se foi pelo primeiro nome, sobrenome, apelido.
53
● Função na História: Esta etapa julga a capacidade de atuação que os
personagens adquiriram na história, ou melhor, o seu papel no episódio. Por
exemplo, protagonista, coadjuvante, doadores, etc.
● Atribuição Moral e suas implicações: Desenvolvemos aqui um critério que
julga moralmente como o personagem é narrado. Como vítima, vilão, anti herói,
herói. Zizek (2012) sugere que se fôssemos pensar numa fórmula para enquadrar
a figura do herói moderno seria pensar naquele ser que sabe muito bem o que está
fazendo, e, ainda assim, ele o faz. O irônico é que a mesma fórmula também serve
para o vilão. Por exemplo, pensando num assassino, ele sabe muito bem o que
está fazendo (matar pessoas), e, ainda assim, ele o faz. Porém, o que difere a
fórmula heróica para a infame é o propósito de cada ação. O herói ainda o faz
pelo bem comum, por altruísmo, e o vilão por interesses pessoais, egoístas.
Portanto, julgamos através dessa reflexão quem são os heróis (agem, sabem o
porquê de seus atos e fazem pelo bem comum), os vilões (agem por ganância) e
os anti heróis (atuam por vingança e por motivos egoístas) das histórias contadas.
● Relato próprio de história de vida: Aplica-se nas reportagens onde o
personagem se torna fonte e obtém voz na reportagem, e conta sua história. Este
ponto foi interessante para explorarmos quais são as vozes nas matérias, qual é o
espaço para elas, e qual seu valor, pensando a narrativa em geral.
● Distribuição na narrativa: Apesar de esse ponto ser semelhante ao da Função na
História, o que nos chamou atenção aqui é observar o grau de aparecimento que
cada personagem tem no episódio, pois assim conseguimos mapear que estratégia
levou o narrador a distribuir tais personagens na narrativa
● História de vida pelo narrador: Esta categoria foi pensada para apresentar a
maneira pela qual o narrador apresenta o personagem em seu texto e quais
instruções ele nos dá para conhecermos tais sujeitos.
É nítido no quadro abaixo o tratamento detalhado concedido aos personagens pelo
narrador. A ênfase nas histórias de vida das fontes, bem como a atribuição moral na narrativa,
traduz a intenção e o cuidado das reportagens em transmitir as experiências dos entrevistados.
Aqui, também procuramos selecionar trechos que trazem falas próprias das fontes, o que nos
54
permite averiguar que, nessas matérias, o autor narra uma história a partir de ocasos narrados
pelo personagem. Ou seja, uma narrativa que se sobrepõem a uma outra.
55
PersonagensFunção na
HistóriaAtribuição moral e suas
implicaçõesRelato de histórias de vida
Distribuiçã
o na
narrativa
Maria Raimunda Protagonista
Vítima. Alvo de
perseguições e ameaças
de morte após liderança
MST
“Quem mandava era o Exército. Toda
a cidade era vigiada...” “Minha opção
de vida foi escolher entre o medo de
calar e a defesa dos direitos
humanos(...) ” “Dávamos apoio a essas
manifestações e aos poucos (...)” 10 vezes
Ana Júlia Carepa
e Daniel Dantas Coadjuvantes uma vez cada
Késsia Furtado de
Araújo Protagonista
Vítima, agiu sem saber as
consequencias
“No dia em que cheguei ela foi falar
comigo (...) “Fui nascida e criada na
roça” “Casei com 18 anos e trabalhei
uns dez anos como vaqueira”...
“Fiquei lá durante seis meses (...) 13 vezes
Nádia Pinho Coaduvante Acusada
Razoável,
3vzs
Nádia Pinho Protagonista Herói
“Isso gerou polêmica porque fomos
acusados de descumprir o acordo” A
mulher do fazendeiro, Regina, me
disse assim: ‘Tu sabes que se a gente
perder a terra vais perder a vida’,”
“Um homem chamado Amaral me
parou uma 20 vezes
Amaral, Joçao
Moreira, Gersino
Filho, Seu Pedro,
Késsia Furtado
Coadjunvante
s
Amaral e João Moreira;
Gerson Filho - ajudante,
Seu pedro - anti-heró (se
vingou por interesses
pessoais) , Késsia -
Vítima Uma vez cada
Graciete de
Souza Machado Protagonista Vítima
“Meu pai não era líder de nada, mas
sempre tentava ajudar as pessoas,
porque tinha esse dom de não
suportar injustiça. Naqueles dias os
pistoleiros mataram três pessoas e o
meu pai se revoltava contra isso” 13 vezes
Francisco
Macedo - pai de
Graciete, José -
marido de
Graciete
Coadjunvante
s
Francisco - Héroi.
