historia do dinheiro - trecho

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Degustação do novo romance de Alan Pauls, "História do dinheiro".

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História do dinHeiro

Tradução josely vianna baptista

Alan Pauls

História do dinHeiro

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Assim que o dinheiro chegar, prometo que voltarei a ser totalmente normal.

franziska zu reventlow

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Não completou quinze anos quando vê pessoalmente seu primeiro

morto. Fica um pouco surpreso de que esse homem, amigo íntimo da

família do marido de sua mãe, agora, encolhido pelas paredes muito

estreitas do caixão, ainda lhe pareça tão antipático quanto quando era

vivo. Ele o vê em seu terno, vê seu rosto rejuvenescido pela higiene

fúnebre, maquiado, a pele um pouco amarelada, com um brilho que

parece de cera, mas impecável, e sente novamente a mesma antipatia

raivosa que o assalta toda vez que deparou com ele. Aliás, sempre foi

assim, desde o dia em que o conhece, oito anos antes, num verão em

Mar del Plata, pouco antes do almoço.

Não sopra um pingo de vento, as cigarras aprontam outra ofensiva

ensurdecedora. Fugindo do calor, do calor e do tédio, ele anda à deriva

pelo casarão do início do século xx onde não consegue encontrar seu

lugar, pouco importam os sorrisos com que é recebido pelos donos da

casa assim que pisa nela pela primeira vez, nem o quarto exclusivo que

lhe destinam no primeiro andar, nem a insistência com que sua mãe lhe

garante que, mesmo recém-chegado, ele tem tanto direito ao casarão e

a tudo que há nele – incluindo a garagem com as bicicletas, as pranchas

de surfe e as de isopor, incluindo também o jardim com as tílias, o al-

pendre, os balanços de ferro e aqueles canteiros com hortênsias que o

sol chamusca e descolore até que as pétalas pareçam de papel – quanto

os outros, entendendo por outros toda a legião difusa, mas inexplica-

velmente crescente, que ele, com um desconcerto que os anos todos em

que vem escutando a expressão não conseguiram dissipar, ouve chamar

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de sua família recomposta, toda essa tropa de primos, tias e avós postiços

que brotaram de um dia para o outro como verrugas, quase sempre sem

lhe dar tempo para o básico, decorar seus nomes, por exemplo, e con-

seguir associá-los aos rostos correspondentes. O calvário de quem se vê

forçado a se mover porque não se encaixa: todos os passos que dá são

em falso, cada decisão um erro. Viver é se arrepender.

Numa escala de sua perambulação, aterrissa no térreo e o vê – ou

melhor, o surpreende – o morto, claro, quem mais seria? – esguei-

rando-se pela sala de jantar como se andasse nas pontas dos pés, em

atitude suspeita. Não tem a agilidade inquietante de um ladrão. Se há

uma coisa que ele não representa, rubicundo como é, de uma afetação

quase feminina, com essa pele sempre salpicada de manchas verme-

lhas, é uma ameaça. Tem um jeito sutil de se mover, a delicadeza de

um mímico ou de um bailarino, e dá uns saltos mudos, tão inofensi-

vos quanto a missão que o levou até a sala de jantar antes que a sineta

anuncie oficialmente a hora do almoço: antecipar-se ao resto da família

para saquear um por um, com as bicadas de seus dedos manicurados,

metódicos, os pratinhos onde acabam de servir os crostines que ele

mesmo resolveu comprar essa manhã, uma marca de nome vagamente

estrangeiro cujas qualidades, ao que parece, está promovendo há uma

semana sem que lhe deem atenção.

Como todo mundo, ele acreditou que a morte lave essa velha apreen-

são. Pelo menos isso, se não conseguir apagá-la. De maneira que se

aproxima do caixão, a única coisa, além da mulher do morto – a qual,

aliás, já não vê há um bom tempo –, que o atrai nesse apartamento su-

focante para onde sua mãe o levou sem dizer uma palavra assim que ele

volta da escola. Avança com o queixo fincado no peito, com o mesmo ar

sério e ensimesmado que entristece com estranha unanimidade o rosto

dos adultos e que em menos de dez minutos, só de dar uma olhada, já

é capaz de plagiar com perfeição, encorajado, além do mais, pela for-

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malidade do uniforme do colégio com o qual sua mãe o obrigou a ficar,

