iconologia - o desafio do estudo das imagens pela história da arte
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ICONOLOGIA: O DESAFIO DO ESTUDO DAS IMAGENS PELA HISTRIA DA
ARTE
Andr Monteiro de Barros Dorigo Designer Grfico, Professor de Histria da Arte e
Doutorando em Histria e Crtica da Arte pelo PPGAV / EBA / UFRJ
Resumo
O termo iconologia pode ser definido literalmente como um estudo sobre logos (palavras, idias, discurso, etc.) e icons (imagens, pinturas, etc.). Alm disso, a Iconologia tambm uma disciplina que tem como objetivo o estudo das mensagens contidas na arte. Com a contemporaneidade e a disseminao das novas mdias, o discurso tradicional da Histria da Arte o qual se configurou como uma narrativa de estilos artsticos sucessivos foi colocado em questo. Assim sendo, esta comunicao tem como objetivo evidenciar a importncia da Iconologia para os estudos das imagens ainda nos dias atuais, assim como da intertextualidade para o campo da Histria da Arte, de modo a colaborar com a reviso pela qual passa atualmente. Palavras-chave: Iconologia, Intertextualidade, Retrica da Imagem, Histria da Arte, Cultura Visual
Abstract
Iconology can be defined literally as the study of logos (words, ideas, discourse, etc.) and icons (images, paintings, etc.). Iconology is also the study of the messages that can be found in art. In the contemporaneity, with the growth of new media, the traditional discourse of art
history which is based on a narrative succession of artistic styles is being questioned. Therefore, this communication aims to highlight the importance of Iconology for image studies, as well as of intertextuality for art history, in order to cooperate with the review of the theme that have been taking place nowadays.
Keywords: Iconology, Intertextuality, Rhetoric of the image, History of Art, Visual Culture
Introduo
O campo da Histria da Arte foi solidificado por duas disciplinas fundamentais: a
iconografia e a iconologia, as quais objetivam o estudo das mensagens contidas na
arte. Em torno dos anos 1930, ambas foram usadas para criticar o mtodo formalista
de anlise de pinturas, o qual se voltava principalmente para aspectos como
composio e cor, minimizando o valor dos temas das obras1. A diferena entre
iconografia e iconologia ratificada na obra Estudos de Iconologia do crtico e
historiador da arte Erwin Panofsky. Para ele, a iconografia a descrio e a
identificao dos motivos das imagens. Porm, a iconologia a interpretao das
suas estrias e alegorias, ou seja, uma iconografia que se torna interpretativa2. De
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acordo com a crtica de arte Anne Cauquelin, ao elaborar um estudo iconolgico,
confrontam-se as representaes as quais possuem um tema comum por um longo
prazo. Por exemplo, a autora cita uma indagao do prprio Panofsky: como o
Tempo tem sido representado desde a Antiguidade at a publicidade atual?3. Assim
sendo, a importncia do seu mtodo iconolgico estaria na possibilidade de se fazer
uma histria das imagens.
O termo iconologia foi retomado pelo professor e crtico literrio William J. T.
Mitchell na obra Iconology: image, text, ideology, nos anos 1980. O autor desejou
restaurar o seu sentido mais literal: um estudo sobre logos (palavras, idias,
discurso, etc.) e icons (imagens, pinturas, etc.). Para ele, a iconologia est
relacionada com uma retrica da imagem em dois sentidos: tanto como um trabalho
descritivo, tal como foi realizado pelo sofista Filstrato (c.170 250) a propsito dos
antigos afrescos de Npoles, quanto um estudo sobre o que dizem as imagens, ou
seja, o que elas narram ou como elas persuadem. Para Mitchell, se a iconologia teve
seu pice nos estudos de Panofsky, num sentido amplo, os estudos crticos do cone
comeam com a prpria idia de que os homens foram criados imagem e
semelhana do seu criador at chegar moderna produo de imagens em
publicidade e propaganda4.
Esta comunicao tem como objetivo, portanto, evidenciar a importncia da
Iconologia para os estudos das imagens na contemporaneidade, assim como da
intertextualidade para o campo da Histria da Arte, de modo a colaborar com a
reviso pela qual passa atualmente.
Intertextualidade, Histria da Arte e Cultura Visual
Para a alma capaz de pensar, as imagens subsistem como sensaes percebidas.
