Índice – o anoitecer - perse · josé roberto da silva era um homem alto e forte nos seus...
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Mateus Caza – O Anoitecer Pág.: 1
Índice – O Anoitecer
Introdução .................................................................. 2
Memórias de dias passados ........................................ 4
João “Jota” Alighieri ................................................ 7
Karen ........................................................................ 17
Bem vindo a Redenção ............................................ 40
Aprisionado .............................................................. 76
A escola .................................................................. 103
Sozinho no escuro .................................................. 121
A noite mais longa ................................................. 164
Última anotação ..................................................... 206
Mateus Caza – O Anoitecer Pág.: 2
Introdução
O que é real?
O que define a realidade?
Realidade é aquilo que sentimos? Que podemos tocar, ver,
provar? Todos estes são os sentidos que nosso corpo dispõe
para interpretar a realidade. Mas não estariam estes
sentidos apenas nos dando o que queremos ou o que
podemos sentir? A realidade de um cego é diferente da nossa? Sim, com certeza. Afinal, ele é privado de um sentido
muito importante e para ele o mundo é diferente. O mesmo
poderia dizer de um surdo, mudo ou mesmo de um
paralítico.
Isso quer dizer então, que a realidade é subjetiva? Mesmo para aqueles que se julgam “normais”, ainda assim a
realidade é subjetiva. Vemos o que queremos ver, tocamos o
que desejamos tocar, provamos aquilo que nos convém. Isso
é fácil de constatar, pois a beleza para um pode ser a feiúra
para outro; o macio pode se tornar áspero e o saboroso pode
ser detestável.
Cada pessoa é escrava de seus sentidos. Mas onde ficariam
os sentimentos quando tratamos da realidade?
Considerando que nossos sentimentos são subjetivos, então
eles contribuem ainda mais para deixar o nosso mundo real cada vez mais nosso. Basta observar uma garota que é
apaixonada por aquele menino da escola, terrivelmente
apaixonada, só que ele não sabe disso. Pode ser que ela
julgue que ele também a ame e - em um canto obscuro de
sua mente - ela crie uma realidade onde eles podem se
amar...
Mas o que acontece quando essa realidade é destruída?
O que acontece quando se vê que tudo não passou de uma
Mateus Caza – O Anoitecer Pág.: 3
ilusão e que esta ilusão é desfeita da maneira mais
detestável possível?
Como reagimos quando nosso mundo é destruído e os cacos
são atirados sobre nós como constatação deste fato; com o
desdém que um ato assim pode ter?
Como esta pessoa reagiria?
Como você reagiria?
Como ela reagiu?
Última Anotação – S/D – J. Alighieri.
Mateus Caza – O Anoitecer Pág.: 4
Memórias de dias passados
Meu nome é Mariana Fonseca.
Colegas de trabalho me chamam de Dra. Mari, mas nomes
não importam agora e tampouco importa como queira me
chamar. Qual é a importância disso nas páginas de um
diário? Quem lê um diário senão a pessoa que o escreve?
Uma leitura íntima de uma pessoa para ela mesma e ainda
assim tomamos todo um cuidado em agradar a nós mesmos com o conteúdo destas páginas. Mas um diário é desprovido
de pudores, de pormenores e de meias verdades. Um
confessionário escrito onde contamos muito mais do que
falaríamos para um padre, pois ninguém vai nos condenar.
A não ser que você mesmo seja o seu juiz e decida que algum ato merece punição.
Hoje é 18 de junho de 2005.
Minha última adição neste diário foi há exatos oito anos
atrás, quando coloquei aqui as últimas experiências que tive
na faculdade antes de me formar psicóloga. Aqui eu
colocava de tudo que se passava comigo naqueles dias de estudante: nas salas de aula, nas festas, nas reuniões da
república. Os amores, as decepções, as ilusões e desilusões.
Era a minha realidade daquela época.
Uma realidade que hoje se torna risível, mas que também é
agradável.
Interessante agora pensar que não voltei a escrever aqui
para explanar sobre minha vida. Sobre os rumos que ela
tomou, conquistas que fiz, lugares que fui, pessoas que amei
e outros que odiei.