Embora sabendo do
perigo de seus atos, agiu
em prol de um bem
comum, mesmo que isso
custasse sua vida 6 vezes
22.07.13 Nicinha e o
sindicato rural
dirigido apenas por
mulheresZuldemir dos
Santos de Jesus,
Nicinha Protagonistas
“Essa pessoa já avisou que assim que
sair da prisão vai fazer um massacre
no sindicato” (...) Viver com
tranqüilidade é algo que desaprendi a
fazer”. Unanime
Cleude Conceição Protagonista
Herói. Embora sabendo
do perigo de seus atos,
agiu em prol de um bem
comum
“Na época era muito tiro, os capangas
dos fazendeiros andavam armados,
intimidando. Já pensou, a pessoa
matar o outro? Dentro de casa, nós
fica é com medo pelo tanto que já
sofremos”, Unanime
Marcos Gomes -
Pai de Cleude Coadjunvante 3 vezes
Maria Regina Gonçalves Protagonista Herói
“Eu tinha dez anos e ajudava meu pai
na roça. Era um sofrimento, não tinha
água, minha mãe chorava quando eu
pedia comida e não tinha. Eu não tinha
o sentimento de entender” 5 vezes
Arnaldo Delcídio
Ferreira e freira
Adelaide Molinari Coadjuvantes Vítimas 1 vez
15.07.13 Maria do
Carmo luta por sua
comunidade e pela
florestaMaria do Carmo
Pinheiro Chaves,
a “Du Carmo” Protagonista Herói
“No início eram 36 famílias, mas eu
defini que tem de ter disciplina, tem
de querer preservar, tem de buscar se
organizar. Restaram, por enquanto, 20
famílias, mas se não tiver o espírito de
preservar não pode ficar” 12 vezes
Laísa Santos
Sampaio
José Cláudio
Ribeiro da Silva e
Maria do Espírito
Santo da Silva,
Coadjuvantes Herói 9 vezes
José Rodrigues
Moreira, Alberto
Lopes do
Nascimento e o
ajudante dele
Lindonjonson
Silva Rocha
Coadjuvantes Vilões 1 vez
José Maria Gomes
Sampaio, o Zé Rondon, Coadjuvante Vítima 1 vez
Maria Joel Dias
da Costa,
Protagonista Herói
“Um barro vermelho que eu não
conhecia, cheio de poeira, muitas
casas de madeira, cobertas não por
telhas, mas por madeira também. 17 vezes
Sindicalista José
Dutra da Costa, o
“Dezinho” Coadjuvante Vítima 15 vezesDécio José
Barroso Nunes e
Lourival de Sousa
Costa Coadjuvantes Vilões 3 vezes Ygoismar
Mariano e
Rogério Dias Coadjuvantes Ajudantes dos Vilões 1 vez
Análise Dos Personagens
15.07.13 Ameaçada
desde 1996, Regina
sonha viver em pazArnaldo Delcídio Ferreira (...), foi
executado por pistoleiros. (...)ele havia
se ferido e sobrevivido a um ataque de
pistoleiros no Terminal Rodoviário de
Eldorado, que acabou atingindo
mortalmente a freira Adelaide Molinari.
Maria Joel chegou a Rondon do Pará em
1984, vinda do Maranhão, em mais uma
trajetória típica de migrantes atraídos
pelas promessas de terras abundantes
no Pará e de trabalho; Desde os anos 70
os governos federal e estadual atraíam
direta e indiretamente esses migrantes.
Quatro anos antes, seus pais haviam se (...) assassinado em Rondon do Pará em
21 de novembro de 2000, a mando,
segundo as investigações policiais, dos
fazendeiros Décio José Barroso Nunes e
Nasceu no Ceará em um lugar árido e
sem perspectivas conhecido como
‘Cabeça de Onça’. Quando a fome
roncou mais alto, a família dela se
mudou para um lugarejo chamado Barra
do Corda, no Maranhão, em março de
1973.
Em 2010 Maria do Carmo adquiriu um
lote em Lago Verde e as coisas
começaram a mudar. Procurou apoio
para a comunidade no Sindicato dos
Trabalhadores da Agricultura Familiar
(Sintraf) e acabou se tornando uma
liderança sindical.
Reportagens
Analisadas
Ela nasceu em Marabá, mas cresceu em
Brejo Grande(...) a casa de farinha no
quintal da casa em que morava com os
pais foi escolhida pelo Exército para
servir (...) na primeira metade dos anos
80, já participava das comunidades
eclesiais (...)
morava em Redenção, município
vizinho a Santana do Araguaia quando
ouviu falar de ‘umas terras’ em Ouro
Verde (...). Separada do marido e
desorientada pelo despejo, Késia mudou
(...)
História de vida por parte do
repórter
29.07.13 Presa e
ameaçada de morte,
testemunha ainda
teme pela vida
(...) a principal líder dos acampados,
(Pinho, coordenadora do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Santana do
Araguaia)
O pai, cearense, trabalhava em uma
fazenda e tinha um pequeno lote de
terra em uma vila; viu uma picape se
aproximar e um homem perguntar se
eles sabiam onde estavam.
Laísa luta pela terra
e pela memória da
irmã
08.07.13
29.07.13 Essa é
Maria Raimunda,
líder do MST no
Pará, ameaçada de
morte
VítimaProtagonista
A violência não é tão estranha à família
de Laísa, desde que o pai largou o
Maranhão atrás de uma terra prometida
pelo governo militar no início dos anos
70. Vieram para trabalhar na agricultura,
mas o pai, como num inventário das
atividades típicas da região, arriscou ser
castanheiro e garimpeiro.
15 vezes
“Eu tinha oito anos e muito medo de
sair de casa, porque meu pai falava
dos ‘terroristas’. Ele dizia ‘tevorista’.
29.07.13 “Tu sabes
que se a gente
perder a terra, tu
vais perder a vida” O ouvidor agrário Gersino Filho se
dispôs a intermediar a situação. (...)saiu
o mandado de prisão contra Nádia Pinho
e outra trabalhadora, Késia Furtado; (...)
um dos posseiros, de 55 anos, foi
humilhado à vista de todos (...)
22.07.13 Graciete
carrega na carne a
bala dos assassinos
de seu pai
Francisco Macedo, um agricultor que nos anos
90 saiu de Cacoal em Rondônia para tentar a
sorte no Pará, participou da ocupação. E viu de
perto a ação violenta de pistoleiros que
queriam tirar as famílias da fazenda.
22.07.13 Cleude,
com medo, tenta
pegar na mão de
Deus
Assim Marcos Gomes e a filha, Cleude
Conceição, assumiram a liderança do
movimento. As famílias decidiram
acampar a sete quilômetros das
fazendas.
A filha do agricultor praticava atletismo. Era
maratonista, chegando a ganhar algumas
competições no sudeste do Pará. Também
treinava caratê. Atualmente, com 26 anos, mal
consegue colocar o filho nos braços.