E, quando se afirma algo bom ou nega-se algo ruim, evita-o ou persegue-o. Por
isso, a alma jamais pensa sem imagem.5
Esse o pensamento de Aristteles na obra De Anima, ou Da Alma. Para o
filsofo, a percepo do mundo passa necessariamente pelos sentidos, como ocorre
com a viso. Assim como este sentido a percepo sensvel luminosidade,
tambm a palavra imaginao deriva-se da palavra luz, visto que sem ela no seria
possvel ver6. Para o historiador Paulo Knauss, a viso permite que as imagens
ultrapassem as mais diversas camadas sociais, em contraste com a escrita e a
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leitura, as quais exigem o domnio dos cdigos da escrita7. Assim, a capacidade
visual e oral possibilita a manifestao de quem no os domina. Como afirma o
escritor Alberto Manguel, ao tentar ler um livro numa lngua totalmente
desconhecida, nada se consegue entender. Entretanto, se o livro ilustrado, pode-
se construir um significado para a leitura, ainda que no seja necessariamente o que
consta no texto.8
A concepo de que as imagens podem ser lidas era defendida pelo papa
Gregrio I, o Grande (540-604): pinturas so colocadas nas igrejas para que os que
no lem livros possam ler olhando as paredes9. No entanto, o papa procurava
estabelecer a diferena entre o aprendizado pelas imagens e a sua adorao: uma
coisa adorar imagens, outra aprender em profundidade, por meio de imagens,
uma histria venervel. Para Vilm Flusser, a idolatria a incapacidade de decifrar
uma imagem, de conseguir l-la, sendo assim sinnimo de adorao10. Segundo o
filsofo, as imagens so mediaes entre o homem e o mundo, as quais podem ser
usadas como mapas para compreend-lo. Caso isso no ocorra, as imagens
tambm podem se tornar biombos.
O homem, ao invs de se servir das imagens em funo do mundo, passa a viver
o mundo em funo de imagens. Cessa de decifrar as cenas da imagem como
significados do mundo, mas o prprio mundo vai sendo vivenciado como um
conjunto de cenas. Essa inverso da funo das imagens a idolatria.11
Como afirma Flusser, os textos, ou os signos da escrita em linhas, tem a funo
de explicar as imagens, sendo uma mediao entre o homem e as mesmas. No
entanto, quando o homem cessa de compreender os textos, deixando de se servir
dos mesmos para viver em funo deles, aparece a textolatria, que seria to
alucinante como a idolatria. Para o filsofo, a relao entre texto e imagem
fundamental para se compreender a histria do Ocidente, pois e la dialtica. Na
Idade Mdia, assume a forma de luta entre o cristianismo textual e o paganismo
imagtico; (...) medida que o cristianismo vai combatendo o paganismo, ele
prprio vai absorvendo as imagens e paganizando-se12. Alm disso, para Flusser, a
Histria seria a traduo linearmente progressiva de ideias em conceitos, ou de
imagens em textos13, sendo a sua prpria definio do termo intimamente ligada
relao texto-imagem.
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Se a Histria pode ser definida como a traduo de imagens em textos, a Histria
da Arte uma atividade de interpretao e avaliao das produes artsticas. Suas
origens remontam Ekphrasis, a tradio de descrever obras de arte nascida da
retrica grega. Um dos seus exemplos mais marcantes foram as descries do
sofista Filstrato (c.170 250) a respeito dos antigos afrescos de Npoles. Como
afirma Jean-Franois Groulier:
Essa origem retrica da Ekphrasis como gnero descritivo fez dela o paradigma
do discurso sobre pintura at hoje, pelo menos no domnio literrio. Quer se trate
da teoria da arte, da crtica de arte ou de ensaios mais gerais, a descrio sempre
foi um gnero dominante, desde os sofistas at os escritos contemporneos.14
Groulier ainda observa que a descrio de uma obra de arte sofre a influncia
subjetiva de quem a descreve, sendo tambm uma interpretao da mesma. Textos
como os de Giorgio Vasari (1511-74), um dos fundadores do campo da Histria da
Arte, so ligados ao modelo retrico, como se observa na diviso e na ordem do seu
discurso. Assim sendo, a descrio se ordena em funo da inveno, que
corresponde ao argumento da fbula, indo a seguir da disposio at a ao15.
Alm disso, o pblico tambm deveria observar as pinturas de acordo com a ordem
preestabelecida pela retrica16, ficando assim imbricadas as maneiras de se ver e
escrever sobre a arte.