a única coisa que seu guarda-roupa oferecia à altura da situação. Mas

quando chega ao lado do caixão, com a esperança de que ver o morto ao

vivo – como um dia brincou com os colegas de escola com quem divide

a mesma inexperiência em assuntos de velório – relegue a velha hosti-

lidade para o subsolo onde murcham suas intolerâncias de criança, as

vozes ao seu redor se entrelaçam num rumor confuso, o som ambiente

se apaga e ele, incrédulo, descobre que o único som que ouve, que volta

a ouvir intacto, conservado em estado de máxima pureza, é uma coisa

apenas: o crepitar insuportável dos crostines dentro da boca do morto.

São, de fato, dois sons alternados: o estalido que os crostines fazem ao

serem triturados pelos dentes, nítido mas opaco, abafado pelo decoro

de uma boca educada para se abrir o mínimo possível enquanto mastiga,

e o estalo vivaz, regular, os lategaços ínfimos que ressoam no instante

da trituração, quando os lábios se deliciam prolongando por alguns se-

gundos o prazer de saboreá-los. Mas não: não estão no ar nem em sua

cabeça. Não são uma alucinação nem uma lembrança. Estão lá dentro,

soam na própria boca do morto.

Quantas vezes volta a encontrá-lo ao longo dos anos seguintes:

dez?, trinta vezes? No entanto, nada nele persiste tanto quanto esse

crepitar repugnante. Vê o morto quase todo verão em Mar del Plata

e nas situações mais diversas: em traje de banho, por exemplo, com

a pele branquíssima, salpicada de pintas, queimada de sol, encami-

nhando-se para o mar com os pés abertos em V, como um pato, ou exi-

bindo suas camisas cor de salmão num conversível italiano com o qual

dizem que tentou a sorte no autódromo, ou jogando golfe e perdendo

feio e deixando-se distrair – apenas anota com o lapisinho em seu car-

tão as sete tacadas grotescas que lhe exigiu o par quatro que acaba de

deixar para trás – pela cócega que diz que uma costurazinha da luva

que acabou cedendo faz em seu punho, a ponta ligeiramente achatada

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do tee que mete entre os dentes ou a fome que começou a sentir quando

ainda não são nem dez da manhã, ninharias que comenta em voz alta,

às vezes ao longo de buracos inteiros, como se fossem episódios de

um drama funesto, com o único fim de desconcertar os adversários e

assim, talvez, superar os números adversos de seu cartão. Topa com

ele também em Buenos Aires, em sua própria casa, convidado para

algum aniversário familiar, movendo-se com a presunção um pouco

insolente desses amigos da família que se atribuem um lugar mais ín-

timo que os próprios parentes, ou assinando cheques numa confeitaria

da rua Florida, num desses salões imensos, fora de moda, com pol-

tronas capitonées e garçons de um profissionalismo carrancudo onde o

marido de sua mãe, com o pretexto de familiarizá-lo com um modelo

de vida adulta que sempre lhe será estranho, costuma almoçar e fechar

acordos comerciais com colegas. Uma vez o vê sob o sol numa chá-

cara da província de Buenos Aires, vestido com calça branca e botas

de montaria e um copo longo na mão com uma bebida cor de ginja

que bebe a sorvos curtos, quase aspirando-a, como se estivesse muito

quente, enquanto um peão magérrimo, de boina, retirou-se para um

lado e espera incomodado alguma coisa que não chega.

Mas o que lhe resta dele nesse tempo todo não é o tom aflautado

de sua voz, nem seus nervos frágeis, sempre em carne viva, nem os

ares de importância com que pega a taça de vinho pelo pé e a faz girar

sobre o braço da poltrona. Não são seus óculos de sol, nem seus pulô-

veres claros amarrados no pescoço, nem seus mocassins de fivela, nem

essa espécie de impaciência crispada que é o selo de sua relação com

os demais e com o mundo, duas coisas ou categorias de coisas cuja

existência só aceita a contragosto, como se não tivessem outra razão

de ser senão fazer com que perca seu tempo, especialmente os perso-

nagens subalternos que de um modo ou de outro cruzam seu caminho,

peões de estância, caddies, motoristas, garçons, e acima de tudo o seleto

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