(...)em 1996, quando ingressou no
Sindicato dos Trabalhadores Rurais, de
forma até prosaica. Seis anos antes
procurara o sindicato buscando acelerar
o processo de aposentadoria da mãe,
que vivera como lavradora. Gostou do
que viu
Com dez anos de idade participou da
primeira marcha com integrantes do
MST, acompanhando a mãe, Domingas
da Conceição. Com 22, fez parte da
ocupação da fazenda Cabaceiras, em
Marabá, mas não conseguiu um pedaço
de chão para si.
O pai de José Cláudio Ribeiro adquiriu
um lote de um homem que havia
comprado a terra diretamente de
Argemiro. Em 1991, uma pesquisa sócio-
econômica feita na região por um órgão
do Governo Federal constatou a forte
presença ainda de castanha, açaí e
cupuaçu.
08.07.13 Maria Joel
da Costa herdou a
luta e as ameaças de
morte
56
Como dito, as mulheres anunciadas no título ou manchete da reportagens são aquelas que
possuem voz no texto. Apesar desta constatação, há vários outros personagens – enquadrados
como coadjuvantes - que fazem parte da história e foram citadas pelo narrador ou pela
protagonista. Esse é o caso da reportagem Laísa luta pela terra e pela memória de sua irmã25.
Neste texto, além da protagonista Laísa, acrecentam-se mais seis personagens na história, porém,
com distribuições diferentes. A protagonista da história é sempre aquela que mais apareceu, e
pelo alto número constatado (dez, quinze, vinte vezes), confirmamos o predomínio das mulheres
na narrativa desse recorte. Soma-se a isso o considerável espaço - cedido pelo narrador -
destinado aos depoimentos das mulheres sobre sua história de vida. Com isso, o texto desprende-
se da visão presente do narrador e abrem espaço para dizeres das personagens a cerca de si
próprias. Esse artifício é geral, está presente em todas as dez reportagens.
Partindo da premissa na qual há no texto informações suficientes para interpretarmos as
funções morais do personagens, constamos que seis mulheres aparecem como heróis na trama e
outras quatro como vítimas. Heróis porque, de acordo com as ideias de Zizek, as protagonistas
sofrem ameaças por aquilo que fazem, não desistem, e mesmo assim continuam a lutar pelo bem
de sua comunidade e/ou família. Dos vilões, restaram aqueles que a versão defendeu como
mandantes e executores dos crimes, fazendeiros e pistoleiros. Personagens que agiram
ilegalmente por interesse próprios. As vítimas da história são, geralmente, mulheres ameaçadas
de morte, porém não possuem liderança de qualquer movimento, ou foram punidas por proteger
outras pessoas.
O narrador desse recorte é incisivo na descrição da naturalidade de cada protagonista de
suas histórias. Não falta espaço narrativo sobre o lugar onde nasceram essas mulheres, como
vieram parar ali, como eram suas vidas durante a infância, onde seus pais trabalhavam etc.
Acrescenta-se a esse tom descritivo o motivo pelo qual cada uma conheceu o marido e quais
foram as implicações em suas vidas causadas pelas ameaças de morte. É bem verdade que a
história de vida é o mais importante das matérias. Ela perpassa todas as outras informações e
experiências dispostas na reportagem. O narrador, declaradamente, assume uma posição, fica do
lado das mulheres ameaçadas no conflito. Veremos, a seguir, especificamente sobre ele.
25
Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas -para-morrer-laisa-luta-pela-terra-pela-memoria-da-
irma/ Acesso em: 20 nov. 2013.
57
4.4 Movimento analítico 4: Análise do narrador e suas marcas textuais
É tarefa do narrador organizar e dispor as informações na narrativa. No jornalismo, o
repórter assume essa função ao elencar os elementos colhidos em sua pesquisa. Acerca disso,
constitui numa fase fundamental na análise da narrativa observar a figura deste gestor da história,
buscando trabalhar o modo pelo qual se deu a construção da história e tateando as instruções que
marcam sua ausência ou presença no texto averiguado. Na lógica de descobrir quais são as
intenções, procuramos encontrar retardamento do desfecho, ritmo da narração, explicações
causais, comentários explícitos, uso do tom poético que vão indicar como ele pretende ser
compreendido pelo receptor. (MOTTA, 2005). Além de tentar enxergar o texto pelos olhos de
seu autor, essa postura de análise nos permitiu identificar especificidades na narrativa da Pública,
viabilizando apontar aspectos do texto jornalístico que rompem com o texto das lógicas, isto é,
com o padrão estilístico do campo.
Nesse caminho, advogamos pela coerência do exercício abaixo, pois conseguimos
visualizar como os lados das partes em conflito de toda narrativa jornalística são dispostos ao
longo das reportagens. Esses requisitos foram fundamentais para criarmos subsídios que vão ao
encontro do problema chave deste estudo. Subdividimos a análise do narrador, inicialmente, em
duas etapas. A primeira refere-se às marcas de ausência e impessoalidade, reúnem-se trechos das
reportagens onde o narrador se afasta da história contada. Ou seja, momentos onde ele observa a
trama de modo distanciado. A segunda, ao contrário, agrupa frases com as quais o narrador se
posiciona na história e assume sua parcialidade no desenrolar da intriga. Dentro dessas etapas,
categorizamos mais seis elementos:
a) Marcas de Ausência e impessoalidade
● Expressões verdades. (dados, data, fontes): Trata-se de agrupar recortes com os quais o
narrador legitima o seu dizer baseado em algum elemento exterior à sua descrição.
Portanto, a disciplina pela verdade medeia as relações enunciativas.