Enfim, voltei a estas páginas para falar dele.
O estranho caso de João “Jota” Alighieri.
Um impulsivo e prepotente garoto de 19 anos. Não que todo
Mateus Caza – O Anoitecer Pág.: 5
garoto de 19 anos não seja carregado de impulsividade e
prepotência, mas sabemos que sempre existem aqueles que se sobressaem em tudo. Jota – como passei a chamá-lo em
nossas sessões e como vou chamá-lo nestas páginas – se sobressaía nestas “qualidades”, pois ele era um garoto tão
cheio de si que quase se embriagava com este sentimento e,
por vezes, se embriagou mesmo e levou a si e àqueles que
estavam ao seu redor para os lugares mais obscuros de sua própria alma.
Jota também tinha um diário. Hábito estranho para um
garoto, não? Para mim não, pois eu o entendo. O motivo que
o levou a escrever um diário, ou mais precisamente suas
memórias, foi o mesmo que o meu: quando terminei o
colegial e decidi pela faculdade de psicologia, decidi fazer um registro de tudo que se passaria comigo a partir daquele
momento, como um diário da evolução de meus estudos e
de minha própria evolução de menina para mulher e, quem
sabe um dia, transformar isso em um estudo profissional.
Bem, esta idéia foi enterrada logo depois que terminei o diário. Olhei para ele quando o concluí e vi que era o
devaneio pretensioso de uma garota que mal sabia o que
queria da vida. Creio que um devaneio semelhante
percorreu a mente de Jota quando ele decidiu escrever suas
memórias, sendo que havia apenas uma diferença: ele
decidiu escrever toda sua vida desde o colegial, desde um ponto de seus dias de adolescente nas calmas ruas da
cidade de Redenção. Uma cidade pequena e calma, onde
jamais alguém poderia imaginar que se vissem horrores
como os que aconteceram.
O diário dele fala de Alice. Apesar de ele ter começado quando tinha 14 anos, suas memórias começavam
exatamente naquele dia a 12 anos atrás quando ele
conheceu-a e tenho certeza que isso tem todo um
significado.
Se um diário é como uma confissão, então seria esta a de
Jota?
Mateus Caza – O Anoitecer Pág.: 6
Do por que ele fez o que fez?
Honestamente não sei. Passei a questionar muita coisa desde que comecei a cuidar deste caso. Desde aquele dia em
que entrei naquela sala acolchoada do Sanatório de São
Tomé e iniciei minha avaliação com o rapaz.
Foi quando descobri que o diário dele existia e passei a usá-
lo como um guia em minhas sessões.
Quem sabe não teria sido melhor se eu não tivesse feito isso?
Talvez, a verdade jamais tivesse sido descoberta.
Talvez, apenas talvez, fosse bem melhor assim.
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João “Jota” Alighieri
-1-
O que virá a seguir foi tudo que descobri sobre o caso dos
crimes em Redenção. Uma cidadezinha no sopé da serra há
150 km de São Paulo, com sua economia basicamente
centrada no turismo, tratando-se de um lugar tranqüilo de
clima ameno, mas bem frio no inverno. Dispõe de muitos
hotéis, sendo que o maior deles, o Grand Royal, serve de sede para o curso de hotelaria, o que atrai muitos
estudantes para a cidade. Somando-se a isso o fato de ser
tão próximo da serra o que lhe dá um ar especial, pois
muitos vêm visitar as pousadas que ficam no alto, bem
como a Capela da Redentora – de quem a cidade herdou seu nome - que é ponto turístico e histórico da cidade.
Esta pequena descrição de um lugar tão agradável e
tranqüilo me faz pensar em como algo de tão terrível poderia
ter acontecido lá. Não falo somente pelos crimes, mas... Por
algo a mais. Bem, difícil para uma psicóloga admitir isso,
mas o fato é que a história que ouvi dos lábios trêmulos e perturbados do jovem Jota Alighieri - por mais sobrenatural
e impossível que pudesse parecer - ainda assim me dá
arrepios na espinha. Ainda mais porque se tornou a
explicação mais plausível para tudo o que aconteceu.