O estudo da imagem pela Histria da Arte concentrou-se tradicionalmente na
pintura. Como afirma W.J.T. Mitchell, assim como a poesia o fetiche da Histria
Literria e o cinema dos estudos dos Media, a pintura o fetiche da Histria da
Arte17. No Renascimento, a importncia da pintura foi assim descrita pelo tratadista
Leon Battista Alberti: Talvez no se encontre arte de algum valor que no tenha
vnculos com a pintura, de tal forma que se pode dizer que toda a beleza que se
encontra nas coisas nasceu da pintura.18 Na contemporaneidade, a Histria da Arte
passou a enfrentar novos desafios, como dar conta das novas mdias. Assim sendo,
diversos debates vm ocorrendo acerca da natureza, dos limites e dos
procedimentos da disciplina. Isso vem acontecendo ao mesmo tempo em que
surgiram os primeiros estudos de Cultura Visual, marcados pelo transculturalismo e
pela ateno dada s produes vindas de regies at ento marginais, como
frica, Amrica Latina e sia. No entanto, como questiona Deborah Cherry, ser que
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a Cultura Visual deveria ser uma nova disciplina?19 Para Tom Mitchell, por exemplo,
ela poderia ser definida como uma nova disciplina hbrida20, sendo conseqncia
da disseminao em escala global das novas mdias e da intensa visualidade do
cotidiano ps-moderno. Ainda que seu campo de estudo no esteja claramente
estabelecido, a Cultura Visual veio a colaborar com os debates acerca da Histria da
Arte. Principalmente ao criticar a postura elitista de privilegiar o estudo de apenas
certos tipos de objetos, os quais representariam os cnones de uma excelncia
esttica ocidental europeia. No entanto, a Histria da Arte lida com objetos que
excedem a questo do meramente visual, alm de poder abordar com
aprofundamento histrico os objetos da ps-modernidade, duas das principais
crticas feitas Cultura Visual.
A Iconologia na contemporaneidade
Sendo a Histria da Arte uma atividade retrica, os novos desafios para a
disciplina, como o de lidar com as novas mdias, colocou em questo o seu discurso
tradicional. Nesse sentido, o historiador da arte Hans Belting, na Alemanha, e o
crtico Arthur Danto, nos Estados Unidos, suscitaram a questo de um fim da
Histria da Arte. Como afirma Belting, O discurso do fim no significa que tudo
acabou, mas exorta a uma mudana no discurso, j que o objeto mudou e no se
ajusta mais aos seus antigos enquadramentos.21 O conceito de arte e de artista se
torna fundamental desde a Renascena, como atesta a obra de Giorgio Vasari
acerca da vida dos principais pintores, escultores e arquitetos da poca22. Desde
ento, o discurso tradicional sobre a arte ganhou corpo como uma grande narrativa
de sucessivos perodos estilsticos. Mesmo com a chegada da pintura modernista, o
discurso ainda se manteve narrativo. Segundo Arthur Danto, o crtico Clement
Greenberg foi o grande narrador do modernismo.
E passo a passo, Greenberg construiu uma narrativa do modernismo para
substituir a narrativa da pintura representativa tradicional definida por Vasari. (...) A
passagem da arte pr-modernista para a modernista, se concordarmos com
Greenberg, foi a passagem das caractersticas mimticas para as no mimticas
da pintura23.
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A diferena no discurso sobre a arte contempornea a constatao da mesma
no pertencer mais a uma grande narrativa. Como sustenta Danto, com o fim da
Histria da Arte, qualquer que fosse a arte que se seguisse, ela seria feita sem o
benefcio da narrativa legitimadora, na qual fosse vista como a prxima etapa
apropriada da histria24. Por outro lado, como observa Belting, no existe nos dias
de hoje nenhum modelo novo que possua a legitimidade do tradicional discurso da
disciplina.25
nesse contexto de predominncia das mdias tcnicas e de redefinies na
Histria da Arte que a iconologia entendida como uma relao imagem-texto
torna-se fundamental para o estudo das imagens. Segundo W. J. T. Mitchell, as
imagens so produtos da prpria potica e, tal como props o filsofo Aristteles,
so como seres vivos, ou seja, como uma segunda natureza que os homens criaram
ao redor de si mesmos.26 Se as imagens so como formas vivas, as mdias so o
seu habitat ou ecossistema, ou seja, onde elas adquirem vida. O autor sustenta que
o conceito de mdia no pode ser definido como apenas o objeto ou o meio pelo qual
a imagem torna-se aparente. A mdia mais que um mero material e mais que a
mensagem, como havia definido Marshall McLuhan. um conjunto de prticas
materiais envolvendo a tecnologia, as tradies e os hbitos, por exemplo as
quais trazem juntas uma figura e um objeto para formar uma imagem27. Nesse
sentido, como afirma Vilm Flusser, a aparente objetividade das imagens tcnicas
ilusria, pois na realidade so to simblicas quanto o so todas as imagens28. Elas
codificam textos em imagens, so metacdigos de textos29. Como afirma Anne
Cauquelin, ao concentrar a anlise em uma srie de obras, tal como ocorre no
mtodo iconolgico, o historiador escapa decerto histria da arte entendida como
sucesso de movimentos artsticos e de nomes de artistas apresentados do primeiro
ao ltimo30. Ao contrrio, possvel se aproximar das prprias obras e dos seus
processos de produo, utilizando-se disso para reconstruir as representaes de
acordo com as suas pocas.