● Expressões de distanciamento: Aqui reunimos expressões das reportagens as quais
retira do narrador a responsabilidade sob cada relato de outrem, entretanto, abrem brechas
para interpretações do narrador para tais dizeres. A utilização de verbos como dizer,
58
relatar, afirmar; após frases dos personagens, são exemplos dessa interferência
enunciativa.
b) Marcas de presença
● Efeitos de objetividade: Esta categoria precaveu em reunir frases objetivas, curtas e que
resumem brevemente as tensões da história. Advogamos que a capacidade de síntese pelo
narrador constitui-se numa clara marca de presença pois, é através de uma escolha e
agenciamento dos fatos pelo narrador que se define o que entrará e deixará de entrar nos
breves resumos.
● Efeitos poéticos: Aqui, reunimos enunciados na intenção de entender como operam as
marcas do narrador ao descrever socialmente e psicologicamente os personagens da
história e quais são os efeitos de sentido provocados (comoção, dor, compaixão, riso,
etc.) (MOTTA, 2005)
● Uso de metáforas e ironia: Como o nome diz, nas pistas das marcas de presença desse
narrador, esta etapa trata-se de colher os jogos de linguagem utilizados no texto.
Metáforas e ironias que deixam claro a pessoalidade do autor no texto.
● Evidências do narrador (adjetivações): Tratamos de elencar fragmentos das
reportagens nas quais deixam explicitamente a pretensa interferência do discurso do
narrador sobre os personagens e lugares descritos na história. Para isso, trabalhamos num
propósito de sondar o uso de adjetivos e descrições dos ambientes vivenciados pe lo
repórter.
59
Expressões
verdades. (dados,
data, fontes)
Expressões de
distanciamento
Efeitos de
objetividade
Efeitos poéticos
(emoção,
sentimento, desejos)
Uso de
metáforas/ironias
Evidências do
narrador(adjetivações)
e seu contato com
personagens
29.07.13 Essa é
Maria Raimunda,
líder do MST no
Pará, ameaçada de
morte
de Marabá, a 685
quilômetros de Belém diz Maria Raimunda.
Todos os processos de
ocupação de terra,
(...)confrontos com a
polícia, fazendeiros ou
mesmo com a Justiça,
têm o nome dela à
frente
Tornou-se forte (Maria
Raimunda), acostumada à
tensão e à resistência
já foi ameaçada de morte e
teve a prisão decretada em
algumas ocasiões e sabe que é
uma pedra no sapato deles.
Afinal, ela é a diretora nacional
do MST no Pará.
29.07.13 Presa e
ameaçada de morte,
testemunha ainda
teme pela vida conta Késia; diz ela; diz ; conta
De testemunha a réu.
Essa é a situação atual
de Késsia (...) ; Késia foi
presa e, na cadeia,
ameaçada de morte. (...)
A ‘vaqueira’ de fala ligeira e
pele negra (...) Késia
ergueu um barraco,
cultivou ‘uma rocinha’ e
acreditou (...)
Seu crime: defender Nádia
Pinho; (...) sob as bênçãos da
Ouvidoria Agrária (...)
Foi assim que o terror entrou
na vida de Késia;
29.07.13 “Tu sabes
que se a gente
perder a terra, tu
vais perder a vida”
distante 1.255 km de
Belém; ocupado por 27
famílias.
conta Nádia; diz Nádia; lembra
Nádia, Segundo Nádia,
Orientada pela CPT Nádia se
entregou e permaneceu
encarcerada por 12 dias;
dorme pouco, atenta aos
menores ruídos da rua; Se
alguém bate à porta, checa
direitinho quem é, antes de
atender
Para quem havia crescido
sonhando com um pedaço de
terra, a proposta soou como
música; Nádia nunca havia
posto os pés na capital
federal.
Com três filhos, viúva, Nádia
tenta não envolver a família
nos conflitos
22.07.13 Graciete
carrega na carne a
bala dos assassinos
de seu pai
Breu Branco, a 419 km da
capital Belém, no sudeste
paraense; evantamento
feito pelo IBGE em 2010 diz Graciete Machado,
tinha como o alvo o pai,
Francisco Alves de
Macedo, assassinado
cinco meses depois por
pistoleiros que
continuam em liberdade
Quase não vai mais à igreja,
e às 18 horas fecha toda a
casa; a imagem da bala em
uma radiografia é uma
lembrança constante;
sentada no sofá simples da
casa sem reboco, sob o olhar
atento do marido; (...) sente
dores constantes nas pernas,
não pode fazer nenhuma
atividade
22.07.13 Nicinha e o
sindicato rural
dirigido apenas por
mulheres
No dia 23 de outubro de
2011 Nicinha recebeu uma
ligação de Brasília; O
sindicato atende em torno
de 2.500 famílias
assentadas, que se
sustentam da venda do
que produzem. Segundo ela, diz, lembra
Agora, Zuldemir está
desamparada de
proteção policiai desde
abril de 2012.
Vive assombrada, não sem
motivos.
Já viu duas lideranças do
sindicato serem assassinadas.
Não quer ser mais uma a
engrossar a lista.
Vive assombrada, não sem
motivos. a ‘Nicinha’, guarda
com cuidado uma pasta já
antiga “Só não me avisaram
que seria apenas por três
meses”, E, fato curiosamente
trágico, devido aos
assassinatos, os homens não
22.07.13 Cleude,
com medo, tenta
pegar na mão de
Deus
coordena um grupo de 70
famílias que ocupavam
duas fazendas em
Itupiranga diz, resume Cleude Conceição
Não é fácil encontrar
Cleude Conceição;
Cleude Conceição já
escapou de tiros, já viu
companheiros
tombarem
(...) trazendo duas
pequenas piranhas e um
surubim, resultado da
pescaria. Aos 30 anos, é
uma mulher magra,
pequena, negra, de
natureza desconfiada.