Era uma manhã de abril. Havia amanhecido um dia quente, por sorte não quente demais e hoje seria minha primeira
visita a João Alighieri no Sanatório de São Tomé, lugar que
eu já trabalhara inúmeras vezes, mas nunca em um caso
como este.
Estou acostumada a lidar com indivíduos que não dispõem do que as pessoas comuns chamariam de “juízo perfeito”. Loucos, esquizofrênicos, indivíduos com distúrbios
emocionais leves ou sexuais, complexos de todos os tipos,
etc. Estes são os freqüentes e quando recebi a ligação do
Delegado Ramos, dois dias atrás, confesso que achei que o
Mateus Caza – O Anoitecer Pág.: 8
caso de João Alighieri - acusado do assassinato brutal de
uma jovem e do desaparecimento de outras duas pessoas - seria apenas mais um caso de distúrbio de personalidade.
Cheguei a imaginar que poderia estar tratando do meu
primeiro caso com um psicopata e isso me interessou
deveras.
Levantei-me naquela manhã e depois de um banho
cuidadoso, fui me arrumar para encontrar o meu jovem paciente. Eu teria que invalidar a estória a que ele se
agarrava e que estava sendo usada por seu advogado para
tentar amenizar os seus crimes. Para que conseguisse isso,
teria que contar com a confiança do rapaz e teria que usar
de certas artimanhas para tanto: sei que sou bonita em meus 32 anos e sei que olhos azuis, pele clara e cabelos
morenos chamam a atenção, principalmente de um jovem
de 19 anos e ainda mais pelo pré-perfil psicológico que me
foi passado do rapaz: narcisista, arrogante, violento, ainda
que esperto e inteligente. Realmente vou precisar da
confiança dele, então tenho que tomar cuidado com certas coisas: um decote na medida, sem exageros, uma saia na
altura dos joelhos e uma maquiagem leve devem me dar um
ar de distinção suficiente para que ele me respeite. Eu
poderia ser mais alta, mas o paciente pode abrir mais a guarda se tomar minha aparência de “menina” com um
símbolo de fragilidade, pois não se sentiria intimidado.
Acho que ter uma aparência de menina era bem favorável,
afinal somente a ingenuidade de infante justificaria se
preparar para esta primeira consulta desta forma. Mas
quem pode me culpar? Este deveria ser somente mais um
caso, tão comum como tantos outros a que tratei nestes oito anos clinicando. Só que nada do que encontrei foi rotineiro.
O sanatório, como todo outro hospital, cheirava a éter e a
um forte odor de cloro, certamente para limpar algum
inconveniente de pacientes que já não dominavam
completamente suas funções corporais. Fui encaminhada a
ala de segurança, mais precisamente as salas de contenção - reservadas a pacientes que podem se machucar ou pior.
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Não gosto muito destes lugares, pois para mim fazem os
pacientes parecerem animais enjaulados, mantidos imobilizados por uma camisa de força e presos dentro de
uma sala forrada de colchões. Isso já me incomodou muito
no passado, mas acho que hoje deixei de me importar como
costumava.
Olho pela pequena janelinha de vidro e vejo um rapaz
encolhido num canto. Alto como eu imaginava, parecendo-me forte também, mesmo com a aparência abatida que está.
Esta com a cabeça entre os joelhos e não consigo ver seu
rosto, mas quando vou perguntar sobre os medicamentos
dele para o enfermeiro, o garoto ergue a cabeça, dirigindo-
me olhos verdes e lacrimejantes, profundamente tristes e também com um ar assustado. Posso ver que ele está
olhando fixamente para mim, que encontrou meus olhos
com os dele: o primeiro contato. Não gosto muito quando
isso acontece com o paciente nestas condições.
Ele ficou um tempo me observando e uma palavra escapa de
seus lábios, fraca demais e praticamente inaudível para mim. Depois balbuciou mais algumas outras que mal
saíram de sua boca, antes de baixar a cabeça de novo.