A intertextualidade deve ser levada em conta, portanto, no estudo das imagens e
na escrita da histria da arte. Por exemplo: ao se observar uma imagem figurativa,
possvel identificar, em princpio, suas formas visveis, as quais constituem uma
cena. Depois, quando o olhar circula mais atentamente por sua superfcie, podem
ser estabelecidas relaes significativas, proporcionando uma anlise mais
aprofundada. A imagem pode exercer uma funo alegrica, transmitindo
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significados simblicos mais complexos. Alm disso, esses significados poderiam
at mesmo revelar a proliferao de signos atravs da histria. Entretanto, a
compreenso destes significados depende do conhecimento de um repertrio visual,
construdo por uma determinada sociedade em um determinado perodo histrico.
Por fim, como afirma o professor Jacques Aumont, mesmo com a proliferao
cada vez maior das imagens tcnicas nos dias de hoje e com o anncio por muitos
da morte da escrita e da prpria Histria da Arte mesmo assim, nossa
civilizao ainda continua a ser, quer se queira ou no, uma civilizao da
linguagem31.
1 BURKE, P. Testemunha ocular: histria e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. p. 44. 2 PANOFSKY, E. Estudios sobre iconologia. Madrid: Alianza Editorial, 1994, p.54.
3 CAUQUELIN, A apud PANOFSKY, E. Teorias da arte. So Paulo: Martins, 2005, p. 111.
4 MITCHELL, W.J.T. Iconology: image, text, ideology. Chicago and London: The University of Chicago
Press, 1987, p.2. 5 ARISTTELES. De Anima. So Paulo: Editora 34, 2006, p. 119.
6 Ibid., p. 113.
7 KNAUSS, P. O desafio de fazer histria com imagens: arte e cultura visual, In: Artcultura, v.8, n.12,
jan.-jun. 2006, p. 99. 8 MANGUEL, A. Lendo imagens: uma histria de amor e dio. So Paulo: Cia. das Letras, 2001, p.
116. 9 DUGGAN apud BURKE, op.cit., p. 59.
10 FLUSSER, Vilm. Ensaio sobre a fotografia. Lisboa: Relgio dgua, 1998, p. 24.
11 Ibid., p.31.
12 Ibid., p. 30.
13 Ibid.,p. 24.
14 GROULIER, J.F. Descrio e interpretao. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Pintura Textos
essenciais, Vol. 8, So Paulo: Editora 34, 2006, p.10. 15
Ibid., p. 11. 16
Idem. 17
MITCHELL, W.J.T. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago and London: The University of Chicago Press, 2005, p. 222. 18
ALBERTI, L. B. Da pintura. Campinas: Editora Unicamp, 1986, p. 103. 19
CHERRY, D. Art History Visual Culture. In: Art History, v. 27, n. 4, set. 2004, p. 480. 20
MITCHELL apud CHERRY, op.cit., p. 480. 21
BELTING, 2006, p. 8. 22
Le Vite de Piu Eccelenti Pittori, Scultori e Architetori, editado pela primeira vez em 1550. 23
DANTO, 2006, pp. 7-8. 24
Ibid., p. 5. 25
BELTING, BELTING, Hans. O fim da Histria da Arte: uma reviso 10 anos depois. So Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 241. 26
MITCHELL, 2005, xv. 27
Ibid., p.198. 28
FLUSSER, op.cit, p. 34. 29
FLUSSER, loc. cit. 30
BELTING, op. cit., p. 111. 31
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993, p. 314.
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