Quando a reportagem chega
ao pequeno vilarejo, quase
quatro horas depois de ter
saído de Marabá; (...) É um
litígio que já dura nove anos.
15.07.13 Ameaçada
desde 1996, Regina
sonha viver em paz
Em dezembro de 2011;
Entre 1982 e 1996 mais de
50 trabalhadores rurais
foram assassinados diz ela; contabiliza Regina.
Vive sob ameaças
constantes e atualmente
não anda sem a
proteção de pelo menos
dois outros dirigentes
sindicais,
Quando a fome roncou
mais alto, a família dela se
mudou; Não quer ouvir
falar em ocupações de
terra. Sente medo.
Maria Regina, no quintal da
sede sindical, sob o olhar
atento dos dois seguranças;
conta, confessando o cansaço
15.07.13 Maria do
Carmo luta por sua
comunidade e pela
floresta
fincada no km 55 da
rodovia BR 422,
(...) diz Maria do Carmo; O
problema, segundo ela, (...);
conta Maria do Carmo.
Assumiu a coordenação
de uma comunidade
agroextrativista em
plena mata e, por bater
de frente contra
caçadores ilegais e
traficantes de drogas,
passou a ser ameaçada
de morte.
(...) enquanto prepara um
café na cozinha da casa de
chão batido. São pessoas
humildes, que moram em
casas de barro ou madeira,
cobertas de palha, com piso
de chão
Ao longo das últimas décadas
a floresta amazônica tem
criado centenas de heróis
anônimos. Maria do Carmo
Pinheiro Chaves, a “Du Carmo”
é uma delas; É uma estrada
poeirenta, maltratada e cheia
de buracos
08.07.13 Laísa luta
pela terra e pela
memória da irmã
Tem sido assim desde a
manhã de terça-feira, 24
de maio de 2011.
Nascimento recebeu pena
de 45 anos em regime
fechado. Rocha, 42 anos e
oito meses. (...) diz; (...) alertou um aluno
Dois anos depois, o
crime foi a julgamento.
Apenas o autor dos
disparos, Alberto Lopes
do Nascimento e o
ajudante (...)
Laísa recebeu o resultado
do julgamento quase como
uma sentença de morte
Selando o terceiro caixão; A
história e as histórias de
migração no Pará (...)
É num labirinto de ‘folhas’,
quadras e lotes em Nova
Marabá. (...) No momento da
entrevista, Zé Rondon liga; no
curto diálogo Laísa diz estar
bem, falando com jornalistas.
Marcas de Ausência e Impessoalidade Marcas de Presença
Re
po
rtagen
s
An
alisadas
Análise do Narrador (Trechos recortados das Reportagens)
08.07.13 Maria Joel da
Costa herdou a luta e
as ameaças de morte
(...) distante 532 km da
capital Belém (...); (...)
Rondon do Pará em 21 de
novembro de 2000 (...) 29
anos de reclusão em
regime fechado; (...) a
progressão de regime
prisional para o semi-
aberto (...)
conhecida pelos amigos como
Joelma
(...) começou a lutar pela
regularização das terras
consideradas
improdutivas visando a
reforma agrária.
Em casa, Maria Joel chorava
e orava. Maria Joel passa
uma pequena toalha rosa
no rosto antes de iniciar o
relato da morte do marido.
Oferece café, depois água.
Fica em silêncio alguns
segundos
Maria Joel não abre mão de
acompanhar todos eles; tem
sido assim desde que uma
bala atravessou o seu
caminho.
A camisa relativamente
folgada deixa transparecer a
pistola, É uma mulher
pequena, de voz mansa e
calma. Os cabelos são partidos
ao meio e presos atrás, típico
de mulheres evangélicas. Na
parede da sala que emenda
com a cozinha há a foto de
Dezinho e outra, com a família
toda reunida
60
No que diz respeito às marcas de ausência, das dez reportagens analisadas, nove
apresentam dados (expressões verdades) que são exteriores à história de vida das mulheres. Ou
seja, em maioria, são informações sobre a distância entre a cidade relatada até a capital do
estado, bem como números de trabalhadores assassinados na região, senso demográfico, e
número de famílias assentadas. Podemos dizer que essa postura do rigor das informações, denota
a preocupação pela veracidade e exatidão dos fatos por parte do repórter, o que recai na
aderência à conduta do jornalismo em elencar dados que ajudam na precisão do uso das
informações. Além disso, o narrador recorre ao uso de expressões como: Segundo ela, alertou
um aluno, disse, diz, conta; antes ou depois dos depoimentos das fontes. Esse método deixou
claro o respeito pela integridade da fala do personagem, livrando de modificações do
repórter.Neste aspecto, as reportagens #MarcadasparaMorrer se encaixam em normas essenciais
do jornalismo.
Todavia, tratando das marcas de presença, as frases mais objetivas das reportagens
apresentam essencialmente as condições em que se encontram as personagens oprimidas. Junto a
essas condições, acompanham as impressões, observações próprias da experiência do narrador ao
encontrar com o sujeito de sua reportagem. Isto é, há lugar para inferências subjetivas do autor
com o entrevistado. Além dessa clara marca de pessoalidade no texto, o narrador não economiza
nas adjetivações daqueles que perpassam pela trama.