Voltei-me para o enfermeiro e perguntei-lhe:
- Roberto, conseguiu ouvir o que ele disse?
José Roberto da Silva era um homem alto e forte nos seus cinquenta anos de vida, vinte dos quais ele dedicou ao
trabalho em hospitais e sanatórios. Usava um bigode
espesso e bem cuidado e falava sempre com calma. Ele
estava sempre risonho, mas quando nos aproximamos da
cela do Sr. João, ele ficou taciturno e não esboçou qualquer
sinal de sua jovial alegria. Roberto balançou a cabeça ao ouvir a minha pergunta e, sem desviar o olhar do paciente,
respondeu com certo pesar:
- Ele disse o mesmo que sempre diz. O mesmo que vem
repetindo desde que chegou aqui, isso há mais ou menos
duas semanas atrás.
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- E o que ele disse?
- Apenas isto:
“Rostos... Eles não tinham rostos...”.
-2-
Várias horas se passaram enquanto eu esperava numa
pequena sala, observando a velha câmera de segurança que
certamente não funcionava mais direito, sentada do meu
lado da mesa e aguardando a entrada do Sr. Alighieri. Voltei
minha atenção para um arquivo que me foi entregue pelo delegado, numa rápida visita que lhe fiz. Já que sou forense,
ele me deu as fichas com informações recolhidas das
vítimas, sendo que geralmente nestes arquivos estão fotos
dos exames do IML e quaisquer informações relevantes para
o caso. Não me tome por uma insensível por examinar atentamente essas imagens que podem ir desde um simples
tiro na cabeça até um corpo esquartejado, pois tenho que
saber do que o indivíduo é capaz. Pode ser um sinal de
certas coisas que já não me abalam como costumava
acontecer, mas creio que isso faz parte da realidade do meu
dia-a-dia.
O primeiro arquivo que vejo é o da vítima: Alice Karina
Barkeri. Jovem, recém completou seus 18 anos. Mede
1,68m, mais alta que eu. Loira, magrinha e bonita. Olhos
azuis e de aparência delicada. Nasceu em Santa Cruz do
Monte, cidade vizinha.
O que vejo agora é um registro de alguns estranhos fatos
que a fizeram se mudar para Redenção, um registro de uma
investigação policial a cerca de sua família. Este é um trecho
descrito por uma colega:
Joana (a mãe) depois que os gêmeos Alice e Mateus nasceram, começou experimentar estranhas alucinações, segundo suas próprias declarações. Havia um sentimento que poderia ser classificado até mesmo como repulsa,
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principalmente pelo garoto, que eu apontaria inicialmente como depressão pós-parto, mas isso durou mais tempo. Ela dizia que estranhos fenômenos foram observados, mais na presença de Mateus:
Objetos diversos que sumiam e depois apareciam; Portas que não abriam mesmo que não estivessem trancadas; Joana alega que certa vez o gato da família, depois de ter brincado com o menino, desapareceu por um mês, reaparecendo depois como se nunca tivesse desaparecido.
Marcos (o pai) não acreditava em sua esposa e alegava que seria estafa emocional da mesma. Então estes fenômenos pararam de acontecer e eles tiveram uma época tranqüila por alguns anos, em que a mãe passou a dar mais amor às crianças. Mas um dia a Sra. Joana chegou em casa e disse que não conseguiu entrar no quarto das crianças por que a porta tinha desaparecido. Ela ouvia seus filhos brincando dentro do cômodo e não tinha como entrar. Ela correu desesperada até a cozinha para ligar para o marido quando
ouviu um barulho de porta se abrindo. Voltou até o corredor e a porta estava lá entreaberta. Ela entrou desesperada e o menino olhou para ela e disse sorrindo:
“Desculpe mamãe. É que a gente estava brincando e eu não queria que você interrompesse. Prometo que não faço mais”.