Sob esse mesmo caminho de transgressão aos estilos padrões do jornalismo, nos efeitos
poéticos, o autor frisa a vida difícil enfrentadas por essas mulheres, lançando mão dos efeitos de
comoção e dor ao expor uma história de vida frágil somada a uma condição social de opressão
freqüente. Nelas, destacam-se descrições psicológicas, físicas e sociais dos personagens e,
posteriormente, o lugar no qual eles se encontram. Outra característica que rompe com o texto
das lógicas refere-se à ironia e metáfora. Cinco das dez reportagens fazem uso de metáforas e
ironias, como é o caso da reportagem: Presa e ameaçada de morte, testemunha ainda teme pela
vida26. Em trecho sobre a punição da protagonista da história, o autor enfatiza num tom irônico,
Seu crime: defender Nádia Pinho. Vê-se a clara defesa do narrador pela vítima da história. Algo
difícil de encontrar em manuais de técnicas do campo, e nos materiais jornalísticos da mídia
hegemônica. Podemos, então, dizer que o narrador dessas reportagens utiliza sim alguns dos
26
Diponível em: http://www.apublica.org/2013/07/presa-ameacada-de-morte-testemunha-ainda-teme-pela-vida/
Acesso em: 20 de nov. 2013.
61
critérios do texto jornalístico padrão, entretanto rompem, em vários outros patamares, as
características da reportagem e notícia. Por exemplo, o posicionamento do autor frente à trama,
desviando a lógica da imparcialidade, bem como a clara manifestação lingüística no texto, afasta
e muito a lógica do texto impessoal, tão cristalizado nas normas técnicas do jornalismo.
4.5 Movimento de análise 5: Recomposição da intriga ou do acontecimento jornalístico
Nesta etapa, de forma mais geral, procuramos agrupar as reportagens em categorias, de
acordo com características em comum, observando como as estratégias de constituição das
reportagens partilham significações em contexto. De acordo com Motta, “sem uma história
completa a análise da narrativa é impossível” (MOTTA, 2005, p. 4), a partir disso, o objetivo
aqui é perceber como as narrativas se articulam dentro de um grande tema e suas derivações.
Nele, procuramos mapear temas e assuntos que extrapolam as onze reportagens, num processo
de reconfiguração, percebendo que não se tratam de matérias isoladas, tanto em sua narrativa
quanto em sua materialização, pois, inclusive elas convergem dentro da plataforma da Pública
em um mesmo assunto demarcado por hashtag (#) – palavra-chave específica.
Reconstituir uma intriga é não somente colher dizeres semelhantes dentro de um
contexto. Muito mais que isso, nas palavras de Ricouer, é “considerar em conjunto” (1992, p.76),
ter noção que a intriga é um movimento contínuo (e não um fim) “onde os papéis são postos e as
posições assumidas no decorrer da ação” (1992, p.76). A ideia mestre que conduz a leitura do
quadro refere-se a possibilidade da intriga na narrativa jornalística elucidar situações tácitas
excedentes ao texto. Por outras palavras, esse movimento advoga pela capacidade de interpretar
a realidade a partir da narrativa não-ficcional que nos chega sob forma de reportagem
jornalística.
● Grande Tema: Nessa divisão, buscamos enquadrar qual é a temática suscitada
em todas as onze reportagens, através de um olhar distanciado da narrativa.
● Subtema: Contida no Grande Tema, aqui visamos afunilar a temática em comum
reportada, ainda sob um olhar distante aos conflitos do recorte.
● Tema em comum: Pretendemos agrupar um tema elucidado na leitura de todos
os episódios.
62
● Desdobramento: Aqui entramos no conteúdo do recorte. Visamos articular o que
desses temas é tratado na narrativa, em geral.
Quadro 5: Análise da Recomposição da Intriga Fonte: Elaboração própria
Este movimento tratou de tatear quais temas em comum subjazem todas as reportagens.
O primeiro movimento de leitura, análise do contexto, contribuiu nos apontamentos aqui
desenvolvidos, pois tratou de elencar, por sua vez, os enredos específicos de cada reportagem,
além de sublinhar qual antagonismo do tempo atual se mostra presente nas narrativas. Sobre o
contexto, notamos que o grande tema comum nas reportagens são as relações socioambientais
tácitas no Brasil. No subtema, esse tópico se estreita, destacando a preservação da floresta e a
luta pelos direitos civis (direito à moradia) como questões homogêneas nas reportagens. Tais
questões se desdobram na intriga ao colocar em tensão dois lados com interesses divergentes na
historia. Isto é, de um lado as mulheres que lutam por moradia e pela floresta e de o utro os
fazendeiros, donos da terra, que não querem abrir mão de sua propriedade.
Intriga em comum reportada
Exclusão social e problemas ecológicos na região norte do Brasil
Recomposição da Intriga
Subtema
Preservação da Floresta Amazônica e luta pelos direitos civis (agrários)
Desdobramento
Tensões entre duas partes interessadas
Moradores de terras que retiram da floresta
sua condição de sobrevivênciaFazendeiros, funcionários, pistoleiros que
usufruem da floresta amazônica para
produtividade e fins econômicos
Grande tema
Intrigas socioambientais atuais no Brasil
63
Diante desse conflito, considerando os papéis narrativos desempenhados pelos
protagonistas na história e pelo posicionamento do autor na narrativa, as injustas ameaças de
morte sofrida pelas mulheres que reivindicam a preservação da floresta e o direito à moradia
refletem a intriga subjacente às reportagens, isto é, a exclusão social e os problemas ecológicos
na região norte brasileiro.
Das ponderações de Zizek sobre os impasses que assolam o capitalismo liberal global,
incluímos as exclusões sociais motivada por questões de propriedade e os impasses ambientais
da intriga como parte fundamental dos antagonismos, novos apartheids, ecologia e propriedade
privada. Ora, se a relação dual entre moradores e latifundiários contida nas reportagens dá a ver
o embate incluídos versus excluídos, muito tem a ver com as características próprias dos novos
apartheids. Pois, os excluídos das terras e do direto à moradia, isto é, à propriedade, lutam contra
os interesses dos incluídos, os grandes latifundiários que fazem de tudo para não perder
privilégios. No que tange à ecologia, a floresta amazônica faz parte dos interesses postos em
conflito pelas reportagens. Conforme vimos nas reportagens, Maria do Carmo luta por sua
comunidade e pela floresta27; Laísa luta pela terra e pela memória de sua irmã28, parte da luta
dessas mulheres se refere à preservação pela floresta Amazônia, contra a destruição e poluição
desta por parte de empresas poluidoras. Razões suficientes para tratamos essa briga inerente aos
impasses atuais da ecologia. Para melhor ilustra essas relações, construímos duas imagens que
englobam as relações aqui discutidas.
27
Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/maria -carmo-luta-pela-sua-comunidade-pela-floresta/. Acesso
em: 20 nov. 2013. 28
Disponível em: http://www.apublica.org/2013/07/marcadas -para-morrer-laisa-luta-pela-terra-pela-memoria-da-
irma/. Acesso em: 20 nov. 2013
64
Ilustração 1: Diagrama de Venn: Antagonismos do contemporâneo Fonte: Elaboração própria
Ilustração 2: Diagrama de Venn: Agência Pública
Fonte: Elaboração própria
65
Como debatido, a intriga jornalística esclarece uma versão de situações vinculadas à
realidade que nos dá a ver o tempo presente e suas peculiaridades. Resgatando a pergunta que
norteou nosso estudo, a partir das leituras produzidas, podemos afirmar que a narrativa
jornalística da Pública, ao tratar das emergências atuais do Brasil, coloca em tensão
antagonismos do mundo global, elucidando as relações entre incluídos e excluídos nos problemas
socioambientais brasileiros através de uma narrativa que valoriza as experiências do sujeito e as
observações do narrador frente as emergências do tempo presente.
66
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mundo em que vivemos apresenta uma série de problemas no âmbito social, político, e
econômico. O aumento da globalização, endossamento do capitalismo pela dependência
econômica e o surgimento de blocos políticos fizeram com que questões inerentes a cada país se
relacionassem, numa perspectiva maior, com outras nações. Nessa diluição de fronteiras,
enxergamos impasses que permeiam lógicas globais e que, por sua vez, reiteram a recusa em
adotar grandes revisões em seu funcionamento para que os efeitos negativo s sejam não
minimizados, mas impedidos de acontecer. Podemos ler claramente os efeitos negativos nos
alarmantes números da desigualdade social, na naturalização e despolitização do alto consumo
de bens que agridem ao meio ambiente, no aumento dos muros e d ivisões que separam direitos e
protegem privilégios, nas questões jurídicas insolucionáveis.
O filósofo Slavoj Zizek, trazido na discussão aqui empreendida, colabora para esta
reflexão ao adotar uma visão crítica acerca dos problemas atuais. Para ele, vive mos num tempo
marcado por antagonismos fortes o suficiente para mudar radicalmente a estrutura da democracia
liberal-capitalista, cuja existência gera consequências drásticas nas vidas da população
fragilizada. São eles os novos apartheids, os problemas ecológicos, os impasses da propriedade
privada (intelectual) e a biogenética. Enquanto os três últimos se referem a um problema que
tramita na ordem do comum, os novos apartheids constituem-se um problema de justiça. Apesar
da singularidade de cada antagonismo, este último se faz mais importante, pois perpassa a
existência dos demais. Isto é, a relação incluídos versus excluídos, intrínseca no antagonismo
apartheid, está contida nos problemas ecológicos, jurídicos e genéticos. Dentre os quatro, o
antagonismo que melhor traduz os impasses globais são as novas formas de apartheid – aumento
da exclusão social, crescimento das favelas, distribuição da pobreza. Dessa forma, Zizek nos diz
que problemas contínuos vivenciados por certos países podem parecer, à primeira vista, isolados.
Numa perspectiva distanciada, no entanto, traduzem situações complexas, de ordem global.
67
Ao mesmo tempo, é parte fundamental da prática jornalística tratar dos assuntos
complexos contemporâneos e se situar no meio das tensões sociais. Como atividade social e
discursiva, o jornalismo possui um privilegiado – pois autorizado – lugar de falar dos problemas
do mundo sob uma ótica não-ficcional. Na consolidação das suas formas discursivas, atribuíram-
se consensos e espeficidades na forma de conduzir o jornalismo que foram influenciadas, em
parte, por pretensos efeitos no público (credibilidade, neutralidade, veracidade) e pelos formatos
e suportes oferecidos (televisão, rádio, impresso).
Na atualidade, a digitalização, com a amplitude dos recursos da web, possibilitou novos
lugares para o jornalismo. Esse alicerce oferece ao campo uma maior flexibilização de seu
conteúdo, abrindo espaço para a convergência da forma e do conteúdo jornalístico: o aumento do
limite textual nas notícias, a interatividade entre criadores e receptores e novos modos de
produção e manutenção de espaços jornalísticos. Desse modo, a web traz mudanças
significativas na maneira de ser e fazer do jornalismo, afetando seus produtos e o tratamento da
informação. Neste lugar ambientado está a Agência Pública de jornalismo investigativo, criada e
mantida por jornalistas e que tem como objetivo tratar os problemas contemporâneos no Brasil
por meio da investigação jornalística, como discutido aqui. Sua gestão autônoma possibilita
independência no conteúdo, conforme os princípios que a norteiam.
A reportagem no cenário digital também sofreu alterações. Na Pública, é um produto que
caminha na direção do conceito foucaultiano da reportagem de ideias. Esta definição engloba um
tipo de reportagem que atribui diversas informações e voz a sujeitos excluídos e silenciados pela
reportagem jornalística tradicional, e também não hierarquiza as fontes de acordo com suas
“funções” na sociedade. Assim, a Pública, ao pautar os problemas emergentes do Brasil, faz
trabalhar depoimentos de sujeitos ditos “comuns” e que estão à mercê dos conflitos em que se
veem envolvidos. Ou seja, esse jornalismo delega poder de fala às pessoas que convivem
cotidianamente com as questões agrárias, a destruição da Floresta Amazônica, os abusos
policiais, desapropriação de moradias, para citar alguns exemplos de temáticas recorrentes nas
matérias produzidas e veiculadas pelo site.