Neste momento a mãe perdeu completamente a razão. Vendo um suposto fenômeno que as crianças tratavam como uma simples travessura das crianças, ela correu atrás do menino para repreendê-lo e acabou o assustando, testemunhando
que o quarto todo sacudiu. A mulher foi tomada de desespero e perseguiu seu filho pela casa até o porão. A porta do cômodo não tinha chave e ficava fechada apenas por um pequeno trinco com corrente. O menino entrou correndo e a porta se fechou atrás dele e quando a mãe chegou não havia mais o tal trinco, ou maçaneta ou qualquer maneira de abrir a porta que parecia colada na parede. A mãe começou a esmurrá-la furiosa, ouvindo o menino chorando e pedindo que ela parasse. Alguns objetos da cozinha se mexiam e então a
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irmãzinha chegou e tentou fazer a mãe parar, agarrando uma de suas mãos. A Sra. Joana empurrou-a com força e ela tropeçou, caiu, bateu a cabeça e desmaiou.
Vendo o que tinha feito, ela parou e foi acudir a filha. O pequeno Mateus abriu a porta e saiu choramingando e pedindo desculpas para a mãe. Quando ele pôs as mãos sobre o ombro da mãe, a mulher virou-se e pegou o menino pelo pescoço tentando sufocá-lo:
“Você não deveria ter nascido! Não deveria ter nascido!” – ela gritou de acordo com o testemunhos colhidos.
Por sorte os vizinhos haviam escutado toda esta comoção e chegaram antes que a mulher pudesse fazer o pior. A mulher, tomada de insanidade, gritava que o menino estava fazendo tudo aquilo, apontando para objetos que supostamente se moviam pela cozinha e para a porta do porão que agora estava normal. Os vizinhos tentavam acalmá-la, dizendo-lhe que não viam nada, pois nada se movia na cozinha e a porta
estava entreaberta e não havia qualquer coisa de estranho. A mulher parou de se debater viu que estava tudo em ordem. Voltou-se para o menino e ele estava abraçado com a irmã que tinha acordado e chorava muito. Desesperada a mulher começou a espernear e foi retirada aos berros da casa, gritando que não podiam fazer aquilo com ela.
Testemunhos diversos confirmam que ela se tornou muito violenta e queria agredir a todos que acabaram por chamar a polícia. As crianças ficaram na casa e quando o pai chegou, soube que a esposa tinha sido presa.
Ela foi internada onde eu pude acompanhá-la e tentar um diagnóstico. As crianças foram passar uma temporada na casa de parentes próximos.
Nenhum fenômeno mais aconteceu com Mateus Felipe Barkeri, mas um trauma severo o fez iniciar um tratamento na capital. Passados alguns meses, o Sr. Marcos resolveu mudar-se com a pequena Alice para o interior, na cidade de Redenção.
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Dra. J. Aquino – Registro de 12 de Agosto de 1992.
-3-
Foi nisso que trouxeram o rapaz para dentro da sala. Tinha
os cabelos desgrenhados que alguém deve ter tentado
pentear. Era alto, magro mesmo que não muito. A barba
típica da juventude, antes apenas rala, agora crescia e lhe dava um aspecto de abandono. Carregava o mesmo olhar
triste que vi dentro da cela, mas agora parecia mais
recomposto sem a baba que escorria de seus lábios. Parecia
forte e eu agradeci o fato de estar usando algemas, ainda
que eu tivesse sentido certo desconforto ao ver que estas haviam quase lacerado seus pulsos, pois estavam muito
machucados.
O enfermeiro Roberto prendeu as algemas num fecho que
havia no lado oposto da mesa. Isto impediria qualquer
movimento dele e me fez soltar um breve suspiro. Fiz
questão de deixar a pasta dos arquivos aberta, exibindo uma foto de Alice e de seu irmão quando crianças. Seria
meu primeiro teste das reações do garoto. Eu sabia que isso
poderia alterá-lo muito e, portanto, fiz isso enquanto
Roberto ainda estava na sala.
João olhou atentamente para a foto, como se estivesse reconhecendo alguém dela. Não houve alterações maiores
nele, apenas o fato de ter abandonado o ar sofrido e ter
ficado sério:
- São parecidas. São mesmo parecidas.
Estas foram as palavras quase sussurradas:
- O que disse, Sr. Alighieri? – Perguntei.