Relacionando tais problemas do mundo atual e como a prática jornalística consegue
abarcá- los, buscamos responder, neste estudo, “como a Pública elucida as emergências do Brasil
através das narrativas de suas reportagens?”. Para produzir uma interpretação sobre a questão e
nos posicionarmos diante dela, recortamos 11 reportagens da série #MarcadasparaMorrer, que
68
traz histórias de vida de mulheres que lutam pela terra, pela floresta, reforma agrária e, por
consequência, sofrem constantes ameaças de morte. Na exploração do material, verificamos que
a Pública compartilha, em suas abordagens, da reflexão que permeia a projeção conceitual e de
mundo considerada por Zizek, um dos autores-base da pesquisa, ao colocar em tensão três
grandes antagonismos nomeados pelo filósofo: a ecologia, os novos apartheids e a propriedade
privada, lidos no interior das narrativas de cada matéria analisada. Assim, percebemos que a
Pública realiza um tratamento diferencial dos sujeitos que aparecem na narrativa, privilegiando
suas histórias de vida. Eles são organismos fundamentais no texto e medeiam todo
empreendimento narrativo. Além disso, sua narrativa apresenta modos que rompem com a
estrutura normalizante do jornalismo. Por exemplo, vimos que o lead deixa de ser fator
predominante nas reportagens, assim como a impessoalidade não é regra. O autor se posiciona
claramente nas versões, adjetiva os personagens, e descreve os bastidores da entrevista. Ele
também lança mão de metáforas e ironias. Neste quesito o narrador se envolve com o assunto de
seu relato, se mostra presente, escolhe um lado, e compartilha da história ouvida. Enxergamos aí
uma narrativa do autor que se sobrepõem a uma outra, isto é, a do personagem.
Também, nos movimentos de análise, pudemos sondar estratégias narrativas que moldam
os personagens nas reportagens. As protagonistas são aquelas que têm, exclusivamente, voz
dentro do texto. Aparecem como heróis ou como vítimas do contexto, mesclando nas histórias de
vidas, alegrias, conquistas, tragédias e punições. Da recomposição do contexto, vimos que todas
as reportagens aludem aos conflitos socioambientais brasileiros, colocando em tensão duas
partes, os moradores que lutam por terra e pela floresta versus fazendeiros, latifundiários e seus
pistoleiros, a quem interessa a concentração agrária e a exploração da floresta. Concluímos,
portanto, que a Pública não apenas denuncia os antagonismos da ordem global ao tratar da
realidade brasileira, mas, também, mostra como eles estão bem próximos das relações sociais
mais íntimas, isto é, nas vidas de pessoas comuns que lutam por sobrevivência e dignidade.
Para a investigação, construímos um caminho metodológico que teve como princípio
analisar as peculiaridades da narrativa da Pública. Acreditamos que tensionar o “narrativo” das
reportagens nos permitiu deduzir estratégias, intenções e efeitos de sentido das reportagens.
Conforme apresentado, estabelecemos cinco movimentos de análise, utilizando as categorias
“personagens”, “ordem narrativa”, “narrador”, “análise de contexto” e “reconstrução da intriga”.
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No decorrer do estudo, nos deparamos com questões externas ao objetivo da pesquisa
que, no entanto, apresentaram terrenos férteis para problematizar a prática jornalística. Vimos
que o antagonismo da propriedade intelectual está presente no conteúdo nas reportagens da
Pública pois a lógica que se opera na Agência também dialoga com os impasses da propriedade.
Podemos questionar: em que medida o tipo de funcionamento da Pública pode permitir um
maior desprendimento do jornalismo engajado aos grupos econômicos e partidos políticos?
Considerando que o financiamento alternativo e o jornalismo colaborativo da Pública se
efetivaram e vêm dando frutos, essa postura independente pode servir de modelo para outros
espaços digitais de narrar? Numa possível busca a partir de tais perguntas, podemos ainda
averiguar, pelo viés da linguagem, se tais novos espaços podem colaborar para tensionar o texto
jornalístico, ou, quem sabe, trazer direcionamentos práticos em torno de uma outra narrativa
jornalística.
Consideramos que o estudo foi muito importante para pensar um jornalismo cujo
propósito é questionar de forma incessante a realidade, em especial pelo trabalho apurado com
informações usualmente excluídas e com fontes por vezes silenciadas pela nossa história. A
experiência de averiguação que o estudo abarcou foi rica, também, para problematizar a prática
jornalística sob um viés filosófico. Assim, acreditamos que é possível romper fronteiras sobre
como tratar as emergências do presente e, sobretudo, pensar em outros espaços para o
jornalismo. Neste estudo, o mundo atual surge com um somatório de delitos e injustiças a ser
alterado de forma urgente.
Ao jornalismo, pois compartilha desse mundo, restam duas formas de tratar os
antagonismos do tempo presente. Uma encontra-se na defesa dos interesses dos incluídos. Apoia-
se e aposta na estabilidade do capitalismo pós-moderno conservando o valor à propriedade
privada e ao anúncio de empresas poluidoras, silenciando, assim, as causas e consequências
nocivas do sistema. A outra prática, no entanto, ao compartilhar inquietações de um mundo
excludente, aposta no conflito com o capitalismo de hoje como um lugar substancial para
construir um jornalismo que intervém nas emergências complexas atuais e se lança em prol
daqueles cujo sofrimento permanente é efeito da organização global que lhes foram dados, ou
melhor, age em defesa das causas perdidas.
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ANEXOS
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ANEXO I – Reportagens e site da Agência Pública
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