Ele não disse mais nada. Eu sabia que ele não havia falado
com ninguém desde que chegara ao sanatório, apenas
repetindo sempre aquela mesma frase. Foi dito a ele que
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uma psicóloga tinha sido designada para acompanhar seu
caso, a primeira conversa verdadeira que ele teria desde que foi institucionalizado. Achei que o fato de ser mulher e
também dele estudar psicologia poderia mudar alguma coisa
nele, afinal sei bem como os médicos daqui tratam os
pacientes - mesmo os psiquiatras - e isso nunca encoraja
ninguém a cooperar. De qualquer forma ele ficou por uns
minutos olhando para o nada, como se tivesse voltado a um estado de devaneio, então tentei novamente:
- Achei que poderíamos conversar, Sr. Alighieri. Bem, se me
permitir, posso chamá-lo de João? Ou mesmo Jota se isso
for mais de seu agrado.
Então ele cruzou seu olhar comigo novamente, da mesma maneira que fizera antes. Voltou a ficar sério e por fim falou:
- Eu disse que esta menina é parecida com a Karen. Foi isso
que eu disse.
Isto fez até mesmo o enfermeiro se agitar. Esta foi a maior
frase que ele já disse desde que o encontraram na cena do
crime e isso deixou o enfermeiro alerta, pois percebi quando ele levou a mão ao seu cassetete (algo que não deve ser
usado em lugares como este, mas que infelizmente é uma
prática corriqueira). Fiz um sinal leve com a mão para ele se
acalmar e tentei aproveitar o ensejo de João.
- Sabe que esta menina é a Alice, não é João? Conhece o irmão dela?
Vi que ele comprimiu suas mãos juntas e que estremeceu.
Fechou os olhos como se tivesse sentido uma pontada de
dor e foi nisso que fui perguntar-lhe se estava bem, mas o
rapaz se adiantou a mim, abriu os olhos um pouco
avermelhados e disse:
- O irmão, Mateus, está morto. Deve ter alguma coisa disso
aí neste arquivo sobre ela. Morreu num incêndio que houve
no hospital onde se tratava, apenas dois anos depois que a
Alice veio morar aqui em Redenção. Ela... Foi duro pra ela.
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Notei que não havia raiva quando ele falava em Alice. Na
verdade o nome dela soava quase como algo penoso para ele, o que poderia me levar a crer que houvesse um
sentimento de culpa pela morte dela. No entanto era cedo
para assumir qualquer coisa, mas o fato é que ele estava
falando e eu não poderia perder essa chance, tanto que
hesitei em sacar meu gravador da bolsa, pois sei que isso os
inibe. Pensei por uns instantes e depois perguntei:
- E quem é Karen, Jota?
- Difícil de explicar isso. Talvez não entenda, pois ninguém
vai entender.
- Por que não me testa? Pode confiar que pelo menos vou te
ouvir com muita atenção.
Ele sorriu, pela primeira vez com deboche:
- Claro que vai. Isto é importante para o seu trabalho e vejo
que encara sua função com muita seriedade. – Ele tomou
uma postura mais segura agora, examinando-me da cabeça
aos pés, mesmo que eu estivesse sentada, sorriu novamente
e depois disse: - Bonita. Acho que na casa dos 30, pois mesmo que tenha este ar jovem, ainda assim se comporta
como mulher. Além de que uma psicóloga mais nova não
teria experiência suficiente para estar onde você está.
Arrumou-se bem, doutora. Nada de exageros, discreta,
apenas se realçando. Queria conquistar minha confiança?
Agora fui eu que sorri, mas não desviei o olhar carregado de
superioridade que ele me lançou. Ele estava me testando e
pude ver que era um bom aluno, mas que era arrogante
como todo novo estudante de faculdade, ainda mais por seu
perfil narcisista natural:
- Obrigado pelos elogios, Jota. Mas não me respondeu ainda. Pode me contar quem é esta Karen de que fala?
Ele não sustentou meu olhar, virando o rosto, mas não
antes de eu ver seu semblante mudar do convencimento de
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